A ceia do Senhor - Thomas Watson

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About This Presentation

A ceia do Senhor - Thomas Watson


Slide Content

Thomas Watson

A CEIA DO
SENHOR
Thomas Watson
OS PURITANOS

EPÍSTOLA AO LEITOR
Leitor cristão,
uando contemplo a santidade e solenidade do bendi-
■ ■ to sacramento, outra coisa não me ocorre senão certa
punção em meu espírito, e vejo em mim a obrigação
de maffler este mistério na mais elevada veneração. Os elementos
do pão e vinho são em si mesmos comuns, mas sob estas repre­
sentações simbólicas jazem ocultas excelências divinas. Eis aqui
a melhor das guloseimas: Deus nos convida à sua festa. Eis aqui
o fruto da Árvore da Vida; eis aqui a “casa do banquete” onde a
bandeira da livre graça é gloriosamente exibida: “Levou-me à casa
do banquete, e seu estandarte sobre mim era o amor” (Ct 2.4).
No sacramento vemos Cristo partido diante de nós, e seu cor­
po partido é o único conforto para o coração alquebrado. Enquan­
to nos assentamos em torno desta mesa, o precioso condimento
de Cristo exala sua fragrância de mérito e graça. O sacramento é
tanto uma ordenança curadora quanto seladora. Aqui nosso Sal­
vador conduz seu povo ao Monte da Transfiguração e lhes dá um
vislumbre do paraíso. Quão bem-vindo deve ser este jubileu da
alma, no qual Cristo se manifesta no esplendor de sua beleza e
traça douradas linhas de amor no centro do coração crente.
Oh! Que chamas de devoção deveríam arder em nosso cora­
ção! Quão ágeis e lépidos deveriamos ser, subindo com asas de
querubins, quando somos capacitados a encontrar o Príncipe da

A CEIA DO SENHOR
— Thomas Watson
Traduzido do original inglês: The L ord’s Supper
Os Puritanos © 2015.
1 .a Edição em Português - Junho de 2015 - 1.000 exemplares.
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação sem a
autorização por escrito do editor, exceto citações em resenhas.
EDITOR: Manoel Canuto
TRADUTOR: Valter Graciano Martins
REVISORES: Márcio Santana Sobrinho, Waldemir Magalhães
DESIGNER: Heraldo Almeida
ISBN: 978-85-62828-29-4
Gravura da capa: “A Scottish Sacrament” (óleo sobre tela) do pintor
Henry John Dobson (1858-1928) que retrata a administração da
Ceia do Senhor em uma igreja presbiteriana escocesa. A pintura está
agora na Galeria de Arte Cartwright Hall, em Bradford, Inglaterra.

SUMÁRIO
Epístola ao Leitor............................................................................7
Apresentação do Editor da Versão em Inglês
........................9
1. O Mistério da Ceia do Senhor
..........................................11
2. A Consagração dos Elementos...........................................17
3. Os Benefícios da Ceia do Senhor.....................................25
4. O Amor de Cristo Exibido no Sacramento
..................31
5. O Corpo Partido de Cristo
................................................37
6. O Sangue de C risto..............................................................41
7. Autoexame................................................................................47
8. Verdadeira e Falsa Fé.............................................................55
9. Objeçóes Contra o Achegar-se ao Sacramento
..........65
10. Gratidão a D eus
....................................................................77
11. Consolação para os Crentes e Advertências Para
os Incrédulos...........................................................................81

A CEIA DO SENHOR
Glória, que traz em sua boca o ramo de oliveira de paz e cujos
ósculos deixam uma marca celestial impressa na alma. O propó­
sito deste discurso que se segue é exercitar santos ardores de alma
quanto à participação neste sacramento.
Não se deve pensar que é suficiente ser exteriormente devoto
junto à mesa de Deus, achegando-se a ele com os lábios, quan­
do o coração está longe dele: “este povo se aproxima de mim, e
com sua boca, e com seus lábios me honra, mas seu coração se
afasta para longe de mim e seu temor para comigo consiste só
em mandamentos de homens, em que foi instruído; portanto,
eis que continuarei a fazer uma obra maravilhosa no meio deste
povo, uma obra maravilhosa e um assombro; porque a sabedo­
ria de seus lábios perecerá, e o entendimento de seus prudentes
se esconderá” (Is 29.13-14). O que é isto senão que Efraim se
achega a Deus com mentiras (Os 11.12)? Os que se achegam a
Deus com meras exibições, ele lhes despedirá com meros sinais.
Os que prestam a Deus apenas uma obediência rasa terão de
contentar-se com uma casca de conforto.
A espiritualidade é a vida do culto. Se nos achegamos ao sa­
cramento em devida ordem, veremos aquele a quem nossas al­
mas amam: “Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim
coma deste pão e beba deste cálice” (ICo 11.28).
O Senhor nos dará aqui um antegozo, e reservará a fruição
da glória para o reino celestial. Que isto seja efetuado é a oração
deste que é vosso na obra do evangelho,
Thomas Watson
Londres, 1665.
8

APRESENTAÇÃO DO EDITOR
DA VERSÃO EM INGLÊS
E
sta rara obra foi originalmente publicada em 1665 com o
título The Holy Eucharist, ou The Mystery of the Lord s
Supper Briefly Explained. Ainda que sucinto, ele é digno
de perfilar com outros escritos de Thomas Watson republicados
pelaTrust.[1]
Para Watson, a Ceia do Senhor era um espelho no qual con­
templamos os sofrimentos e morte de Cristo, e era, em certos
aspectos, um meio de graça mais excelente do que a pregação
da Palavra: “Um sacramento é um sermão visível. E nisto o sa­
cramento sobressai à Palavra pregada. A Palavra é uma trombeta
que proclama Cristo; o sacramento é um espelho que o represen­
ta... Deus, para ajudar nossa fé, não só nos dá a Palavra audível,
mas também um sinal visível.”
Ele cria que o sacramento era uma inestimável dádiva do
Salvador à igreja, em cujo correto uso a fé do povo de Deus é
confirmada e fortalecida e suas almas recebem grande benefício.
Ele cria que se devem evitar dois extremos. Um deles é a
doutrina da transubstanciação, a qual vai de encontro tanto à
Escritura quanto à razão e profana a instituição da Ceia feita por
[1] A Body of Divinity, The Ten Commandments, e The Lords Prayer, que, juntos, .
formam o Watsons Body ofPractical Divinity, e, na série de brochuras puritanas, All
Ihingsjòr Good, The Doctrine o f Repentance, The Godly Maris Picture e The Great Gain
ofGodliness.

A CEIA DO SENHOR
Cristo. O outro é o erro dos que consideravam a Ceia apenas
como uma sombra vazia sem nenhuma eficácia intrínseca para
os crentes: “Por que a Ceia do Senhor é chamada ‘a comunhão
do corpo de Cristo’ (lC o 10.16), senão porque na celebração
correta dela temos doce comunhão com Cristo? (...) Fazer do
sacramento apenas uma representação de Cristo é apequenar o
sacramento, o que redunda em pouco conforto.” Esse ponto de
vista se fundamenta no ensino de Calvino que considerava o sa­
cramento um meio de graça pelo qual, através da fé, Cristo opera
eficazmente no crente.
Alguns protestantes podem estar dispostos a dissentir desta
posição, mas ninguém que ama a nosso Senhor Jesus Cristo dei­
xará de ser tocado e abençoado pelo ardor e devoção ao Salvador
que se encontram na exposição de Watson.
Os editores desejam agradecer ao Sr. Roger N. McDermott
que transcreveu cuidadosamente a obra de Watson de uma có­
pia da Bodleian Library, Oxford, e ajudou a prepará-la para sua
publicação.
O EDI TOR
Edinburgh
Janeiro de 2004
10

1
O MISTÉRIO DA
CEIA DO SENHOR
“Enquanto comiam, tomou Jesus um pão, e, abençoando-o, o
partiu, e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai, comei; isto é o meu
corpo. A seguir, tomou um cálice e, tendo dado graças, o deu aos
discípulos, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue,
o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos, para
remissão de pecados” (M t26.26-28).
N
estas palavras, temos a instituição da Ceia do Senhor.
Os gregos chamam o sacramento de musteriom um
mistério. Há nela um mistério de maravilha e um mis­
tério de misericórdia. “A celebração da Ceia do Senhor é a co­
memoração da maior bênção que o mundo já desfrutou”, diz
Crisóstomo.121 Um sacramento é um sermão visível. E nisto o
sacramento sobressai à Palavra pregada. A Palavra é uma trom-
beta que proclama Cristo; o sacramento é um espelho que o
representa.
Pergunta: Mas, por que o sacramento da Ceia do Senhor foi
instituído? Acaso a Palavra não é suficiente para conduzir-nos ao céu? 2
[2] João Crisóstomo (347-407), “a boca de ouro”; bispo de Constantinopla e
notável pregador.

A CEIA DO SENHOR
Resposta: A Palavra é para a implantação da fé; o sacramento
é para a confirmação da fé. A Palavra nos conduz a Cristo; o sacra­
mento nos edifica nele. A palavra é a fonte em que somos batiza­
dos com o Espírito Santo; o sacramento é a mesa onde somos ali­
mentados e nutridos. O Senhor condescende à nossa fraqueza. Se
fôssemos formados somente de espírito, não haveria necessidade
de pão e vinho; todavia, somos criaturas compostas. Por isso Deus,
para socorrer nossa fé, não só nos dá uma Palavra audível, mas
também um sinal visível. “Et sensus fovetur, et fides firmatur” [O
sentido é alimentado e a fé é fortalecida]. Recorro aqui à palavra
de nosso Salvador: “Se não virdes sinais e milagres, não crereis” 0o
4.48). “Por sermos alimentados por coisas externas, Deus aumenta
em nós a fé por meio desses símbolos” (Gualter).131
Aquilo que entra pelos nossos olhos opera em nós mais do
que aquilo que entra pelos ouvidos. Uma grave cena de morte
nos afeta mais do que uma oração. Assim, quando vemos Cristo
partido no pão, como se fosse crucificado diante de nós, isso
afeta mais nosso coração do que a mera pregação da cruz.
E assim passo ao texto de Mateus 26.26-28 para dar início a
estes cinco particulares em referência ao sacramento: 1. O autor;
2. O tempo; 3. O modo; 4. Os participantes; e 5. Os benefícios.
1. O autor do sacramento é Jesus Cristo.
“Jesus tomou o pão.”Instituir sacramentos pertence por direito
a Cristo, e é o ornamento de sua coroa. Somente aquele que
pode outorgar graça pode instituir os sacramentos, os quais são
o selo da graça. Sendo Cristo o fundador do sacramento, ele lhe
concede glória e esplendor. Quando um rei faz uma festa, ele
lhe adiciona mais pompa e magnificência. “Jesus tomou o pão”,
aquele cujo Nome é acima de todo nome (Fp 2.9); Deus bendito
para todo o sempre. 3
[3] Quia externis ducimur, hisce symbolis fidem in nobis adauget Deus. Rudolf Gualter
(1519-86) foi um reformador suíço e sucessor de Bullinger em Zurique.
12

O MISTÉRIO DA CEIA D O SENHOR
2. O tempo em que Cristo instituiu o sacramento.
Quanto ao tempo em que Cristo instituiu o sacramento, pode­
mos observar duas circunstâncias:
i. Isso se deu quando haviam ceado (Lc 22.20: “depois de
cear”); ceia que continha mistério, para mostrar que a meta do
sacramento é ser principalmente um banquete espiritual, não
visa a empanturrar os sentidos, e sim a suprir as graças. Isso se
deu “depois de cear”.
ii. A outra circunstância de tempo é que Cristo instituiu o
sacramento pouco antes de seus sofrimentos. “O Senhor Jesus,
na noite em que foi traído, tomou o pão” (ICo 11.23). Ele tinha
plena ciência dos problemas que sobreviriam aos seus discípulos;
a perplexidade deles não seria pouca por ver seu Senhor e Mestre
crucificado; e logo depois teriam de beber com ele um cálice
amargo; por isso, para armá-los contra tal momento e animar-
lhes o espírito, naquela mesma noite em que foi traído ele lhes
dá seu corpo e sangue no sacramento.
Isto pode nos sugerir que em toda aflição mental, especial­
mente ante a aproximação do perigo, é necessário que recorra­
mos à Ceia do Senhor. O sacramento é, respectivamente, um
antídoto contra o temor, e a restauração da fé. “Na noite em que
foi traído, ele tomou o pão” (ICo 11.23).
3. O modo da instituição, no q u al há
quatro coisas a serem observadas:
i. O ato de tomar o pão;
ii. O ato de abençoá-lo;
iii. O ato de parti-lo;
iv. O ato de administrar o cálice.
13

A CEIA DO SENHOR
2. O ato de tomar o pão: “Jesus tomou o pão. ”
Pergunta: O que está im plícito na frase “tom ou o pão”?
Resposta: O ato de Cristo tomar o pão do uso comum im­
plicava um duplo mistério.
a. Significava que Deus, em seu decreto eterno, separou Cris­
to para a obra de nossa redenção. Ele era o kechorismenos, separa­
do dos pecadores (Hb 7.26).
b. O ato de Cristo separar os elementos do pão e do vinho
comuns revelava que ele não se destina à nutrição de pessoas
comuns. Deve ser divinamente purificado aquele que toca estas
santas coisas de Deus. Devem ser exteriormente separados do
mundo e interiormente santificados pelo Espírito.
Pergunta: Por que Cristo tomou o pão, em vez de outro
elemento?
Resposta: Porque o pão o prefigura. Cristo foi tipificado (a)
pelo pão da proposição\“Tzmbém fez Salomão todos os objetos
que convinham à casa do Senhor; o altar de ouro, e a mesa de
ouro, sobre a qual estavam os pães da proposição” (lR s 7.48); (b)
pelo pão que Melquisedeque ofereceu a Abraão. “E Melquisedeque,
rei de Salém, trouxe pão e vinho” (Gn 14.18); e (c) pelo pão que o
anjo trouxe a Elias. “E olhou, e eis que à sua cabeceira estava um
pão cozido sobre as brasas” (lR s 19.6). Portanto, Cristo tomou
o pão em correspondência ao tipo.
Cristo tomou o pão também por causa da analogia; pão o
lembra bem de perto: “Eu sou o pão da vida” (Jo 6.48). Há uma
tríplice semelhança.
14

O MISTÉRIO DA CEIA DO SENHOR
a. O pão é útil. Outros confortos servem mais ao deleite que à
utilidade. A música deleita aos ouvidos; as cores, aos olhos; mas o
pão é o arrimo da vida. Portanto, Cristo é proveitoso. Não há subsis­
tência sem ele: “quem de mim se alimenta por mim vivera’ (Jo 6.57).
b. O pão satisfaz. Se uma pessoa tem fome e você lhe traz
flores ou quadros, tais coisas não satisfazem; mas o pão satisfaz
plenamente. Assim Jesus Cristo, o pão da alma, satisfaz; ele sa­
tisfaz os olhos com beleza, o coração com dulçor, a consciência
com paz.
c. O pão fortalece. “O pão que fortalece o coração do ho­
mem” (SI 104.15, ACRF). Assim Cristo, o pão da alma, trans­
mite vigor. Ele nos fortalece contra as tentações, comunica vigor
para realizar e suportar trabalho. Ele é como o pão que o anjo
levou ao profeta: “Levantou-se, pois, e comeu e bebeu; e com a
força daquela comida caminhou quarenta dias e quarenta noites
até Horebe, o monte de Deus” (lR s 19.8).
ii. A segunda coisa na instituição é Cristo abençoando o
pão. Ele o abençoou: “Pela bênção de Cristo, o pão comum ad­
quiriu uso santo” (Gualter).[4) 5 Esta foi a consagração dos elemen­
tos. Cristo, por sua bênção, os santificou e fez deles símbolos de
seu corpo e sangue: “ Consagrar significa tornar solenes coisas em
si mesmas indiferentes aos mistérios religiosos, tal como o sacra­
mento do corpo e sangue de Cristo” (Chamier, De Eucharistia).151
Nossa análise disto continua no próximo capítulo.
[4] Benedictione Christi panis communis in sacrum mutatus est.
[5] Comecratio vocabulum est solenne significam id quo per se aliena sunt a mysteriis
religiosis, sint sacramenta corporis et sanguinis Christi. A referência é a uma obra de
Daniel Chamier publicada em Genebra em 1626.
15

2
A CONSAGRAÇÃO DOS
ELEMENTOS
“Jesus tomou o pão e, abençoando-o... E, tomando o cálice,
dando graças” (M t26.26-27).
N
a consagração dos elementos celebrada por Cristo po­
dem ser vistas três coisas:
a. Cristo, ao abençoar os elementos, abriu aos apóstolos a na­
tureza do sacramento. Ao fazer isso, ele solucionou este mistério.
Cristo revelou-lhes que, tão seguramente como receberam fisica­
mente os elementos, assim seguramente o receberam espiritual­
mente no coração.
b. O ato de Cristo abençoar os elementos significava sua oração
por uma bênção sobre a ordenança. Ele orou para que estes sím­
bolos de pão e vinho, através da bênção e operação do Espírito
Santo, santificassem os eleitos e lhes selassem todas as mercês e
privilégios espirituais.
c. O ato de Cristo abençoar os elementos constituiu sua ação
de graças. “[Dar graças] foi sempre o costume dos judeus, como
transparece dos escritores Talmúdicos, antes de tomar o ali­

A CEIA DO SENHOR
mento ou o vinho” (Josefo).161 Por isso, no grego: Eucharistia
— “Ele deu graças.”
Cristo deu graças porque Deus o Pai tinha, nas infinitas ri­
quezas de sua graça, dado seu Filho para expiar os pecados do
mundo. E se Cristo deu graças, quanto mais nós devemos ren­
der graças! Se ele, que havia de derramar seu sangue, deu graças,
quanto mais devemos nós, que havemos de bebê-lo, dar graças!
Cristo deu graças porque Deus deu estes elementos de pão e
vinho, não só para que fossem sinais, mas também selos de nossa
redenção. Como o selo serve para ratificar uma transferência de
terra, assim o sacramento, como um selo espiritual, serve para
comunicar Cristo e o céu a quem dignamente o recebe.
m i. A terceira coisa na instituição é o ato de partir o pão. “E o
partiu.” Isto prefigurava a morte e a paixão de Cristo, com todos
os tormentos de seu corpo e alma: “ao Senhor agradou moê-
lo” (Is 53.10). Quando condimentos são moídos, então exalam
suave aroma. Assim, quando Cristo foi moído na cruz, ele nos
exalou a mais doce fragrância. O corpo de Cristo, sendo crucifi­
cado, foi a quebra de um invólucro de precioso unguento, o qual
encheu céu e terra com seu perfume.
Pergunta: Mas, por que o corpo de Cristo foi partido? Qual
foi a causa de seu sofrimento?
Resposta: Seguramente, não por haver nele alguma falta:
“será morto o Ungido e já não estará” (Dn 9.26). No original
hebraico: “Ele será cortado, e não haverá nada nele.” Não está
nele a razão porque deve sofrer. O sumo sacerdote, quando en­
trava no tabernáculo, primeiro oferecia “por si mesmo” (Hb 9.7); 6
[6] Moris semper iudaeis fuit, ut ex thalmudicis scriptoribus apparet, ante cibum aut
vinum sumptum. Josefo foi um historiador judeu, 37-100 d.C.
18

A CONSAGRAÇÃO DOS ELEMENTOS
ainda que portasse sua mitra, a lâmina de ouro e usasse vestes
santas, mesmo assim não era puro nem inocente; ele tinha de
oferecer sacrifício por si mesmo, tanto quanto pelo povo. Mas
Jesus Cristo, o grande Sumo Sacerdote, embora tenha oferecido
um sacrifício sangrento, todavia não fo i por si mesmo.
Pergunta: Por que, pois, seu bendito corpo foi partido?
Resposta: Foi por nossos pecados. “Tu te afligiste, Senhor,
não por tuas feridas, e sim pelas minhas” (Ambrósio).171 “Mas
ele foi ferido por nossas transgressões” (Is 53.5). A palavra he­
braica para ferido tem uma ênfase dupla; pode significar que ele
foi traspassado como que por um dardo: perforatus-, ou que foi
profanado: profanatus. Ele foi usado como alguma coisa comum,
vil; e isso em nosso favor: “Ele foi ferido por nossas transgressões.”
“Um peca e outro é punido” (Lutero).181 De modo que, se a ques­
tão fosse posta diante de nós, como uma vez a Cristo, “Profetiza:
quem te feriu?” (Lc 22.64), poderiamos responder imediata­
mente: Foram nossos pecados que o feriram. Nosso orgulho fez
Cristo usar uma coroa de espinhos. Como disse Zípora a Moisés,
“Tu és para mim um esposo sanguinário” (Ex 4.25); então Cristo
podería dizer à sua igreja: Tu tens sido para mim uma esposa
sanguinária; tu me custaste meu próprio sangue.
Pergunta: Mas como podería Cristo sofrer, sendo Deus? A
deidade é insensível.
Resposta: Cristo sofreu somente em sua natureza humana,
não na divina. Damasceno191 o explica fazendo uso deste símile:
Se alguém derrama água sobre o ferro em brasa, o fogo sofre
pela água e é extinto, mas o ferro não sofre. Assim a natureza
humana de Cristo podia sofrer a morte, mas a natureza divina 7 8 9
[7] Doles, Domine, non tua vulnera sed mea. Ambrósio (340-97), pai latino mais
conhecido por seu caráter impoluto e habilidade de pregação.
[8] Aliuspeccat, alius plectitur.
[9] João de Damasco (Damasceno), 676-760(?).
19

A CEIA DO SENHOR
não é culpável de qualquer paixão. Quando Cristo estava, na
natureza humana, sofrendo, ele foi, na natureza divina, triun­
fante. Como nos extasiamos com o nascer do Sol da Justiça
em sua encarnação, assim podemos extasiar-nos com a descida
deste Sol em sua paixão.
Pergunta: Mas, se Cristo sofreu somente em sua natureza
humana, como é possível que seu sofrimento fizesse satisfação
pelo pecado?
Resposta: Em razão da união hipostática,[10) estando a natu­
reza humana unida à divina; a natureza humana sofreu, a divina
fez satisfação. A deidade de Cristo deu aos seus sofrimentos, res­
pectivamente, majestade e eficácia. Cristo foi Sacrifício, Sacer­
dote e Altar. Ele foi Sacrifício, como homem; Sacerdote, como
Deus e homem; Altar, como Deus. A propriedade do altar é san­
tificar a coisa oferecida nele (Mt 23.14).
Então o altar da natureza divina de Cristo santificou o sacri­
fício de sua morte e a fez meritória.
Ora, concernente ao sofrimento de Cristo na cruz, observe
duas coisas:
1. Sua am argura p a ra ele: “Ele fo i moido. ”
Os próprios pensamentos de seu sofrimento o deixaram em ago­
nia. “E, posto em agonia, orava mais intensamente. E seu suor
tornou-se em grandes gotas de sangue, que corriam até o chão”
(Lc 22.44).
Ele foi tão fulminado pela dor que seu coração não pôde
conter-se: “M inha alma está cheia de tristeza até a morte”
(M t 26.38).
[10] Um termo usado para denotar a união entre as naturezas divina e humana
em Cristo.
20

A CONSAGRAÇÃO DOS ELEMENTOS
A Crucificação de Cristo foi:
i. Uma morte lenta.111] Era melhor que Cristo sofresse uma
hora do que termos de sofrer para todo o sempre; mas sua morte
foi prolongada; ele pendeu três horas da cruz. Ele morreu mil
mortes antes de morrer uma. “A morte envolve menos dor do
que nossa espera pela morte” (Ovídio).11 [12)
ii. Uma morte dolorosa. Suas mãos e pés foram pregados, es­
tando estas partes entremeadas de nervos e, portanto, em extremo
sensíveis, tornando sua dor muitíssimo profunda e cortante; e ter
a envenenada flecha da ira de Deus penetrando seu coração foi
uma catástrofe pavorosa, que causou vociferação e gritos na cruz:
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46;
Mc 15.34). A justiça de Deus estava agora inflamada e intensifica­
da na mais plena extensão. “Deus não poupou seu próprio Filho”
(Rm 8.32). Nada seria abatido da dívida. Cristo sentiu as dores do
inferno; muito embora não localmente, pelo menos o equivalente.
No sacramento vemos esta tragédia em ação diante de nós.
Ui. Uma morte ignominiosa. Cristo está in mediopositus, colo­
cado no meio; ele pendeu entre dois ladrões (Mt 27.38), como
se fosse o principal malfeitor. A lâmpada celestial pode bem ter
subtraído sua luz e se escondido nas trevas, como se envergonha­
do de contemplar o Sol da Justiça em um eclipse. E difícil dizer
qual era maior: o sangue da cruz ou a vergonha da cruz (Hb 12.2).
iv. Uma morte maldita (Dt 21.23). Este tipo de morte era tão
execrável que Constantino promulgou uma lei que nenhum cris­
tão morresse na cruz. O Senhor Jesus Cristo suportou isto: “Foi
[11] Non citius juit, quam profuit.
[12] Morsque minuspoenae, quam mora mortis habet (Ovídio, Ep. Heroides, x.8/2).
21

A CEIA DO SENHOR
feito maldição por nós” (G13.13). Aquele que era “Deus bendito
para sempre” (Rm 9.5) se submeteu à maldição.
2. Considere sua doçura p a ra nós:
“Tão logo fo i feito , se nos tom ou benéfico."
A chaga de Cristo é a nossa cura: “por suas pisaduras fomos sara­
dos” (Is 53.5). Calvino denomina a crucificação de Cristo Cardo
salutis, a dobradiça em torno da qual gira nossa salvação. E Lute-
ro a denomina Fons salutis, a fonte do evangelho aberta para re­
frigerar os pecadores. De fato, o sofrimento de Cristo é consolo
no leito de morte; é um antídoto a expulsar nosso medo.
O pecado atribula? Cristo já o venceu por nós. Junto aos dois
ladrões crucificados com Cristo havia dois outros ladrões invisí­
veis crucificados com ele: o pecado e o diabo.
iv. O quarto particular na instituição da Ceia do Senhor é a
administração do cálice de Cristo\“ E tomou o cálice.” O ato de
tomar o cálice exibiu a redundância1131 do mérito de Cristo e a
profusão de nossa redenção. Cristo não usou de parcimônia; ele
deu não só o pão, mas também o cálice. Podemos dizer com o
salmista: “no Senhor há misericórdia e nele há abundante reden­
ção” (SI 130.7).
Se Cristo deu o cálice, como ousam os papistas subtraí-lo?-
Cortam e mutilam a ordenança. Rasuram a Escritura e deveríam
temer aquela condenação: “e, se alguém tirar qualquer coisa das
palavras do livro desta profecia, Deus tirará sua parte da árvore
da vida, da cidade santa e das coisas que se acham escritas neste
livro” (Ap 22.19).
Pergunta: O que significa tomar o cálice de Cristo?
Resposta: O cálice é figurativo; é uma metonímia do sujeito;
o cálice é expresso pelo vinho contido nele. Com isto Cristo sig- 13
[13] Isto é, superabundância, transbordamento.
22

A CONSAGRAÇÃO DOS ELEMENTOS
nificava o derramamento de seu sangue na cruz; quando seu san­
gue foi derramado, então a videira foi podada e purgada; agora o
“Lírio dos Vales” foi tingido de cor púrpura. “Eles lhe deram um
manto escarlate, embora ele mesmo tingisse de púrpura o vestu­
ário de seu corpo com muito mais nobreza pelo derramamento
de seu sangue” (Bernardo).1141 Mas, para nós, ele é o cálice da
salvação. Quando Cristo bebeu este cálice de sangue, na verdade
podemos dizer que ele bebeu à saúde do mundo inteiro. Ele era
o “precioso sangue” (lPe 1.19). Neste sangue vemos o pecado
plenamente punido e plenamente perdoado. E por isso a esposa
de Cristo pôde dizer: “eu te daria a beber do vinho aromático e
do mosto das minhas romãs” (Ct 8.2), quando Cristo lhe deu de
beber de seu sangue cálido, aromatizado com seu amor e perfu­
mado com a natureza divina.
4. Os hóspedes convidados à Ceia do Senhor
A quarta coisa diz respeito aos “hóspedes convidados para
esta Ceia”, ou às pessoas a quem Cristo distribuiu os elementos;
“Ele o deu aos discípulos e disse: Tomai e comei.” O sacramento
é o pão dos filhos. Se um homem faz uma festa, ele chama seus
amigos. Cristo chama seus discípulos; se achasse que havia um
público melhor, certamente os faria saber.
“Não há espaço para mais sombras” (Horácio).1151
“Isto é o meu corpo que é dado por vós” (Lc 22.19). Isto é,
por vós “pistoi”, crentes. Cristo deu seu corpo e sangue para os
discípulos, principalmente sob esta ideia: porque eram crentes.
Como Cristo derramou suas orações sobre os crentes (Jo 17),
assim seu sangue, foi derramado somente para os crentes; veja 14 15
[14] Stolam coccineam dederunt ei, quamvis ipse vestem corporis sanguinaria effusione
multo nobilitts purpuravit. Bernardo de Clairvaux (1090-1153), chamado por Lutero
o monge mais temente a Deus de toda a Idade Média.
[15] Nort locus estpluribus umbris. Neste contexto, uma “sombra” era um hóspede
não convidado pelo anfitrião, e sim levado por algum outro hóspede de importância
como parte de sua festa.
23

A CEIA DO SENHOR
quão perto o coração de Cristo está de todos os crentes! O corpo
de Cristo foi partido na cruz e seu sangue derramado por eles —
“mas a eleição o alcançou” (Rm 11.7). Cristo ignorou outros, e
morreu intencionalmente pelos eleitos.
Pecadores impenitentes não têm nenhum benefício da morte
de Cristo, senão um curto indulto. Cristo é dado aos perversos
em ira. Ele é “uma rocha de ofensa” (lPe 2.8). O sangue de Cris­
to é como um óleo que sana alguns pacientes, porém mata ou­
tros. Judas sugou morte da Arvore da Vida. Deus pode converter
pedras em pão, e um pecador pode converter pão em pedras; o
pão da vida em pedra de tropeço.
24

3
OS BENEFÍCIOS DA
CEIA DO SENHOR
Meu sangue... é derramado... para a remissão de pecados
(M t26.28)
A
quinta coisa observável no texto (Mt 26.26-28) é o be­
nefício desta Ceia, nestas palavras: “para a remissão de
pecados.” Esta é uma mercê de primeira magnitude, o
summum gentis, a suprema bênção: “Quem perdoa todas as tuas
iniquidades... quem te coroa com longanimidade” (SI 103.3-4).
A todo aquele a quem foi concedida esta carta régia, o nome
está arrolado no Livro da Vida: “Bem-aventurado aquele cuja
transgressão é perdoada” (SI 31.1). Sob as palavras “remissão de
pecados”, por sinédoque, estão compreendidas, na Ceia do Se­
nhor, todas as benesses celestiais: justificação, adoção, glória, de
cujos benefícios podemos, com Crisóstomo, chamar de “o ban­
quete da cruz”.
Esta doutrina do sacramento refuta a opinião da transubstan-
ciação. “Não é a transubstanciação que está subentendida, nem
transformação, mas a união sacramental do sinal com a subs­
tância” (Beza).1161 Quando Cristo diz “Isto é o meu corpo”, os
papistas afirmam que o pão, após a consagração, se converte na 16
[16] Non Transbstantiatio intelligitur, vel trajisfusio, sed signi rei coniunctio
sacramentalis (Beza).

A CEIA DO SENHOR
substância do corpo de Cristo. Afirmamos que o corpo de Cristo
está espiritualmente no sacramento, mas os papistas dizem que
ele está ali carnalmente; eis uma opinião mui absurda e ímpia.
1. É absurda, porquanto é contrária (i) à Escritura.
As Escrituras asseveram que o corpo de Cristo está local e nu­
mericamente no céu. “A quem o céu deve receber até os tempos
da restituição de todas as coisas” (At 3.21). Se o corpo de Cristo
está circunscrito no céu, então não pode estar materialmente na
Ceia do Senhor.
E contrária (ii) à razão. Como é possível imaginar que uma
coisa seja mudada em outra espécie, e ainda assim continuar sen­
do a mesma? Que o pão no sacramento seja comunicado e con­
vertido em carne, e ainda continue sendo pão? Quando a vara de
Moisés se converteu numa serpente, ela não podia ser ao mesmo
tempo e respectivamente uma vara e uma serpente. Que o pão
no sacramento seja mudado no corpo de Cristo e ainda perma­
nece sendo pão é uma perfeita contradição. Se os papistas dizem
que o pão se desvanece, isto é mais apropriado numa lenda do
que em nosso credo; pois a cor, a forma e o sabor do pão ainda
permanecem.
2. Esta opinião de transubstanciação é ím pia;
como transparece em duas coisas:
i. E uma profanação do corpo de Cristo; pois se o pão no sacra­
mento é o corpo real de Cristo, então ele pode ser comido não só
pelos perversos, mas também pelos répteis e vermes, os quais ha­
veríam de denegrir e lançar desdém sobre Cristo e sua ordenança.
ii. Inevitavelmente, os homens prosseguem no pecado; pois atra­
vés deste equívoco, de que o pão é o próprio corpo de Cristo,
o culto divino é dado ao pão, o que é idolatria; como também
oferecer o sacrifício do corpo, ou a hóstia, na missa constitui
26

OS BENEFÍCIOS DA CEIA D O SENHOR
blasfêmia contra o ofício sacerdotal de Cristo, como se seu sacri­
fício na cruz fosse imperfeito.
Portanto, concluo com Pedro Mártir1171 que esta doutrina da
transubstanciação deve ser repugnada e demolida, florescendo
apenas nas fantasias dos homens, mas não germinando no cam­
po das Santas Escrituras.
Esta doutrina do sacramento refuta os que consideram a Ceia
do Senhor apenas como uma figura ou sombra vazia, que lembra
a morte de Cristo, mas que não tem em si nenhuma eficácia.
Seguramente, esta gloriosa ordenança é mais que uma efígie ou
representação de Cristo. Por que a Ceia do Senhor é chamada
“a comunhão do corpo de Cristo” (ICo 10.16), senão porque,
na celebração correta dela, temos doce comunhão com Cristo?
Nesta ordenança evangélica, Cristo não só revela sua beleza, mas
também exibe sua virtude. O sacramento não é apenas uma figu­
ra desenhada, mas é o leite sugado; ele nos dá um sabor antecipa­
do de Cristo, bem como uma antevisão dele (lPe 2.3). Fazer do
sacramento simplesmente uma representação de Cristo é almejar
muito pouco do mistério e receber um conforto insuficiente.
O sacramento nos diz várias coisas. Ele nos mostra a necessi­
dade de buscar a Ceia do Senhor. Jesus Cristo já arcou com todos
os custos para o banquete? Então certamente devemos ser seus
convivas. “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22.19).
Não se trata de fazermos nossa escolha, se iremos ou não, mas
esse é um dever simplesmente indispensável: “Comamos deste
pão e bebamos deste cálice” (ICo 11.28). Estas palavras não são
apenas persuasivas, elas constituem um imperativo: como se um
rei dissesse: “Seja feito!” Negligenciar o sacramento leva os ho­
mens a se privarem do evangelho.
O sacramento exprime a infinita bondade em Cristo, perfura
aquele bendito vaso de seu corpo e faz seu bendito sangue jorrar;
e ao omitirmos voluntariamente esta ordenança, na qual o tro- 17
[17] Pietro Martire Vermigli (1499-1562), um eminente reformador italiano.
27

A CEIA DO SENHOR
féu da misericórdia é tão ricamente exibido e nossa salvação tão
intimamente envolvida, Cristo poderia muito bem tomar isto
como uma subvalorização dele e interpretá-lo como não mais do
que a obrigação de manter para si mesmo o seu banquete.
Quem não observasse a Páscoa, “essa alma será eliminada de
seu povo” (Nm 9.13). Quão irado ficou Cristo com aqueles que
ficaram ausentes da ceia referida na parábola! Acreditavam que
podiam usar de evasivas com cortesia, mas Cristo sabia como
construir sua escusa com uma recusa: “Nenhum daqueles ho­
mens que foram convidados provará de minha ceia” (Lc 14.24).
A rejeição da misericórdia evangélica é um pecado tão tene­
broso que Deus não fará outra coisa senão puni-lo por menos­
prezo. Alguns necessitam de uma espada flamejante para impedir
seu acesso à mesa do Senhor; e outros necessitam do azorrague
de cordas de Deus para conduzi-los a ela.
Talvez alguns digam que estão acima do sacramento. É
estranho ouvir um homem dizer que está acima do seu alimento!
Os apóstolos não estavam acima desta ordenança, e porventura
alguém presumirá ter uma posição mais elevada que a dos após­
tolos? Que todos os entusiastas consultem aquela Escritura: “to­
das as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anun­
ciais a morte do Senhor até que ele venha” (ICo 11.26). A morte
deve ser rememorada sacramentalmente, até que venha o juízo.
Veja a miséria dos incrédulos: mesmo que o Senhor tenha
designado esta gloriosa ordenança de seu corpo e sangue, eles
não colhem nenhum benefício dela. É verdade que se chegam ao
sacramento, seja para conservarem seu crédito, ou fechar a boca
da consciência, mas nada obtêm para suas almas. Vêm vazios
da graça e se vão vazios de conforto: “Será também como um
faminto que sonha que está a comer, porém, acordando, sente-se
vazio” (Is 29.8). Assim os homens ímpios imaginam comer do
banquete espiritual, mas têm apenas um sonho dourado: “Nada
28

OS BENEFÍCIOS DA CEIA DO SENHOR
resta para o perverso, senão uma exibição sem conteúdo” (Da-
venant).1181
Ah! Eles não conseguem “discernir o corpo do Senhor”. O
maná jazia ao redor do acampamento de Israel, mas eles não o
conheciam: “Porque não sabiam o que era” (Ex 16.15). E assim
as pessoas carnais veem os elementos externos, porém Cristo não
lhes é conhecido em suas virtudes salvíficas: há mel na Rocha Es­
piritual, o qual eles nunca degustam. Nutrem-se do pão, porém
não de Cristo no pão: “Comem o pão do Senhor, porém não
o Pão que é o Senhor.”1191 Isaque comeu o cabrito, quando cria
estar comendo cervo (Gn 27.25). Os incrédulos se vão com a
sombra do sacramento; eles têm a casca e a palha, não a essência.
Comem o cabrito, não o cervo. 18 19
[18] Impiis nihil restatpraeter inane spectaculum. A citação parece ser do Dr. John
Davenant, 1572-1641, Bispo de Salisbury.
[19] Eduntpanem Domini, non panem Dominum.
29

4
O AMOR DE CRISTO EXIBIDO
NO SACRAMENTO
Isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, que é
derramado por muitos (M t26.28).
eja neste texto, como num espelho, o infinito amor exi-
1. Contemple o am or de Deus o P ai em
d ar Cristo p a ra ser p artid o p o r nós.
Que Deus penhoraria tal joia causa espanto nos anjos: “De tal modo
Deus amou o mundo que deu seu Filho unigênito” 0o 3.16). Este
é um padrão de amor sem paralelo; foi uma expressão mais profun­
da do amor de Deus dar seu Filho para morrer por nós do que se
ele tivesse voluntariamente nos absolvido da dívida, sem qualquer
satisfação [de nossa parte]. Quando um súdito é desleal com o seu
soberano, há no rei mais amor em dar seu próprio filho para morrer
por aquele súdito do que em perdoar graciosamente o seu erro.
2 . Contemple o espantoso am or de Cristo.
Seu corpo foi partido. A cruz, diz Agostinho, foi o púlpito em
que Cristo proclamou seu amor pelo mundo. Vejamos na cruz
um santo clímax do amor de Cristo.
bido.

A CEIA DO SENHOR
i. Foi um amor maravilhoso que fez com que Cristo, que nunca
teve a víbora do pecado picando-o, fosse reputado pecador, aquele
que odiava o pecado “se fez pecado” (2Co 5.21); aquele que é
contado entre as Pessoas da Trindade foi “contado com os trans­
gressores” (Is 53.12).
ii. Foi um amor maravilhoso que fez com que Cristo sofresse a
morte. “Senhor”, disse Bernardo, “tu me amaste mais do que a
ti mesmo, pois por mim renunciaste tua vida.”[20] 21 22 O imperador
Trajano12'1 rasgou uma parte de seu próprio manto e enfaixou as
feridas de um de seus soldados. Cristo rasgou sua própria carne
por nós; mais do que isso, Cristo morreu como se fosse o “maior
dos pecadores” (Lutero), recebendo sobre si o peso dos pecados
de todos os homens; eis o amor usque ad stuporem dulcis (doce
ao ponto de causar espanto). Ele deixa todos os anjos do céu
pasmos.
Ui. Foi um amor maravilhoso que fez com que Cristo morresse
livremente. “Eu dou minha vida” (Jo 10.17); “[Seus atos] não
foram feitos por necessidade, e sim por escolha” (Jerônimo).1221
Não havia lei que lhe ordenasse, nenhuma força que lhe obrigas­
se. Isto é chamado “oferecimento do corpo de Jesus Cristo” (Hb
10.10). O que poderia prendê-lo à cruz senão o elo de ouro do
amor?
iv. Foi um amor maravilhoso que fez com que Cristo morresse
por pessoas como nós. O que somos? Não só vaidade, mas também
inimizade. Enquanto lutávamos, ele morria; enquanto tínhamos
as armas em nossas mãos, ele tinha a lança fincada em seu lado
(Rm 5.8).
[20] Dilexisti me, Domine, magis quam teipsum.
[21] Trajano, imperador romano, 98-117 d.C.
[22] Non sunt ex necessitate, sed ex voluntate. Jerônimo (340-420), estudioso bíblico
e tradutor da Bíblia Vulgata Latina.
32

O AMOR DE CRISTO EXIBIDO N O SACRAMENTO
v. Foi um amor maravilhoso que fez com que Cristo morres­
se por nós, quando absolutamente nada poderia esperar de nós em
nenhuma situação. Fomos reduzidos à penúria; ficamos em tal
situação que não poderiamos merecer o amor de Cristo nem
requerê-lo; Cristo, ao morrer por nós quando vivíamos numa
situação tão baixa, foi a própria quintessência do amor.
Um homem pode estender bondade a outro enquanto este
for apto a retribuir; mas se ele cair em decadência, então o amor
começa soçobrar e a arrefecer. Mas quando vivíamos engolfados
na miséria, e caímos em decadência, quando perdemos nossa
beleza, maculamos nosso sangue, desperdiçamos nossa porção,
então Cristo morreu por nós. Oh! Espantoso amor, mais profun­
do que todos os nossos pensamentos!
vi. Foi um amor maravilhoso que fez com que Cristo não vol­
tasse atrás em seus sofrimentos: “Ele verá o doloroso trabalho de
sua alma e ficará satisfeito” (Is 53.11). Esta é uma metáfora que
evoca uma mãe que, ainda que enfrente penosas dores de parto,
todavia não se arrependerá delas, quando vê o filho nascido; as­
sim Cristo enfrentou penoso trabalho na cruz, contudo não se
arrependeu dele, porém pensa que todo seu suor e sangue vale­
ram a pena, porque vê que o filho do homem trouxe a redenção
ao mundo. “Ele se sente plenamente satisfeito com esta única re­
compensa de seu trabalho. Agora repousa; agora possui profusão
de deleites.”[23] “Ele ficará satisfeito.” A palavra hebraica significa
aquele saciar que um homem sente em um deleitoso banquete.
vii. Foi um amor maravilhoso que fez com que Cristo morresse
antes por nós e não pelos anjos que caíram. Estes eram criaturas de
uma essência mais nobre, e com toda probabilidade poderiam
ter produzido maior profusão de glória a Deus; todavia, o fato
de Cristo passar por alto aqueles vasos de ouro e transformar-nos,
[23] Hoc uno laboris sui praemio affatim saturatur; nunc quiescit, nunc deliciis affluit.
33

A CEIA D O SENHOR
torrões de argila, em estrelas de glória - Oh, hipérbole do amor
de Cristo!
viii. Vem ainda outro passo do amor de Cristo (pois, como
as águas do santuário, ele se mostra ainda mais sublime): Foi ain­
da mais maravilhoso o fato que o amor de Cristo não cessou na hora
da morte. Escrevemos em nossas cartas: “Seu amigo até a morte!”
Cristo, porém, escreveu em outro estilo: “Seu amigo após a mor­
te!” Cristo morreu uma vez, porém ama para sempre. Ele ainda
continua testificando-nos seu afeto; ele continua construindo e
preparando mansões para nós (Jo 14.2). Ele continua interce­
dendo por nós (Hb 9.24). Ele comparece ante o tribunal como
advogado em defesa do réu. Assim que acabou de morrer, jamais
parou de amar: “Eles perfuraram o lado de Cristo com a pene­
trante lança da fúria, lado esse que foi ferido muito antes com a
espada do amor” (Bernardo).1241 Quem meditaria sobre isto sem
ser tocado pelo êxtase? Foi por isso que o apóstolo o chamou
“amor que excede todo o entendimento” (Ef 3.19). Quando você
divisar Cristo partido no sacramento, lembre-se deste amor.
E assim vemos que amoráveis e plenários afetos devemos nu­
trir por Cristo, o qual nos dá seu corpo e sangue na Eucaristia.
Se ele possuira algo de maior valor, no-lo teria concedido. Oh,
que Cristo se ponha ainda mais perto de nossos corações! Que
ele seja nossa Arvore da Vida e nós não aspiremos nenhum outro
fruto. Que ele seja nossa Estrela da Manhã e que não nos regozi­
jemos em nenhuma outra luz.
Como a beleza de Cristo, assim sua generosidade o faça ama­
do por nós; ele nos deu seu sangue como o preço e seu Espíri­
to como a testemunha de nosso perdão. No sacramento, Cristo
outorga todas as boas coisas. Ele tanto imputa sua justiça como 24
[24] Foderunt latus Christi intima furoris lancea, qtiod iam dudum amoris lancea fu it
vulneratum.
34

O AMOR DE CRISTO EXIBIDO N O SACRAMENTO
confere sua benignidade. Ele dá um antegozo daquela ceia que
será celebrada no Paraíso de Deus.
Em resumo, na bendita Ceia, Cristo dá a si mesmo aos cren­
tes; e o que mais poderia dar? Querido Salvador, “Suave é o aro­
ma dos teus unguentos; como o unguento derramado é o teu
nome” (Ct 1.3). Os persas cultuam o sol como seu Deus; cul­
tuemos o Sol da Justiça! Muito embora Judas vendesse Cristo
por trinta moedas de prata, nós, ao contrário, não abandonemos
esta Pérola sem preço. Cristo é aquele Tubo de Ouro através do
qual corre o óleo de ouro da salvação que nos é transmitido (cf.
Zc 4.12).
35

5
O CORPO PARTIDO DE CRISTO
Isto é o meu corpo (M t26.26)
O
corpo partido de Cristo, que nos é exibido no sacra­
mento, nos inspira a refletir:
O corpo de Cristo fo i partid o ?
Entáo podemos visualizar o odioso pecado no espelho vermelho
dos sofrimentos de Cristo. Na verdade, o pecado deve ser abo­
minado por haver expulsado Adão do Paraíso e lançado anjos no
inferno. O pecado é o interruptor da paz; é como um incendiá­
rio na família, o qual põe esposo e esposa em desavença; faz Deus
ficar contra nós. O pecado é o ventre de nossas dores e o túmulo
de nossos confortos.
Mas aquilo que pode mais que tudo desfigurar o rosto do
pecado e fazê-lo parecer horripilante, é que ele crucificou nosso
Senhor; ele se tornou um véu para a glória de Cristo e fez jorrar
seu sangue.
Se uma mulher viu a espada que matou seu marido, quão
odiosa ela será à vista dela! Acaso consideraríamos leve aquele pe­
cado que fez a alma de Cristo “profundamente triste até a morte”
(Mc 14.34)? Acaso nos seria motivo de júbilo aquilo que fez o
Senhor Jesus Cristo “um homem de dores” (Is 53.3)? Acaso ele
não clamou: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?”
(Mt 27.46)? Acaso esqueceriamos aquele pecado que fez Cristo

A CEIA DO SENHOR
esquecer-se de si mesmo? Oh, que olhemos para o pecado com
profunda indignação!
Quando uma tentação vem trazer pecado, digamos como
Davi: “Guarda-me, Senhor, de fazer tal coisa; beberia eu o
sangue dos homens que foram com risco de sua vida?” (2Sm
23.17). Então, digamos, acaso não é este pecado que derra­
mou o sangue de Cristo? Que nossos corações se encham de
fúria contra o pecado. Quando os senadores de Roma exibi­
ram ao povo o manto ensanguentado de César, o povo se en­
fureceu contra aqueles que o mataram. O pecado dilacerou
o alvo manto da carne de Cristo e o tingiu da cor carmesim;
busquemos ser vingados de nossos pecados. Sob a lei, se um
boi chifrasse um homem, de modo que morresse, esse boi ti­
nha de ser morto (Ex 21.28). O pecado traspassou e escorneou
nosso Salvador: que ele seja morto. Que lamentável seria se
ainda tivesse direito a viver aquilo que não permitiu que Cris­
to vivesse!
Façamos este uso de seu sofrimento na cruz, para aprender­
mos a não nos maravilharmos muito se nos depararmos com
tribulações no mundo. Cristo sofreu quando “não conheceu
nenhum pecado”? Acaso achamos estranho o sofrer de quem
nada sabe senão pecar? Cristo sentiu a ira de Deus? Acaso é
exagero sentirmos a ira dos homens? A Cabeça seria coroada
de espinhos e os membros jazeriam entre rosas? Disfrutaría­
mos de nossos braceletes e diamantes enquanto Cristo sentiu
a lança e os pregos perfurando seu coração? De fato os que são
culpados devem esperar os açoites, mas aquele que era inocen­
te não pôde sair livre.
Um emprego adicional da doutrina do sacramento é o exer­
cício da exortação. Ocupar-nos-emos das seções desta matéria em
boa parte do que vem a seguir.
38

O CORPO PARTIDO DE CRISTO
O precioso corpo de C risto f o i p a rtid o p o r nós? D eixem o-
nos a fe ta r com a im ensa bondade de C risto.
Quem pode esmagar estes carvões em brasa sem que seu coração
arda? Quem não bradaria com Inácio:1251 “Cristo, meu amor, foi
crucificado!”? Se um amigo morresse por nós, nosso coração não
seria profundamente afetado por sua bondade? Que o Deus do
céu morresse por nós, como esta estupenda mercê não nos in­
fluenciaria com a máxima ternura?
O corpo de Cristo partido é suficiente para quebrantar o
coração mais empedernido. Na paixão de nosso Senhor, as
próprias pedras foram fendidas: “fenderam-se as pedras” (Mt
27.51). Aquele que não sentir-se afetado por isto tem um cora­
ção mais duro que as pedras. Se Saul não deixou de perceber a
mercê de Davi em poupar sua vida (ISm 24.16), como pode­
riamos não nos deixar afetar pela benignidade de Cristo, que
poupou nossa vida com a perda da sua? Oremos para que, assim
como Cristo foi “cruci-fixus”, também sejamos “cordi-fixus” -
como ele foi “cravado” na cruz, igualmente seja ele “cravado”
em nosso coração.
Jesu s C risto nos é esp iritu alm en te exibido no sacram ento?
E ntão dem os-lhe o m áxim o v a lo r e estim a.
Valorizemos o corpo de Cristo. Cada partícula deste pão da vida é
precioso: “Minha carne é verdadeira comida” (Jo 6.55). E “o exce­
lente Pão que transcende a substância”, no dizer de Cipriano.1261
O maná foi um vivido tipo e emblema do corpo de Cristo.
O maná era doce: “era como semente de coentro branco, e seu
sabor como bolos de mel” (Ex 16.31). Era um alimento delicio­
so; por isso foi chamado “comida dos anjos” (SI 78.25), por sua
excelência. Assim Cristo, o Maná Sacramental, é doce às almas
dos crentes: “seu fruto é doce ao meu paladar” (Ct 2.3). Tudo em 25 26
[25] Bispo de Antioquia do século II martirizado em Roma.
[26] Panis eximius et supersubstantialis. Cipriano foi pai e mártir da igreja no século III,
Bispo de Cartago, 249-258.
39

A CEIA DO SENHOR
Cristo é doce - seu Nome é doce, suas virtudes são doces. Este
“Maná” adoça “as águas de Mara”.
Não só isso, a carne de Cristo excede o maná:
i. O maná era uma comida, porém não somente física. Se os
israelitas ficassem doentes, o maná não podería curá-los; mas
este bendito maná do corpo de Cristo é não só alimento, mas
também medicina. “O corpo de Cristo é medicina para os doen­
tes” (Bernardo).1271
Cristo traz “cura em suas asas” (Ml 4.2). Ele cura o olho cego
e o coração empedernido. Leve esta medicina para bem perto de
seu coração e você será curado de todos os destemperos espiri­
tuais.
ii. O maná era corruptível. Ele cessou quando Israel entrou
em Canaã; mas este bendito maná do corpo de Cristo jamais
cessará. Os santos se alimentarão com infinito deleite e satisfação
da alma, em Cristo, para toda a eternidade. Os júbilos celestiais
cessariam se este maná cessasse.
O maná foi posto na arca em um vaso de ouro, para que fosse
preservado ali. Assim o bendito maná do corpo de Cristo, sendo
posto no vaso de ouro da natureza divina, é depositado na arca
celestial para os santos festejarem para sempre. Então; podemos
dizer que o bendito corpo de Cristo “é verdadeira comida”.
“Na plenitude do corpo de Cristo, que desce da cruz, encon­
tramos a pérola da salvação.”27 [28]
[27] Corpus Christi aegris medicina.
[28] Fosso agro corporis Christi, margarita salutis invenitur.
40

6
O SANGUE DE CRISTO
Porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, que é
derramado por muitos, para remissão dos pecados (Mt 26.28).
V
alorizemos o sangue de Cristo no sacramento. Ele é “ver­
dadeira bebida” (Jo 6.55). “O cacho de uva de meu corpo
foi levado para o lagar da cruz para tua salvação, e dele
foi espremido o novo vinho de tua redenção” (Bernardo).[29] 30 Eis
o Néctar e Ambrosid301 do qual o próprio Deus se deleita em
degustar. Isto é tanto um bálsamo quanto um perfume. Para
que ponhamos um valor mais elevado no sangue de Cristo, nele
mostrarei sete virtudes sobrenaturais.
1 . O sangue de C risto é um sangue reco n ciliad o r
“A vós também, que noutro tempo éreis estranhos, e inimigos no
entendimento pelas vossas obras más, agora, contudo, vos re­
conciliou no corpo de sua carne, pela morte, para vos apresentar
santos perante Ele, e irrepreensíveis, e inculpáveis” (Cl 1.21-22).
No mesmo instante em que a mensagem chegou a Davi, de que
“Urias foi morto” (2Sm 11.21), a ira de Davi foi aplacada. No
mesmo instante em que o sangue de Cristo foi derramado, a
ira de Deus foi pacificada. O sangue de Cristo é “o sangue da
expiação”.
[29] Ego botrus carnispro salute tua portatus sum ad torcularem crucis, inde eliquatum
est mustum tuae redemptionis.
[30] Na mitologia grega, os alimentos dos deuses.

A CEIA DO SENHOR
Mais ainda, ele é náo só um sacrifício, mas também “uma
propiciação” (ljo 2.2), o que denota conduzir-nos ao favor de
Deus. Uma coisa é um traidor ser perdoado, outra é ele ser in­
troduzido ao favor. O pecado nos separa de Deus, o sangue de
Cristo nos une a Deus. Se possuíssemos tanta graça como pos­
suem os anjos, ainda assim náo poderiamos ter comprado nossa
reconciliação. Se oferecéssemos milhões de sacrifícios, se enxu­
gássemos rios de lágrimas, isto jamais teria apaziguado a ira da
Deidade; somente o sangue de Cristo pode agraciar-nos com o
favor de Deus e levá-lo a olhar-nos com um aspecto sorridente.
Quando Cristo morreu, o véu do templo rasgou-se; isto náo era
destituído de mistério, para mostrar que, através do sangue de
Cristo, o véu de nossos pecados é rasgado, o qual se interpunha
entre Deus e nós.
2. O sangue de C risto é um sangue v ivific a n te
“Quem... bebe o meu sangue tem a vida eterna” (Jo 6.54); e am­
bos geram vida e previnem a morte - “a vida da carne está no
sangue” (Lv 17.11). Com toda certeza, a vida de nossa alma está
no sangue de Cristo. Quando contraímos a morte do coração
somos como vinho que já perdeu suas essências, o sangue de
Cristo possui um poder que eleva e nos imprime vivacidade, fa­
zendo-nos vivos e ativos em nossos movimentos. “Subirão com
asas como águias” (Is 40.31).
3. O sangue de C risto é um sangue p u rific a d o r.
“Quanto mais o sangue de Cristo, que pelo Espírito eterno se
ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará a nossa consci­
ência das obras mortas, para servirmos ao Deus vivo” (Hb 9.14).
Como o mérito do sangue de Cristo pacifica a Deus, assim a
virtude dele nos purifica. Ele é o banho do Rei do Céu. E o la-
vacrum animae (o lugar de lavagem da alma), um lavabo em que
lavar-se. Ele lava o coração carmesim de um pecador fazendo-o
42

O SANGUE DE CRISTO
branco como o leite: “O sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos
purifica de todo pecado” (ljo 1.7). A Palavra de Deus é um es­
pelho translúcido que exibe nossas mazelas; e o sangue de Cristo
é a fonte que as lava (Zc 13.1).
Mas este sangue náo lavará se estiver misturado com algo
mais. A água não limpará a menos que esteja misturada com sa­
bão ou cânfora; mas se misturarmos algo com o sangue de Cristo,
sejam os méritos dos santos, ou a oração dos anjos, ele não lavará.
Que o sangue de Cristo seja puro e sem mistura, e não ha­
verá mancha que não lave. Ele purgou a embriaguez de Noé e o
incesto de Ló.
Na verdade, existe uma mancha que é tão negra que o sangue
de Cristo não pode lavar, a saber, o pecado contra o Espírito
Santo; não que a virtude do sangue de Cristo não seja suficiente
para lavar; mas aquele que peca contra o Espírito de Cristo não
será lavado; esse condena o sangue de Cristo “e o pisa sob a plan­
ta de seus pés” (Hb 10.29). 4
4. O sangue d e Cristo é um sangue que enternece
Nada existe tão duro que não possa ser amolecido se for embe­
bido em seu sangue; ele amolecerá uma pedra. A água amolecerá
a terra, muito embora não amoleça uma pedra, mas o sangue de
Cristo amolece uma pedra, ele abranda um coração de pedra. “O
qual converteu o rochedo em lago de águas e o seixo em fonte
de água” (SI 114.8). O coração que antes era como um pedaço
cortado de uma rocha, sendo embebido no sangue de Cristo se
torna tenro e as águas do arrependimento fluem dele.
Assim se deu com o coração do carcereiro que se dissolveu e
se tornou terno quando “o sangue da aspersão” o atingiu! “Se­
nhor, que devo fazer para ser salvo?” (At 16.30). Agora seu co­
ração era como cera derretida. Agora Deus podia pôr sobre ele a
impressão de seu selo.
43

A CEIA DO SENHOR
5. O sangue d e Cristo é um sangue que refrigera
i. R efrigera o coração em pecado. Naturalmente, o coração
é dominado por um calor destemperado; necessariamente, ele
está sendo “posto no fogo do inferno”. Queima em sua luxúria
e paixão; o sangue de Cristo abranda esse calor e apaga a chama
do pecado.
ii. R efrigera o calor da consciência. No tempo de deserção,
a consciência arde com o calor do desprazer de Deus; agora o
sangue de Cristo, aspergido na consciência, a refrigera e pacifica.
E, neste sentido, Cristo é comparado a “rios de água” (Is 32.2).
Quando o coração arde e se acha em agonia, o sangue de Cristo
é como água lançada no fogo: ele tem a virtude de extinguir o
fogo e trazer refrigério.
6. O sangue d e Cristo é um sangue que conforta
Ele é bom contra desvanecimentos. O sangue de Cristo é me­
lhor que o vinho; ainda que o vinho alegre o coração de um
homem que está bem, não alegrará seu coração quando ele assu­
me o aspecto da pedra1311 ou quando as angústias da morte já se
encontram nele; mas o sangue de Cristo alegrará o coração em
momentos como esses. Ele é melhor na aflição. Cura o tremor
do coração. Uma consciência aspergida com o sangue*de Cristo
pode, como o rouxinol, cantar com um espinho em seu peito. O
sangue de Cristo pode transformar uma prisão em palácio. Ele
transformou as chamas dos mártires em leitos de rosas: “Os már­
tires são feridos e se regozijam; morrem e contemplam o triunfo.
Por quê? Porque, embebidos no sangue da cruz, não temem a
morte, mas esperam por ela.”1321 31 32
[31] Um episódio de dor resultante de cálculos renais ou biliares.
[32] Feriuntur martyres, gaudent; moriuntur, et ecce triumphant; quare? Quia,
sanguine crucis perfusi, non mortem metuunt, sed sperant.
44

O SANGUE DE CRISTO
O sangue de Cristo ministra conforto no momento da morte.
Como disse certa vez um homem santo em seu leito mortuário,
quando lhe trouxeram um cardeal: “Nenhum cardeal se compa­
ra ao sangue de Cristo.”
7. O sangue de C risto é um sangue que conq uista o céu
“Através do lado de Cristo, ele nos abriu a vereda para o céu”
(Bernardo).[331 Israel atravessou o Mar Vermelho rumo a Canaã.
Assim, através do Mar Vermelho do sangue de Cristo, entramos
na Canaã celestial. “Tendo, pois, irmãos, ousadia para entrar no
santuário, pelo sangue de Jesus” (Hb 10.19). Nossos pecados
fecharam o céu. O sangue de Cristo é a chave que nos abre o por­
tão do paraíso. “Pela árvore do conhecimento, morremos; pelo
madeiro da cruz, ressuscitamos.”1341 Daí Teodoreto1351 chamar a
cruz de “Árvore da Salvação”, porque o sangue que goteja da
cruz destila salvação.
Portanto, valorizemos o sangue de Cristo e com Paulo de­
terminemos: “Porque nada me propus saber entre vós, senão a
Jesus Cristo, e este crucificado” (lC o 2.2). As coroas dos reis são
apenas cruzes, mas a coroa de Cristo é a única coroa. 33 34 35
[33] Per latus Christi nobis patefecit in coelum introitum.
[34] M orimurper lignum scientiae, orimurper lignum crucis.
[35] Um comentarista da Bíblia e historiador eclesiástico do século V.
45

7
AUTOEXAME
Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão
e beba deste cálice (ICo 11.28).
C
risto nos oferece seu corpo e sangue na Ceia? Então, com
que solene preparação deveriamos achegar-nos a uma or­
denança tão sublime! Não é suficiente fazer o que Deus
designou, mas como ele designou. “Preparai o coração ao Senhor”
(ISm 7.3). Primeiramente, o músico afina bem seu instrumento
antes de tangê-lo. Primeiramente, o coração deve estar prepara­
do e bem afinado antes de ir ao encontro de Deus nesta solene
ordenança do sacramento. Acautelemo-nos da temeridade e ir­
reverência. Se não chegarmos bem preparados, não beberemos,
mas derramaremos o sangue de Cristo: “qualquer que comer este
pão ou beber o cálice do Senhor indignamente, será culpado do
corpo e do sangue do Senhor” (ICo 11.27). Isto é, dizTeófilo,1361
será julgado alguém que derrama o sangue de Cristo. Lemos so­
bre o cálice do vinho do furor na mão de Deus (Jr 25.15). Aquele
que se achega à Ceia do Senhor sem o devido preparo converte
o cálice do sacramento no “cálice da furia”; “Transforma o cálice
do sangue no cálice da ira.”1371
Oh, com que reverência e devoção devemos recorrer a estes
santos mistérios! Os santos são chamados “vasos... preparados” 36 37
[36] Bispo de Antioquia no final do século II.
[37] Calicem sanguinis mutat in calicem furoris.

A CEIA DO SENHOR
(Rm 9.23). Estes vasos devem estar sempre bem preparados, por­
quanto se destinam a conter o precioso e santo sangue de Cristo.
O pecador condenado é o primeiro preparado. Os homens não
vão para o inferno sem algum tipo de preparação. Eles são “va­
sos... preparados para a destruição” (Rm 9.22). Se esses vasos
cheios de ira estão preparados, muito mais preparados devem
estar os que recebem Cristo no sacramento. Vistamo-nos diante
do espelho bíblico antes de nos achegarmos à mesa do Senhor; e,
como a esposa do Cordeiro, estejamos prontos (Ap 19.7).
Pergunta: Como devemos estar corretamente qualificados e
preparados para a Ceia do Senhor?
Resposta: Se estivermos com os corações preparados, deve­
mos comparecer:
1 . Com o coração devidam ente exam inado:
“Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão
e beba deste cálice” (ICo 11.28). Não basta que outros pensem
que estamos prontos para vir, devemos examinar a nós mesmos.
A palavra grega para examinar, dokimazo, é uma metáfora toma­
da do ourives que, curiosamente, testa seus metais. Assim, antes
de virmos à mesa do Senhor, temos de fazer em nós mesmos um
exame perscrutador e crítico pela Palavra.
O autoexame, sendo um ato reflexivo, é difícil: “É rnais fácil
justificar um vício do que expulsá-lo” (Sêneca).1381 É difícil olhar
para dentro de si e ver a face de sua própria alma. O olho pode
ver tudo, menos a si mesmo.
Mas esta obra probatória é necessária:
i. Se não nos exam inarm os, perm anecem os n a in certeza
sobre nosso estado e sp iritu a l; não sabemos se estamos interessa­
dos na aliança ou se temos direito ao selo. 38
[38] Malumus vitium excusare quam excutere.
48

AUTOEXAME
ii. D eus nos exam in ará. A pergunta do dono da festa soou
dolorosa: “Amigo, como entraste aqui, náo tendo veste nupcial?”
(Mt 22.12). Então será terrível quando Deus disser a um ho­
mem: “Como você chegou à minha mesa com o coração orgu­
lhoso, futil e incrédulo? O que você veio fazer aqui com seus pe­
cados? Você está contaminando minhas coisas santas.” Portanto,
quanta necessidade há de se fazer um exame do coração antes de
achegar-se à mesa do Senhor!
Visualizemos nossos pecados para que sejam mortificados;
nossas carências, para que sejam supridas; nossas dignidades,
para que sejam consolidadas. “Ele a ninguém convida para que
examine outros, mas a si mesmo, instaurando um tribunal priva­
do e uma convicção sem testemunha” (Crisóstomo).
2 . D evem os achegar-nos com um coração sério .
Nosso espírito é frágil e leviano; é como um navio sem lastro,
que flutua sobre as águas, porém sem velas. Vagamos nos santos
deveres e nos deixamos levar por vãs excursões, mesmo quan­
do estamos lidando com Deus e estamos engajados em questões
de vida e morte. Aquilo que poderia consolidar nosso coração e
firmá-lo com seriedade é considerar que os olhos de Deus estão
agora postos especialmente sobre nós, quando nos achegamos
à sua mesa. “O rei entrou a observar os convivas” (Mt 22.11).
Deus conhece cada comungante, e se vê em nós alguma levian­
dade e indecência de compostura, indigna de sua presença, ficará
profundamente desgostoso e nos expulsará com a culpa pelo san­
gue de Cristo, em vez de seu conforto.
3 . D evem os achegar-nos com um coração in telig en te.
Deve haver uma competente medida de conhecimento, para que
possamos “discernir o corpo do Senhor”. Como devemos “orar
com o entendimento” (ICo 14.15), assim devemos comungar à
mesa do Senhor com entendimento.
49

A CEIA DO SENHOR
Caso nos falte conhecimento, náo podemos prestar um “cul­
to racional” (Rm 12.1). Os que não conhecem o mistério, não
sentem o conforto. Devemos conhecer Deus o Pai em seus atri­
butos, Deus o Filho em seus ofícios, Deus o Espírito Santo em
suas graças. Há quem diga que possui bom coração, contudo
é carente de conhecimento; podemos também chamar isso de
bons olhos aos quais falta visão.
4. Devemos achegar-nos ao sacram ento com corações solícitos.
Diriamos, com Cristo, “Desejei muito comer convosco esta
páscoa” (Lc 22.15). Se Deus prepara uma festa, devemos
comparecer com apetite. Por que Deus desaprovou seu povo
de outrora senão para punir sua apatia e provocar seu apetite?
À semelhança de Davi que suspirou pela água do poço de
Belém (2Sm 23.15), assim devemos suspirar por Cristo no
sacramento. Desejos são as velas da alma que são hasteadas
para receber a brisa de uma benesse celestial. Para ajudar os
santos desejos em suas aspirações:
i. Considerem os a m agnificência e reale za desta C eia: ela
é um banquete celestial. “O Senhor dos Exércitos dará neste
monte a todos os povos um banquete de coisas gordurosas, uma
festa com vinhos velhos, pratos gordurosos com tutanos e vinhos
velhos bem clarificados” (Is 25.6). “Estes são os suaves'deleites;
aqui se bebem os rios de mel, as gotas do bálsamo celestial” (Ber­
nardo).1391 Eis o suco daquela uva que vem da videira verdadeira.
Sob estes elementos do pão e vinho Cristo e todas as suas benes­
ses nos são exibidos. O sacramento é abunde aromatum [rica­
mente aromático], um recipiente e celeiro de bênçãos celestiais.
Aqui se põem diante de nós vida, paz e salvação! Todas as dulcia
fercula [doces iguarias] do céu são servidas nesta festa. 39
[39] Hae sunt suaves delitiae, hic bibunturflumina mellis, liquores balsami coelestis.
50

AUTOEXAME
ii. P a ra p ro vo c a r o ap etite, considerem os que necessidade
tem os deste reposto e sp iritu a l. O anjo persuadiu a Elias a tomar
um pouco de páo e a botija de água, para que não desfalecesse
em sua jornada: “Levanta-te e come, porque o caminho te será
sobremodo longo” (lR s 19.7). Portanto, realmente temos uma
grande jornada da terra para o céu, daí termos necessidade de nos
prover para o caminho. Quantos pecados a nos subjugar! Quan­
tos deveres a cumprir! Quantas necessidades a suprir! Quantas
graças a consolidar! Quantos adversários a enfrentar! De modo
que, não nos abatendo pelo caminho, nos alimentando do corpo
e sangue do Senhor, nossa “juventude se renove como a da águia”
(SI 103.5).
iii. Considerem os a p ro n tid ã o de C risto em dispensar-nos
as d ivin a s benesses nesta ordenança. Jesus Cristo não é uma
“fonte selada”, e sim “uma fonte corrente”. Temos apenas que cla­
mar, e ele nos saciará. Temos apenas que ter sede, e ele nos abrirá
a torneira. “Quem tem sede venha; e quem quiser, tome de graça
da água da vida” (Ap 22.17). Como as nuvens têm a propensão
natural de gotejar sua umidade sobre a terra, assim Cristo há de
jorrar suas graciosas virtudes e influências na alma.
iv. N esta C eia não h á p erig o de excesso. Com frequência,
outras festas enfrentam excessos. Esta Ceia não é assim. Quan­
to mais tomamos do pão da vida, mais saudáveis somos e mais
alcançamos a perfeição espiritual. Aqui, plenitude não aumenta
extravagâncias, e sim confortos; nas coisas espirituais não há ex­
tremos. Ainda que uma gota do sangue de Cristo seja dulcíssi-
ma, ele é ainda muito melhor, mais profundo, mais doce: “bebei
abundantemente, ó amado” (Ct 5.1). No original, temos: “Que
vos embriagueis com meu amor.”
51

A CEIA DO SENHOR
v. Não sabem os quanto tem po esta fe s ta pod e d u ra r. En­
quanto o maná durar, portemos nosso recipiente. Nem sempre
Deus manterá a toalha na mesa. Se uma pessoa perde seu apetite,
ele convocará o inimigo para remover o banquete.
vi. N utrirm o-nos de C risto sacram entalm ente será um bom
p rep aro p a ra os sofrim entos. O pão da vida nos ajudará a nos nu­
trirmos do pão da aflição. O “cálice da bênção” nos capacitará a
beber do cálice da perseguição. O sangue de Cristo é um vinho
que contém em si o bom aroma, e está cheio de vitalidade. Por isso
Cipriano nos informa que, quando os cristãos primitivos tinham de
comparecer perante os tiranos cruéis, costumavam receber o sacra­
mento e, então, se levantavam da mesa do Senhor como leões res­
pirando o fogo da coragem celestial (tanquam leones ignem spiritus)\
Que as seguintes considerações sejam também condimento a
aguçar nosso apetite à mesa do Senhor. Deus se deleita em ver-
-nos famintos nutrindo-nos do pão da vida.
5 . Devemos achegar-nos a esta ordenança bem preparados,
achegando-nos com um coração penitente, “cu ja alm a tem sido
traspassada, ain d a que não seja com espada” (Agostinho).
A páscoa tinha de ser comida com “ervas amargas”. Temos de
trazer nossa “mirra” de arrependimento que, muito embora nos
seja amarga, é doce para Cristo: “e olharão para aquele a quem
traspassaram; pranteá-lo-ão” (Zc 12.10). Um Cristo partido tem
de ser recebido com um coração quebrantado. Se temos pecado
com Pedro, então choremos com Pedro. Nossos olhos têm de
inundar-se com lágrimas e nosso coração tem de estar embebido
nas salmouras do arrependimento. Digamos: “Senhor Jesus, ain­
da que eu não traga suaves especiarias e perfume para teu corpo,
como fez Maria, contudo, lavarei teus pés com minhas lágrimas.”
Quanto mais amargura degustamos no pecado, mas doçura de­
gustaremos em Cristo.
52

AUTOEXAME
6 . D evem os v ir com um coração sincero.
As tribos de Israel, sofrendo aperturas oportunamente, careciam
de algumas purificações legais; contudo, porque o coração deles
eram sincero, e vinham com anseio de encontrar-se com Deus
na páscoa, por isso o Senhor curou o povo (2Cr 30.19). Os maus
intentos despojarão as boas ações. Um arqueiro tanto pode errar
o alvo olhando de soslaio como atirando a curta distância. Qual
é nosso desígnio quando nos achegamos ao sacramento? Finis
nobilitat opus (o fim faz conhecida a obra). E para que tenhamos
mais vitória sobre nossas corrupções e sejamos mais confirmados
em santidade? Então Deus nos será bondoso e nos sarará. A
sinceridade, como o verdadeiro ouro, terá alguns pigmentos per­
mitidos para sua delicadeza.
7. Devem os achegar-nos com um coração
ab rasad o de am o r p o r C risto.
A esposa sentia-se em chamas de amor: “porque desfaleço de
amor” (Ct 5.2). Demos a Cristo a beber o vinho de nosso amor e
pranteemos se não o pudermos amar ainda mais. Queremos ter a
exultante presença de Cristo na Ceia? Encontremo-lo com fortes
apreços de afeto. Basílio1401 compara o amor ao suave unguento:
Cristo se deleita aspirando este perfume. O discípulo que amou
mais, Cristo o tomou em seu seio. Habitus sine exercitio similis
est taciturnae lyrae [Uma disposição que não é posta em prática
se assemelha a uma lira silenciosa]. 40
[40] Basílio o Grande (329-79), um dos pais capadócios. Ele se opôs
veementemente ao arianismo quando bispo de Cesareia.
53

8
VERDADEIRA E FALSA FÉ
“Examine-se o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e
beba deste vinho” (1 Co 11.28)
E
xercitemos os olhos da fé. A fé tem olhos de águia: ela
penetra as coisas a uma grande distância do sentido, vê as
coisas profundas de Deus. Ela contempla Jesus que foi le­
vantado na cruz. Se a serpente de bronze não fosse contemplada,
não havería nela nenhuma virtude; ela não curaria um israelita
cego: assim, muito embora Cristo já tenha sido levantado no
madeiro da cruz, não salvará os que não olham para ele. Olhe
para Cristo com olhos crentes, e um dia você o verá com olhos
glorificados.
Exercitemos também a boca da fé. Quid par est dentrem et
ventrem? Crede et manducasti [O que é apropriado para a boca e o
ventre? Crer e comer] (Agostinho). Eis o pão partido. Adão mor­
reu, comendo; nós vivemos, comendo. No sacramento, o Cristo
pleno nos é servido, as naturezas, divina e humana. Todos os ti­
pos de virtudes vêm dele: mortificação, abrandamento, conforto.
Oh, então nutramo-nos dele! Esta graça da fé é a grande graça
que é posta em ação no sacramento.
Pergunta: Mas a virtude está simplesmente na fé?
Resposta: Não na fé considerada meramente como uma gra­
ça, mas quando tem a ver com o objeto. A virtude não está na

A CEIA DO SENHOR
fé, e sim em Cristo. Se um anel tem em si uma pedra preciosa
que deterá o sangue, dizemos que o anel detém o sangue; mas a
virtude não está meramente no anel, e sim na pedra incrustada
nele. Assim a fé é o anel, Cristo é a pedra preciosa; tudo o que a
fé faz é provar os méritos de Cristo em benefício da alma e então
esta é justificada; a virtude não está na fé, e sim em Cristo.
Pergunta: Mas, por que a fé leva mais de Cristo no sacra­
mento do que qualquer outra graça?
Resposta: Porque a fé é a graça mais receptiva; ela é o reci­
piente de ouro enriquecido. E assim a fé, recebendo do mérito
de Cristo e enchendo a alma com toda a plenitude de Deus,
necessita ser uma graça enriquecida. No corpo há veias que ab­
sorvemos nutrientes que entram no estômago; a fé é aquela veia
que absorve aquilo que vem da virtude de Cristo, por isso ela é
chamada uma “fé preciosa” (2Pe 1.1).
l.A fé tem m ais dos benefícios de C risto agregados
a s i p o rq u e e la é a g raça m ais sim ples.
Se o arrependimento pudesse adquirir a justificação de Cristo,
um homem estaria pronto a dizer: “Isto foi por minhas lágrimas.”
Mas a fé é humilde, é uma mão vazia, e que mérito podería haver
nisso? Um pobre que estende sua mão merece uma esmola?
Se devemos apresentar-nos devidamente preparados para o sa­
cramento, então que venhamos com um coração humilde. Vemos
Cristo se humilhando na morte; e um Cristo humilde deveria
ser recebido comum coração orgulhoso? “Ele honrou o Pai, não
para que fosse desonrado; mas, ao contrário, para que admire-
mo-lo e aprendamos dos seus atos que ele é um genuíno Filho
que honra seu Pai mais que todos juntos” (Crisóstomo).
Que a visão da glória de Deus e a visão do pecado nos hu­
milhem. Cristo era humilde, ele que era pureza plena? E somos
56

VERDADEIRA E FALSA FÉ
orgulhosos, nós que somos leprosos? Oh, que venhamos com o
senso de nossa própria vileza! Quão humilde seria aquele que
recebesse uma esmola de livre graça!
Jesus Cristo é o “lírio dos vales” (Ct 2.1), náo das monta­
nhas. A humildade nunca foi perdedora. Quanto mais vazio for
o cântaro, e mais fundo for o poço, mais água comportam; então,
quanto mais vazia é de si mesma a alma, e mais baixo se sujeita
à humildade, mais ela captado poço da salvação. Deus virá a um
coração humilde para recebê-lo (Is 57.15). Isso não é parte do
templo de Cristo que não é construído com um teto baixo.
Devemos achegar-nos com corações celestiais.O mistério do
sacramento é celestial; então, o que um verme rastejante faz
aqui? Não está devidamente preparado para nutrir-se do corpo
e sangue de Cristo aquele que, como a serpente, lambe pó. O
sacramento é chamado koinonia, “comunhão” (ICo 10.16).Que
comunhão pode um homem terreno ter com Cristo? Primeiro,
deve haver conformidade, para que haja comunhão: aquele que
é terreno não possui maior semelhança com Cristo do que a que
uma nuvem de pó possui com uma estrela. Um homem terreno
faz do mundo seu deus. Então que tal homem não pense em
receber outro Deus no sacramento. Oh, cultivemos atitudes ce­
lestiais e subamos com a asa da graça!
Devemos achegar-nos com um coração crente. Cristo deu o sa­
cramento aos apóstolos principalmente por serem crentes. Os
que se achegam sem fé se vão sem fruto. Nem é suficiente ter
o hábito da fé, mas temos de nos exercitar, nos empenhar com
ações vigorosas de fé nesta ordenança.
De modo que, em virtude da fé ser humilde e dar a Cristo e a
livre graça toda a glória, Deus põe grande honra sobre ela; esta é
a graça a que pertencem Cristo e todos os seus méritos.
57

A CEIA DO SENHOR
Portanto, acima de todas as graças, a fé opera no sacramento.
“Pela fé sugamos o sangue de Cristo e penetramos nossa língua
nas feridas de nosso Redentor” (Cipriano).1411
A fé sai em busca de todas as provisões. Este é o balde que tira
água do poço da vida.
No mundo, porém, existe uma fé bastarda. Plínio1421 nos
conta sobre uma pedra de Cipriano que em cor e resplendor se
assemelha ao diamante, porém não é genuína, pois se quebra
com o martelo. E assim há uma fé falsa que emite centelhas e
faz exibição aos olhos do mundo, porém não é genuína; ela se
quebra com o martelo da perseguição. Portanto, para prevenir
equívocos, para que não sejamos enganados pensando que cre­
mos segundo nossa presunção, eu lhe darei seis diferenças entre
uma fé sincera, que é a flor do Espírito, e uma fé hipócrita, que
é fruto de fantasia.
1 . Uma f é h ip ó c rita é fa cilm en te p ercep tível.
Ela é como a semente da parábola, a qual germinou “de repente”
(Mc 4.5). Uma fé falsa brota sem quaisquer convicções e submis­
são da alma. Isaque indagou [de seu filho]: “Como é isto, que tão
cedo a achaste [a caça], meu filho?” (Gn 27.20); assim, como é
possível que tal homem adquirisse fé tão depressa? Seguramente,
ela é de uma natureza diferente da genuína, e depressa se desva­
necerá. “Solent praecocia súbito flaccescere” [As coisas que madu­
ram prematuramente em geral apodrecem subitamente]. Mas a
fé verdadeira, sendo uma planta de outras paragens [estrangeira]
e de uma essência celestial, dificilmente aparece; ela custa muitos
suspiros e lágrimas (At 2.37). Esta infância espiritual não nasce
sem dores. 41 42
[41] Perfidem Christi sanguinem sugimus et inter redemptoris nostri vulnera linguam
figimus.
[42] Plínio o Velho (23-79 d.C.), autor de uma vasta História Natural. Ele morreu
observando a erupção do Monte Vesúvio no ano de 79 d.C.
58

VERDADEIRA E FALSA FÉ
2 . A f é h ip ó c rita estrem ece quando vem a p ro vação .
O hipócrita gostaria antes que sua fé fosse enaltecida em vez de
examinada. Ele náo pode suportar uma prova bíblica mais do
que um metal falsificado pode suportar a pedra de toque.
Ele é como um homem que tem roubado os bens de sua
casa e não tem nenhuma disposição de permitir que sua casa
seja inspecionada. Enquanto a fé verdadeira se dispõe a enfren­
tar uma prova: “Examina-me, Senhor, e prova-me; esquadrinha
meus rins e meu coração” (SI 26.2). Davi não teve medode ser
examinado por um júri; não, ainda que o próprio Deus fosse um
do júri. As boas mercadorias nunca se esquivam da luz.
3 . A f é h ip ó c rita f a z pouco caso d a f é verd a d eira .
O hipócrita ouve outros falarem do louvor da fé, mas ele indaga
onde jaz a virtude dela. Ele olha para a fé como uma droga ou
alguma mercadoria vil que não se pode vender; ele abandonará
toda a fé que tem por uma moeda de prata, e pode ser que ele
ainda estime extremamente o prêmio. Mas aquele homem que
possui fé verdadeira, esse lhe dá valor supremo; ele conta esta
graça entre as joias. “Plus fulget fides quam aurum” [A fé brilha
mais que o ouro] (Agostinho).
O que o incorpora a Cristo, senão a fé? O que o póe no esta­
do de filiação, senão a fé (G14.26). Oh, preciosa fé! O crente não
troca seu “escudo da fé” por uma coroa de ouro.
4 . Uma f é h ip ó c rita tem um a m ão in cap az.
Com uma mão, ela tomaria Cristo, porém não o faz; com a outra,
ela renuncia a Cristo. Ela tomaria Cristo por amor à segurança,
porém não se dá a ele em rendição. Entretanto, “subiata quicun-
que parte integrante toüitur toturn [Ao remover qualquer parte
essencial, você está removendo a totalidade]. Enquanto isso, a fé
verdadeira é imparcial — toma Cristo como Salvador e se subme­
59

A CEIA DO SENHOR
te a ele como Príncipe. Cristo diz: “Eu te doto com meu corpo e
meu sangue”; e a fé diz: “Eu te adoro com minha alma”.
5. Uma f é h ip ó c rita é im pura.
O hipócrita diz que crê, todavia prossegue no pecado. Ele adere
ao credo, porém não aos mandamentos. Ele crê, contudo toma
o nome de Deus em vão: “Pai meu, tu és o amigo da minha mo­
cidade?... Sim, assim me falas, mas cometes maldade a mais não
poder” (Jr 3.4-5).
Tais impostores chamariam Deus “meu Pai”, contudo peca­
ram tão decisivamente quanto puderam. Pois um diz que tem
fé, contudo vive no pecado; é como se um homem dissesse que
desfrutava de saúde enquanto seus órgãos vitais perecem. Mas a
fé verdadeira está jungida à santidade: “Guardando o mistério da
fé numa consciência pura” (lTm 3.9). A joia da fé é sempre de­
positada na vitrine de uma boa consciência. A mulher que tocou
em Cristo pela fé sentiu uma virtude curadora vinda dele. Ainda
que a fé não remova totalmente o pecado, contudo o subjuga.
6. A f é h ip ó c rita é um a f é m orta, não
degusta a seiva ou a doçu ra de C risto.
O hipócrita degusta algo no vinho e no azeite; ele acha conten­
tamento nos deleites carnais e lascivos do mundo, porém não a
doçura de uma promessa; o próprio Espírito Santo não lhe traz
alento.
Essa é uma fé morta que não sente nenhum sabor. Mas a fé
verdadeira acha profunda delícia nas coisas celestiais. A Palavra
é mais doce que o favo de mel (SI 19.10). O amor de Cristo é
melhor que o vinho (Ct 1.2). Assim, notamos certa diferença
entre a fé verdadeira e a espúria. Quantos não imaginaram que
haviam obtido o filho vivo da fé, quando se provou que o que
tinham era um filho morto.
60

VERDADEIRA E FALSA FÉ
Acautelemo-nos da presunção, mas acalentemos a fé. A fé
aplica Cristo e faz uma conjunção de seu corpo e sangue. “Tu
vens a Cristo não pela carne, e sim pelo coração; eu apreendo
Cristo não com a boca, e sim com a fé” (Agostinho).[43] Esta Ceia
se destinava principalmente aos crentes (Lc 22.19). O sangue de
Cristo para o descrente é como aqua vitae [água viva] na boca de
um homem morto: perde toda a sua virtude.
Devemos achegar-nos à mesa do Senhor com um coração generoso.
“Lançai fora o velho fermento... não com o velho fermento, nem
com o fermento da maldade e da malícia” (ICo 5.7-8). O fer­
mento da malícia leveda para nós a ordenança. Ainda que venha­
mos com lágrimas amargas, ainda assim podemos não estar com
espíritos amargos. A Ceia do Senhor é “ágape”: festa de amor
(Inácio). O sangue de Cristo foi derramado para reconciliar-nos
não só com Deus, mas também uns com os outros. O corpo de
Cristo foi quebrado para desfazer as brechas entre cristãos. Que
triste é o fato que os que professam comer a carne de Cristo no
sacramento rasguem a carne uns dos outros! “Todo aquele que
odeia a seu irmão é homicida” (ljo 3.15). Aquele que se achega
à mesa do Senhor nutrindo ódio é um Judas para Cristo e um
Caim para seu irmão. Que benefício pode tal pessoa receber no
sacramento, cujo coração está envenenado com malícia?
Se alguém sorve peçonha e ainda assim aparenta ser cordial,
com certeza tal cordialidade não o fará bom. Os que se deixam
envenenar pelo rancor e malícia não se fazem melhores com cor­
dialidade no sacramento. O que não se achega ao sacramento
com um coração generoso nada usufrui de Deus, pois “Deus é
amor” (ljo 4.8).
Esse tal nada sabe do evangelho em seu caráter salvífico, pois
este é o “evangelho da graça” (Ef 6.15). Ele nada possui da sa­
bedoria que vem do céu, pois a graça “primeiramente é pura,
[43] Accedis ad Christum non carne sed corde, edisco Christum non dente sedfide.
61

A CEIA DO SENHOR
depois pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de
bons frutos” (Tg 3.17).
Oh, que os cristãos sejam, no dizer de Inácio, “radicados e
cimentados juntos no amor”! Acaso os demônios unirão e os san­
tos dividirão? E isso que apreendemos de Cristo? Porventura o
Senhor Jesus não nos tem amado até a morte? Que maior opró-
brio pode sobrevir à amorável Cabeça do que os seus membros
se ferindo reciprocamente? Que o bom Senhor apague o fogo da
contenda e acenda o fogo do amor e amizade em nosso coração!
Devemos achegar-nos ali com um coração súplice. Cada orde­
nança, assim como cada criatura, é “santificada pela... oração”
(lTm 4.5). “Oratio mutat elementum in alimentum [A oração
converte o elemento em alimento]. Quando enviamos ao céu
a pomba da oração, ela traz uma folha de oliveira em sua boca.
Devemos orar para que Deus enriqueça sua ordenança com
sua presença; para que ele faça o sacramento eficaz a todos aque­
les fins e propósitos santos para os quais foi designado; para que
seja a festa de nossas graças e o funeral de nossas corrupções; para
que não seja somente um sinal a representar, mas um instrumen­
to que comunica Cristo a nós, e seja um selo que nos assegure de
nossa adoção [união] celestial. Se tivermos a gordura e a doçura
desta ordenança, então enviemos oração adiante, como um pre­
cursor, a anunciar uma benesse.
Muitos parecem tão distraídos com cuidados mundanos que
não conseguem poupar tempo algum para a oração preceder o
sacramento. Acaso acreditam que a árvore da bênção gotejará
seu fruto em sua boca quando nunca o comeram pela oração?
Deus não expõe seus mistérios de qualquer maneira,nem os lan­
ça aos que não os buscam (Ez 36.37).
Não é suficiente orar, mas é preciso que se ore com fervor e
intensidade de alma. Jacó lutou em oração (Gn 32.24). Orações
frias, como pretendentes frios, nunca prosperam. Oração deve
62

VERDADEIRA E FALSA FÉ
incluir suspiros e gemidos (Rm 8.26). Deve ser feita “no Espírito
Santo” (Jd 20). Aquele que pretende falar com Deus, diz Am-
brósio, deve falar-lhe em seu próprio idioma, o qual ele entende,
isto é, no idioma de seu Espírito.
E, finalmente, devemos achegar-nos à mesa do Senhor com um
coração abnegado. Quando estivermos preparados da melhor ma­
neira possível, acautelemo-nos de não depositar confiança em
nossas preparações. “Assim também vós, quando fizerdes tudo
o que vos for mandado, dizei: Somos servos inúteis, porque fi­
zemos somente o que devíamos fazer” (Lc 17.10). Use o dever,
porém não o idolatre. Devemos usar os deveres que nos prepa­
ram para Cristo, mas não façamos de nossos deveres um Cristo.
O dever é a vereda de ouro por onde caminhamos, mas não uma
muleta de prata em que nos apoiamos.
Ah, que são todas as nossas preparações? Deus pode ver um
buraco em nossas melhores roupas. “Ai do homem, se o exami­
nares e o pesares” (Agostinho).1441 “Todas as nossas justiças são
trapos de imundícia” (Is 64.6).
Quando estivermos preparados, quando esperarmos na mer­
cê de Deus, então que nos neguemos como merecedores de sua
justiça. Se nossos mais santos serviços não forem aspergidos pelo
sangue de Cristo, não serão melhores do que os pecados mais
notáveis; e, como a carta para Urias, trarão em si o motivo de
nossa morte. Cumpramos como dever, mas confiemos nossa
aceitação aCristo e à livre graça. Sejamos como a pomba enviada
por Noé: ela fez uso de suas asas para voar, porém, para sua segu­
rança, confiou na arca.
Vimos como devemos ser qualificados para termos acesso à
mesa do Senhor. E, assim, ao nos achegarmos, encontraremos
os amplexos da misericórdia. Teremos não só uma representação,
mas também uma participação de Cristo no sacramento; levare- 44
[44] Vae homini si eum trutina discutias, etc.
63

A CEIA DO SENHOR
mos náo só panis [pão], mas também salutaris [saúde]; estaremos
“cheios de toda plenitude de Deus” (Ef 3.19).
64

9
OBJEÇÕES CONTRA
O ACHEGAR-SE AO SACRAMENTO
“E, chegando-se o p ovo ao bosque, eis que corria m el; porém
ninguém chegou a mão à boca, porque o p ovo tem ia a conjuração”
(ISm 14.26).
J
T esus Cristo já preparou seu banquete evangélico? Ele é, res-
I pectivamente, o anfitrião e o banquete? Então que os pobres
I cristãos em dúvida se animem para se achegar à mesa do
nhor. Satanás criaria obstáculo ao sacramento, como fez Saul
ao povo impedindo-o de comer mel (ISm 14.26). Mas, será que
há alguma alma que se humilha e se deixa esmagar pelo pecado,
cujo coração suspire secretamente por Cristo, mas, mesmo as­
sim, permanece temeroso e não ousa aproximar-se destes santos
mistérios? Então que eu encoraje aquela alma a vir: “Tem bom
ânimo, levanta-te” (Mc 10.49).
Objeção 1 : M as eu sou pecad or e indigno, e por que m e envol­
vería com coisas tão santas?
Resposta: Por quem Cristo morreu, senão por tal criatura?
“Cristo Jesus veio ao mundo para salvar pecadores” (lTm 1.15).
Ele tomou sobre si os nossos pecados, bem como a nossa nature­
za. “Certamente, ele tomou sobre si as nossas tristezas” (Is 53.4).
No hebraico lê-se nossas enferm idades. Lança teus pecados, diz

A CEIA DO SENHOR
Lutero, sobre Cristo, e então eles já não são teus, e sim dele.1451
Nossos pecados devem nos humilhar, mas não devem nos afastar
de Cristo; quanto mais enfermos, mais devemos descer ao Poço
de Siloé.
A quem Cristo convida para a ceia, senão os pobres, os coxos
e os aleijados (Lc 14.21)? Isto é, aqueles que se veem indignos e
fogem para o santuário de Cristo. O sacerdote tinha que tomar
um ramo de hissopo e mergulhá-lo no sangue e aspergi-lo sobre
o leproso (Lv 14.7). Você que tem em si a lepra do pecado, e
como um leproso sente nojo de si mesmo, o precioso sangue de
Cristo é aspergido sobre você.
Objeção 2 : Mas eu tenho pecado presunçosamente contra a mi­
sericórdia. Tenho contraído culpa depois de ter-me achegado à
mesa do Senhor; será que o sangue de Cristo não é para mim?
Resposta: Deveras é grave usar mal a misericórdia: esse foi o
agravo do pecado de Salomão; seu coração se afastou do Senhor,
“o qual lhe apareceu duas vezes” (1 Rs 11.9). Pecados presunçosos
abrem a boca da consciência para incriminar e fecham a boca do
Espírito de Deus para não falar de paz. Não abandone sua âncora,
erga os olhos para o sangue de Cristo; ele pode perdoar pecados
contra a misericórdia. Acaso não pecou Noé contra a misericór­
dia, o qual, ainda que fosse tão miraculosamente preservado do
dilúvio, contudo, assim que saiu da arca, se embriagou?'
Não pecou Davi contra a misericórdia quando, depois de
Deus fazê-lo rei, conspurcou sua alma com luxúria e seu manto
com sangue? Todavia, ambos os seus pecados foram lavados na­
quela fonte que foi aberta diante de Judá (Zc 13.1).
Acaso os discípulos não trataram Cristo perversamente no
momento de seu sofrimento? Pedro o negou e todos os demais
abandonaram suas insígnias: “Então todos os discípulos o aban- 45
[45] Aspice peccata tua humeris Christi imposita, tum dices, peccata mea, non sunt mea,
sed aliena.
66

OBJEÇÓES CONTRA O ACHEGAR-SE AO SACRAMENTO
donaram e fugiram” (M t 26.56). Todavia, Cristo não tirou van­
tagem da fraqueza deles, nem desistiu deles, mas lhes envia ju­
bilosas notícias de sua ressurreição (M t 27.7); e de sua ascensão:
“mas vai ter com meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e
vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus” (Jo 20.17).
E para que Pedro não pensasse que já não era do número dos
que não se interessavam pelo amor de Cristo, este enviou-lhe
uma mensagem especial, pelo anjo, para confortá-lo: “Mas ide,
dizei a seus discípulos e a Pedro que ele vai adiante de vós para a
Galileia; lá o vereis, como vo-lo disse” (Mc 16.7).
De modo que, onde nosso coração é sincero, e nossos desvios
são mais provenientes de um defeito em nossa força do que em
nossa vontade, o Senhor Jesus não tirará vantagem de cada falha,
mas gotejará seu sangue em nós, o qual tem em si uma voz que
“fala melhor do que o de Abel” (Hb 12.24).
Objeção 3 : Mas descubro tal desvanecimento e fragilidade em
minha alma que não ouso achegar-me à mesa do Senhor.
Resposta; Mas você tem a necessidade de prosseguir: “usa de
um pouco de vinho por causa... de tuas frequentes enfermidades”
(lTm 5.23). Não seria estranho um homem argumentar assim:
“Meu corpo é frágil e declinante, por isso não irei ao médico”?
Ao contrário, teria de ir. Nossa fraqueza nos impele a Cristo; seu
sangue é mortífero para o pecado e vital para uma disposição
positiva.
Você afirma que tem defeitos em sua alma; se não tivesse
nenhum, não teria havido necessidade de Mediador, nem Cristo
teria uma obra a fazer. Portanto, abandone sua objeção incrédula,
disponha-se a vir a esta bendita Ceia. Então descobrirá que Cris­
to continua doando-lhe suas doces influências, e sua disposição
positiva vicejará como a erva.
67

A CEIA DO SENHOR
Objeção 4 : M as achego-m e com freq uên cia a esta ordenança,
e não encontro bom resultado e o conforto não enche m eu coração.
Resposta: Deus só pode satisfazê-lo numa ordenança quan­
do você a discernir. Cristo estava com Maria, contudo ela não
sabia que era ele. Você pensa que Cristo não o satisfaz em sua
mesa só porque você não recebe o devido conforto.
i. A in d a que ele não o encha d e conforto, ele p o d e enchê-lo
de fo rç a . Cremos que não temos resposta de Deus em nosso
servir, a menos que ele nos encha de alegria. Mas Deus pode ma­
nifestar sua presença seja para fortalecimento ou para conforto.
Se tivermos o poder celestial para derrotar nossas corrupções, e
para andarmos mais perto e perenemente com Deus, então esta
é uma resposta dele. “E eu os fortalecerei no Senhor, e andarão
em seu nome” (Zc 10.12). Oh, cristão, se você não tem o braço
de Deus a envolvê-lo, mas se tem seu braço a fortalecê-lo, este é
o fruto de uma ordenança.
ii. Se D em não enche seu coração de a le g ria , m as enche
sem olhos de lágrim as, este é o encontro d ele com você em sua
mesa. Quando você visualiza Cristo partido na cruz, e pondera
sobre o amor dele e sua ingratidão, isso faz o orvalho começar
cair, e seus olhos se assemelham às “piscinas do Hesbom” (Ct
7.4) transbordantes de água. Este é o gracioso encontro de Deus
com você no sacramento. Bendito é o seu nome por isso. E um
sinal, e o Sol da Justiça já nasceu sobre nós quando nosso cora­
ção de bronze se derrete em lágrimas por causa do pecado.
iii. Se sem confortos são poucos, m as se as ações de su a f é
são m uitas, esta é a m an ifestação de su a p resen ça n a C eia. Os
emblemas sensíveis do amor de Deus são subtraídos, mas as ven­
turas da alma estão no sangue de Cristo; ela crê que se achega a
ele e ele sustentará firme o cetro de ouro (Jo 6.37). Esta gloriosa
68

OBJEÇÕES CONTRA O ACHEGAR-SE AO SACRAMENTO
ação da fé, e a tranquilidade interior que a fé desenvolve, é o ben­
dito retorno de uma ordenança. “Tornará a apiedar-se de nós;
sujeitará nossas iniquidades, e lançarás todos os seus pecados nas
profundezas do mar” (Mq 7.19). Os confortos da igreja estavam
obscurecidos, mas sua fé se manifesta como o sol de uma nuvem.
“Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e
creram” (Jo 20.29).
Objeção 5 : Mas não consigo achar no sacramento nenhuma
dessas coisas; meu coração está morto e fechado; não tenho como
voltar.
Resposta: Espere a resposta de Deus na ordenança. Ele não
prometeu saciar a alma? “Promissa Dei cadunt in debitum” [As
promessas de Deus lhe constituem uma obrigação]. “Pois fartou
a alma sedenta e encheu de bens a alma faminta” (SI 107.9). Se
não com entusiasmo, contudo com bondade; a alma deve estar
cheia, do contrário, como pode a promessa cumprir-se?
Cristão, Deus falou, portanto espere. Você não crerá em
Deus, a menos que ouça uma voz do céu? O Senhor lhe deu sua
promessa; e acaso não é uma segurança maior ter um recibo na
mão do que apenas a palavra da boca? Contentemo-nos em es­
perar por algum tempo, e a misericórdia virá. As mercês de Deus
na Escritura não são chamadas mercês expeditas, mas são “mercês
seguras” (Is 55.3).
Acaso Cristo já não nos deu seu corpo e sangue? Então, quando
nos encontramos diante desta ordenança evangélica, lembremo-
-nos do Senhor Jesus ali. O sacramento é uma ordenança que
lembra Cristo: “fazei isto... em memória de mim” (ICo 11.25).
Deus designou esta festa espiritual para preservar a viva memória
da morte de nosso Salvador. O dia do sacramento é um dia de
comemoração.
69

A CEIA DO SENHOR
1 . L em bra a p a ix ã o de C risto. “M em oriam p assio n is
m eae an im is vestris reco lite" [Trazendo de volta
à vossa mente a memória de minha paixão].
“Lembra-te da minha aflição e do meu pranto, do abismo de fel”
(Lm 319). Posso alterar um pouco as palavras: “Lembrando o
vinagre e o fel.” Se o maná teve de ser guardado na arca para que
a memória dele fosse preservada, como a morte e o sofrimento
de Cristo não deveríam ser mantidos em nossa mente como um
memorial, quando nos encontramos à mesa do Senhor?
2 . L em bra os gloriosos benefícios que
recebem os do corpo p a rtid o de C risto.
Frequentemente, nos lembramos daquelas coisas que nos são
vantajosas. O corpo partido de Cristo é um anteparo que se in­
terpõe entre nós e o fogo da ira de Deus. Ao ser partido o corpo
de Cristo, a cabeça da serpente é esmagada. Quando Cristo é
partido na cruz, uma caixa de joias preciosas é aberta: agora te­
mos acesso a Deus com ousadia.
O sangue derramado na cruz abriu uma via para o trono da
graça. Agora fomos feitos filhos e herdeiros; e ser herdeiro da
promessa é melhor que ser herdeiro de uma coroa [humana].
Cristo, ao morrer, nos fez parentes próximos da bendita Trinda­
de; somos candidatos e expectadores da glória. A via sangrenta
da cruz é nossa via lactea, nossa bendita via para o fcéu. Jesus
Cristo bebeu o fel para que bebêssemos os doces mananciais de
Canaã. Sua cruz ficou cravejada, para que nossa coroa fosse com­
pletamente coberta de joias. E assim podemos lembrar Cristo no
bendito sacramento.
Mas não basta uma mera lembrança da morte de Cristo.
Aquele que tem uma ternura natural de espírito pode sentir-se
afetado pela história da paixão de Cristo; mas esta lembrança de
Cristo tem em si pouco conforto. Lembremo-nos de Cristo no
sacramento de uma maneira correta:
70

OBJEÇÕES CONTRA O ACHEGAR-SE AO SACRAMENTO
i. Lem brem o-nos d a m orte de C risto com a le g r ia “M.as lon­
ge esteja de mim gloriar-me, senão na cruz de nosso Senhor Jesus
Cristo” (G1 6.14). Quando vemos Cristo no sacramento, crucifi­
cado ante nossos olhos, podemos contemplá-lo naquela postura
enquanto estava na cruz, estendendo seus benditos braços para
receber-nos. Oh, que motivo de triunfo e aclamação é este! Mes­
mo que nos recordemos de nossos pecados com tristeza, toda­
via devemos lembrar-nos dos sofrimentos de Cristo com alegria.
Choremos aqueles pecados pelos quais ele derramou seu sangue,
contudo, alegremo-nos naquele sangue que lava nossos pecados.
ii. Recordem os de t a l modo a m orte de C risto que nos con­
form em os a ela . “Sendo feito conforme à sua morte” (Fp 3.10).
Então, lembremo-nos da morte de Cristo corretamente, na
qual morremos com ele; nosso orgulho e paixão foram mortos.
A morte de Cristo por nós faz morrer o pecado em nós; então
lembremo-nos corretamente da crucificação de Cristo: quando
somos crucificados com ele, estamos mortos para os prazeres e
preferências do mundo. “O mundo está crucificado para mim e
eu para o mundo” (G1 6.14).
Se Jesus Cristo já nos deu esta alma festiva para o fortalecimento
de nossa disposição, labutemos para sentir alguma virtude fluindo
para nós desta ordenança. Que o sacramento não seja uma mama
sem leite. Seria estranho se um homem não recebesse de seu
alimento nenhuma nutrição. Para este sacramento, seria um des­
crédito se não obtivéssemos aumento de graça. A pobreza entra­
ria em nossa alma num “banquete de coisas gordurosas”? Cristo
nos dá seu corpo e sangue para o aumento da fé; ele espera que
colhamos algum proveito e rendimento, e que nossa fraqueza,
nossa fé diminuta, floresça em uma grande fé: “Oh mulher,
grande é tua fé!” (Mt 15.28). Seria bom examinar se, após nos-
71

A CEIA D O SENHOR
sa frequente celebração de sua Santa Ceia, temos atingido uma
cc j r/»
grande re .
Pe r g u n t a: Como posso saber se possuo esta grande fé?
Re s p o s t a: Para a solução disto, estabelecerei seis eminentes
sinais de uma “grande fé”; e se pudermos mostrar pelo menos
um deles, já teremos feito boa proficiência no sacramento.
1 . Uma g ran d e f é p o d e c o n fia r em D eus
sem p e n h o r ou g a ra n tia .
Ela pode contar com a providência na deficiência das provisões
externas. “Ainda que a figueira não floresça, nem haja fruto na
vide; o produto da oliveira minta, e os campos não produzam
mantimento; as ovelhas sejam arrebatadas do aprisco, e nos cur­
rais não haja gado, todavia eu me alegro no Senhor, exulto no
Deus de minha salvação” (Hc 3.17-18).
Um incrédulo deve ter algo para alimentar seus sentidos ou
render o espírito. Quando ele está no fim de suas riquezas, se
sente no fim de suas faculdades. A fé não pergunta se Deus fará
provisão, ainda que não veja de onde virão as provisões. “Fides
famem non form ida f [A fé não teme a fome]. Deus lhe pôs o seu
selo: “verdadeiramente serás alimentado” (SI 37.3). A fé põe sua
obrigação em ação: “Senhor”, diz a fé, “tu alimentarás as aves
do céu e não me alimentarás? Sofrerei carência quando meu Pai
possui a provisão?”
O bom cristão, com a vara da fé, fere a rocha celestial, e
algum dinheiro e azeite entram em cena para a provisão de suas
presentes necessidades.
2 . Uma gran d e f é é aq u ela que op era p ro d íg io s.
Ela pode fazer aquelas coisas que excedem o poder da natureza.
Uma grande fé pode abrir o céu, pode vencer o mundo (ljo 5.4);
pode coibir a tendência para o pecado (2Sm 22.24); pode prefe­
72

OBJEÇÕES CONTRA O ACHEGAR-SE AO SACRAMENTO
rir a glória de Deus em vez do interesse secular (Rm 9.1); pode
alegrar-se na aflição (lTs 1.6).
Pode refrear a intemperança da paixão; pode resplandecer no
hemisfério de suas relações; pode realizar os deveres de uma ma­
neira mais refinada e sublimada, misturando amor com dever, os
quais a adoçam e fazem com que ela se mostre mais prazerosa.
Ela pode antecipar a glória: “Fides attingit inaccessa, prospicit no­
víssima [A fé alcança o que é inatingível e antecipa as últimas
coisas]. Ela une as coisas que se encontram à máxima distância. A
fonte mestra da fé se eleva mais alto que a natureza. Um homem,
pelo poder da natureza, tem tanta força quanto tem o ferro para
nadar ou a terra para ascender.
3 . Uma g ran d e f é é firm e e estáveL
A fé fraca é com frequência abalada com temores e dúvidas. Uma
grande fé é como um carvalho que espalha suas raízes e não é
levado facilmente pelo vento (Cl 2.7). Uma grande fé é como a
âncora ou cabo de um navio que o torna seguro e inabalável no
meio das tempestades. O cristão que é robustecido com esta fé
heróica é estabelecido nos mistérios da religião. O Espírito de
Deus gravou tão solidamente as verdades celestiais em seu co­
ração que remover os santos princípios daquele que o absorveu
equivale a remover o sol do firmamento. Eis aqui uma coluna do
templo (Ap 3.12).
4 . Uma gran d e f é p od e c o n fia r em um D eus irad o .
Ela crê no amor de Deus mesmo que enfrente sua reprovação
(Jo 2.4). Uma fé vigorosa, ainda que seja rejeitada e rechaçada,
virá outra vez e insistirá diante de Deus com santa obstinação.
A mulher cananeia foi três vezes repelida por Cristo; contudo,
sem considerar que ele lhe negava, voltando animada com novos
argumentos, fazia novas investidas diante dele, até que, por fim,
pelo poder da fé, ela o venceu: “Ó mulher, grande é tua fé; que se
73

A CEIA DO SENHOR
faça segundo a tua vontade” (Mt 15.28). A chave de sua fé abriu
as entranhas de Cristo e então ela pôde ter o que queria dele.
Quando uma vez conquistou seu coração, pôde possuir também
seu tesouro.
5. Uma g ran d e f é p od e n a d a r co n tra a m aré.
Ela pode transpor, respectivamente, o sentido e a razão. A razão
corrupta diz, como Pedro, “apieda-te de ti, Senhor” (Mt 16.22);
a fé diz: É preferível sofrer a pecar. A razão busca segurança; a fé
porá em risco a segurança para preservar a santidade. Um crente
pode velejar rumo ao céu, ainda que a onda da razão e o vento
da tentação sejam contra ele.
Enquanto caminhava ao encontro do sacrifício de seu filho,
Abraão não convocou a razão como conselheira. Quando Deus
disse: “Oferece teu filho Isaque”, isso seria suficiente para deixar
perplexo não só a sabedoria carnal, mas até mesmo a própria
fé. Pois aqui os mandamentos de Deus pareciam colidir. Em
um mandamento, o Senhor disse: “Não matarás”; e eis aqui um
mandamento totalmente adverso: “Oferece teu filho.” De modo
que Abraão, ao obedecer a um mandamento, era como se deso­
bedecesse a outro.
Além disso, Isaque era o filho da promessa; o Messias havia
de vir da linhagem de Isaque (Hb 11.18). E se ele fosse elimina­
do, de onde viría ao mundo um Mediador? Aqui havia-bastante
para atribular e confundir este santo patriarca, contudo a fé de
Abraão desata todos estes nós e a faca sangrenta está preparada.
Abraão creu que, quando Deus o mandou, isso não era ho­
micídio, e sim sacrifício; e que o Senhor, ao fazer a promessa de
que a geração de Cristo viria dos lombos de Isaque, e que essa
promessa não cairia por terra, era capaz de suscitar descendência
das cinzas de Isaque. Eis aqui uma grande fé, para a qual o pró­
prio Deus ofereceu um troféu de honra: “Por mim mesmo jurei,
diz o Senhor: Porquanto fizeste esta ação, e não me negaste teu
74

OBJEÇÓES CONTRA O ACHEGAR-SE AO SACRAMENTO
filho, teu único filho, que deveras te abençoarei e multiplicarei
grandemente a tua descendência...” (Gn 22.16,17).
6 . Uma g ran d e f é p o d e su p o rta r gran des delongas.
Ainda que Deus náo dê uma resposta imediata à oraçáo, a fé crê
que terá a resposta no devido tempo. Uma fé fraca logo desiste;
e se não recebe a misericórdia imediatamente, começa a desfale­
cer; enquanto que, o que possui uma fé forte e vibrante, “não se
apressará” (Is 28.16). Uma grande fé se contenta em descansar
em Deus. A fé permutará com Deus o tempo. “Senhor”, diz a fé,
“Se eu não tiver a mercê que quero agora, continuarei confiando;
eu sei que meu dinheiro está em boas mãos; haverá de vir uma
resposta de paz. Talvez a mercê ainda não esteja sazonada, ou
talvez eu ainda não esteja maduro para a mercê. Senhor, faças
como parecer bem aos teus olhos.”
A fé sabe que as viagens mais tediosas têm os regressos mais
ricos; e quanto mais longa for a expectativa pela mercê, mais
doce será sua fruição: “Quo longius defertur cor suavius laetatuf
[Quanto mais o coração continua esperando, mais deleitosamen-
te se regozija].
Eis aqui uma fé gloriosa. Se tivermos uma fé como esta para
mostrar, então esse é um bendito fruto de nosso diálogo sacra­
mental com Deus. Eu, porém, não desestimulo crentes infantis.
Se sua disposição não chegar ao tamanho e proporção de uma
grande fé, mas se ela for do tipo adequado, então achará aceita­
ção. O Deus que nos convida a receber aquele que é “fraco na fé”
(Rm 14.1), não irá rejeitá-lo. Se sua fé não alcançou a estatura de
um cedro, sendo antes uma “cana esmagada”, é boa o suficiente
para ser quebrada (Mt 12.20). Uma fé fraca pode apegar-se a um
Cristo forte. Uma mão paralítica pode unir-se em matrimônio.
Que os cristãos, pois, não descansem em medidas inferiores
de graça, mas aspirem graus mais elevados. Quanto mais forte
75

A CEIA DO SENHOR
for nossa fé, mais firme é nossa união com Cristo e mais doce
influência extrairemos dele.
É isto que honra o bendito sacramento, quando podemos
mostrar um aumento de graça; e, sendo fortes na fé, produzimos
glória a Deus (Rm 4.20).
76

10
GRATIDÃO A DEUS
“Oferecer-te-ei sacrifícios de louvor, e invocarei o nome do
Senh or” (S l 1 1 6 .1 7 ).
C
omo Jesus Cristo providenciou esse bendito banque­
te para nós? E verdade que ele não nos trata como
estrangeiros, mas nos alimenta em seu próprio seio, com
seu próprio sangue? Então tentemos corresponder ao grande
amor de Cristo.
E verdade que nunca conseguimos corresponder perfeita-
mente ao seu amor; todavia, demonstremos nossa gratidão. Não
podemos fazer nada satisfatoriamente, mas podemos fazer algo
gratamente. Cristo se deu por nós em oferta pelo pecado, então
nos demos nós mesmos a ele como oferenda de gratidão. Se um
homem redime outro de uma dívida, acaso o redimido será in­
grato? Quão profundamente estamos agradecidos a Cristo, ele
que nos redimiu do inferno!
“Quando eu lhe tiver dado tudo o que sou, tudo o que possuo,
o que é uma fagulha para o sol, uma gota para o rio e um grão
para o celeiro? Nada tenho além de duas míseras migalhas, corpo
e alma” (Bernardo).1461 E devemos demonstrar nossa gratidão de
duas maneiras. 46
[46] Cum ei donavero quicquid sum, quicquidpossum, non est tanquam scintilla ad
solem, gutta adfluvium, gntnttm ad acervum? Non habeo nisi minuta duo, corpus et
animam. [Uma alusão à história das moedinhas da viúva (Mc 12.41-44; Lc 21.1-4).]

A CEIA DO SENHOR
1 . D em onstrem os nossa g ra tid ã o a C risto com coragem .
Cristo nos deu um exemplo; ele não temia o homem, porém “su­
portou a cruz” e “desprezou o opróbrio”. Que nossa coragem seja
como o aço, estando prontos a sofrer por Cristo, o que é, segun­
do Crisóstomo, ser batizado com o batismo de sangue. Cristo
suportou por nós a ira de Deus e não haveriamos de suportar por
ele a ira dos homens? Nossa glória é enfrentar a luta de Cristo.
“Se pelo nome de Cristo sois vituperados, bem-aventurados sois,
porque sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus” (lPe
4.14). “Não é possível que o homem siga o curso da virtude sem
se expor à tristeza, tribulação e tentações, pois como pode esca­
par aquele que está transitando pelo caminho áspero e estreito?”
(Crisóstomo).
Oremos pela fornalha da graça, a fim de sermos como aque­
les três filhos: “E, se não, fica sabendo ó rei que não serviremos
a teus deuses nem adoraremos a estátua de ouro que levantaste”
(Dn 3.18). Antes ser queimado do que ser dobrado. Oh, que
o espírito como o que estava em Cipriano nos faça sobreviver!
Quando o Procônsul Galério tentou dissuadi-lo da religião, e
disse: “Consule tibi [Consulta a tua segurança], ele replicou:
“Numa causa tão justa, não há necessidade de consulta.” Quando
a sentença de morte foi lida, Cipriano replicou: “Deo gratias”
[Graças a Deus!]. Não sabemos a que momento pode vir a tenta­
ção. Mas recordemos bem que o corpo de Cristo foi partido, seu
sangue, derramado; não temos derramado por ele nosso sangue,
como ele derramou o seu por nós.
2 . D em onstrem os nossa g ra tid ã o a C risto p elo s fru to s .
Não sejamos uma árvore seca, mas, pela graça de Cristo, de­
monstremos ser ramo frutífero (Ambrósio).1471 Produzamos os
açucarados frutos da paciência, da disposição celestial e das boas
obras. Isso significa viver não para nós mesmos, mas para aquele 47
[47] Lignum aridumfactus, sedper gratiam Christipomifera arborpullulasti.
78

GRATIDÃO A DEUS
que morreu e ressuscitou por nós (2Co 5-15). Se alegrarmos o
coração de Cristo e não o fizermos sentir-se pesaroso por seus
sofrimentos, então seremos férteis na obediência. Os sábios do
oriente não só adoraram a Cristo, mas também lhe ofereceram
dádivas, “ouro, incenso e mirra” (M t 2.11).
Ofereçamos a Cristo os melhores frutos de nossa hortaliça;
entreguemos a ele nosso amor, essa flor deleitosa. Os santos não
são somente comparados a estrelas por seu conhecimento, mas
também a árvores aromáticas por sua fertilidade. Cristo se delei­
tou nos seios de sua esposa, porque eles eram como que “cachos
de uvas” (Ct 7.7). O sangue de Cristo, recebido de uma maneira
espiritual, se assemelha à “água do ciúme”, a qual tinha a virtude
de matar e de fazer frutífero (Nm 5.27-28). O sangue de Cristo
mata o pecado e faz o coração frutificar em graça.
3 . D em onstrem os nossa g ra tid ã o a C risto p e lo zelo.
Quão zeloso foi Cristo por nossa redenção! O zelo converte um
santo em serafim. Um verdadeiro cristão tem um duplo batismo:
de água e de fogo. Ele é batizado com o fogo do zelo. “Zelus est
gradus intensus purae affectionis" [O zelo é um grau intenso de
pura afeição]. Sejamos zelosos pelo nome e culto de Cristo. O
zelo é intensificado pela oposição; ele traça seu caminho através
das rochas. O zelo ama ainda mais a verdade quando enfrenta
desdita e ódio. “J á é tempo Se n h o r, para intervires, pois a tua
lei está sendo violada. Amo os teus mandamentos mais do que o
ouro, e mais do que o ouro refinado” (SI 119.126-127).
Quão pouca gratidão demonstra a Cristo quem não tem zelo
por sua honra e interesse! São como Efraim: “Efraim é um pão
não revirado” (Os 7.8): assava de um lado e ficava cru do outro.
Cristo abomina ainda mais um temperamento morno (Ap 3.15).
Ele sente aversão por tais mestres.
Os que escrevem sobre a situação da Inglaterra dizem que ela
está assentada entre as zonas quentes e frias; o clima nem é muito
79

A CEIA DO SENHOR
quente nem muito frio. Gostaria que este náo fosse o tempera­
mento do povo, e que nosso coração não fossem de acordo com
o clima em que vivemos. Que o Senhor faça com que o fogo do
santo zelo esteja sempre queimando no altar de nosso coração!
4 . D em onstrem os nossa g ra tid ã o p e la
su jeição u n iv e rs a l a C risto.
Isto torna a Ceia do Senhor, em um sentido espiritual, uma fes­
ta de dedicação, quando renovamos nossos votos e nos consa­
gramos ao serviço de Deus. “O Senhor, deveras sou teu servo;
teu servo, filho de tua serva; quebraste as minhas cadeias” (SI
116.16). Senhor, tudo o que tenho é teu. Minha cabeça será tua
para estudar para ti; minhas mãos serão tuas para trabalhar para
ti; meu coração será teu para adorar-te; minha língua será tua
para louvar-te!
80

11
CONSOLAÇÃO PARA OS
CRENTES E ADVERTÊNCIAS
PARA OS INCRÉDULOS
Para vós outros, portanto, os que credes, é a preciosidade; mas,
para os descrentes, a pedra que os construtores rejeitaram, essa
veio a ser a principal pedra angular, e pedra de tropeço e rocha de
ofensa. São estes os que tropeçam na palavra, sendo desobedientes,
para o que também foram postos (IPe 2.7-8).
S
e Jesus Cristo providenciou uma ordenança como é o sa­
cramento, andemos de acordo com ele. Já recebemos Cris­
to em nosso coração? Provemo-lo mediante nossa atitude
celestial.
1 . A presentem os C risto p o r m eio de nossas p a la v ra s celestiais.
Falemos “a linguagem de Canaã”. Quando o Espírito Santo veio
sobre os apóstolos, estes falaram em outras línguas (At 2.4). En­
quanto falarmos as palavras de graça e sobriedade, nossos lábios
exalam o cheiro suave do perfume e destilam gotas de mel.
2 . A presentem os C risto p o r m eio de nossos afetos celestiais.
Que nossos gemidos e suspiros por Deus subam como nuvem de
incenso: “Pensai nas coisas que são de cima, não nas que são da

A CEIA DO SENHOR
terra” (Cl 3.2). Façamos com nossos afetos o que os lavradores
fazem com seus grãos; se o grão for depositado em um lugar
úmido, corre o risco de apodrecer. Portanto, ele tem de ser posto
em um lugar mais alto para que seja mantido em bom estado.
Assim nossos afetos, se forem postos na terra, correm o risco de
corromper-se e perder o sabor. Por isso, temos de estar em um
lugar mais alto, acima do mundo, para que sejamos preservados
puros. Suspirar pelas descobertas mais plenas de Deus é desejar
“alcançar a ressurreição dos mortos” (Fp 3.11). Quanto mais nos­
sos afetos forem elevados ao céu, mais doce alegria sentiremos.
Quanto mais alto as cotovias voarem, mais doce é o seu canto.
3 . A presentem os C risto p o r m eio d e nossa
conversação c e le stia l (Fp 3 .2 0 ).
Os hipócritas podem, num espasmo da consciência, nutrir al­
guns bons afetos, porém são como um jato de calor no rosto
que vem e se vai. Mas a essência de nossa vida tem de ser santa.
Temos de transpirar certo tipo de santidade angelical; como se dá
com uma moeda: ela traz não só a imagem do soberano dentro
do círculo; mas seu sobrescrito do lado de fora. E assim não bas­
ta ter a imagem de Cristo no coração, mas também é necessário
ter o sobrescrito do lado de fora; algo de Cristo tem de ser escrito
na vida.
A vida escandalosa de muitos comungantes constitui um
opróbrio para o sacramento, e tenta outros ao ateísmo. Quão
odioso é o fàto que tais mãos, que têm recebido os elementos
consagrados, aceitem subornos! Que os olhos, que se enchem de
lágrimas à mesa do Senhor, mais tarde se encham de inveja! Que
os dentes que têm mordido o santo pão esmaguem também ao
pobre! Que os lábios que têm tocado o cálice sacramental oscu-
lem uma prostituta! “Eles lavam as mãos, porém os feitos ficam
por lavar” (Bernardo).[48] Que aquela boca que bebeu o vinho
[48] Sunt lotis manibui, sed illotis operibus.
82

CONSOLAÇÃO PARA OS CRENTES E ADVERTÊNCIAS PARA OS INCRÉDULOS
consagrado se encha de juramentos! Que os que parecem deificar
a Cristo na Eucaristia o conspurquem em seus membros! Numa
palavra, que os que pretendem comer o corpo de Cristo e beber
seu sangue, na Igreja, “comam o pão da perversidade e bebam
o vinho da violência”, em suas próprias casas (Pv 4.17). Esses
são como os italianos de quem tenho lido, que no sacramento
se mostram táo devotos, como se cressem que Deus está no pão;
mas na vida sáo táo profanos como se não cressem que Deus está
no céu.
Pessoas assim sáo capazes de fazer o mundo pensar que o
evangelho é mera fantasia ou uma fraude religiosa. O que eu
lhes diria? Eles, como Judas, recebem o diabo no bocado de pão
e não são melhores que os que crucificaram o Senhor da glória.
“Tripudiam o Senhor sob a planta de seus pés e poluem o sangue
que extraem da mais doce videira” (Bernardo).1491 Como seu pe­
cado é hediondo, assim sua punição será na mesma proporção,
“porque o que come e bebe indignamente, come e bebe para sua
própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor” (ICo
11.29). Se uma das virgens vestais que se consagravam à religião
fosse deflorada, os romanos a condenavam a ser sepultada viva
(Plutarco).1501 Os que têm sobre si um voto sacramental, porém
mais tarde defloram a virgindade da alma mediante pecados es­
candalosos, Deus os sepultará vivos nas chamas do inferno.
Oh, que tão eminente e majestosa santidade lance chispas
nas vidas dos comungantes para que outros digam: “Estes têm
andado com Jesus!”, e que a consciência deles jaza sob o poder
desta convicção: que o sacramento tem em si uma virtude que
confirma e transforma!
Um uso ulterior da instituição do sacramento é o de confortar
o povo de Deus. 49 50
[49] Conculcant Dominum, et sanguinem dulcisstmae vitis ducuntpollutum.
[50] Plutarco de Queroneia (46-120 d.C.). Na antiguidade romana, um número
de virgens se devotavam a manter uma chama em honra da deusa Vesta. Seus votos
envolviam a castidade.
83

A CEIA DO SENHOR
1. Do corpo partido d e Cristo, e seu sangue derram ado,
extraiamos este conforto: que ele fo i um glorioso sacrifício.
i. Foi um sacrifício d e m érito infinito. Fora apenas um anjo
que sofreu, ou fora Cristo um mero homem - como alguns blas-
femamente sonham: “Beberam na opinião ebionita concernente
à mera humanidade” (Tertuliano)[51) - então poderiamos deses­
perar-nos da salvação. Mas sofreu por nós aquele que era tanto
Deus quanto homem.
Portanto, o apóstolo o chama expressamente “Sanguis Dei” -
o sangue de Deus (At 20.28). E o homem que peca; é o Deus
que morre. Esta é uma soberana cordialidade para os crentes.
Cristo tendo derramado seu sangue, é agora a justiça de Deus
perfeitamente satisfeita. Deus ficou infinitamente mais satisfei­
to com os sofrimentos de Cristo no monte Calvário do que se
morréssemos no inferno e enfrentássemos sua ira para sempre.
O sangue de Cristo apagou a chama da furia divina. E agora o
que temeriamos? Todos os nossos inimigos são reconciliados ou
subjugados; Deus é um inimigo reconciliado, e o pecado é um
inimigo subjugado.
“Quem lançará acusação contra os eleitos de Deus?... É Cristo
que morreu” (Rm 8.33-34). Está registrado que, quando certa
vez Satanás apareceu a Lutero, e pensava que ele ficaria amedron­
tado, Lutero lhe mostrou aquela Escritura: “E porei irfimizade
entre ti e a mulher, e entre a tua semente e a sua semente; esta te
ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3.15), com isso
Satanás desapareceu. Então, quando o diabo nos acusar, mostre­
mos-lhe a cruz de Cristo. Quando ele trouxer seu pincel e come­
çar a pintar nossos pecados com todas as cores, apresentemos-lhe
a esponja do sangue de Cristo que os apagará outra vez. Todas as
obrigações são canceladas; tudo quanto de que a lei nos acusava
[51] Tertuliano (c. 150-220), primeiro dos Pais latinos. Watson cita de sua obra
Contra Praxeas.
84

CONSOLAÇÃO PARA OS CRENTES E ADVERTÊNCIAS PARA OS INCRÉDULOS
é desconsiderado. O escrito de dívida é cancelado pelo sangue
do Cordeiro.
ii. F o i um sa c rifíc io de d u ração etern a . O benefício dele
é perpetuado. “Não por meio de sangue de bodes e de bezerros,
mas por seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma
vez por todas, tendo obtido eterna redenção” (Hb 9.12). “O
apóstolo tem em mente que o sacrifício de Cristo é sempre váli­
do para verdadeira e perene paz.”1521 Portanto, lemos que Cristo
é “sacerdote para todo o sempre” (Hb 5.6), porque a virtude e a
consolação de seu sacrifício permanece para sempre.
2 . O sangue de C risto, um a vez d erram ad o, d á aos crentes
o d ire ito de reivin d icarem todos os p riv ilé g io s celestiais.
Serão ratificados pela morte do testador. “Um testamento tem
força onde houve morte” (Hb 9.17). No texto podemos obser­
var que Cristo chama seu sangue “o sangue do Novo Testamen­
to”: “Sanguis quo foedus solenniter sancitur” [O sangue pelo qual
a aliança é solenemente ratificada] (Grotius).1531 Cristo deixou
aos santos uma vontade ou testamento bem como ricos legados:
perdão dos pecados, graça e glória. As Escrituras são os rolos nos
quais estes legados se acham registrados. O sangue de Cristo é o
selo da vontade.
Sendo este sangue derramado, os cristãos podem tomar posse
destes legados; “Senhor, perdoa os meus pecados, Cristo já mor­
reu para meu perdão. Dá-me graça, pois Cristo já a comprou
com seu sangue.” Tendo o Testador morrido, a vontade entra em
vigor. Cristão, porventura você não se enche de alegria? Acaso
você já não possui o céu? No entanto, você já está confirmado
por uma Vontade em um Testamento. O homem que não tem
um documento selado, transferindo terras e prédios, depois de
[52] Innuit apostolus, Christi sacrificium ad veram, semper que mansumm valuisse.
[53] Hugo Grotius (1583-1645), jurista e teólogo holandês.
85

A CEIA D O SENHOR
passar uns poucos anos, ainda que atualmente conte com pouca
ajuda, contudo se conforta quando contempla seu documento
selado, com esperanças daquilo que virá. E assim, ainda que no
momento não desfrutemos de privilégios de consolação e glo­
rificação, contudo, podemos alegrar nosso coração com isto: “a
Escritura está selada”, a Vontade e o Testamento estão ratificados
pelo sangue derramado de Cristo.
3 . O sangue d e C risto j á f o i d erram ad o ? E is
um a consolação em fa c e d a m orte.
Um Salvador moribundo adocica as dores da morte. Seu Senhor
já foi crucificado? Desfrute de bom conforto, pois Cristo, ao
morrer, já venceu a morte. Ele já cortou o cadeado do pecado,
onde jaz a força da morte. Cristo já arrancou os dentes deste leão.
Ele já arrancou o aguilhão da morte, para que ela não ferroe a
consciência do crente. “Onde estão, ó morte, as tuas pragas?”
(Os 13.14). Cristo desarmou a morte e tirou todas as suas ar­
mas mortais; de modo que, ainda quando fira, não pode picar
um crente. Cristo extraiu a peçonha da morte, e mais ainda, fez
da morte uma amiga. “Cristo despojou o aguilhão da morte e
quebrou seu poder, e agora consuma a abolição do pecado e a
passagem para uma vida melhor.” t54]
Este “cavalo amarelo” (Ap 6.8) carrega um filho de Deus de
sua casa para a casa de seu Pai. A fé dá uma propriedade"celestial;
a morte dá uma posse. Que doce consolação podemos extrair
da crucificação de nosso Senhor! Seu precioso sangue faz a face
pálida da morte de compleição rubra e bela.
O uso final da doutrina do sacramento consiste em advertir
o pecador não arrependido.
Este é um lado escuro da nuvem a todas as pessoas profanas
que vivem e morrem no pecado. Elas não têm parte no sangue
[54] Mortis aculeum retudit Christus, et vim infregit, iamquefitpeccati abolitio, et ad
vitam meliorem transitio.
86

CONSOLAÇÃO PARA OS CRENTES E ADVERTÊNCIAS PARA OS INCRÉDULOS
de Cristo. Sua condição será pior do que se Cristo não morresse!
Cristo, que é a pedra ímã que atrai os eleitos ao céu, será a pedra
de moinho que afundará os perversos no mais profundo inferno.
Há uma companhia de pecadores que desconsidera o sangue
de Cristo e jura por ele; saibam os tais que este sangue há de
clamar contra eles. Têm de sentir a mesma ira que Cristo sentiu
na cruz; e porque não podem suportá-la imediatamente, terão
de suportá-la por toda a eternidade (2Ts 1.9). Tão inconcebivel-
mente torturante será isto, que os condenados não sabem como
suportá-lo e nem mesmo como evitá-lo.
Os pecadores não creem nisto até ser tarde demais. A tou­
peira é cega durante toda sua vida; contudo, no dizer de Plínio,
ela começa a ver quando morre: “Ao morrer, o homem começa
a abrir os olhos que estiveram fechados enquanto vivia.”1551 Os
perversos, enquanto vivem, são cegados pelo ouro deste mundo
(2Co 4.4). Mas quando estão morrendo, os olhos de sua cons­
ciência começarão a abrir-se e verão a ira de Deus, chamejante
diante de seus olhos; essa visão será um doloroso prólogo a uma
eterna tragédia.
[55] Óculos incipit aperire moriendo quos clausos habuit vivendo.
87

\ cki \ no skxiior
I h o r n a s W a t s o n
I 11< a n u s \ \ ; n•'i a 1 e M í l>1 m u - ;n> i | i - - o v \ e i .1 ( e i a d> > S ( •!111< u' o > n n > u m s c r i n à i >
\ |s| \ el. HUI e s p e lh o ! |I 1 I ! H,! 1 Cel| i e]l Ipl H UIOs < > S;|l\ ,H |i H' ( jlli lios s 111 )'! 11 11 M l, 11
l |v;i 11| I ! I; I! i s | II < ’! I - ! |,| ljll.il Ml >s .lllllli 'HMimi . I < I < e IIIII V I "-11111 ll i| V i lu plorm
i elesU.ll . I . " r [l| II K IM l 11 \ 1 ' ' Hprotl | M MUI m m ,'lplVl lllçài > ' l.i ( I ‘IH i || > Sei li II U
i i •-! i11uilara seii a m o r tunto j h 1 < > 1). ih t r m o i . a :h> p o r 'cim irn >s n.i i<■ lio-
i ' '11 H•!ü l< > i < >111 ui!111'UMiH » e s I;! t 'I a ;i —] 11 m i;i
I )i. ,/ u i / Iv * l , . I ’ i i M i l i i i l i i ! < > I ’ u i 11; i 11 1 !i ii m i i iu i I 1 1 h •' >li >p u al
S e m m a r v. ( > ra i id 1 í.ij> i< I1 st.idos ! im li».
" N o | >fi í ;u io (|ii'' i-m t h iIí a< "■ lia uiia - ' desta i >bra. 1 In >n i.im Watson i! i / < ji ii ■
a ( cia d o Senhor iie\ c ser iau ai ada c o m a m a u a lta i i a c i v i k ia | >elos e re ii i es
A ra/ão ('■ i|iic (| i i;n a Io partilhamos , Io pão. ■ i|o \ mlio c como v partilhasse-
ii io' um f r u t o i Ia A r v o r e d a V i d a . I- -m - |n • i | i i c i i o l i \ n > i r a a j l i d a r \ i >eê a e n te n ­
d e r o <pie e a ( V ia d o S e n h o r , m u s o ip m e m u i t o m a m i m p o r t a n t e irá
a11i í i . i - l i i a r c c c l ) õ - l a c o m u m a fc \ c r d a d c i r a . i p i c tra p a b e n e f í c i o s à M i a a lm a
- / ),///.a / / /v,/,. | >a>tor da ( íc caitM i Ir l ’i atei I H c i o r m c i I ( 1 im cli.
( a r K I i a d ( K ca i isit le. ( A , 1 . i ; u l i o 1 mdos.
1 lio m a s \\ Htson foi u m d os c'( ri t o r o n i a u 1 idos c p o p u la ia •' i a 11 rc <>s pi in-
t ai ms in p leses. 1. st. pei p u a io c u ia nos |e\ a ao i orai. à o. ao ei a a ic da ( cia do
S e n h o r , cs n m i dai a lo <• < ■< a ii n m a n d o nossa n a i fiança e coii\ i r r ã o na m o r t e
de ( 'rist o p a ra a nossa sa 1\ ação. D e p o is de e\ pl ic n r | >or < pu ■ de\ e m os te r e m
a lta e s tim a o <pm ( 'r is to íe / p o r tu>s e m sua m o r t e . W a t s o n nos e n > m a a
i o iiio i ios p r e p a r a r p a ra [ ia r l le ip a r da ( e i a , c o m o p a ra des) ru t a r d e s te m o ­
m e n t o e m I ple a IVCel le m o s e M l l l o o b t e r l l l l l c re s c e n te e d u r a d o u r o b e n e fí­
cio e o n ro ra jU ! nei 1 to da ( Cia .
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