38. Em dois milhões de habitantes,quantas mulheres prováveisinterrogam-se no
espelhomedindo o tempo perdidoaté que venha a manhãtrazer leite, jornal e clama.Porém
a essa hora vaziacomo descobrir mulher?Esta cidade do Rio!Tenho tanta palavra
meiga,conheço vozes de bichos,sei os beijos mais violentos,viajei, briguei, aprendi.Estou
cercado de olhos,de mãos, afetos, procuras.Mas se tento comunicar-meo que há é apenas
a noitee uma espantosa solidão.Companheiros, escutai-me!Essa presença
agitadaquerendo romper a noitenão é simplesmente a bruxa.É antes a
confidênciaexalando-se de um homem. JoséE agora, José?A festa acabou,a luz apagou,o
povo sumiu,a noite esfriou,e agora, José?e agora, você?você que é sem nome,que zomba
dos outros,você que faz versos,que ama, protesta?e agora, José? 38
39. Está sem mulher,está sem discurso,está sem carinho,já não pode beber,já não pode
fumar,cuspir já não pode,a noite esfriou,o dia não veio,o bonde não veio,o riso não
veio,não veio a utopiae tudo acaboue tudo fugiue tudo mofou,e agora, José?E agora,
José?Sua doce palavra,seu instante de febre,sua gula e jejum,sua biblioteca,sua lavra de
ouro,seu terno de vidro,sua incoerência,seu ódio – e agora?Com a chave na mãoquer abrir
a porta,não existe porta;quer morrer no mar,mas o mar secou;quer ir para Minas,Minas
não há mais.José, e agora?Se você gritasse,se você gemesse,se você tocassea valsa
vienense,se você dormisse,se você cansasse,se você morresse...Mas você não
morre,você é duro, José!Sozinho no escuroqual bicho-do-mato,sem teogonia,sem parede
nuapara se encostar,sem cavalo pretoque fuja a galope,você marcha, José!José, para
onde? 39
40. A mão sujaMinha mão está suja.Preciso cortá-la.Não adianta lavar.A água está podre.Nem
ensaboar.O sabão é ruim.A mão está suja,suja há muitos anos.A princípio ocultano bolso
da calça,quem o saberia?Gente me chamavana ponta do gesto.Eu seguia, duro.A mão
escondidano corpo espalhavaseu escuro rastro.E vi que era igualusá-la ou guardá-la.O
nojo era um só.Ai, quantas noitesno fundo da casalavei essa mão,poli-a, escovei-a.Cristal
ou diamante,por maior contraste,quisera torná-la,ou mesmo, por fim,uma simples mão
branca,mão limpa de homem,que se pode pegare levar à bocaou prender à nossanum
desses momentosem que dois se confessamsem dizer palavra... 40
41. A mão incurávelabre dedos sujos.E era um sujo vil,não sujo de terra,sujo de carvão,casca
de ferida,suor na camisade quem trabalhou.Era um triste sujofeito de doençae de mortal
desgostona pele enfarada.Não era sujo preto– o preto tão puronuma coisa branca.Era sujo
pardo,pardo, tardo, cardo.Inútil, retera ignóbil mão sujaposta sobre a mesa.Depressa,
cortá-la,fazê-la em pedaçose jogá-la ao mar!Com o tempo, a esperançae seus
maquinismos,outra mão virápura – transparente –colar-se a meu braço. Consideração do
poemaNão rimarei a palavra sonocom a incorrespondente palavra outono.Rimarei com a
palavra carneou qualquer outra, que todas me convêm.As palavras não nascem
amarradas,elas saltam, se beijam, se dissolvem,no céu livre por vezes um desenho,são
puras, largas, autênticas, indevassáveis. 41
42. Uma pedra no meio do caminhoou apenas um rastro, não importa.Estes poetas são meus.
De todo o orgulho,de toda a precisão se incorporamao fatal meu lado esquerdo. Furto a
Viniciussua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.Que Neruda me dê sua
gravatachamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakovski.São todos meus irmãos,
não são jornaisnem deslizar de lancha entre camélias:é toda a minha vida que
joguei.Estes poemas são meus. É minha terrae é ainda mais do que ela. É qualquer
homemao meio-dia em qualquer praça. É a lanternaem qualquer estalagem, se ainda as
há.– Há mortos? há mercados? há doenças?É tudo meu. Ser explosivo, sem fronteiras,por
que falsa mesquinhez me rasgaria?Que se depositem os beijos na face branca, nas
principiantes rugas.O beijo ainda é um sinal, perdido embora,da ausência de
comércio,boiando em tempos sujos.Poeta do finito e da matéria,cantor sem piedade, sim,
sem frágeis lágrimas,boca tão seca, mas ardor tão casto.Dar tudo pela presença dos
longínquos,sentir que há ecos, poucos, mas cristal,não rocha apenas, peixes
circulandosob o navio que leva esta mensagem,e aves de bico longo conferindosua
derrota, e dois ou três faróis,últimos! esperança do mar negro.Essa viagem é mortal, e