GVcasos - Vol. 12, n. especial – Tecnologia Social 2022

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About This Presentation

É com muita satisfação que a GVcasos traz a público esta sua primeira Edição Especial Temática. Ela é resultado da chamada de trabalhos que publicamos no final de 2021, convidando autores a produzirem casos que enfocassem tecnologias sociais, um tema tão relevante para a sociedade, mas aind...


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GVcasos ¹ Revista Brasileira de Casos de Ensino em Administração FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. A-1 | ISSN 2179-135X 1
ARTIGO
Submissão: 25/08/2022 | Aprovação: 29/08/2022
DOI: https://doi.org/10.12660/gvcasosv12nespeciala1
APRESENTAÇÃO: TECNOLOGIAS SOCIAIS
PARA TEMPOS MAIS DO QUE URGENTES
Presentation: Social technologies for more than
urgent times
Marlei Pozzebon¹ | [email protected]
Ana Clara Aparecida Alves de Souza² | [email protected]
Fabio Prado Saldanha³ | [email protected]
¹FGV EAESP – São Paulo, SP e HEC Montreal – Montreal, Canadá
²Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul – Porto Alegre, RS
³Concordia University e HEC Montreal – Montreal, Canadá
RESUMO
A proposta desta edição especial da GVcasos é trazer para o repertório dos casos de ensino em Administração
o conceito de tecnologia social, que ainda é relativamente desconhecido no mundo acadêmico brasileiro
e latino-americano. Os editores convidados da edição discutem o conceito e seu status atual no contexto
das transformações sociais brasileiras, e apresentam os seis casos que compõem a edição.
Palavras-chave: Tecnologia social, casos para ensino.
ABSTRACT
This special edition of GVcasos aims to bring to the repertoire of teaching cases in Administration the
concept of social technology, which is still relatively unknown in the Brazilian and Latin American academic
world. The edition’s guest editors discuss the concept and its current status in the context of Brazilian social
transformations, and also present the six cases that make up the edition.
Keywords: Social technology, teaching cases.

ARTIGO | APRESENTA??O: TECNOLOGIAS SOCIAIS PARA TEMPOS MAIS DO QUE URGENTES
Marlei Pozzebon | Ana Clara Aparecida Alves de Souza | Fabio Prado Saldanha FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. A-1 | ISSN 2179-135X 2
Apesar de carregar uma longa e frutuosa trajetória histórica, sobretudo junto aos movimentos
sociais e da economia solidaria, o conceito de tecnologia social ainda é desconhecido por uma
parte do mundo acadêmico brasileiro e latino-americano. Um dos objetivos desta edição especial
da GVcasos – Revista Brasileira de Casos de Ensino em Administração é trazer para o repertório
dos casos de ensino exemplos concretos da aplicação desse conceito.
A chamada que deu origem a esta publicação foi inspirada e construída a partir de
princípios dessa tecnologia, incluindo o convite à participação coletiva em um ateliê virtual
aberto, onde se discutiram o formato dos casos de ensino e suas amplas possibilidades. O
ateliê foi realizado pelos editores convidados e contou com vasta participação e curiosidade.
Essa proposta teve grande apoio da Associação Brasileira de Ensino, Pesquisa e Extensão em
Tecnologia Social (Abepets), da qual os editores convidados são cofundadores. Nesta curta
introdução, após uma breve discussão sobre o conceito de tecnologia social e seu status atual
no contexto das transformações sociais brasileiras, apresentaremos brevemente os seis casos
selecionados para este número.
Embora existam várias definições e abordagens, consideramos, nesta chamada, o conceito
adotado pelo Instituto de Tecnologia Social, o qual entende tecnologia social como um
conjunto de técnicas e/ou metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na
interação com a população e apropriadas por ela, que representam alternativas de solução
para inclusão social e melhoria das condições de vida. O conceito de tecnologia social tem
uma longa trajetória de construção (Pozzebon & Fontenelle, 2018), tendo sido influenciado
pelo movimento anticolonialista de Ghandi, nos anos 1930; pelas tradições das tecnologias
apropriadas e democráticas das décadas de 1970 a 1990; e, presentemente, sendo repensado por
um dos seus teóricos mais importantes, Renato Dagnino, como parte da plataforma cognitiva
de lançamento da economia solidária, denominada tecnociência solidária (Dagnino, 2020).
Um dos aspectos importantes no debate sobre tecnologias sociais é que existem diversas
interpretações do que elas representam e carregam como valores. Autores que revisaram
o conjunto de publicações acadêmicas e profissionais sobre o tema das tecnologias sociais
apresentam as diferentes formas segundo as quais estas são entendidas e construídas. Em uma
recente revisão bibliográfica realizada no desenvolvimento da sua tese de doutorado, Bignetti
(2022) usa os resultados de Duque e Valadão (2017) para apresentar duas abordagens principais
de tecnologias sociais usadas no Brasil. A primeira interpreta uma tecnologia social como
uma construção social na qual essa tecnologia é desenvolvida e reinterpretada (ou seja, sua
reconfiguração sociotécnica) em conjunto com a comunidade local, valorizando saberes e
recursos locais sem necessariamente negligenciar avanços tecnológicos externos (Souza &
Pozzebon, 2020). O trabalho de Dagnino teve grande influência para o amadurecimento teórico
dessa primeira visão (Dagnino, 2009; Dagnino, Brandão, & Novaes, 2004), profundamente
influenciada pelos fundamentos da economia solidaria. A segunda abordagem interpreta uma
tecnologia social como uma tecnologia para o social, ou seja, programas, metodologias e artefatos
que são implementados em uma comunidade com o propósito de melhorar as condições de
vida e acesso a bens e serviços localmente. Nessa segunda visão, cujo importante proponente

ARTIGO | APRESENTA??O: TECNOLOGIAS SOCIAIS PARA TEMPOS MAIS DO QUE URGENTES
Marlei Pozzebon | Ana Clara Aparecida Alves de Souza | Fabio Prado Saldanha FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. A-1 | ISSN 2179-135X 3
é Bava (2004), busca-se sobretudo a geração de tecnologias de baixo custo apropriadas aos
contextos locais (Bignetti, 2022).
As tecnologias sociais ocupam um papel importante em um “outro desenvolvimento” de
países como o Brasil, com grandes desigualdades sociais que alcançaram maiores proporções a
partir da pandemia da Covid-19. Um outro desenvolvimento representa a busca de novas lógicas
de produção, consumo e gestão, inspiradas nas redes da economia solidária e popular (Singer,
2002), onde o bem-estar e novas formas de geração/distribuição de renda para a população, o
acesso à moradia, saúde, trabalho e educação dignos, assim como o respeito pela natureza, estão
no centro no processo. No contexto da crise política e social que vivemos atualmente, com uma
grande parte da população vivendo em condições de precariedade e fome, a possibilidade de
desenvolvimento e reaplicação de tecnologias sociais emerge como um elemento relevante e
promissor. Trata-se de alternativas e estratégias que conversam com premissas centrais de um
outro desenvolvimento, como soberania alimentar, agroecologia familiar, antirracismo, respeito
pela diversidade e interseccionalidades e pelos povos originários (Kothari, Salleh, Escobar,
Demaria, & Acosta, 2019).
Neste número especial, as duas abordagens descritas anteriormente – tecnologia social
como construção social e tecnologia para o social – estão presentes nos seis casos selecionados.
O primeiro caso foi redigido por Bruna de Morais Holanda (EAESP FGV) e Claudio
Nunes Leal (USP) e se intitula “Discutindo tecnologia social na periferia: o caso do Jardim
Verônia Esporte Clube”. Os autores narram a história do Jardim Verônia Esporte Clube, uma
organização da sociedade civil localizada na periferia da cidade de São Paulo que oferece aos
moradores do bairro atividades culturais e esportivas, mas que encontra grandes dificuldades
para manter e executar suas atividades. Situado em um contexto de vulnerabilidade, o caso
apresenta questões, desafios e reflexões evocando a realidade de diferentes tecnologias sociais
operando nas periferias brasileiras.
O segundo caso tem como título “As cisternas de placa no Semiárido brasileiro: dilemas
da transformação de uma tecnologia social em política pública”. Os autores Cíntia Melchiori
(EAESP FGV), Juliana Rodrigues (Aalto University – Finlândia/EAESP FGV) e Cássio Aoqui
(EACH-USP) discutem a questão do acesso à água entre a população mais vulnerável no
Semiárido brasileiro. Nesse caso, os autores apresentam dilemas enfrentados na tentativa de
escalar tecnologias sociais baseadas em atuação comunitária e participativa, visando um impacto
significativo na formulação de políticas públicas.
No terceiro caso – intitulado “De moeda social a criptomoeda: os dilemas da emancipação
tecnológica do e-Dinheiro” –, os autores Bruno Sanches (EAESP FGV), Luiz Faria (UFRJ), Pedro
Gonçalves Neto (UFRJ) e Marcos Ferreira (UFRJ) apresentam a trajetória da Rede Brasileira
de Bancos Comunitários, uma entidade comunitária brasileira gestora da moeda social que se
tornou digital conhecida como e-Dinheiro. O caso descreve a luta dessa entidade para romper
com a dependência tecnológica que a deixou subjugada à empresa de tecnologia que forneceu
e administrava seu software e promove uma discussão sobre as novas oportunidades que estão
se apresentando no horizonte, sobretudo a possibilidade de desenvolvimento de criptomoedas.

ARTIGO | APRESENTA??O: TECNOLOGIAS SOCIAIS PARA TEMPOS MAIS DO QUE URGENTES
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O quarto caso tem como título “Formação de jovens em empreendedorismo rural: adaptando
uma tecnologia social para a comunidade LGBTQIA+”, cujos autores são Ana Clara Souza
(IFRS), Marlei Pozzebon (FGV EAESP/HEC Montreal), Fabio Prado Saldanha (Concordia
University/HEC Montreal) e Aurigele Alves (ADEL). O foco desse caso localiza-se na cidade
de Pentecoste, Ceará, onde a Agência de Desenvolvimento Econômico Local (ADEL) vem
atuando desde 2007 a partir de projetos e metodologias que agregam a tecnologia social como
fundamento. No projeto PJER Diversidade, a ADEL promove uma formação empreendedora
no âmbito do Programa Jovem Empreendedor Rural voltada a jovens que fazem parte da
comunidade LGBTQIA+. O caso discorre sobre os desafios encontrados por esses jovens para
concluir uma formação e empreender no município de Pentecoste e região.
No quinto caso – “Propósito ou escala? A encruzilhada dos negócios socioambientais” –,
os autores Ana Luiza Terra Costa Mathias (FEA-USP) e Alfredo Coli Jr (FEA-USP) exploram
as oportunidades e desafios de um negócio de impacto socioambiental. Abordando temas
como preservação do bioma brasileiro, participação comunitária ao impacto socioambiental,
vulnerabilidade socioeconômica e sustentabilidade financeira, os autores ilustram o dilema
enfrentado por uma empresa que recebe uma tentadora proposta comercial.
O sexto e último caso deste volume especial – “'El arte de transformar': o caso da D1 no Peru”
– foi redigido por Camille Bourdeau Ginchereau (HEC Montreal), Natalia Aguilar Delgado
(HEC Montreal) e Sonia Tello-Rozas (UQAM), no contexto de um projeto desenvolvido no
Canadá envolvendo entidades peruanas, brasileiras e canadenses. O caso descreve a história
de uma metodologia inclusiva peruana que preconiza o desenvolvimento humano combinado
com a excelência técnica e artística, por meio da inclusão de jovens pela dança. Após uma série
de mudanças organizacionais e a expansão de novas atividades comerciais, a organização se
questiona como mobilizar as comunidades e como seguir tendo o impacto social que um dia teve.
Se o conceito de tecnologia social ainda permanece desconhecido e obscuro por uma
parte do mundo acadêmico brasileiro e latino-americano, esperamos que, com a leitura dos
casos deste volume especial, os leitores passem a enxergá-lo como um fenômeno essencialmente
relevante e contemporâneo. Por meio da leitura desses casos, os leitores serão capazes de perceber
que as iniciativas apresentadas – os negócios, os programas, as metodologias e as técnicas
– compõem a essência do que denominamos tecnologia social. Seu desenvolvimento, suas
aplicações e reinterpretações inserem-se em uma lógica de busca de novos valores e formas
de produção, consumo e gestão. Ou seja, um outro paradigma de conceber o que chamamos
de desenvolvimento, uma pauta política de melhoria das condições de vida em momentos tão
urgentes pelos quais passamos atualmente.
Boa leitura!

ARTIGO | APRESENTA??O: TECNOLOGIAS SOCIAIS PARA TEMPOS MAIS DO QUE URGENTES
Marlei Pozzebon | Ana Clara Aparecida Alves de Souza | Fabio Prado Saldanha FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. A-1 | ISSN 2179-135X 5
REFERÊNCIAS
Bava, S. C. (2004). Tecnologia social e desenvolvimento local. In: De Paulo, A.; Mello, C. J.; Nascimento
Filho, L. P. & Koracakis, T. (Eds) Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de
Janeiro: Fundação Banco do Brasik, p.103-116.
Bignetti, B. (2022). Reaplicação de tecnologias com fundamento social: Uma análise à luz da teoria ator-
rede (Tese de doutorado, PPGA da Escola de Negócios da PUC RS).
Dagnino, R. (Ed.). (2009). Tecnologia social: Ferramenta para construir outra sociedade. Campinas, SP:
Instituto de Geociências da UNICAMP.
Dagnino, R. (2020). Tecnociência solidária: Um manual estratégico (2
a
ed.). Marília, SP: Lutas
Anticapital.
Dagnino, R., Brandão, F., & Novaes, H. T. (2004). Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia
social. In: Tecnologia social: Uma estratégia para o desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco
do Brasil.
Duque, T. O., & Valadão, J. D. A. D. (2017). Abordagens teóricas de tecnologia social no Brasil. Revista
Pensamento Contemporâneo em Administração, 11(5), 1-19.
Kothari, A., Salleh, A., Escobar, A., Demaria, F., & Acosta, A. (2019). Pluriverse: A post-development
dictionary. New Delhi: Tulika Books.
Pozzebon, M., & Fontenelle, I. A. (2018). Fostering the post-development debate: The Latin American
concept of tecnologia social. Third World Quarterly, 39(9), 1750-1769.
Singer, P. (2002). Introdução à economia solidária. São Paulo, SP: Editora Fundação Perseu Abramo.
Souza, A. C. A. A. D., & Pozzebon, M. (2020). Práticas e mecanismos de uma tecnologia social:
Proposição de um modelo a partir de uma experiência no semiárido. Organizações & Sociedade, 27,
231-254.

GVcasos ¹ Revista Brasileira de Casos de Ensino em Administração FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 11 | ISSN 2179-135X 1
CASO
Submissão: 22/02/2022 | Aprovação: 15/06/2022
DOI: https://doi.org/10.12660/gvcasosv12nespecialc11
DISCUTINDO TECNOLOGIA SOCIAL NA PERIFERIA:
O CASO DO JARDIM VERÔNIA ESPORTE CLUBE
Discussing “tecnologia social”1 on the periphery: The case
of Jardim Verônia Sport Club
Bruna de Morais Holanda¹ | [email protected]
Claudio Nunes Leal² | [email protected]
¹Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV – São Paulo, SP
²Universidade de São Paulo – São Paulo, SP
RESUMO
O caso narra a história do Jardim Verônia Esporte Clube, uma organização da sociedade civil localizada
no bairro de Ermelino Matarazzo, na periferia da cidade de São Paulo, que trabalha oferecendo aos
moradores do bairro atividades culturais e esportivas. Ele destaca os trabalhos desenvolvidos pela entidade
e as dificuldades pelas quais ela vem passando para a manutenção de sua sede e da execução das
atividades. O caso é indicado especialmente para disciplinas de pós-graduação de Inovação Social que
busquem promover a compreensão aprofundada a respeito do conceito de tecnologia social e seu papel
na transformação social de contextos vulneráveis, como é o caso das periferias brasileiras, e reflexões
acerca de seus desafios e sua permanência.
Palavras-chave: Gestão social, tecnologia social, organizações da sociedade civil, Terceiro Setor, periferia.
ABSTRACT
The case tells the story of Jardim Verônia Sport Club, a civil society organization located in Ermelino
Matarazzo neighborhood, in the outskirts of the city of São Paulo, which works offering the neighborhood
residents cultural and sports activities. It highlights the work developed by the entity and the difficulties it
has been going through to maintain its headquarters and carry out its activities. The case is recommended
especially for post-graduate courses in social innovation that seek to promote deep understanding about
the concept of “tecnologia social” and its role in the social transformation of vulnerable contexts, such as
the Brazilian peripheries, and reflections about its challenges and its permanence.
Keywords: Social Management, Tecnologia Social, Civil Society Organizations, Third Sector, Periphery.
1 Optamos por não traduzir o conceito de tecnologia social seguindo Pozzebon e Fontenelle (2018), considerando: (i) a
inexistência de um termo, na língua inglesa, que tenha o mesmo significado, e (ii) a reafirmação da “tecnologia social” como um
conceito genuinamente latino-americano.

CASO | DISCUTINDO TECNOLOGIA SOCIAL NA PERIFERIA: O CASO DO JARDIM VER?NIA ESPORTE CLUBE
Bruna de Morais Holanda | Claudio Nunes Leal FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 11 | ISSN 2179-135X 2
ENTRE A TRADIÇÃO E A CONTINUIDADE DE UM PROPÓSITO
O Sr. Osório precisa de ajuda! Ele é o presidente do Jardim Verônia Esporte Clube, uma
organização da sociedade civil localizada na periferia da Zona Leste da cidade de São Paulo,
que tem como propósito levar cultura, lazer e esporte ao bairro no qual se localiza, Ermelino
Matarazzo. Atualmente, a organização é constrangida não só pela dificuldade de gerir
financeiramente suas atividades, como também pela burocracia para regularizar sua sede
social. Além disso, há uma crescente preocupação com o futuro uso do patrimônio na sucessão
não planejada de sua diretoria, ao passo que se busca manter os projetos sociais que atendem
parcela importante da comunidade onde está inserida.
A união de um grupo de moradores do bairro de Ermelino Matarazzo formou a associação
do Jardim Verônia Esporte Clube – ou apenas Verônia -, entidade constituída com o objetivo de
oferecer ao seu público atividades educativas, culturais e esportivas. Ao longo de um caminho
de 60 anos, o Verônia acolheu demandas sociais da comunidade, multiplicando suas ações
pela mão dupla de beneficiários/voluntários, um esforço originado na cultura dos mutirões de
ocupação por habitação.
A união de esforços de seus moradores mais engajados proporcionou a construção de um
prédio com valor imobiliário na faixa de 1,2 milhão de reais, em valores atuais. A sexagenária
associação só tornou possível a criação de seu espaço físico após sucessivas organizações de festas,
vendas de rifas e de uniformes do seu time de futebol para subsidiar seus gastos e atender a
demanda social dentro de seu alcance. Sim! O Jardim Verônia Esporte Clube é uma organização
formada por um time tradicional de futebol de várzea da periferia de São Paulo e, até hoje,
mantém suas atividades esportivas iniciadas desde sua fundação; concomitantemente, oferece
aulas e eventos culturais com frequência variável.
O principal sonho dos idealizadores da sede social do Jardim Verônia sempre foi oferecer,
gratuitamente, educação, lazer e cultura a todos para além das rodas de samba à beira do campo
de futebol nos finais de semana.
Uma preponderante preocupação com o futuro da entidade foi manifestada em assembleia
geral recente, nas palavras do presidente, o Sr. Osório: “Onde estão os recursos para manter a
estrutura de nossa sede social e as atividades em funcionamento? Como nosso patrimônio [da
entidade] será ocupado, e por quem, na nossa ausência?”.
Mesmo com a sólida relação de seus membros com a comunidade ao seu redor, atualmente
a instituição percebe-se numa encruzilhada entre alugar parte do prédio para arcar com as
despesas de manutenção ou prosseguir ocupando o espaço apenas com a oferta de atividades
culturais gratuitas. O aumento da pressão sobre o orçamento após a conclusão e utilização
da edificação impôs uma nova realidade à gestão das contas. Nesse cenário, o Sr. Osório
precisa de ajuda!

CASO | DISCUTINDO TECNOLOGIA SOCIAL NA PERIFERIA: O CASO DO JARDIM VER?NIA ESPORTE CLUBE
Bruna de Morais Holanda | Claudio Nunes Leal FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 11 | ISSN 2179-135X 3
AUSÊNCIA DE DIREITOS E O ESPAÇO URBANO: GEOGRAFIA E
HISTÓRIA DE ERMELINO MATARAZZO
Diante do nível de exclusão social iniciada na lógica de ocupação do território metropolitano
de São Paulo, onde a exploração imobiliária reservou para si as regiões mais bem estruturadas e
com maior oferta de aparelhos do Estado, a população sem patrimônio ou condições de pagar
aluguel foi submetida aos espaços ocupados em moradias irregulares. Como consequência dessa
desigualdade, tem-se a maior dificuldade dessa população em acessar serviços públicos, educação,
saúde, mobilidade urbana, emprego etc. (Miyhara, 2017; Nery, 2005; Rufino & Pereira, 2011).
O crescimento da cidade sem planejamento urbano foi predominante nas periferias da Zona
Leste, região onde se formou o Jardim Verônia, no bairro de Ermelino Matarazzo.
Além disso, existe outra importante questão que se faz necessária para compreender a
realidade das periferias, referente ao recorte racial dos socialmente excluídos. O surgimento do
subúrbio está imbricado com as políticas de branqueamento da população na segunda metade
do século XIX, quando se buscou afastar negros e pobres dos centros urbanos (Schucman, 2012).
Moradores mais antigos do bairro relatam que o poder público não permitia a habitação de
negros no bairro da Penha, mais próximo ao centro da cidade. Restavam a essa população regiões
mais afastadas, como os bairros de Cangaíba, Ermelino Matarazzo e Itaquera (Dantas, 2015).
O bairro de Ermelino Matarazzo surgiu com o objetivo de abrigar os funcionários das
Indústrias Matarazzo na década de 1920, permanecendo em maior parte com habitações
regulares até a intensificação do processo migratório, preponderantemente, o fluxo nordestino
do início da década de 1970 (Dantas, 2013a). Durante esse processo, o espaço físico da “antiga
Matarazzo” foi distribuído em muitas outras empresas multinacionais, sobretudo pela indústria
metal-mecânico-química.
Na esteira desse processo de crescimento econômico desenvolvimentista da época,
intensificaram-se as ocupações ao redor das fábricas. Assim, o bairro foi tomando forma: ao
longo das décadas de 1960 a 1990, surgiu um conglomerado de moradias precárias e de ruas
estreitas sem praças de convivência e sem passeios públicos (calçadas), na luta por moradia com
possibilidade de emprego tanto em Ermelino Matarazzo como no bairro vizinho, de Cumbica,
em Guarulhos.
Somado ao fato de as moradias serem fruto de ocupações de grandes áreas nos morros
inabitados, as atividades recreativas do bairro também se desenvolveram em espaços irregulares:
campos de futebol criados à margem do Rio Tietê eram a única alternativa de lazer. Era
necessário apenas ter uma bola e um terreno plano para haver um ambiente social. Mesmo
destituídos de status de elite original do futebol, os excluídos conquistaram, ao seu modo, um
direito para além da moradia.
Atualmente, comparado a outros bairros da periferia de São Paulo, Ermelino Matarazzo
possui indicadores sociais que o colocam em um destaque negativo. De acordo com a Rede
Nossa São Paulo (https://www.redesocialdecidades.org.br/br/SP/sao-paulo/regiao/ermelino-
matarazzo), em 2016, a taxa de homicídios era de 8,31 para cada 100 mil habitantes (taxa mediana

CASO | DISCUTINDO TECNOLOGIA SOCIAL NA PERIFERIA: O CASO DO JARDIM VER?NIA ESPORTE CLUBE
Bruna de Morais Holanda | Claudio Nunes Leal FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 11 | ISSN 2179-135X 4
em relação ao município); a taxa de fecundidade em jovens com até 19 anos era de 10,73 para
cada 100 nascidos vivos (taxa mediana); e a taxa de mortalidade infantil, de 11,35 para cada
mil nascidos vivos. O pior nível comparado aos demais bairros é, contudo, o de desemprego,
11,60% da população do bairro, empatados com outros seis bairros na última posição.
NASCE A ASSOCIAÇÃO DOS EXCLUÍDOS: EM BUSCA DE UM
INTERESSE COMUM, O DIREITO SOCIAL
Foi nesse ambiente de profunda escassez que se formou o Jardim Verônia Esporte Clube.
Fundado em 26 de novembro de 1962, originalmente como time de futebol de várzea, resultou
na organização da sociedade civil que assumiu papel preponderante na vazão aos anseios por
esporte, cultura e lazer da população mais vulnerável do bairro.
A entidade é legitimada pela profunda relação com a comunidade à qual pertence,
abrangendo a participação de diferentes gerações de famílias do bairro, que se estende para além
das atividades esportivas. O Jardim Verônia Esporte Clube passou a atuar de modo efetivo nas
causas sociais de seus moradores. Com a crescente pressão demográfica, o Verônia incorporou
outras atividades como educação, cultura, lazer e inclusive doação de alimentos, além do time
de futebol. Como resultado de um processo intuitivo de consciência e participação, a associação
estendeu seu escopo para atender necessidades comuns entre seus pares de mais de três gerações.
Esse engajamento social tem suas origens no gosto pelo trabalho comunitário proveniente
dos mutirões, como também pelo sentimento de “unidade dos excluídos”, uma vez que possuíam
a marca discriminatória produzida no “olhar de cima para baixo” dos indivíduos habitantes de
moradias regulares do mesmo bairro: apelidados como os “pés vermelhos”, os moradores dessa
região eram assim reconhecidos por percorrem ruas enlameadas em dias de chuva no seu trajeto
de casa ao transporte público mais rápido na época, o trem. Carregavam seus sapatos nas mãos e
lavavam os pés em uma torneira da estação do trem (atual Comendador Ermelino Matarazzo)
para depois poderem calçá-los e seguir ao trabalho. O Sr. Osório faz questão de afirmar que
“isso se mantém até hoje aí, e a gente leva esse nome com o maior prazer, fundamos até o nosso
Bloco [de carnaval] de Pé Vermelho, porque faz parte da nossa história” (Dantas, 2013b).
O PROPÓSITO POSTO EM PRÁTICA: DO ESPONTÂNEO AO FORMAL
Depois de um longo período de 42 anos, foi somente em 27 de janeiro de 2005 que o Jardim
Verônia Esporte Clube formalizou seu estatuto social. Foi nesse momento, em sua primeira
Assembleia Geral Extraordinária, que o Sr. Osório foi eleito presidente da organização, junto
com o Sr. Valter, o tesoureiro.
Após uma parceria realizada na mesma época com a Secretaria de Desenvolvimento
Social do Estado de São Paulo, determinante para a constituição estatutária do Jardim Verônia
Esporte Clube, foi obtido um subsídio para a compra de um terreno com um pequeno sobrado

CASO | DISCUTINDO TECNOLOGIA SOCIAL NA PERIFERIA: O CASO DO JARDIM VER?NIA ESPORTE CLUBE
Bruna de Morais Holanda | Claudio Nunes Leal FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 11 | ISSN 2179-135X 5
anexo, cobiçado por seus integrantes havia muitos anos. Foi nesse local que múltiplos esforços
colocaram em marcha a construção de uma sede social para desenvolver atividades recreativas,
educacionais e culturais ofertadas à população local.
O prédio possui dois pavimentos, com copa e dois banheiros, áreas amplas com capacidade
para até 250 pessoas em cada andar. O piso térreo ainda não está acabado, e é utilizado como
estacionamento, as vagas são alugadas para moradores próximos, o que gera uma renda extra que
contribui nas despesas de manutenção da entidade. O trabalho administrativo é quase sempre
distribuído entre os diretores. A maior parte das demais funções é desempenhada por voluntários:
um auxiliar administrativo, alguns profissionais de manutenção predial da comunidade, e, em
certos casos, são organizados mutirões para reformas maiores. A contratação de serviços de
terceiros é muito pontual, somente quando há projetos em andamento.
O prédio construído é o principal diferencial em relação à maioria dos times de futebol de
várzea. No geral, as sedes de times da categoria de futebol amador são espaços em bares, onde
se expõem os troféus das conquistas em torneios e se reúne o pessoal ligado à torcida.
ORGANIZAÇÃO DA SEDE SOCIAL: DESENTENDIMENTOS E
MUITO SUOR
Na atual sede do Verônia, além da exposição permanente de um grande número de troféus,
ocorrem eventos como festas juninas, comemorações do Dia das Crianças, entre outras. O
espaço também é oferecido, em parceria, para a Unidade de Saúde Básica (UBS) do bairro,
para o atendimento feito pela equipe multidisciplinar de saúde da família. Segundo afirmam
os profissionais da UBS, “a população não procura o posto de saúde, mas aqui eles vêm”, o
que demonstra o forte vínculo da entidade com questões relacionadas às variadas demandas
da comunidade.
Com a contribuição voluntária de professores moradores do bairro, na sede social
regularmente são ministradas aulas gratuitas de inglês (40 alunos em média) durante um período
de três meses por nível, sendo as inscrições abertas a todas as idades e a qualquer interessado,
independentemente de região residencial.
Uma atividade de grande interesse da diretoria são os incentivos a projetos culturais por
edital. Ainda que esporádicos, alguns obtiveram êxito, como o de Valorização das Iniciativas
Culturais (VAI), edital de fomento à cultura promovido pela Secretaria Municipal de Cultura
de São Paulo, em 2008. A iniciativa consistia na criação da videoteca comunitária do Jardim
Verônia, oferecia empréstimo de um acervo de 200 títulos de filmes a cerca de 400 beneficiários
diretos e indiretos, adotando como critério a qualidade da produção artística, alternativa para
sair do caminho comum do apelo comercial dominado por videolocadoras da região. A proposta
perdeu seu entusiasmo quando expirou o prazo do projeto e, como não previa captação de
outras fontes de recursos para se manter, encerrou as atividades em pouco menos de dois anos.
Outro importante projeto cultural do Jardim Verônia Esporte Clube foi a escolinha de
música. Conduzido voluntariamente por Serginho Madureira, um reconhecido sambista da

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Zona Leste de São Paulo, durante seis anos contou com a participação de cerca de 20 alunos por
turma. Seis desses se mantiveram até o fim do projeto; alguns hoje são professores voluntários,
outros seguiram carreira na música.
O último projeto na área de cultura ofereceu aulas de dança para 24 alunos de idades
variadas, e aulas de música, teoria musical e instrumentos – violão e cavaquinho, com uma
média de 32 alunos nos dois instrumentos, até sua interrupção pelas regras de distanciamento
social devido à pandemia de Covid-19 de 2020. Esse projeto obteve, durante todas as atividades,
interesse e regular frequência dos alunos, resultado que se deve não só à carência de acesso à
cultura dos inscritos nos cursos, mas também à legitimidade exercida pela confiança na imagem
que a entidade representa.
São diferentes gerações das mesmas famílias que participam das atividades oferecidas pelo
Verônia, seja no esporte, na cultura ou em outras iniciativas. Se for dito na comunidade que a
atividade é desenvolvida no Verônia Esporte Clube, por si só, isso já é motivo suficiente para
ser considerada benéfica à população.
Esse mérito se deve ao vigoroso empenho de quatro senhores, o próprio Sr. Osório, o
Sr. Valter, o Sr. Luiz e o “veterano” Sr. Timóteo, que representam o núcleo duro da entidade,
presentes desde a sua fundação, em 1962. Entre tantos debates, por vezes discordantes, esses
dirigentes estão sempre unidos pelo propósito maior que é o trabalho social. Se, até 2005, já
haviam dedicado inúmeras horas de suas vidas ao futebol de várzea, hoje, sua atenção se volta
para a construção e funcionamento da sede. Talvez essa seja a façanha mais audaz, no ponto
de vista de uma conquista de um patrimônio, para além dos troféus do time e de sua estima
identitária vinculada ao futebol.
São esses mesmos senhores que enfrentam os obstáculos permanentes, referentes ao
conflito social da comunidade, com pouca oportunidade de acesso à recreação, lazer e cultura,
ao passo que administram flutuantes demandas orçamentárias para manter seu espaço. Para
tanto, as festas são a mais importante fonte de captação de recursos. Nessas ações, é muito
comum surgirem atritos, pois os diretores fazem com suas próprias mãos a compra, transporte,
armazenamento e venda de bebidas e alimentos comercializados nos encontros festivos. Com
a média de idade acima dos 60 anos, eles carregam escada acima considerável carga/peso, o
que lhes custa não só esforço físico, mas também desgaste emocional.
A PRESSÃO AUMENTA: COMO AFASTAR O DESVIO DE
PROPÓSITO?
Desejosos de que seus esforços de anos não sejam esgotados em sua sucessão, anunciada pelo
avanço de suas idades, esses quatro senhores se incomodam com duas principais questões: a
primeira diz respeito à sustentabilidade da associação e manutenção de suas atividades, visto que
a crescente demanda por projetos sociais para atender a população está longe de ser satisfeita;
outra é relativa à falta de planejamento estratégico para captação e gestão de recursos em longo

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e médio prazos, o que poderá comprometer o caráter social da sede, desviando-a para outras
finalidades alheias ao objetivo para o qual foi idealizada.
Outra questão levantada é a ausência de novos membros, mais jovens, na direção, que
atuem de maneira efetiva e alinhada com os valores da instituição. Dado o caráter tradicional
de respeito pelo trabalho realizado pela diretoria vigente, no jargão popular, “em time que está
ganhando, não se mexe”, não é comum jovens se interessarem em fazer parte da direção ou
conselho do Jardim Verônia Esporte Clube.
Isso também proporciona um certo nível de “vácuo” que estimula a temida entrada de
integrantes perniciosos, ligados a atividades criminosas, numa possível sucessão da diretoria. É
comum, em boa parte dos times de futebol de várzea, a presença de contribuições financeiras
provindas de grupos criminosos, e isso se dá de modo bastante fisiológico nas periferias, onde
o ambiente propicia o convívio contraditório de ambos os lados, da sadia prática esportiva
concomitantemente ao nocivo consumo de drogas alimentado pelo tráfico (Hirata, 2005).
De acordo com os diretores da entidade, há frequentes ofertas de ajuda de contribuições
financeiras por parte de traficantes, desde a fundação do prédio até as instalações recentes. No
entanto, a recusa é enfática: “Se eu pedir dinheiro deles, no final do dia aparece um pacote de 10
mil reais aqui na minha mão, mas eu não peço porque sei que, se isso acontecer, um dia eles vão
dominar a sede social. Não aceitamos dinheiro pra colocar nenhum prego deles na obra, porque
quando a gente não estiver mais aqui [vivos] eles vão pra cima com tudo [se apropriar da sede]”.
A soma das despesas atuais da entidade está em torno de mil reais mensais, com a
manutenção do espaço, dependendo da frequência de uso, podendo chegar a 1,5 mil reais
mensais. Em todas as fases da construção do prédio, foram feitos empréstimos tomados de seus
próprios diretores, por isso ainda resta uma dívida com alguns deles. Além disso, a obra não está
totalmente concluída, havendo mais gastos a serem feitos.
Atualmente, a locação do estacionamento no primeiro piso gera receita para a organização.
Outra fonte de arrecadação são as mensalidades de seus associados que jogam aos domingos,
“o cinquentão”, um grupo de aproximadamente 20 contribuintes, contudo essa atividade foi
interrompida por causa da pandemia.
Em 2017, se cogitou inscrever um projeto para concorrer ao Fundo Canadá Projetos
no Brasil (2017-2018), que previa financiamento para ampliações de obras. No entanto, a
intenção foi frustrada devido à exigência de que a entidade possuísse cadastro no Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), que, por sua vez, exige a prévia
regularização da obra com documentações como Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros
(AVCB) e Licença de Funcionamento da Prefeitura de São Paulo. A mesma limitação se faz
ao acesso de outros fundos, como o Fundo Municipal da Criança e do Adolescente (Fumcad).
Por falta de conhecimento técnico gerencial, a direção da entidade nunca se dedicou a questões
burocráticas para ter acesso a recursos públicos e/ou de fundações empresariais. Por vezes, foram
aceitas contribuições esporádicas de candidatos às vésperas de eleição, interessados apenas no
capital político, dada a capilaridade social que a entidade possui.

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Algumas alternativas foram buscadas no sentido de obter recursos diretos do edital do
Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (ProAC), de 2015. O objetivo do projeto
era oferecer aulas gratuitas à população sobre roteiro, filmagem e edição de documentários,
mas não obteve êxito na escolha realizada pela comissão julgadora.
Tem-se discutido outras alternativas também. Uma delas é alugar o piso inferior para
uma igreja durante um período de cinco anos, opção que não só ofereceria a possibilidade de
concluir as instalações do andar térreo, mas, com os recursos do aluguel, se poderia também
subsidiar outras demandas da sede. No entanto, o funcionamento de uma igreja conflita com
o caráter identitário social e esportivo do Verônia.
Isso posto, os quatro senhores, Osório, Valter, Luiz e Timóteo, buscam ajuda para pôr em
curso um planejamento estratégico de captação de recursos para financiar as atividades culturais,
educacionais e esportivas; doações por meio de incentivos fiscais, editais de incentivos culturais,
vendas de produtos; entre outras parcerias com o setor privado. Eles enfrentam muitas barreiras,
pois essa iniciativa se apresenta de modo bastante restringido pela burocracia, somando-se ao
fato de eles não possuírem domínio técnico em gestão do Terceiro Setor.
O PEDIDO DE AJUDA E A PROPOSIÇÃO DE SOLUÇÕES
O Sr. Osório foi até você, um(a) estudante em Inovação Social, pedir ajuda para resolver os
problemas que o Jardim Verônia Esporte Clube vem enfrentando. Nesse momento, você
lembrou o que já estudou a respeito de tecnologias sociais e chegou à conclusão de que essa
teoria poderia ajudar a elucidar algumas questões centrais para a permanência da entidade.
Considerando isso e os trabalhos de Dagnino (2014), Souza e Pozzebon (2020), e Pozzebon e
Fontenelle (2018), responda:
1. O Jardim Verônia Esporte Clube pode ser considerado promotor de
tecnologia social? Por quê?
2. Quais são os possíveis motivos para o surgimento dos problemas que o
Jardim Verônia Esporte Clube vem enfrentando?
3. Quais soluções você proporia?

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na construção da branquitude paulistana (Tese de doutorado, Universidade de São Paulo).
Souza, A. C. A. A., & Pozzebon, M. (2020). Práticas e mecanismos de uma tecnologia social: Proposição
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254. https://doi.org/10.1590/1984-9270934

GVcasos 1 Revista Brasileira de Casos de Ensino em Administração FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 12 | ISSN 2179-135X 1
CASO
Submissão: 14/03/2022 | Aprovação: 01/06/2022
DOI: https://doi.org/10.12660/gvcasosv12nespecialc12
AS CISTERNAS DE PLACA NO SEMIÁRIDO
BRASILEIRO: DILEMAS DA TRANSFORMAÇÃO DE
UMA TECNOLOGIA SOCIAL EM POLÍTICA PÚBLICA
The cement plate cisterns in the Brazilian semiarid region: dilemmas in the
transformation of a social technology into public policy
Cíntia Melchiori1 | [email protected]
Juliana Rodrigues² | [email protected]
Cássio Aoqui³ | [email protected]
¹Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV – São Paulo, SP, Brasil
²Aalto University – Espoo, Finlândia e Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV – São Paulo, SP, Brasil
³Universidade de São Paulo – São Paulo, SP, Brasil
RESUMO
Assume um novo governo no âmbito federal, e a assessora especial Bete recebe como atribuição a tarefa
de formular uma proposta de criação de um programa para universalizar o acesso à água no Semiárido
brasileiro, entre a população mais vulnerável. Já existe um programa em curso, que tem como base
a tecnologia social das cisternas de placa de cimento, originada em movimentos sociais de base no
Nordeste brasileiro. O caso destaca os dilemas enfrentados na tentativa de escalar tecnologias sociais
baseadas em atuação comunitária e participativa, transformando-as em política pública em um país de
dimensões continentais.
Palavras-chave: Semiárido brasileiro, tecnologia social, política pública.
ABSTRACT
A new government takes over at the federal level and special advisor Bete is assigned the task of formulating
a proposal for the creation of a program to universalize access to water in the Brazilian semi-arid region,
among the most vulnerable population. There is already an ongoing program, which is based on the social
technology of cement plate cisterns, originated in grassroots social movements in the Brazilian Northeast.
The case highlights the dilemmas faced in the attempt to scale social technologies based on community
and participatory action, transforming them into public policy in a country of continental dimensions.
Keywords: Brazilian semi-arid, tecnologia social, public policy.

CASO | AS CISTERNAS DE PLACA NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO: DILEMAS DA TRANSFORMAÇÃO DE UMA TECNOLOGIA SOCIAL EM
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INTRODUÇÃO
Numa tarde chuvosa em meados de janeiro de 2011, a assessora especial Bete
1
, ligada ao núcleo
do novo governo que acabara de assumir a Presidência da República, recebe a atribuição de
coordenar a formulação de uma proposta para a criação de um programa visando universalizar
o acesso à água no Semiárido brasileiro entre a população mais vulnerável. Bete é uma servidora
pública experiente, pertencente ao quadro de servidores concursados do Governo Federal há
mais de 10 anos e com trajetória de atuação em programas sociais.
O novo programa a ser criado, denominado Programa Água para Todos (APT), integrará o
Plano Brasil Sem Miséria (BSM)
2
, uma das principais bandeiras do novo governo, tendo como
objetivo eliminar a pobreza extrema no País até 2014, por meio da integração e articulação de
políticas, programas e ações governamentais. Garantir o acesso à água potável a todas as famílias
em situação de pobreza, em especial às populações pobres do campo na região semiárida do País,
caracterizada por secas históricas, é o grande objetivo do APT e uma promessa de campanha
da recém-empossada presidente Dilma Rousseff.
Ao mesmo tempo, no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS),
especificamente na Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional (Sesan), já havia em
curso um programa financiado pelo Governo Federal e nascido no âmbito da sociedade civil,
denominado Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC). O programa tinha como meta
implementar um milhão de cisternas de placa de cimento no Semiárido brasileiro, uma
tecnologia social utilizada no Nordeste desde a década de 1990, e que tinha como premissa a
mobilização da comunidade para a construção das cisternas e na luta por recursos, envolvendo
um processo pedagógico de engajamento na busca por melhores condições de vida no campo.
Entre 2003 e 2010, durante os governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, haviam
sido construídas 329,5 mil cisternas de placa de cimento pelo P1MC, executadas por meio de
termos de parceria com a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) e organizações da sociedade
civil (OSC) a ela vinculadas.
A missão atribuída a Bete envolvia ouvir não apenas o MDS e sua experiência com o
P1MC como também gestores de outros ministérios e órgãos federais na busca por alternativas
viáveis para expandir o acesso à água potável no Semiárido, tais quais o Ministério da Integração
Nacional (MI), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e o Ministério do Meio Ambiente
(MMA), entre outros órgãos que também atuavam no acesso à água, por meio de alternativas
como barreiros
3
e sistemas de dessalinização
4
.
1 Bete é uma personagem fictícia, criada para os fins pedagógicos propostos pelo caso de ensino.
2 O Plano Brasil Sem Miséria entraria em vigor em 2 de junho de 2011, por meio do Decreto Federal n. 7.942.
3 Pequenos reservatórios subterrâneos e superficiais para captação e armazenamento de água da chuva que visam a atender
à carência de água para produção agrícola e/ou dessedentação de rebanhos.
4 Estação de tratamento da água salobra por meio de processo de osmose inversa para retirada de sais em excesso, tornando
a água própria para consumo humano.

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O compromisso estabelecido pelo governo era o de implementar até 750 mil cisternas
em apenas quatro anos, nos mais de 1.200 municípios que conformam o Semiárido brasileiro,
universalizando o acesso à água pela população vulnerável.
Bete começou a realizar reuniões com os órgãos envolvidos na busca por soluções já
existentes, identificando a capacidade máxima de implementação de cada órgão ao longo
dos próximos quatro anos. Após três semanas de reuniões, a conta, infelizmente, não fechava.
Considerando a capacidade de execução dos órgãos envolvidos, levando em conta entraves
burocráticos, tempo e disponibilidade de parceiros, não seria possível atingir a meta de 750 mil
cisternas até o final de 2014. A capacidade máxima de execução identificada naquele momento
era a implementação de 450 mil cisternas de placa de cimento, porém haviam sido identificadas,
por meio do Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico)
5
, até 750
mil famílias rurais do Semiárido sem acesso a água encanada ou cisterna.
Diante disso, Bete agendou nova reunião e pediu que os gestores dos órgãos pesquisassem
e trouxessem para a reunião novas alternativas que permitissem viabilizar o cumprimento da
meta de governo.
Na reunião, realizada em meados de março, foi trazida à discussão a alternativa de escalar a
implementação de cisternas por meio da introdução das cisternas de polietileno, uma tecnologia
convencional. O polietileno é um plástico resistente, comumente utilizado em caixas d'água.
As cisternas de polietileno tinham grande durabilidade (cerca de 20 anos), já eram utilizadas
em outros países como México e Austrália e poderiam ser instaladas em apenas um dia, por
meio da contratação de empresas para a entrega e instalação.
Embora a inclusão da alternativa das cisternas de polietileno se mostrasse um caminho viável
para o cumprimento da meta de implantação das 750 mil cisternas, Bete e o novo governo tinham
forte ligação política com os movimentos sociais do campo e conheciam o P1MC e seu caráter
pedagógico, mobilizador das comunidades rurais, envolvendo capacitação e geração de renda local.
Nas discussões que se seguiram em torno dessa possibilidade nas semanas seguintes, a
ASA, principal parceiro do MDS na implementação de ações de acesso à água no Semiárido,
já havia sinalizado que era contrária à introdução de tecnologias convencionais, alegando o
caráter desmobilizador da proposta, com consequentes perdas na conscientização e apropriação
pelas comunidades, e questionando aspectos relacionados à qualidade da água e prejuízos
futuros ao meio ambiente. Com relação aos dois últimos aspectos, era questionado se a cisterna
de polietileno não se deformaria com a incidência de altas temperaturas do Semiárido, além
de aquecer a água armazenada. As cisternas de polietileno não poderiam ser consertadas pela
própria comunidade em caso de fissura e representariam um passivo ambiental dentro de 20 anos.
Já era o início de abril, e Bete se via diante de uma encruzilhada: O que recomendar ao
núcleo do novo governo? Incluir parceiros empresariais e as cisternas de polietileno, enfrentando
as consequências políticas e sociais dessa escolha, ou seguir no modelo existente, sabendo que
a meta não seria cumprida?
5 O Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) é uma ação federal, com gestão compartilhada e
descentralizada entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios e porta de entrada para diversos programas sociais.

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O parecer de Bete seria o documento-base para a discussão em reunião prevista para acontecer
dentro de uma semana, reunindo todos os ministros, ministras e presidentes dos órgãos a serem
envolvidos no Programa APT. Bete precisava desenvolver uma proposta antes disso, considerando
a capacidade de implementação dos parceiros e as alternativas discutidas conjuntamente. Era
chegada a hora de sistematizar as discussões em um documento e de se posicionar.
Para embasar cuidadosamente seu posicionamento, era preciso ter clareza do processo social
histórico, do papel da tecnologia social cisterna de placa de cimento na região e compreender
as múltiplas implicações que a decisão de modificar o modelo existente poderia trazer. Bete
começou, então, a rememorar todos os aspectos relacionados à decisão, desde aspectos do
território a ser atendido até o processo histórico de lutas sociais e surgimento da tecnologia
social de cisternas de placa de cimento.
O SEMIÁRIDO E O HISTÓRICO DA ATUAÇÃO ESTATAL NO
COMBATE À SECA
O Semiárido brasileiro compreende um conjunto de 1.262 municípios situados em 10 estados
da Federação: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do
Norte e Sergipe, na região Nordeste, e o norte do Estado de Minas Gerais, na região Sudeste
(Figura 1).
Trata-se de uma área que representa cerca de 12% do território nacional e onde vivem
cerca de 28 milhões de habitantes (cerca de 13% da população brasileira, sendo 38% população
rural), caracterizada por baixa precipitação e alto índice de aridez, com concentração de chuvas
em períodos irregulares e vegetação de caatinga.
Figura 1. Composição do Semiárido brasileiro
Fonte: Instituto Nacional do Semiárido (INSA).

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Os períodos de estiagem ou de seca prolongada na região geravam graves problemas para
a população. A falta de acesso à água em contextos de pobreza nessa região ocasionava perda
de pequenas produções de alimentos e criação de animais, com restrição ao acesso à renda e à
alimentação, gerando desnutrição, doenças por consumo de água de baixa qualidade, mortalidade
infantil e baixa expectativa de vida. As mulheres e meninas costumavam ser as mais prejudicadas,
pois geralmente era sobre elas que recaía a responsabilidade de buscar água em locais distantes.
Assim, a seca aprofundava a espiral de vulnerabilidades em que vivia a população do
Semiárido, em especial as populações do campo, obrigando muitos a migrarem para outros
locais em busca de uma vida melhor. Solucionar o problema da falta de acesso à água de
qualidade para essa população era um ponto fundamental dentro da estratégia de combate à
pobreza extrema do novo governo.
A atuação do Estado brasileiro na região, historicamente, havia sido pautada em uma
visão de combate à seca, por meio de grandes projetos de desenvolvimento centralizados e
implementados de cima para baixo (top-down), tais como a construção de grandes reservatórios,
ou por meio de ações emergenciais em situações de calamidade, como a distribuição de alimentos
e água em carros-pipa durante as grandes secas.
Essas ações, entretanto, tiveram baixa efetividade para a população vulnerável. Por exemplo,
no caso da política de construção de açudes, estes eram geralmente capturados pelas elites locais,
fomentando práticas clientelistas e a chamada indústria da seca, que mantinha a população
pobre e do campo sem acesso à água e dependente dessas elites.
O governo contava com diversas instituições estatais presentes na região, a maioria delas
criadas durante o período nacional desenvolvimentista, tais como a Companhia Hidroelétrica do
São Francisco (Chesf) e o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), criados em
1945, o Banco do Nordeste do Brasil (BNB), em 1952, a Superintendência de Desenvolvimento
do Nordeste (Sudene), em 1959, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa),
em 1973, e a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), em 1974.
Tais instituições ainda tinham papel importante, tanto na construção de reservatórios
e outras obras de infraestrutura hídrica quanto na criação de planos de desenvolvimento e
impulsionamento econômico, porém não haviam solucionado o problema da falta de acesso à
água por parte da população camponesa.
TECNOLOGIAS SOCIAIS PARA A CONVIVÊNCIA COM A SECA
Muitas das intervenções que haviam sido feitas no passado partiam da lógica de combate à
seca, na tentativa de mudar as condições climáticas inerentes à região. O protagonismo de
OSC, movimento sindical de trabalhadores rurais e organizações religiosas, que ganhou forma
sobretudo na década de 1990 na região, era resultado da contraposição a essa visão, que acabava
por manter a população pobre do campo subjugada à lógica clientelista local, vulnerável aos
inevitáveis eventos de estiagem característicos do clima do Semiárido.

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Muitos eventos marcaram a trajetória de organização desses movimentos. Um deles foi
a ocupação da sede da Sudene em Recife-PE, em 1993, como consequência da grave seca de
1992/1993. Naquele episódio, o Fórum Pernambucano de Enfrentamento à Problemática da
Seca – Fórum Seca reivindicava políticas públicas inscritas em outro modelo de desenvolvimento,
de convivência com a seca, que garantisse a segurança alimentar e hídrica da população.
A atuação de diversas OSC, sindicatos, igrejas e universidades, entre outros agentes, havia
sido decisiva na criação de uma nova mentalidade voltada à criação de condições, descentralizadas
e autônomas, de convivência com o clima local, reconhecendo que o problema não era a
escassez ou falta de água, mas sim sua distribuição irregular durante as estações do ano. Assim,
era preciso descobrir formas de armazenar a água em épocas de chuva para ser usada nos
períodos de seca e desenvolver novas abordagens que propiciassem a adaptação sustentável às
características inerentes ao Semiárido.
Passava a haver, naquele momento, um deslocamento do Estado como o grande interventor
capaz de resolver o problema da seca, para a participação das comunidades enquanto sujeitos
na solução. No lugar de grandes obras, o foco passou a se concentrar nas soluções comunitárias
e autônomas, que pudessem garantir o acesso à água de qualidade e segurança alimentar à
população pobre do campo de modo independente.
Ao longo da década de 1990, diversas tecnologias sociais foram surgindo e sendo testadas
em diversas localidades. O Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa),
importante organização não governamental na região, sediada em Juazeiro, na Bahia, havia
sido criada em 1990 justamente com a missão de conhecer e difundir técnicas de convivência
com o Semiárido. Com forte cunho pedagógico, um dos trabalhos realizados foi o mapeamento
de tecnologias sociais existentes no Semiárido e em outros lugares do mundo, testando as
alternativas, com o apoio da Embrapa.
Naquela década, diversas tecnologias sociais haviam sido testadas, como as aguadas para
o represamento da água da chuva, a perfuração de poços (muitos dos quais se mostraram
salinos e impróprios para uso da água sem o devido tratamento) e os caixios, que eram fendas
escavadas em rochas, entre outras. As cisternas de cal e as cisternas abertas com telhado próprio,
cada qual apresentando limitações relacionadas à qualidade da água e da construção, também
haviam sido testadas. Por exemplo, cisternas em formato quadrado eram mais propensas ao
aparecimento de rachaduras, e os modelos sem cobertura tornavam a água impura, imprópria
para o consumo humano.
Em geral, tais projetos eram financiados com recursos oriundos de dotações orçamentárias e
de ONGs internacionais que financiavam projetos de organizações locais. A população também
participava ativamente, por meio de mutirões para a construção das soluções. No entanto, as
experiências realizadas enfrentavam três problemas: a falta de recursos para dar escala suficiente
às iniciativas, a baixa qualidade da água e problemas construtivos.
Em 1997, havia sido realizado o I Simpósio de Captação e Manejo de Água da Chuva, em
Petrolina-PE, um evento organizado pelo Irpaa, em parceria com a Embrapa, que contou com
representantes da International Rain Water Catchment Systems Association (IRWCSA). Em 1999,
a IRWCSA realizou sua Conferência Internacional na mesma cidade, trazendo pesquisadores

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de 31 países diferentes, com experiência em captação de água da chuva, incluindo brasileiros
de diversas instituições como o Irpaa, a Embrapa e a Pastoral da Terra.
A partir desse processo, entre as possíveis tecnologias sociais que eram testadas, as cisternas
feitas de placas de cimento, uma tecnologia social de baixo custo, fácil manutenção e alto potencial
de reaplicação, despontaram como a solução mais efetiva para a coleta e armazenamento de
água da chuva, permitindo que as populações do campo ou mesmo de centros urbanos com
carência de sistemas de abastecimento coletivo de água pudessem atravessar períodos de estiagem
com maior segurança hídrica.
Bete já havia visitado o Semiárido algumas vezes e conhecia as cisternas de placa de cimento
(Figura 2), também chamadas simplesmente de cisternas de placa. Eram reservatórios cobertos
com capacidade para armazenar 16 mil litros de água, que geralmente era captada por meio de
um sistema de calhas conectadas ao telhado da casa, podendo também ser abastecidas por carros-
pipa em situações de emergência. Seu formato arredondado, com raio de 2 m, construído sobre
um buraco com em torno de 1,2 m de profundidade, evitava rachaduras, que, caso ocorressem,
podiam ser reparadas facilmente.
O sistema de calhas permitia que a água da chuva que escorria do telhado fosse direcionada
para dentro da cisterna. A água armazenada podia ser, então, retirada por meio de uma bomba
d´agua ou por baldes, pela portinhola de abertura da cisterna. Quando cheia, uma cisterna
chegava a garantir o abastecimento de água para beber e cozinhar de uma família de até cinco
pessoas, por um período de até oito meses.
Figura 2. Cisterna de placas de cimento
Fonte: ASACom/Roberta Guimarães.

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Havia também formatos voltados à produção de alimentos e criação de animais, as chamadas
cisternas de produção, como no caso da cisterna calçadão (Figura 3), que contava com um
terreiro para captação da água da chuva, com capacidade de armazenamento de 52 mil litros
de água. As cisternas de produção permitiam a geração de renda e a melhoria da alimentação
das famílias.
Figura 3. Cisterna calçadão
Fonte: ASA Brasil.
As cisternas materializavam um conhecimento produzido na prática, a partir dos problemas
sociais vivenciados localmente, testado a partir da tentativa e erro, com o envolvimento ativo
das comunidades. Atores sociais locais, por meio da organização em ONGs e associações de
trabalhadores rurais, contribuíam trazendo experiências de outras regiões e instituições científicas,
financiando e viabilizando os projetos, que se somavam à experiência popular.
O modelo de aplicação das tecnologias sociais tinha um caráter pedagógico de formação e
ativação comunitária, que envolvia a participação dos beneficiários como parceiros da iniciativa.
Muitos moradores eram capacitados e tornavam-se pedreiros para a construção das cisternas.
Eram realizadas capacitações sobre qualidade e cuidados com a manutenção das cisternas,
cuidados com o sistema de calhas, a necessidade de desprezar a primeira água da chuva que
carregava as impurezas do telhado, o conserto das cisternas no caso de rachaduras, o consumo
da água de maneira cuidadosa e racional, garantindo estoque para períodos prolongados de seca,
entre outras. Esse processo promovia a autonomia dos beneficiários das cisternas.

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Os materiais de construção eram comprados nos próprios municípios, movimentando a
economia local. Tratava-se de uma tecnologia sustentável dos pontos de vista ambiental e social.
A batalha por recursos era outra frente que havia mobilizado as comunidades ao longo
dos anos. Por exemplo, na Diocese de Juazeiro, havia sido criado um Fundo Rotativo Solidário
(FRS) em que as famílias que ganhavam uma cisterna se comprometiam a repor o custo, dentro
de suas possibilidades e sem prazo definido, para que outras famílias pudessem ter suas cisternas.
Outra tentativa foi a criação de projetos de lei de iniciativa popular para serem apresentados
nas Câmaras Municipais, que inclusive contou com a colaboração de técnicos da Codevasf em
sua elaboração. Embora a iniciativa tenha fracassado na maior parte dos municípios em que foi
tentada, o processo de coleta de assinaturas para que o projeto de lei pudesse ser apresentado
nas casas legislativas gerava uma ativação social, pela necessidade de explicar e convencer a
população sobre a importância da mobilização.
Assim, mais do que um artefato, as cisternas consistiam em uma oportunidade de ativação
e empoderamento das comunidades locais, que deixavam de depender de grandes intervenções
estatais ou da condescendência de elites locais, aprendendo sobre formas de convivência com
o Semiárido e atuando de maneira democrática e participativa para a solução dos problemas
da comunidade. A tecnologia social das cisternas, mais do que a construção de um artefato,
envolvia um processo emancipatório.
Diante do consenso que ía se formando em torno das cisternas de placa de cimento, em
1998, a Diocese de Juazeiro, em parceria com OSC, havia lançado uma campanha denominada
“Adote uma cisterna – até 2004 nenhuma família sem água”. Embora a iniciativa não tenha
alcançado a arrecadação de recursos necessária para a construção de cisternas de placa para
todas as famílias necessitadas, intensificou a mobilização e a sensibilização para a necessidade
de políticas públicas adequadas para a convivência com o Semiárido.
A ARTICULAÇÃO NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO (ASA) E O
SURGIMENTO DO P1MC
A trajetória de mobilização e articulação das ONGs, igrejas e movimentos do campo havia
preparado o terreno para o que aconteceria durante a 3ª Conferência das Partes das Nações Unidas
sobre o Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca, a COP 3, da Organização
das Nações Unidas (ONU), realizada em 1999 em Recife-PE. Sindicatos de trabalhadores rurais,
movimentos de mulheres no campo, ONGs, entidades religiosas e outros movimentos sociais,
no fórum paralelo da sociedade civil que tradicionalmente ocorre no evento, haviam elaborado
a chamada Declaração do Semiárido e criado a Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA),
unindo forças em torno de uma visão de adaptação e convivência com o clima do Semiárido,
dentro de um projeto de desenvolvimento sustentável.
A ASA-Brasil constitui-se, assim, como o fórum organizador e aglutinador de um conjunto
de mais de 700 organizações filiadas, inscritas na trajetória de luta pela convivência com a seca
e sustentabilidade dos povos sertanejos.

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Nesse mesmo evento, as cisternas de placa de cimento se consolidaram como a tecnologia
social mais indicada para garantir o acesso à água à população do campo nos períodos de
estiagem, apontadas na Declaração do Semiárido como uma das principais propostas para
a universalização do acesso à água para beber e cozinhar. As cisternas de placa começaram
a ganhar a atenção do Governo Federal, por meio do compromisso do MMA de financiar o
projeto de construção de cisternas em caráter experimental.
Após a COP 3, a ASA-Brasil criou o P1MC, com o objetivo de alcançar a reaplicação
de um milhão de cisternas no semiárido. O convênio com o MMA foi celebrado em 2000,
ainda durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, para a reaplicação
de 500 cisternas. Em 2001, por meio de um novo convênio com a recém-criada Agência
Nacional das Águas (ANA), foi financiada a construção de 12.400 cisternas, incorporando
não apenas a construção mas também a capacitação, comunicação e mobilização social para
a convivência com a seca previstas na metodologia do P1MC. Ainda em 2001, a tecnologia
social de cisterna de placa de cimento foi premiada no concurso de tecnologias sociais da
Fundação Banco do Brasil.
Em 2002, o P1MC constituiu-se enquanto associação, a AP1MC, uma Oscip criada para
atuar como unidade gestora do programa, no âmbito da ASA, para firmar termos de parceria
e convênios com o poder público e buscar também parcerias com o setor privado, como no
convênio firmado com a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), em que foi prevista a
construção de 10 mil cisternas. Porém, o programa ainda estava longe de atingir a meta de um
milhão de cisternas, e as Prefeituras municipais seguiam com baixa adesão ao programa.
O fato de a ASA-Brasil contar com uma política bem-estruturada, sistematizada, testada e
viável, materializada no P1MC, havia sido fundamental para o que viria a seguir.
TRANSFORMAÇÃO EM POLÍTICA PÚBLICA: O FINANCIAMENTO
GOVERNAMENTAL DO P1MC
A partir de 2003, o P1MC começou a ganhar maior ritmo, com o financiamento consistente
por parte do Governo Federal. Em 2003, o programa passou a receber recursos do Programa
Fome Zero, no âmbito do então recém-criado Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar
(MESA), no primeiro governo Lula. O termo de parceria previa a construção de 22 mil cisternas,
no valor de R$ 32 milhões. Em 2004, com o novo Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS), o P1MC passou a fazer parte da Política Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional. Em 2005, o P1MC se consolidou como política pública, passando a
ter uma rubrica específica para a construção de cisternas no Orçamento Geral da União, na
“Ação 11V1 – Construção de Cisternas para Armazenamento de Água”, dentro do Programa de
Acesso à Alimentação, por meio da Lei Orçamentária Anual (LOA). Ao mesmo tempo, o P1MC
seguiu recebendo recursos privados e de ONGs internacionais, porém o grande financiador
era o Governo Federal.

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Apesar da rubrica específica, a execução do P1MC foi marcada por períodos de interrupções
e negociações com o MDS. Mais do que um mero executor, a ASA detinha a metodologia,
a articulação com as comunidades e a capilaridade de uma rede de organizações vinculadas.
Nesse sentido, pode-se dizer que se tratava de uma política de baixo para cima (bottom-up),
que era trazida ao Governo Federal por uma rede de movimentos e OSC. A metodologia de
trabalho negociada com o MDS seguia o modelo da ASA, envolvendo formação e mobilização
de instituições e comunidades.
Os critérios estabelecidos para a seleção de famílias participantes do programa levam em
conta famílias rurais na região do Semiárido, que não são atendidas por rede de abastecimento,
sobretudo aquelas em situação de insegurança alimentar e nutricional, inscritas no CadÚnico
do Governo Federal.
Como contrapartida pela participação no programa, cada família beneficiada é responsável
por escavar o solo onde a cisterna será implantada, participar das capacitações do programa e
apoiar o pedreiro contratado, seja na construção da cisterna, seja oferecendo hospedagem e
alimentação.
Com relação à gestão e execução do programa, o MDS era responsável pelo financiamento
e coordenação geral, enquanto a ASA-Brasil, por meio da AP1MC, era responsável pela
implementação e metodologia. Esse compromisso era firmado por meio de sucessivos termos
de parceria.
A ASA-Brasil é composta por uma Comissão Executiva formada pelas entidades diretoras
estaduais e por Unidades Gestoras Microrregionais (UGM), responsáveis pela execução das
ações. A AP1MC, responsável pela administração do programa, repassava os recursos para essas
unidades locais e acompanhava o processo de reaplicação das cisternas. O repasse se dava por
meio de Termos de Cooperação Técnica e Financeira (TCTF) celebrados em organizações
selecionadas que compunham as Unidades Gestoras Microrregionais (UGM). As UGM, por
sua vez, gerenciavam as ações do programa nos municípios de sua área de atuação, contando
ainda com uma Comissão Municipal que se encarregava da seleção das famílias, capacitação
e desenvolvimento das demais ações no local.
Porém, a partir de 2004, o MDS passou a celebrar também convênios com os estados
para a implantação de cisternas. Em 2005, o Ministério da Integração Nacional (MI) também
havia começado a direcionar recursos para a formalização de convênios. A partir de 2007,
o MDS celebrou convênios diretamente com municípios por meio de editais públicos de
seleção e, nesse mesmo ano, firmou parceria com a Codevasf para a implantação de projetos-
piloto de construção de equipamentos e armazenamento de água para a produção. Em 2008,
por meio de convênio com o Estado da Bahia, o MDS iniciou a construção de cisternas em
escolas públicas no Semiárido. Embora, em muitos desses convênios, os recursos acabassem
sendo descentralizados para OSC locais, foram surgindo, assim, novos atores, além da ASA, na
reaplicação de cisternas.
O processo de contratação dos repasses e das organizações executoras era bastante moroso,
sujeito a entendimentos distintos de procuradorias jurídicas estaduais, assim como o processo de

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prestação de contas, o que fazia com que muitos dos convênios e termos de parcerias sofressem
atrasos consideráveis, prejudicando substancialmente a velocidade da execução das cisternas.
Cada item ou serviço adquirido, por menor que fosse, precisava estar previsto no plano de
trabalho e representado por notas específicas na prestação de contas.
Para facilitar o processo e garantir certo padrão de atuação, a ASA produziu diversos
manuais e materiais de orientação, com as etapas e procedimentos a serem seguidos na
reaplicação das cisternas.
Em 2007, o novo termo de parceria com a ASA passou a incluir sete mil cisternas de
produção, no âmbito do P1+2, Programa Uma Terra e Duas Águas, mesmo ano em que a
Controladoria-Geral da União passou a questionar a forma como a ASA subcontratava as
organizações a ela vinculada, o que provocou um atraso de pelo menos seis meses na execução
das ações contratadas.
Ao todo, no período de 2003 a 2010, foram construídas 329.569 cisternas de placa para
armazenamento de água para consumo humano e 7.505 cisternas de produção. Cada cisterna
de água para consumo humano tinha um custo total de cerca de R$ 2.200,00, variando entre
estados e municípios.
GANHANDO ESCALA: O PROGRAMA ÁGUA PARA TODOS
Após revisar todo o histórico e aspectos metodológicos das cisternas de placa de cimento, Bete
retomou as metas do novo programa a ser criado e a capacidade de entrega dos órgãos envolvidos,
levantada nas reuniões realizadas. Entre 2003 e 2010, o P1MC havia entregado 329,5 mil
cisternas de placa. Agora, de 2011 até 2014, a meta era entregar 750 mil cisternas de água para
consumo humano (primeira água) e 76 mil tecnologias de água para produção (segunda água)
em menos de quatro anos.
Nas estimativas feitas no início de 2011, no âmbito do Plano BSM, 750 mil era a quantidade
de cisternas de água para consumo humano necessária para universalizar o acesso à água para
a população rural do Semiárido, de famílias com renda per capita mensal de até R$ 140,00,
contribuindo para o fim da miséria na região. Também era necessário ampliar a execução
de tecnologias de segunda água, pois outro componente do Plano BSM para a acabar com a
extrema pobreza era a inclusão produtiva rural, dotando as famílias agricultoras vulneráveis
com meios de produção adequados.
A avaliação junto aos órgãos parceiros, entretanto, era a de que só era possível entregar 450
mil cisternas de placa de cimento, razão pela qual havia sido sugerida a cisterna de polietileno
para complementar a execução e atingir a meta de 750 mil cisternas.
Essa limitação decorria, sobretudo, de questões burocráticas, do modelo de reaplicação
das cisternas de placa (cada cisterna leva de duas a três semanas para ser implementada) e da
limitação da capacidade dos parceiros implementadores. Como prioridade máxima no novo
governo, os recursos para o programa estavam assegurados, mesmo com a cisterna de polietileno

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custando o dobro das cisternas de placa (cerca de R$ 2.200,00 o custo da cisterna de placa de
cimento, enquanto a cisterna de polietileno, à época, estava em torno de R$ 4.870,00, valores
que variavam de acordo com o estado e região).
A instalação das cisternas de polietileno era feita em apenas um dia. A família apenas
teria que cavar o buraco, e a cisterna chegaria em caminhões ou caminhonetes, junto com um
técnico que faria a instalação. Alegava-se ainda que, por ser constituída por plástico resistente,
a cisterna de polietileno garantia uma boa estanqueidade da água captada, preservando melhor
sua pureza e sem necessidade de manutenção ao longo dos anos, até o final de sua vida útil
(20 anos). Por outro lado, eram construídas em grandes fábricas, com baixo emprego de mão
de obra e materiais de insumo locais.
Bete precisava elaborar a sua recomendação, respondendo às seguintes perguntas:
• Quais as vantagens e desvantagens de cada tecnologia?
• Quais os ganhos e perdas entre (A) seguir o programa como era feito, a partir da
tecnologia social de cisterna de placa de cimento e seus aspectos mobilizadores e
empoderadores da comunidade, e (B) complementar o P1MC com cisternas de
polietileno para atingir a meta de 750 mil famílias rurais com acesso à água?
Que respostas você daria para ajudar Bete nesse parecer?

GVcasos 1 Revista Brasileira de Casos de Ensino em Administração FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 13 | ISSN 2179-135X 1
CASO
Submissão: 15/03/2022 | Aprovação: 15/06/2022
DOI: https://doi.org/10.12660/gvcasosv12nespecialc13
DE MOEDA SOCIAL A CRIPTOMOEDA: OS
DILEMAS DA EMANCIPAÇÃO TECNOLÓGICA
DO E-DINHEIRO
From social currency to cryptocurrency: dilemmas
of E-Dinheiro technological emancipation
Bruno Sanches1 | [email protected]
Luiz Faria2 | [email protected]
Pedro Gonçalves Neto2 | [email protected]
Marcos Ferreira² | [email protected]
¹Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV – São Paulo, SP.
²Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, RJ.
RESUMO
E-Dinheiro é uma moeda social que se tornou digital. Nessa trajetória, a Rede Brasileira de Bancos
Comunitários, a entidade comunitária gestora do e-Dinheiro, se tornou tecnologicamente dependente da
empresa que forneceu e administrava seu software. Depois de muitos anos de luta, a entidade comunitária
rompeu com as algemas tecnológicas que a deixaram subjugada à empresa de tecnologia e está diante de
novas oportunidades. Uma delas, apresentada por um grupo de pesquisadores, é transformar o e-Dinheiro
em uma criptomoeda. Porém, essa oportunidade coloca a entidade diante de novos e antigos dilemas,
sobre os quais ela precisa decidir.
Palavras-chave: Moeda social, criptomoeda, tecnologia social, organização de base comunitária,
bancos comunitários.
ABSTRACT
E-Dinheiro is a social currency that has become digital. In its trajectory, the Brazilian Network of Community
Banks, the community entity that manages e-Dinheiro, became technologically dependent on the company
that supplied and managed its software. After many years of struggle, the community entity broke the
technological shackles that had left it subjugated to the technology company and is finding new opportunities.
One of them, presented by a group of researchers, is to transform e-Dinheiro into a cryptocurrency. However,
this opportunity puts the entity in front of new and old dilemmas, which need to be decided.
Keywords: Social currency, cryptocurrency, social technology, community-based organization,
community banking.

CASO | DE MOEDA SOCIAL A CRIPTOMOEDA: OS DILEMAS DA EMANCIPAÇÃO TECNOLÓGICA DO E1DINHEIRO
Bruno Sanches | Luiz Faria | Pedro Gonçalves Neto | Marcos Ferreira FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 13 | ISSN 2179-135X 2
INTRODUÇÃO
Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti, o quilombo da favela
É sentinela na libertação
1
Assim começa o samba-enredo da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti de 2018, escolhido
para abrir a roda de conversa de um simpósio acadêmico intitulado “Prisões coloniais e algemas
tecnológicas”
2
. A roda foi inspirada na história de luta da Rede Brasileira de Bancos Comunitários
(RBBC) pela emancipação tecnológica do e-Dinheiro, uma plataforma digital de moedas
sociais. Adotado por diversos bancos comunitários em todo o Brasil, o e-Dinheiro é fruto de
uma fusão tecnológica entre moedas sociais, desenvolvidas e aprimoradas ao longo dos anos por
comunidades desfavorecidas, e as tecnologias digitais desenvolvidas com empresas de mercado.
João Joaquim de Melo Neto Segundo (Figura 1), ou apenas Joaquim do Banco Palmas, é
uma das figuras centrais no desenvolvimento do e-Dinheiro. Ex-seminarista, depois de se mudar
para o Conjunto Palmeiras, então uma favela localizada na periferia de Fortaleza, decidiu
dedicar sua vida às populações de territórios empobrecidos. Em sua fala, misturam-se o tom da
indignação de quem conhece a pobreza de perto e a alegria enérgica daqueles que acreditam
que uma transformação social é possível. Tal alegria transborda suas falas e torna-se visível em
suas roupas e ambientações sempre coloridas.
Figura 1. Foto de Joaquim de Melo
Fonte: Apresentação no IX Simpósio ESOCITE em 2021 – imagem recuperada da gravação disponível no canal do Youtube.
1 Samba-enredo 2018 – Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão? G.R.E.S Paraíso do Tuiuti.
2 Mesa-redonda apresentada no IX Simpósio Nacional de Ciência, Tecnologia e Sociedade, organizado pelo ESOCITE em 2021,
vide vídeo em: https://www.youtube.com/watch?v=wogq8WDKMYE&ab_channel=ESOCITEBrasil

CASO | DE MOEDA SOCIAL A CRIPTOMOEDA: OS DILEMAS DA EMANCIPAÇÃO TECNOLÓGICA DO E1DINHEIRO
Bruno Sanches | Luiz Faria | Pedro Gonçalves Neto | Marcos Ferreira FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número 1 | Jan-Jun 2022 | Doc. 2 | ISSN 2179-135X 3
Joaquim foi um dos convidados para a roda de conversa. Parafraseando o samba-enredo
da Paraíso do Tuiuti que tocara há pouco, Joaquim do Banco Palmas inicia dizendo: “Eu não
sou escravo de nenhum senhor, nem do senhor da tecnologia!”. A fala de Joaquim vem de sua
experiência com os muitos desafios tecnológicos enfrentados pela RBBC no desenvolvimento do
e-Dinheiro. O principal deles: as algemas tecnológicas impostas pela empresa que desenvolveu
o software do e-Dinheiro.
Essas algemas tecnológicas, formadas por arranjos técnicos e legais, impediam a livre ação
da RBBC e ameaçavam a existência do e-Dinheiro. Recentemente, depois de muitas dificuldades,
a RBBC foi capaz de reverter a situação e formar sua própria equipe de desenvolvimento de
software, conquistando maior autonomia tecnológica. Agora, uma nova proposta está diante
da RBBC: transformar o e-Dinheiro em uma plataforma blockchain e possibilitar a criação de
criptomoedas sociais. Em um novo contexto, o dilema entre o avanço da transformação digital
e a emancipação tecnológica do e-Dinheiro novamente bate à porta. Mas, antes de entrarmos
a fundo nesse dilema, precisamos fazer uma breve introdução à história do Instituto Palmas e
do e-Dinheiro.
DO PALMASCARD AO E-DINHEIRO: A RESILIÊNCIA PROPOSITIVA
E A ADAPTAÇÃO ÀS MUDANÇAS TECNORREGULATÓRIAS
Moedas sociais são alternativas locais ao dinheiro nacional, vinculadas a uma comunidade
demarcada e limitada, com objetivos de desenvolvimento territorial
3
. Além de “moeda social”,
existem outros termos semelhantes, como “moeda comunitária”,” moeda alternativa” ou “moeda
local”, cada qual com suas especificidades, mas por vezes utilizados de maneira intercambiável
(Blanc, 2011). As iniciativas de moedas sociais são tecnologias de resistência empregadas por
cidadãos marginalizados para devolver o poder de compra à própria comunidade de onde vêm.
No Brasil, as moedas sociais ganharam destaque a partir das iniciativas do Banco Palmas.
Fundado em 1998, foi o primeiro banco comunitário do Brasil. O Banco Palmas é um dos
empreendimentos solidários desenvolvidos pela comunidade do Conjunto Palmeiras. Unida
em torno da Associação dos Moradores do Complexo Palmeiras (ASMOCONP), a comunidade
do Conjunto Palmeiras buscou promover o desenvolvimento local por meio da participação
popular e da solidariedade entre os concidadãos daquele território empobrecido
4
.
A primeira experiência com moedas sociais no Banco Palmas começou já em 1998, com o
PalmaCard, uma moeda em formato de cartão de crédito em papel e que permitia o consumo de
produtos e serviços produzidos no próprio bairro. Nos anos seguintes, o Banco Palmas continuou
a desenvolver novos modelos de moedas sociais, como a moeda Palmares, criada em 2000, de
circulação restrita aos clubes de trocas do bairro, e a moeda Palmas Movimento Monetário
Mosaico (MoMoMo), criada em 2002 e utilizada na concessão de microcrédito a juro zero
5.
3 Community Currencies in Action. (2015).
4 Para mais informações sobre a história e metodologia do Banco Palmas, vide: Pozzebon, Christopoulos, Peeraly e Saldanha (2014).
5 Para saber mais sobre a história das moedas do Banco Palmas, consulte: http://www.institutobancopalmas.org/wp-content/
uploads/moedas-TRANSI%C3%87%C3%83O-vers%C3%A3o-final.pdf

CASO | DE MOEDA SOCIAL A CRIPTOMOEDA: OS DILEMAS DA EMANCIPAÇÃO TECNOLÓGICA DO E1DINHEIRO
Bruno Sanches | Luiz Faria | Pedro Gonçalves Neto | Marcos Ferreira FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 13 | ISSN 2179-135X 4
Nos anos seguintes, a metodologia dos bancos comunitários e suas moedas sociais se
expandiram e foram reapropriadas por outros territórios. Em 2014, havia no Brasil 103 bancos
comunitários organizados em torno da RBBC. Já em 2015, a metodologia das moedas sociais
desenvolvida pelo Banco Palmas foi transformada em uma plataforma de pagamento digital
chamada e-Dinheiro. Porém, do PalmaCard ao e-Dinheiro, a trajetória dos bancos comunitários
não foi fácil, como conta Joaquim: "Uma das sabedorias populares que os bancos [comunitários],
a Rede Brasileira [de Bancos Comunitários], têm aprendido é se adaptar a uma situação que
não foi feita pra gente. O Brasil não tem marco regulatório, o Brasil não nasceu pra ter banco
comunitário, o Brasil está longe de aceitar isso como já tem em outros países. Mas a gente tem
se adaptado muito e aprendido a se adaptar. Isso é resiliência. Resiliência propositiva. A gente
aprende a se adaptar pra sobreviver" (Joaquim, Diretor Executivo da RBBC, 2021)
6
.
A história do e-Dinheiro é contada por Joaquim por meio de uma série de episódios
que marcam a resistência e a adaptação dos bancos comunitários às mudanças tecnológicas e
regulatórias, o que ele chama de “resiliência propositiva”. Poucos anos depois da fundação do
Banco Palmas, iniciou-se uma série de conflitos com os órgãos reguladores nacionais. Em 2003,
o Banco Central do Brasil (Bacen) classificou as moedas sociais do Banco Palmas como uma
falsificação do Real e processou a organização por crime contra o Estado, ameaçando seus líderes
de prisão. No entanto, o Banco Palmas venceu esse processo e influenciou a formação de um
marco regulatório que possibilitou o reconhecimento das moedas sociais pelo Banco Central.
Vencido esse obstáculo, em 2005, o Banco Palmas firmou parcerias com grandes instituições
financeiras e começou a expandir sua metodologia para outros territórios, que passaram a
se reapropriar dos conhecimentos gerados pela comunidade do Conjunto Palmeiras e criar
seus próprios bancos e moedas sociais. No final de 2013, a Lei. 12.865 entrou em vigor e
possibilitou o surgimento das fintechs brasileiras (empresas de tecnologia que fornecem serviços
financeiros). Ainda em 2013, a RBBC teve sua primeira experiência de digitalização da moeda
social, quando foi desenvolvida a moeda Mumbuca, em parceria com a Prefeitura de Maricá,
Rio de Janeiro. Porém, a RBBC ainda não havia desenvolvido o e-Dinheiro, e a estrutura
tecnológica da Mumbuca foi fornecida por uma empresa privada contratada.
CONSTRUINDO UMA FINTECH SOCIAL: DIGITALIZAÇÃO DAS
MOEDAS SOCIAIS E A LUTA PELA INDEPENDÊNCIA TECNOLÓGICA
Em 2015, a startup de tecnologia MoneyClip, que havia desenvolvido uma plataforma privada
de pagamento digital, ofereceu à RBBC uma parceria para criar uma plataforma digital para as
moedas sociais dos bancos comunitários. Essa parceria resultou na criação do e-Dinheiro, uma
plataforma tecnológica que possibilitou a digitalização da moeda social da RBCC, combinando
as características dos sistemas de pagamento digital com a finalidade social e os limites geográficos
das moedas sociais.
6 Trecho retirado da palestra de Joaquim de Melo na abertura do curso “Bancos comunitários e moedas sociais no Brasil”.
Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=7tfvSoJcpbg&ab_channel=Extens%C3%A3oUFRJ

CASO | DE MOEDA SOCIAL A CRIPTOMOEDA: OS DILEMAS DA EMANCIPAÇÃO TECNOLÓGICA DO E1DINHEIRO
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No início, o software do e-Dinheiro era de propriedade e responsabilidade da MoneyClip,
enquanto a RBBC se responsabilizava pelo restante da operação do e-Dinheiro, incluindo o
relacionamento com os usuários e as comunidades locais. Para subsidiar a operação, o e-Dinheiro
cobrava uma pequena taxa dos comerciantes em cada venda realizada pela plataforma, e o total
arrecadado era divido em partes iguais entre a RBBC e a MoneyClip.
Porém, um ano e meio após o início da parceria, a MoneyClip estava insatisfeita com
o retorno financeiro do e-Dinheiro e colocou à venda o software da plataforma, que era de
propriedade da MoneyClip. O e-Dinheiro não poderia continuar operando sem o software
desenvolvido pela MoneyClip e, diante disso, a RBBC viu a necessidade de comprar o software do
e-Dinheiro. Juntando recursos de empréstimos e de doações, inclusive dos bancos comunitários
que faziam parte da rede, a RBBC conseguiu adquirir a propriedade do software do e-Dinheiro.
7

Após a compra do software, a RBBC percebeu que, mesmo sendo proprietária da tecnologia,
ela não possuía os conhecimentos e recursos técnicos para operar e expandir a plataforma. Assim,
a RBBC contratou uma empresa de tecnologia, fundada por alguns dos ex-sócios da MoneyClip,
para conduzir as operações tecnológicas do e-Dinheiro. Após esse período, o e-Dinheiro cresceu
ainda mais. Ao final de 2020, já eram 65 bancos comunitários utilizando a plataforma, mais de
135 mil usuários, mais de 13 mil empresas cadastradas e mais de R$ 1,1 bilhão movimentado
no ano de 2020.
8

No entanto, mesmo sendo proprietária do software do e-Dinheiro, uma série de questões
contratuais e técnicas fez com que a RBBC se tornasse cada vez mais dependente do seu
fornecedor. Por exemplo, qualquer acesso externo ao software do e-Dinheiro era impossibilitado
pelo contrato estabelecido entre a RBBC e seu fornecedor, impedindo as contribuições de
diversos pesquisadores e consultores dispostos a ajudar na expansão e na melhoria do e-Dinheiro.
Nas palavras de Joaquim, seu fornecedor colocara-lhe “algemas tecnológicas”, e esse processo
trouxe grandes incertezas para o e-Dinheiro e a RBBC.
Diante dessas dificuldades, a RBBC decidiu dar mais um passo em direção à sua
independência tecnológica. No início de 2021, a RBBC conseguiu contratar uma pequena equipe
de desenvolvedores de software que possuíam experiência na tecnologia do e-Dinheiro e montou
uma estrutura para operar e expandir sua plataforma. Nesse momento, além de proprietária do
software, a RBBC passou a ter a capacidade de decidir sobre o futuro do e-Dinheiro. Esse foi
um processo complicado, mas, como conta Leonora Mol, uma das coordenadoras da RBBC,
isso provou a capacidade que a RBBC tinha de produzir e gerenciar tecnologias complexas.
"Não foi algo simples para nós (as lideranças da RBBC) [...]. Mas nos mostrou a capacidade que
tínhamos de desenvolver algo na área tecnológica e ter esse conhecimento conosco" (Leonora,
Diretora Executiva da RBBC, 2021).
Hoje, a RBBC se encontra em um novo contexto. Depois de ter avançado em direção à
sua independência tecnológica, novas possibilidades estão surgindo, como o uso da tecnologia
blockchain (ver glossário de termos técnicos no Anexo 1). Espera-se que o blockchain possa trazer
7 Para mais informações sobre o histórico do e-Dinheiro, consultar: Cernev e Diniz (2020).
8 Fonte: https://edinheiro.org/.

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maior transparência, escala e descentralização tecnológica para as moedas sociais. Este ainda é
um assunto novo para a RBBC, mas Joaquim já está atento a essa nova tecnologia: “A ideia do
blockchain é uma coisa que nem precisa tanto esforço para a gente saber da importância que
tem. Todo mundo tá conversando e voltando a falar isso muito claramente” (Joaquim, Diretor
Executivo do RBBC, 2021). Leonora também já ouviu falar do blockchain, e muitas pessoas
vêm procurando os bancos comunitários para falar sobre isso. Porém, Leonora vê esse próximo
passo com ressalvas: "Eu tenho muita dificuldade de a gente pensar uma nova tecnologia, pois
foi muito difícil o processo do E-dinheiro… até a gente pensar em adquirir a plataforma…
não foi algo tão simples pra gente. O sistema não é o melhor dos mundos, mas é o melhor
que foi possível e fez a gente sair na frente. Nos mostrou a capacidade que nós tínhamos em
desenvolver algo na área tecnológica e ter essa cara do digital junto com a gente" (Leonora,
Diretora Executiva da RBBC, 2021).
Nesse cenário, um grupo de pesquisadores do FGVCemif (Centro de Estudos de
Microfinanças e Inclusão Financeira da Fundação Getulio Vargas de São Paulo) propôs
um novo projeto para a RBBC: desenvolver o piloto de uma infraestrutura em blockchain
que possa ser futuramente incorporada pelo e-Dinheiro. Joaquim parece animado com
essa nova possibilidade: "Estamos em um momento de pensar em novas situações, novos
produtos. Agora que conquistamos duramente nossa liberdade tecnológica, quebrando as
algemas tecnológicas. Essa é outra conversa, outro assunto, mas dialoga muito com o que
estamos fazendo aqui agora, que é ter um pouco mais de autonomia tecnológica e cruzar
e adaptar todas essas oportunidades que surgem. Então, estamos no melhor momento de
nossas vidas para ter esse tipo de conversa que vamos ter aqui" (Joaquim, Diretor Executivo
da RBBC, 2021).
BLOCKCHAIN: A PRÓXIMA FRONTEIRA DE TRANSFORMAÇÃO
TECNOLÓGICA DO E-DINHEIRO
Blockchain é uma infraestrutura digital na qual operam criptomoedas como Bitcoin e Ethereum.
Essa tecnologia surgiu a partir de um relatório publicado em novembro de 2008, no qual Satoshi
Nakamoto (2008) propôs um sistema para transações eletrônicas que não dependesse da confiança
dos usuários em instituições centralizadas, como bancos privados e bancos centrais. A estrutura
empregada para demonstrar esse conceito foi o Bitcoin, que se tornaria o primeiro sistema de
pagamento eletrônico baseado em uma rede de computadores descentralizada.
Satoshi Nakamoto é o pseudônimo de um indivíduo ou grupo desconhecido. Esse
personagem anônimo na história das criptomoedas representa muito dos ideais de seus primeiros
desenvolvedores, em grande parte vindos do movimento cultural cyberpunk e enraizados em
imaginários de uma tecnologia libertária, colaborativa e de código aberto. Inicialmente, o
movimento das criptomoedas foi principalmente conduzido por esses desenvolvedores de
ideários mais radicais, atraídos pelas oportunidades de criar um sistema monetário digital que

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funcionasse sem intermediários institucionais, como bancos e governos, e caminhasse em
direção a uma sociedade on-line utópica (Kow & Lustig, 2018).
No entanto, a partir de 2012, com o avanço do Bitcoin, iniciou-se uma revolução no
setor financeiro global, e o blockchain e suas criptomoedas passaram a ser também associadas
à especulação financeira e ao pensamento de livre mercado. Ao mesmo tempo, movimentos
sociais e instituições financeiras de base comunitária ao redor do mundo têm se fiado do
blockchain para projetar estruturas digitais comunitárias que buscam promover a autogestão e
a colaboração entre seus participantes (Diniz, Cernev, Rodrigues, & Daneluzzi, 2020). Esse é
o caso das criptomoedas sociais, como a Sarafu, que opera em comunidades rurais do Quênia,
e que podem ser trocadas por bens ou serviços de outros usuários da mesma rede, e da FairCoin,
na Espanha, criptomoeda desenvolvida por um movimento cooperativo para troca de valores
entre comércios locais.
O que é blockchain? Blockchain é essencialmente uma tecnologia digital que possibilita o registro distribuído de eventos
digitais, como as transações de moedas digitais. Esses registros são distribuídos por uma rede de computadores (que
pode ser pública ou privada), e cada evento só é registrado quando ocorre o consenso da maioria dos participantes do
sistema. Cada evento possui uma identificação única (combinada em blocos de dados) que não pode ser modificada
ou excluída uma vez inserida no sistema. Ou seja, o blockchain possibilita um registro seguro e verificável de todas as
transações já realizadas em determinado sistema sem a necessidade de um registro central.
O blockchain ainda não é utilizado pela RBBC, mas sua aplicação como uma infraestrutura
para o e-Dinheiro e para as moedas dos bancos comunitários vem sendo discutida nos últimos
anos. Recentemente, essa discussão ganhou força diante da adoção do e-Dinheiro por bancos
municipais e por projetos de transferência de renda, que requerem novos mecanismos de
controle e transparência dos recursos transacionados na plataforma. Nesse cenário, Joaquim
tem a expectativa de que o blockchain seja uma das mudanças importantes para o e-Dinheiro
nos próximos anos: “Eu acho que o blockchain vai ser uma novidade…. que o mundo todo
segue hoje, por causa da transparência. Cada vez mais os bancos comunitários e o e-Dinheiro
vêm trabalhando com recursos públicos. E o blockchain, como estratégia de ferramenta digital,
ele é muito bom na transparência" (Joaquim, Diretor Executivo RBBC, 2022)
9
.
Diante das possibilidades e desafios da aplicação do blockchain para o e-Dinheiro e os
bancos comunitários, um grupo de pesquisadores do FGVCemif propôs materializar esse debate
por meio de um projeto piloto no qual seria construída uma arquitetura de blockchain de teste
que seria posteriormente incorporada ao e-Dinheiro.
PROJETANDO UMA CRIPTOMOEDA SOCIAL: DILEMAS DA
PROPRIEDADE DO SOFTWARE
A construção da infraestrutura de blockchain para o e-Dinheiro foi proposta por pesquisadores
do FGVCemif como fase final de um projeto de pesquisa denominado “Criptoativos para o
9 Trecho retirado da palestra de Joaquim de Melo na apresentação “Perspectivas 2022” para o e-Dinheiro, recuperado de
https://www.youtube.com/watch?v=ii-Ob4zr_bs&ab_channel=InstitutoPalmas

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Desenvolvimento (CA4D)”. Como centro de pesquisa, o FGVCemif tem uma longa trajetória
de estudos relacionados à inclusão financeira e ao microcrédito. O projeto também tinha uma
parceria com o Laboratório de Informática e Sociedade (Labis), associado ao Programa de
Engenharia de Sistemas e Computação da COPPE/UFRJ, que atuava como intermediário
entre os pesquisadores, desenvolvedores e a comunidade dos bancos comunitários, zelando
pela transferência tecnológica da infraestrutura de blockchain para os bancos comunitários.
O FGVCemif e o LabIS não detinham o conhecimento técnico, altamente especializado,
que era necessário para o desenvolvimento da infraestrutura de blockchain. Portanto, o FGVCemif
abriu um edital para contratação de um fornecedor de tecnologia que fosse capaz de realizar tal
desenvolvimento. Nesse processo, foi selecionada a proposta da Criptodev (nome fictício), uma startup
privada de São Paulo que tinha como expertise o desenvolvimento e pesquisa de blockchain para
impacto social. Além disso, eles eram certificados pela B Corporation
10
, e seus projetos geralmente
giravam em torno da implantação de blockchain para impacto socioambiental, conforme resumido
por Flávio (nome fictício): "Chegamos a essa ideia de desenvolver softwares que tragam impacto
socioambiental, utilizando o blockchain como instrumento para materializar isso. E tangibilizar a
nova economia, colaborativa, compartilhada, mais transparente, com os atributos que o blockchain
nos proporciona, de rastreabilidade, auditabilidade" (Flávio, fundador da Criptodev, 2021).
Flávio é um dos fundadores da Criptodev. É um jovem de fala suave e calma, sempre
com muitas gírias e informalidades, características semelhantes às dos demais colaboradores
da empresa. Apesar de a Criptodev possuir um histórico de sucesso no desenvolvimento de
blockchain para projetos de impacto socioambiental, o projeto com os bancos comunitários
apresentava novos desafios para a Criptodev.
Os bancos comunitários e suas moedas sociais são tecnologias sociais (Secretaria Nacional
de Economia Solidária, 2012) que, portanto, devem ser construídas e/ou apropriadas pela
comunidade afetada pelo problema que a tecnologia se propõe a resolver (Instituto Tecnologia
Social Brasil, 2004). Assim, a infraestrutura de blockchain proposta pelo FGVCemif deveria
ter três características fundamentais: (1) ser desenvolvida em conjunto com o grupo de bancos
comunitários; (2) envolver a capacitação e treinamento da comunidade para apropriação da
tecnologia; (3) ser aberta para futuras modificações e usos pela comunidade, de modo a garantir
(ou ao menos apontar para uma relativa) independência tecnológica dos bancos comunitários.
O que é tecnologia social? Pela definição do Instituto de Tecnologia Social (ITS, 2004), uma tecnologia social é: “[Um]
conjunto de técnicas, metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou aplicadas na interação com a população e
apropriadas por ela, que representam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida”.
Portanto, a infraestrutura de blockchain deveria ser inteiramente desenvolvida em software
livre, o que seria importante para possibilitar o uso e a modificação do software por pessoas ou
comunidades para além da Criptodev, estando assim alinhada com as características fundamentais
de uma tecnologia social.
10 Certificação internacional concedida pelo B Lab a empresas que atendem a determinados requisitos de impacto social e
ambiental.

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No entanto, a Criptodev fez uma proposta alternativa. Ainda durante o processo de
edital, eles propuseram utilizar uma plataforma proprietária que poderia acelerar e facilitar o
desenvolvimento da infraestrutura. Inicialmente, essa proposta foi recusada pelos pesquisadores do
FGVCemif e do Labis, pois utilizar uma plataforma proprietária na infraestrutura de blockchain
poderia resultar em uma dependência tecnológica por parte dos bancos comunitários.
O que é software livre? “Livre” é um modelo de desenvolvimento de software que permite que o código (a receita
do bolo) seja compartilhado, examinado e modificado livremente, sem a necessidade de uma licença paga. Em seu
manifesto, defende que os usuários possuam quatro liberdades essenciais:
A liberdade de executar o programa como você desejar, para qualquer propósito (liberdade 0).
A liberdade de estudar como o programa funciona e adaptá-lo às suas necessidades (liberdade 1). Para tanto, acesso
ao código-fonte é um pré-requisito.
A liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar outros (liberdade 2).
A liberdade de distribuir cópias de suas versões modificadas a outros (liberdade 3).
11
Em meados de junho de 2021, iniciou-se o desenvolvimento da infraestrutura de blockchain
em software livre para a RBBC. Quase quatro meses depois, o projeto havia avançado em
negociações e especificações importantes, mas pouco havia sido alcançado em relação ao
desenvolvimento do artefato tecnológico. Diante dos prazos que se tornavam cada vez mais
apertados, Flávio retoma sua proposta inicial de utilizar a plataforma privada da Criptoved,
dessa vez com modificações importantes que tentavam aproximar a plataforma privada de um
software livre: "Sei que é um papo que a gente já teve, mas talvez a gente não tenha trabalhado
todas as possibilidades, que seria colocar de propriedade do e-Dinheiro, ou a comunidade de
bancos ou de todo mundo envolvido nesse projeto, essa ferramenta como propriedade de uso
concedida, perpétua, sem custo nenhum, com 100% do direito de uso e expansão. Nada a ver
com o modelo antigo que eles tinham com o antigo fornecedor. Mas uma mentalidade diferente
de doar uma ferramenta perpétua, sem custo nenhum, que faria o projeto alavancar de uma
maneira muito mais rápida" (Flávio, fundador da Criptodev, 2021).
Ao utilizar uma plataforma proprietária, a infraestrutura de blockchain não mais configuraria
um projeto de software livre, mas seria um modelo alternativo de propriedade compartilhada
pelos bancos comunitários membros da RBBC. Sabendo que essa nova proposta traria riscos
para os princípios iniciais do projeto, mas que poderia acelerar e facilitar o desenvolvimento
da tecnologia, os participantes decidiram levar a proposta de Flávio para a avaliação da RBBC.
Foram marcadas duas reuniões nas quais seriam tomadas as decisões sobre qual modelo de
software o projeto seguiria.
A DECISÃO
Flávio é o primeiro a entrar na reunião on-line. Ele apresentará aos desenvolvedores do e-Dinheiro
sua proposta para utilização da plataforma proprietária da Criptodev. Ele nos cumprimenta
11 Fonte: https://www.gnu.org/philosophy/free-sw.pt-br.html.

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e, parecendo bastante empolgado, diz: “É hoje que vamos apresentar aos desenvolvedores?”.
Logo em seguida, Edgar (nome fictício), um dos pesquisadores do Labis, entra na reunião e
nos diz que convidou Caio (nome fictício) e Paulo (nome fictício), representantes dos bancos
comunitários, para ouvirem a apresentação de Flávio e opinarem sobre o caminho que vamos
seguir. Paulo foi o membro incumbido pelo RBBC para acompanhar o projeto, participando
desde a primeira negociação com os fornecedores de tecnologia, e é também um ativista na
causa dos bancos comunitários. Caio é um dos fundadores e líderes do banco comunitário
onde será testada a infraestrutura de blockcain, além de ser membro do Labis e doutorando na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Aguardamos por vários minutos a entrada dos desenvolvedores do e-Dinheiro. Estávamos
preocupados com essa ausência, pois a validação deles nessa etapa seria essencial para desenharmos
os próximos passos desse modelo de governança. Por fim, Ricardo (nome fictício), um dos
desenvolvedores, entra na reunião, mas logo pergunta sobre o motivo do nosso encontro. Edgar
explica rapidamente de maneira um pouco desconcertada e, então, Ricardo diz: "Não me leve a
mal, mas talvez seja uma perda tempo". Ele nos explica que não tem poder de decisão em relação
ao assunto do qual vamos tratar, mas diz que estaria disposto a ouvir e dar sua opinião técnica.
Em seguida, Flávio inicia sua apresentação. Em uma fala rápida, com cerca de 10 minutos,
nos apresenta sua proposta. Ele começa por nos contar sobre a plataforma privada da Criptodev. É
uma infraestrutura de blockchain as a service (BAAS) que eles oferecem a seus clientes. Na prática,
essa plataforma possibilita que os clientes da Criptodev utilizem o blockchain sem a necessidade
de desenvolver um artefato tecnológico para cada cliente. O acesso ao blockchain se dá por meio
de portas digitais, como APIs, SDKs e Plugins, que possibilitam a conexão das interfaces e dos
softwares internos do cliente com a plataforma da Criptodev. Flávio continua sua apresentação
nos contando quais seriam os principais benefícios de utilizarmos sua plataforma proprietária:
1. Primeiro, seria a possibilidade de se desenvolver em blockchain sem a necessidade de
um time especialista. Isto é, uma vez feito o desenvolvimento da plataforma proprietária,
os clientes poderiam criar aplicações em blockchain programando em linguagens mais
fáceis e acessíveis.
2. Segundo, com a utilização da plataforma proprietária, o desenvolvimento poderia ser
feito em semanas, pois seria necessário somente o desenvolvimento da interface e dos
sistemas internos e suas interações com a plataforma proprietária
3. E, terceiro, futuras alterações seriam mais fáceis de implementar, considerando que
a plataforma possui suporte para diferentes níveis.
Além disso, diferentemente da primeira proposta, dessa vez Flávio propõe um modelo
alternativo de governança para o software. A Criptodev faria a doação do código da plataforma
privada, de uso perpétuo e sem custo para os bancos comunitários. Portanto, os bancos

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comunitários também seriam proprietários do código da plataforma privada, com a condição
de não fazerem uso comercial da plataforma. Para isso, seria necessária também a criação ou
definição de uma entidade comum entre os participantes do projeto, de modo que o código
pudesse ser mantido e gerido por essa entidade (veja resumo na Figura 2). Finalizada sua
apresentação, Flávio diz: "Então, isso é uma ideia que pega no meio do que é software livre.
Porque ele acaba sendo um software de livre utilização para o grupo, embora ele tenha um
criador. Mas não gera nenhum tipo de restrição, e gera outros benefícios. Além de catalisar
outras discussões que eu acho fundamentais para que a gente saia desse limbo... e eu queria
ouvir vocês" (Flávio, fundador Criptodev, 2021).
Figura 2. Resumo da proposta de uso da plataforma privada para o e-Dinheiro e bancos comunitários

Fonte: Elaborado pelos autores
Paulo levanta a mão e diz que o ponto da governança realmente é "muito delicado e
importante". Ele segue dizendo que a proposta de Flávio lhe parece uma boa ideia, mas que
seria necessário levar essa discussão para a RBBC. No entanto, Paulo adiciona que ele seria
incapaz de reproduzir o que foi dito por Flávio, devido à linguagem técnica e complexa utilizada
na apresentação. Por fim, conclui: "Meu voto é a favor, mas a RBBC precisa assumir isso, já
que vamos ter um compromisso formal com eles”.
Ricardo concorda com Paulo. Ele diz que a parte técnica parece ser viável, mas questiona
quem ficaria responsável pela manutenção da infraestrutura e como seriam disponibilizadas
as APIs. Ele adiciona que a RBBC pode não ter a estrutura e os recursos necessários para arcar

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com a manutenção desse sistema: "Achei muito interessante, porém acho que seria interessante
pontuar também na proposta para a RBBC, esclarecendo como seria a questão do manutenção
do código. Porque, no meu ponto de vista, o e-Dinheiro ainda não tem capacidade de arcar
com essa manutenção [...] Essa é minha opinião técnica, meu voto também é a favor, mas
como disse Paulo, prefiro que isso ainda seja formalizado com a diretoria da RBBC" (Ricardo,
desenvolvedor do e-Dinheiro, 2021).
Caio levanta a mão e comenta sobre os desafios desse tipo de decisão: Vou tentar ser
claro em algo que não tenho muitas experiências técnicas... É muito comum que a gente, líder
comunitário das favelas, a gente passar por situações assim. A gente tem que decidir às vezes
sobre algo que a gente não tem total conhecimento. Então a gente vai trabalhando muito em
cima da intuição, da experiência política [...] E se fosse pra dar um voto, seria pra dar um voto
em cima do parecer de alguém, alguém que eu confie e que entende e alcance um raciocínio
maior do que eu estou conseguindo alcançar nesse momento, mas em pouco tempo a gente
vai entendendo" (Caio, líder comunitário e pesquisador do Labis, 2021).
Caio prossegue dizendo que precisamos decidir progressivamente sobre essas melhorias e
que isso não seria uma decisão só da RBBC, pois seria necessário envolver também os demais
bancos comunitários. Ele adiciona que é necessário pensar também na formação da comunidade
para se apropriar desse tipo de tecnologia e na participação da comunidade nessas decisões:
"Foi citada uma possibilidade de uso por pessoas que não são tão especialistas, uma coisa que
eu acredito.... eu tô aqui com três adolescentes que estão responsáveis por toda nossa parte de
tecnologia. Se eu esperasse eles se tornarem especialistas para depois fazer algum trabalho...
a minha distância... que é da favela... com a galera que tá do lado da tecnologia ficaria cada
vez maior. Então eu estou tentando diminuir essas distâncias. Então acredito na figura da
participação, de encontrar pessoas que têm talento sobre aquilo... que gostam... Então é um
voto favorável em cima da intuição... e ter uma discussão mais ampliada dentro da RBBC sobre
essas decisões, e reconhecer que, ao mesmo tempo, é preciso formar pessoas. Porque as pessoas
não têm recursos, mas têm interesse, vontade e inteligência para participar de uma reunião
como essa. (Caio, líder comunitário e pesquisador do LabIS, 2021).
Vitor, um programador e membro do Labis que também participava da reunião, concorda
com Caio e ressalta a importância da qualificação e do software livre: "Acho que precisamos
discutir sobre colocar em prática o software livre na essência. Já que a gente não vai precisar
ser especialista em blockchain para desenvolver, e a gente não tem braço... seria muito mais
difícil a gente encontrar um desenvolvedor Javascript ou PHP, por exemplo. Eu acho que é
muito importante que a gente consiga no mínimo discutir a capacitação e a criação dessas
oportunidades para que pessoas dentro da [RBBC] consigam desenvolver junto da aplicação"
(Vitor, programador do LabIS, 2021).
Depois dessa primeira reunião, nos encontramos com Joaquim e Leonora para termos
uma decisão final sobre adotar ou não a plataforma privada oferecida pela Criptodev. Joaquim
e Leonora ouvirão a proposta pela primeira vez e decidirão sobre qual caminho seguiremos.
Edgar é o primeiro a falar, ele explica o propósito da reunião: "Pra gente efetivamente começar

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o desenvolvimento do software, a Criptodev trouxe uma ideia que a gente vem conversando.
Conversamos entre a gente, depois levamos para o Paulo... de uma possibilidade de uso de um
componente do software, um pedacinho, digamos assim, que é um produto que a Criptodev já
trabalha faz um tempo. Eles querem colocar pra gente quais são as condições desse produto [...]
Flávio vai explicar qual é essa proposta que a gente vem discutindo, que no nosso entendimento
tem o potencial de acelerar o processo, mas que precisamos ver com muito cuidado como seria
isso e suas condições de uso" (Edgar, Pesquisador Labis, 2021).
Se você estivesse na posição de Joaquim e Leonora, diretores da RBBC, o que decidiria?
QUESTÕES PARA DISCUSSÃO
1. Diante da possibilidade de acelerar o desenvolvimento do projeto, a RBBC deveria
aceitar a utilização da plataforma privada da Criptodev?
2. Quais seriam as ameaças e desafios que a RBBC e os bancos comunitários precisariam
superar caso aceitassem a utilização da plataforma privada?
3. Caso a RBBC decida continuar com o desenvolvimento em software livre, quais seriam
os desafios?
4. Como a utilização da plataforma privada no modelo proposto pela Criptodev poderia
contribuir para a apropriação da tecnologia pelos bancos comunitários?
5. Qual modelo de governança você, na figura de um líder de banco comunitário, proporia
para a utilização da plataforma privada?

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Anexo 1. Glossário de termos técnicos
Termo Descrição
Blockchain
Blockchain é um tipo de tecnologia digital que possibilita o registro distribuído
e imutável de eventos digitais. É base para a construção e operação de
criptomoedas como o Bitcoin.
Blockchain as a service (BASS)
É a disponibilização de funções do blockchain mediante a contratação de
serviços. Na prática, isso possibilita que organizações que não são capazes
de desenvolver softwares em blockchain contratem serviços de fornecedores
especializados, sem a necessidade de comprar um software.
Criptomoedas
É um tipo de moeda digital. Essas moedas geralmente são não governamentais
e operam em redes de computadores descentralizas, como o blockchain. São
criptografadas de ponta a ponta. Existem milhares de criptomoedas; entre as
mais famosas estão o Bitcoin e Ethereum.
Software
Refere-se a um conjunto de instruções digitais que devem ser seguidas
e executadas conforme projetadas. Na prática, são os programas de
computadores ou outros dispositivos eletrônicos que usamos, como o Microsoft
Windows.
Software livre
São softwares que permitem a qualquer um copiar, usar, distribuir ou modificar
gratuitamente.
APIs, SDKs e Plugins
API (Application Programming Interface | Interface de Programação de
Aplicações) são pedaços de software que possibilitam a comunicação entre dois
ou mais softwares; SDK (Software Development Kit | Kit de desenvolvimento de
software) é um conjunto de ferramentas para o desenvolvimento de aplicativos,
normalmente disponibilizados por fornecedores de software aberto; Plugins são
pedaços de software que podem ser conectados e completar outros softwares.
Javascript e PHP
São linguagens de programação de alto nível, ou seja, mais próximas da
linguagem humana. São linguagens consolidadas no mercado e de mais fácil
aprendizagem.
Fonte: Elaborado pelos autores

GVcasos ¹ Revista Brasileira de Casos de Ensino em Administração FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 14 | ISSN 2179-135X 1
CASO
Submissão: 15/03/2022 | Aprovação: 07/06/2022
DOI: https://doi.org/10.12660/gvcasosv12nespecialc14
FORMAÇÃO DE JOVENS EM EMPREENDEDORISMO
RURAL: ADAPTANDO UMA TECNOLOGIA SOCIAL
PARA A COMUNIDADE LGBTQIA+
Training young people in rural entrepreneurship: adapting
a social technology for the LGBTQIA+ community
Ana Clara Aparecida Alves de Souza¹ | [email protected]
Marlei Pozzebon² | [email protected]
Fabio Prado Saldanha³ | [email protected]
Aurigele Alves⁴ | [email protected]
¹Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) – Porto Alegre, RS
²FGV EAESP – São Paulo, SP e HEC Montréal – Montreal, Canadá
³John Molson School of Business, Concordia University – Montreal, Canadá
⁴Agência de Desenvolvimento Econômico Local, Pentecoste, CE
RESUMO
A ADEL é uma instituição sem fins lucrativos fundada em 2007 no município cearense de Pentecoste. Ela
tem como objetivo capacitar jovens rurais a desenvolver seus próprios negócios e ficar no território onde
nasceram, atuando como empreendedores. Uma das metodologias mais conhecidas da ADEL é o PJER,
um programa de formação de empreendedores rurais, uma tecnologia social que já formou e financiou
centenas de jovens na região do Semiárido. Em 2019, a ADEL lançou a edição do programa PJER
Diversidade, tendo como alvo a comunidade LGBTQIA+. Trata-se de um imenso desafio não somente
para os fundadores e gestores da ADEL como também para os participantes e para a comunidade local.
Palavras-chave: Tecnologia social, LGBTQIA+, êxodo rural, jovens empreendedores.
ABSTRACT
Adel is a non-profit institution founded in 2007, in small town named Pentecoste situated in the Brazilian
State of Ceará. Adel has the aim of enabling young rural people to develop their own businesses and stay
in the territory where they were born as entrepreneurs. One of Adel's best-known methodologies is PJER,
a project to train young rural entrepreneurs, a social technology that has already formed and financed
hundreds of young people in the semi-arid region. In 2019, Adel launched the PJER Diversity program,
targeting the LGBTQIA+ community. This is an immense challenge not only for Adel's founders and
managers, but also for the participants and the local community.
Keywords: tecnologia social, LGBTQIA+, rural exodus, young entrepreneurs.

CASO | FORMAÇÃO DE JOVENS EM EMPREENDEDORISMO RURAL: ADAPTANDO UMA TECNOLOGIA SOCIAL PARA A COMUNIDADE LGBTQIA+
Ana Clara Aparecida Alves de Souza | Marlei Pozzebon | Fabio Prado Saldanha | Aurigele Alves FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 14 | ISSN 2179-135X 2
INTRODUÇÃO
Se você é lésbica, você não pode ser masculina, porque senão você nunca vai ter um emprego.
Porque se você não for feminina, não se vestir como menina, não tiver o jeito de menina, não
esconder a sua orientação sexual, você não consegue emprego. Da mesma forma, se você for gay,
afeminado, você também não vai conseguir. Quando muito, consegue um subemprego em salão
de beleza... Enfim, todas aquelas condições. (Aurigele, Coordenadora do PJER Diversidade)
A autora dessa fala se chama Aurigele Alves. Ela nasceu em Pentecoste, município
cearense localizado a cerca de 80 km da capital, Fortaleza. Em 2007, foi fundada a Agência de
Desenvolvimento Econômico Local, em Pentecoste, também conhecida como ADEL.
A Agência de Desenvolvimento Econômico Local (ADEL) é uma organização sem fins
lucrativos que tem como missão promover o desenvolvimento local de comunidades rurais
no Sertão do Nordeste brasileiro por meio do empreendedorismo e do protagonismo social
de jovens e agricultores rurais. (Site da ADEL, 12/3/2022)
Após um começo difícil, a ADEL conquistou legitimidade e reconhecimento no universo
dos organismos que promovem desenvolvimento local e empreendedorismo da população rural.
A jovem Aurigele, que também foi uma das fundadoras da ADEL, ocupa atualmente o cargo
de coordenadora da edição Diversidade de um dos principais programas da ADEL, chamado
Projeto Jovem Empreendedor Rural, ou simplesmente PJER. A edição Diversidade do PJER
foi desenhada para integrar a comunidade LGBTQIA+
1
, o que representa um grande desafio,
particularmente no contexto rural brasileiro, onde alguns preconceitos ainda se encontram
muito enraizados e pouco questionados. Esse desafio dialoga com a própria biografia de Aurigele:
mulher lésbica e empreendedora, nascida e criada nessa região.
Se a gente pegar a problemática do êxodo rural, sobretudo na faixa etária de jovens, a gente
vai perceber que a população LGBTQIA+ é uma das que mais migra, é uma das que mais
sai da zona rural para capital, sobretudo em busca de aceitação, em busca de uma vida
mais confortável, na qual consiga se encontrar e se autoafirmar na sua identidade. É fato
que, quando a gente vive no interior do estado, nós estamos cercados de valores culturais,
religiosos, pelo machismo, pelo sexismo... É uma série de “ismo” que nos expulsa. Digo isso
muito por experiência própria. A gente está cercado. É isso que nos empurra, na maioria
das vezes, para o abismo: para o suicídio, para a depressão, para a mutilação e uma série
de problemas que são, sobretudo, ocasionados pela não aceitação. Então, quando a gente
olha para um contexto que não nos abarca, não nos aceita, não respeita, não nos inclui, a
gente tende a migrar. (Aurigele, Coordenadora do PJER Diversidade)
1 A sigla LGBTQIA+ indica lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, queer, intersexo, assexuais e mais.

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Embora seja difícil encontrar dados precisos sobre esse cenário, estudos do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
2
indicam que, em décadas sucessivas, o êxodo
rural de jovens da população rural só vem aumentando. Entre as principais razões pelas quais os
jovens abandonam as zonas rurais, está a falta de perspectivas profissionais. No entanto, no caso
de um jovem que pertence à comunidade LGBTQIA+, somam-se opressão social, preconceito
e discriminação quanto às dissidências sexuais e de gênero.
E aí, a gente percebe que essa migração é resultado dessa forte pressão, do preconceito
e de todos os problemas já conhecidos. Quando a gente olha e ajusta o ângulo para
ver essa população, a gente percebe que são importantes atores dentro do processo de
desenvolvimento: são pessoas que têm múltiplas capacidades, vários talentos e que, por
falta de oportunidade, de acolhimento, de incentivo e de apoio, essas pessoas acabam se
submetendo a condições de vida que ampliam a vulnerabilidade delas. Sobretudo quando
elas saem do interior do estado, onde nasceram e se criaram; onde, minimamente, têm
uma rede de proteção, que é a família. Quando essa pessoa sai, quando ela vai embora, ela
perde até isso. Porque ela chega em uma Fortaleza (capital do Ceará), ela vai morar em
um bairro periférico, ela não vai conseguir emprego. Sobretudo, se ela for da população
“T”, em que o preconceito é muito mais acirrado, é muito mais visível. As portas continuam
fechadas – ou no interior de onde ela saiu ou aonde ela chegou – porque o preconceito
está escancarado. E, no contexto atual, isso é muito mais notório. (Aurigele, Coordenadora
do PJER Diversidade)
Aurigele descreve que, por uma questão de identidade, ela se sente muito conectada com
os participantes do programa PJER na sua versão Diversidade, ou seja, destinada à formação
da turma LGBTQIA+. Ela sente uma verdadeira conexão com esses participantes.
No processo de formação, o que a gente percebeu foi a dificuldade de compreensão, de
conexão de ideias, de escrita, a baixa autoestima. Os outros jovens do PJER convencional
já chegam na formação com aquele desejo, já chegam querendo desenvolver o projeto,
sabem o que vão fazer, sabem dessa possibilidade. A turma LGBTQIAP+, embora todos
eles tivessem um sonho, um desejo, e tivessem muitas habilidades, eles não conseguiam
se enxergar fazendo aquilo. Não conseguiam se enxergar sendo o dono de uma empresa
de decoração, como o cara que tinha o seu próprio salão de beleza, como maquiador
profissional, como dono da sua própria lanchonete, enfim... Então, o primeiro ponto a
trabalhar com essa população foi a questão da autoestima. (Aurigele, Coordenadora do
PJER Diversidade)
Após divulgar o projeto em Pentecoste e em outros quatro municípios vizinhos, selecionar
os jovens a partir de seus interesses em empreender e começar os ciclos de formação junto
2 https://educa.ibge.gov.br./

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com a equipe da ADEL e parceiros, Aurigele tem momentos reflexivos sobre como poderá
melhor adequar a metodologia utilizada correntemente em turmas do PJER para o público
LGBTQIA+, considerando os desafios sociais de aceitação e acesso a direitos que enfrentam
no contexto no qual habitam.
AGÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO LOCAL (ADEL)
A ADEL foi fundada por jovens da região do município de Pentecoste que, com o suporte
de um programa de educação em células cooperativas, conseguiram desenvolver os seus
conhecimentos e ingressar em cursos de ensino superior. A partir da conclusão de suas formações,
desejaram retornar ao seu território para compartilhar os saberes adquiridos, contribuindo para o
desenvolvimento local. Esses jovens se formaram em áreas multidisciplinares do conhecimento
e viram, na união desses saberes, a possibilidade de complementaridade com os saberes locais
que eles, suas famílias e a comunidade detinham, visando um fortalecimento econômico e
social da região (Souza, Pozzebon, & Silva-filho, 2015).
A ADEL atua com projetos que visam dar suporte tanto a agricultores familiares quanto a jovens
que têm potencial de empreender na região. Para ambos os públicos beneficiados, a ADEL oferece:
• acesso a conhecimento (por meio de oficinas e cursos de capacitação);
• acesso a crédito (pela oferta de pequenos empréstimos);
• acesso a redes (pelas atividades de assistência técnica conectadas com arranjos produtivos
e comerciais, formação e apoio a associações e cooperativas);
• acesso a tecnologias (disponibilizadas por meio de assessoria técnica; acesso também
a tecnologias socioambientais, tecnologias sociais e tecnologias de informação e
comunicação), conforme Figura 1.
Figura 1. Suporte oferecido pela ADEL
(Fonte: ADEL (https://www.adel.org.br/.

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A articulação desses quatro elementos (ou pilares) constitui uma metodologia genérica,
que, em cada programa distinto, é adaptada. Os gestores das ADEL entendem essa metodologia
como uma tecnologia social, ou seja, uma solução criada “na interação com a população,
como resposta aos problemas que ela enfrenta, levando em conta suas tradições, seus arranjos
organizacionais, os saberes locais, o potencial natural da região [...], sua realidade histórica,
econômica, social e cultural”
3
. Ao longo dos anos de atuação no Semiárido cearense, a
ADEL viu a possibilidade de expansão das suas atividades, chegando a outros territórios do
Nordeste. Em cada região, ainda que com características similares, são encontrados novos
desafios próprios do contexto.
A METODOLOGIA OU TECNOLOGIA SOCIAL DO PJER
A questão central trabalhada pelo PJER é o estímulo para que os jovens pensem em como
podem conceber negócios que lhes permitam ter uma renda e permanecer em suas regiões,
reconhecendo nisso uma oportunidade e refutando a necessidade de migração como única
alternativa possível. Na configuração desses empreendimentos, tem-se, em conjunto, um
fortalecimento do desenvolvimento local considerando aspectos econômicos e sociais. O
PJER foi criado pela ADEL quando os seus idealizadores, também jovens, perceberam que os
jovens da região não estavam no protagonismo da produção agrícola, seja pela característica
patriarcal do núcleo familiar, seja pela opção pela migração para outras cidades em busca de
melhores oportunidade. Esse fluxo de saída da região alicerça-se também no que se caracteriza,
historicamente, como êxodo rural. Sendo o PJER um projeto ligado à tecnologia social criada
pela ADEL, como vimos acima, sua metodologia segue essa mesma estrutura baseada sobre
quatro pilares.
Primeiramente, inicia-se um curso de formação em empreendedorismo e gestão, no qual
os jovens selecionados pelos editais da ADEL aprendem por meio de atividades pedagógicas
que se estendem por quatro meses, em um regime que se baseia na “pedagogia da alternância”
(parte do tempo imersos em formação e parte do tempo aplicando os conhecimentos adquiridos
nos ciclos, com o suporte da ADEL, em suas casas e convivências pessoais para a configuração
de projetos). O curso possibilita aos jovens o aprendizado amplo sobre planejamento, criação,
gestão e desenvolvimento de empreendimentos em zonas rurais (aqui também são consideradas
as sedes urbanas dos municípios do interior). A partir dessas noções e vivências básicas, esses
jovens elaboram seus planos de negócios e projetos, que podem ser individuais ou coletivos. A
partir do desenvolvimento do plano de negócios, os jovens buscam o acesso a crédito para tirar
as suas ideias do papel.
3 http://itsbrasil.org.br/conheca/tecnologia-social/ e file:///C:/Users/11000756/Downloads/3794-15761-1-PB.pdf

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No ano de 2012, a ADEL criou o Fundo Veredas para acesso a crédito, o que constitui
o segundo pilar da metodologia. Por meio dele, é possível a esses jovens acessar sem muitas
restrições os recursos que lhes permitirão, de fato, conceber o empreendimento ou mesmo
melhorar algo que já empreendiam anteriormente, mas sem o conhecimento de gestão necessário.
A criação desse fundo foi possibilitada, inicialmente, a partir de um prêmio recebido pela ADEL
por conta de sua atuação relevante no território. Ressalta-se que alguns dos negócios precisam de
menos de R$ 1 mil para se constituírem, de modo que os empreendedores podem ir buscando
acesso ao crédito de acordo com a sua renda e com as necessidades de avançar na atividade
desenvolvida. Com vistas à otimização do uso dos recursos emprestados pelo Fundo Veredas,
cada empreendedor tem acesso contínuo a assessoria técnica e gerencial.
São três as linhas de crédito oferecidas pelo Fundo Veredas a jovens e grupos de jovens
empreendedores:
• Crédito Semente: destinado aos estágios iniciais dos empreendimentos.
• Crédito Orientado: destinado aos estágios mais avançados dos empreendimentos.
• Crédito Direcionado: investimento realizado por um parceiro-investidor especificamente
direcionado a um empreendimento.
A articulação na formação de Redes é o terceiro pilar fundamental da metodologia do
PJER. A sua relevância dá-se pela necessidade de conectar pessoas que estão engajadas por
objetivos e desafios semelhantes. Dessa forma, os jovens participantes do PJER são engajados na
Rede de Jovens Empreendedores Rurais, com vistas à cooperação, trocas e aprendizagem sobre
soluções e boas ideias de empreendimentos e projetos, considerando os contextos semelhantes
nos quais atuam.
E o quarto pilar da metodologia, que se conecta aos demais na estrutura de desenvolvimento
e suporte ao PJER, é composto pelos Centros Integrados de Tecnologia e Informação (CITs).
Os CITs foram estruturados para funcionarem como escritórios coletivos, pois, além da conexão
com a internet, os jovens têm a possibilidade de se encontrar e estabelecer trocas, inclusive
compartilhando os resultados daquilo que conseguem compilar pela navegação virtual em
busca de informações. Os CITs estão localizados em salas de associações comunitárias ou foram
construídos em terrenos cedidos pelas próprias comunidades. Como equipamentos, os jovens têm
acesso a computadores, impressoras e telefones. A viabilidade desses CITs é possibilitada pela
ADEL, no estabelecimento de parcerias que reconhecem a relevância dos trabalhos realizados.
Em conjunto, essas frentes de trabalho compõem a estrutura fundamental que torna viável a
execução dos programas e projetos da ADEL.
A sequência de seis passos que permite a operacionalização dos quatro pilares da metodologia
do PJER se estabelece conforme a Figura 2.

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Figura 2. A metodologia do PJER
1. Formação dos
jovens em negócios
rurais
2. Elaboracão/
aprimoramento do
plano de negócios
3. Acesso a crédito
(Fundo Veredas)
6. Acesso dos jovens a
TICs através dos CITs
4. Assessoria
em campo para
desenvolver o negócio
5. Apoio para a
formação de APLs e
redes de negócios
Primeiro ciclio:
Atendimento gratuito a jovens
empreendedores ruraris selecionados, com
potencial de desenvolvimento.
Segundo ciclo em diante:
Formação continuada e desenvolvimento dos
negócios como serviços oferecidos aos jovens
- modelo de negócios do Programa.
Fonte: Informativo Adel.
PJER EDIÇÃO DIVERSIDADE
No ano de 2019, a ADEL foi contemplada em um edital que previa o suporte a iniciativas
voltadas ao público LGBTQIA+, e teve como desafio a formação da primeira turma do PJER
Diversidade. O objetivo da formação foi trabalhar o desenvolvimento de empreendimentos
dos jovens LGBTQIA+ da região de Pentecoste e outros quatro municípios vizinhos. A seleção
buscou por 25 jovens, e a divulgação do edital e do projeto ocorreu por meio de contatos com
lideranças, associações e coletivos LGBTQIA+ dessas localidades. A liderança da formação
ficou a cargo de Aurigele, bastante conhecedora dos desafios enfrentados pela comunidade
público dessa edição do programa.
O interesse pela formação foi amplo e possibilitou a seleção dos jovens com expectativas
empreendedoras para a região. O PJER Diversidade foi sistematizado para seguir a estrutura
metodológica do PJER em sua formação “convencional”. Entretanto, foram necessárias
adequações de modo que a vivência e a aprendizagem estivessem alinhadas não apenas ao
contexto geográfico, mas também ao contexto social e ao público LGBTQIA+ e suas demandas
particulares.
Nesse sentido, os quatro pilares da metodologia do PJER foram colocados em prática:
oferecimento do curso de formação em empreendedorismo e gestão; acesso a crédito; apoio
para a formação de redes, associações e cooperativas; e acesso a assessorias técnica (os CITs).
Seguem abaixo depoimentos de alguns jovens que passaram por essa adaptação da metodologia
convencional do PJER a essa demanda de diversidade para o público LGBTQIA+:

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E foi através de todas as oficinas que a gente passou... ontem eu estava estudando algumas
coisas que eu tinha esquecido, algumas métricas e informações que a ADEL compartilhou
com a gente, e eu estava revendo tudo isso e, cara, o quanto eu evoluí depois do PJER...
porque a minha mentalidade era outra em relação ao mundo, ao empreendedorismo, em
relação ao movimento e, agora, é outra, assim, de aprimoramento e tudo o mais. (Jovem
entrevistado 2, participante da primeira turma do PJER Diversidade)
É muito, muito, muito desafiador ser LGBT e viver no Nordeste, viver no Sertão. Ser uma
mulher trans que, infelizmente, ainda é muito subjugada, muito inferiorizada, privada,
sabe? E só por ser quem eu sou. Sem nada demais... Então, essa oportunidade de você
poder entender que você tem capacidade, que você tem potencial, como qualquer pessoa
cis, branca, padrão, é muito transformador! Me empoderou assim, ó [estrala os dedos],
no último nível! [...] E eu tenho o PJER ao meu lado ainda, porque, querendo ou não, a
ADEL está aí. Então, eu posso estar sempre procurando dicas, estar acessando novamente
o Fundo Veredas (fundo de crédito da ADEL), que também foi muito importante! Tu
imagina, te dão uma oportunidade de aprender a empreender e ainda dá uma linha de
crédito para você... sabe? É surreal! (risos). (Jovem entrevistada 1, participante da primeira
turma do PJER Diversidade)
Quando eu estreitei a minha network com a ADEL, tinha vários workshops, palestras e tudo
mais... “Cara, tem isso aqui, tem esse leque de oportunidades aqui que a ADEL pode te
dar.” Eu sempre enxerguei a ADEL não só como o PJER o cursinho ali da ADEL, mas
a ADEL como um todo [...] E, fora tudo isso, conhecer outras histórias também, porque
a gente conheceu outras pessoas, novas pessoas e, tipo, “olha, aquela pessoa passou pela
mesma coisa que eu só que um pouquinho pior...”. Então, aquela troca de experiências
e relatos também ajudaram a fortalecer. [...] Então, tem aquela conexão. A gente passou
uma semana junto, então, já viu! Muito intenso! A gente chorou, a gente compartilhou
histórias, a gente fortaleceu laços e foi criando aquela questão de união. Uma coisa que,
até então, eu nunca pensava. (Jovem entrevistado 2, participante da primeira turma do
PJER Diversidade)
RECONFIGURAÇÕES E DESAFIOS
À medida em que a proposta de realização do PJER Diversidade foi se configurando, muitas
questões complexas foram se revelando, para além daquelas já consideradas pela ADEL.
Eu sou negro, LGBT e de família humilde. Então, provavelmente, eu jamais chegaria
no status que eu deveria chegar. (Jovem entrevistado 2, participante da primeira turma
do PJER Diversidade)
Tais questões evidenciam dificuldades que estão alicerçadas na estrutura social
heteronormativa que tem uma centralidade homofóbica e segregadora. Nesse sentido, a ADEL

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foi identificando a necessidade de flexibilização dos processos de formação com vistas à melhor
adequação possível ao público atendido. A exigência de ensino básico foi retirada na seleção,
bem como se identificou a relevância de trabalhar com intensidade a autoestima dos jovens
LGBTQIA+, considerando os efeitos sócio-históricos decorrentes dos enfretamentos pela questão
da identidade de gênero e outros desafios que orbitam esse debate.
Dessa forma, a formação trouxe à tona não apenas para a ADEL e para o PJER, mas para a
própria coordenadora, Aurigele, a magnitude do desafio a ser enfrentado. À medida que os ciclos
da formação seguiam, a sensibilidade a essas complexidades sinalizava as adequações necessárias
de linguagem, desconstrução de padrões aprisionantes da criatividade e da possibilidade de
enxergar que era possível expandir os horizontes para amplas expectativas empreendedoras, e
não apenas pensar em negócios que a sociedade tende a indicar que são “talentos natos” da
comunidade LGBTQIA+. A ADEL trabalhou nessa formação uma ideia ampla de que não
importa se os jovens são LGBTQIA+, eles podem empreender naquilo que quiserem, basta
que tenham suporte e dedicação para o alcance desse objetivo.
Eles não acreditavam neles mesmos, então, a gente chegar e dizer: “Você pode empreender!
Você pode ter o seu próprio negócio! Você pode se emancipar! Você pode ter a sua autonomia
financeira!”, era algo que eles não acreditavam. Era algo muito distante da realidade!
Construir isso foi um exercício muito difícil para mim, foi muito difícil para nossa equipe.
A formação toda a gente trabalhou nessa perspectiva de fazer esse resgate, de estimulá-los
a pensar o local onde eles estão, para além da orientação sexual, para além dessa condição
que ele colocou para si, que ele está vivendo. A gente precisa tentar ocupar esses espaços
e fazer com que a nossa voz seja escutada. Não é indo embora que a gente vai resolver
o problema. Então, a gente tentou trazer muito essa formação política, tentar ampliar a
visão dessas pessoas para uma outra perspectiva, é algo muito, muito difícil. (Aurigele Alves,
Coordenadora do PJER Diversidade)
A partir das dificuldades acima apontadas por Aurigele, percebe-se que mesmo uma
tecnologia social já existente – neste caso, uma metodologia de formação – necessita de adaptações
quando considerado outro contexto ou público. O exemplo da execução do PJER Diversidade
demonstra a necessidade de reconfigurações de uma tecnologia social. Reconfigurações que
atendam a desafios os quais colocam em questão a sua estruturação convencional do início.
Esse é, então, o grande desafio com o qual Aurigele se depara.
Ela entra em uma das salas de formação do PJER que nesse momento está vazia. Sozinha,
ela começa a refletir sobre como enfrentar o desafio que não sai de sua mente há vários dias:
Como uma tecnologia social pode ser adaptada para públicos e contextos diferentes? Aurigele
aguarda alguns companheiros que se unirão a ela dentro de alguns minutos para discutir esse
tema que tanto a preocupa. Enquanto os colegas não chegam, ela formula melhor no quadro
de giz a pergunta que pretende discutir coletivamente: Como adaptar a tecnologia social do
PJER para atender de maneira ainda mais sensível/apropriada a um público LGBTQIA+?

CASO | FORMAÇÃO DE JOVENS EM EMPREENDEDORISMO RURAL: ADAPTANDO UMA TECNOLOGIA SOCIAL PARA A COMUNIDADE LGBTQIA+
Ana Clara Aparecida Alves de Souza | Marlei Pozzebon | Fabio Prado Saldanha | Aurigele Alves FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 14 | ISSN 2179-135X 10
ANEXO 1. IMAGENS DO PJER DIVERSIDADE
Fonte: ADEL

GVcasos - Revista Brasileira de Casos de Ensino em Administração FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 15 | ISSN 2179-135X 1
CASO
Submissão: 14/03/2022 | Aprovação: 15/06/2022
DOI: https://doi.org/10.12660/gvcasosv12nespecialc15
PROPÓSITO OU ESCALA? A ENCRUZILHADA
DOS NEGÓCIOS SOCIOAMBIENTAIS
Purpose or scale? The crossroads of socio-environmental
businesses
Ana Luiza Terra Costa Mathias¹ | [email protected]
Alfredo Coli Jr.¹ | [email protected]
¹Universidade de São Paulo – São Paulo, SP.
RESUMO
A VerdeNovo, negócio de impacto ambiental especializado em sementes nativas dos biomas brasileiros,
recebe uma proposta de um grande fazendeiro, o que poderá viabilizar um aumento de escala, mas
descaracterizaria a tecnologia social empregada. Seus sócios precisam decidir se escolhem aceitar a
proposta, ampliando a quantidade de seus produtos, ou recusá-la para seguir realizando parcerias apenas
com coletores locais em situação de vulnerabilidade social.
Palavras-chave: negócios de impacto, tecnologia social, vulnerabilidade social, sustentabilidade
ABSTRACT
VerdeNovo, an environmental impact business specializing in native seeds from Brazilian biomes, receives
a proposal from a large farmer, which could enable an increase in scale, but would also de-characterize the
social technology employed. Its partners need to decide whether they accept the proposal, or they refuse it
and stay making partnerships only with socially vulnerable, local producers.
Keywords: impact business, social technology, social vulnerability, sustainability
A GERMINAÇÃO DA VERDENOVO
– Não quero perder a semente nativa, mas não pode ser um dreno, tem que ser positivo.
Bárbara tem 36 anos, nasceu e cresceu em Brasília, em meio ao Cerrado brasileiro. Escolheu
cursar Biologia na Universidade de Brasília e concluiu o mestrado em Ecologia em Minas Gerais.
A sua relação com a natureza sempre foi próxima e importante para seu desenvolvimento. No
que tange ao mercado de trabalho, também não foi diferente. Bárbara trabalhou por seis anos

CASO | PROPÓSITO OU ESCALA? A ENCRUZILHADA DOS NEGÓCIOS SOCIOAMBIENTAIS
Ana Luiza Terra Costa Mathias | Alfredo Coli Jr. FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 15 | ISSN 2179-135X 2
na Empresa Brasileira de Pesquisa e Agropecuária (Embrapa), coordenando um projeto de
restauração ecológica que lhe trouxe experiências profissionais relevantes. Em dado momento
de sua trajetória, duas questões marcantes foram fundamentais para Bárbara mudar de rota e
buscar um recomeço: o trabalho de muitos anos no mesmo ambiente corporativo (empresa
pública de grande porte) e o falecimento de seu pai, com o qual tinha uma relação muito próxima.
Foi durante um almoço casual com ex-colegas da Embrapa, Simone e William, que surgiu
o questionamento: O que fazer dali em diante?
– Agora que saí da Embrapa, estou pensando no que vou fazer na carreira – disse Bárbara.
– Também estou pensando. Trabalhar com conservação era tão legal. Gostaria muito de
continuar fazendo algo nesse tema – comentou William.
– Nós deveríamos pensar em algo que podemos fazer juntos, né? De repente, pensarmos em
alguma brecha de mercado que vimos durante nossos anos trabalhando lá – respondeu Simone.
– Eu percebi que existe um mercado não explorado na área de restauração ecológica: o
de sementes de árvores nativas dos biomas brasileiros. Eu tenho o hobby de coletar sementes
nativas já há muitos anos. Será que conseguimos juntar esse antigo hobby de coletar sementes
com esta oportunidade de mercado e criar uma empresa? – questionou Bárbara.
Tal indagação, a priori, causou certo espanto em seus colegas, os quais ainda não haviam
pensado em tal possibilidade. Mas logo as conexões começaram a fazer sentido, e um sorriso
apareceu no rosto de Simone, que logo respondeu:
– Isso seria incrível, pois estaria unindo nossas competências para colocar em prática nossos
sonhos e propósitos.
– Exatamente, como já possuímos bastante experiência e uma rede de contatos fortalecida,
também acredito que conseguiríamos desenvolver um projeto de impacto social que esteja
alinhado com nosso propósito. É uma ótima ideia! – replicou William.
A partir desse momento, o assunto tomou conta do almoço, e eles não conseguiam falar de
outra coisa a não ser das possibilidades que aquela visão trazia e como poderiam operacionalizar
o projeto.
– Sabemos que ainda não existe um mercado bem-estruturado, especialmente de sementes
nativas, o qual ainda funciona de modo bastante informal e sem muitos fornecedores – comentou
Bárbara.
– Sim, é um mercado muito incipiente ainda e tem um potencial muito grande para os
próximos anos, ainda mais com o aumento da preocupação com as questões socioambientais
– disse William.
– Olha, pessoal, acredito que a união de nossas experiências com coleta e identificação de
espécies do bioma Cerrado possa realmente ser um modelo de negócio sustentável e que trará
ótimos resultados – exaltou Simone.
A conversa ainda perdurou por mais de uma hora, com o compartilhamento de diversas
ideias e sugestões em meio aos pratos que saboreavam e aos sorrisos dos amigos, que estavam
descobrindo um novo mundo. Dessa reflexão, nasceu o desafio: Como transformar esse antigo
hábito de coleta de sementes em um modelo de negócio estruturado, e quais seriam os próximos
passos que precisariam percorrer para colocá-lo em prática?

CASO | PROPÓSITO OU ESCALA? A ENCRUZILHADA DOS NEGÓCIOS SOCIOAMBIENTAIS
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Alguns meses após aquele almoço casual, as ideias foram trabalhadas em encontros
recorrentes entre os amigos, que também começaram a participar de diversos eventos, congressos
sobre o mercado de sementes e restauração ecológica, além de investirem na constituição de
parcerias para entender um pouco melhor o que seria necessário para compor essa cadeia.
Bárbara e os dois amigos começaram a coletar sementes em áreas urbanas e iam para as áreas
rurais pelo menos duas vezes por semana para levantar o potencial da atividade. Foi assim que,
em 2016, nasceu a VerdeNovo Sementes Nativas (Figura 1 – Anexo). Ao longo de um ano, os
três sócios se organizaram para buscar os primeiros clientes, coletar as sementes, receber os
pedidos e fazer as entregas para testar a viabilidade do negócio.
PRECISAMOS DE MAIS GENTE
Depois de cerca de um ano em que os três sócios estavam realizando as coletas, chegaram à
conclusão de que o mercado de sementes tinha potencial, mas perceberam que precisavam de
mais mãos para ajudá-los, pois seu alcance da coleta era limitado, principalmente na cidade,
onde há menos área natural preservada.
Eles começaram a pensar como poderiam aumentar a escalabilidade da coleta. Durante
uma ligação com Yumi, uma cliente que comprava sementes para projetos agroflorestais,
Bárbara escutou:
– Bárbara, conheci uma senhora que mora em Mambaí. Ela tem mania de coletar sementes
e as armazena em casa como um hobby, mas não as vende. Acho que seria muito legal que
vocês se conhecessem.
Foi assim que a VerdeNovo incorporou em seu modelo a parceria com coletores locais
de sementes. Atualmente, a VerdeNovo trabalha com cerca de 20 coletores em parceria. Esses
coletores são de comunidades tradicionais ou agricultores rurais, entre eles, assentados da reforma
agrária e de comunidades quilombolas. Eles se concentram nos estados de Goiás, Tocantins,
Minas Gerais e no Distrito Federal.
Muitos deles, apesar de viverem em locais com amplo ecossistema natural preservado, não
viam a atividade de coleta de sementes como uma oportunidade de geração de renda. Vários
acabavam trabalhando em lavouras para outros fazendeiros. Muitos coletavam sementes por hábito,
hobby ou para algum propósito específico. A VerdeNovo trabalha com coletores que podem ser
considerados em situação de vulnerabilidade socioeconômica, ou seja, com renda monetária
inferior a US$ 1.90 por dia, segundo parâmetros do Banco Mundial. No entanto, por outro lado,
essas pessoas vivenciam uma riqueza ecológica, nativa e preservada. Os coletores geralmente têm
uma relação afetiva e cultural com seus biomas, conhecendo suas espécies com profundidade.
Dona Santa, a coletora apresentada por Yumi e a mais antiga da VerdeNovo, antes de
coletar sementes, sobrevivia apenas com R$ 95,00 mensais que recebia de um programa do
Governo Federal (Bolsa Família). Hoje em dia, dada sua participação como coletora nos projetos
da VerdeNovo, a renda dela já chega a R$ 1.000,00 mensais.

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A relação que a empresa estabeleceu com os coletores é considerada muito próxima,
como uma família, com preocupação sobre o bem-estar de cada indivíduo e contato constante
entre todos. Além dessa proximidade, os três sócios compartilham com seus coletores muitos
dos aprendizados que tiveram coletando sementes. Isto é, eles ensinam práticas para que as
sementes recebam o melhor cuidado possível, retirando toda a polpa do fruto, deixando secar
de maneira correta etc.
A relação que a VerdeNovo estabelece com os coletores é, inclusive, um diferencial para
alguns clientes, pois a empresa envia, junto às sementes compradas, informações sobre onde e
por quem elas foram coletadas. Yumi é uma das clientes que adoram essa iniciativa e mencionou
que esse trabalho de criar oportunidades para ressignificar as relações de produção e consumo
tradicionais, contribuindo para uma mudança social, é conhecida como "tecnologia social"
e diferencia a VerdeNovo de outras organizações que não se preocupam com o bem-estar e
condições de trabalho dos trabalhadores no meio rural.
ENTENDENDO-SE COMO UM MODELO DE NEGÓCIO DE
IMPACTO SOCIOAMBIENTAL (NIS)
Ainda em 2018, Bárbara participou de um processo de aceleração chamado Impacta Cerrado,
realizado pelo Impact Hub Brasília e pelo Instituto Sabin. Ela pensou que seria uma boa
oportunidade para amadurecer melhor seu negócio e se aproximar de outras organizações da
região que estavam falando de empreendedorismo. Nesse processo, ela e seus sócios entraram
em contato com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e com a possibilidade
de unir propósito com um modelo de negócio, gerando impacto positivo.
Bárbara, Simone e William ficaram surpresos por já existir um termo para algo que eles
faziam há anos, mas não sabiam nomear. A VerdeNovo era um negócio de impacto socioambiental
(NIS), pois unia a venda de sementes nativas, que lhe dava sustentabilidade financeira, com
a colaboração para a preservação e restauração dos biomas brasileiros, integrando coletores
de sementes em situação de vulnerabilidade. Eles conseguiram visualizar um problema que
enfrentamos no Brasil e no mundo, e com o qual a VerdeNovo poderia contribuir. As peças
foram se encaixando, e a tecnologia social de realizar as parcerias com os coletores locais em
relações transparentes ganhou ainda mais sentido.
Durante o evento, ela soube que o Brasil assumiu como compromisso, na Agenda 2030
da ONU, em restaurar 12 milhões de hectares de floresta até 2030. Para alcançar esse objetivo,
seriam necessárias, em média, 600 mil toneladas de sementes. Após o evento, Bárbara buscou
pesquisar mais a fundo sobre a conexão de seu negócio com os ODS e percebeu que a restauração
ecológica é a maneira mais eficaz de retirar gás carbônico da atmosfera e, então, contribuir para
o controle do aquecimento global e das mudanças climáticas. Assim, a VerdeNovo começou
a incorporar em sua proposta de valor o impacto que gera a partir das sementes que coleta e
revende, tanto em aspectos ambientais como sociais, por encontrar uma fonte alternativa de
renda para uma população economicamente vulnerável.

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No ano de 2019, a VerdeNovo foi selecionada para participar de um programa de
aceleração chamado Choice Up, em Brasília. Durante o programa, Bárbara teve várias ideias
sobre seu modelo de negócio e fez alguns ajustes e melhorias na empresa, como um melhor
direcionamento do marketing, a busca por novos clientes, o aprimoramento do discurso de vendas
e a necessidade de medir seu impacto socioambiental positivo para alavancar suas parcerias e
vendas. A VerdeNovo foi selecionada como uma das empresas destaque do programa e, desde
então, tem colocado em prática os aprendizados que surgiram na imersão.
Após o programa, Bárbara e seus sócios desenvolveram um modelo que explica melhor como
a VerdeNovo funciona (Figura 2 – Anexo). Para ela, o que faz a empresa girar são as pessoas que
compõem as engrenagens do esquema. Seu envolvimento é o que faz a semente conseguir chegar
ao seu destino e concretizar o impacto. As sementes propiciam que áreas sejam restauradas com
plantas nativas dos biomas brasileiros, contribuindo para maior captura de gás carbônico, ampliação
da biodiversidade, ao mesmo tempo que gera renda para os coletores locais, que valorizam a
conservação dessas espécies e aprofundam a conexão de suas raízes culturais com o território.
O processo funciona da seguinte forma: os coletores locais coletam, beneficiam (retiram
a polpa do fruto) e armazenam as sementes nativas, e as repassam para a VerdeNovo. Esta
realiza o pagamento financeiro como contrapartida ao serviço de coleta. A empresa recebe,
inspeciona e armazena as sementes. Realiza a divulgação dos produtos, recebe os pedidos e
envia as sementes aos clientes ou incorpora em seus projetos de restauração, concretizando o
impacto gerado por todos os atores da cadeia ao plantar essas sementes. A VerdeNovo vende
tanto para pessoas físicas quanto para empresas.
Seus principais clientes são viveiristas, restauradores ecológicos, paisagistas e agrofloresteiros.
São pessoas ou empresas que compram as sementes para fazer muda e revendê-la ou que utilizam
as próprias sementes para montar jardins, restaurar áreas degradadas ou implementar áreas de
agrofloresta. A VerdeNovo preenche o gargalo de mercado ao oferecer sementes em pequenas
quantidades, em gramas ou poucos quilos. Além disso, desde 2019, tem trabalhado com sementes
nativas voltadas especificamente para jardins, ou seja, paisagistas podem implantar jardins
naturalistas ou valorizar a inserção da biodiversidade local em seus trabalhos (Figura 3 – Anexo).
Os coletores parceiros realizam suas atividades de coleta nos seus próprios terrenos, próximos
às suas residências. Alguns coletores estabelecem parcerias com proprietários de áreas particulares
conhecidas para realizar a coleta também nesses locais. Essa relação é feita pelos próprios
coletores e de modo informal. Geralmente não há uma contrapartida, mas, quando solicitada,
os coletores oferecem aos proprietários uma porcentagem das sementes coletadas no território.
Em Unidades de Conservação, o acesso ainda é restrito devido à legislação, dependendo muitas
vezes de anos de articulação para se conseguir acesso a essas áreas de coleta. Diante dessa
realidade, Bárbara e seus sócios estão buscando participar de alguns grupos e comissões para
movimentar mudanças na legislação, a fim de diminuir essas restrições de acesso.
A coleta de sementes era um negócio que estava crescendo devagar e se estruturando aos
poucos. Os sócios começaram a se perguntar se seus conhecimentos e experiências anteriores
poderiam acrescentar outros serviços na VerdeNovo, como a própria restauração. Por ser um

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serviço com maior valor agregado, eles poderiam acelerar a geração de impacto ambiental e
impulsionar a empresa. Durante uma das reuniões de planejamento, Simone mencionou:
– Para conseguir clientes nesse ramo, é preciso ser conhecido e reconhecido, criando nome
e legitimidade. Nós não temos isso ainda.
– Enquanto nós nos inserimos no mercado e nos espaços por meio da venda de sementes
nativas, vamos fazendo nosso nome aos poucos e conhecendo as pessoas. Vamos nos aplicando
para editais e processos de restauração e podemos utilizar nossas próprias sementes como matéria-
prima para esse serviço – Bárbara, então, respondeu.
DILEMAS E DESAFIOS DO NEGÓCIO DE IMPACTO
SOCIOAMBIENTAL (NIS)
Por tratar-se de uma empresa de pequeno porte, os três sócios, Bárbara, Simone e William,
ainda compartilham muitas atividades. No entanto, buscam concentrar-se naquilo em que têm
maior facilidade. Simone trabalha mais próxima aos coletores e à coleta e sistematização das
informações sobre as sementes. Já William toma conta da parte de pesquisas sobre as sementes
e do contato com os clientes. Bárbara cuida das finanças e da estratégia.
Durante uma das reuniões de planejamento da empresa, Simone comentou com os colegas:
– Um dos nossos grandes diferenciais é o seu perfil empreendedor e criativo, Bárbara, que
permite propor alternativas eficientes para os desafios encontrados ao longo do percurso. Seu
propósito em ajudar pessoas e a natureza é sua marca registrada, e você não tem medo de lutar
por isso. Bárbara, você gosta de falar, então pode ir às palestras e eventos. A gente está por trás
porque a gente sabe que você se enrola, a gente te organiza.
Desde sua concepção, em 2016, a VerdeNovo enfrenta diversos dilemas e desafios comuns
aos que se arriscam no empreendedorismo, tal como o equilíbrio das contas, a remuneração da
equipe coletora e a consequente precificação para o cliente final. Apesar de possuir um contador
que auxilia em suas finanças, manter as contas em dia e o fluxo de caixa positivo ainda é um
desafio, principalmente em um país que apresenta altos índices inflacionários e carga tributária.
Uma das alternativas para o desafio de se manter como uma organização financeiramente
viável passa pela questão da escalabilidade, ou seja, aumentar a produção com o foco em
diminuir preços e aumentar a margem financeira.
COMO PRECIFICAR E MANTER-SE DE PÉ?
Para muitas organizações, precificar seus produtos e serviços ainda é um gargalo no processo
corporativo, visto a necessidade de se conectarem aspectos financeiros, subjetivos e operacionais
com a demanda de mercado. Essa também é a realidade da VerdeNovo. Apesar da larga
experiência da equipe, entender o custo da coleta para os coletores depende de muito diálogo

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para que possam chegar a um valor juntos, valorizando e enfatizando sempre a importância
desse trabalho na conservação dos biomas.
Como precificar as mais de 190 espécies de sementes da VerdeNovo, considerando aspectos
como a quantidade de horas de trabalho em busca de cada espécie ou de sua dificuldade de
beneficiamento, sazonalidade e escassez (raridade) da semente, o tempo de armazenamento e
o impacto social gerado pela semente nativa para a conservação do planeta?
Esse processo é uma linha tênue e representa um grande desafio, pois é necessário entender
o mercado e o cliente, e lidar com o tabu de obter lucros em negócios com missão socioambiental,
ao mesmo tempo que compreende seu próprio valor e aprende a se vender.
Outro grande desafio da VerdeNovo, comum a muitas empresas brasileiras, é conseguir
manter-se durante os primeiros anos. Apesar das muitas barreiras de entrada, como as burocracias
necessárias para atuação na área agrícola e a intensa necessidade de capital intelectual, o
negócio cresceu sem grande necessidade de investimento de capital. Os sócios se sustentavam
reduzindo seus custos pessoais e com outras fontes de renda externas à VerdeNovo. Isso ditou
o ritmo da caminhada da empresa, com baixos riscos e crescimento gradual e orgânico, dado
o contexto em que estavam inseridos.
No início, em 2017, a empresa havia vendido pouco mais de 5 kg de sementes. No entanto,
por ainda terem contato próximo com a Embrapa, haviam conseguido realizar alguns projetos
em conjunto e ter um bom faturamento. No entanto, no ano seguinte, sem os projetos com a
Embrapa e apenas com a coleta de 60 kg de sementes, seu faturamento foi muito menor do que
o ano anterior. Os sócios focaram-se em ampliar sua operação de coleta por meio dos coletores
e conseguiram ampliar a quantidade de sementes vendidas para 1.200 kg, em 2019, mais que
dobrando seu faturamento. Em 2020, após alguns anos de atuação no mercado de sementes
e ter conseguido alguns projetos de restauração, a empresa diminuiu a operação de coleta de
sementes para reestruturá-la, ao mesmo tempo que se focava nos projetos de restauração. Assim,
apesar de ter vendido apenas 317 kg de sementes, o faturamento foi mais que o dobro, devido
ao foco em serviços de consultoria e restauração ambiental (Tabela 1 – Anexo).
Apesar do rumo em ascensão que a empresa parecia estar seguindo, havia o questionamento
quanto à necessidade de crescer a coleta de sementes nativas com maior velocidade, fosse para
aumentar a lucratividade e dedicação dos sócios. fosse para ajudar mais coletores ou contribuir
com a restauração de mais áreas degradadas. Além disso, começou a crescer a preocupação
de que os concorrentes com acesso à tecnologia pudessem ocupar a parcela de mercado na
compra e revenda de sementes que não fosse ocupada pela VerdeNovo. Seria preciso aumentar
sua escalabilidade para alcançar melhores resultados?
COMO ESCALAR?
Bárbara, William e Simone têm muitos sonhos e pontos que gostariam de melhorar e expandir na
VerdeNovo. Eles acreditam que ainda estejam operando com 30% da capacidade que possuem,
mas têm consciência de que é uma empresa em consolidação e que ainda tem muito a aprender.

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Um dos desafios que a VerdeNovo e o setor de sementes como um todo possuem é cumprir
alguns pontos da legislação brasileira. Para cada semente coletada, é necessário emitir um
relatório contendo data da coleta, espécie coletada e ponto de GPS. No entanto, com a expansão
de coletores parceiros em áreas remotas e, muitas vezes, com alguns coletores analfabetos e
não muito familiarizados com a tecnologia, juntamente com a limitação financeira de uma
empresa que está no começo, houve uma dificuldade de desenhar esse processo de prestação
de contas, principalmente no que diz respeito ao registro do ponto de coleta (GPS).
Bárbara buscou uma ferramenta que pudesse ajudá-la a atender a essa demanda e que
cumprisse as necessidades do contexto dos coletores. Ela encontrou uma ferramenta digital
e começou a testá-la em 2019 dentro das coletas realizadas por ela e pela equipe, William e
Simone, na VerdeNovo. Quando perceberam que ela é bastante útil e consegue diminuir o
gargalo de transmissão de informação, decidiram que o próximo passo seria implementar com
os coletores.
A ferramenta, que já existia, pode ser instalada nos celulares dos coletores, que geralmente
possuem smartphones. Ela dá a opção de coleta de informações off-line. Dessa forma, quando os
coletores estiverem em áreas remotas ou não possuírem internet, poderão coletar as informações
como fotos, datas e a localização do GPS. Para os coletores analfabetos, há a opção de enviar
um áudio descrevendo as características necessárias e coletar apenas a localização GPS. A
internet apenas é necessária quando tiverem que enviar esses dados para a VerdeNovo, que
consegue acompanhar a distância o andamento das atividades. Bárbara pretende fazer uma
visita aos coletores, instalar a ferramenta em seus celulares e ensiná-los a utilizá-la. A ideia
agora é ver como os coletores recepcionarão a ferramenta e como esta aumentará o alcance
da VerdeNovo. Com essa ferramenta, é possível aumentar sua produção e alcance, enquanto
reporta devidamente as coletas às autoridades.
Outro desafio está no desenho da logística das sementes. Por enquanto, as sementes
coletadas são encaminhadas para um estoque em Brasília por meio de carros de transporte nas
cidades próximas dos coletores com quem a Bárbara tem contato. Os coletores entregam as
sementes ao motorista e este as traz para Brasília. No estoque, os sócios verificam a procedência
e qualidade das sementes e dão uma devolutiva aos coletores sobre a qualidade de sua coleta. A
VerdeNovo coordena a relação com os clientes, recebendo os pedidos e preparando a encomenda,
que geralmente chega aos clientes por correio ou transportadora, dependendo do tamanho
do pedido. A VerdeNovo está planejando um trabalho em parceria com uma engenheira de
produção para desenhar a cadeia de suprimentos da empresa e melhorar a logística da operação.
A PROPOSTA DO FAZENDEIRO
A VerdeNovo precisava ter acesso a áreas grandes para fazer coleta de algumas espécies. No
entanto, o acesso às Unidades de Conservação Ambiental, áreas protegidas legalmente, acabou
sendo barrado. Foi então que Bárbara conheceu Carlos, um gerente de uma grande propriedade
rural em Brasília. Ao expor sua necessidade, Carlos disse:

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– Bárbara, se a questão é espaço, venham coletar sementes em nossa propriedade. Temos
bastante área preservada, e vocês podem nos ajudar identificando espécies e emitindo relatórios
para reportarmos como atividade ambiental da propriedade. O que acha?
Assim, iniciou-se a parceria entre a empresa e Carlos para a coleta de sementes. Os sócios e os
coletores que já eram parceiros da VerdeNovo tinham acesso à área para realizar a coleta, enquanto
a relação e remuneração continuava acontecendo diretamente entre coletores e a VerdeNovo.
Conforme a VerdeNovo foi crescendo, e seu trabalho com coleta de sementes e demanda
por espaços para fazer a coleta foi ficando conhecido, Bárbara começou a receber ligações e
propostas para ampliar sua área de acesso a sementes. Durante uma sexta-feira, ela recebeu a
ligação do Sr. José, um fazendeiro que lhe propôs uma parceria comercial:
– Bárbara, tenho uma grande propriedade e fiquei sabendo que você compra sementes.
Quero aumentar a minha rentabilidade com essa terra. Coloco meus peões para coletar sementes,
eu te entrego as sementes e você me entrega o dinheiro.
– Sr. José, interessante a sua proposta. Nós geralmente trabalhamos com coletores em
situação de vulnerabilidade social e econômica e que tenham uma grande conexão com o
Cerrado – Bárbara respondeu.
– A proposta é uma transação comercial. Não estou preocupado com o Cerrado. Tenho
essa propriedade aqui e quero monetizar. Eu não preciso do dinheiro – replicou o fazendeiro
de maneira objetiva.
Ela disse que retornaria em breve com uma resposta. Ao desligar o telefone, Bárbara
ingressou em uma reunião com um de seus mentores e contou a ele a proposta que acabara de
receber. O mentor afirmou que essa alternativa permitiria que um número maior de sementes
fosse coletado, fazendo com que mais sementes chegassem às zonas de restauração e seu impacto
ambiental também fosse maior.
Ainda pensativa, Bárbara reuniu seus sócios para conversar sobre a proposta:
– Pessoal, recebi uma proposta de um grande fazendeiro aqui de Brasília. Ele possui
algumas das espécies de sementes que precisamos. No entanto, ele colocaria os
trabalhadores dele para fazer a coleta e ele mesmo receberia a remuneração e repassaria aos
seus coletores. O que vocês acham?
Simone disse:
– Mas nós sabemos quanto esse fazendeiro pagaria para os trabalhadores? Como são as
condições de trabalho deles? Essa relação parece distanciar a gente dos coletores e enfraquece
o princípio de os coletores terem conexão com o território do Cerrado, como sempre tivemos
desde o início. Nós não queremos a semente pela semente. Quem tá com a mão nessa semente?
Se aceitarmos a proposta do fazendeiro, nós perdemos parte da nossa tecnologia social, perdemos
esse controle e podemos arriscar manchar a imagem da VerdeNovo, não é?
– Realmente, acho que é uma decisão que precisamos tomar agora. Mantemos nosso foco em
causar impacto social nos coletores e aceitamos apenas aqueles em situação de vulnerabilidade em
relação direta conosco ou ampliamos a relação para outros fornecedores de semente aumentando
nossa produtividade e o impacto ambiental? A relação de base comunitária demanda mais

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trabalho e demora mais para se estabelecer e se expandir. Ao mesmo tempo, muitos clientes
nossos veem o trabalho que fazemos com os coletores como um diferencial. É um ativo que
gera valor para nós como posicionamento – replicou Bárbara.
– Pois é – disse William –, acredito que, cada vez mais, trabalhar com um público em
vulnerabilidade gera valor para a empresa e para futuros projetos, como patrocínios e parcerias.
Se aceitarmos a proposta do fazendeiro, podemos nos distanciar desse público e ter prejuízos
no longo prazo. Queremos escala ou queremos impacto?
Bárbara e os sócios se viram em posição de tomar uma rápida decisão sobre aceitar a
proposta do fazendeiro. Qual seria a melhor alternativa para a VerdeNovo?
Este caso foi desenvolvido com dados e informações fornecidos por Bárbara Pacheco,
fundadora e CEO da VerdeNovo.

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ANEXOS
Figura 1. Esboço do logo da VerdeNovo desenhado pela Bárbara em 2016

Fonte: Bárbara Pacheco, 2016.
Figura 2. Fluxo do serviço de coleta e venda de sementes nativas da VerdeNovo
Fonte: Bárbara Pacheco, 2019.

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Figura 3. Catálogo com algumas das sementes vendidas pela VerdeNovo
Fonte: Bárbara Pacheco, 2019.

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Tabela 1. Quantidade de vendas e faturamento da VerdeNovo
Ano Sementes vendidas (kg)
Faturamento bruto
(sementes + restauração)
Faturamento Líquido
(sementes + restauração)
2017 5,07 R$ 47.259,46 R$ 36.587,40
2018 60,64 R$ 15.124,17 R$ 12.099,85
2019 1238,28 R$ 50.512,41 R$ 46.082,19
2020 317,85 R$ 104.616,75 R$ 96.677,49
Fonte: Bárbara Pacheco, 2022.

GVcasos ¹ Revista Brasileira de Casos de Ensino em Administração FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 16 | ISSN 2179-135X 1
CASO
Submissão: 15/03/2022 | Aprovação: 19/07/2022
DOI: https://doi.org/10.12660/gvcasosv12nespecialc16
“EL ARTE DE TRANSFORMAR”: O CASO DA D1
NO PERU
1
"El arte de transformar": the case of D1 in Peru
Camille Bourdeau Ginchereau¹ | [email protected]
Natalia Aguilar Delgado¹ | [email protected]
Sonia Tello-Rozas² | [email protected]
¹HEC-Montréal – Montreal, Canadá.
²Université du Québec à Montréal – Montreal, Canadá
RESUMO
O caso descreve a história e a metodologia (ou tecnologia social) da organização D1 criada em 2005 no
Peru. Por meio de uma metodologia inclusiva que preconiza o desenvolvimento humano combinado
com a excelência técnica e artística, a missão da organização está na inclusão de jovens pela dança. No
início dos anos 2020, após uma série de mudanças organizacionais e a expansão de novas atividades
comerciais, o componente social perdeu em atratividade para os jovens das periferias, e a organização
se questiona como mobilizar as comunidades e como seguir tendo o impacto social que um dia teve.
Palavras-chave: Tecnologia social, impacto social, inclusão de jovens.
ABSTRACT
The case describes the history and methodology (or “tecnologia social”) of the D1 organization created in
2005 in Peru. Seeking the inclusion of young people through dance programs, an inclusive methodology
was developed in the Ángeles initiative that advocates human development combined with technical and
artistic excellence. In the years 2020, after a series of organizational changes were carried out and the
expansion of new commercial activities, the social component is losing its attractiveness for young people
from the periphery and the organization is wondering how to mobilize communities and how it can continue
to have the social impact it once had.
Keywords: Social technology, social impact, inclusion of youth.
1 O desenvolvimento deste caso foi apoiado pelo órgão canadense SSHRC - Social Sciences and Humanities Research
Council (nome do projeto: Innovations pour l'inclusion sociale : regards croisés Québec, Pérou et Brésil sous l'approche des
technologies sociales)

CASO | ?EL ARTE DE TRANSFORMAR?: O CASO DA D1 NO PERU
Camille Bourdeau Ginchereau | Natalia Aguilar Delgado | Sonia Tello-Rozas FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 16 | ISSN 2179-135X 2
INTRODUÇÃO
"Vamos todos, vamos ficar em círculo, por favor! Formem um círculo, ótimo! Bem-vindos à
nossa primeira aula da sessão, meu nome é Genoveva. Sua professora de hip-hop Eleni só vai
começar na próxima semana, então vou substituí-la hoje. Sentem-se e podemos começar…”
Vendo que os alunos não vão ficar em silêncio tão cedo, Genoveva coloca a música no máximo:
"E um, e dois, e três..."
Genoveva é só sorrisos, é seu momento favorito do dia. Ela estava ansiosa para mostrar
essa sequência.
"E acene, e dois, e três, e bloqueie!"
Ela gira com agilidade: praticou esse passo muitas vezes.
“Cinco e seis, atitude e oito!”
O grupo de adolescentes olha para ela com olhos arregalados de admiração e, timidamente,
pede que ela repita tudo um pouco mais devagar. Agora que ela chamou a atenção deles, a
aula pode finalmente começar.
Espalhados pela sala, os alunos praticam os movimentos da sequência. Delicadamente,
Genoveva circula entre as fileiras, tomando o cuidado de corrigi-los um a um. Como ela
sempre ensina a suas equipes de intervenção comunitária, nunca corrija um aluno sem pedir
sua permissão. Muitos já passaram por situações difíceis, nunca se sabe a reação que isso
pode causar.
Pensativa, ela conta o número de alunos presentes para seu relatório de atividades: 15 alunos.
Genoveva lembra como se fosse sua primeira aula no espaço D1 de seu bairro, no ano de 2012.
Ela se lembra da longa fila, quando mais de 90 estudantes do bairro correram depois da escola
para assistir às aulas de dança. Uma escola de hip-hop e breakdance no bairro era novidade. As
aulas eram um pouco menos estruturadas, mas eram igualmente mágicas.
Hoje, é com decepção que ela vê o baixo número de alunos participando das intervenções
comunitárias do Movimento Pachacutec. Eduardo, outro coordenador, disse a ela que o
mesmo acontecia no bairro de seu projeto Mi Perú. Genoveva, que inicialmente foi uma
aluna do programa e se tornou instrutora e depois coordenadora, tem algumas ideias para
compartilhar com sua diretora: elas têm uma ligação hoje à noite para discutir maneiras de
reviver as intervenções comunitárias na D1. Absorta em seus pensamentos, ela percebe que
faltam apenas alguns minutos para a sessão. Ela convida os alunos a se reunirem em círculo
para encerrar a aula.
“Senhorita Genoveva”, então pergunta uma aluna, “como você se tornou tão boa no hip-
hop? Você deve ter dançado a vida toda, né, para se tornar professora e trabalhar para a D1?"
“Bem, acredite ou não, eu nunca tinha dançado antes da D1, mas trabalhei muito, muito
duro. Tudo começou quando eu tinha 11 anos: então minha vida mudou completamente…”,
respondeu Genoveva.
“Transformando a vida das pessoas através das artes”: essa é a missão social da Associação
Cultural D1, uma organização sem fins lucrativos, localizada no coração do distrito de Chorrillos,

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em Lima, Peru. A organização nasceu em 2005 pelos esforços de Vania Masias
2
, uma renomada
bailarina clássica nascida no Peru. Formada por três componentes, a D1 gerenciava em 2022
um número impressionante de atividades. Devido à complexidade de sua estrutura, apenas um
componente da organização, o “Ángeles D1” (ou “Anjos D1”, em português) será apresentado
com mais profundidade. Apresentamos, assim, a história da D1, seus valores, suas atividades e
os desafios atuais da organização.
TUDO COMEÇOU NA RUA
Foi em 2005 que Vania Masías conheceu um grupo de jovens dançarinos de rua que dariam vida
ao projeto D1. Desde os três anos, Vania frequentou as melhores escolas de dança e acrobacia:
teve a oportunidade de viajar enquanto ganhava a vida com a profissão de artista. Já morando
há oito anos em Londres, ela voltou para passar dois meses de férias em Lima, sua cidade
natal. Foi andando pelas ruas que ela encontrou jovens realizando todos os tipos de acrobacias
intrincadas, e ela não pôde deixar de se perguntar: Como eles aprenderam tudo isso? Pensou
na sua formação em acrobacias, onde a propulsão para trás era feita de maneira segura, com
diferentes tipos de protetores e colchões.
Figura 1. Jovens dançarinos urbanos
Fonte: Site D1. https://puracalle.com/festival/pura-calle/
2 Vania Masías, coreógrafa, diretora artística e empreendedora social. Ela nasceu em Lima, Peru, e foi a primeira bailarina
do Ballet Municipal de Lima por 7 anos. Fez parte de uma importante companhia de dança, onde se desenvolveu como
bailarina moderna fazendo turnês internacionais na Europa e no Caribe. Ela era bailarina principal do Irish National Ballet. Em
2005, decidiu voltar a Lima para abrir a Associação Cultural D1. As informações completas estão disponíveis no site https://
vaniamasias.pe/

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Conversando com alguns deles, ela soube que esses jovens vinham de bairros como
Pachacutec e Ventanilla, que se desenvolveram em áreas desérticas no subúrbio de Lima e
onde as circunstâncias costumam ser muito difíceis: são áreas de pobreza considerável e com
importantes problemas sociais. Ela ficou impressionada com o talento desses jovens acrobatas,
tendo aprendido todos esses saltos mortais sozinhos em espaços de areia. Para Vania, essas
acrobacias foram uma verdadeira prova de coragem, audácia e potencial. Ela também não
poderia deixar de pensar nas desigualdades presentes no país, onde crianças ou adolescentes não
têm nenhum acesso à formação nas artes, ou que, para muitos adolescentes, não estando nos
bancos escolares, essas performances na rua tornam possível sustentar financeiramente a família.
“Vi imediatamente esse enorme potencial neles, porque eram crianças que não ficavam
sentadas reclamando de sua situação, mas que tinham ido aprender algo difícil e arriscado
para melhorar a situação de sua família. Naquela época, eu achava que a estrutura que eu
tinha através da dança poderia dar a eles ferramentas para serem ainda melhores, terem
mais autoestima e serem mais independentes. Foi assim que tive a ideia de montar um
programa piloto de dança.” Vania
Vania sempre acreditou que a dança foi uma ferramenta pela qual ela desenvolveu disciplina,
controle e, acima de tudo, autoconhecimento. Foi assim que, ao se aproximar desse grupo de
jovens acrobatas de rua, Vania foi tomada por todo tipo de ideias: Como sua experiência poderia
contribuir para o desenvolvimento pessoal desses jovens? Eles poderiam se tornar líderes, até
mesmo verdadeiros modelos para suas respectivas comunidades? Foi compartilhando sua ideia
com os jovens dançarinos de rua que Vania embarcou em um projeto piloto de dois meses, que
acabaria se tornando a organização D1.
Esse projeto piloto tinha como objetivo conceber um espetáculo em muito pouco tempo,
com uma trupe de jovens dançarinos de rua. Inicialmente, Vania queria ensinar-lhes dança
clássica. No entanto, ao conviver com esses dançarinos, Vania tomou consciência das difíceis
condições que marcavam seu cotidiano: violência, drogas, falta de moradia, gravidez precoce
e abandono escolar... Ela percebeu que a dança urbana, a cultura de hip-hop e breakdance,
seriam estilos que talvez fizessem mais sentido para os jovens, em termos da música, ritmo e
movimentos, mas também em termos dos valores que são defendidos.
“Quando pensei em dar a eles minha disciplina, que é balé clássico ou dança contemporânea,
percebi que não iria a lugar nenhum. Eu tive que abordá-los com uma linguagem que
é familiar para eles, como hip-hop e breakdance. Além disso, se eu quisesse que eles
melhorassem sua autoestima na frente dos outros, eu teria que fazer o que faria eles
parecerem muito 'legais' na área onde vivem.” (Vania)
No entanto, na época, não havia escola de dança urbana em Lima. Vania, portanto,
mobilizou alguns de seus contatos para viajar a Nova Iorque e encontrar um coreógrafo que
captasse a atenção da população peruana local. Naqueles tempos, não era muito comum trazer

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coreógrafos de renome internacional, o país saía de um processo de violência e instabilidade
política e econômica. Assim, Vania encontrou uma forma de parceria com o coreógrafo Leslie
Feliciano, que na época trabalhava na equipe da conhecida cantora norte-americana Britney
Spears. Ela conseguiu convidá-lo para o Peru, o que a ajudou a ter cobertura da mídia e
conseguir patrocínios em Lima. Vania convenceu seus pais a usar uma parte de sua casa como
espaço para que os jovens praticassem. Após dois meses de trabalho árduo, o show aconteceu,
graças a recursos arrecadados e publicidade. Vania não voltou a trabalhar internacionalmente
e decidiu se estabelecer em Lima novamente para se dedicar inteiramente à nova família que
se tornaria a D1.
A FILOSOFIA E OS VALORES DA D1
A D1 aspira a se tornar um verdadeiro movimento cultural de referência na América
Latina, defendendo uma abordagem pedagógica inclusiva, autossuficiente, sustentável e de
autodesenvolvimento. Por meio das atividades discutidas a seguir, a D1 busca gerar oportunidades
que possibilitem não apenas a transformação individual, mas sobretudo a social. Para instituir
uma melhor qualidade de vida, a metodologia da D1 passa pelas artes e todas as suas facetas. São
os jovens, com idades compreendidas entre os 12 e os 25 anos, os protagonistas do ecossistema
D1. Esses jovens vêm de diferentes bairros e distritos centrais de Lima, e até mesmo de bairros
e favelas nos subúrbios, como Ventanilla, Pachacutec ou Mi Perú.
A filosofia de transformação social da D1 é guiada por cinco valores: 1) o respeito ao próximo,
a si mesmo e à diversidade cultural; 2) a diversidade, sobretudo valorizando a singularidade de
cada pessoa; 3) o comprometimento, em termos da aprendizagem na escola D1, mas também com
seu país; 4) a confiança em si mesmo e nos outros para construir relacionamentos colaborativos
e solidários; e 5) a integridade, daí a importância de um comportamento autêntico em relação
a si mesmo e aos outros. Genoveva e os outros instrutores do programa são guiados por esses
valores nas suas interações com os alunos.
“No início da aula, pergunto aos alunos como eles estão e, para mim, é fundamental dizer
exatamente como você se sente: feliz, nervoso, entediado, preocupado... E não é por ser
coordenador que vou fingir ou não ser honesto: só vai criar uma desconexão. Como posso
pedir ao aluno que se expresse com toda a sinceridade, se, por minha vez, eu não sou
honesta com ele?” (Genoveva)
O ECOSSISTEMA D1
Por volta de 2010, a D1 já era amplamente reconhecida pela comunidade e pela opinião pública
como uma excelente escola de dança, ao mesmo tempo que se beneficiava da notoriedade de
Vania Masías. O ecossistema D1 pode ser descrito em três componentes complementares e

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interdependentes: 1) a escola de dança Escuela D1; 2) a produção artística Productora ou Crea
D1; e 3) o verdadeiro motor da organização, o componente comunitário Ángeles D1. Do ponto
de vista do modelo de negócio, existem, portanto, algumas atividades lucrativas de prestação de
serviços (como a Escuela D1 e a Productora D1) que apoiam as intervenções comunitárias, bem
como os custos administrativos e operacionais da D1. Em 2022, a sede da D1 era em Chorrillos,
Lima, onde se encontravam a equipe administrativa da D1, grande parte dos professores e alunos
dos programas de formação em dança. Existem também dois locais que servem exclusivamente
como escolas de dança D1 nos distritos de Magdalena e Ventanilla (Figura 2). O primeiro é
um bairro de classe média; o outro, que é um dos maiores e mais pobres bairros de Lima, está
localizado na periferia da cidade.
Figura 2. Lima e seus distritos
Para apoiar financeiramente os custos administrativos e projetos comunitários, a organização
D1 iniciou a sua componente de escola de dança em 2008. Escuela D1 inclui o Programa de
Formação Artística (PFA) e outros cursos de dança que são abertos ao público e completamente

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pagos. A organização é também reconhecida como uma das melhores escolas de dança, reunindo
um corpo docente de excelência. Entre 2020 e 2021, o contexto da pandemia também exigiu
uma adaptação virtual da escola D1. Eles têm, portanto, uma plataforma digital onde os alunos
podem assistir a aulas de dança de vários estilos e níveis.
O Crea D1 (ou Productora)
3
engloba projetos de shows ou colaborações com empresas.
Esses projetos mobilizam todo o talento dos jovens artistas da D1 e transmitem a mensagem da
D1, permitindo ao público uma experiência imersiva e repleta de emoções. Cada produção visa
valorizar a cultura peruana e gerar diálogo sobre questões sociais, como desigualdade de gênero,
pobreza, violência etc. Vemos aqui a estreita ligação entre os projetos de Ángeles desenvolvidos
em comunidades marginalizadas no Peru, afetadas por essas mesmas situações de desigualdade
ou mesmo exclusão.
Finalmente, encontramos o Ángeles D1, que é o coração do ecossistema D1 e o ponto
de partida do que a D1 é hoje. A metodologia adotada pelo componente Ángeles tem foco
na conscientização, prevenção e treinamento de liderança: O Ángeles D1 visa formar jovens
líderes, que, por sua vez, se tornam promotores de mudança e inclusão social. Para tanto, a
organização visa contribuir para o desenvolvimento pessoal do aluno, ensinando habilidades
artísticas por meio da formação em dança e cursos artísticos, ao mesmo tempo que cria
oportunidades para torná-los modelos para sua comunidade. Genoveva, assim como muitos
instrutores e alunos que passaram pela D1, descreve como a metodologia fez uma mudança
radical na sua vida:
“Antes, eu pensava no fundo que eu era inútil, e que eu nunca poderia... realizar nada. Na
minha comunidade, eu realmente não tinha um modelo a seguir [...] a D1 me deu essa
confiança em mim mesma, nas minhas habilidades e no meu know-how. Hoje coordeno
os programas de diferentes Movimientos, e já faz mais de 11 anos que a D1 entrou na
minha vida. Sinto muito orgulho e gratidão.” (Genoveva)
Ángeles pode ser dividida em duas partes: os projetos comunitários denominados Movimientos
e o Programa de Formação Integral (o PFI).
LOS MOVIMIENTOS DE ÁNGELES D1: #UNETE AL MOVIMIENTO
Os projetos comunitários Movimientos ganham vida em diferentes bairros: são projetos
comunitários que se desenvolvem principalmente em áreas onde existem comunidades
marginalizadas. Estamos falando de condições difíceis de violência, pobreza, drogas, abandono
escolar etc. Assim, os jovens com idades entre 12 e 17 anos são convidados para participar
desses projetos, quer por meio das redes sociais, quer por meio do boca a boca. Assim como
para Genoveva, para muitos jovens, a escola inicialmente não é nada atrativa:
3 Folheto de Crea D1. https://drive.google.com/file/d/1wPwRK84IpXYEviVobqleNQ9me0cDTq0_/view

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“No meu ambiente, eu não aspirava a ser como uma pessoa assim ao meu redor, porque
modelos não existiam... A sensação de aprender torna-se realmente desconfortável... E
também, depois de um fim de semana chamando a polícia e em brigas de rua, digamos que
chegar na escola na segunda não é assim: 'Ah, bem, eu vou aprender e vou me concentrar
no futuro!' ...porque eu não pensava no futuro.” (Genoveva)
Os projetos Movimientos tentam mexer nessa realidade. Cada projeto leva o nome do bairro
em que ocorre. Em 2022, a D1 tinha quatro projetos: #Movimiento D1 MiPerú, #Movimiento
D1 Chincha, # Movimiento D1 Pachacútec (em Ventanilla) e #Movimiento D1 Ritmo Urbano
Bellavista. A organização D1 procura, assim, ancorar-se na comunidade local para que os jovens
possam manter uma ligação com ela, valendo-se dos recursos e ferramentas que os rodeiam.
É importante que os jovens adolescentes encontrem pontos de referência, como um ídolo ou
um modelo dentro de sua própria comunidade. As relações criadas por meio da D1 não apenas
possibilitam a identificação com determinadas pessoas de seu bairro, mas também potencializam
esse mesmo sentimento de pertencimento. Dessa forma, esses projetos permitem também à
equipe D1 cultivar laços muito profundos com os jovens locais.
A experiência de Genoveva é um exemplo dos resultados do trabalho realizado no projeto
#Movimiento: ela começou a participar dos Movimientos aos 11 anos, e posteriormente passou
a trabalhar para a D1 no nível administrativo, onde já coordenou vários projetos em mais de
cinco bairros:
“Todos estes espaços têm em comum o fato de estarem em locais com contextos vulneráveis,
portanto são condições complicadas de gerir […] e isso me deu uma espécie de missão.
Porque no início, como participante, senti que a D1 era o meu espaço, que era a minha casa:
a minha família escolhida e aquela que me deu a vida. O sentimento de pertencimento
à comunidade é importante, mas acho que vai além. Para mim, coordenar esses espaços
significa retribuir ajudando os jovens em sua jornada pessoal. Acho que cheguei a um
ponto em que tenho uma missão na comunidade onde estou. Sinto que tenho uma
responsabilidade, como artista e professora.” (Genoveva)
Para iniciar um projeto comunitário, a organização D1 geralmente envia alguém da
equipe para implementá-lo: pode ser, por exemplo, um graduado de turmas anteriores ou um
assistente na sede do bairro Chorrillos. A pessoa que coordena o projeto terá que passar muito
tempo no bairro em que o projeto será iniciado para compreender plenamente e se ancorar na
realidade do lugar. Em seguida, uma equipe local será recrutada pelo coordenador, incluindo
dois professores e um responsável pelo curso de desenvolvimento pessoal. Vemos aqui que o
projeto D1 também gera alguns empregos na comunidade.
Para apoiar tais projetos, a D1 procura um parceiro local privado, que financia 70% do
projeto, enquanto a D1 paga os 30% restantes. Por exemplo, o Movimento Pachacútec é apoiado
pela subsidiária peruana da multinacional Repsol (Figura 3), permitindo, assim, a remuneração
da equipe local, algumas roupas promocionais e um orçamento para shows de fim de semestre.

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Figura 3. Jovens acrobatas do Movimiento D1 Pachacutec, projeto em colaboração com Repsol
Fonte: https://www.fundacionrepsol.com/en/exhibitions/dancing-and-acrobatics-pachacutec-angeles-d1-project
A D1 faz todo o trabalho de se conectar com os vários parceiros e estabelecer objetivos,
que podem ser o desenvolvimento da liderança ou da expressão oral. A duração dos projetos
pode variar, mas o ano é geralmente dividido em três sessões de 12 semanas. As aulas oferecidas
pela D1 acontecem duas vezes por semana depois da escola: essa é uma das razões pelas quais
as aulas costumam acontecer nas escolas, ou em uma área comum perto das escolas. Cada
semestre alterna estilos de dança ou atividades para oferecer variedade aos alunos. Finalmente,
os alunos devem pagar uma quantia muito modesta de alguns soles (moeda peruana), o que
representa um investimento simbólico de seu compromisso de assistir às aulas.
No início da aula, todos os alunos são convidados a sentar-se em círculo com o professor,
refletindo a ideia de igualdade de grupo. Em seguida, os alunos são questionados sobre como
se sentem; já aconteceu até de o grupo passar a aula inteira discutindo:
“Pode ser que nada de um curso seja feito em um determinado dia porque as crianças
chegam cansadas, irritadas ou acontecem coisas. Para mim é muito importante mencionar,
por exemplo, após um recente conflito político no Peru, pedi aos alunos suas opiniões
e como se sentiam: passamos uma hora e meia conversando. Então, sim, temos esses
belos exercícios planejados, mas existem todas essas coisas no ambiente que acontecem
diariamente. Precisamos abordar essas emoções, nomeá-las e trabalhá-las.” (Genoveva)

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Esse exemplo demonstra a ênfase da D1 no desenvolvimento das habilidades de comunicação
dos alunos, bem como do pensamento crítico. No entanto, não devemos esquecer que, para
criar esse espaço para compartilhar, os alunos também devem se sentir confortáveis ​​ e em seu
lugar. É apropriando-se de cada uma das ferramentas da D1 e dos espaços oferecidos pela D1
que a metodologia poderá perdurar. Dessa forma, os alunos D1 tornam-se não só embaixadores
D1 na sua comunidade, mas sobretudo agentes positivos de mudança. Isso evoca a importância
do impacto social da D1, mas sobretudo o aspecto da sustentabilidade da organização.
“O que acontece muitas vezes é dizermos a eles que esse espaço é deles, porque esse espaço
foi recebido de uma forma que os fez se sentirem incluídos. Porque nos espaços não se
trata de chegar, coordenar e mudar tudo, porque, se eles não apoiam, eu não consigo fazer
sozinho. Os espaços não podem parar se o professor ou eu não estivermos lá: pertencem a
eles. Sou responsável por este espaço, mas não é meu, é deles. Então eu pergunto a eles:
Como vamos lidar com isso?” (Genoveva)
O PROGRAMA DE FORMAÇÃO INTEGRAL (PFI) E A FUSÃO
COM O PROGRAMA DE FORMAÇÃO ARTÍSTICA (PFA)
O Programa de Formação Integral (PFI) foi o primeiro programa de dança oferecido pela D1,
quando Vania decidiu formar um grupo de jovens dançarinos de rua. O que caracterizava o PFI
era que todos os alunos eram bolsistas, não pagando, portanto, mensalidade. Cada grupo de
aproximadamente 40 alunos seguiu o programa por um período de três a quatro anos e depois
se formou. Desde 2005, quatro promoções se sucederam, sendo a última graduada em 2019.
No total, foram 120 graduados.
Genoveva lembra como, em seu início, a organização D1 despertou grande interesse na
comunidade de Lima e seus arredores. Muitos jovens como ela tinham que ir à sede da D1 em
Chorrillos por seis horas depois da escola, três vezes por semana.
“Para chegar a Chorrillos, viajei de ônibus do meu bairro, Chincha. Demorava cerca de
2h30 para chegar lá e o mesmo tempo para voltar para casa. No ônibus, eu fazia a lição
de casa [...] Eu amei a D1: pra mim valeu mais que a pena. Foi a primeira coisa na minha
vida que eu gostei tanto.” (Genoveva)
Os cursos do PFI eram voltados para um público-alvo de adolescentes com idade entre 12
e 19 anos. Para além da formação totalmente custeada pela D1, a organização disponibilizava
passagem de transporte público, bem como o almoço. Isso encorajou os jovens a participar do
treinamento do PFI, além de criar um ambiente amigável. A rotina dos alunos do PFI iniciava
por volta das 13 h ou 14 h, no horário do almoço, momento em que os professores, a equipe
administrativa e os alunos podiam discutir seus projetos.

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Em seguida, os alunos tinham algum tempo livre para dançar no pátio principal. Depois,
havia entre duas e três aulas técnicas de dança e uma aula de “desenvolvimento humano”,
dependendo do horário. No início e no final de cada aula, os alunos eram convidados a
compartilhar suas impressões sobre o curso ou uma situação pessoal, se assim o desejassem.
Esses vínculos muito fortes desenvolvidos com a equipe D1 permitiram conhecer melhor a
realidade de cada aluno e, em alguns casos, oferecer um teto para quem não tinha:
“E [...] por exemplo, tem um menino que teve que dormir no escritório da D1 porque não
tinha casa, porque a mãe já o abandonou e o tio bateu nele e o expulsou. Ele ficou lá na
D1 por alguns meses e, claro, isso exigia a coordenação de toda a equipe, as pessoas do
programa tinham mais necessidades em termos de gestão psicológica, mas chegamos lá.”
(Sergio, Gerente da D1)
A equipe D1 reúne membros administrativos, professores, mas também psicólogos responsáveis ​​
pelo acompanhamento dos alunos participantes no projeto. O currículo inclui uma parcela de
formação técnica em dança equivalente a 70% do programa, onde se ensina uma variedade de
estilos. Para isso, também foi formada uma equipe variada de professores especializados. Um
dos principais elementos que caracterizam particularmente a D1 é justamente esse: o nível de
excelência no ensino de dança, devido à reputação de professores renomados no Peru.
Os cursos de “desenvolvimento humano” (DH) representam cerca de 30% do programa.
Esses cursos são caracterizados por um espaço onde o aluno pode expressar suas emoções e
trabalhá-las por meio de artes como pintura, poesia, música como rap etc. As aulas de DH estão
integradas em todas as formações de dança oferecidas pela D1, bem como em todas as suas
intervenções na comunidade. Esse componente vem equilibrar o aspecto muito técnico e intenso
do treinamento em dança, incentivando os alunos a se conectarem com seus sentimentos, ao
mesmo tempo que prestam atenção às emoções do grupo.
Por causa de sua popularidade na época, os alunos eram selecionados por meio de uma
audição para o PFI. Os jovens tinham que aprender e realizar uma coreografia e passar por uma
entrevista, na qual era avaliado se compartilhavam os valores da D1 e se tinham o potencial de
crescer dentro da família D1.
Ao integrar a D1 por três anos ou mais, os alunos internalizavam a metodologia da D1,
para poderem, por sua vez, dar aulas, assim como aconteceu com Genoveva. O PFI, portanto,
possibilitou gerar um ciclo real onde os participantes externos se tornam alunos, depois alunos
envolvidos, e aqueles que se destacam podem obter um emprego como assistente ou professor,
para depois convidar participantes externos para uma audição para o próximo grupo. Esse
ciclo perpetuou a tradição D1, onde cada aluno se tornava um embaixador D1. Além disso,
histórias de sucesso como a de Genoveva são usadas para inspirar e motivar os alunos D1. Um
verdadeiro sentimento de orgulho é inegável quando os jovens compartilham suas experiências
e as oportunidades obtidas graças à D1: sua “segunda família”. As histórias também reforçam
esse sentimento de pertencimento à D1; esse sentimento é tão forte que os alunos chamam sua
turma de tribu, ou “minha tribo”, em português.

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Além dos vínculos tecidos dentro de sua tribu, alguns alunos têm uma relação muito
especial com Vania. Alguns a chamam até hoje “Mamá”:
“Nessas primeiras promoções, Vania cuidou deles como se fossem seus filhos. Isso tornou
o vínculo muito intenso [...] Imagine que você tem 20 dependentes, eles te chamam de
'mãe' e o futuro deles depende de você. Então, o positivo é que se institucionalizou: se
tornou como o programa de formação, e agora os alunos não têm mais 'mamães', mas uma
coordenadora, uma psicóloga etc. Existe uma estrutura, então o aluno sabe onde está é.
Ele também sabe que não vai ficar na D1 a vida toda, mas que é uma oportunidade, que
ele deve aproveitar e depois seguir seu caminho." (Veronica, Diretora da Escuela D1 e
responsável pelo projeto Alumni)
A partir de 2010, a D1 se institucionalizou efetivamente com uma melhor definição de
papéis no nível administrativo e para cada componente da D1. Alguns alunos do PFI já iniciaram
sua própria escola de dança, têm uma carreira internacional, e outros continuam uma carreira
universitária. Apesar de todas as turmas possuírem canais de comunicação como grupos de
Whatsapp e Facebook, a D1 segue acompanhando as conquistas de seus egressos como forma
de medir e sistematizar o seu impacto social. É por isso que um programa Alumni foi criado em
2020, com o objetivo de reunir todas essas informações. No mesmo ano, a organização realizou
dois focus group com ex-alunos para conhecer suas necessidades, ter pistas de impacto social e
manter contato com o PFI:
“Eles compartilham conosco no que estão trabalhando, onde estão no mundo e, de certa
forma, isso também colocou Vania em contato com eles novamente. Então essa é uma
forma de ver o impacto que o D1 tem nesses jovens. Não o sistematizamos, não temos
provas de tudo o que aconteceu ao longo de todos esses anos: agora estamos tentando
coletar tudo.” (Veronica, Diretora da Escuela D1 e Gerente de projetos Almuni)
Figura 4. Jovens no programa da D1
Fonte: https://www.d1-dance.com/angeles-d1/?wovn=en

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Devido aos custos significativos do programa e ao contexto da pandemia, em 2020 o
PFI sozinho deixou de existir. Além disso, refletindo sobre seus programas e intervenções, os
gestores da D1 perceberam que separar os jovens de acordo com sua capacidade de pagamento
e problemas sociais reproduzia o problema da segregação de grupos de acordo com seu status
social e econômico que caracteriza a sociedade peruana. Para permitir um espaço de encontro
entre todos os jovens, a organização optou por fundir o PFI do componente Ángeles com o PFA
4

da Escuela D1. Como o PFA é um programa totalmente pago, permite subsidiar os estudos de
cerca de 30 alunos que não podem pagar seus estudos na D1. A Figura 5 resume os momentos
importantes e os componentes do ecossistema da D1.
Figura 5. Momentos importantes e componentes da D1
OS DESAFIOS DA D1
Genoveva reflete sobre sua própria trajetória e entende como o componente Ángeles da D1
consegue, por meio de intervenções comunitárias, valorizar a riqueza cultural dos jovens e
promover empowerment pelas artes. Assim como ela, os participantes do programa Ángeles
vêm de origens difíceis, onde existe violência, pobreza, abandono escolar etc. Para Genoveva,
a verdadeira força da D1 reside na formação de agentes de transformação social. No entanto, os
dados demonstram que o programa, que antes era muito popular entre os jovens, perde alunos
a cada dia. Genoveva ainda se lembra da longa fila que ficava na frente da sede, já que mais
de 90 alunos do bairro corriam após a escola para assistir às aulas de dança. Em 2021, a sede
tinha apenas 15 alunos inscritos.
“O que mudou nos adolescentes de nosso país para que a gente não atraia mais a atenção
deles? Ou outra hipótese é que antes não havia tantas escolas, principalmente de estilo
urbano. Agora, com o virtual, não tem tantas inscrições, e não sei se quando voltarmos
ao presencial vai melhorar. Seria uma pena perder algo como nossas intervenções na
comunidade.” (Verônica, Diretora da Escuela D1)
A equipe ​​da D1, Vania, Veronica, Sérgio e Genoveva, se reúne para refletirem juntos. Um
ponto de reflexão importante é levantado por Genoveva, que aponta a incerteza e instabilidade
de se trabalhar no meio artístico nesse contexto: "Ser artista é uma carreira muito questionada,
4 Folheto 2021 PFA. https://drive.google.com/file/d/1Zgq1KTWKIWJL3mTo1dg5UetCS0DmmOcs/view

CASO | ?EL ARTE DE TRANSFORMAR?: O CASO DA D1 NO PERU
Camille Bourdeau Ginchereau | Natalia Aguilar Delgado | Sonia Tello-Rozas FGV EAESP | GVcasos | Volume 12 | Número especial | 2022 | Doc. 16 | ISSN 2179-135X 14
pois não te possibilita ganhar dinheiro. No Peru, a arte ou o artista não é valorizado". Ela mesma
havia sido proibida pela mãe de participar, e foi apenas depois que ela faleceu que Genoveva
teve a coragem de seguir seu sonho e ser professora de dança.
Outro desafio importante nas intervenções comunitárias que Genoveva vivencia no seu dia
a dia é ligado à falta de recursos financeiros. Na realidade peruana, existe pouca contribuição
governamental para esse tipo de projeto, e é por isso que a D1 constantemente procura formas
alternativas de financiamento. Em tese, uma equipe da D1 vai até a comunidade e desenvolve
parcerias com uma empresa local. No entanto, na prática dos últimos anos, normalmente são
empresas como a Repsol que buscam a D1 para implementar um projeto de responsabilidade
social dentro do distrito ou bairro em que se pretende criar boa vizinhança.
Apesar das dificuldades, Genoveva e tantos outros são provas vivas de como a organização
pode ter um grande impacto na vida dos indivíduos dessas comunidades. Para continuar inovando
e reorientar suas intervenções comunitárias, Genoveva pensa que a D1 também deve ser capaz
de avaliar seu impacto social na comunidade e continuar a mobilizar os jovens, e esse se
constitui em um outro grande desafio da organização. Na reunião com sua chefe e os demais
coordenadores, um dos grandes questionamentos é: De que maneiras a D1 pode avaliar os
diferentes níveis de impacto que ela produz?