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processo interior da digestão, a besteira nos movimentos peristálticos. Razão pela qual o tirano não é
apenas um cabeça de boi, mas de pêra, de couve ou de batata. Alguém nunca é superior ou exterior àquilo
de que ele se aproveita: o tirano institucionaliza a besteira, mas é o primeiro a servir seu sistema, e o
primeiro instituído é sempre um escravo que comanda escravos. Ainda neste caso, como o conceito de erro
daria conta desta unidade de besteira e crueldade, de grotesco e terrificante, que duplica o curso do
mundo? A covardia, a crueldade, a baixeza, a besteira não são simplesmente potências do corpo ou fatos
de caráter e de sociedade, mas estruturas do pensamento como tal. A paisagem do transcendental se
anima; deve-se introduzir aí o lugar do tirano, do escravo e do imbecil - sem que o lugar se assemelhe
àquele que o ocupa e sem que o transcendental seja decalcado sobre as figuras empíricas que ele torna
possíveis. O que nos impede fazer da besteira um problema transcendental é sempre nossa crença nos
postulados da Cogitatio: a besteira sendo apenas uma determinação empírica, remetendo à Psicologia ou à
anedota - pior ainda, à polêmica e às injúrias ¾ e aos livros de tolices como gênero pseudoliterário
particularmente execrável. Mas de quem é a culpa? A culpa não seria inicialmente da Filosofia, que se
deixou convencer pelo conceito de erro, mesmo tendo de buscá-lo em fatos, e em fatos pouco significativos
e bastante arbitrários? A pior literatura faz livros de tolices; mas a melhor foi obcecada pelo problema da
besteira, problema que ela soube conduzir até as portas da Filosofia, dando-lhe sua dimensão cósmica,
enciclopédica e gnoseológica (Flaubert, Baudelaire, Bloy). Teria sido suficiente que a Filosofia tivesse
retomado este problema com seus próprios meios e com a modéstia necessária, considerando que a
besteira nunca é a de outrem, mas, sim, o objeto de uma questão propriamente transcendental: como a
besteira (e não o erro) é possível?
Ela é possível em virtude do liame do pensamento com a individuação. Este liame é muito mais profundo
do que aquele que aparece no Eu penso; ele se tece num campo de intensidade que constitui já a
sensibilidade do sujeito pensante, pois o Eu ou o Eu talvez não sejam mais do que indícios de espécie: a
humanidade como espécie e partes. Sem dúvida, a espécie passou ao estado implícito no homem; deste
modo, Eu, como forma, pode servir de princípio universal à recognição e à representação, enquanto as
formas específicas explícitas são apenas reconhecidas por ele, e a especificação é apenas a regra de um dos
elementos da representação. O Eu não é, pois, uma espécie, mas, mais que isto, pois ele contém
implicitamente o que os gêneros e as espécies desenvolvem explicitamente, a saber, o devir representado
da forma. O destino deles é comum, Eudoxo e Epistemon. A individuação, ao contrário, nada tem a ver
com a especificação, mesmo prolongada. Não só ela difere, por natureza, de toda especificação, mas, como
veremos, a torna possível e a precede. Ela consiste em campos de fatores intensivos fluentes que nem
mesmo tomam a forma do Eu nem do Eu. A individuação como tal, operando sob todas as formas, não é
separável de um fundo puro que ela faz com que surja e arraste consigo. É difícil descrever este fundo e,
ao mesmo tempo, o terror e a atração que ele suscita. Revolver o fundo é a mais perigosa ocupação, mas é
também a mais tentadora nos momentos de estupor de uma vontade obtusa. Com efeito, com o indivíduo,
este fundo sobe à superfície e, todavia, não toma forma ou figura. Entretanto, ele está aí, fixando-nos, sem
olhos. O indivíduo se distingue dele, mas ele não se distingue do indivíduo, continuando a esposar o que
dele se divorcia. Ele é o indeterminado, mas enquanto continua a cingir a determinação, como a terra o
faz com o sapato. Ora, os animais, por suas formas explícitas, são de algum modo premunidos contra esse
fundo. O mesmo não acontece com o Eu e o Eu, minados pelos campos de individuação que os trabalham,
sem defesa contra uma elevação do fundo que lhes estende seu espelho disforme ou deformante e em que
todas as formas agora pensadas se dissolvem. A besteira não é o fundo, nem o indivíduo, mas a relação em
que a individuação eleva o fundo sem poder dar-lhe forma (ele se eleva através do Eu, penetrando o mais
profundamente na possibilidade do pensamento, constituindo o não-reconhecido de toda recognição).
Todas as determinações se tomam cruéis e más, sendo apreendidas tão-somente por um pensamento que
as contempla e as inventa, esfoladas, separadas de sua forma viva, em vias de flutuar sobre este fundo
morno. Tudo se toma violência sobre este fundo passivo, ataque sobre este fundo digestivo. Aí se opera o
sabá da besteira e da maldade. Talvez seja esta a origem da melancolia que pesa sobre as mais belas
figuras do homem: o pressentimento de uma hediondez própria do rosto humano, de uma elevação da
besteira, de uma deformação no mal, de uma reflexão na loucura. Com efeito, do ponto de vista da
filosofia da natureza, a loucura surge no ponto em que o indivíduo se reflete neste fundo livre e, por
conseguinte, a estupidez na estupidez, a crueldade na crueldade e assim por diante, até não poder mais
suportar-se. "Então, uma faculdade piedosa se desenvolve em seu espírito, a de ver a besteira e não mais