o calor de um corpo, a ternura ou o hábito. Alguns, muitas vezes sem o saber,
sofriam por estar colocados fora da amizade dos homens, de já não poderem
comunicar-se com eles pelos meios normais da amizade, que são as cartas, os
trens e os navios. Outros, mais raros, como Tarrou, talvez, tinham desejado a
reunião com qualquer coisa que não podiam definir mas que lhes parecia o único
bem desejável. E, à falta de outro nome, chamavam-lhe, às vezes, paz.
Rieux continuava a andar. À medida que avançava, a multidão crescia à
sua volta, a confusão aumentava e parecia -lhe que os subúrbios que queria
alcançar recuavam. Pouco a pouco, fundia-se nesse grande corpo ululante, cujo
grito ele compreendia cada vez melhor, esse grito que, por um lado, pelo menos,
era seu grito. Sim, todos tinham sofrido juntos, tanto na carne quanto na alma,
um vazio difícil, um exílio sem remédio e uma sede jamais satisfeita. Entre esses
amontoados de mortos, as sirenes das ambulâncias, os avisos do que se
convencionou chamar destino, o tropel impaciente do medo e a revolta terrível de
seu coração, não tinha parado de correr um grande rumor que punha d e
sobreaviso esses seres aterrados, dizendo-lhes que era preciso encontrarem sua
verdadeira pátria. Para todos eles, a verdadeira pátria encontrava-se para além
dos muros desta cidade sufocada. Ela estava nas matas perfumadas das colinas,
no mar, nos países livres e no peso do amor. E era para ela, era para a felicidade,
que eles queriam voltar, afastando-se do resto com repulsa.
Quanto ao sentido que podiam ter esse exílio e esse desejo de reunião,
Rieux nada sabia. Caminhando sempre, comprimido de todos o s lados,
interpelado, chegava, pouco a pouco, às ruas menos apinhadas e pensava que
não era importante que essas coisas tivessem um sentido ou não, mas que é
preciso ver apenas a resposta dada à esperança dos homens.
Ele sabia agora qual era essa resposta e a compreendia melhor nas
primeiras ruas dos subúrbios, quase desertas. Aqueles que, cientes do pouco que
eram, tinham apenas desejado voltar à casa do seu amor, eram por vezes
recompensados. Decerto, alguns^deles continuavam a caminhar na cidade,
solitários, privados do ser que esperavam. Felizes ainda dos que não tinham sido
duas vezes separados, como alguns que, antes da epidemia, não tinham podido
construir, à primeira tentativa, seu amor e tinham cegamente buscado, durante
anos, o difícil acordo que acaba por juntar um ao outro amantes inimigos. Esses
tinham tido, como o próprio Rieux, a leviandade de contar com o tempo: estavam
separados para sempre. Mas outros, como Rambert, que o doutor deixara nessa
mesma manhã, dizendo-lhe: ”Coragem, é agora que é preciso ter razão”, haviam
reencontrado, sem hesitar, o ausente que tinham julgado perdido. Durante algum
tempo, pelo menos, seriam felizes. Sabiam agora que, se há qualquer coisa que se
pode desejar sempre e obter algumas vezes, essa qualquer coisa é a t ernura
humana.
Para todos aqueles, pelo contrário, que se tinham dirigido por cima do
homem a qualquer coisa que nem sequer imaginavam, não houvera resposta.
Tarrou parecia ter alcançado essa paz difícil de que falara, mas só a tinha
encontrado na morte, na hora em que não podia lhe servir para nada. Se outros,
pelo contrário, que Rieux avistava nas soleiras das casas, enlaçados com todas as
suas forças e olhando-se com enlevo, tinham obtido o que queriam, é porque
tinham pedido a única coisa que dependia deles. E Rieux, no momento de entrar
na rua de Grand e de Cottard, pensava que era justo que, vez por outra, pelo
menos, a alegria viesse recompensar os que se contentam com o homem e seu
pobre terrível amor.