ixi já estava de pé no lado de fora da uk'a. Sabia
que ela preparava a primeira refeigáo do dia,
normalmente composta de mingau de akobá,
usuktd e wixik'a, Também poderia ter melancia,
abacaxi, manga - dependia da época do ano.
O céu ainda estava cheio de kasoptas. O kaxi
ainda estava longe de aparecer. Fazia parte da
tradiçäo munduruku acompanhar o caminho do
kaxi pelo céu.
Acordar muito cedo, tomar o primeiro
banho no cabitutu e fazer a refeiçäo matinal
era uma sequéncia natural que se repetia todo
dia. Manhuari perguntou para sua ixi qual o
significado desse ritual
-É assim mesmo, filho. Quando vocé crescer, vai
entender: o banho matinal é para tirar da gente as
coisas ruins que a noite pode trazer. Além disso,
repetir as mesmas agóes sempre nos ajuda a ficar
S que podem nos surpreender -
com um riso nos labios
Manhuari sorria também, mas náo entendia
direito aquilo que sua ixi dizia. Acreditava nela
esperava crescer. Deixava as dúvidas para os
Pensando neles, correu até o cabitutu para tomar
banho.
Um estranho jexeyxey
O pai de Manhuari, um grande cagador
munduruku, convocou os homens da aldeia para
uma conversa. Contou que havia sonhado com
uma jakora enorme. Ela veio ao seu encontro,
mas, em vez de atacá aos seus pés
como se desejasse
Esse jexeyxey o deixou um pouco confuso
pois sabia que a jakora é um animal feroz e sua
presença no jexeyxey era motivo de preocup:
Todos ficaram atentos a narrativ
Resolveram que ouviriam a opiniáo do pajé,
aquele que interpreta je s. O velho chegou de
mansinho, sentou-se num pequeno banco e ouviu
com atençäo tudo o que Ihe foi contado. Náo
emitiu nenhuma opiniäo. Ao final da história,
tirou de sua bolsa o pó do fumo e o langou para
alto, esperando que o kabido mostrasse a direçäo
do jexeyxe
Todos ficaram paralisados diante daquele
léncio era absoluto. Em seguida o velho
edisse:
ey & um bom sinal. Sinal de que
teremos um tempo de paz e tranquilidade. Tudo
caminha bem, e o espírito de nosso cacique
em sintonia com o Universo. Cagada será boa.
Podem ir cagar, mas nao se esquegam de que no:
tradigäo nos lembra de abater apenas os seres da
natureza suficientes para alimentar nosso corpo.
Ninguém deve sacrificar um baripnia por esporte
ou por prazer. Cada ser é nosso baripnia e devemos
sempre respeitá-lo.
Dizendo isso, o homem voltou para sua uk'a.
Acaminho da kü
Após a suculenta refeiçäo, a ixi de Manhuari
tratou de preparar seus ictius para levar à kü.
Dentro deles colocou um facáo, algumas cui:
uma bilha com 4gua. O caminho era longo e era
preciso nao esquecer nada antes de partir, pois
náo teria como voltar para buscar. Manhuari
também organizou suas coisas: o arco ea flecha,
um pequeno ictiu em que colocaria as fruta
iria colher pelo caminho e uma faca que ha
ganho de seu irmáo mais velho,
Momentos depois já estavam todos prontos
para ir para a kil, Era possivel vislumbrar o claro
do kaxi que se mostrava, revelando que aquele
seria um dia muito quente. Para Manhuari e
seus amigos, isso näo representava nenhum
problema, pois sabiam que havia um cabitutu
onde poderiam se refrescar novamente.
Muitas mogas também iriam, acompanhando
ss mulheres mais velhas, para aprender a magia
da floresta. As meninas estavam se preparando
para o ritual da maioridade, quando teriam que
asumir outros compromissos na comunidade
casar-se, construir uma uk'a, com a ajuda do
marido, aprender a cuidar do próprio corpo,
extrair da árvore o perfume que iriam usar no
dia do casamento, aprender a preparar alimentos
deliciosos para alimentar os filhos que nasceriam
principalmente, aprender a conversar com
espíritos da floresta. A eles recorreriam sempre
Manhuari e seus oborés sabiam disso tudo.
Sabiam também que mais tarde seria com eles.
Hoje queriam apenas se divertir.
Após algumas horas de caminhada, chegaram à
kil e combinaram o que poderiam fazer enquanto
ajudavam as ixis nas tarefas do dia. Essas tarefas
consistiam em carregar água para todos, encher
os ictius de musuktá, buscar lenha no mato,
enquanto as meninas se ocupavam em coletar
frutas e sementes em outro canto da mata. Isso
tudo faziam com muita rapidez, pois queriam
mesmo era se embrenhar na mata e brincar
A caca à jakora
Kaxi logo propós que fossem brincar de caga
ecagador. Todos toparam imediatamente.
Escolheram o próprio Kaxi para ser a jakora e
quem seriam os cagadores. Depois, deram um
tempo para que o menino-jakora se escondes
mais preparavam seus arcos e
Passado algum tempo, os meninos-cacadores
partiram atrás do menino-jakora. Todo cuidado
era pouco. O jogo consistia em caçar sem
cagado. Ou seja, tinham que aprisionar o animal
acuado t
que fazer companhia à jakora na próxima vez,
Claro que todo mundo queria demonstrar sua
destreza de cagador e por isso levavam aquela
brincadeira muito a sério!
Depois dos primeiros passos, os meninos-
separaram. Cada um foi para um
canto. Caminharam sozinhos sem ser vistos pelo
animal. E assim fizeram por longo tempo sem
ter nenhum sinal do menino-jakora, que tinha s
escondido muito bem entre as árvores. De nada
adiantou procurar, procurar e procurar.
Quando os meninos-cacadores se
reencontraram, ficaram pasmos. Ninguém havia
encontrado o menino-jakora Kaxi. Jamais aquilo
havia acontecido! Para onde ele teria id
Ninguém soube responder aquela pergunta.
Será que ele havia se perdido na mata? Será que
algum animal de verdade o havia pegado? O que
eles deveriam fazer?
Manhuari sugeriu que contassem ás mulheres,
que estavam na casa de farinha, que Kaxi tinha
desaparecido. A tradiçäo dizia que € melhor que
todo mundo saiba do desaparecimento para
que a procura seja mais intensa. Todos foram ao
encontro das mulheres... mas, para espanto
todos, elas também náo estavam lé. A apreens
tomou conta deles,
Os meninos já haviam comegado a choramingar
quando saíram de trás das grandes árvores todas
as mulheres com um sorriso no rosto. Elas deram
altas gargalhadas ao ver a cara assustada dos
meninos. Eles náo entenderam nada no comego,
mas, depois que viram que uma delas trazia
consigo o “menino-jakora”, perceberam que lhes
tinham pregado uma pega.
Depois do susto, todos foram almogar na casa
de farinha e riram a valer da criatividade das
mulheres,
De volta à aldeia
O caminho de volta foi só alegria. As mulheres
nao pararam de rir um só minuto pelo que
haviam feito. Os meninos também riram uns do
outros, e tudo acabou numa grande brincadeira.
Manhuari guardou aquilo na memória, pois
poderia repetir aquele tipo de jogo com outros
amigos. Ele poderia, inclusive, combinar ante:
om as mulheres. Seria muito divertido!
Eles nem notaram o passar do tempo. Logo
avistaram a aldeia e apressaram o passo. Estavam
suados e precisavam dar um mergulho nas ägua
geladas do cabitutu. Seria muito refrescante!
Antes, porém, teriam que deixar na uk'a os
ictius carregados de farinha, frutas, legumes e
sementes.
'orrendo, cada menino levou ictius para sua
uk'a. Logo se reuniram novamente no cabitutu,
onde iniciaram uma gostosa brincadeira de pega-
pega, para esperar os cacadores retornar com o
resultado da cagada. Enquanto isso, as mulheres
repartiam com toda a comunidade os produtos
colhidos ou produzidos naquele dia: frutas,
sementes, farinha de musuktá, farinha de tapioca
e beiju.
Chegam os caçadores
caçadores chegaram pelo brago do cabitutu e
encontraram os meninos no meio da brincadeira.
Estes aproveitaram para mergulhar na parte
funda do rio e puxar as pernas das bekitkits para
baix
Logo em seguida saíram da á
rumou para sua uk’a, para repartir o produto
da cagada. A tradiçäo dizia que cada cagador só
poderia levar para uk'a o que pudesse carregar
Ele nao poderia matar mais animais do que «
que coubessem em sua bolsa. Além disso, cada
caçador tinha que empunhar seu arco e flecha. Era
assim, e náo podia ser diferente. Isso garantia que
suficiente para sua
familia e náo desperdicasse alimento matando
outros animais da floresta sem necessidade.
Manhuarie seus amigos foram atrás de seus
pais e baripnias. Todos iriam para uk'a preparar
o jantar depois de um dia de muito trabalho,
jogos e brincadeiras. Era o momento de todo
reunirem para uma deliciosa refeigáo capaz de
unir as familias em uk'a. A tradigäo dizia que,
assim fosse feito, cada membro contribuiria para
manter o céu suspenso.
Ahora da histéria
A noite jé se apresentava quando Manhuari
sentou no banco em formato de jakora que ha
ganho de seu tio, Já sentia sono e de vez em
quando bocejava. Ficou ali quietinho esperando
a cuia com carne de bio, recheada de farinha
de musuktá. Enquanto todos se alimentavam,
conversavam sobre o dia de cada um.
A ixi de Manhuari contou sobre o susto qui
haviam dado nas bekitkits. Todos riram muito,
inclusive Manhuari. O pai falou sobre a cagada e
sobre os perigos que passaram & caga da bio.
Após arefeigáo, a família de Manhuari come
a se organizar para dormir. Era costume
munduruku dormir cedo, já que a noite havia sido
criada para descansar e sonhar com o mundo dos
ancestrais. Assim, quando a noite se aprc
brindo o mundo com seu manto escuro, o povo
Munduruku se refugia no sossego de sua uk'a para
entrar no universo dos jexeyxt
Antes, porém, de o sono cair
avó comegava um canto muito antigo
que iria contar uma história da origem do mundo.
No tempo em que o tempo ainda náo existia,
apareceu um homem que sabia de tudo.
E, levado pela cantilena daquele sábio, o menino
Manhuari foi visitar os baripnias do mundo dos
Mas isso já é outra história
akoba: banana
baripnia: parente (usado para pes
floresta)
bekitkit: crianç:
bio: anta
borduna: pedago de madeira usado como arma
cabitutu: igarapé (córrego)
casa de farinha: local onde a mandioca € processada
etransformada em farinha para consumo diário. Ela
écomposta por um grande forno onde a farinha é
torrada,
ictiu: ce
ixi: mi
jexeyxey: sonho
jakora: onga
kaxi: Sol
kabido: vento
kasopta: estrela
mandioca
amigo
nao indigena
batata-doce
SOBRE OS MUNDURUKU
é muito
corpo todo coma
tinta extraída do jenipapo, assim como a cor das
formigas. É uma forma de se identificar para os
outros povos inimigos daqueles tempos antigos.
O povo Munduruku se identifica como Wuy jugu,
que quer dizer “gente verdadeira”. Essa é a forma
primeira v
naquela regiäo no século X ó entraram
em contato edade brasileira no com:
do século XX. Esse encontro fez o povo se adaptar
‘umes que nao eram seus, como
roupa industrializada, morar num mesmo lugar
para sempre (eles gostavam de andar, viajar para
outros lugares), comer comida industrializada,
entre outras coisas. Também comegaram a ser
vitimas de doengas que Ihes eram desconhecidas
antigamente. Isso fez muitos deles morrer ou
ficar muito necessitados de cuidados médicos
especializados.
Jém disso, tiveram que aprender a falar
portugués para poder se comunicar com as
pessoas das cidades. A lingua que eles falam é
originária do tupi e ainda hoje a preservam.
Dizem os pesquisadores que os Munduruku
chegaram a ter uma populaçäo de 40 mil pessoas
e formavam um grande exército amedrontador
Com o passar do tempo, os Munduruku
deixaram de guerrear, e sua populaçäo, hoje, é de
aproximadamente 13 mil pessoas.
É um povo que continua guerreiro, corajoso, e
que cuida do próprio território para que náo seja
invadido. Já montou escolas dentro das aldeias,
para evitar estudar na cidade. Isso ajuda a manter
sua cultura e seu modo de viver.
As aldeias desse povo säo atendidas pela
Fundacáo Nacional do Índio (Funai), respon:
pelo cuidado de todos os povos indígenas do
que auxilia os indígenas em quaisquer
ssidades: satide, educaçäo, produçäo de
alimentos e preservagäo da cultura munduruku.
Este livro retrata um dia típico de uma
bekitkit munduruku, desde quando acorda até
o momento de ir dormir. Observe que é um dia
bastante ocupado, pois a maneira de aprender
fora da escola
afazeres cotidiano:
eoutra, se aprende a cagar, pescar, subir em
árvores, nadar nos cabitutus, caminhar pela mata
Tudo isso é importante para os Munduruku,
porque, mais tarde, a bekitkit vai uti
esses conhecimentos para viver melhor em
comunidade.
DANIEL
MUNDURUKI
Escitorindigena com quarenta € ol ios publicados, graduado em
Flosofa tem Icencatur em História ePSiooga.Douor em Eduardo
pela Universidade de Sao Palo (USP). ietor presidente do Instituto UK.
~Casa dos Saberes Ancestras Comendador da Order do Mérto Cultura da
Presidencia da República desde 2008. Conseihelr consultivo do Museu do
{no do Ro de Janeiro Membro da Academia de Letras de Lorena, Recebeu
diversos prémiosno Brasileno entero entre els Prémio abut o Premio
da Academia Brasa de Letras, oPrémio rico Vanuc Mendes (otorgado
peloConselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(QP); Prémio Tolerancia (otorgado pea Unesco) Muto eses vos
receberamo slo Altamente Re da Fundagáo Nacional do Livro
Infantile Juvenil FNL)
MAURICIO
NEGRO
lus designer ráfico estrado temas ancestral mitológicos
ambient ético e multas vezes relacionados diversidad cultural
trasera, Tem particadode diversos catálogos exposes, no Bras
empaísescomo Alemanha Argentina, China, olómba, Corea, Esolqua
Ila, Japa e México. Reebeuprämies como PémioNoma apo,
2008 fo finalista do C Picture Book Festal (Corea, 200), White Ravens
(Alemania, 2000 XSi (Port Alegre, 2012).Jreebeuo elo Altamente
Recomendävel pela FL uso diversa obras de autres indigenas. €
Daniel Munduruku tem uma long pace, Écoordenador editora da
eg Muiaqu da Global Editora e membro do Conslho Dora So