Universidade do Estado da Bahia - UNEB
Departamento de Ciências Humanas - Campus I
Letras - Língua Portuguesa e Literaturas
Programa de Iniciação científica
Orientadora: Profª. Dra. Elizabeth Gonzaga de Lima.
Discente: Júlia Miranda.
Viver é narrar. Se a narração está em
crise, então é a vida que está em crise. Mas que crise é esta?Como uma sociedade cada vez mais informada
pode perder a capacidade de narrar?
“A VIDA NARRADA”
Objetivo do capítulo: refletir sobre a fragmentação do tempo e o impacto das
tecnologias digitais na capacidade de construir narrativas significativas.
A crise da narração é analisada à luz
de referências filosóficas, artísticas
e literárias, tais como Walter
Benjamin, Jean-Paul Sartre, Peter
Handke, Marcel Proust, Hannah
Arendt, dentre outros. Além disso,
Han realiza uma fina costura de sua
investigação com instigantes
insights sobre psicanálise, política e
teoria social.
“A felicidade não é um acontecimento pontual. Ela tem uma
longa cauda que se estende até o passado. [...] A forma de sua
aparição não é o brilho, mas o pós-brilho.” (p. 25)
A felicidade é concebida como um fenômeno que conecta
passado e presente por meio da redenção.
O passado não desaparece, mas permanece atuante por
meio da narrativa.
a crise narrativa desintegra o tempo em momentos
desconexos. A FELICIDADE E A REDENÇÃO NA NARRATIVA A partir de Heidegger, Han aponta que o ser humano não é momentâneo, mas
se define pela continuidade entre nascimento e morte. Entretanto, na
contemporaneidade, essa continuidade é ameaçada pela falta de ancoragem
narrativa, pela predominância das "realidades momentâneas" e pela
transformação das experiências em dados acumulativos, como exemplificado
nas plataformas digitais.
A crise da narração na modernidade, revelando como a
fragmentação do tempo e a efemeridade da
experiência contemporânea impactam a construção de
sentido e a continuidade da existência humana.
“Uma atrofia muscular aflige a vida na modernidade. Ela é
ameaçada pela desintegração do tempo.” (p. 26)
A modernidade é marcada pela perda de continuidade
temporal.
A "ex-tensão da existência" é substituída por
fragmentos momentâneos. A ATROFIA TEMPORAL E A
FRAGMENTAÇÃO DA VIDA
“A continuidade do ser é garantida pela continuidade do eu. A ‘constância do eu’
forma o eixo central do tempo que deve nos proteger da fragmentação do tempo.”
(p. 26)
Han também dialoga com Proust, especialmente na ideia de que o narrador tem a
tarefa de resgatar o passado para preservar a continuidade da vida. Em contraste,
as plataformas digitais fragmentam o tempo ao privilegiar informações efêmeras e
aditivas.
Além disso, Han critica a substituição da narração reflexiva pelo self-tracking, onde
o autoconhecimento é reduzido a números e dados coletados por sensores
(algoritmo). Essa prática, em vez de promover uma compreensão profunda do "eu",
apenas reforça o controle e a exploração do indivíduo no que o autor chama de
"panóptico digital". O autor exemplifica com fenômenos como o Snapchat e o Instagram, cujas
"histórias" não possuem uma duração narrativa autêntica, mas se limitam a
"snaps" de momentos isolados que desaparecem rapidamente. A NARRATIVA E O EU
“Somente a narração nos ajuda a ter
autoconhecimento: eu tenho que narrar a mim
mesmo. Os números, porém, nada narram.” (p. 30)
O self-tracking reduz o sujeito a dados e elimina a
necessidade de narrativa.
A transformação da experiência humana em
registros mensuráveis promove a desumanização.
“autoconhecimento através dos números” (p.30)O SELF-TRACKING E O FIM DA REFLEXÃO Fenômenos como "stories" e "selfies" exemplificam a desconexão
narrativa da modernidade.
“Plataformas digitais não são um meio de narração, mas de
informação.”
A MEMÓRIA NARRATIVA X O BANCO DE DADOS Por fim, Han destaca que a memória narrativa
é essencialmente seletiva e interpretativa,
enquanto os dispositivos digitais buscam um
registro completo e transparente da vida,
eliminando a possibilidade de recordação
significativa. “Nossa memória é narrativa,
enquanto o armazenamento digital
é aditivo e cumulativo.” (p. 29)Episódio de Black Mirror (The Entire History of You):
Ilustra a distopia de uma sociedade que elimina a
recordação e a narrativa em favor de um registro
mecânico e completo. “Já imaginou a possibilidade de controlarmos nossa
memória? No episódio “Toda a Sua História” isso é
possível. Mas ela vai além do “só” apagar. A questão
aqui é bem mais complexa.
Cada humano tem uma espécie de chip implantado
atrás da orelha, por ele você acessa os dados da sua
memória, analisa interações, vê emoções, e descobre
tudo o que lhe é (in)conveniente. [...]”
“A VIDA DESNUDA”
O capítulo “A Vida Desnuda”, Byung-Chul Han
reflete sobre a crise existencial da
modernidade por meio da figura de Antoine
Roquentin, protagonista de A Náusea, de
Sartre. Han utiliza a experiência de Roquentin
para ilustrar a condição contemporânea de
desenraizamento e a incapacidade de
atribuir significado à vida em um mundo
desprovido de narrativa.
Reflexão sobre como a narração atua
como estratégia para superar a pura
facticidade e o vazio existencial.
“O mundo é náusea: ‘A Náusea não está em mim: sinto-a ali na
parede, nos suspensórios, por todo lado ao redor de mim.’” (p.
32)
A náusea surge da pura facticidade do mundo, despido
de sentido.
A vida aparece como desprovida de finalidade ou
propósito: “O mundo não significa nada para ele. Ele
também não compreende o mundo.” (p. 32)
O protagonista reconhece que apenas a narração pode
transformar eventos desconexos em uma experiência
significativa. “Para que o mais banal dos acontecimentos
se torne uma aventura, é preciso e basta que nos
ponhamos a narrá-lo”. O MONÓTONO - O CLICHÊ - O
NÃO AUTÊNTICO
A digitalização intensifica a crise da vida narrada,
substituindo a narrativa pela informação. Redes sociais e
selfies simbolizam essa transformação, criando uma
existência fragmentada e sobrecarregada de dados. A
pornografia da transparência, segundo Han, elimina o
mistério e o velamento que são essenciais à narração,
tornando a informação "obscena" no sentido de ser
completamente exposta e sem contexto. Han também explora como a narração atua como uma estratégia existencial para superar o
vazio do ser-no-mundo. A narrativa não apenas organiza os acontecimentos em uma ordem
significativa, mas também cria um ritmo que conecta as experiências, permitindo ao
indivíduo sentir-se “em casa” no mundo. A vida sem narrativa é meramente aditiva: “Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão.” VIVER - NARRAR
A informação é “pornográfica” porque é completamente exposta, sem
velamento ou mistério.
“Somente o velamento, o véu que se tece em torno das coisas, é
eloquente e narrativo.” (p. 35)
A narrativa transforma o ser-no-mundo em um “estar-em-casa”:
“A percepção em forma de narrativa é encantadora. Tudo se junta em
uma ordem bem formada.” (p. 34)
Peter Handke: “Ele sentiu tudo aquilo que ia a seu encontro, em sequência,
como se fossem partes de uma narrativa.” (p. 34)
A narrativa organiza eventos desconexos em uma totalidade
significativa.
Han abre o capítulo com a história de Konrad, personagem de
Paul Maar que ilustra a perda da capacidade narrativa. Konrad
não consegue transformar fatos em histórias, limitando-se a
relatar eventos de maneira linear e desconexa.
Em contraposição, seus pais e irmã criam uma "comunidade
narrativa" ao compartilhar histórias que dão sentido ao cotidiano,
exemplificando como a narração une as pessoas e organiza a
experiência. "Konrad não sabe narrar porque seu mundo consiste em fatos. Em vez de narrá-los,
ele apenas os lista." (p. 39) “O DESENCANTAMENTO DO MUNDO”
Em "Desencantamento do Mundo", Chul Han explora como a
modernidade despojou o mundo de magia, narrativa e
encanto, reduzindo-o à mera facticidade e à causalidade
mecânica. Ele apresenta um contraste entre um mundo
narrativo, cheio de significado, e um mundo desencantado,
caracterizado pela informação fragmentada e desprovida
de conexão interna.ILUSÃO "Na mémoire involontaire, dois momentos
separados de tempo se vinculam e se condensam
em um aromático cristal de tempo." (p. 38) SUPERFICIALIDADE
A modernidade digital intensifica esse processo: informações não têm extensão ou
profundidade, mas apenas acumulam dados fragmentados que desestruturam a
memória narrativa. Redes sociais, selfies e comunicação transparente eliminam o
mistério e a tensão dialética necessária para criar narrativas autênticas."A aura é o brilho que eleva o mundo para além de sua pura facticidade, o véu misterioso
que envolve as coisas." (p. 42)
"Atualmente, percebemos o mundo principalmente em termos de informações. As
informações [...] desauritizam e desencantam o mundo." (p. 43)
O desencantamento, segundo Han, se manifesta na redução
do mundo à causalidade e na perda da aura — conceito de
Walter Benjamin que representa o brilho mágico das coisas e
seu poder de despertar emoções e histórias.
Han também alerta para o impacto do desencantamento na linguagem. Palavras
perdem sua aura quando se tornam apenas instrumentos de informação. Ao perder
sua distância e mistério, a linguagem deixa de narrar.
"Hoje, as crianças foram transformadas em seres digitais. A experiência mágica
do mundo está se atrofiado. As crianças caçam informações como ovos de
Páscoa digitais." (p.43)
"A falta de interioridade narrativa distingue as fotografias das imagens da
recordação. As fotografias retratam o dado sem internalizá-lo.(p.43)
"A narratividade se opõe à
facticidade cronológica. " (p.43)
"O desencantamento do mundo significa, sobretudo que a
relaçãocomno mundo é reduzida à causalidade." (p.42)
"A linguagem perde completamente sua aura quando se
transforma em informação. A informação representa o
estágiode declínio absoluto da linguagem" (p.44)
ANCORAGEM
(ESTAR EM CASA)
A narração estabiliza a vida. E a vida moderna é, precisamente, uma vida instável: vivemos
em meio ao bombardeio de informações que, ao contrário da narração, são fragmentárias
e, portanto, desestabilizadoras. Vivemos, além disso, segundo a lógica da eficiência, lógica
incompatível com o espírito da narração, já que este exige um estado de ânimo calmo e
contemplativo. Contudo, não possuímos mais a disposição para ouvir, e isso porque
vivemos em constante estado de tensão espiritual, faltando-nos justamente a distensão
psíquica para escutar atentamente. Mergulhados no mundo interno do nosso smartphone,
não temos mais paciência para o outro. Por isso a vida moderna é, segundo o autor, uma
vida desnarrativizada, uma vida que fragmenta e isola, na contramão de uma vida narrada,
que vincula e cria uma identidade e uma comunidade. CONCLUSÃO
“somente a narração desvela o futuro, somente ela nos dá esperança” (p. 41).
REFERÊNCIAS COSTA, David. A crise das narrativas é também a crise do sujeito em
comunidade. MATRIZes, v. 18, n. 2, p. 315-320, 2024.
HAN, Byung-Chul. A crise da narração. Editora Vozes, 2023.