sem que dissesse coisa alguma.
— O Nel foi embora, Raquel. Para sempre.
Nós nos abraçamos. Chorei, chorei, chorei! Só então eu vi, na luz do corredor,
a figura do Marcelo. Estava lá, as mãos caídas ao longo do corpo.
— A família dele me avisou. Lembrei que você não tinha telefone, Raquel.
Fiz que sim, chorando. Fui me vestir. Papai sabia o quanto estar junto do Nel
pela última vez era importante para mim, e nos levou de carro. Fomos para o
velório.
Durante toda a noite, e mesmo no dia seguinte, eu e Marcelo não trocamos
mais que algumas palavras. Ele me apoiou, de leve, quando seguimos o caixão
fechado. Em casos de aids a pessoa é enterrada em caixão lacrado. Dei o adeus
final, atirando uma flor e um montinho de terra.
De tão esgotada, não podia fazer mais nada. Nem falar nem chorar. Peguei
um táxi com o dinheiro que papai me deixou — uma extravagância na nossa
situação financeira — e voltei para meu quarto. Fiquei dois dias sem ir à escola.
Quando cheguei, Marcelo me procurou. Tinha um recado de dona Mariana.
Queria nos ver. Fomos juntos, com o mesmo sentimento de dor. Às vezes ele me
olhava, magoado pelo meu silêncio. Mas eu não conseguia conversar.
Dona Mariana queria nos presentear com algumas lembranças do Nel. Ganhei
uma foto, um chaveiro e uma gôndola de metal, que tocava música. (Uma
lembrança da Itália que ele ganhara no aniversário. Adorava a música da
gôndola e até agora, quando eu ouço, lembro dele!) Marcelo recebeu um suéter
cor de mel, um carrinho verde, antigo, com todas as peças conservadas — uma
antiguidade, que fora do pai de Nel. Escolhemos também alguns livros. Dona
Mariana, muito abatida, disse que iria mudar de lá. Viver com a mãe. Nós nos
abraçamos. Prometi visitá-la sempre.
Andamos, eu e o Marcelo. Tudo parecia vazio. Ter estado na casa do Nel tinha
ampliado a sensação de ausência. Porque ele não estava lá, e a falta de sua
presença acentuava a sensação de que nunca mais o veria. Paramos na esquina,
perto da casa de Marcelo.
Ele me encarou, com ar sofrido. Senti que ia se despedir. Então, eu
compreendi. Se me despedisse, talvez nunca mais voltássemos a ter aquela
proximidade de antes. Como se estivesse baixando a cortina no final de uma peça
de teatro. Tudo que a gente tinha vivido, toda a dor e todo o sentimento, seria
passado. Seria deixado para trás. Simplesmente porque eu era tímida, e tinha
vergonha de expressar meus sentimentos. No entanto, eu precisava dele. Ah,
como precisava dele! Tomei coragem.
— Espere, Marcelo.
— Que foi?
Falei depressa. Pus tudo pra fora, engasguei com as palavras. Expliquei que, se
ele tinha a impressão de que eu estava chocada por ele ser filho de uma
empregada doméstica, era bobagem. Pelo contrário, achava bonito ver o quanto
ele estudava para ter uma chance. Na verdade, meus pais também sofriam com
dificuldades. E certas pessoas, que se exibem tanto, às vezes têm menos ainda.
Como a família da Cíntia, que mora em um quarto e sala: pai, mãe e quatro
filhos.