JB. 2012!! ! ! ! ! ! 2
É possível aprender a partir da ignorância
O rapaz reconhece que o quadrado construído sobre a diagonal do original é o da área dupla. Deste modo,
Sócrates alega ter conseguido provar que: Aquele que ignora o que quer que seja tem em si opiniões
verdadeiras sobre aquilo que ignora.
Na prática, Sócrates prova que um diálogo ou interrogatório bem conduzido permite que aquele que ignora
venha a conseguir saber, por si mesmo, aquilo que ignorava, mas tinha “esquecido”. Vejamos, então, o que
entende Sócrates por “conhecimento”, por “aprendizagem” e por “reminiscência”.
Conhecimento
Sempre que Sócrates faz uma pergunta a Ménon, pede-lhe que responda em seu próprio nome.
Esta exigência corresponde a uma das características do conhecimento: a coerência consigo mesmo. O
saber tem de ser assumido como tal pelo sujeito. De outro modo, não será possível refutar esse saber
porque não haverá ninguém que responda por ele.
A segunda característica do saber é a consistência, ou a coerência desse saber com outros saberes. Por
outras palavras, o saber não pode apresentar contradições internas nem contradições externas (com
outros saberes que digam respeito ao mesmo assunto). Por exemplo: um quadrado com o dobro de lado
de um outro não pode ser entendido como tendo o dobro da área do primeiro, porque contraria os
saberes sobre o que é um quadrado, sobre o que é o dobro, etc.
Uma vez que a verdade das opiniões decorre da coerência e da consistência do saber, a descoberta de
qualquer delas deve ser compreensível para qualquer sujeito dotado de razão. Esta é a terceira
característica do conhecimento. É esta característica que permite ao escravo concluir, primeiro, que
acha que sabe, depois, que sabe que não sabe e finalmente que é capaz de ficar a saber.
Esta caracterização do conhecimento corresponde a uma verdadeira ruptura com o que vulgarmente se
entendia por “conhecimento” em Atenas, na época de Platão. Para Platão, com efeito, o conhecimento não é
simplesmente um conjunto de informações estabelecidas, fixadas e susceptíveis de serem transmitidas a
outros. Implica também a coerência, a consistência e a compreensibilidade.
A concepção platónica de conhecimento vai influenciar o pensamento ocidental até aos dias de hoje.
Qualquer professor pretende que os alunos se apropriem das informações relevantes e as façam suas, que as
utilizem de forma consistente e que as transmitam de forma compreensível.
Reflexão: No entanto, esta concepção platónica, embora útil em termos práticos na gestão do dia a dia (isto é: ao nível do senso
comum) levanta atualmente sérios problemas filosóficos. A principal crítica dirige-se sobretudo contra a reformulação da
concepção platónica na época moderna (a partir do século XVII). A tese de Descartes é a de que, sendo próprio do ser humano
ser um ser racional (o bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo), tudo o que seja coerente, consistente e compreensível
à razão humana é suscetível de ser aprendido por qualquer ser humano, uma vez que todos são racionais. Não sendo verdade que
isso aconteça na prática, esta teoria deu origem a uma imensa quantidade de “deficiências” que explicariam por que razão
alguns seres racionais não aprendiam tudo o que fosse conhecimento: discalculia, disgrafia, dislexia, disortografia, afasia,
disfasia, atraso mental, etc., etc. Verificando-se ainda que algumas pessoas não aprendiam por não prestarem atenção às coisas,
inventaram-se ainda outras “deficiências”, “disfunções”, etc. relacionadas com “défice de atenção”, “hiperatividade”,
“depressão”, etc., etc. Ora, sendo verdade que existem problemas desta natureza, ainda é mais verdade que a maior parte deles
tem mais origem no erro de conceber o conhecimento dessa forma, do que exclusivamente nas características das pessoas. No
mínimo, temos de admitir que existem formas distintas, igualmente racionais ou próprias de seres humanos, de entender a
realidade, de inteligência das coisas, e ainda que esse entendimento e essa racionalidade não funcionam sem componentes
energéticas ou emocionais que os ativem e lhes dêem sentido. A valorização da razão não tem de implicar o racionalismo, como
forma de entender a razão, por si só, como condição suficiente e necessária para o conhecimento.