JANELA ABERTAS - JURACY DE OLIVEIRA PAIXÃO

PortalIraraense 2,860 views 209 slides May 02, 2014
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About This Presentation

Autor: Juracy de Oliveira Paixão
Instituição: O Autor
Publicação: 2006
Categoria:
Em “Janelas Abertas”, Juracy de Oliveira Paixão nos apresenta o Irará dos anos 50-60, espaço humano, cultural, e geográfico em que viveu a sua infância e adolescência. São páginas de amor e lembran�...


Slide Content

Janelas Abertas
Juracy de Oliveira Paixão

Direitos autorais, 2006, de Juracy de Oliveira Paixão
e-mail: [email protected]
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Paixão, Juracy de Oliveira
Janelas Abertas / Juracy de Oliveira Paixão – Fortaleza (CE)
ISBN
1. Irará(BA) – Anos 50/60
2. Anos 50/60 – Irará (BA)
I. Paixão, Juracy de Oliveira
II. Título
CDD
Índice para Catálogo Sistemático
Irará (BA) – Memórias
Anos 50/60 – Irará (BA)
Irará (BA) – Anos 50/60
Capa: Jair Dantas
Projeto Gráfico: Tiago Sena

Sumário
Agradecimentos 9
Dedicatória 9
Apresentação 11
Prefácio 15
Janelas da Memória 17
Passeio Matutino 18
O Dia Seguinte 22
A Cidade em Três Manhãs 26
Os Caminhos que saem da Cidade 30
Brincadeiras de Criança 35
Fatias da Memória 39
Cenas do Cotidiano 43
Os Dias passam e a Cidade vive 44
O que Fazer Hoje á Noite? 46
O Senadinho 48
Sábado é para a Feira 50
Domingo é dia... 53
Fatos e Eventos 57
O Ciclo das festas 58
Festa da Padroeira - O Povo e o Credo 61
Rei Momo: Alegria para Todos 64
Tem Circo e Parque na Cidade 65
Na Igreja, da Quarta-feira de Cinzas ao Mês de Maio 68
As festas Juninas 71
Quebras na Rotina 73
Cosme & Damião 76
As Eleições de 62 78
Quando o Ginásio chegou 81

Miscelânea 85
Semelhanças 86
Temos História? 87
A Formação do Linguajar Iraraense 88
Irará & Moscou e Saudosismo 91
Tenho Saudades 93
O Ontem e O Hoje 95
Personagens Inesquecíveis 99
Zé Freitas 100
Jota Gomes 101
A Trinca de Ases 102
João Pechincha 103
Seu Dodó da Quitanda 104
Euclides Badaró 105
Professora Aurelina 106
Miguel Paes Coelho, o Crente 108
Raul Cruz, o Delegado Comunista 109
Alberto Nogueira 110
Manoel Fogueteiro 111
Lulu Tipógrafo 112
Joana das Bonecas 113
Valfredo Sapateiro 114
Zé Estrela, O Funileiro 115
Olavo, o Ferreiro 116
Zequinha, o Rouxinol dos Metais 117
Zé Petu e o Bar 118
João Tanoeiro 119
O boêmio Zé Vermelho 120
A Linguagem Iraraense dos Anos 50/60 – Lista de Palavras 123
Notas e Esclarecimentos 201
Crítica após Leitura 205

Agradecimentos
Agradeço a ajuda precisa das amigas Lindinalva Gomes Ferro e Nelzenete
Martins Gomes – Nete de Lito - e da comadre Peta – Marizélia Ferreira – por acor-
darem, na minha memória, lembranças adormecidas; a Leda e Clício Freitas,
que me socorreram quanto à lista dos alunos da primeira turma do Ginásio São Judas
Tadeu.
Agradeço às minhas irmãs Ivanete, Hilda e Jandira por fecharem os atalhos
que queriam me afastar da trilha definida. A Ivanete agradeço, ainda, pelas lições
de lingüística e pela correção dos inúmeros erros. Alguns desses erros persistem
por absurda teimosia minha, o que assumo com inteira e exclusiva responsabili-
dade. Agradeço, sobretudo, a Anita e Manoelzinho, por me terem concedido o privi-
légio de viver e crescer em Irará.
Dedicatória
Dedico esse trabalho ao meu irmão Gilson, com quem a única disputa se limitou
à posse por um badogue antes de chegarmos aos 12 anos de idade; à minha
saudosa irmã Leonilda, que me ensinou a ver no silêncio um profundo diálogo;
à minha esposa e companheira Maria Elizabethe, a brava cearense que me fez ser
esperançoso e perseverante; ao Povo Iraraense, razão maior desta minha ousadia.
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Apresentação
Há mais de quatro décadas deixei o meu Irará e por vários anos lá não retornei.
Depois, tempo sim, tempo não, aparecia a título de abraçar os parentes e amigos,
olhar a velha casa paterna. Na verdade, o que queria rever era a minha cidade tal
e qual a sentia nos meus sonhos diuturnos. A partida foi conseqüência do que
me ensinara meu pai: ir à luta, com coragem e determinação. Nada diferente
do que fizeram muitos outros patrícios, por anos a fio.
Em outras plagas, mirei novas paisagens, colori muros com o ousado negro
do piche, conjuguei verbos plenos de esperança, ouvi discursos flamantes,
bafejei e fui bafejado por azares e sortes, quis mudar o mundo, fazer a verda-
deira revolução. A meu modo, a fiz: de vermelho pintei meu coração, cravando
nele foice e martelo, e orei no túmulo de Lenine, rogando ao deus revolucionário
pelo triunfo do socialismo em minha pátria. Cada muro que pichei, cada vez que
ergui os braços, cada panfleto que escrevi e distribuí, cada choro que me afogou
os olhos, calaram fundo na memória, preenchendo espaços ou substituindo
ilusões. Um canto, porém, do meu cinzento pensar jamais foi abalado: aquele que
registrou – como o bom carimbo em velho documento – as coisas que vi, ouvi
e participei no meu Irará querido.
A memória viva é a fonte de onde jorraram as páginas a seguir. Erros há, pois
errar é acertar a vida. Considere-se que a memória, mesmo quando viva, sofre
forte influência da imaginação e que somente essa é livre. Meu desejo é retratar
os fatos como vistos, ouvidos e participados, mas o desejo sempre é fruto
de alguma influência. Sei que, apesar dos percalços históricos, acredito na vitória
dos ideais pelos quais lutei e sofri. Nessa minha certeza, reside o meu Desejo
e a minha Razão. E o que é a Razão? Nada mais do que um termo de dicioná-
rio, sujeito às ideologias. A minha razão nasceu da teimosia dos meus sonhos
em busca da realidade. Sonhar faz bem, mesmo quando pesadelo, esse um alerta
para a atenção no risco. Sonha-se quando o subconsciente quer conversar,
meter papo novo na rotina do consciente. Do sonho para a realidade é uma simples
questão de ajuste. Dos meus sonhos e da minha realidade, tirei o registro que
as minhas palavras puseram no papel.
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Ao crer nos meus ideais, espero por derrotas a ladrilhar o caminho da vitória.
Parodiando Maquiavel, o mestre florentino, poderia dizer: jamais apregoe vitó-
rias prováveis. Antes, anuncie derrotas possíveis. Assim, quando o êxito vier,
seu mérito será redobrado.
Os jovens costumam, hoje, antecipar acertos e ganhos. Os velhos, esses com
olhos sofridos, falam de desastres e decepções. Ambos estão certos e errados à luz
da Lógica. Afinal, sempre fazemos algo desejando um ganho. Quando ocorre
a perda, essa pode causar uma frustrante decepção. O presente é, sempre, con-
seqüência dos ganhos e perdas do passado. E o futuro? Esse é um buraco negro
no azul do Tempo.
É nesse contexto de pensar que decidi por falar da minha cidade, registrando
o que dela mais me marcou nos melhores anos em que nela vivi. Meu registro
é uma visão do passado à luz do presente, vivido o passado.
Optei por um estilo que ouso chamar, na minha vaidade, de coloquial-barroco,
aquele que caça uma ortografia justa, mas deixa de lado a prepotência da Pontuação
Absoluta, da Concordância Rigorosa, da Semântica Elitista. Deixo-os de lado não
por ignorar seus méritos, mas por julgá-los inadequados ao meu objetivo. Sei que
tal perjúrio será motivo para arder em fogueira.
O período escolhido é aquele que entendo como o mais fértil e rico da história
pátria: os Anos 50 / 60 do Século XX. Foi nesses anos que explodiu no Brasil
os grandes movimentos de vanguarda, seja na cultura ou na política. Anos
do Teatro de Arena, dos CPCs universitários, dos festivais de música popular,
do Cinema Novo, da Vera Cruz, da Atlântida, da Cinedia, da Multifilmes, da criação
das centrais sindicais, como a CGT e CNTI, do Movimento Estudantil, das
Reformas de Base, das Ligas Camponesas, do enfrentamento das greves,
da Cadeia da Legalidade, dos Grupos dos Onze, enfim da divisão política
da sociedade brasileira em Povo versus Elite. Anos que tiveram início com o governo
democrático de Getúlio Vargas, o Pai dos Pobres, vítima da oposição virulenta
de Carlos Lacerda e da UDN. Anos que foram testemunha da iniciante
industrialização do Brasil, sob a égide de Juscelino Kubitschek; anos que viram
Brasília nascer no vazio do cerrado; anos que vivenciaram a loucura do Homem
da Vassoura, aquele que renunciou após nove meses de governo, alegando
pressões de forças ocultas. Anos em que, por plebiscito democrático, o povo escolheu
a volta ao Presidencialismo, garantindo os poderes de João Goulart, o presidente
das Reformas de Base, alijado da poder pelo tacão dos militares golpistas.
Nesses anos, primeiro olhei Irará com olhos interrogativos, sem entender
o que se passava. Depois, com cérebro consciente, buscando explicação para
o que via. No final, com o coração a lamentar um futuro duvidoso que apagaria
das memórias os fatos vistos, ouvidos e vividos. Ao partir para o mundo, encontrei
as respostas que não tinha e aprendi a entender a minha gente e a minha cidade.
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Agora, julgo-me no dever de resgatar minha dívida com meu tempo de Irará. Faço
esse resgate ora com leveza, ora com sarcasmo, mas sempre com a imaginação
a marcar o bom caminho. Penso, também, que as rápidas mudanças dos tempos
hodiernos tendem a apagar os fatos que passam. Desejo, com meu resgate,
manter com os da minha idade a recordação do bom passado e fazer com que
os mais jovens entendam por que o presente é como é. Afinal, a História é feita
de fragmentos, uns que se agregam, outros que se desmancham.
Dividi meu registro em cinco partes:
Janelas da Memória: minha visão da cidade, de sua estrutura e conteúdo,
no passado e no presente;
Cenas do Cotidiano: o dia-a-dia da cidade e de suas gentes;
Fatos e Eventos: acontecimentos de data marcada e aqueles eventuais,
mas modificadores da rotina;
Miscelânea: aspectos diversos que, de alguma forma, me levam aos Anos 50/60;
Personagens Inesquecíveis: homenagem a pessoas que, na minha ótica, marca-
ram o Irará de então. A seleção ficou a cargo dos meus sonhos. Um desejo – quem
sabe – de ter sido eu mesmo cada um dos personagens retratados, essências puras
do que considero virtude, prazer, perseverança, caráter, consciência, humanidade,
alegria.
Nos textos, quase sempre utilizo o presente, pois é nele que me situo, naqueles
Anos de Ouro quase sufocados pela mais de uma década de terror ditatorial, mas
que sobrevivem como alicerce do tempos atuais e esperança de um futuro de paz
e prosperidade.





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Prefácio
Em “Janelas Abertas”, Juracy nos apresenta o Irará dos anos 50-60, espaço
humano, cultural e geográfico em que viveu sua infância e adolescência. São
páginas de amor e lembranças que retratam o cotidiano tranqüilo da cidade, tecido
pelos afazeres de sua gente simples.
Andarilho da memória, o autor nos guia por ruas, becos e praças, reconstrói
o roteiro dos caminhos, vias de acesso e saída do núcleo urbano por onde, hoje,
a cidade avança, o moderno nascendo do antigo. Seus personagens inesquecíveis
são uma bela e merecida homenagem aos que, com seu trabalho e arte, garantiam
a sobrevivência honesta e supriam as necessidades da população, permitindo
vida e alegria. São marceneiros, ferreiros, alfaiates, tanoeiros, sapateiros e tantos
outros, donos de um saber fazer que o mundo atual vai extinguindo.
Através destas páginas, passa a vida de uma época. Sua leitura fará bem
a todos: aos que, como autor, viveram aquele tempo, de passeios nas Lajes, da
“Voz da Liberdade”, de serenatas e circos, das festas de fevereiro, São João e Natal;
aos mais jovens, que encontrarão aqui parte da história de Irará, importante
para compreender o presente, conhecer e preservar seu patrimônio, mesmo que
o tempo e a ação dos homens tenham destruído muitas das nossas coisas belas.
A todos, iraraenses ou não, será agradável ler estas “Janelas Abertas”, pois se trata
de uma narração onde se sente a forte presença do sentimento de ter chão, ter
raiz, tão necessário a todos os seres humanos.
Hilda Oliveira Paixão

Janelas Abertas

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Janelas Abertas
Passeio Matutino
Férias. Segunda-feira. Aprovado no exame de admissão ao Ginásio São Judas
Tadeu recém-criado, o menino acorda disposto a uma boa caminhada. Quer dar
uma volta solitária pela cidade. Satisfeito o apetite matutino, chinelo de couro nos
pés, parte Rua de Baixo acima.
Logo no Beco do Mercado, vê o movimento na padaria de Zinho. Ao balcão,
o amigo Codinho e o colega Fernando na azáfama de despachar pães e bolachas.
Assobiando, o menino passa pelo depósito de Tiano, já pleno de agitação e agitação.
O depósito é vermelho, revolucionário, embora o menino não saiba, ainda, o motivo.
Esquina da Praça. No alto passeio de “A Violeta”, Zeca Caribé conversa,
animado, com Eduardo Portela, esse à porta de sua loja. “Certamente falam da boa
feira que tiveram no sábado passado”, imagina o menino. “Devem ter vendido muitos
metros, quiçá peças inteiras, de tricoline, cambraia, gorgorão, chita e chitão, até lona
xadrez e, quem sabe, fustão e flanela”.
A Praça. No meio do areião, o Abrigo de Amando. Cavalos atados às colunas
fazem a faraônica e inacabada construção parecer um albergue de beira de estrada.
Cães latem, a correr atrás de cadela no cio e mais atiçados pelas pedras lançadas
pela molecada. Parado na esquina da farmácia de Chaves, o menino observa
a confusão e torce pelo desfecho da perseguição dos cães à cadela. Gosta de ver
a cena, tantas vezes presenciada na fazenda do avô. Como o desfecho tarda, avança.
Ao balcão da loja de Éverton, avista Tom Zé a tamborilar com os dedos sobre
a madeira rija. Vê, também, mais para dentro, o companheiro de brincadeiras pas-
sadas, Augusto. Não estranha a ausência de Estela e Lúcia. Afinal, não é costume
moça de família ir para balcão. Um vozeirão chama-lhe a atenção: é Éverton,
um braço às costas, a conversar com Henrique na porta do bar. O assunto, aos
brados, refere-se à falta de luz, no domingo. Ouve Henrique responder: “Vai
ver que caiu um raio na linha que vem de Coração de Maria”. O menino concorda
em silêncio, adiantando o passo. Armazém de Cesário. Lá está o primo Antonilton,
balconista de couros e fivelas. Entra, cumprimenta o parente e sai, já que Deraldo
se encontra presente e não gosta de conversa fiada no armazém. O alarido da mo-
lecada e o latir dos cães atraíram à porta Alfredo e Jaime Franco. O menino pensa:
“Gente mais velha também gosta do desfecho. Não sou o único, embora mais moço”. Pen-
sa ou busca uma justificativa para seu gosto, encontrando-a na atitude dos mais
velhos!?
Esquina de Elísio. Braços cruzados às costas, Teófilo contempla o movimento
e o areião desde a porta de sua loja. Vizinho e conhecido, o menino ousa per-
guntar as horas. “Nove horas, meu filho”. Adoça o passo, já que ainda é cedo.
Na farmácia da esquina, a “Confiança”, avista as prateleiras conhecidas. Ao pé
do balcão, Dr. Ramalho passa instruções à empregada nova. Quer entrar mas

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Parte I - Janelas da Memória
desiste, para não aguçar as lembranças. O mesmo impulso se dá em frente ao bar
vizinho, agora propriedade de Bráulio Miranda. Entra e pede um “abafa banca”.
Mira as mesas de sinuca e de bilhar, acaricia a bombonière lotada e sussurra para
si mesmo: “ainda vou vir aqui, à noite, tomar umas e jogar apostado”. Mal sabe
ele que, no futuro, irá cumprir com sobra aquele desejo de menino curioso.
Uma fila se forma na porta do Cartório de Guga. O que será!? Logo se lembra que
ouvira algo sobre tirar documentos para obter o título de eleitor, já que no ano
entrante haveria eleições. “Mas essas somente se darão lá pra outubro !!”, admira-se.
Na fila, somente tabaréus. Se soubesse o que significa “eleitor de cabresto”, teria en-
tendido a movimentação antecipada.
Rua Direita acima, cruza com Helena, esposa de Zé Carvalho, a conver-
sar com Profª. Eurídes, essa sua mestra do 5º ano primário. “Bom dia , profes-
sora.” “Bom dia, meu filho. Parabéns pelo resultado do exame de admissão”. Não fora
a timidez, o menino diria: “Devo a aprovação ao meu 5º ano com a senhora
e mais os outros quatro anos com a Profª. Aurelina”. Apenas sorri e segue. Avista
Fiinha à janela de sua casa e resolve bater um papinho. Afinal, tinham “trabalhado”
juntos na Farmácia Confiança. Pergunta se Humberto já está de todo curado
das queimaduras que sofrera no São João. “Está. Vai ficar ainda um bom tempo
com as marcas, Dr. Aloísio disse que, com o passar dos anos, deverão sumir”. Despede-se
da velha e boa companheira e avança. Adiante, vê porta entreaberta. Lembra-se
do convite que recebera quando ali estivera no ano anterior: “Entre, venha ver
a oficina”. Essa frase, convite instigante, haveria de acompanhar o menino em
definitivo, mesmo quando homem feito. Ali nascera seu gosto pela notícia, pela
impressão, pelo panfleto. Ali começara a avermelhar-se, sem que percebesse.
Na Esquina da Cadeia ouve o chamado de Joaquim Estrela, à janela dos
Correios e Telégrafos. Atende ao chamado, atravessando a rua. Sentia uma
verdadeira atração por aquela repartição pública. Gostava de ouvir o tic...tictic...
tic do aparelho de Código Morse, admirava a bateria de pilhas elétricas formada
por garrafas com ácido, achava as folhas de selos verdadeiras obras primas.
Joaquim Estrela entrega-lhe um envelope grosso. Imagina: “Deve ser do Instituto
Monitor. São as aulas que pedi, de desenho e de eletricidade”. Já fizera, por correspon-
dência, um curso de relojoaria e, agora, iria iniciar esses dois. “Apanho na volta,
quando for para casa”. Suspira. Precisa retornar ao passeio da direita, pois, logo
em seguida, está a casa de Lessa, pai de Eliane. Preferia olhar as janelas com
a segurança da largura da rua. Não sabe se seu amor platônico é correspon-
dido e tem receio de denunciar-se no caso de súbito encontro. Na Coletoria
Federal, entretém-se um pouco a conversar com o amigo Clício, que ali trabalha
como auxiliar. Acertam uma volta noturna de bicicleta, “quem sabe até o Cajueiro”.
No passeio da repartição, o coletor Raul bate animado papo com Pe. Valtério.
Esse fuma e sorri, com ar de vitória. É que acabaram de acertar um jogo de bara-
lho para a noite, como de hábito. O menino ouve o acerto entre o preposto

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Janelas Abertas
do Governo e o procurador de Deus e faz sua escolha: torceria pela vitória do coletor
Raul, embora perceba no sorriso do padre a indicação da ajuda celestial. Como
aquilo lhe parece injusto, resolve, ali mesmo, rezar uma Ave Maria e pedir a ajuda
de Nsa. Sra. da Purificação para o patrão de Clício. Sendo ela a Mãe de Deus, certa-
mente tem poder sobre o Filho.
A Igreja Batista, no lado esquerdo da rua, está aberta, mas vazia. “Será que
o pastor viajou!? E Miguel Paes Coelho, será que já veio e já saiu!?”. O menino gosta dos
crentes, embora não encontre razão para seu gosto, oriundo que é de família
com tradição católica. Julgando-se um inteligente pensador, diz a si mesmo:
“A razão não passa de mero termo de dicionário, sujeito a ideologias. Gosto dos cren-
tes e pronto...”. Admira a conversa fluente de Miguel Paes Coelho e, se pudesse,
seria capaz de pagar para ouvir suas explanações. Ainda inexperiente, não
percebe que seu gosto pelos crentes vem da empatia com o crente Miguel.
No futuro, amigo de Ramon, filho de Miguel, passaria a ouvir as explanações mais
amiúde, na barbearia da Rua Manoel Julião.
Caminha. Em frente da bela casa da esquina da Rua Direita com a Praça
da Bandeira, ouve ruídos de martelo e serrote. Zé Freitas está a fazer arte e esta alegra
a esquina com sua rima inconfundível. O menino julga aquela casa como sendo
o seu segundo lar, tanto ali comparece. Jorge sai à porta e se falam por um breve
tempo. O menino é tentado a entrar, a ver o bater do macete sobre o formão, mas
retrai-se. Fica para outra hora, já que tem compromisso com a caminhada.
Prefeitura. Gente muita apinhada no passeio. Como sempre, benesses pater-
nalistas estão a ser distribuídas. Vislumbra à porta do belo prédio clássico, Amaro
Medeiros, charuto aceso, a “conversar” com Elísio Santana, cabeça erguida.
Conversa de PSD e UDN. Acha aquilo interessante, já que sabe serem os
dois duros adversários. À noite, durante a sopa, informaria ao pai a cena vis-
ta. Esse, do alto de seus anos de UDN, rebateria: “Conversando o quê, meu filho!?.
Deviam estar brigando, batendo boca, quebrando pau. Aqueles dois são como gato
e rato. Você nada entende de política”. O menino calar-se-ia e acataria a obser-
vação paterna. Chegaria até a lembrar-se de que vira os dois contendores com
dedos em riste, um na cara do outro. “Bem que papai tem razão. Deviam estar era
brigando feio”. No futuro, viria a constatar que, na chamada Política Nacional,
nada é mais comum do que antigos adversários se tornarem aliados a fim de
garantirem seus privilégios. O menino tem muito o que aprender.
Chuva. Aliás, chuvisco. Resolve voltar. Retomaria sua caminhada no dia
seguinte, justo daquele ponto, na Praça da Bandeira. Afinal, está disposto a vistoriar
toda a cidade e ainda falta meia Rua Direita, toda a Quixabeira, a Canta Galo,
a Mangabeira, a Manoel Julião e a velha Rua Nova, isso sem falar na Praça da Matriz.
Descendo, passa pelos Correios para recolher suas aulas e segue para casa pelo
passeio da esquerda. Na porta do Cartório de Guga, analisa os personagens da fila.
Todos com chapéu de palha, a indicar a roça como moradia.

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Parte I - Janelas da Memória
Na Praça, vê que o desfecho entre cães e cadela já se deu. Agora, o que observa
é um casal de cachorros como que amarrados em sentido oposto, tal e qual está
habituado a presenciar na fazenda do seu avô. Sorri e ensimesma-se. Os moleques,
estes observam a cena calados e desconfiados. Alfredo e Jaime Franco não mais
estão à porta do armazém. O vento levanta poeira do areião da Praça. O sol,
agora a pino, mal se esconde sob a frondosa sombra do oiti que protege a bomba
de gasolina e sob as varandas do Abrigo de Amando. Dentro de pouco tempo,
a madorna tomaria conta da cidade. Agitação, apenas lá em Tiano, o depósito ver-
melho. Para tanto, basta que João Pechincha chegue, como de costume.

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Janelas Abertas
O Dia Seguinte
Terça-feira, 8 horas da manhã. O menino pouco dormiu, a planejar nova
caminhada. Desjejum feito, parte em marcha batida para seu rumo. Subindo a Rua
de Baixo, dá-se no mesmo passeio com Dodó que, alegre, vai abrir a quitanda.
Na Praça, a ventania a levantar poeira. Como sempre, os comerciantes à porta
de seus negócios. No cartório de Guga, nova fila se formando. Disposto a não
copiar a véspera, o menino acelera o andar. Ao passar pela porta da cadeia,
um barulho de palmatória o surpreende: Paaa. Um ai sofrido chega-lhe aos
ouvidos. “Quem bate!? Quem apanha!?”. Um sopro de maturidade sussurra-lhe:
“Deve ser um Zé Ninguém, poderoso quando fardado, a pisar num Zé do Povo, calça
surrada e pés descalços, talvez um simples ladrão de galinha, desses que saem
no desespero para arranjar com que alimentar os seus”. O menino responde ao sussurro:
“É, com certeza só pode ser isso”. Segue constrangido.
Ei-lo na Praça da Bandeira. As benesses com o dinheiro público parecem con-
tinuar, indica a movimentação na porta da prefeitura. No coreto, um corre-corre
de crianças. Passarinhos alegram os ficus. O menino mira a fachada da prefeitura,
remira o coreto e uma tristeza dolorosa lhe toca a face ao contemplar aqueles belos
exemplares clássicos. Ali e com aquela idade, não sabe o porquê da dor.
Esquina de Alfredo Franco. O menino lembra-se dos cães da véspera.
Zé Leão quica bola no passeio de sua casa. Ao vê-lo, o jogador afirma: “Vou
bater um baba. Gilson vai?”. “Não sei. Acho que foi caçar de badogue”. De um rádio a
alto volume, ouve Adelaide Chiozzo: “Eu tou doente, moreno... doente eu tou, mo-
reno... cabeça inchada, moreno... dói... dói...dói...” A melodia o faz lembrar-se que já,
já, Jota Gomes porá no ar a Voz da Liberdade e haverá “Tornei-me um ébrio” na voz
de Vicente Celestino. É o Irará alegre e cantante do qual o menino tanto gosta.
Janelas ocupadas. Pequena, Corina e Nazinha, como de costume, espiam
o movimento da rua. O andante pára e as cumprimenta. Ali já esteve outras vezes,
a apreciar as maravilhas que as irmãs produzem em seu ateliê doméstico.
Uns não gostam, dizem que se trata apenas de cópias de coisas e bichos; outros
afirmam que são jóias de profundo valor artístico, o verdadeiro artesanato estilizado.
Com esses, o menino concorda. Admira as irmãs, aliás, as venera. Não lhe interessa
se copiam ou criam; para ele, é arte pura e isso lhe basta. Um dia lerá o que escreveu
Pablo Neruda sobre os artistas populares: “Não creio na originalidade, que é mais
um fetiche criado em nossa época de demolição vertiginosa. Acredito na personalidade
através de qualquer linguagem, de qualquer forma, de qualquer sentido da criação artísti-
ca”. Conversa, fala da caminhada de ontem e de hoje, observa, com as artistas,
o sol a esconder-se entre as nuvens e segue.
Nota que não há fila na porta do cartório de Maia. “O que é que um faz, que
o outro não faz?!”. Mistérios da burocracia pátria. Professor Fernando, à porta,

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Parte I - Janelas da Memória
brinda o dia com sua negritude primorosa e altaneira. O menino pensa,
ou melhor, reza: “Tomara que ele seja meu professor no Ginásio, ano que vem”. Será
e muito mais. Será farol a iluminar caminhos, guia a apontar obstáculos. Será mestre.
Lá está Raul Cruz debruçado na janela, a contemplar o tempo. O menino
sente-se feliz em vê-lo, embora mal o conheça. Cumprimenta-o com um aceno,
logo retribuído. Algo se forma ali, a rebentar anos depois.
Escolas Reunidas Gal. Juracy Montenegro Magalhães – Grupo Escolar
Dr. Juliano Moreira. “Que será que esses dois fizeram por Irará, meu Deus!?. Será que vieram
assentar os tijolos!?. Vou perguntar a papai, ele sempre tem resposta pra tudo”. Detém-se à
porta que tanto cruzou no seu 5º ano primário. Vê, como se lá estivessem de fato,
a Profª. Eurides, a Profª. Rilza, a Profª. Valdira, até a Profª. Antônia, que não ensi-
nava ali. Não vê as outras. Não vê ou não lembra !?
Praça da Matriz. Igreja de Nsa. Sra. da Purificação. Pelo peso da padroeira,
o templo deveria ser mais opulento, essa é a sua opinião. Lembra-se da magní-
fica igreja onde uma de suas irmãs foi batizada, em Salvador: ”Aquela sim é que
é igreja de santa importante...”. Por conversa dos mais velhos, soubera que a matriz
da cidade era um imponente templo na Praça do Comércio, que foi demolido
em nome da modernidade. “E modernidade exige destruição do belo??. Espero que
um dia não cismem de derrubar o mercado, que deve ser maior do que a velha
matriz”. Num repente, o menino medita: “Por que o Senhor do Universo precisa de
casas na terra? Por que se utiliza de procuradores?. Todo poderoso, deveria muito
bem servir-se das trombetas celestiais para comunicar-se diretamente com Seu povo”.
Mistérios da fé.
Posto de Puericultura. Gente amontoada pelas varandas, mais gente no pas-
seio. “Deve ser pra tomar vacina. Vai ver que não vieram na semana passada, ou
vieram e a vacina acabou. E se estiverem em jejum, ainda a essa hora!?”. Lembrou-se
que, na semana anterior, fora levado pelo pai para vacinar-se. Fora em jejum, pois
esse era o costume. No posto, o doutor informou que jejum somente se exige para
exames. No caso de vacina, tratava-se de invenção sem sentido, crendice. “Que
diabo é crendice??”.
O menino resolve descansar à sombra dos oitis da praça. Observa o obelisco
e conta o tempo. “Será que, ao completar-se mais cem anos, colocarão outro
degrau?. Não, acho que vão fazer outro monumento somente para trazer alguém de fora para
inaugurar”.
O cemitério. O menino mantém uma relação conflituosa com os mortos:
tem, simultaneamente, medo e curiosidade. Para ele, a morte está plena de in-
terrogações. “Se a morte é o fim da vida, por que só se fica famoso depois de morto?
Aí, é nome de rua, de praça, de cidade. Alguns, até, viram santos. De que adianta
ser santo depois de morto? Será que o morto famoso sabe que seu nome foi colocado
na praça?”. Apesar do medo, sente uma atração masoquista por aquele muro
gradeado, por aquele portão imponente. Aproxima-se. Sempre ouvira dizer

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Janelas Abertas
que há mortos que retornam na forma de guias. Resolve-se. Vai conversar com
os mortos, pedir conselhos, uma luz, a indicação de uma trilha. Pensa em rezar,
mas desiste. Já basta a Ave Maria gasta pela vitória do preposto do governo contra
o procurador de Deus na mesa de carteado. Quieto e mudo, apoia-se no portão
de ferro. No seu silencio interior, olhos fechados, vê um facho luminoso de verme-
lho intenso. Não entende a mensagem, mas percebe que se trata de uma rota longa
e sofrida que lhe cabe seguir. Apenas, terá que esperar a hora de por-se a caminho.
Sobrado dos Nogueira. A reforma para a instalação do Ginásio São Judas
Tadeu, filiado á Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, vai de vento em
popa. O menino sente-se em aula já. “Qual matéria vai me agradar mais?”. De ante-
mão, escolhe História e Geografia. O tempo dirá se a escolha foi correta.
Casa Jesus, Maria e José. Anciãos com rostos amargurados às janelas.
“Será que Alberto Nogueira conseguiu arrecadar o suficiente para essa gente ter um
Natal?!. Se pudesse, daria ajuda”. Ah se o menino soubesse que uma grande,
incomensurável ajuda seria ele entrar e dialogar com aqueles amargurados rostos!
Seria um alimento, uma festa que nenhum dinheiro compraria.
Na Esquina do Campo vê a molecada, Zé Leão e Jurandi à frente, a caminho
do baba. Avista os muros do velho cemitério, mas sua mente se concentra a
olhar o que os olhos não vêem: o Lasca Gato, bem no início da Ladeira da Fon-
te da Nação. “Um dia, quando eu for maior, ainda vou ver o que tem nesse Lasca Gato
tão falado”. A questão, no entanto, não é de tamanho. Há uma idade na qual
já se aprendeu o suficiente para não correr riscos, mas ainda não se sabe o bastan-
te para aproveitar a vida.
Rua da Quixabeira. Lá está Djalma, a chinelar pela calçada. “Não vai pro baba?”.
“Vou pra oficina de Tonhó. Tou lá de aprendiz”. Na Esquina de Henrique, cruza com
Zé Luís. Não se falam, apenas se olham. “Se fosse Tonho Luís, eu ia parar pra conver-
sar. Esse aí tá mais pra pai do que pra companheiro”. “Lá vai Dego, sacola na mão. Certo que
vai pro balcão do irmão Tonhó”. Zinha, à janela, observa o passante, que observa a
valorosa mulher.
Silêncio na casa da Profª. Aurelina. Nas férias, somente um ou outro aluno ali
comparece para tomar banca. O menino sorri: “Nunca precisei de banca pra passar...”.
Lembra-se dos quatro anos que ali estudou, tomou bolo e chorou, mas aprendeu.
Ali se aprendia, nem que fosse na base da régua e da palmatória (não aquela que
imaginara existir na cadeia...).
Esquina de Arlindo Paes Coelho. “Interessante, nunca vi Nazi na porta
de sua venda. Também, ele não tem vizinho com quem bater papo. O jeito é ficar
lá por dentro a mexer nos peixes, na carne de sertão, nas enxadas, esperando um
freguês e torcendo pro dia acabar. Deve ser uma morrinha!!”. Avança pelo passeio
a fim de cumprimentar o colega Emanuel, balconista da loja de Pedro Martins.
A conversa é pouca, pois o dono não gosta de lero-lero no seu negócio. “Parece que
aprendeu com Deraldo Bacelar ( ou foi o inverso?)”.

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Parte I - Janelas da Memória
Outra vez na praça, a velha casa onde morou lhe chama a atenção. É a segunda
após a esquina e continua fechada. Ali morou por quase dois anos, quando veio
para a cidade. Bem se lembra quando o pai adoeceu de tanto ficar até tarde
no bar. Por isso, vendeu o bar para Bráulio Miranda. Fez bem. A passo lento,
observa o consultório do Dr. Mendonça. O médico vinha de fora uma vez por
semana e ficava dois dias na cidade. Doentes, sempre havia, pois Dr. Aloísio não
dava conta de todos. Quem gostava era o pai, pois assim havia mais receitas para
despachar na Farmácia Confiança. Na farmácia de Chaves pensava-se da mesma
maneira. Pena que o pai vendeu a Confiança para Dr. Ramalho, pois o menino
gostava de passar o tempo ao balcão, ler as bulas dos remédios, ver o preparo
das drogas manipuladas. Ele e Fiinha tomavam conta do negócio, ela substituindo
o farmacêutico prático Zeca de Sergipe, que o pai trouxera de Feira de Santana.
Praça abaixo, vê-se na calçada de Piroca Brejão, casa cheia de vendeiros e qui-
tandeiros a se abastecerem. Ali o negócio era do bom e todos tinham crédito.
Ao menos, era o que ouvia do pai.
Mercado. Resolve entrar para ver se ainda há restos da feira. A não ser
na barraca e no balcão de carne, não se vê mais ninguém. O menino gosta do
mercado. Todos os sábados, lá comparece com a mãe, a fazer as compras. Avis-
ta uma porta aberta aos fundos e para lá se dirige. É hora de ir para casa que o
sol já está a pino. “Canta galo, Manoel Julião, Mangabeira e Rua Nova que esperem, pois
meus pés não são de aço”.
Já na Rua de Baixo, sente que o depósito de Olavo está com cheiro de cachaça
nova. Certamente chegara carga da “Dois Leões” e da desdobrada.

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Janelas Abertas
A Cidade em Três Manhãs
Quarta-feira. Lá vai o menino seguir a rota decidida. Saiu mais cedo, para ver
Valfredo abrir sua tenda. Mal chega à esquina do mercado com a Rua Canta Galo,
avista o artesão a manejar o molho de chaves. Nunca pensou em ser sapateiro, mas
sente entusiasmo pelo ofício. Acha que todo sapateiro é um artista. Lembra-se
de Zé Vermelho, que é cantor e corta-sola.
Inicia a descida da Canta Galo. Pedro Barbeiro já está na labuta, aparando
os escassos fios de uma careca da sociedade. O cheiro de água velva corta o beco.
João Pechincha já está no ponto, vendendo pule do bicho. “Será que hoje vai dar touro?
Sonhei com dois enormes chifres essa noite”. Ainda não jogou no bicho, mas
tem enorme curiosidade sobre como se dá o sorteio. “Que é limpo, tenho certe-
za, pois João Pechincha é homem de bem. Se não fosse, não freqüentaria o depósito
de Tiano”. No final da Canta Galo, a menina morena na janela da casa de Ma-
noel Cardoso chama-lhe a atenção, mas o amor platônico passa a borracha.
Ao menos, por enquanto.
Depósito de fumo. Os fardos, a saírem do carro-de-boi há pouco chegado,
acumulam-se na calçada. Lá dentro, a azáfama das manoqueiras a consertar
fardos rasgados. Pensa: “Cigarro e charuto dão muito dinheiro. Se não dessem,
não se plantaria tanto fumo. E se não plantassem, que fariam os pobres lavradores desse
sertão!? Todo mundo a cultivar mandioca, não haveria boca pra consumir. Acho que
iriam todos pra São Paulo”. É o que ouvira os maiores falarem.
Beco de Teófilo. Resolve descer até Manoel Fogueteiro. Dá de face com
os irmãos sergipanos, Zeca e Vavá, a discutirem sobre o preço do couro curti-
do. “Vai ver que subiu de preço. Vão ter que aumentar o cobrado pelos chinelos. Logo
agora, que estou precisando de um novo...”. Na porta de Maninha, Zé Pequeno olha
a rua. Não se falam, já que mal se conhecem. Pensa em entrar na casa de Joana,
a bonequeira, mas desiste. “Afinal, boneca é brinquedo de menina”. Algo o incomo-
da ao pensar assim, mas não sabe explicar a razão. Anos depois, descobriria que
naquela casa não se faziam bonecas mas arte, a mais bela e pura arte iraraense.
Fim da Rua de Baixo. Passa pelo portão da salgadeira de Pompílio e logo
está em frente à tenda de Mestre Cacimiro. Ali, estaca. O cheiro de madeira o faz
entrar. “Bom dia, mestre”. “Bom dia, menino. Passeando a essa hora?”. “É, tou dando
um giro pela cidade. O que é isso que estás montando?”. “É uma mesinha com gave-
tas, pra apoiar oratório que um freguês comprou em Feira. Já tou terminando. Logo
vou envernizar”. Segue e se dá em frente à tenda do fogueteiro. Ali é conhecido,
pois todo ano comparece para comprar fogos. Olha, vê o pouco movimento e
pensa: “deve ser porque o São João tá longe”. Retorna, para virar no beco de Éver-
ton, rumo ao pé de sabonete. No lado oposto, a jaqueira está coberta de frutos,
fora os caídos.

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Parte I - Janelas da Memória
Rua da Mangabeira. Esquina de Amélia. Cavalos de aluguel, arreados, aguar-
dam partida, certos de que serão esporados como de costume. A dona avisa:
”Os bichos são quase gente. Não precisa esporar. Basta atiçar a brida que eles avan-
çam sem serem maltratados”. O menino matuta: “Se esses cavalos falassem, diriam:
‘não adianta, Amélia. Eles pensam que a gente não sente. Metem a espora pra valer’.
O correto seria cobrar multa de quem devolvesse os animais com marcas de esporas”.
A Mangabeira é a rua mais bem falada da cidade. Na verdade se ouve homens
falando dela, e como se existisse somente à noite. “Ainda vou desvendar esse misté-
rio. Rua tão bonita de dia... tantas moças nas janelas...”.
Na esquina do cinema, resolve: vai andar pelas duas calçadas da Manoel Ju-
lião. Avança. Em frente á casa de Albertino, cruza com o primo Zé Nilton a sair
com uma bola debaixo do braço: “Vou bater um baba”. Pensa: “Como essa turma de
Gilson gosta de bola!. Eu prefiro caminhar, ver gente, ver casas”. Não sabe ele que da-
queles babas sairiam jogadores famosos como Renato de Ospício, Delcker de Guga
e, bem mais adiante, um goleiro chamado Dida, que seria da seleção canarinho.
João Tanoeiro, assobiando, limpa as gaiolas de sua orquestra de pássaros.
O menino gosta do fabricante de barris; admira o contraste entre seu jeito estouvado
de falar e o carinho que emprega ao alisar as costelas de madeira dos vasos que fabrica.
Na tenda de Zé Estrela, o funileiro, pára e fica a contemplar o derreter de solda em
telha de barro cozido. Acha interessante aquele cortar, e virar, e bater, e soldar folha
de flandres. O menino vê o artesão passar todos os dias pedalando bicicleta Rua
de Baixo acima, vindo de seu sítio lá pras bandas do Cruzeiro da Queimada.
O retorno se dá no passeio da farmácia de Chaves. Zé Petu, ao vê-lo, inquire:
“Quer um abafa-banca, meu filho?”. Quis. Não entende por que todos os mais
velhos o chamam de meu filho. “Vai ver que é porque me acham quieto.
Não fazem idéia do vulcão que tenho na cabeça”.
Cinema. O cartaz anuncia: Domingo - Roy Rogers em “Cavalgada Selvagem”.
Decide que virá ao matinê dominical, mesmo que o pai não queira. Há de
se arranjar com a mãe. Já basta que perdera “Sete homens e um destino”, na semana
passada.
A velha Rua Nova é um poeirão, com o vendaval a ciscar. Pompílio, à porta
de casa, consulta uma folha de papel. “Deve estar verificando quem não pagou
o aluguel. Papai pagou, que eu vi”. O velho senhorio é dono de casas por toda
a cidade, inclusive de pontos comerciais como o de seu pai na Rua de Baixo.
Joãozinho Dantas despacha o burro com os camburões de leite. E condutor, claro.
“Tão tarde pra entregar leite. Será que não vai talhar?”.
Uma gritaria assusta o menino. É a molecada a atiçar Das Dores, que desce
a rua agitando os braços e falando sozinha. “E Lucinda, por onde andará?”.
Das Dores não mete medo. Lucinda sim, é braba!”. Antônio de Modesto cruza
a rua. “Certamente vai aplicar injeção, pela pressa com que anda”.
Capelinha. A porta semi-aberta chama os que passam. Interesse em entrar,

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Janelas Abertas
não tem. Não obstante, pára e observa: cabeças cobertas por véus, ora pretos,
ora brancos, ocupam os poucos assentos. “Será que também Deus está de férias,
por isso o povo desistiu da igreja e veio pra cá, a ver se ele aparece nessa casa
modesta?!”. Não avista o Procurador do Deus. Alguém puxa a reza e todos respon-
dem, numa mesmice sem reticências.
Esquina do Foro. Dr. Cândido, o Juiz de Direito, enfatiotado, conversa à porta
com Amaro Medeiros - charuto ao canto da boca - que mora quase em frente.
O menino imagina: “Juiz deve ser mais importante que político. No entanto, pelo
jeito, parece que o dono do charuto é quem passa instruções à autoridade, embora
um seja do PSD e o outro da UDN”. Questiona: “É certo juiz ter partido ?! E pra
quê o palitó e a gravata num calorão desse?!”. No outro lado da rua, em frente
à casa do padre Valtério, o Procurador de Deus, um caminhão chama sua atenção.
“Deve ser de Inácio, que mora vizinho. Vai ver ele está lá dentro tratando dos interesses
dos romeiros que virão para a festa de Dois de Fevereiro”.
Beco da Madalena. Estaca e fica observando animais com cangalhas con-
duzindo adobes. Uma tropa. “Quem será que está construindo? Na Rua de Baixo
não é, que não vi...”. Na Lagoa da Madalena fazem-se adobes de bom tamanho,
embora costumem rachar por estarem mal curtidos. A pressa em vender é tanta...
O menino olha os quintais à frente. Os muros com detalhes torneados da casa
de Pedro Martins contrastam com as rústicas paredes brancas do lado oposto.
Uma paisagem que se vê em outros cantos da cidade, exceto nas ruas da Quixabeira
e da Mangabeira, essas só de pobres e remediados.
O menino conclui que viu toda a cidade. Senta-se na borda da calçada e diz
a si mesmo: “Como é pequena a minha terra! Eu a corri de ponta a ponta em três
manhãs. Se fosse no frio de julho, teria visto tudo em um só dia...”.
O menino engana-se. O que viu nas três manhãs em que bateu pernas foi
donos de vendas, quitandas e armazéns, fachadas com janelas semi-abertas,
repartições a exigir fila, políticos a distribuir benesses, Zé Ninguém a bater em
Zé do Povo, Procurador de Deus a acertar jogo de cartas com Preposto
do Governo, cães a ladrar e a se encangar, molecada a abusar de doida, autoridade
a receber instruções de político...
Não viu a Cidade. Bem verdade que sentiu o calor dos “meu filho” que
escutou, que se enlevou com as rimas do martelo e do serrote de Zé Freitas, que
recebeu nos olhos o porte soberano do Professor Fernando, que acolheu no ar
o aceno de Raul Cruz, que sentiu a agitação no depósito de Tiano, que se
empolgou com a solidariedade dos que iam bater baba, que se entristeceu com
os rostos amargurados nas janelas da Casa Jesus, Maria e José, que deu pela falta
de Miguel Paes Coelho no templo batista, que viu Zé Estrela derretendo solda em
telha de barro cozido, que ouviu o assobio de João Tanoeiro limpando as gaiolas
de sua orquestra de pássaros, que aprovou o gosto do abafa-banca de Zé Petu, que
se lembrou ser Zé Vermelho cantor e artista, que espiou Valfredo abrindo seu ateliê

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Parte I - Janelas da Memória
de mágicas, que se alegrou por não precisar tomar banca com a Profª. Aurelina,
que viu Olavo renovar o estoque de “Dois Leões”, que sentiu o cheiro de pólvora
na tenda de Manoel Foqueteiro, que apreciou a mesinha feita por Mestre Cacimiro,
que se emocionou ao ver o sol em companhia das irmãs artistas da Rua Direita,
que se arrependeu por não ter entrado na casa de Joana Bonequeira, que recebeu
dos mortos a indicação de um caminho a seguir... .
Contudo não viu a enorme cidade que fervilha por todas as tendas e oficinas,
que se emoldura nas bonecas e desenhos, que se entristece aos berros de “Badaró”,
que palpita nos corações vermelhos ainda escondidos, que chora ao imaginar
o que o futuro reserva ao velho prédio da prefeitura e ao solene coreto da Praça
da Bandeira, que lastima a perda da velha matriz, que faz música ao tilintar
de copos e garrafas, que estremece ao passar a Filarmônica, que teme pelo futuro
do velho mercado, que sua ao lavar roupa na Fonte da Nação, que constrói
peças maravilhosas a partir do barro bem pisado, que canta fantasiada de Germino
Curador, que dança com os passos de João Chagas, que faz ritmo com o agogô
de Só Chumbo, que brinca ao som do trombone de Zequinha, que se enche de alegria
a cada sábado que chega e passa. Para ver essa Cidade Multifacetada, não
bastarão ao menino três manhãs. Será preciso toda uma vida a fim de constatar
que ela se renova todos os dias, todos os meses, todos os anos. Que faz arte, faz
cultura, faz história.

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Janelas Abertas
Os Caminhos da Cidade
Até meados do século passado, Irará possuía oito caminhos. Por eles chega-
vam os tropeiros, cantavam os carros-de-bois, esquipavam os animais de montaria,
vagavam os andarilhos com alpercatas de sola e relho. Por eles aventuravam-se
os caminhões. Veias e intestinos da Vida Urbana, por esses caminhos entravam
os cereais, as frutas e as verduras; saíam o fumo e os emigrantes – riquezas da terra
e das gentes.
Passada quase uma década, o menino que fizera a Cidade em Três Manhãs,
agora rapaz, iria fazer os caminhos que circulavam a Urbis. Para fazê-los, saíra
em busca de rumo e mundo.
I – O Caminho do Cruzeiro da Queimada
Descida a Rua de Baixo, a marcha pelo lado esquerdo ladeia a área da salga-
deira de Pompílio tendo à direita a bucólica vista do sítio dos Portela. Logo ouve-se
o bater do macete no formão, a indicar que Mestre Cacimiro apronta mais uma
encomenda. Em frente à tenda do artífice, a casa de Pedro Barbeiro a confrontar-se
com a tenda de Manoel Fogueteiro. O cheiro de pólvora e de rosalgar atesta que
o São João vai ser farto e colorido.
Bons espaços caminhados, logo constata-se azáfama no sítio de Antoninho:
Sampaio a selar cavalo, a carroça d’água a ser abastecida, o catavento a girar, girar.
O Caminho estreita-se para maior intimidade com o aglomerado de casas nas
posses de João de Bila. Adiante, na curva que se destina à Conceição, a piçarra solta
denuncia que a Prefeitura andou tapando buracos deixados pelo último toró,
a fim de facilitar a passagem da marinete.
A marcha deixa a curva e segue em frente, rumo às sombras do Cruzeiro. Um olhar
à esquerda mostra o sítio de Zulmiro com seu cajueiral a enfrentar o mormaço.
Parada na capelinha para acender vela em prol de chuva que não chega. O sol,
a meio pino, projeta os braços da cruz no chão arenoso, que o capim não cobre.
O Cruzeiro da Queimada avisa ao andarilho que a cidade ficou para trás e que
dali em diante só se verá enxada a cortar o chão crestado na dura labuta pela
mandioca e pelo fumo.
II – O Caminho do Retiro
Na encruzilhada que dá acesso ao sítio de Antoninho, dobra-se á direita,
bem em frente à chácara de Possidônio. Pasto de um lado, coqueiros e jaqueiras
do outro, logo o andarilho há que deparar-se com a varanda alambradada da
casa onde morou Manoelzinho da Paixão, quando deixou o Leãozinho e veio morar
na Rua a fim de educar os filhos. A velha casa coroa o cume da ladeira.
Descida a pique permeada de voçorocas que a chuva do ano passado deixou

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Parte I - Janelas da Memória
como herança, a ladeira dá-se, na baixada, com o riacho que conduz o vinhoto
do alambique. No pasto à direita, um mar de flores silvestres, que dançam ao
embalo das borboletas e ao som do vento que sopra – morno às oito, quente
à tarde. Os cavalos a pastar interrompem o banquete para mirar o andarilho, que
desce ao encontro do fétido rego de água poluída.
Passada a tosca ponte, a subida íngreme conduz ao Retiro se a marcha seguir
em frente, mas dar-se-á no Povoado de Santo Antônio se o desejo de ver a nascente
dita milagrosa for maior que o de conhecer o antigo Povoado de São Simão.
O Caminho do Retiro faz as terras iraraenses parecerem poucas, tão logo
se chega às plagas de Coração-de-Maria.
III – O Caminho da Fonte-da-Nação
Final da Quixabeira, na esquina da Casa Jesus, Maria e José. Se o destino
é a Praça do Coreto, dobra-se à direita. Sendo os olhos pra ver paisagem, quebra-se
à esquerda. Vencendo os olhos, dá-se um encontro de contrastes: o Campo de Bola
- onde a moçada bate baba – faz parelha com o velho cemitério de muros sombrios
embora gradeados à moda clássica. Um abraço da alegria dos jovens brincantes
na solidão dos que deixaram a vida para ingressarem nos sete palmos da eternidade.
Por trás do Campo de Bola, a salgadeira de Amadeu bem no cume da ladeira.
Chão bem conhecido dos boêmios noctívagos, logo se vê o Largo do Lasca-
Gato, com suas casinhas de janela e porta – de dia moça à janela, de noite rapaz
à porta. Se o andarilho desviar os olhos para afastar a tentação e meter pé a descer
a ladeira, encontrará, na meia rampa e à esquerda, o desvio para a Fonte-da-Nação.
O cantar das lavadeiras sempre alegra os que chegam e aproximar-se é ver gente
sofrida a divertir-se na labuta de todo dia. No verde da grama, a roupa da
cidade posta ao sol, na quara indispensável ao branco almejado. Nas bordas
da velha fonte, aguadeiros enchem os barris que irão mitigar a sede dos moradores
da Rua: é esperar e ver os jumentos partirem – arqueados – ladeira acima,
em cada costado quarenta litros. A quantos iraraenses sedentos a Fonte-da-Nação
já saciou? Cálculo para entendido em estatística. O certo é que, seja inverno
ou verão, haja seca ou chova toró, a Fonte-da-Nação cumpre sua bendita sina.
Continuar a descida é apreciar, nas laterais, o verde intenso do capim
a realçar a galharia cinza dos juazeiros, araçazeiros e cajueiros. Na baixada,
o Alambique Dois Leões solta fumaça como se fosse locomotiva e o vento espalha
o ativo odor da cana fermentada. Cruzando-se o riacho, o vinhoto assusta por
escurecer o fio-d’água. Há que subir a rampa íngreme para deslumbrar-se com
os campos coloridos por onde o gado pasta. Não fosse a cerca – a indicar pro-
priedade – e a aventura conduziria o andarilho até as sombras da capoeira
distante – isso se as vacas paridas o permitissem. Chegada ao topo, a trilha conduz
ao aconchego do Povoado da Caroba. Voltar os olhos significa vislumbrar o casario
da cidade como se fosse uma miragem em deserto verde.

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Janelas Abertas
O Caminho da Fonte-da-Nação é a nossa Trilha de Santiago de Compostela:
permite o andarilho cumprimentar a alegria da moçada no baba, ensimesmar-se
com a solidão dos mortos, deixar-se tentar pelas atrações do Lasca-Gato, fanta-
siar a mente ao canto melancólico das lavadeiras, ver a vida brotar na fonte que
não seca, embriagar-se ao odor da cana a fermentar, entristecer-se com a turvação
do fio-d’água poluído pelo vinhoto, acalentar-se diante das vacas a mugir, cons-
tranger-se ao sentir os limites que a cerca impõe, despedir-se - com saudade -
do casario distante e apressar-se para ver o sol se pôr à sombra da igrejinha
da Caroba, como se chegado fosse ao templo de Santiago na milenária Compostela.
IV – O Caminho das Lajes
Dá-se adeus à Rua mal se desce a calçada do Posto de Puericultura. A sombra
do Obelisco parece apontar a rota: a vereda suburbana tem seus limites no arame
farpado que registra as roças da redondeza. Se o dia for propício, o andarilho terá
grande chance de cruzar com Raul Cruz a retornar do Bongue. À direita, o jardim
da chácara dos Gomes chama atenção pela variedade de flores. O pau-a-pique in-
dica curral e ordenha. A vereda é larga, com areia bem assentada, já que por ali
transita a marinete com destino a Feira-de-Santana.
Tomando-se à esquerda, na encruzilhada que leva à estação-do-trem, logo
se avista a Escola Rural, arrodeada de terra seca e descoberta. Curva fechada
à frente, o mato catingueiro indica solo entristecido. Vá se crer que naquela rus-
ticidade haja uma cachoeira como a das Lajes! É embicar mato a baixo para ver
e crer, tal qual São Tomé: no sair do cipoal, lajedos majestosos gretados por sécu-
los de água corrente brilham em espelho cristalino. A queda d’água – pequena
mas formosa – faz nascer da terra ressequida o verde das trepadeiras, provoca o
abrir de flores - salão de borboletas - permite que lagartixas se cumprimentem
na luxúria da pedra lisa e brilhante.
O andarilho, que nas Lajes se refrescou à saciedade –olhos e sede – pode mar-
char picada acima para encontrar o Rumo, povoado de gente simples, tez queimada
e pele a demonstrar o quanto pode o sol. Há que ver o pau-a-pique a arrimar
cabritos, porcos soltos no quim quim de quem tem fome, rolinhas fogo apagou
na monotonia do seu umrurum, galinhas a ciscar no terreiro, que a sombra de pé
de fruta-pão protege.
A aventura leva à Vila de Quaresma, último baluarte das terras iraraenses
antes que se chegue à influência de Feira-de-Santana.
V – O Caminho do Cajueiro
O Caminho do Cajueiro é irmão mabaço do Caminho das Lages. Basta chegar-se à
encruzilhada da estação-do-trem – cadê o trem que não vem - e seguir em frente
para dar-se no aglomerado de pequenos sítios acolhedores e ensombreados.
Adiante, a casa de Manoel Pinheiro, respeitado abatedor de boi. Antes, o quase

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Parte I - Janelas da Memória
esconderijo de Pedro de Tiano, já comunista declarado.
Na capoeira rala que limita o fim da jornada, vislumbra-se o que resta
ao catingueiro: mato espinhento, chão pedregoso, água só de chuva e quando
São Pedro chora, sol renitente a não querer se pôr, anoitecer com o cio cio das
cigarras e o agouro das corujas. Dali não se vê a Rua, que parece esconder seu
rosto com vergonha de mostrar-se ao subúrbio. Este, altaneiro, espera chegar
o sábado para apresentar o suor do seu esforço: aipim, galinha gorda, beiju
de tapioca e massa, caju colhido no pé, jaca dura e mole, no açougue carne-de-boi
bem talhada.
O Caminho do Cajueiro é um retrato vivo de como a Rua esconde a dureza dos
seus arredores, mas deles depende para sua própria sobrevivência.
VI – O Caminho do Corte
A Cidade Nova põe fim ao arruado. Seguir a velha estrada de Água Fria
é encontrar a dura caatinga que se estende para o norte. Logo se vê terra fatiada
como bolo em festa de aniversário. É o corte da estrada-de-ferro.
Como a ameaçar cumprir uma promessa de décadas, a paisagem violentada
faz sonhar-se com o trem – que não vem que não vem que não vem. O andari-
lho espera que o apito chegue na mesma rapidez com que se fez o corte. Afinal
a estação está quase pronta e na vala aberta basta assentar-se os dormentes
e os trilhos. Terra devastada em nome da civilização, da modernidade: há que
trocar-se a duvidosa e apertada boléia do caminhão pelo anunciado conforto nos
vagões da Maria Fumaça.
Na rota, somente terra nua a mostrar suas entranhas: raízes secas, pedras
a despencar, xiquexiques a apoiar-se na beira da ribanceira.
A decisão de seguir pela paisagem inóspita levará o andarilho ao vento frio
das noites da Barra – aí sim a esperar o apito incerto do trem que passa ás sete.
Na estação já se encontram quebra-queixo, amendoim torrado, beiju de massa
e piaba frita, todos a esperar os passageiros que seguem para Serrinha, Senhor
do Bonfim e Juazeiro. Depois, é aguardar o trem das nove da manhã, com as
gentes que se destinam a Aramari, Alagoinhas, Catu e Calçada. Na Barra mesmo,
descem uns dois e talvez subam outros tantos.
Cruzados os trilhos, é alcançar o belo templo que ornamenta a história
da velha Vila de Água Fria, aquela que já foi cidade e há de voltar a ser.
VII – O Caminho da Lagoa da Madalena
A Praça do Coreto abraça a Rua Nova bem no Beco de Pedro Martins. Ali se
inicia a trilha que leva a Ouriçangas, Ouriçanguinhas, Aramari e Alagoinhas.
Há que ver-se, logo nos primeiros trezentos passos, a chácara de Elesbão,
ensombreada por frondosas fruteiras. Avista-se o curral e escuta-se o mugir
das vacas à espera da ordenha.

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Janelas Abertas
Seguir a rota é ver o Caminho apertar-se no canyon abrupto. O acidente – ou
incidente? – topográfico impede o admirar-se as pastagens verdejantes que imperam
ás margens da viela. Na ladeira, há que evitar-se os regos das voçorocas.
Na baixada, a Lagoa da Madalena, na soberba de quem dispõe de água e na
humildade de quem se deixa usar: lavadeiras, oleiros e pescadores disputam as bei-
ras enlameadas da lagoa. No meio do lençol que brilha, um ou outro aguapé mostra a
cara, a amedrontar a fartura.
Adobes recém-moldados secam ao sol, fazendo coro com as roupas a quarar.
Latas d’água na cabeça, as Marias sobem o Morro do Cruzeiro sem cansar.
No largo do Povoado, o leprosário escancara a piedade de Alberto Nogueira e
o andarilho medita sobre os Mandamentos da Lei de Deus, por Moisés escritos na
Pedra Sagrada.
O Caminho segue contornando fazendas e apontando horizontes: O Rato;
a Pedras de Amando; a Pedras de Tiago; a Umbaúba; ao longe o morro que esconde
o arruado da Vila de Pedrão, mal deixando ver-se a torre da velha igreja.
Mais uma curva, uma descida, uma rampa, outra curva, uma subida e eis Ouriçan-
gas, na pachorra de quem não tem pressa pelo correr do tempo.
Do alto, bem em frente da igreja secular, vale olhar o vale e avistar a paisagem
que o canyon do Caminho não deixou vislumbrar.
VIII – O Caminho da Mangabeira
É pegar a esquina do cinema que vai sair na Mangabeira. O seguir em frente vai
dar na roça. Se cortar passadas pelo Pé de Sabonete, é dobrar à direita bem na casa
de Amélia - aquela que aluga cavalos selados - e logo verá a casa de Valfredo. A rota
para a roça está na marca de patas pelo chão de areia.
O Caminho da Mangabeira mostra a intenção da Cidade em estender-se para as
bandas do verde e plano. O subúrbio pequenino finda no sítio de Olavo. Dali pra
frente é cerca, mato e ladeira, até o desembocar no Rio Seco, aos pés da Pedras de
Amando e logo após o massapé da Picada.
O andarilho, se for menino, pode abusar do badoque, que a cada dez passos tem
passarinho na cerca; pode abastar-se no caju, que os pés carregados margeiam a trilha.
No andar seguro, chega-se à encruzilhada. Há que desviar-se dos despachos que ali são
deitados – certamente para o bem dos cães vadios, já que mal, nessa terra, não se deseja.
O Caminho da Mangabeira – direção clara de para onde a cidade irá - tem o privi-
légio de não ser caminho para pneus. Suas areias soltas, suas margens ensombreadas,
sua encruzilhada com despachos somente se abrem para o pisar dos cavalos, o cantar
dos carros-de-bois e o passo ligeiro e certo dos andarilhos. Não por acaso, seu início
mais usual se dá no Pé de Sabonete.

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Parte I - Janelas da Memória
Brincadeiras de Criança
Nada mais triste do que choro de idoso; nada mais alegre do que brincadeira
de criança. A capacidade de adaptar-se às circunstâncias, a imaginação para criar
opções, a habilidade para o aprendizado rápido, a resistência para o repetir sem
cansar-se, a perseverança no insistir até ganhar, a manha para dobrar os mais
velhos: ser criança é diversidade, bom humor, tenacidade, paixão e amor.
Na metade do Século XX, as brincadeiras de criança se assemelhavam em
todos os recantos, notadamente nas pequenas cidades e na zona rural. Brincava-se
então como o fizeram os mais velhos cinqüenta anos antes, apenas acrescentada a
evolução do vestir-se, calçar-se, comunicar-se, ousar. Em nosso pequeno Irará,
onde as opções de lazer em nada se diferenciavam das demais comunidades
interioranas, as brincadeiras de crianças seguiam a tradição das tias e tios, mães
e pais, avós e avôs. As variáveis ficavam por conta da alegria e da coragem pró-
prias das crianças, da largura da rua ou da altura do passeio.
Na roça, as brincadeiras eram, de uma certa maneira, imitações do que
faziam os adultos, com os limites que os meios disponíveis estabeleciam. Brinca-
va-se de derrubar tanajura – “cai, cai, tanajura, na panela de gordura”; apanhavam-se
borboletas usando-se caçapas de pano atadas a uma vara - soltava-se o inseto
após a captura: o prazer residia no apanhar; armava-se arapuca para aprisionar
pássaros e roedores - aqueles para a gaiola e estes para a panela; pescava-se piaba
com vara e anzol pequenos; subia-se em árvore para colher frutos; tirava-se casa
de abelha para chupar o mel; caçava-se com badoque para apurar a pontaria
e ajudar no rancho; tomava-se banho no tanque - ou na biqueira quando a chuva
caía. Sobretudo brincava-se no alimentar as criações, varrer o terreiro, cortar ma-
naíva, raspar mandioca, tirar água da fonte, torrar castanhas, tirar leite de cabra
ou de vaca, colocar sementes nas covas – meninos com chapéu de palha, meninas
com touca de sacaria. Ainda bem que brincadeira de roça não segregava sexo
nem cor – a não ser em casa de fazendeiro.
Na cidade, os costumes impunham às meninas o brincar sob a barra da saia
da mãe, mas libertava os meninos para a rua e o quintal.
Em casa, as meninas imitavam suas mães, fazendo-se elas mesmas mãezinhas
de suas bonecas. Com caixas vazias montavam sala, quarto, cama. Num monó-
logo quase diálogo, ralhavam, ninavam e orientavam suas filhas feitas de pano.
E as bonecas pareciam compreender, de tão atentas que se punham: olhos arre-
galados, lábios tensos, braços estendidos. As mãezinhas mais atiradas até mama-
deira ousavam preparar para seus rebentos, numa realidade que simulava sonhos.
O que se via, passadas as horas, era mães e filhas, fatigadas, buscarem no aconchego
da cama a letargia do sono reconfortante.
Meninas brincavam de boneca – melhor seria dizer se fotografavam - de casi-

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Janelas Abertas
nha,de fazer debuxo com papel de seda. Quando mais crescidas, aventura-
vam-se no bordado e no croché e até arriscavam costurar à mão.
Meninos, esses mais capetas e mais libertos, cedo tomavam o caminho da
aventura, da busca pelo desconhecido: a estrepolia no trapézio armado no quin-
tal, o domínio no volteio do papagaio solto, os lances ensaiados com a bola de
meia, o esquipar no cavalinho de cabo de vassoura.
Meninos atiravam-se a soltar papagaio, usar andadeira de lata e arame, andar
sobre perna-de-pau, jogar gude e botão, soltar pião, aparar e catar pedrinhas de
uma a cinco, imitar artista e bandido num faroeste amador, soltar barquinho na
enxurrada, apostar no pauzinho. Quando mais taludos, partiam para o baba e a
bicicleta. Cansados e sujos, arriavam à espera da merenda.
Engraçado: meninas imitavam o dia-a-dia das mamães, mas meninos desco-
nheciam os afazeres de seus papais. Mal do gênero ou do sexo?
As brincadeiras urbanas ousavam separar os sexos, apesar de algumas prefe-
rirem o enturmar-se de meninas e meninos.
As brincadeiras do entumar-se eram: picula, jogo de peteca, lançar ioiô, girar
de cabra-cega, fazer a roda, pular o passo-passo, adivinhar o que é o que é, saber em que
mão está, trançar cordão nos dedos, pular corda, saltar amarelinha. Amadurecidos,
todos iam ler revistas de quadrinhos. Amadurecidos ou convencidos!?
Meninas e meninos – sejam da roça ou da cidade – brincam, crescem, amam
e se reproduzem para tudo recomeçar como sempre aconteceu desde que gente
apareceu no mundo.
Os tempos mudaram, as brincadeiras são outras, a tecnologia domina. Mas,
quem não lacrimeja os olhos ao lembrar-se criança a brincar ? Quem resiste a
uma cantiga de roda? Crianças ouvem, aprendem e repetem; adultos escutam e se
emocionam; idosos arrancam da memória o que os ouvidos percebem, cortam o
choro e partem para o sonho bem desejado.

“Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar.
Vamos dar a meia volta, volta e meia vamos dar.
O anel que tu me deste era vidro e se quebrou.
O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou.”

“Atirei o pau no gato-to.
Mas o gato-to não morreu-reu-reu.
Dona Chica-ca admirou-se-se
Do miau, do miau que o gato deu”
“Capelinha de melão
É de São João;
É de cravo,
É de rosa,
É de manjericão.”

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Parte I - Janelas da Memória
“Eu sou pobre, pobre, pobre,
De marré, marré, marré.
Eu sou pobre, pobre, pobre,
De marré desci.
Eu sou rica, rica, rica,
De marré, marré, marré.
Eu sou rica, rica, rica,
De marré, desci.”
“Fui no tororó,
Beber água, não achei.
Encontrei bela morena,
Que no tororó deixei.
Aproveite, minha gente,
Que uma noite não é nada;
Se não for dormir agora,
Dormirá de madrugada.”
“O cravo brigou com a rosa
Debaixo de uma sacada;
O cravo saiu ferido,
A rosa despedaçada!”
O cravo ficou doente,
A rosa foi visitar;
O cravo deu um suspiro,
A rosa pôs-se a chorar.”
“Pai Francisco entrou na roda,
Tocando seu violão:
Dararão, dão, dão! Dararão, dão, dão!
Vem de lá ‘seu’ delegado,
Pai Francisco vai pra prisão.
Como ele vem todo requebrado,
parece um boneco desengonçado!”
“Passarás, não passarás,
Algum ‘dele’ há de ficar;
Se não for o da frente,
Há de ser o de trás, trás.
Bom barqueiro, bom barqueiro
Que me deixes eu passar;
Tenho filhos pequeninos
Que não posso sustentar.”

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Janelas Abertas
“Teresinha de Jesus
Deu uma queda e foi ao chão;
Acudiram três cavalheiros,
Todos três chapéu na mão.
O primeiro foi seu pai,
O segundo seu irmão,
O terceiro foi aquele
A quem Teresa deu a mão.”
“Fui à Espanha buscar o meu chapéu,
Azul e branco da cor daquele céu!
Ora palma, palma, palma!
Ora pé, pé, pé!
Ora roda, roda, roda!
Caranguejo peixe é!”
“A canoa virou,
Deixá-la virar,
Foi por causa de Fulana,
Que não soube remar.
Se eu fosse um peixinho,
E soubesse nadar,
Eu tirava Fulana
Do fundo do mar.”
“Escravos de Jó jogavam caxangá:
Tira, bota, deixa o Zé Pereira ficar.
Guerreiros com guerreiros fazem
zigue-zigue-zá!”
“Se essa rua, se essa rua fosse minha...
Eu mandava, eu mandava ladrilhar...
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes...
Para o meu, para o meu benzinho passar...”
As cantigas falam por si. Não cabe dizer mais nada.

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Parte I - Janelas da Memória
Fatias da Memória
Vida Doméstica – Almanaque Capivarol - O Cruzeiro – Manchete – Almana-
que Bristol – Guri - Gibi – Almanaque Tico-Tico – Capitão Marvel – Mandrake –
Superman – Tarzan – Fantasma – Batman & Robim – Zorro – Homem Sub-
marino – Cavaleiro Negro – Tom & Jerry – Pateta – Tio Patinhas – Pernalonga
– Pato Donald – Popeye – Luluzinha & Bolinha – Zé Carioca.
Gorgorão – Chita – Bulgariana – Tafetá – Chitão – Tricoline – Casimira –
Algodãozinho – Bramante – Organdi – Madrasto – Fustão – Tropical – Gabar-
dine - Brim – Cetim - Linho – Cambraia – Filó – Musselina – Piquê – Mescla
- Veludo.
Sabonete Eucalol – Água Velva – Brilhantina Glostora - Vaselina Perfumada
Ruth - Pasta Dental Kolynos – Sabonete Lifebuoy – Batom Coty – Rouge Royal Briar
– Leite de Colônia Arthur Studart – Talco Johnsons – Loção após o Banho Cashemere
Bouquet – Pó de Arroz Helena Rubinstein.
Chapéus Ramenzzoni – Sapatos Clark – Chapéus Prada – Calçados Conga 7 Vi-
das – Calças Banlon- Camisas Volta ao Mundo.
Radiolas RCA Victor – Camas Patente – Rádios Phillips – Cobertores Dorme Bem
- Louças Nadir – Máquinas de Costura Singer – Candeeiros Aladin - Talheres Sesam
– Filtros Lorenzzetti – Lampiões Petromax.
Lâminas de barbear Gillette Blue Blade – Lápis Faber – Canetas Parker – Cani-
vetes Corneta – Despertadores Westclock – Lança-Perfume Rodouro - Relógios de
algibeira Omega – Navalhas Sollinger - Lanternas Eveready – Tesouras Mundial.
Inseticida Detefon – Vassouras Fiel – Formicida Tatu – Chumbos Brasil - Que-
rosene Jacaré – Velas Estearina - Creolina Cruzwaldina – Enxadas Tupi.
Cigarros Trocadero, Astória, Continental, Yolanda Branco, Yolanda Azul, Hollywood,
Colúmbia – Charutos Suerdieck – Fósforos Olho.
Palitos Monroe – Azeite Gallo – Goiabada Peixe – Óleo de Algodão Sanbra
– Biscoitos Pilar – Queijo Palmyra – Sardinhas Setubal – Biscoitos Águia Central
– Manteiga Cruzeiro do Sul – Biscoitos Tupy - Farinha de Arroz Arrozina - Salsichas
Wilson – Óleo Guarani - Chocolate Diamante Negro – Mortadela Swift - Café São
Paulo – Chocolate em pó Toddy – Fermento Royal – Corante Colorau – Amido de
Milho Maizena Duryea – Avéia Quaker.
Jurubeba Leão do Norte – Aguardente Dois Leões – Vermuth Cinzano – Vinho
Barbera – Conhaque de Alcatrão São João da Barra – Aguardente Carioca – Vermuth
Martini – Jurupinga Gerin – Aguardente Jacaré - Genebra Ferradas – Gin Gerin – Co-
nhaque Macieira.
Guaraná Fratelli Vita – Sukita – Gasosa de Limão - Laranja Turva – Crush – Grappete.
Pastilhas Valda - Tiro Seguro – Leite de Magnésia de Phillips – Rubraton – Xarope de

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Janelas Abertas
Ipecacuanha – Violeta de Genciana - Assa Fétida – Regulador Gesteira – Saúde das Crianças
- Licor de Cacau Xavier – Eparema – Azul de Metileno - Robusterina – Capivarol - Postafen
– Maracujina – Saúde da Mulher – Pomada Minâncora – Água Rubinat – Elixir Paregórico
– Aguardente Alemã – Óleo de Copaíba – Bicarbonato de Sódio - Biotônico Fontoura – Es-
sência de Cânfora - Vinho Reconstituinte Silva Araújo – Calcigenol Irradiado – Essência de
Terebintina - Elixir de Salsaparrilha – Bálsamo de Benguê - Regulador Xavier – Coramina
- Óleo de Fígado de Bacalhau - Xarope Bromil – Kusuk – Pílulas de Vida do Dr. Ross – Sal
de Frutas Eno – Gotas Milagrosas de Santa Terezinha – Sabonete Sulfuroso Ross – Óleo de
Rícino - Colírio Moura Brasil - Ácido Fênico – Essência de Cravo – Melhoral – Benzetacil
– Phimatosan – Streptomicina Squibb - Capiloton – Polvilho Antisséptico Granado.
O Direito de Nascer (Mamãe Dolores, Albertinho Limonta, Tereza Cristina) – Edifício
Balança Mas Não Cai (O Primo Rico e o Primo Pobre, Ofélia) – Jerônimo, o Herói do Sertão
- Repórter Esso – Jararaca & Ratinho – Alvarenga & Ranchinho – Zé Trindade – Oscarito
– Grande Otelo.
Omar Shariff – Peter O’Toole – Zza Zza Gabor – Sofia Loren – Gina Lolobri-
gida – Sarita Montiel – Doris Day – Rocky Lane – Roy Rogers – Buck Jones – Kid
Colt – John Mc Brown – Tyrone Power – Rock Hudson - Brigitte Bardot – Virna
Lise – Simone Signoret – Ava Gardner – Monica Vitti – Marlene Dietrich – Anita
Ekberg – Marcello Mastroianni – Charles Bronson – Burt Lancaster – Dean Mar-
tin – Lana Turner – Maurice Chevalier – Grace Kelly – Libertad Lamarc – Marlon
Brando – Mireille Mathieu – Vittorio de Sica – Cláudia Cardinale.
O Conde de Montecristo – O Gordo e o Magro – O Renegado – Sete Homens
e um Destino – Os Dez Mandamentos – O Pagador de Promessas – Exodus – Spartacus
– Helena de Tróia – Ulisses, o Navegador – Capitão Gancho – E o Vento Levou – Cleópatra
– O Incêndio de Roma- Marcelino, Pão e Vinho – La Violetera – Pear Harbor - Moisés
– Os Doze Trabalhos de Hércules – Lampião Rei do Cangaço – Jerônimo – E Deus
criou a Mulher – Apache – Moby Dick – O Anjo Azul – A Doce Vida – A Queda do
Império Romano - Redenção – Lawrence de Arábia – O Corcunda de Notre Dame
– Orfeu do Carnaval – Cantando na Chuva - Eles e Elas – Estranho no Paraíso – Ali Babá
e os Quarenta Ladrões.
Agostinho dos Santos – Vicente Celestino – Nelson Gonçalves - Carlos
Galhardo – Augusto Calheiros – Luís Gonzaga – Anísio Silva – Angela Maria
– Cauby Peixoto – Dalva de Oliveira – Dircinha Batista – Altemar Dutra – Emili-
nha Borba – Maysa – Ataulfo Alves – Bienvenido Granda – Carmélia Alves – Nat
King Cole – Cláudia Barroso- Dick Farney – Inezita Barroso – Miltinho – Nora
Nei – Zezé Gonzaga – Ray Charles – Dolores Duran – Charles Aznavour.
Senhora - A Escrava Isaura – Vidas Secas – Helena – O Homem que Calculava – Os
Sertões – Vinte Mil Léguas Submarinas – A Volta ao Mundo em Oitenta Dias – O Sítio do
Picapau Amarelo – O Guarani – Jubiabá – Os Miseráveis – São Jorge dos Ilhéus – Nossa Vida
Sexual - As Fábulas de Esopo – D’Artagnan e os Três Mosqueteiros – A Carne – Dom Quixote

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Parte I - Janelas da Memória
de La Mancha - Viagens de Gulliver – Cyrano de Bergerac – O Morro dos Ventos Uivantes
– Dez Dias que Abalaram o Mundo – Vila dos Confins – Grande Sertão: Veredas – Germinal
– Os Lusíadas – Os Irmãos Karamazov – Decamerão – O Cavaleiro da Esperança – Cascalho
– Gabriela, Cravo e Canela.
A Noite do meu bem – Que queres tu de mim? – Maria dos meus pecados – Balada triste
– Tarde fria – Eu sonhei que tu estavas tão linda – Atiraste uma pedra – Conceição – A deusa
do asfalto – Cinco letras que choram – Ninguém é de ninguém – Senhor da floresta – Salão
grenat – A pequenina cruz do teu rosário – Sorris da minha dor – Boneca cobiçada - Ninguém
me ama – Camisa listrada – A volta do boêmio – Alguém me disse –Asa branca – Cabeça
inchada – Olha pro céu meu amor – Risque – Sabiá lá na gaiola – Dolores Sierra – Fica comi-
go esta noite – Dos meus braços tu não sairás – Meu vício é você – Escultura – Pensando em
ti – Naquela mesa – Deusa da minha rua - Hoje quem paga sou eu – Quero beijar-te ainda
– Luar de Paquetá – Muié de oio azul – Cabocla serrana – Coração materno – Renúncia em
prantos – Porta aberta - Patativa – Na casa branca da serra – Luar do sertão – Cintura fina
– Assum preto – Riacho do navio – Mané fogueteiro –– Maringá – Casinha pequenina – In-
teresseira – Mulher de trinta – Babalu – tornei-me um ébrio – Madame Pompadour – Cai a
tarde – Devolve – Maria dos meus pecados – Meu mundo caiu.

Cenas do Cotidiano

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Janelas Abertas
Os Dias passam e a Cidade vive
Cada dia, o passar das horas e dos acontecimentos – uns, invariáveis; outros,
cheios de surpresa.
Novembro. O mormaço a anunciar um toró que não cai. Os escolares, logo
às sete horas, leite tomado e pão comido, partem para os seus suplícios. Os da
Profª. Aurelina, sem farda, mas com capanga a estufar tabuada, caderno de cali-
grafia, pedra de escrever, pena de bico grosso e merenda. Nas segundas, na mão
vai também o tinteiro levado pra casa na sexta. Os do Grupo Escolar – aquele
com nome de político e médico – com a mesma carga e mais o fardamento azul
e branco. O caminho, todo mundo sabe e quem não sabe pergunta. A rapaziada,
essa já está no batente dos balcões ou nos banquinhos das tendas. Um ou outro
filho da fina flor vagueia pelas ruas em busca do que fazer ou do que aprontar.
Comércio. Nas vendas, em cada porta do lado da sombra, um negociante
a prosar com quem passa, ansiando por um freguês que entre. Os do lado do sol
somente vão pro bate papo depois do meio dia, quando o astro rei dá a costu-
meira sopa. Nos bares, quase ninguém, pois farra e jogo só de noite. Mal e mal se
vende, de dia, uns abafa-banca, uns copos de refresco de limão, umas cordas de
bombom de mel. Já nas padarias – duas – o movimento é pesado das seis às oito:
sai pão italiano, sovado e cacetinho; sai bolacha fofa, de coco e de sal.
Se fosse quarta-feira, haveria de ter caminhão a descarregar charque, quero-
sene, peixe seco e até caixas de enxadas nas portas das vendas. Por volta das onze
horas chega o “carro da Souza Cruz” que vem de Feira: pára de porta em porta das
casas do comércio. Metade da carga é arriada nos armazéns de Piroca Brejão e de
Alfredo Franco. “Um quase mundo, aqueles dois”, pensam os vendeiros.
Meio dia. A romaria reside em fechar os negócios e partir pro almoço.
Na segunda se liquida o que sobrou do banquete de domingo: um resto de
malassado, feijão preto ou mulatinho com miúdos de porco, farofa - essa nova
– salada de alface colhida no quintal e sobremesa de doce de leite. Satisfeito
o apetite, quem tem empregado pra reabrir o negócio fica pr’uma madorna até
as duas – uns até as três.
E a garotada? Essa, retornada da escola e almoçada, prepara-se para pin-
tar e bordar. A picula ocupa os cantos da casa na brincadeira do esconde-esconde.
Os que preferem cabra-cega vão pro quintal, que tem mais espaço e o “cego” não
corre risco de se chocar contra portas e paredes. ”Quebra-pote?” Não, isso é coisa
pra dia de festa e somente lá na Praça. Vez por outra, a turma vai à porta ver se
o homem do quebra-queixo aparece, ou mesmo aquele do amendoim torrado.
Na falta dos dois, o jeito é esperar a hora da merenda.
Negócios abertos, donos retornados da soneca, buzina em cada ponto
o “carro do Café São Paulo”, também vindo de Feira. A meninada que observa o
movimento pensa: ”Feira de Santana deve ser um lugarão. Tudo que aqui não tem
vem de lá. Deve dar uns cinco Irará”.

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Parte II - Cenas do Cotidiano
De tardezinha Joaquim Estrela desce rua a entregar as cartas chegadas. A uns
avisa: ”Tem registrado. É preciso passar lá na agência pra assinar o recibo”.
Logo a marinete aponta lá pras bandas de Antoninho. Todo mundo – ao
menos os interessados e os curiosos – vai pro ponto vizinho à loja de Teófi-
lo. Chegado o coletivo, é receber e dar abraço, comprar jornal, mala a cair do
bagageiro alto, pacotes, sacolas, embrulhos e bugigangas outras cansadas da
longa viagem de meio dia. “O condutor disse que do Birimbau pra cá tá uma
buraqueira só”. – “E pra lá?” – “Bem, tão abrindo estrada nova e tem um desvio com
muita lama perto de São Sebastião”. A viagem pode ser longa e cansativa, mas,
toda manhã cedinho, por volta das seis horas, tem gente no ponto tomando
arroz-doce e pongando na marinete, que sai quase lotada – a lotação se completa
em Coração de Maria – para a Bahia.
Nas casas, por todo o dia, o trabalho é duro: há que ferver o leite, aquele
espumoso trazido à porta em camburão de alumínio, por jumento bem equi-
pado; coar o café em coador de cambraia, com o pó sacudido fora; varrer tudo
com vassoura de piaçava, exceto o quintal, que se varre com vassoura de pindo-
ba após ciscar as folhas secas; preparar as panelas e pô-las no fogo pra requen-
tar as sobras do Domingo, que não se vai perder assim; servir o almoço e lavar
os pratos, bem lavados graças às folhas de caiçara; arrumar a merenda pra tur-
ma miúda, nem que seja gemada com farinha de mandioca; passar a roupa seca
ao sol da manhã, com barrufada pra tirar os encolhidos e economizar as brasas
do ferro; acompanhar o aguadeiro na entrega da água nova com barris vindos
em lombo de jegue ou com latas enchidas no tanque da carroça, tudo abastecido
na mais que bendita Fonte da Nação; agüentar a algazarra da criançada a brincar,
sem faltar o “lhe boto de castigo”; dar e tomar banho, alguns com cuia retirando
água de lata cheia na cisterna; arranjar algo para a sopa da boca da noite – pode
ser que saia mingau de fubá de milho em vez de sopa.
Seis horas da tarde. A Voz da Liberdade, sob o eficiente comando de Jota Go-
mes, anuncia a ”Ave Maria”, hoje a clássica, de Gounod.
As tarefas de casa seguem a rotina: logo será hora de servir a sopa - ou
o seu substituto eventual - arrumar a cozinha para o dia seguinte, ao menos la-
var o que se sujou durante a sopa, fiscalizar a garotada que foi brincar na rua
e mantê-la perto de casa, esperar que os maridos liberem o rádio para a novela de
todo dia – “que hoje Isabel Cristina vai pro convento”.
Na espera, prosar com a vizinha, de porta pra janela: “Ouvi falar que de-
pois-de-amanhã vai ter leilão pra arranjar dinheiro pra Festa da Padroeira.”
– “Tão cedo assim!?” - “Também acho, mas o padre é muito prevenido”. Umas pen-
sam, apenas pensam: “Mais uma embromação, essa estória de leilão pra Festa”. Pen-
sam, não dizem, e participam, ao menos oferecendo umas galinhas da capoeira,
uns bolos de araruta, até uns frascos de doce de araçá e umas garrafas de licor de
jenipapo. Julgam que, com suas ofertas - mesmo na dúvida quanto ao bom uso
dos recursos - garantem lugar no céu, apesar dos pecados não redimidos.
Anoitecida a cidade, a conversa é outra.

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Janelas Abertas
O que Fazer Hoje à Noite?
Boca-da-Noite. A meninada agita-se a pensar no que fazer após a sopa.
No tempo dos lampiões a gás, com as ruas escuras, o jeito era brincar nas varandas
dos fundos das casas, sentados em esteira de pindoba ou, quanto muito, ir para
a arrelia da casa vizinha, isso “se mamãe deixasse”. Agora é diferente: aqueles altos
postes, aqueles longos fios de cobre e aquelas “lâmpadas de vidro com uma faísca
dentro” deram novo sangue à vida noturna.
Meninas agrupadas na beira das calçadas brincam de trocar a roupa das bo-
necas – essas irmãs perfeitas, crias de Joana - como se o fizessem em si mesmas.
Meninos, mais ariscos, ensaiam um filme de cowboy nas esquinas em lusco-fusco
– uns bancando Buck Jones, outros, Roy Rogers. O difícil é a escolha dos bandidos
e índios – ninguém quer ser vilão. A solução fica por conta dos pauzinhos e azar
de quem perder.
Vez ou outra, a depender da enturmação, meninas e meninos se ajuntam
para a Brincadeira de Roda: - “Oh dona Maria, oh Mariazinha, que entrou na roda
e ficará sozinha” – “Sozinha eu não fico nem hei de ficar, pois eu tenho Toínho para
ser meu par”. A escolha do parceiro já indica uma empatia para uma relação fu-
tura mais profunda.
Completada a Roda – todos já entraram, escolheram seus pares e saíram
– parte-se para o descanso da Advinhação no aconchego das beiras: - “O que é o
que é que tem orelha mas não escuta?” – “É pau podre”. – “O que é o que é que sai tarde
e chega cedo?” – “É o sol”.
Os mais agitados, ainda meninas e meninos, preferem o pula-pula do Passo-
Passo na borda da calçada: “Bote aqui o seu pezinho, bote aqui ao pé do meu, e depois
não vá dizer que você se arrependeu”.
Para as moças e rapazes, o destino certo é voltear na Praça do Coreto: elas
para a direita, eles para a esquerda. A cada encontro, um riso, um piscar de olhos,
um relâmpago a incendiar corações ainda ingênuos. Duas, três noites assim
e os pares já se decidiram. Logo os bancos darão guarida ao “conversa vai, não vem;
conversa vem, não vai”. O que se vê são mãos trocando suores. Beijo na bochecha “só
no domingo que vem”, isso se não chover e “se mamãe me deixar sair”. Aí é que o ne-
gócio engancha: as futriqueiras de plantão logo fazem as mães das bem-aventura-
das criaturinhas saberem do “conversa vai” na Praça do Coreto e essas, esquecendo-
se do seus tempos de volteio, começam a botar gosto ruim: “Aquele rapaz não serve
pra você, minha filha. Ele nem é bom na escola. Se seu pai souber, a coisa vai ficar feia”.
Caso a criaturinha esteja mesmo a fim, o jeito é arriscar um encontro na volta da
escola, “se não chover”. A tão esperada chuva sertaneja passa a encarnar a desculpa
esfarrapada de quem quer mas não tem lá muita coragem.
A rapaziada mais crescida e já meio casca grossa bate firme nos bares: um jogo

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Parte II - Cenas do Cotidiano
de sinuca ou bilhar regado a Jurupinga Gerim ou Conhaque de Alcatrão de São João
da Barra – os mais afoitos vão mesmo é de “Dois Leões” - ou um dominó agritalha-
do nas mesas das bodegas. Quem já está de namoro firme, daqueles de porta-de-
casa, já se ancorou: o agarra-agarra e o “me solte que aí vem gente” vão fazendo as
horas passarem. Na calçada, a bicicleta garante a saída rápida do amarrotado.
Dez horas da noite. Os decentes moços dos bares já partem para o Lasca-
Gato ou para a Mangabeira. No retorno, o jeito é molhar a güela no bar de Petu,
sempre de plantão.
E os mais velhos, o que fazem? Os homens, mal finda a ”Hora do Brasil”, par-
tem céleres para a reunião do Senadinho, na Praça do Comércio. Quem não é da
política, bate um carteado regado a genebra e tira-gosto de torreno. O carteado
é democrático, laico e conivente: jogam udenistas e pessedistas contra petebistas
e perrepistas; jogam o Procurador de Deus e o Delegado Comunista contra o Prepos-
to do Governo e o comerciante sonegador do Imposto de Consumo. Já as senhoras
- rádios liberados por seus fiéis maridos - escutam, ansiosas, mais um desfecho
da triste saga de Albertinho Limonta e Isabel Cristina, mais a conivência de Ma-
mãe Dolores: É “O Direito de Nascer” que faz a hora. Fofoca não, que isso “é coisa
de gente sem eira nem beira, futrica de quem não tem vergonha na cara”. Após a saga, al-
gumas quedam ao pé do rádio para se divertirem com as tretas do Primo Rico contra
o Primo Pobre ou com o bordão “Só abro a boca quando tenho certeza” do Fernandinho
e sua estimada esposa Ofélia – todos os quatro moradores do ”Edifício Balança mas não
Cai”. A Radio Nacional é, sem sombra de dúvida, um sucesso de audiência.
Finda a escuta viciada, restam às senhoras recolher a meninada, banhar
os pés e o rosto, rezar o terço e torcer por uma noite de bons sonhos, isso
se os galos da vizinhança deixarem e se não for noite de serenata. Os senhores,
fiéis maridos, encerradas as discussões no “parlamento”, retornam taciturnos mas
esperançosos, cigarro a pitar, para o aconchego de suas camas a esta hora já es-
quentadas. Na noite seguinte, tudo recomeça. Em algumas casas, no entanto, não
é de duvidar que o dia amanheça com barriga nova em franco progresso. Afinal,
a cidade precisa crescer e renovar-se.

48
Janelas Abertas
O Senadinho
Anoitecer. Invariavelmente, os homens dirigem-se às suas casas, para
a obrigação de ouvir “A Voz do Brasil” pelas ondas curtas dos rádios com olho
mágico. Afinal, o noticiário oficial é a principal fonte de informação sobre
os acontecimentos políticos do país e não poderia existir meio mais fidedigno
para a avaliação dos parlamentares eleitos pelos votos da imensa maioria de ta-
baréus do que as notícias da Agência Nacional. O eleitor sabe o que seus eleitos
dizem fazer, na medida em que esses divulgam o que querem que seus eleitores
saibam. Assim marcha o país e a política nacional, tal e qual em dias futuros.
Findo o noticiário, as pernas masculinas partem para a Praça do Comércio,
a dar início aos ”trabalhos legislativos” do dia – aliás, da noite. A partida tem dupla
importância: dar quorum ao Senadinho e liberar os rádios para que os ouvidos
femininos escutem a novela “O Direito de Nascer”, pondo, assim, os olhos a chorar
diante das desventuras de Mamãe Dolores e Albertinho Limonta.
O plenário instala-se na calçada entre o bar de Henrique e a loja de Éver-
ton. Os participantes, a média flor da política iraraense - já que a fina flor não se
presta ao mister de discutir; simplesmente manda – acomoda-se desde o ficar de
cócoras até o sentar-se em banquinho trazido de casa. Henrique, vez ou outra,
contribui com umas poucas cadeiras. Éverton serve longo banco sem encosto.
Bancadas? Predominam as da UDN e PSD, mas uns gatos pingados do PTB
ousam participar.
Discute-se, com admirável paz e cordialidade, as notícias do dia – aquelas
ouvidas no rádio -, os acontecimentos locais relevantes, as recentes nomeações,
as perspectivas eleitorais dos derrotados e mais uma ou outra fofoca da oposição
e dos governantes. Não há ataques pessoais. Amanhecendo o novo dia, todos
terão que conviver em harmonia, e isso elimina a formação de desafetos. Palavra
de honra, o Senadinho da Praça é um exemplo de boa vizinhança. Ter cidadania
e ser politicamente correto ainda não entraram em vigor.
Quem abre os debates? O primeiro a chegar, em conversa temporária com
Henrique, esse impassível à porta do seu bar. Como comerciante modelo que
é, aprova tudo com um simples baloiçar da cabeça – que a palavra é prata, mas
o silêncio é ouro. Seu desejo, na verdade, é que caia ao menos um chuvisco mais
forte: todos certamente entrarão no bar, ensejando a venda de umas cervejas,
dois ou três cálices de conhaque e algumas taças de vermute. Quem sabe, de tira-
gosto saia até uma lata de mortadela.
Obviamente, e como costuma acontecer nas casas legislativas, todo mundo
sabe o partido de cada um. Nisso reside a arma para evitar-se a discussão ofen-
siva. Os indecisos, geralmente do PTB, logo aderem à ala governista. Nada mais
justo, pois cego só não enxerga com os olhos.

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Parte II - Cenas do Cotidiano
Voz dissonante há e se chama Raul Cruz, comunista letrado, bem aceito por
todos. Afinal, quando não está delegado, está para ser. Raul Cruz funciona como
ponto de equilíbrio, melhor dizendo, mediador nas discussões mais acirradas.
A ser franco, conteúdo positivo nos debates somente há por força das suas interven-
ções. O resto é pessedista que critica udenista, que rebate sob os aplausos de petebista.
No Senadinho, o andar das discussões costuma, vez por outra, motivar troca
de legendas, sobretudo dos mais flexíveis e menos dependentes. A ocorrência
assusta os donos do poder. Na ótica desses, aquele “parlamento” tem por obri-
gação representar o pensamento dominante na cidade e qualquer desvio poderá
criar dúvidas na massa votante. Fala-se que tanto Elízio Santana quanto Amaro
Medeiros enviam espias de confiança para as seções, com o intuito de registrar
as tendências de aliados e adversários.
No centro da Praça, o Abrigo de Amando encarna a soberba do Palácio da
Alvorada e observa os debates com um sorriso de maledicência e menosprezo.
Como se pode constatar, política também se faz em porta de botequim.

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Janelas Abertas
O Sábado é para a Feira

Os preparativos começam cedo, ainda na sexta-feira.
Na cidade, os comerciantes aprontam as embalagens dos secos e molhados:
arroz, sal, café moído e em grãos, açúcar, tudo em pacotes de papel pardo com
peso de duas, uma e meia libra. Dendê e óleo de mamona em garrafas bem cheias
e devidamente limpas. Sabão, esse vai enrolado em papel de jornal, em peda-
ços de meia e de uma libra. Aprontam-se os cortes de charque, feitos enviesados
para ressaltar a largura da manta. Canela-em-lasca, pimenta-do-reino, cominho
e colorau vão em pequenos embrulhos de cinqüenta e cem gramas. Sexta-feira
deve entardecer com as prateleiras lotadas, os balcões arrumados. O estoque de
cachaça-com-folha estará no ponto e será preciso arranjar dinheiro miúdo para
o troco.
Na roça, a azáfama é outra, mas com a mesma correria: ensaca-se o feijão,
a farinha, o milho, todos em sacos de quatro quartas. As frutas e raízes, da
batata-doce e aipim ao inhame, da melancia e mamão à laranja, todos são aco-
modados nos caçuás, protegidos por folha-de-bananeira. Os legumes e verduras,
da berinjela e chuchu ao tomate, do pimentão e couve ao repolho, dos móios
de coentro aos de hortelã, tudo é bem arrumado nos cestos devidamente forrados,
onde não falta espaço para as raízes e folhas pra chá e reza. Beijus, farinha-de-
tapioca, amendoim torrado e doces ocupam latas de flandre, aquelas de querosene
Jacaré a tempo asseadas. Mel-de-abelha enche garrafas que se aprumam nos
cantos vazios dos caçuás. Porrões, potes, panelas e frigideiras vão de amarrado,
no equilíbrio das cangalhas. Burro é quem leva, pois jumento trota muito e pode
quebrar a carga. Nos amarrados também seguem cestas, peneiras, colheres-de-
pau, esteiras, cuias, fumo-de-corda, até bocapios e cabaças pra água.
Sábado. A cidade amanhece agitada. Açougues estocados desde cedo, com
a matança dada na madrugada. Às sete horas as vendas, quitandas, lojas, padarias,
bares e primos outros estão de portas escancaradas, donos a postos e caixeiros nos
balcões. Sempre há, em cada ponto, a expectativa de que a freguesia aumente.
Propaganda não há: o freguês certo vem na certa e sempre há aquele, duvidoso,
que poderá mudar de rumo. Se não choveu por ocasião do plantio, a safra poderá
não ser boa. Assim, cada negociante se prepara para abrir a caderneta do fiado,
pois o certo tem crédito garantido.
Na fazenda, no sítio, na roça de meia, os jumentos e burros são arreados ainda
à luz dos fifós. Cada cangalha com quatro sacos dos secos. No entremeio entre os
sacos de riba, o arrumado de cestos e latas até o limite do não cair e a um peso
que não estropie o bicho. Nos topes das cangalhas enfiam-se badogues. O resto,
ou o que têm os que não têm animal, vai na cabeça enrodilhada, com o equilíbrio
que o levar água da fonte pra casa já ensinou. Nos ombros, uma vara com nós

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Parte II - Cenas do Cotidiano
se verga ao peso das gaiolas com coleiros, canários, sofrês, cardeais, bem-te-vis,
assanhaços, azulões, pintassilgos.
A Feira não se limita ao comércio das mercadorias dos da cidade e dos da
roça. Caminhões apinhados despejam um mundo de gente que vem de Água
Fria, da Caroba, do Retiro, de Pedrão, de Ouriçangas, de Conceição, de Pataíba
e até de Coração de Maria, Feira de Santana, Alagoinhas e Serrinha: gente do
município e de fora, que vem comprar e vender. E trazem livrinho de violeiro,
malas com decoração em couro, brincos e argolas de metal, molduras com figu-
ras de santo, jaleques, chapéus-de-couro, selas, bridas, cilhas, cabrestos e demais
tipos de arreios.
Para completar o cenário, os artesãos da cidade abancam, no chão forrado
por esteiras, alpercatas, botas, sapatos com solado de pneu, cintos de couro cur-
tido, fifós, ralos, formas para bolo, bandejas, assadeiras, camisas de chita, calças
de mescla e de brim, bonecas de pano, tudo aquilo que o lufa-lufa da semana
produziu nas tendas e oficinas.
O local é a Praça do Comércio em toda a sua grandeza. O movimento começa
cedo com o entrar dos caminhões, que se enfileiram nas laterais da Rua Direita.
Os animais, esses deixam suas cargas na Praça e vão, pachorrentos, pros quintais
de guarda a duzentos réis o dia.
A Feira é bem dividida e organizada. No mercado, os secos a granel, os beijus
e similares e os balcões dos açougues. Na calçada do lado da Praça, as bancas de
verduras e de legumes, os sacos de amendoim torrado e cozido, o milho cozido
e assado, as frutas e as raízes. No largo, as bancas e barracas, começando com
as de doces e bolos, depois as de carne-do-sol e moquecas de piaba. A seguir,
as bancas dos artesãos, as pilhas de malas e apetrechos de montaria. Lá pras
sombras das palmeiras, os livrinhos de violeiro, as molduras com santo e outras
miudezas. Tudo muito arrumadinho, espaço sobrando pro freguês passar, já que
só se compra o que se vê.
Às oito, o mercado já despeja gente pelas calçadas. As donas-de-casa chegam
com suas sacolas de lona, a pechinchar a dúzia de beijus, a quarta de farinha,
o litro de feijão, o móio de coentro e de hortelã, a medida de tomate miúdo,
a dúzia de laranja e de lima, a mão de pimenta. As sacolas se enchem e as fregue-
sas se revezam. A cada banca que esvazia é um freguês que parte pr’uma venda,
quitanda, padaria ou loja, a fazer sua feira, essa pra roça. Nos açougues, a compra
é de patinho, chã-de-dentro e alcatra, que filé é coisa de cidade grande. Miúdos,
só no mercado de fato, lá na esquina do cinema com a Mangabeira.
Nas vendas, entre uma cachaça com alecrim e outra com cidreira, saem duas
libras de açúcar mascavo, duas de charque, meia libra de chumbo fino, um pacote
de foscro, cem gramas de colorau e cinco litros de gás. Nas lojas, o metro não
pára de medir cambraia, gorgorão, chita e algodãozinho alvejado. Até um ou dois
guarda-sóis são embalados pra viagem. Nas padarias, o que mais se pede é fari-

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Janelas Abertas
nha pra bolo, pão sovado e bolacha fofa. Até nas farmácias tem gente a comprar:
remédio pra verme, pra dor dos quartos e pra tosse convulsa. Tiro Seguro, Pomada
Minâncora e Xarope Bromil saem às dúzias.
Na praça abarrotada, a meninada vagueia entre os amendoins torrados
e cozidos, quebra-queixo, cocadas e doces de leite, tal e qual formiga ao redor
de mingau derramado. Os trocados recebidos dos padrinhos e tias voam dos
mealheiros de barro pros bolsos das saias de chitão. Quem está de casamento
marcado pechincha mala, candeeiro, fazenda pro enxoval, alpercata pro forró,
vaselina perfumada pra assentar o pixaim. Os cachorros, todos com faro apura-
do, preferem circular ao redor das bancas dos açougues, onde às vezes salta um
pedaço de sebo ou voa um caco de osso. Já os gatos, sempre mais disciplinados,
acomodam-se na madorna embaixo das bancas de moqueca de piaba, a gozar do
odor garantido. A turma do sereno esgota o sortimento de livrinhos de violeiro,
bom começo pr’uma noitada de boemia.
A mercadoria urbana vai pra roça e de lá vem e fica aquela do suor sob
um sol a pino. O dinheiro circula, uns ganham, outros se endividam na caderneta
do fiado, mas de tudo se vende e de tudo se compra.
Por volta das cinco a Feira se finda, até sábado que vem. É recolher as coisas:
caçuás, barracas, esteiras de chão, sobras de mercadoria. A marcha pros cami-
nhões e quintais de guarda é o que se dá.

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Parte II - Cenas do Cotidiano
Domingo é Dia...
A agitação do sábado contrasta com a tranqüilidade do domingo, que ama-
nhece sob o cantar dos galos e abre os olhos com o latir dos cães à procura,
ainda, dos restos da feira. Nas ruas, os varredores fingem que varrem as sobras
e esperam pela carroça de João de Bila para recolher os monturos. O povo, que
mal acordou, observa crítico e ensimesmado.
As padarias não dormem no ponto: desde as cinco e meia estão no batente.
O leiteiro circula como se o dia não fosse para o descanso - ao menos do jumen-
to. Por volta das oito, uma ou outra venda e quitanda abre meia porta, para cerrá-
la ao meio-dia. Já os bares e bodegas, esses são da domingueira: não somente
abrem como escancaram suas opções.
Nove horas. Os meninos tomam conta do terreiro: em todas as esquinas
a picula domina o anunciado sossego e a algazarra se faz rainha. Um grupo
de moços e moças, sacolas à mão, marcham rua acima em busca do Caminho de
Quaresma, acesso livre e público à água escorregadia das Lages. Vão fazer pique-
nique – é o que dizem. De repente, um sobressalto, um susto: Lucinda aparece,
picada e aos brados. A meninada recua ao passar da doida.
Às dez, Jota Gomes sobe a Praça, para fazer esperanças renascerem no espelho
de “A Voz da Liberdade”: Entra no ar o Matinal Boêmio, com o melhor de Orlando
Silva, Ângela Maria, Nelson Gonçalves, Cláudia Barroso, Ataulfo Alves, Ellen de
Lima, Augusto Calheiros, Inezita Barroso, Carlos Galhardo, Nora Nei, Anísio
Silva e tantas outras vozes da “dor de cotovelo”.
Almoço de domingo é banquete: cozido com o melhor da feira, feijão verde
- às vezes andu ou mangalô - pirão de farinha-de-mandioca escaldada na água
da couve e do repolho, ensopado e malassado, salada de alface com respingos
de coentro, vez por outra carneiro ou leitão. Na sobremesa reina a ambrosia,
sem desmerecer eventual doce-de-banana com calda, cravo e canela. O ritual
inclui um abre-apetite de conhaque, genebra ou jurubeba – as damas vão de licor
de jenipapo, aquele fabricado por Tiano.
Após o fausto, a madorna. A rede é o arrimo das crianças. Os mais velhos
– machos – vão curtir a pança cheia no aconchego de suas camas, aquelas com
colchão do macio capim miúdo. Já as damas, essas aproveitam o recesso – isso
depois do lavar, enxugar e arrumar pratos – para uma olhadela nos reclames
da “Vida Doméstica” ou para rir com as armações de “O Amigo da Onça” nas páginas
de ”O Cruzeiro”, enquanto não chega a hora do café, por volta das três.
Cinema. Olavo capricha nos filmes: A Volta do Renegado, Sete Homens e Um
Destino, Jerônimo, Tarzan Rei dos Macacos, Sansão e Dalila, vez por outra uma pe-
lícula com as Rainhas do Rádio – Emilinha Borba e Dalva de Oliveira - ou com
Oscarito e Grande Otelo. O melhor do musical nacional, do drama e da aventura, o

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Janelas Abertas
que existe no mercado para cinema de tela pequena e projeção plana. Na matinê
das quatro os miúdos lotam a sala. Já a seção noturna é um arrocho de gente. Se a
fita quebra, a platéia vaia. Lito se vira para repor a cena cortada. Em casa, a audi-
ência é toda para o FLA x FLU : aí não tem rádio que não berre das quatro às seis.
Se não for dia de clássico carioca, vai ter jogo no campo do Caminho da Caroba: es-
crete de Irará versus escrete de Alagoinhas ou de Santo Amaro. Os maiores torcem
e os miúdos se bastam no quebra-queixo e no amendoim torrado.
Anoitece. Café tomado com leite e cuscuz, a vez é dos programas de auditó-
rio da Mayrink Veiga – Zé Trindade e seu “o que é a natureza...”, da PRA-4 - Radio
Sociedade da Bahia e até da Rádio Cultura de Feira de Santana, com o cancioneiro
Ray Miranda. Alguns preferem a Rádio Nacional com “Tancredo e Trancado”,
humorismo exclusividade das Pílulas de Vida do Dr. Ross, aquelas que são “peque-
ninas, mas resolvem”. Se for dia de baile na ACRI, a Rua Direita engalana-se para
ver os pares circularem. A banda de Zequinha é quem ordena o ritmo: foxtrote,
samba canção, bolero, rumba. Poucos são os que dali saem sozinhos se sozinhos
entraram: Nada melhor para um começo de namoro do que o aconchego de um
salão de dança.
Nas noites sem baile, os bares fazem a festa: não tem sinuca de bico que
uma “Dois Leões” não resolva; não há bilhar com bola de canto que a Jurupin-
ga não mate. No bar do Coronel, Dante afina o violão pra instigar Zé Vermelho:
É a serenata que chega à mesa da boemia, sai às ruas e fica nos corações, subindo
a Rua Direita, volteando pela Rua Nova e embicando pela Rua de Baixo. Contam-se
às dezenas os cheiros que se enxergam por trás das gelosias. As janelas mais bre-
jeiras se abrem – pais no sobressalto e moças no enlevo. Todas as Marias, Anas,
Raquéis, Suzanas, Franciscas e Jacintas são transformadas em “Laura, uma rosa nos
cabelos. Laura, um sorriso sempre em flor”. Considere-se que algumas escolhem
ser “Kalu”. Aí, cabe ao Poeta relembrar: “Kalu, tira o verde desse zóio de riba d’eu”.
Se silêncio houvesse, haver-se-ia não somente de enxergar os cheiros mas também
de aspirar o bater dos corações por trás das gelosias.
O Poeta e o Maestro encerram o espetáculo nas mesas de Zé Petu, sob as pal-
mas dos Agnaldos Maia de plantão.
O domingo, contudo, não é somente pagão: tem também seu profundo
momento de credo. Não há como esquecer as obrigações: a missa das oito na
igreja matriz e a pregação das três no templo batista da Rua Direita. Se Pe.Valtério
não dispensa um “Agnus Dei qui tollis peccata mundi, miserere nobis”, Miguel Paes
Coelho não lhe fica a dever com Davi, Salmo 32: “Feliz o homem a quem o Senhor
não inculpa de delito e em cujo espírito não há falsidade”. Os pecadores são perdoa-
dos pelo corpo e sangue do Filho e os que são puros e honestos são reverenciados
pelo Senhor. Credos há, mas é preciso crer e, sobretudo, saber separar o joio do
trigo.
O domingo, que acordou com o cantar dos galos e o ladrar dos cães, que

55
Parte II - Cenas do Cotidiano
censurou a falta de zelo dos prepostos públicos, que lamentou o cansaço con-
tinuado do jumento, que suportou a arrelia das crianças a brincar, que fingiu
fazer piquenique, que se assustou com o bradar da doida, que sonhou ao ver-se
no espelho de “A Voz da Liberdade”, que se fartou no banquete do meio-dia, que
madornou após saciar-se, que riu das pilhérias de Péricles, que vaiou a quebra
da fita, que torceu por seu time predileto, que consumiu quebra-queixo a mais
não poder, que se animou com as piadas de Zé Trindade, que verteu lágrimas
ao ouvir Ray Miranda, que gargalhou com “Tancredo e Trancado”, que dançou ao
bom ritmo de Zequinha, que namorou ao sair do baile da ACRI, que se deu muito
bem no sinuca e no bilhar, que viu, ouviu e sentiu todas as Lauras da cidade, que
foi à matriz e ao templo e até duvidou dos credos, agora adormece embalado pelo
acorde seguro do violão magistral de Dante de Guga e pela voz de ouro do poeta Zé
Vermelho, o filho de Graziela.

Fatos e Eventos

58
Janelas Abertas
O Ciclo das Festas
Dezembro começa com a expectativa dos festejos natalinos. O costume de
montar lapinhas pegou para valer: são dezenas de casas que se esmeram para
apresentar o melhor. Os preparativos se iniciam ainda em novembro, com
o consertar os guardados, o catar pedras e búzios, o recolher musgos e folhas, o
peneirar da areia, o cortar papel-de-seda e crepom. Haja discussão para se definir
a montagem mais apropriada. Garantido mesmo é a gruta e o berço de palha.
O curioso reside no conflito entre o que se faz e o que reza a tradição. Esta
registra que Maria deu à luz o Filho de Deus em um estábulo dos arredores de
Belém e que o primeiro leito do Menino Jesus foi uma manjedoura. As lapinhas
recriam a manjedoura no berço de palha, mas desafiam a tradição ao situá-lo nas
portas de uma gruta. Quem sabe não seja este desafio uma forma de voltar aos
primórdios da humanidade – ao Homem das Cavernas!?
As lapinhas diferenciam-se na forma e nas dimensões, mas o básico
é semelhante: Maria, José, o bebê Deus Menino, o berço, o jumento, o boi,
pedras, areia, folhas – tudo bem representativo da ingênua noção de humildade
que se pretende agregar à figura da Sagrada Família. Búzios, figuras em cerâ-
mica, água, são variações outras por conta da imaginação das autoras. Autoras
sim, que lapinha é criação de mulher – ela que repete em cada parto o parto
divino de Maria.
Estabelece a crendice popular que montar lapinha uma vez exige repeti-la por
sete vezes - uma a cada Natal – sob pena de desgraça garantida. Cabe questionar: por
que haveria o Senhor do Universo de punir a quem resolve figurar o nascimento
de Seu Filho, o Cristo!? Não basta o registro na mente do fiel!? Ou será porque
a sobrevivência da tradição exige uma contínua visualização material!? Pergun-
tas para o Senhor Deus responder. Reza a tradição que a primeira lapinha foi
montada por Francisco de Assis, com o objetivo de fixar na memória do povo
o nascimento de Jesus da forma mais realista possível.
Natal é tempo de licor no recesso dos lares e bares, tempo de festa na Praça,
com bancas e barracas por noites seguidas do dezembro que corre célere.
Jogos há, pois festa na Praça sem o azar da sorte não passa de mero aglomerado
de vendedores e compradores.
Nas mentes infantis o assunto é a visita do Papai Noel, que virá do céu
e entrará em cada casa pelas gretas das telhas, trazendo às costas um volumoso saco
de presentes. Os pedidos dos pequeninos são os mais singelos: uma bola de borra-
cha, uma boneca – daquelas que Joana dá à luz – um pião colorido, um carrinho
de madeira, um ioiô. Desejos externados por vezes a fio, na cumplicidade das mães.
Papai Noel virá? Satisfará o singelo anseio infantil? De quais infantis pedintes?
No virar da noite santa o ápice é a Missa do Galo na Igreja Matriz. Sua origem

59
Parte III - Fatos e Eventos
vem de lenda que afirma ter sido um galo de grandes esporões o primeiro ser
vivo a anunciar o nascimento do Filho de Deus, cabendo-lhe, assim, a tarefa
de, com seu canto pontual da meia noite, levar ao mundo a Boa Nova. Ao som
de ”Os Sinos de Belém” todos ouvem, conscritos, o “Dominus vobiscum – Et cum
spiritu tuo”. E todos ficam convictos de que o Deus Menino se faz presente.
Como se sentirão, ao amanhecer do 25 de Dezembro, as crianças cujos
chinelos não contiverem presentes? Terá Papai Noel delas se esquecido ou suas
súplicas não mereceram crédito? Ao menos estarão em suas pobres casas e sob
a proteção de seus pobres pais? Onde estarão, nas noites de Natal, os famintos
da África, os párias de Calcutá, os abandonados do esquecido Nordeste Brasileiro,
os mutilados de Hiroshima? Uns, dormindo sob marquises frias e fétidas, outros
em reformatórios quase prisões e mais outros fuçando lixeiras – tal e qual porcos
à procura de restos. Muitos dirão como aquele pobre de Paris: “Mamãe, traz
mais daquele lixo que sobrou da feira; ele estava tão bom na sopa de ontem à noite...”
Na verdade, todas essas dezenas de milhões de crianças estarão – no Natal como
em qualquer outro dia – perambulando pelas ruas, inchadas de verminoses,
cobertas de feridas purulentas, envoltas em trapos sujos. Não verão lapinhas,
não farão pedidos a Papai Noel, não ouvirão o galo cantar à meia noite nem hão
de escutar “Os Sinos de Belém” a anunciar ”Dominus vobiscum”. Para elas - iraraen-
ses, africanas, nordestinas, indianas ou vítimas da hecatombe – somente há uma
solução: a profunda mudança de métodos e políticas que reformule mentalida-
des, quebre estruturas falidas e renove a confiança no Ser Humano. Enquanto
assim não se der, Papai Noel, seja em Irará ou em Nairobi, estará com frio, com
sede, com febre, com medo e com fome...
Passados os festejos natalinos, tudo se volta para o Ano Novo. Na Praça,
a festa continua diuturnamente. A virada do ano se caracteriza pelo desejar boa
sorte, pelo apaziguar ânimos acirrados, pelo anseio de alcançar-se no novo ano
o que o velho não propiciou. O foco da comemoração volta a ser a Matriz em
sua rigidez de capa-e-espada. É como se o ciclo da vida se limitasse ao credo,
à crença e à cruz: Obrigação, Esperança e Sofrimento – esse mascarado pela Re-
signação.
Conta a lenda que as comemorações do Ano Novo tiveram início na
Babilônia, duravam uma semana e eram precedidas pela limpeza, purificação
e restauração dos templos. O ritual consistia em o rei despojar-se de suas reais
e pomposas vestes, ajoelhar-se diante de uma imagem do deus Marduk e dizer-lhe
que havia governado de forma correta e justa durante o ano que se findava e que
seus súditos o amavam por sua benevolência. O sumo sacerdote respondia que
Marduk aceitava como verdadeiras as afirmativas do rei e que o apoiaria por mais
um ano. Nada diferente do que ocorre em nossos tempos e templos: os gover-
nantes, súplices, afirmam sua abnegação hipócrita, prometem o melhor de si
– embora somente o façam para si – e se sentem perdoados e apoiados. O povo,

60
Janelas Abertas
este, como sempre, acredita, aplaude e comemora. Esquece-se, ainda que seja
por algumas horas, as amarguras e opressões sofridas e aposta-se num Ano Novo
benfazejo e igualitário, como se a realidade não fosse mais que um sonho.
“Feliz Ano Novo” jamais foi o forte de nossa cidade. Gostamos, mesmo,
é do Dia de Reis: aí, sim, tem folguedo, Chegança, Só Chumbo, João Chagas e Germino
Curador. A data, criada pela mitologia cristã, visa a homenagear os Três Reis
Magos – Melchior, Gaspar e Baltazar – que, anunciado o nascimento de Jesus
Menino, seguiram a Estrela de Belém, esta os conduzindo até o estábulo onde
Maria Virgem deu à luz o Filho de Deus. Lá depositaram aos pés do Santo Bebê suas
oferendas reais: ouro, incenso e mirra.
A Festa dos Santos Reis é, para nós, uma antecipação do Carnaval: os blocos
saem às ruas, o agogô se faz presente, a mistura de raças e crenças se sobrepõe
ao credo pretensamente oficial. Cada casa abre suas portas e serve às suas me-
sas os brincantes que chegam. A alegria contagia a todos, as dores – agora sim –
do ano velho são esquecidas e aposta-se no vigor e boa sorte do novo ano que
mal nasceu. É a esperança que renova em cada coração a ilusão de que se vive
nesse vale de lágrimas por obra e graça d’Aquele que nasceu para remir nossos
pecados e curar nossas feridas. Espera-se que Deus Pai ajude, no novo ano,
a quem trabalha, e que não desampare os que vivem ao léu. Os festejos sacros
são legitimados pelos folguedos profaos – quase pagãos: virtude de um
povo que sabe da tristeza tirar alegria, da dificuldade criar esperança, do nada
fazer renascer um tudo.

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Parte III - Fatos e Eventos
Festa da Padroeira – O Povo e o Credo
O Brasil é sui generis até em seu pretenso Estado laico: toda cidade brasilei-
ra tem um padroeiro ou padroeira cujo dia não somente é considerado santo
como se torna feriado. A diversidade de cultos e credos praticados pela população
é posta de lado, predominando a imposição da sacrossanta Igreja Católica
Apostólica Romana.
Irará tem em Nossa Senhora da Purificação sua protetora e o Dois de Fevereiro
é o ápice do seu Ramadã. A Festa da Padroeira incorpora um misto de comemo-
ração religiosa e atividades pagãs - essas indo do jogo em praça pública ao carna-
val escancarado.
Meados dos anos 50. O Município, dotado de sede e cinco distritos, além dos
povoados, prepara-se com efusão e entusiasmo para mais um Dois de Fevereiro.
A Cidade, já dispondo de energia elétrica, enfeita-se desde a Rua de Baixo até
a Torre da Matriz. O início das comemorações se dá com a seqüência de nove-
nas ao anoitecer. Senhoras e senhores, circunspectos, aquelas portando bordados
véus que as recatam, estes no calor de seus paletós engomados, garotas e garotos,
moças e rapazes, comparecem em peso ao templo. A juventude masculina amon-
toa-se nos altos passeios da igreja, em busca de uma chance para o namoro casual.
O foguetório marca o começo e o fim da metódica e repetitiva cerimônia.
Finda a noitada de rezas, desce-se à praça para a noitada de festa. Lá, os espí-
ritos purificados no templo serão remidos nas bancas de cisplandim, nos cercados
de jogo de argolas, nas mesas de licor, nos tabuleiros de quebra-queixo e no flerte
desbragado das rodas. Mais tarde, nos bares já lotados, a jurupinga rolará solta,
bordada pela “dois leões”, no entusiasmo das mesas de sinuca e bilhar. A rapaziada
esquecerá o namoro nos passeios da matriz e nas rodas da praça e pensará numa
madrugada pelo Lasca-Gato ou Mangabeira.
Na sexta-feira que antecede o ápice das festividades, dá-se a Lavagem da Igreja.
As baianas iraraenses, no rigor de seus trajes folclóricos, põem-se a faxinar
os passeios da matriz tal qual fazem as do Senhor do Bonfim, na velha capital
da Bahia. Deixasse o padre e lavariam todo o templo. Terminada a tarefa, o samba
toma conta de todos e a Cidade se faz em festa. Credos e crenças à parte - queiram ou
não os Senhores da Fé, a cultura negra se faz presente a lavar a alma do sofrido povo.
No sábado à noite, o leilão. Tem de tudo: peru vivo e assado, corte de seda
e de chita, garrafas de conhaque e de jurubeba, latas de goiabada, queijo, vez por
outra – melhor, ano ou outro - até boi e cavalo. Piroca Brejão é o campeão de oferen-
das. A doação exorcisma os pecados anuais, carnais ou materiais. O leiloeiro pede
os lances, lembrando que tudo será “para a Festa da Padroeira”. Uns arrematam para
gozar; outros para oferecer a novo lance. A festa pagã visa a financiar o credo.
O calendário, ajustado para o ápice acontecer no domingo, mesmo que esse

62
Janelas Abertas
não caia no dia dois, espera pela procissão. Já no sábado, a feira é dobrada: mui-
tos que não costumam vir, vêm; a maioria dos que vêm não voltam, ficam, pois
a Padroeira bem merece o sacrifício. Além disso é preciso confessar-se para a
comunhão festiva do domingo.
A romaria não se iguala às de Padim Ciço, não por falta de romeiro, mas por
falta de um padim. Mesmo assim, a Cidade, quente, encharca-se de gente: chegam
paus-de-arara oriundos de Conceição, do Pedrão, de Ouriçangas, de Água Fria,
de Quaresma e até de Pataíba, Retiro, Coração de Maria e Berimbau. Dizem que já
houve ano em que veio romeiro até de Santa Bárbara, Serrinha e Lustosa. Em ano que
chove mais, há menos necessidade de reza. Melhor guardá-la para as secas futuras.
As ruas de entrada dos paus-de-arara já conhecem o coro monocórdio: “Avé,
Avé, Avé Maria ... Avé, Avé, Avé Maria...” (assim mesmo, com acento agudo no e).
O povo ingênuo, crédulo e faminto põe sua fé na cara enrugada pelo sofrimento
e enfrenta a cidade engalanada. Enquanto a Praça do Comércio se transforma num
enorme estacionamento de caminhões, a Praça da Matriz transborda de fiéis, com
o sobrançeiro templo assemelhando-se à Caaba de Meca.
A missa dominical é uma apoteose. Vigários das paróquias vizinhas com-
parecem para ajudar na condução da solenidade. Batalharam duro desde cedo,
a ouvir em confissão o povaréu pecador. Igreja apinhada, calor escaldante, suor
em bicas, sino blimblomblando e Padre Valtério dá início ao sermão: “Meus caríssi-
mos irmãos em Nosso Senhor Jesus Cristo...”. Nesse momento solene, mesmo aqueles
que não são lá muito da estima do padre se sentem caríssimos e irmãos. Terminada
a pregação, a missa continua em bom e clássico latim, até o momento especial
da comunhão. Aí, a disputa se dá por lugar na fila da hóstia: afinal, houve
confissão por horas a fio, os joelhos calejaram na penitência e não se vai sair sem
o Corpo e o Sangue de Cristo.
Um detalhe: dentre os artesãos da cidade, os que mais lucram com
as festividades da Padroeira são os alfaiates e costureiras. O hábito e a virtude
recomendam que todos usem roupa nova na missa solene. Já sapatos, sempre
menos expostos, basta que estejam engraxados e polidos.
Após a missa, o almoço de confraternização: os assados predominam, junto
com abundantes saladas, bastante arroz e até macarrão. Isso na casa dos que hão
de carregar o andor – os gente fina. Abre-se o apetite à base de conhaque e fecha-se
o estômago com um licorzinho, após o doce-de-leite. Os que não têm chance
de sair da poeira castigam na desdobrada antes, durante e depois da carne-do-sertão
com farinha grossa e toucinho. Há que preparar o espírito para a rasteira da elite.
À tarde, a procissão é um divisor de águas – melhor dito, um divisor de clas-
ses: políticos, comerciantes e fazendeiros disputam o andor da Padroeira num
troca-troca a cada cinco passos; beatas e senhoras ditas de família – entenda-
se como as de posses – vêm no segundo plano, como é próprio das mulheres;
a ralé acoberta a poeira. À frente do andor, o vigário e seus acólitos, paramentos

63
Parte III - Fatos e Eventos
de dia festivo, puxam o aglomerado. As “Avé, Avé, Avé Maria...” secam as gargantas,
mas o coro persiste. A ladainha inicia e se repete: “Abençoai Senhora, o povo irara-
ense, esta freguesia é Vossa, tudo nela Vos pertence”. Nesse ato de doar-se por intei-
ro à Padroeira, ninguém se lembra de retirar da doação os maus pensamentos,
os pecadões e pecadilhos, as segundas intenções, as maledicências, o uso indevido
do dinheiro público. Tudo vai, de roldão, para a Senhora Mãe dos Homens.
A procissão marcha pela cidade como se fosse um batalhão de elite: passo
marcado, verso bem posto, hino no ritmo, sem atropelos e agitação. Não falta,
no público das calçadas, quem se ajoelhe ao passar da Padroeira. Não se sabe se
ajoelham por fé ou por remorso. Tumulto mesmo somente ao entrar de volta na ma-
triz: a disputa pelo andor, nos momentos finais, é feroz. Vencem os mais importantes.
A noite é para dormir, que pecador não é de ferro. Além do mais, há que
se acordar cedo, já que haverá a procissão da segunda-feira, rumo ao Cruzeiro da
Queimada. A Rua de Baixo será invadida pelos “Avé, Avé, Avé...”, terá missa ao pé
do Cruzeiro, o namoro então será deslavado, no meio da multidão a cachaça rolará
solta e o retorno há de ser pagão, carnavalesco, ao som tromboniano de “Arriba
a saia peixão, todo mundo arribou, você não...”.
Antes que chegue o novo Dois de Fevereiro, vai aqui uma pergunta que não
quer calar na mente: o que fazem, durante esses festejos, os iraraenses dos outros
credos? O que fazem, minha Nossa Senhora da Purificação, Mãe de Deus e de
todos os homens?!

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Janelas Abertas
Rei Momo: Alegria para Todos
Carnaval. Irará se veste de pierrô e colombina para a vassalagem ao rei
da alegria. Preparam-se fantasias e adereços e formam-se os grupos para o baile.
Afinam-se os pandeiros e ajustam-se os agogôs que darão ritmo aos blocos
populares. A cidade se divide entre o salão da ACRI e as pedras que calçam
as ruas. A cerca social marca a algazarra carnavalesca. No clube, a elite folgazã
- mesas ocupadas - observa o circular ansioso da mocidade fina flor, à espera
dos primeiros acordes da orquestra de metais. Passeio lotado, a plebe contempla
a alegria dos poderosos que se escancara pelas janelas. Na irregularidade das ruas,
o folião popular saracoteia ao chamado dos blocos de Germino Curador, João
Chagas e Só Chumbo.
Confete, serpentina e lança-perfume a postos, o clube se agita ao som de
”arriba a saia peixão...”, marca registrada do carnaval iraraense. A partir daí,
a seleção musical se limita às marchas dos carnavais passados da Capital Federal,
mas quem se importa? Há que pular, cheirar Rodouro e cantar:
“Domingo é dia de pescaria, oi
Lá vou eu de caniço e samburá.
Maré tá cheia, fico na areia,
Porque na areia dá mais peixe que no mar.”
“Mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar.
Traz a chupeta, traz a chupeta pro bebé não chorar.”
“Oh jardineira por que estás tão triste?
Mas o que foi que te aconteceu?
Foi a camélia que caiu do galho,
Deu dois suspiros e depois morreu.”
Na poeira, o povo sambista e brincalhão encontra na batida do agogô
o melhor da escala musical: a melodia ritmada que faz a hora e a vez da alegria
popular, aquela regada a boa desdobrada e bastante suor. Passeios cheios, a popu-
lação aplaude, afina e desafina um passo ousado e segue a folia que se agiganta
a cada esquina. O cheiro de povo toma conta da ventania que sopra, injetando
ânimo para os que somente dispõem das ruas.
As origens da “brava gente brasileira” bem se refletem nas folias carnavalescas:
brancos e assemelhados brincam no clube, ao som perfeito do trombone
de Zequinha; negros gingam ao breque do pandeiro na voluptuosidade própria
da raça, atentos ao passo de Só Chumbo; caboclos – reais e intencionais – marcham
batido diante do incitamento de Germino e sua “tribo”, no passo firme e portento-
so de quem foi o primeiro dono desta terra abençoada. Quem tem mais público?
Não importa. Afinal, alegria não tem preço nem raça nem cor e Rei Momo é o
senhor absoluto dos dias de Carnaval.

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Parte III - Fatos e Eventos
Tem Circo e Parque na Cidade
Correu a notícia: de uma só vez, chegou Circo – já armado nas cercanias
do cemitério – e Parque, em instalação acelerada na Praça do Comércio. Dizem
que o circo é dos bons, com bailarinas, teatro de comédias e dramas, trapezis-
tas, dois palhaços, mágico e até um malabarista. Já sobre o parque, o que se sabe
é que veio de Serrinha e possui um serviço de alto-falantes com programa
de oferta musical.
A meninada está na espia, para acompanhar a saída dos palhaços. Pelo que
comentam, não vai dar para emburacar por debaixo da lona, pois o circo tem
vigias de olho. O jeito é arranjar uns tostões para o bilhete.
No parque, já armaram o carrossel, a sombrinha de cadeiras e os barcos voa-
dores. Falta montar a roda gigante e o escorregador. Tudo deve ficar pronto até
quarta-feira. Confusão vai ser no sábado, quando o pessoal que negocia malas
vir o seu lugar costumeiro ocupado pelo parque. Também, não é sempre
que tem parque na cidade e aquele canto das palmeiras não faz tanta falta assim
aos feirantes.
Barulho na Rua Direita. A meninada corre. Lá vem o palhaço, em pernas-
de-pau com dois metros de altura. Começa a arrelia: “Hoje tem espetáculo?” - “Tem,
sim senhor.” - “Hoje tem marmelada?” - “Tem sim, senhor.” - “Arrocha, negrada...” –
“Eh eh eh eh eh...”. E o palhaço anuncia as novidades da noite: mágico que trans-
forma lenço em pombo e que derrama água pelo cocuruto; trapezista que
dá dois saltos mortais a cinco metros do chão, sem rede de proteção, que trape-
zista que se preza não tem medo de queda; artistas a apresentar a peça “A Morte
do Conde Drácula”; bailarina de maiô a pular do trapézio para o colo da platéia
e mais “mil e uma atrações”.
A arrelia continua: “O palhaço o que é?” – “É ladrão de mulher” – “Arrocha ,
negrada...” – “Eh, eh, eh, eh, eh...”.
A meninada já quebra os mealheiros de barro para comprar o bilhete.
Na tabela, o preço: “Adulto – Cr$ 3,00; Criança – Cr$ 1,50; Criança de colo
não paga. Quem for acompanhado somente compra bilhete e meio”. Vantagem
pros namorados: sobra dinheiro pra pipoca, quebra-queixo e abafa-banca.
Na Praça, o parque avança: montaram barraca para a venda de doces e até
“Laranja Turva” natural. Noutra barraca, um mascarado expõe livrinhos
de violeiro, todos com desenhos pretos e capas amarelas. O mascarado parece-se
com o Zorro, mas falta o bigode e o chicote. O serviço de alto-falantes já está
no ar: anunciam o programa “Ofereça uma música a quem você ama”. Logo,
logo, surgem os Alô, Alô: “Alô, alô morena de olhos azuis e vestido com flores
que mora na Rua da Quixabeira, escute essa gravação que lhe oferece rapaz
mulato da Rua Manoel Julião – ‘Se você não me queria’...”. Essa é pra acabar

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Janelas Abertas
namoro, logo se vê. Mais adiante, o rapaz mulato oferece “Beijinho doce”
para “moça alourada, de saia com bolinhas, que mora na Rua Nova”. Já está de
amor novo.
No parque, os bilhetes são mais em conta e de preço único: quinhentos reis
para usar qualquer aparelho por quinze minutos. Aí, termina-se gastando mais,
já que se usa mais de um aparelho. A roda gigante e a sombrinha de cadeiras
possuem motor a gasolina que faz um barulho dos diabos e solta fumaça que
nem caminhão. Mas, quem se importa? O circo tem motor somente para
a iluminação interna. Fora, nos carrinhos de pipoca e amendoim torrado,
quem clareia é o lampião a carbureto.
No circo, às oito horas em ponto, o espetáculo começa. Arquibancadas
cheias e geral sobrando gente pelas beiradas, a gritaria é grande. O baleiro
circula: “Olha o bombom de mel. Tem de hortelã. Olha o pirulito”. Na disputa
por lugar, alguém tropeça e cai. A vaia é geral: ”Tá bebo...”. Os palhaços abrem
o espetáculo com uma briga fingida de tapas um no outro e com piadas des-
bocadas. A chusma aplaude e o tempo avança. O mágico já fabricou, com
lenços fornecidos pela platéia, dois pombos, que voam para o topo do mastro,
numa clara demonstração de que são reais. A bailarina já caiu sentada em três
colos, sendo dois da arquibancada e um da geral. Todos gostaram, embora
um deles levasse um tabefe da namorada. O malabarista já soltou fogo pelas
ventas e arremessou bolas por baixo das pernas, aparando-as com as costas.
O palhaço principal voltou ao picadeiro, calçando sapatos invertidos e tro-
peçando em si mesmo. A chusma aplaudiu. Logo o espetáculo chega ao seu
ponto culminante: o drama “A morte do Conde Drácula”. A platéia, silenciosa
e tensa, observa o desenrolar: Drácula, que já mordeu uns quatro pesco-
ços, prepara-se para atacar a mocinha. Ela chora de pavor. O conde a agarra
e quando já ia sugar-lhe a carótida, aparece o mocinho munido de um enorme
crucifixo e obriga o vampiro a se afastar. O monstro, protegendo o rosto com
os braços, entoca-se em seu caixão. Antes que possa fechá-lo, o mocinho per-
fura-lhe o coração com um espeto na forma de cruz. Drácula solta um grito
pavoroso e morre, libertando morcegos pelos ouvidos. A platéia urra, aplaude
e se levanta. Fecha-se o pano do palco. São dez horas da noite.
Dentre os que foram ao circo, alguns se apressam para estar no parque.
Chegam a tempo de ouvir o último Alô, Alô da noite: ”Alô, alô, moça do Cajueiro
que usa blusa estampada, ouça essa gravação que lhe oferece rapaz da Rua de Baixo,
com camisa xadrez: ‘Quero beijar-te ainda’, na voz maviosa de Orlando Silva “.
Certamente nessa noite e em todas as seguintes, enquanto houver circo
e parque, os sonhos serão bem diferentes sob as cobertas que agasalham
do frio de agosto. A meninada sonhará com as brincadeiras dos palhaços
e com as artimanhas do malabarista; os rapazes, com a brejeirice da bailarina;
os enamorados, com lindas canções a oferecer e receber. Já os senhores

67
Parte III - Fatos e Eventos
e senhoras terão pesadelos ao pensar no custo dos bilhetes.
Passados dez dias, o parque se vai, rumo a Candeias. Fica o circo por mais
uma semana, agora sem concorrência.
Mais tempo, mais público, mais envolvimento: quando a troupe parte
antes do sol nascer, o palhaço leva companhia e um lar de roça fica com uma
moça a menos. Bem que se diz que “palhaço é ladrão de mulher”.

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Janelas Abertas
Na Igreja, da Quarta-Feira de Cinzas ao Mês de Maria
A Igreja Católica estabelece o início da Quaresma na Quarta-Feira de Cinzas.
O povo brasileiro, ainda com os sons do carnaval nos ouvidos, deixa-se amorte-
cer pela penitência que chega, estabelece rigores e dita costumes. Nos anos 50/60,
o amortecimento pela penitência era prática habitual – quase obrigação – nesse
Brasil de Tupã e de Oxalá que se via curvado ao Brasil de Thomás de Aquino,
de Francisco de Assis, de Domingos de Gusmão e de Ignácio de Loyola. Dentro desse
contexto, o Irará de Nossa Senhora da Purificação não tinha como fugir à regra:
cobria-se de cinzas, remoía seus pecados, arrependia-se do que fez – e do que não
fez - confessava e comungava para que a glória eterna lhe fosse assegurada.
Determina a liturgia do Vaticano que a Quaresma é tempo de conversão, tempo
para que o arrependimento tome conta dos corpos e mentes, a fim de que
os espíritos, uma vez purificados pelo sacrifício, sejam merecedores dos bons
augúrios da Páscoa que virá. A Quaresma tem seu término no Domingo de Ramos,
aquele que, segundo a tradição, marca a entrada triunfal de Cristo em Jerusalém.
Em nossa cidade, o jejum era levado a sério e o comércio se preparava com
esmero: nas vendas e quitandas predominavam o bagre, o pirarucu e o bacalhau,
todos secos e bem salgados, talvez para aumentar a carga da penitência. Na Matriz,
Pe. Valtério paramentava-se de roxo e suas pregações primavam pelo plágio das
de Antônio Vieira, notadamente a do sermão da Domingo Quinto da Quaresma:
“Si veritatem dico vobis, quare non creditis mihi?”. Não satisfeito – ou não compreen-
dido – optava por continuar plagiando - agora em bom português – o sacro ora-
dor do Brasil setecentista: “Mal é dizer mal, mas depois de o haverdes dito, dizerdes
ainda que dizeis bem, e isto é um mal maior sobre outro mal, porque é estar obstinado
nele”. Nas galerias, seu parceiro de carteado sorria discretamente, ao comparar
o discurso emprestado com o blefe que o Procurador de Deus lhe aplicara em
partida recente. A hipocrisia não respeita templo nem liturgia.
Semana Santa. Na quinta-feira, a solenidade do templo e dos paramentos con-
trasta com a humildade pretendida pelo Lava-Pés. A tradição registra que Cristo
ajoelhou-se, lavou e beijou os pés de cada um dos seus doze apóstolos, numa
mensagem clara da humilde posição que deveria estar reservada ao ministério
do sacerdócio. No Irará, os doze apóstolos eram meninos escolhidos a dedo dentre
os filhos da elite local, garantia segura de pés devidamente asseados e resguar-
dados por bons sapatos. A cerimônia do Lava-Pés tem seguimento com
o sermão baseado nas palavras de Cristo, registradas por São Paulo na Carta
aos Coríntios: “Isto é o Meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em Minha
memória. Este cálice é a Nova Aliança no Meu sangue; todas as vezes que o
beberdes, fazei-o em Minha memória”. A Santa Ceia sela a quinta-feira que an-
tecede à Paixão. Irará adormece sob o pesadelo do sofrimento reservado ao

69
Parte III - Fatos e Eventos
Senhor Jesus enquanto seu povo e seus políticos, contritos, arrenegam os males
a outrem desejados, arrependem-se das traições cometidas, prometem devolver
ao erário público as verbas desviadas e esperam que a morte do Filho de Deus
resgate para o bem suas mentes regeneradas.
A simbologia do Corpo e do Sangue de Cristo nos conduz a um momento
de reflexão: sabemos o que não é certo. Por que o praticamos? Conhecemos os
méritos da sinceridade, da caridade, da humildade. Por que mentimos, por que
ignoramos os desvalidos da sorte, por que somos arrogantes? Será preciso que
o Senhor Jesus retorne para nova crucificação, a fim de que nossa consciência
se purifique!? “Penso, logo existo”, ensina a racionalidade.
Sexta-Feira da Paixão. O dia inicia-se como se noite fosse. O peso da cruz
parece vergar a todos. O ápice se dá na procissão do Senhor Morto. O preto
cobre a mulher iraraense no seu recato de mãe e mártir – mártir que é para
a boa criação dos seus rebentos numa sociedade machista. Os homens, tacitur-
nos, dobram-se na condução do esquife de Cristo e do andor da Mater Dolorosa.
O vigário e seus acólitos, na parcimônia dos paramentos roxos, abrem a marcha
pelas ruas poeirentas sob o ritmo funesto da matraca, com seu trec-treec-trec-tre-
ec-trec que mais causa saudades da sineta do que arrepios sepulcrais. A procissão
passa, as lágrimas caem, o povo murmura “pequei, senhor. Perdoai-me” e o padre
observa - espera ver um rosto menos contrito, para a crítica mordaz na Missa
da Ressurreição. Afinal, de onde vem a inspiração dos sermões, senão das
falhas dos pecadores!?
Sábado de Alelúia. Na Praça dá-se a Queima do Judas. Os preparativos come-
çam cedo, com a confecção do boneco cheio de palha seca e de bombas, vestido
com roupas velhas, portando chapéu de baeta suja e sapatos rotos. Pela tarde ele
é pendurado em um mastro para lembrar o enforcamento do apóstolo Judas,
aquele que entregou Jesus aos sacerdotes do templo de Jerusalém. Quando anoi-
tece, o povo cerca o traidor para a malhação e a leitura do seu testamento. Nes-
te, Judas deixa os seus bens para os moradores mais conhecidos. São momentos
de lazer e de algazarra, um renascer dos espíritos folgazões após a tristeza maca-
bra da Sexta-Feira da Paixão. Uma pessoa do povo faz a leitura do testamento:
“Para seu Fulano, deixo meu sapato furado, para que ele possa sair a namorar,
na boca-da-noite. Para seu Beltrano, deixo essas cabaças rachadas, para que ele vá
apanhar água na Fonte-da-Nação. Para D. Sicrana, deixo meu banquinho com três
pernas, para que ela descanse após a fofoca no portão”. A chusma vaia, grita e
aplaude. Lido o testamento, põe-se fogo no boneco e as bombas se encar-
regam de dar-lhe o merecido fim. Punido o traidor, Pedro, aquele que, por três
vezes, negou conhecer Cristo é perdoado; o povo, que pecou ao longo do ano se
sente remido e todos esperam pela ressurreição salvadora.
No Domingo da Ressurreição, o vigário recupera a fleuma, aporta ao púlpito
em brancas vestes e demonstra sua fé nos homens: “ Meus caríssimos irmãos em

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Janelas Abertas
Nosso Senhor Jesus Cristo. A ressurreição do Senhor é a certeza de que as portas do
céu se abrirão para os justos de espírito, para os desprendidos de bens materiais, para
aqueles que, olhando as necessidades de nossa Madre Igreja e lembrando-se de suas
posses, sabem separar do ganho obtido a parcela a ser depositada no cofre da Matriz
após cada missa. Para estes, o Senhor escreverá seus nomes na lista dos bem-aventura-
dos e lhes reservará lugar especial em suas hostes celestiais”. Na platéia de fiéis, plena
de comerciantes e políticos, o silêncio se torna ensurdecedor de tão silencioso que
é e a sugestão impositiva tem gosto de constrangimento. Terminada a cerimônia,
um aglomerado de homens se forma para a doação não tão espontânea. Espera-se,
ao menos antes que chegue o Mês de Maria, que a Matriz seja agraciada com uma
pintura nova.
Maio. Nossa Senhora da Purificação reina soberana no mês mariano. Todas as
Nossas Senhoras são soberanas em maio: noites de novena, a Ladainha, o Terço, o fo-
guetório habitual, a pregação instigante e impositiva e o coro das vozes femininas:

“No céu, no céu
Com minha Mãe estarei
Na santa glória um dia.
Junto à Virgem Maria,
No céu triunfarei.”
Os doadores do Domingo da Ressurreição conferem o bom uso do mealheiro:
a matriz foi pintada – caiada, apenas – de frente a fundo, o altar mor está
um primor. Alguns orçam mentalmente os gastos efetuados e franzem o senho
mas ”padre é gente de confiança. Talvez a tinta tenha subido muito de preço”.
Os festejos marianos em Irará eram castos, porém alegres; juvenis, porém
sérios; simples, porém nobres; santos na intenção, porém terrenos nos resultados.
A Igreja Católica, com o objetivo de fortalecer o culto a Nossa Senhora, enrijece
o papel maternal da mulher sem desonerá-la das responsabilidades de esposa.
O que se via no templo eram rostos femininos enuviados por finos véus que mal
escondiam as marcas da resignação, da dúvida, da desesperança, da incerteza,
da dor e até da fé.

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Parte III - Fatos e Eventos
As Festas Juninas
Mês de junho no interior é tempo de alegria e comemoração. É o mês
de Santo Antônio – a 13, de São João – a 24 e de São Pedro – a 29. Tais festas
remontam aos rituais pagãos dos povos celtas, bretões, bascos, sardenhos, egíp-
cios, persas, sírios e sumérios. Pagãs na origem, tornaram-se sacras por obra
e graça da Santa Madre Igreja.
Santo Antônio abre o ciclo com sua fama de casamenteiro e de recurso para
todas as dificuldades. Padre Antônio Vieira – aquele que soube ser Igreja e Crítica
– assim define seu homônimo santificado: “Se vos adoece o filho, Santo Antônio;
se requereis o despacho, Santo Antônio; se perdeis a menor miudeza de vossa casa, Santo
Antônio; se requereis os bens alheios, Santo Antônio”. Santo Antônio é uma panacéia
sagrada. Pau pra toda obra, pode-se afirmar que o santo é o mais festejado nos
grotões pátrios. Em Irará, tal não ficava por menos: de 1 a 13 de junho rezavam-se
“Os reponsos” e a “Trezena” em homenagem ao simpático condutor do Menino
Jesus, com muito alarido e animação – regada a bom licor, diga-se de passagem.
E haja foguetes, doces e cânticos; haja solteirona a salgar os joelhos diante do altar
do santo, na esperança do milagre redentor.
A Festa de São João era magia para a meninada. Os mealheiros de barro subs-
tituídos após o Natal eram mais uma vez quebrados para a cata dos tostões que
se transformariam em chuvinhas, traques, cobrinhas, chuveiros e estrelinhas. Os mais
crescidos, esses marchavam ao sabor das espadas e busca-pés. Aqueles de mais pos-
ses queimavam vulcões e morteiros. Adultos complementavam a cena com foguetes
mil. Já a partir dos festejos de Santo Antônio, a Rua de Baixo observava o constante
passar da gente miúda em direção à tenda de Manoel Fogueteiro, aquele mágico que
dava colorido e alegria ao fogo que queima e ao estrondo que ribomba. Na tenda,
a labuta era dura desde fevereiro, para garantir o estoque a ser consumido nos
meses a seguir: Mês de Maria, Festas Juninas, Cosme e Damião.
A marca registrada dos festejos de São João residia, então, no preparar, acen-
der e queimar fogueira. Reza a tradição que Isabel, prima de Maria, ficara grávida.
Em conversa com a prima, disse-lhe que daria a seu rebento – certa de que este seria
um macho – o nome de João Batista e que lhe avisaria do seu nascimento por meio
de uma grande fogueira, cujas altas labaredas seriam avistadas pela prima, que
morava distante. João nasceu – já predestinado a batizar seu primo ainda por vir
ao mundo – e a fogueira foi acesa dando início a uma tradição mantida ao longo
dos séculos. A história, por seu turno, relata que, ainda nos primórdios da Era
Cristã, já havia o costume da queima de fogueiras nas áreas rurais com o intuito de
afastar os maus espíritos. Uma vez mais a Igreja se apodera da crença pagã, casa-a
com o sinal de Isabel e cria mais uma santa festa. Nasce desse casamento o caráter
interiorano dos festejos de São João, quando o pular fogueira para comadrinhar-
se ou compadrinhar-se se junta ao vestido-de-chita e ao chapéu-de-palha, brejeiras

72
Janelas Abertas
representações da alma pura do povo da roça. Nos lares – abastados ou singelos
– o milho cozido, o bolo de fubá, a canjica e a pamonha são o tira-gosto para o
licor de jenipapo, de maracujá e de caju.
O dia 24 começava com foguetório para “acordar o santo”. Na seqüência,
era preparar a lenha da fogueira, dividir os fogos entre a filharada, produzir as
guloseimas e molhar a garganta de vez em quando e por todo o dia – sempre mais
vez do que quando...Por todas as ruas o passante ouvia a Rádio Sociedade da Bahia
apresentando o melhor de Luíz Gonzaga:
“Olha pro céu, meu amor
Vê como ele está lindo.
Olha pra aquele balão multicor
Como no céu vai sumindo”.
Boca-da-noite. Acendem-se as fogueiras, a meninada se assanha e os pais
ralham: “Cuidado para não se queimar. Nada de apontar chuveiro pra cima do outro.
Peguem tição pequeno.” Começa a arrelia. Na noite joanina iraraense dá-se a bata-
lha de espadinhas entre ruas distintas, na qual os soldados mirins esgotam suas
energias e consomem sua munição. A regra informal estabelece: a Rua de Baixo
desafia a Rua Nova com o irrestrito apoio da Manoel Julião; a Rua Direita enfrenta
a Quixabeira e vizinhanças. E haja correria, haja espadinha a rodopiar, haja meni-
no a esconder-se nos vãos das portas. Ao final da peleja, não há vencedores nem
vencidos – os louros sobejamente merecidos cabem a São João. As meninas, essas
se acomodam próximo às fogueiras a queimar chuvinhas e estrelinhas. As mais
sapecas acendem traques e cobrinhas, tudo na maior algazarra. Enquanto os meni-
nos não retornam do campo de batalha, elas aproveitam para se fazerem comadres
e trocarem ingênuas e juvenis confidências que o santo abençoa.
Estrondo. O que será!? Com a novidade das bombas-de-bater, não havia muro
que amanhecesse limpo no raiar do dia 25. Aliás, o dia 25 era dedicado ao assar
milho nas brasas das fogueiras moribundas, ao buscar pelas ruas a espadinha que
caíra sem rodopiar, ao remendo com mercúrio-cromo dos dedos sapecados.
No dia 29, São Pedro assumia a casa: repetia-se o ritual de São João com
a pouca animação dos fogos que sobraram, da lenha quase toda consumida,
do licor a meia-garrafa e do bom degustar da canjica e da pamonha, aquela já meio
passada, esta tinindo de nova. A parcimônia do dia 29 é debitada às viúvas, eternas
protegidas do santo pescador. São Pedro, a quem Jesus deixou tão grande e pesado
fardo, não é de muita algazarra. Sua sisudez, porém, finda-se quando um pecador
arrependido bate às portas dos céus, na espera da segura guarida. Então, o velho
pescador tornado santo, cumprindo seu papel maior de guardião celestial, derra-
ma lágrimas de alegria pela chegada de mais um hóspede, abre seus braços rijos
e dá pouso seguro ao espírito que chega.
As Festas Juninas se encerram com a melancolia da branca barba do santo
maior e já na expectativa de que chegue setembro, tempo de Cosme & Damião.

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Parte III - Fatos e Eventos
Quebras na rotina
Em Irará nem sempre os dias são uma mesmice só. Às vezes tem algo de novo
a se dar, mesmo que seja um magote de ciganos que acampa nas redondezas.
Aí é aquele corre-corre: crianças são guardadas a sete chaves “que cigano é ladrão
de menino”. Sem mais tardar, Régis Soldado vai fiscalizar o acampamento
e informa: “Estão lá, vizinho ao prédio da estação, uns trinta ou mais. Muito cavalo e
burro, barracas e uma ruma de tralhas de latão. Acho que não vão fazer nada de errado.
Parecem de paz”. Por volta das dez horas, as ciganas – longos e rodados vestidos
de chita floreada, uma infinidade de pulseiras cor de metal – surgem na Rua
a querer ler a mão do povo: “Quer ler a sorte, gajão? E você, boneca linda, quer saber
se já tem amor rondando?” A leitura das mãos é rápida e eficiente: somente notí-
cias boas, casamento no ano que vem, um pote de dinheiro a ser desenterrado
no quintal, uma viagem importante e com bom retorno. Todo mundo fica feliz
e as moedas pingam. Os ciganos, esses vêm com as tralhas de latão para negociar:
caçarolas, tachos, canecos, uma variedade de utensílios com boa aparência. Com-
prar, a ciganada não compra nem um vintém. Somente vende - tralhas e sorte.
Uma semana depois a leva parte e alguns burros e jumentos da redondeza são
dados como sumidos. Não se pode afirmar que os ciganos tenham algo a ver com
a ocorrência, mas fica a impressão de que a sorte, tão bem vendida, deu azar.
Cedo chega a notícia de que a marinete derrapou na lama e virou logo ali na
ladeira perto da roça de Zé de Fiinho. Ninguém saiu machucado, nem mesmo
o chofer, já experiente em dirigir na estrada enlameada. O carro reserva - que ia
para Feira de Santana - vai dar socorro, levar os passageiros pra Bahia, já com
umas boas horas de atraso.
José Carvalho pode ser considerado um herói, ao dispor-se em investir seu
capital para conduzir passageiros por estas estradas que mais parecem veredas
pra tropa de burro, daquelas que serviam às Entradas e Bandeiras. Pode-se dizer
que ele é o nosso Anhangüera, já que permite aos iraraenses terem acesso à Capital
em condução com horário acertado e preço justo. Suas pepitas de ouro são a
chance que propicia de se ter, a cada regresso da marinete, os jornais “A Tarde” e
“Diário de Notícias” com as recentes informações da Corte. E a turma que estuda
na Bahia? Não fosse a certeza da marinete, teriam que se aventurar nas boléias dos
caminhões, se vaga houvesse.
Dizem que tem deputado trabalhando para a construção de estrada nova
– pavimentada - desde o Posto São Luís até Coração de Maria. Será que não dá
para garantir uns votos iraraenses para esse lídimo legislador, a fim de que a pista
chegue até aqui!? Tarefa fácil para a boa vontade e o prestígio de Amaro Medeiros
e Elísio Santana. Seria uma simples movimentação dos cabrestos que manietam
nossos eleitores.

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Janelas Abertas
Uma boa notícia para esses dias sem chuva e muita sequidão: vai ser cons-
truído um desvio da estrada-de-ferro que passa por Água Fria, com a finalidade
de fazer os trilhos cortarem Irará. Comenta-se que a Leste Brasileiro já assegurou
os recursos e que as máquinas já estão saindo de Alagoinhas para abrir o novo
trecho. Vão fazer um corte nas elevações que ficam pras bandas da estrada de Água
Fria, a fim de se assentarem os dormentes. Correu o boato de que a estação vai
ser bem em frente da Escola Rural, ali pras bandas do Cajueiro. A notícia já faz
os meninos sonharem com o apito do trem. Quem não está gostando nada dessa
conversa é o pessoal dos caminhões, pois o frete vai rarear para eles, já que a com-
posição será mista: vagão para passageiro e vagão para carga. É aguardar com
muita fé em Deus, que logo o trem vai chegar...
A boemia anda preocupada com essa estória de que “vem luz aí”. Boêmio gosta
de penumbra, de sombra de lampião. Claridade, além de fazer mal aos olhos,
atrapalha as atividades noturnas. Satisfeito com a notícia está Alfredo da luz, que
vai deixar de andar tanto à boca-da-noite, para acender os lampiões. Com a luz
de Paulo Afonso, basta fechar algumas navalhas presas aos postes e tudo vira dia.
Os postes já estão chegando – enormes e de madeira alguns, outros de cimento
armado. Os fios virão lá do Birimbau, passando por Coração de Maria e Conceição
antes de adentrarem pela Rua de Baixo. Já tem venda que negocia com ferragens
fazendo estoque de shuite, soquete, rosete, isolador, fio simples e torcido, até lâm-
pada incandescente e tomada de baquelite. Virão eletricistas de Feira de Santana
para trabalhar nas instalações internas das casas. Será que a luz chega antes
ou depois das eleições? Uma coisa é certa: os lampiões somente farão falta aos
boêmios e àqueles que os apreciam como jóias da arquitetura colonial. Não have-
ria um jeito de os aproveitar no lugar dos postes?
O dia amanheceu fechado, ameaçando trovoada. Por volta das nove horas,
começou a relampejar e os roncos – mais a quase escuridão - assustaram os ga-
los, que se puseram a cantar como se meia-noite fosse.. Ao primeiro relâmpago,
os espelhos foram cobertos, a fim de se evitar queda de raio. O toró não esperou
a hora do almoço. A enxurrada, vinda da Rua Direita, encheu a Praça e se escoou
pela Rua de Baixo, beirando as duas bordas dos passeios. Como se estivesse
de sobreaviso, a meninada pulou casa afora e se pôs a soltar barquinhos de papel
que vão ancorar em frente à salgadeira de Pompílio Santana, nos garranchos
que por lá se quedam. Não falta moleque aproveitando as biqueiras pro banho
de há muito esperado. As goteiras nas casa exigem o remover das camas e ma-
las, a fim de ceder lugar às bacias e baldes. Nos tanques, já não há mais espaço
e a chuva transborda – economia garantida na despesa com os barris que vêm
da Fonte da Nação.
Passado o dilúvio, olhar os estragos: uma ou outra bica caída, algumas telhas
fora de lugar, muita areia nas esquinas, notadamente nas da Rua Manoel Julião
e Canta Galo, valetas abertas na Rua Direita e na Praça - por falta de calçamento.

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Parte III - Fatos e Eventos
O lucro fica por conta do frescor de algumas horas e da lavagem geral que se deu
pela cidade. Se o toró se estendeu à roça, então a alegria será bem maior, com boa
safra garantida. A feira de sábado será o termômetro do resultado.

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Janelas Abertas
Cosme & Damião
Setembro. Festas de Cosme & Damião. Na Igreja, dia 26; no Terreiro, 27.
Os santos mártires, tidos como padroeiros dos médicos e protetores dos gêmeos
e das crianças, nasceram mabaços em data incerta do Século III, de uma nobre fa-
mília da Arábia. Estudaram medicina na Síria e depois foram para Egéia e Anató-
lia. Não recebiam pagamento por seus serviços médicos – daí serem chamados
“anárgiros”, ou seja, que “não são comprados por dinheiro” –porque seu objetivo prin-
cipal era a conversão dos pagãos à fé cristã. No Candomblé, são identificados com
os orixás Ibeijis, amigos das crianças e das festas, danças e iguarias. Segundo lenda
africana, os orixás-crianças são filhos de Iemanjá – a rainha das águas e de Oxalá
– o pai de toda a criação. Outras tradições negras atribuem a paternidade dos maba-
ços a Xangô, tanto que a comida servida aos Ibeijis ou Erês, chamados carinhosamente
de “crianças”, é a mesma que se oferece a Xangô, o senhor dos raios, o caruru.
Amaciados os atabaques, ebós postos, água-de-cheiro a transbordar das jarras,
Terreiro com o calor do orixá presente: sinais evidentes de que os gêmeos santos
observam a cena. Setembro 27 é casa, festejo e louvor de Cosme & Damião.
Irará multirracial: branco, moreno e negro. Nesta terra, dia de Cosme &
Damião marca com clareza a difícil convivência das raças na população misci-
genada desse nosso país pretensamente desprovido de racismo.
Ao rufar dos atabaques, a cor branca benze-se e murmura: “Te esconjuro.
Vai começar o candomblé. Essa gente não tem jeito nem crença”. Não sabe, sequer,
o significado do nobre Candomblé, raiz profunda da cultura iorubá. O som do ata-
baque emite notas que o tilintar dos santos sinos não é capaz de reproduzir - sem
nenhum demérito para o lindo blimblomblar. O ritual dos cultos negros possui
absolutas semelhanças com ritos da igreja branca – não tão branca em sua origem
e não tão sacra em sua história secular.
Ebós servidos, a pele morena – na incerteza de sua mestiça composição – prefe-
re a hipócrita afirmativa: “Não são tementes a Deus...”. Um deus é para ser temido
ou lhe basta ser adorado? Os deuses sempre se fizeram presentes desde os primór-
dios da existência humana: deus Sol, deus Céu, deus Lua; deus Leão, deus Gato,
deus Águia; deus Fogo, deus Água, deus Terra; deus da guerra, deus da paz , deus
da concórdia. Qual dentre os deuses criou o Ser Humano à sua imagem e seme-
lhança? Se esse deus criador é o de extrema bondade, quem criou o ser humano
que pratica o mal? Não há porque se temer a Deus. Há que crer n’Ele e adorá-lo
se n’Ele se acreditar.
Água-de-cheiro borrifada, a pele negra – batuque posto – abre largo sorriso,
lacrimeja os sofridos olhos e brada a plenos pulmões: “Meu orixá está em casa.
Ele me ama e me protege”. As oferendas reforçam a confiança no ser sobrenatural;
a dança põe espírito e carne em comunhão; o ritual abençoa os que crêem
e perdoa os que menosprezam.

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Parte III - Fatos e Eventos
As Festas de Cosme & Damião são a simbiose mais que perfeita do credo
e da fé, do temer e do adorar, do conhecer e do supor.
Irará – baiano como ele só – honra Cosme & Damião – Ibeijis meninos – desde
os terreiros da Caroba até aqueles de Santo Antônio, desde os batuques no Cruzeiro
da Queimada àqueles no Cruzeiro da Madalena, desde a Rua de Baixo até a Rua
da Quixabeira. A cidade abasta-se no caruru, no vatapá, no amendoim e nos
miúdos de galinha. O espoucar dos foguetes anuncia a chegada dos gêmeos santos
em cada casa de cada rua. Amarguras e rancores postos de lado, confraterniza-se
como se fosse o Dia do Juízo Final, quando há que se ter os pecados perdoados
para que se abram as portas do céu. O conflito multirracial dá lugar a novo trio,
esse benfazejo, criador e, de fato, sacrossanto: religião – vida - arte.
Viva Cosme & Damião, santos irmãos mabaços, morenos no rosto, negros
no coração e no sangue, brancos na alegria. Iraraenses, baianos, brasileiros.
Ogun, ka ji re, nji owo ni, nji aya ni.

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Janelas Abertas
As Eleições de 62
1962. Ano difícil para Irará: a elevação à categoria de município dos Distritos
de Água Fria, Ouriçangas, Pedrão e Santanópolis reduziu a área de nossa terra
à Sede mais Bento Simões e Caroba. O choque político, contudo, foi bem mais
abrangente do que o trauma da redução territorial: o surgimento de novas lide-
ranças políticas nos municípios recém-criados fez minguar o cacife dos coronéis
locais, os quais, por décadas a fio, vinham pintando e bordando às custas do voto-
de-cabresto do nosso povo.
Na criação do novo Município de Pedrão, dá-se um lance audacioso, para se
dizer o mínimo: seu principal mentor foi o então prefeito José de Lima Valverde,
pedronense de quatro costados. Afinal, perguntam alguns, ele foi desleal com seus
eleitores iraraenses – aí incluídos os do ainda Distrito de Pedrão - ou optou pela
fidelidade às origens!? Mas a atuação de políticos tradicionais de Irará na cria-
ção dos novos municípios não se restringiu a esse caso. Água Fria contou com
a discreta mas segura influência de Amaro Medeiros, que logo disputou as elei-
ções para prefeito. Quanto a Santanópolis, sua ascensão à condição de município
teve como baluarte a mão importante do deputado estadual Clodoaldo Campos,
ex-prefeito de nossa terra. No caso de Ouriçangas, os patronos foram aqueles que
tradicionalmente representavam o Distrito na Câmara de Vereadores de Irará.
Pode-se até afirmar, num arroubo de compreensão, que tais ações foram justas por
se tratar da defesa dos torrões natais, mas o resultado desse processo foi que nosso
município se esfacelou enquanto que os donos do poder apenas fatiaram o bolo
entre si. Uma mãe pobre pariu quatro pobres filhos e continuou pobre como Jó.
Em 1962, a campanha eleitoral para prefeito de Irará caracterizou-se por uma
unanimidade: eleger-se-ia Deraldo Campos Portela, o insigne médico de todos,
o eficiente professor de inglês do Ginásio São Judas Tadeu, o apoiador fiel e cons-
ciencioso de todos os atos e fatos positivos que acontecem em nossa cidade. Até
os comunistas apoiavam sua candidatura. Eleito seria, eleito foi.
Essa unanimidade quanto ao candidato a prefeito, no entanto, não cancelou
nem diminuiu a batalha pelos votos para os demais cargos em disputa: vereador,
deputado estadual, deputado federal, governador e senador. Cada partido agia
como sempre: utilizando de todos os expedientes visíveis e invisíveis para cooptar
eleitores. Procediam como se fossem gatos à noite, quando todos são pardos. O elei-
torado, por seu turno, nada esperava de novo, além da segura certeza da vitória
do Dr. Deraldo. Habituados à mesmice das promessas descumpridas e aos cha-
vões eternamente repisados, nossos eleitores sentiam-se num estado de exaustão
e esgotamento que conduzia a uma esperança de renascer. Era como se os versos
mágicos da poetisa Adélia Prado se fizessem presentes nos murmúrios de todas
as bocas iraraenses:

79
Parte III - Fatos e Eventos
“Eu quero uma licença para dormir,
Perdão para descansar horas a fio,
Sem ao menos sonhar
A leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
Foi o sono profundo das espécies,
A graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.”
Como já registrado, o fatiamento do município fez com que sua importância
política ficasse apequenada: para lá não foram, dessa vez, candidatos a governa-
dor, senador ou mesmo a deputado federal. Bem diferente das eleições anteriores,
as de 1958, quando fomos merecedores – ou vítimas!? – da visita do então candi-
dato a Governador da Bahia, o General Juracy Montenegro Magalhães, intitulado
líder inconteste da UDN estadual. O General entrou em nossa cidade nos ombros
de uma coluna de puxa-sacos e ao som da descabida marcha da campanha que
ousava afirmar:
“Cacau, petróleo e Paulo Afonso
são as riquezas da Bahia.
Têm nas mãos de Juracy
Toda a sua garantia.
Este ilustre brasileiro,
Dos candidatos o primeiro.
Para a Bahia governar,
Em Juracy vamos votar.”
E o tal ”ilustre brasileiro” general elegeu-se na ponta da agulha para desmandar
em nosso Estado, tal qual o fizera em seus governos anteriores, interventor que foi
a mando da Ditadura de Trinta, do ano 31 ao 37. Eleito em 1958 com a promessa
de zelar pelo “Cacau, Petróleo e Paulo Afonso” de nossa amada Bahia, não se sabe
o que a região cacaueira conseguiu de positivo sob a sua égide. Desconhece-se,
também, quais os poços de petróleo que vieram à luz por seus esforços e recorda-se
que Paulo Afonso esmaecia com os apagões diários sem que algo fosse feito para
evitá-los. O que se tem conhecimento é que o fumo, a mandioca e o sisal – também
riquezas importantes da Bahia – estão no mais absoluto ao léu. O que se escutava
diariamente nos noticiários da Rádio Sociedade da Bahia – a PRA-4 - eram as no-
tícias sobre o espancamento e prisão de estudantes soteropolitanos por parte dos
esbirros do governador entrincheirados na Polícia Militar. O que se lia nas pági-
nas de “A Tarde” eram as arbitrariedades praticadas em nome da ordem estabe-
lecida, mas em detrimento do anseio popular. Nada diferente do que ocorria no
Século XVII, quando Gregório de Matos - O Boca do Inferno – assim registrou:

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Janelas Abertas
“Triste Bahia! Oh quão dessemelhante
Estás, e estou do nosso antigo estado!”
As eleições daquele ano em nosso Município trouxeram, contudo, um fato
que fugia à mesmice dos pleitos anteriores: pela primeira vez, o Partido Comu-
nista apresentou candidatos em três níveis, vereador, deputado estadual e depu-
tado federal. Essa novidade gerou expectativas, já que os candidatos eram todos
iraraenses natos: Pedro de Tiano, Tom Zé e Juracy Paixão para vereador; Aristeu
Nogueira para deputado estadual; Fernando Santana para deputado federal.
Os três candidatos a vereador nada prometiam além de defender os interesses
do povo trabalhador. Aristeu Nogueira endossava a promessa do trio e acres-
centava a disposição de lutar por igualdades sociais em nosso Estado. Quanto
a Fernando Santana, ele reforçava o anseio de seus camaradas e parceiros e afir-
mava sua convicção em um Brasil mais justo e verdadeiramente soberano. O trio
de candidatos a vereador não se elegeu, Aristeu Nogueira ficou com a primeira
suplência e Fernando Santana ascendeu à Câmara Federal. A principal vitória,
contudo, dessa campanha dos comunistas residiu no plantar raízes que frutifica-
ram, de modo a se afirmar como o fez Berthold Brecht:
“Então foi baldada a luta? Enquanto houver de pé um só dos nossos combatentes, o ini-
migo vitorioso não saiu ainda.”

81
Parte III - Fatos e Eventos
Quando o Ginásio chegou
Na década de 50 do século passado, a grande frustração da maioria dos pais
iraraenses residia na falta de posses para dar seguimento aos estudos de seus
filhos e filhas, tão logo concluído o ciclo da Escola Primária. Uns poucos podiam
assumir as despesas de hospedagem e manutenção dos estudantes na Capital, ou
mesmo em Feira de Santana. O que resultava era uma massa crescente de jovens
que viam seus sonhos de progredir na vida tolhidos pela impossibilidade de conti-
nuar sua educação escolar. Terminavam todos nos balcões do comércio, nas ban-
cas da feira, num ou noutro ofício muitas vezes desempenhados sem aptidão.
Essa realidade explica a grande agitação que se deu nos fins do ano de 1953,
decorrente da notícia de que em 1954 haveria ginásio funcionando. A simples
expectativa motivou o esforço pelas aulas particulares, visando ao necessário Exame
de Admissão: quem sabia ensinava a quem esquecera o que sabia e houve até casos
de aluno e professor estudarem juntos para o grande teste de seleção.
O ginásio chegaria sob o patrocínio da CNEG – Campanha Nacional de Edu-
candários Gratúitos. O local onde funcionaria o ginásio logo foi escolhido: o velho
e nobre Sobrado dos Nogueira – a casa grande do Coronel Elpídio – na Praça da Ma-
triz. Nada mais justo: a história do Irará de ontem a propiciar a formação dos que
haveriam de construir o Irará do amanhã.
Superada a primeira dificuldade, partiu-se para encarar a segunda e mais
crucial: a formação do Corpo Docente. A solução encontrada – inteligente e
oportuna – foi convocar os mestres da terra, conhecidos de todos por seu saber
e dedicação: Profa. Lourdes – Matemática, Profa. Hildete – Português, Profa.
Antônia – Geografia, Prof. Fernando – História, Profa. Rilsa – Educação Física,
Pe. Valtério – Latim, Dr. Ramalho – Francês, Profa. Áurea - Trabalhos Manuais
e Profa. Maria José – Canto Orfeônico. Essa plêiade de mestres formou um Corpo
Docente digno dos melhores educandários da Bahia e viria a merecer a permanente
gratidão da Família Iraraense.
Pensou-se em efetuar um sorteio para a escolha do nome do novo templo do
saber, mas optou-se pela criação de uma comissão organizadora para cuidar dessa
e de outras providências. Todos estavam convictos de que essa comissão agiria
dentro dos mais lídimos princípios da Equidade, Justiça e Democracia e não se
negaria em ouvir a voz das ruas.
Vejam só: mal se passaram dois meses da notícia de que Irará teria ginásio e
tudo já se encontrava definido. O nome seria Ginásio São Judas Tadeu, como muito
bem escolheu a Comissão Organizadora. Alguns iraraenses mais especuladores
estranharam a homenagem ao santo e se perguntaram por que não Ginásio Imacu-
lada Conceição de Maria - dentro dos padrões de religiosidade – ou mesmo Giná-
sio Iraraense – respeitando-se assim o laicismo da organização política nacional.

82
Janelas Abertas
Estranharam mas não discordaram – afinal sabia-se que o santo não exercera ne-
nhuma pressão para alcançar a honraria obtida. A Comissão também decidiu que
a Profa. Lourdes Portela seria a diretora do estabelecimento, decisão essa que toda
a comunidade iraraense apoiou e aplaudiu, já que a conhecida mestra possuía
– como ainda possui - todos os méritos e qualidades necessários ao cargo. O duro
para ela seria conciliar a condição de diretora com a de titular da cadeira de mate-
mática. Por fim o mais esperado: a Comissão marcou e divulgou a data do Exame
de Admissão e nomeou a Banca Examinadora. Começava, então, a corrida pelo
ingresso no Primeiro Grau da Educação Oficial.
Divulgado o resultado do primeiro Exame de Admissão ao Ginásio São Judas
Tadeu, foram aprovados os seguintes candidatos:
Moças: Denise Valverde, Lea Medeiros, Lêda Freitas, Lindinalva Gomes Ferro,
Maria Eulália, Maria de Lourdes Reis, Marinalda Carvalho, Marlene Paixão, Mary
Ferreira, Nilce Maia, Nilda Estrela, Railda Medeiros, Romilda Pinheiro, Vera Ra-
malho e Vilma Cruz.
Rapazes: Aderbal Paes Coelho, Antônio Costa, Antônio Luís Santos, Atenaldo
Medeiros, Carlos Alberto Barbosa, Carlos Alberto Paixão, Clício José Freitas,
Deraldo Valois da Paixão, Djalma Leão, Ednaldo Paixão, Ginaldo Gomes, José
Aristeu de Araújo, José Aquino, José Ferreira, José Humberto Santana, José Mas-
carenhas, José Luís Silva, José Gomes, Juracy Paixão, Manoel Bispo dos Santos,
Nelson Cerqueira, Nelson Pinho, Paulo Aquino e Vítor Ferreira.
Rigorosamente dentro do calendário oficial, iniciou-se o ano letivo no recém
inaugurado ginásio – aquele que bem poderia ter-se chamado Ginásio Iraraense.
Decidiu-se que as aulas seriam noturnas – das 07 às 10 horas – já que uma boa
parte dos candidatos aprovados eram empregados no comércio. Houve quem dis-
sesse, no entanto, que o verdadeiro motivo da decisão pelo horário noturno foi
o fato de o Corpo Docente também ministrar aulas no Curso Primário. As duas
prováveis causas eram mais do que justas – assim entendia a Cidade. O que valia
era ter ginásio funcionando para que a juventude iraraense pudesse alargar seus
horizontes. Ficou acertado em reunião com a comunidade de pais e alunos que,
faltando energia, as aulas seguiriam normalmente, devendo cada aluno – ao me-
nos os que pudessem – trazer de casa os lampiões que possuíssem. Previa-se uma
procissão de luzes pela Rua Direita: Petromax a gasolina, lampiões a carbureto, até
os conhecidos Aladim iriam passear rua acima. Por inúmeras vezes, nos apagões
da energia recém-inaugurada, tal procissão se deu.
Primeira noite de aula: os alunos percorriam o velho sobrado de cabo a rabo.
A sala de aula era o grande salão frontal do lado direito do pavimento térreo.
No lado esquerdo ficavam as salas da diretoria, da secretaria e dos professores.
De início não se cogitava utilizar o pavimento superior – talvez no ano seguinte,
quando haveria duas turmas de alunos.
Os alunos foram informados de que as aulas de Educação Física seriam

83
Parte III - Fatos e Eventos
ministradas de manhãzinha, entre as 5:30 e as 6:30h. Assim, tanto a Profa. Rilza
disporia de tempo para cumprir suas obrigações nas Escolas Reunidas, como
os alunos que trabalhavam poderiam, com uma simples carreira, chegar ao pé
de seus patrões a tempo e hora. O recreio seria na Praça, não devendo ocorrer
algazarra nem namoro desbragado. O difícil seria controlar a malta, mas o risco
de uma suspensão funcionaria como freio para o ímpeto dos mais arrojados.
E se chovesse? Bem, se chovesse, a diversão ficaria limitada ao salão dos fundos, aí
sim, sem arrelia, namoro ou qualquer outro tipo de arroubo.
Algumas dúvidas pairavam no ar. Como os professores lidariam com uma
turma de alunos tão heterogênea no que tangia à idade? Haveria castigos? – ques-
tionavam os mais jovens, lembrando-se de seu tempo de curso primário. Poder-
se-ia fumar? - interrogavam os mais velhos, preocupados com o interromper
do vício. Haveria oração no início das aulas ou o credo se limitaria ao santo nome
do ginásio? – inquiriam os que esperavam um estabelecimento laico. A tantas
dúvidas somente o tempo daria respostas e faria os ajustes necessários. O impor-
tante, então, residia em se iniciarem as aulas, para gáudio dos que batalhavam por
uma vida melhor.
Passados tantos anos, nada melhor do que olhar a comunidade iraraense e
constatar o bem proporcionado pelo velho ginásio então instalado no Sobrado
dos Nogueira.

Miscelânea

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Janelas Abertas
Semelhanças
Cada um de nós, brasileiros, somos dotados de um enorme apego
às nossas raízes, considerando-as como únicas e insubstituíveis. Isso tem a ver,
evidentemente, com o fortalecimento dos laços familiares e com a manutenção
dos vínculos de relacionamento e de amizade. Os nordestinos em particular,
somos imbuídos de forte relação com o torrão natal, aquele que nos viu nascer,
crescer, sofrer e vingar. É como se as agruras da natureza, em vez de nos calejar
o físico, fossem bem-aventuranças a alegrar a nossa alma. Gostamos da paisagem
ressequida, dos arbustos espinhosos, dos rios sem água corrente, das capoeiras
quase sem sombras, do solo pedregoso, do sol sempre a pino. Amamos tanto
as dificuldades da vida que delas fazemos prazerosas lembranças perenes e so-
nhos sempre acalentadores. Julgamos nosso recanto de origem como único,
insuperável, o mais belo e benfazejo. Somos tão assim que não conseguimos
enxergar beleza e méritos - mesmo harmonia - nos torrões alheios, por mais
iguais que sejam ao nosso. Ainda bem que somos dessa forma, senão como
suportar a dura vida de sertanejo!?
Vaguear pelo nordeste brasileiro é encontrar dezenas de torrões natais
com vida, cheiro e cor tal qual o nosso. Irará está para nós – iraraenses baianos
– assim como Moita Bonita, Cacimbinhas, Venturosa, Mãe d’Água, Viçosa,
Saboeiro e Pau d’Arco estão para seus naturais de Sergipe, Alagoas, Pernambu-
co, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Piauí. Em cada um deles – como em
dezenas de outros recantos e tal como em nosso Irará – encontramos menino
a soltar papagaio, comadre a trocar confidências à janela, aguadeiro a açoitar
jumentos abastecidos, cão a latir atrás do cio, viola e violeiro a chorar suas paixões,
fitas pretas e flores novas nos cemitérios, abóbora e farinha-de-mandioca nas fei-
ras, padroeiros e padroeiras a aguardar suas novenas, noiva a bordar enxoval, padre
a recolher parcos donativos, pedinte a sobreviver da caridade, político a encurtar
o tamanho dos cabrestos. Em todos sentimos ar de humildade, solidariedade, sin-
geleza e paz. Mas – sejamos honestos – somos mais o nosso Irará, esse dos cami-
nhos conhecidos, dos terreiros bentos, do beiju gostoso e da alegria permanente.
Iraraenses somos e como tal pensamos, para nosso bem e nosso deleite.

87
Parte IV - Miscelânia
Temos História?
Os estudiosos afirmam que a perenidade de um povo tem sua garantia
na manutenção de seus marcos históricos, culturais e lingüísticos O folclore,
o linguajar típico, o manejo dos recursos naturais na manufatura do artesanato,
são símbolos que marcam uma comunidade. O mais forte dentre os registros
da história, contudo, reside na estrutura e feição das construções, capazes que
são - se preservadas - de sobreviver ao tempo e aos modismos.
Olhar os registros de nossa cidade nas primeiras décadas do Século XX sig-
nifica orgulhar-se da Velha Matriz na Praça do Comércio, do imponente e aristo-
crático Sobrado dos Nogueira, do clássico Paço Municipal na Praça da Bandeira, da
singela Capelinha da Rua Nova, do Foro da Comarca quase em frente à Capelinha,
do Coreto alambradado a olhar o Paço, das fachadas com contornos torneados
dos velhos prédios comerciais, das robustas paredes da velha Cadeia Municipal.
Da Velha Matriz a saudade aperta quando visitamos Ouriçangas, Água Fria,
Pedrão, Retiro, até Bento Simões e Caroba.
O que vimos em nome da modernidade? A Velha Matriz – digna de todas
as Nossas Senhoras – sucumbiu ante a fúria de abrir espaços, como se espaço não
houvesse no minúsculo Irará de então; o Paço – belo e imponente – cedeu lugar
ao concreto armado, cujas paredes parecem mais propícias aos conchavos polí-
ticos; o velho Foro caiu sem respeitar leis de preservação; o Coreto amesquinhou-se
em uma pizza insossa; a Capelinha arrenegou seus votos e tornou-se aliada do pecado
arquitetônico; as fachadas da Praça do Comércio desceram da nobreza altiva para
a decadência das portas de correr. Resistem impávidos – e como exceções a confir-
mar a maldita regra - o Sobrado dos Nogueira – com fachada mal pintada ano não,
ano sim - e as robustas paredes da Cadeia, mal guardando a Cultura Popular.
Presenciamos ruir ante a ação devastadora das picaretas a velha Agência
dos Correios e Telégrafos, o belo casarão de Raul Cruz, a clássica residência de
Helena e Éverton, as portas com arcadas dos armazéns dos Franco. Tantas ou-
tras sólidas construções desse Irará de séculos- Irará de eira e beira – deram lugar
a meras paredes com portas e janelas. O que faltou? Desprendimento dos herdei-
ros e proprietários ou a mão do Poder Público? Tantas belas – às vezes milena-
res – construções mundo a fora se adaptaram às novas necessidades mantendo
suas características originais, desde o Velho Continente até o Brasil de Goiás Velho,
de Parati, de Tiradentes, do Pelourinho, de São Luís do Maranhão, de Alcântara.
Citados alguns grandes e outros pequenos, por que não nos inserimos entre eles?
Até quando resistirá à sanha da fraudulenta modernidade o Velho Mercado
Público, o imponente Sobrado dos Nogueira e, mesmo, as sólidas e centenárias
paredes da Velha Cadeia?

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Janelas Abertas
A Formação do Linguajar Iraraense
O linguajar iraraense tem suas origens nas diferentes formas de penetração
e comunicação sofridas pela região ao longo dos tempos.
Na Bahia Colonial, em plena época do florescimento dos engenhos de açúcar
no Recôncavo, duas vias comerciais se formaram a partir de Cachoeira. Uma
seguia para o sul, em direção às Minas Gerais, entortando-se pelas encostas
da Chapada Diamantina até alcançar o norte mineiro. Outra, mais agreste, cor-
tava as terras iraraenses então pertencentes a Garcia D’Ávila e subia em direção
a Sergipe, tomando a rota do rio Real. Os tropeiros foram semeadores de civilização
e fomentadores da economia. Traziam a produção dos engenhos e as trocavam
pelos produtos das regiões que cruzavam num ativo comércio de escambo. Nas
paradas para repouso, à medida que informavam as novidades da Coroa e dis-
seminavam história e estórias, novas palavras e expressões se incorporavam
à linguagem da região. Caminho natural dos antigos tropeiros, as terras do atual
município de Irará e circunvizinhas foram ponto de parada obrigatória dessa
importante expressão de desbravamento.
O acirramento das contradições geradas pela escravidão proporcionou
a formação de diversos quilombos nas terras baianas. As regiões iraraense e cir-
cunvizinha também foram alvo dessas aglomerações de negros, embora de menor
importância já que as lavouras aí praticadas não exigiam grande concentração
de escravos. Os quilombos deram uma importante contribuição à formação da lin-
guagem popular, aliada à forte marca da cultura africano-mística. O vocabulário
negro tem forte presença na denominação de alimentos, crenças e costumes.
As terras iraraenses, outrora habitadas por segmento silvícola do ramo dos
Paiaiás, que se espraiaram desde Jacobina, beneficiaram-se também da mestiçagem
indígeno-africana. O linguajar de origem indígena se manifesta, sobremaneira,
nos assuntos da Natureza.
A presença marcante dos jesuítas – veja-se Água Fria, Bento Simões e
Caroba – em seu afã pela catequese, muito contribuiu para o fortalecimento
dos elos entre índio, negro e português na formação da raça, costumes e lingua-
gem da microrregião na qual se inserem as terras iraraenses. Ressalvas religio-
sas e sociológicas à parte, os catequistas tiveram papel preponderante na fixação
do homem à terra.
Com o desenvolvimento da lavoura fumageira na região e a conseqüente
necessidade de transportar o fumo para os depósitos de troca, surgiram as rotas
dos carros-de-bois, com a figura indolente - mas brava - do carreiro e do guia-
dor. Os carros-de-bois contribuíram acentuadamente para a melhoria das
comunicações entre os povoados, pois sua circulação exigia a abertura de picadas
mais largas e menos íngremes. Os carreiros, no entanto, por serem quase sempre

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Parte IV - Miscelânia
da mesma região, tiveram parca contribuição na formação do linguajar das terras
por onde circulavam.
Em meados do século XX, anos 40, a necessidade de acelerar a circulação
das mercadorias fez com que velhos caminhões importados surgissem em terras
brasileiras. Em que pese a existência de algumas vias férreas, a política de es-
tradas do governo brasileiro jamais incentivou o desenvolvimento do meio
de transporte ferroviário como o mais viável e econômico para um país com
a extensão territorial brasileira. Isso fez com que poucas estradas-de-ferro fos-
sem implementadas, a maioria na região sudeste . No leste e nordeste, o úni-
co destaque era a Via Férrea Federal Leste Brasileiro – a Leste - que unia o porto
de Salvador a Juazeiro e Aracaju. Em nossa microrregião somente havia a estação
de Água Fria, com modesta capacidade de armazenagem e operação.
Finda a Segunda Guerra Mundial, o governo americano, a titulo de ajuda
solidária, vendeu a preço de sucata grande quantidade de velhos caminhões
militares aos países do Cone Sul. Assim, o transporte rodoviário começou a
tomar vulto e longas estradas foram abertas. O caminhoneiro passou a ser a fonte
de informação entre os grandes centros e as pequenas cidades interioranas.
Irará foi, durante décadas, um considerável centro caminhoneiro. Seus donos
de caminhão fizeram nome e sucesso. Quem, hoje, entre os cinqüenta e setenta
anos de idade, não conheceu Ospício e filhos, Inácio, Zé Mendes, Zé Campos
e tantos outros?? Esses caminhoneiros faziam o trajeto Salvador - Irará e cidades
vizinhas todas as semanas, levando mercadorias locais (fumo, farinha de man-
dioca) e trazendo charque, móveis, açúcar, peixe seco, enxadas, foices, picaretas,
formicida Tatú, remédios, querosene, tecidos, farinha de trigo. Muitos chegavam
a realizar duas viagens por semana entre a sede municipal e a capital do Estado.
Naqueles tempos, uma viagem de caminhão de Irará a Salvador, em dias chuvosos,
podia durar mais de 12 horas pela velha estrada de cascalho que passava por
Candeias e São Sebastião. Os caminhoneiros, como soe acontecer ainda nos dias
de hoje, foram uma importante via de informação e formação lingüística, já que
difundiam o modo de falar das gentes da cidade grande, contavam casos – nem
sempre verídicos – e faziam circular as notícias, em franca concorrência com
o velho telégrafo do Código Morse.
Com a grande difusão do rádio por ondas curtas já no final do segundo terço
do século XX, a linguagem e os costumes das microrregiões interioranas sofre-
ram forte influência dos programas radiofônicos – notadamente das novelas
- que divulgavam a forma de falar dos grandes centros e impunham as gírias
das regiões mais desenvolvidas. Artistas famosos influenciavam decisivamente
as atitudes das pessoas simples do interior que buscavam, nesses estereótipos,
uma forma de ascendência cultural. Era a eletrônica a ditar suas regras. Desde
um simples jogo de futebol até os grandes programas de auditório, a audiência
do rádio era maciça e homogênea.

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Janelas Abertas
A formação do linguajar iraraense deu-se, como em outras microrregiões
brasileiras, por uma soma de fatores que vão desde o racial até o econômico, pas-
sando pelo místico-religioso. As melhorias do sistema de comunicação provo-
caram o aperfeiçoamento continuado desse linguajar, resultando em um modo
de falar característico de cada micrroregião, formado tanto de gírias locais como
daquelas de uso regional e geral.
O linguajar é, indubitavelmente, uma das marcas registradas da cultura
de um povo.

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Parte IV - Miscelânia
Irará, Moscou & Saudosismo
Situada na linha divisória entre o Recôncavo e a Caatinga, a cidade baiana de
Irará é um primor de exclusividades.
Nos anos 50 / 60 foi considerada a Moscouzinha da Bahia, devido ao ele-
vado número de comunistas iraraenses em relação à pequena população local.
E eram comunistas famosos, como Aristeu Nogueira, Raul Cruz, Fernando San-
tana, Tertuliano Teixeira, dentre tantos outros que agitavam a cena revolucionária
da Bahia de então, dispostos a darem suas vidas para mudar o mundo.
Berço de um considerável número de artistas dos mais variados matizes,
tem, da nova geração, nomes como Zé Nogueira, João Cerqueira, as ceramistas
Nem, Dôli, Dinha, Bel – apenas para citar algumas - e dezenas de outros que pintam,
compõem, cantam, gravam, imprimem, fazem... Até o Dida, goleiro da seleção,
em Irará pôs os pés no mundo.
Da velha guarda, nomes como Tom Zé, Mestre Maçu, Almiro de Oliveira,
Mestre Panta, Maestro Aniceto Cruz, Maestro Xaxá, Ovídio Santa Fé, Fred
Dantas, apenas dão início a uma longa lista.
Terra de Nossa Senhora da Purificação, reza por todos os credos com devoção
e fervor, festejando-os com a alegria própria do bom baiano.
Ser iraraense é uma benção dos céus. Naquele recanto, respira-se um ar espe-
cial, embora quente, à sombra das poucas árvores que a Prefeitura deixa de pé.
Como bem disse um patrício da nova guarda, Roberto Martins, todo iraraense
é de um pai e de uma mãe: Fulano, filho de Beltrana e de Sicrano. Assim, não se tem
dúvidas a respeito de quem se fala.
Ir a Irará, ao menos uma vez por ano, é dever de quem lá nasceu, dever cum-
prido à risca, seja para ouvir as bandas locais, seja para os festejos de São João
ou para as festas da Padroeira, seja para rememorar o passado. Anda-se por
aqueles caminhos, outrora poeirentos, como se fossem as alamedas do Bois
de Bologne. Olha-se o velho sobrado do Cel. Elpídio Nogueira como a mirar
o Coliseu Romano, sobe-se a ladeira da fonte como se fosse a colina do Parthenon.
Iraraense de quatro costados, encontrei, nos meus 20 anos de Fortaleza,
a felicidade tão buscada. Como os demais, vou ao torrão natal todos os anos;
no meu caso, com o saudosismo dos que descem a ladeira da vida com os olhos
mirando para o alto. Lá, na Moscouzinha da Bahia, relembro meu refúgio na ver-
dadeira Moscou, para onde fui, meados dos anos 60, a fim de escapar das garras
ferozes e assassinas dos anos de chumbo. Na minha cidade, sertão seco e pobre,
relembro do aconchegante frio moscovita. Revejo, na praça da Matriz, o Teatro
Bolchói. Pelos caminhos da Mangabeira, alcanço o Parque Górki. No Comércio,
sinto-me na Praça Vermelha, a olhar os muros do Kremlin. Descendo a Rua de Baixo,
estou a caminhar pela Lênine Prospekt. No velho bar do Coronel, bebo vodka

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Janelas Abertas
como o fazia no Beriozka do Hotel Aeroflot. Se entro na Casa de Cultura, estou
a visitar as galerias da Úlitsa Arbat. Apreciando a Filarmônica 25 de Dezembro,
pranteio, como se escutasse as melodias do Coral Púchkin. A velha casa da família
é a datcha dos meus dias de férias, nos arredores da capital da URSS. Inconscien-
temente, murmuro: Za izdaróvie, Továrich. Karachô, Spassibo.
Nesses tempos do ético, social e politicamente correto, em que a revolução
ideológica deu lugar à das palavras, espero que o meu Irará faça jus aos seus
guerreiros do passado, mereça os artistas de hoje e construa uma sociedade mais
justa. Dâ cvidânia.

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Parte IV - Miscelânia
Tenho saudades (Poema em prosa)
Tenho saudades do meu Irará
Da praça em barro batido,
Onde a enxurrada formava riachos
E aguçava a imaginação
De menino.
Tenho saudades, no meu Irará,
Do pé de sabonete, do Lasca-Gato
E dos caminhos do Cajueiro
Por onde andei noites e noites
Quando rapaz.
Tenho saudades da Salvador da Bahia,
Da Baixa dos Sapateiros
E dos cortiços do Pelourinho,
Onde me acoitei
Quando estudante.
Tenho saudades, na velha Salvador,
Da Vila Paulista, no Corta-Braço...
Da Mouraria, da Lapinha e do Tabaris,
Onde gastava o que não tinha
Quando perdido.
Tenho saudades da Moscou, vermelha,
por onde vaguei em tantos invernos.
Moscou dos bosques e berioskas,
Da Rua Tamanskaia, onde me alojei
Quando achado.
Tenho saudades, na vermelha Moscou,
Das aulas onde saciei a sede de dialética;
Das bibliotecas e museus mil,
Onde encontrei a lógica e o raciocínio
Quando consciente.

94
Janelas Abertas
Tenho saudades da Fortaleza minha,
Das ventanias que trazem, no sopro,
O calor da calma;
Do abster-me, calar-me, consentir,
Onde sou.
Dessa Fortaleza que amo
Porque sou amado, eu.
Desse “arre égua” que soa como verso
Não de Camões, mas do Patativa,
Onde me reencontro.
Tenho saudades de mim;
Dos cigarros columbia que conduzia
E não fumei;
Dos discursos que escrevi
Mas não fiz;
Dos panfletos que mimeografei
E distribuí;
Das críticas e autocríticas;
Das pichações, dos pontos, dos aparelhos
Onde fiquei.
Tenho saudades de tudo,
Mas não sei se devo manter
Essa saudade que cresce
E me estimula,
Ou tratar de mitigá-la
Esvaziando-me...

95
Parte IV - Miscelânia
O Ontem e o Hoje
Nem sempre o passar do tempo significa envelhecer. Adaptar-se às novas
realidades não implica, necessariamente, em modificar-se. As cidades são como
suas gentes: amam, choram, pensam, relembram, decoram e se aperfeiçoam.
Cada uma tem seu tempo de avançar, efetuando os contornos que suas gentes
esperam. Em Irará, vê-se o passar das décadas nas fachadas reformadas da Praça
e no arruado que tomou conta dos arredores. A alma da cidade, contudo, soube
manter o que foi bom, aperfeiçoar onde cabia o melhorar. Tudo feito sem desme-
recer o passado e sem amortecer a expectativa do futuro.
Folheemos as páginas da Cidade:
As ferramentas que fizeram os artífices do passado – personagens ines-
quecíveis - afiaram-se para moldar os artistas do presente, desde a pintura
de João Martins, passando pelo cordel de José Aristeu e chegando às cria-
ções de Zé Nogueira.
A cerâmica popular, que se limitava aos amontoados da feira semanal,
atravessou os anos fortalecendo-se como expressão artística e se pôs na
Internet e nas exposições pela competência de Didi, Lita, Dôli e companheiras
outras.
Zequinha silenciou o seu trombone para que Tom Zé tivesse vez, saindo
do casulo de “A Alvorada” para a globalização do CD.
Jota Gomes tirou do ar “A Voz da Liberdade” e calou-se o boêmio Zé Ver-
melho para que, do pranto dos saudosos, nascessem as bandas da baianidade
iraraense.
O abrigo, que obstruía a Praça e zombava do senadinho noturno, cedeu
lugar à Senhora da Purificação – Praça e oratório.
A feira, que se apertava nos quatro cantos da Ruy Barbosa, agora se
espraia pelas terras antes de Amélia e da Mangabeira, numa profusão de
cores, cheiros e vielas.
Se nas noites juninas não mais se aplaude a arte de Manoel Fogueteiro, sor-
vem-se com prazer os licores da terra, ao calor das fogueiras que persistem.
Ainda se viaja com freqüência a Feira de Santana, não pelos suprimentos
de primeira ordem, mas devido às vicissitudes da tecnologia.
Os jovens, antes alheios, insípidos e inodoros, hoje alimentam a vida cul-
tural com “Vinhos, Versos & Sons”.
Os políticos que, no passado, encurtavam os cabrestos a cada eleição, hoje
se curvam á sociedade, que exige contas e esclarecimentos. Ainda possuem
cabrestos, mas esses estão com as cordas puídas.








96
Janelas Abertas
A Festa da Padroeira ainda patrocina arrependimentos e penitências – pou-
cas – mas as multidões de sempre permanecem fiéis ao seu chamado popular.
Os babas de Deucker, Renato, Baraúna, Parrinha, Zé Nilton, Jurandy, Zé
Leão e tantos outros meninos dos Anos 50 / 60 adquiriram direitos autorais
na figura do goleiro Dida.
O velho Mercado sente saudades da velha matriz e das arcadas da Praça,
sofre com as dores de suas rachaduras e goteiras, mas põe fé na cidadania
que o fará permanecer de pé.
Se o Coreto não resgatou seu passado clássico, ao menos sente-se lison-
jeado por estar circundado pelo mundo financeiro.
O dar-se por inteiro de Alberto Nogueira frutificou nos rijos braços que o
seguiram e que mantêm acesas as chamas benditas da “Casa Jesus, Maria e José”.
Se continua a faltar uma rede de esgotos, sobra onde abastecer-se de
canos, fios, portas, remédios e ataúdes. O comércio deixou os limites da Praça
e rumou em direção da Mangabeira.
Os comunistas que patrocinaram a Moscouzinha da Bahia passaram
pelas chagas de Cristo sem perder a esperança, esta renascida na ebulição
política da nova juventude iraraense.
Enquanto os Anos 50 / 60 foram de êxodo para muitos patrícios, os
tempos de hoje são de refluxo para os que buscam a paz do berço natal.
Os caminhos que foram veias e raízes da Cidade de Ontem, multipli-
caram-se num emaranhado de novas ruas e praças, engoliram as terras
de Possidônio, do Bongue, da Cidade Nova, de Antoninho e de João de Bila,
da Salgadeira de Pompílio e do quintal de Éverton, da estrada do Retiro e das
bandas da Mangabeira, formando a Cidade de Hoje. Expansão desordenada
mas vigorosa, a mostrar que as raízes e veias, antes minguadas e curtas, farta-
ram-se no alimento chamado urbis.
Mazelas há e muitas, ao menos para que a Cidade se insira – a toque de
foice e a tiro de pistola – na chamada modernidade dos dias atuais. Contudo,
mazela comum a todos não desqualifica, tão somente iguala e apequena.
Nas cercanias, passadas mais de quatro décadas, Pedrão, Ouriçangas,
Água Fria e Santanópolis franzem o cenho ao olharem a Comarca, ainda
se interrogando sobre o porquê da divisão da pobreza.
Fechadas as páginas da Cidade, a de Ontem nada deve à de Hoje. Essa, por seu
turno, pode orgulhar-se por avançar sem abrir mão da cultura, dos costumes,
da arte, da fé e dos defeitos de suas gentes. Contrariando o poeta Belchior,
poder-se-ia afirmar que, em Irará, continua havendo Galos, Noites e Quintais.










Personagens Inesquecíveis

100
Janelas Abertas
Zé Freitas (10 de julho de 2003)
José Freitas – Zé Freitas Carpinteiro – era um Maestro das Madeiras. Alto,
esguio, solene, sisudo, mas de uma sensibilidade e paciência a toda prova. Foi
o artífice de todos os móveis mais rebuscados da cidade. Seu jeito especial
de trabalhar - detalhes quase despercebidos - davam às suas peças um toque
de nobreza, de antigüidade, de equilíbrio. A maioria das casas iraraenses daquele
tempo teve seus móveis construídos por Zé Freitas – seu concorrente era Mes-
tre Cassimiro, mais rudimentar, porém não menos artista – que a todos aten-
dia como se fossem o único freguês. Não se tratava de uma arte repetitiva, mas
de uma individualidade transportada da necessidade, do desejo, para a dureza
e a resistência da madeira. As peças, trabalhadas com cuidado, tinham pés tor-
neados, puxadores com requintes de clássico, detalhes nas molduras que lembra-
vam uma obra de Rembrandt. Zé Freitas não fazia móveis, fazia arte.
A velha e ampla casa, na esquina da Rua Direita com a Praça da Bandeira, era
seu mundo. Na sala da frente mantinha sua oficina – seu atelier – onde a madeira
reinava. Nada de fórmicas, de compensados, de aglomerados. Era madeira maciça,
da boa, de lei. A cola não passava de mero complemento, para evitar o ranger
das peças justas. O que firmava eram os rebaixos, os encaixes, as cavilhas, tudo
milimetricamente elaborado. Mí Bemol. Dó Sustenido.
O ar sisudo, agravado, talvez, pelo cachimbo que pitava, ao primeiro impul-
so logo se transformava num sorriso aberto, moleque, provocativo. “Menino, me
dá essa bicicleta pr’eu dar uma volta”. “E o senhor sabe montar?”. “Menino, bicicleta
é como comer, se aprende e nunca mais se esquece”. E saía, desengonçado por suas
pernas longas, a voltear pela praça, a rir de sua própria molecagem.
Adoeceu. Doença brava. A família o levou para tratamento em hospital
de Salvador. Certamente o inseparável cachimbo o acompanhou. Ferramentas,
não lhe foi dado levar.
Certo dia, o amigo juvenil foi visitá-lo no hospital. Levou-lhe maçãs. En-
quanto as comia, abriu-se e falou de sua vida, de sua arte. Expressou – lágri-
mas nos olhos – o quanto amava o que fazia. Fazia para viver, mas mais fazia
por amor ao resultado. Pranteando, confirmou que a visita freqüente dos filhos
e parentes aliviavam sua dor e sua solidão. O que não disse, os olhos e as lágrimas
falaram: “O que me mata mesmo aqui, não é a doença, mas a falta que me faz minha
casa, minha plaina, meu formão”.
José Freitas, o Maestro das Madeiras, é um personagem inesquecível
do Irará, Anos 50/60.

101
Parte V - Personagens Inesquecíveis
Jota Gomes (10 de agosto de 2003.)
Jota Gomes – José Gomes – é sinônimo de “A Voz da Liberdade”. Infatigavel-
mente, todas as manhãs, das 09 às 11 horas, todas as tardes, das 16 às 18 horas,
todas as noites, das 20 às 22 horas, lá estava ele: “Prezados ouvintes, no ar “A Voz
da Liberdade”, serviço de auto-falantes da Prefeitura Municipal de Irará”.
A prática de locutor, quem a deu foi a fala diária; o timbre de voz firme,
quem aperfeiçoou foi o cotidiano. As palmas merecidas, essas vinham da satis-
fação popular.
Jota Gomes sentia o gosto do povo. O repertório que escolhia, nos velhos
discos de setenta e oito rotações, era aquele que se queria ouvir: de Angela
Maria a Agostinho dos Santos, de Carlos Galhardo a Orlando Silva, de Augusto
Calheiros a Nelson Gonçalves. Notícias, tirava-as de “ A Tarde” ou de “O Diário
de Notícias”, trazidos na véspera pela velha marinete.
Invariavelmente, em todas as seis horas da tarde de nossas vidas de então, Jota
Gomes nos lembrava a Ave Maria, alternando o clássico de Gounod com o poético
de “cai a tarde tristonha e serena...”.
Manhãs de domingo. Matinal boêmio. Os enamorados enlevavam-se com
as dedicatórias lidas por Jota Gomes. Lia-as com tal paixão, que parecia terem
sido por ele escritas para seus próprios amores.
Dia de festa. Praça cheia. Povo alegre. “A Voz da Liberdade” fazia tilintar copos
ao som de “ um dia, busquei um porvir risonho...”. Era Jota Gomes enchendo nossos
corações de melancolia, em meio aos festejos da Padroeira.
Jota Gomes se foi, certamente para cuidar da locução de alguma rádio celes-
tial, personagem inesquecível que é do nosso Irará - Anos 50/60.

102
Janelas Abertas
A Trinca de Ases (21 de junho de 2002.)
Retrato mais que perfeito da raça brasileira, a Trinca de Ases do nosso folclore
torrão colocava na praça um Irará sonoro, moleque e colorido. Só Chumbo, João
Chagas e Germino Curador faziam nascer favos de néctar das taças de fel da dura
vida da nossa gente.
O som do agogô era clássica melodia nas ágeis mãos de Só Chumbo e de seus
companheiros de bloco. O ritmo marcado como tilintar de guizos punha o povo
nos passeios para ver passar a festança. As poucas palmas não eram malquerer,
antes timidez de um povo que preferia o sorriso maroto e aberto como sinal
de aprovação. Palmas era coisa de palácio, de rico, de casa grande.
O baloiço da burrinha tornada viva pela alegria de João Chagas mostrava
a brejeirice da nossa gente morena. Era impossível permanecer estático ao passar
do bloco. A vara que açoitava a burrinha sinalizava como uma descarga elétrica
que dava vida à alegria. Maestro, batuta e povo em uníssona melodia.
O invisível alvo da flecha e arco de Germino Curador e sua “tribo” era o sub-
consciente de cada um de nós a rememorar, ali, nossas origens caboclas. Nos
cocares e nas tangas coloridas, o artista punha a fermentar a bravura de uma raça
jamais subjugada pelos poderosos e pelos falsos vendedores de indulgências.
Forasteiro que fosse, reconhecia naquela Trinca de Ases a quintessência
do povo brasileiro. Sem porém ou vacilação, vendo-se aqueles menestréis, podia-se
conceber as razões mesmas da nossa existência miscigenada. Se mensurável fosse
o espetáculo, poder-se-ia dizer que a Trinca de Ases ganhava o duro jogo da vida
contra a miséria, a tristeza e o esquecimento. Aquele substrato iraraense - agogô,
burrinha, arco-e-flecha - representava a explosão de um povo simples, mas cons-
ciente de seu papel na formação da raça pátria.
Não há como não verter saudades quem se recorda da Trinca de Ases, cada um
deles personagem inesquecível do Irará alegre e brincalhão dos anos 50/60.

103
Parte V - Personagens Inesquecíveis
João Pechincha (10 de maio de 2004.)
João Ferreira da Silva – João Pechincha – era, tal e qual Fernão Dias Paes
Leme, um caçador de esmeraldas. Seu rio das velhas eram as ruas de Irará. Suas
esmeraldas, incrustadas em sua mente, residiam na bandeira do socialismo
e no ideário comunista. Aventureiro como um dom quixote enfrentando os moi-
nhos de vento do capitalismo, tinha como espada a palavra desamedrontada.
As páginas de “O Momento” eram o seu melhor sancho pança.
Pechincha fez a revolução à sua maneira, na lucidez e na coragem fermen-
tadas pela boa e patrícia “Dois Leões”. Homem do povo, escolheu por companhia
o lazer das massas desvalidas e esperançosas, o” jogo do bicho”, naqueles tempos
sadio e confiável. Pensava mirando o encaracolar das baforadas do forte “Astória”,
seu “papirochka” brasileiro.
Enfatiotado de mescla e xadrez, quando Pechincha cismava que era dia de bra-
dar, apurava o vocabulário e marchava pela Rua de Baixo desafiando os pode-
rosos de então: “Abaixo a UDN e Elísio Santana... Viva a União Soviética, Luís Carlos
Prestes e o Partido Comunista”. Seus punhos fechados e braços erguidos eram a foice
e o martelo, símbolos do ideário sonhado. Seu vozeirão, que fazia tremer os rea-
cionários e covardes, levava esperança aos desvalidos.
A banca de “jogo do bicho” Pechincha transformou no contraponto dos pobres
para as rodadas de bacará da falsa e decadente elite que carteava a portas fecha-
das. Sua visão de povo o fez amar a “Dois Leões”. Nela encontrava vocabulário
para desafiar a embriaguez dos ricos pela usura, festejada à base de “White Horse”
falsificado. Na sua farra de palavras, estava Pechincha concorde com Lênin
e Trotsky quando estes, instigados por boa vodka caucasiana, bradavam palavras
de ordem nas ruas moscovitas dos anos cinco.
João Pechincha tinha como tzar o capitalismo, como líder o Cavaleiro da Espe-
rança, como motor revolucionário a luta pela vitória do socialismo. Comunista
de primeira hora, seu marxismo foi forjado no fogo quente da vontade de vencer,
tendo como bigorna o anseio dos que vêm de baixo.
1961. Yuri Gagarin viaja pelo espaço. João Pechincha, rádio ao pé do ouvido,
sai às ruas: “A Bandeira Vermelha foi hasteada no reino dos céus. Viva o Povo Soviético,
viva o Comunismo”. Nada mais de acordo com a então “Moscouzinha da Bahia”.
Pechincha se foi, mas as sementes oriundas da boa cepa de suas palavras estão
a germinar e, independente de eventuais retrocessos - comuns ao longo da História
- hão de produzir os frutos próprios da boa semeadura.
Já não se vêem comunistas como João Pechincha, personagem inesquecível
da “Moscouzinha da Bahia ”, Irará anos 50/60.

104
Janelas Abertas
Dodó da Quitanda (20 de junho de 2004.)
Apenas duas portas a meio quarteirão da Praça do Comércio, a quitanda
de Dodó era o refúgio certo dos que somente tinham dinheiro no fim do mês.
Na “caderneta” sempre havia espaço para mais um fiado.
O comércio de secos e molhados na praça de Irará dos anos 50/60 era uma
escada de três degraus. No topo situavam-se os armazéns, reduto fechado
de Piroca Brejão e Alfredo Franco, atacadistas e varejistas da pesada. No meio
estavam as “vendas”, uma quase exclusividade de Lúcio, Manoelzinho e Nazi.
As quitandas fechavam a escada, com destaque para a de Dodó, na Rua de Baixo.
Afável e de boa conversa, Dodó tinha nas “cadernetas” de fiado o seu filão
de ouro. Bons tempos aqueles em que crédito se obtinha pelo conhecer e se
relacionar e não pelo tamanho do patrimônio. Fim de mês era certo que todos
quitavam a “caderneta”, para “pendurar” uma nova conta no dia seguinte.
Sábado. Dia de feira em Irará. O mercado enchia de tabaréus a vender sua pro-
dução; os armazéns lotavam de compradores no atacado e no varejo; mercando
de louça a charque e peixe seco, as “vendas” despejavam gente pelos passeios. Nada,
no entanto, era comparável ao movimento na quitanda de Dodó. Ali se encon-
travam os menos favorecidos, aqueles que sabiam poder fazer a feira para pagar
depois – quem sabe, no sábado vindouro, se a produção de farinha tiver boa saída.
“Menino, vai lá na quitanda de Dodó e peça meio quilo de toucinho, daquele fresco
que só ele vende. Diga prá botar na caderneta”. Era ir e voltar com a encomenda.
Fim de tarde, boca da noite. A quitanda fechava as portas e Dodó, calmo
e tranqüilo, descia a Rua de Baixo a caminho de sua casa, aquela de janelas
envidraçadas, a poucos passos do ponto da labuta. Ia dormir o sono dos
bons e justos.
Dodó da quitanda, aquele que confiava no povo humilde, é personagem
inesquecível do Irará – anos 50/60.

105
Parte V - Personagens Inesquecíveis
Euclides Badaró (26 de junho de 2004.)
Dizia-se que fora comerciante de posses lá pras bandas de Água Fria. Que
sofrera uma grande decepção amorosa e que esta o fizera perder todo o seu
patrimônio e passar a vagar, como se perdido estivesse. E estava.
Não há como negar: a dor do amor é o maior dos sofrimentos. Para ela
o único remédio é o devaneio. Esse terrível mal era o sofrer de Euclides.
O populacho, fazendo pouco da sua horrível dor, agastava-o, atormentava-o,
instigava-o aos brados de “Badaró! Badaró!”.
Euclides, tido como “o louco”, reagia como se louco fosse, não pelo amor
perdido, mas pela provocação diuturna. Mordia os próprios braços, baloiçava
o cajado de pau d’arco que sempre trazia consigo e, em desabalada carreira, punha
a fugir a turba inconseqüente.
Fosse Euclides um camponês russo dos meados do Século XIX e, certamente,
teria sido imortalizado pela forte escrita de Dostoiévski. Quando lhe davam
trégua, andava calmamente pelas ruas do Comércio, vestido quase a rigor – sapatos
engraxados, calça com vinco firme, camisa de mangas compridas abotoada até
o colarinho e, nos dias de frio, paletó bem passado. Conversava, enquanto tomava
a “pinga” que os “vendeiros” lhe serviam. Sua conversa não era a de um doido, mas
a de um coração despedaçado. Dos olhos tristes brotavam lágrimas, indepen-
dente do tema. Sua lógica ia além do entendimento daqueles pobres mortais que
o escutavam. Estes sorriam, não de seus devaneios, mas por verem em Euclides
um espelho vivo no qual suas imagens de covardes estavam refletidas. Euclides
sim, era corajoso, não escondia suas desgraças e sentimentos.
Morder o próprio braço era, para Euclides, a vã defesa contra a intolerância,
a desumanidade, a incompreensão. Na verdade, havia mais juízo no “louco”
Euclides Badaró do que naquela turba que o insultava, tal e qual o povo de Jerusa-
lém no julgamento de Cristo.
Euclides Badaró, em sua amargura, solidão e devaneios, é um personagem
inesquecível do Irará – Anos 50/60.

106
Janelas Abertas
Professora Aurelina (28 de junho de 2004.)
Seis horas da manhã. “Apronta-te, menino, ou vais chegar atrasado na Professora
Aurelina”. Esse monólogo imperativo era palavra de ordem em várias casas irara-
enses nos cinco dias da semana, durante anos a fio.
Professora Aurelina, autodidata e mestra particular não reconhecida pelo
sistema público de educação daqueles tempos, ministrava aulas a alunos do pri-
mário - dez pela manhã e dez à tarde - em sua humilde casa da Rua da Quixabeira.
A pontualidade britânica, conjugada com o rigor da disciplina, fazia contraponto
ao conhecido saber da mestra. As poucas vagas eram disputadas como numa
corrida de obstáculos, na qual o vencedor é aquele que chega na frente..
A ampla mesa na sala de jantar era, para quantos a freqüentavam, uma experi-
ência com características tanto de temor quanto de repetida expectativa. Sabia-se
que ali se aprendia, mesmo que a experiência fosse dolorosa. E era, ao menos
para os que faziam corpo mole.
Com a Professora Aurelina estudavam-se os quatro primeiros anos dos cinco
que compunham o curso primário de então. O quinto era obrigatório ser feito
em escola pública ou particular reconhecida, para que o aluno pudesse se sub-
meter ao exame de admissão, condição sine qua non para ingressar-se no ginásio.
Para matricular-se no quinto ano primário das Escolas Reunidas General Juracy
Montenegro Magalhães, o aluno da Professora Aurelina tinha que submeter-se
a uma espécie de vestibular, a fim de se aferir os seus conhecimentos e ver se
eram condizentes com o quarto ano primário. Não se sabe de candidato que não
tenha logrado êxito.
“Um B com A, B a BA ... Três vezes Oito, Vinte e Quatro...”. O ABC e a Tabuada
eram a base do aprendizado iniciante, a ser testado na lousa de ardósia e no quadro
mais que negro, de tão temido que era. Errar era bolo na certa, aplicado pelo
aluno mais forte da classe, nem sempre o mais estudioso - por isso mesmo,
o bolo era caprichado, numa espécie de inveja e vingança pessoal. Às vezes, a longa
régua de madeira acertava o braço de quem tagarelava durante a aula. Tortura!?.
Não, ensino do mais alto valor, aplicado conforme as teorias de então. Com
o tempo aprendia-se que o estudo e a dedicação eliminavam o castigo, dando lugar
à satisfação. Aliás, os castigos físicos aplicados na sala de aula da Professora
Aurelina jamais chegaram aos pés dos que se sofria nos internatos da época.
Nos dias de tabuada - anunciados com antecedência para que houvesse pre-
paro - formava-se a roda e iniciava-se a ladainha: “Dois vezes três ... três vezes
quatro... quatro vezes cinco...” Quem errava tomava bolo e saia da roda. Poucos
conseguiam chegar à casa dos Nove, nos “nove vezes nove...” Os que a alcançavam,
recebiam um elogio público e um bilhete para os pais os acompanhava na volta
para casa.

107
Parte V - Personagens Inesquecíveis
Fora das horas de aula, a Professora Aurelina era uma meiguice só. “Minhas
crianças”, era como se referia a seus alunos, numa entonação própria de Mãe
e Mestra amorosa. No dia de seu aniversário, todos lhe levavam presentes
- e havia bolo, dessa vez doce. O “parabéns pra você” era entoado com alegria
e satisfação, pois a mestra já se tornara uma segunda mãe.
Um dia, Leontino Barbeiro entrou na vida e na casa da Professora Aurelina
e ela se foi de nossa cidade, não sem antes registrar-se na memória de todos
como personagem inesquecível do Irará – Anos 50/60.

108
Janelas Abertas
Miguel Paes Coelho, o Crente (28 de junho de 2004.)
Na mesmice católica apostólica romana da sociedade iraraense dos anos 50 / 60,
Miguel Paes Coelho foi a máxima figura dentre as exceções. Professando seu
credo com o destemor de um Lutero reformista, não arredava mãos de sua Bíblia,
companheira e inspiração. Muitos, ao vê-lo aproximar-se, afastavam-se murmu-
rando: “ Lá vem Miguel e sua pregação de crente...”. Esses, não mais que presunçosos
filhos pródigos do grande rebanho do Senhor, com seu repúdio, apenas perdiam
a chance de beber – nas entrelinhas da fala religiosa – da água rica e profícua
do saber que Miguel trazia em si.
Entre um e outro versículo, entre Samuel e Ezequiel, um Miguel Paes Coelho
pleno de cultura e diversidade transmutava o tradicional e dogmático discurso
religioso para as verdades da vida cotidiana, doando aos que tinham a humildade
de ouvi-lo uma porção minúscula do seu imenso saber. Era como se as citações
bíblicas agissem como uma mágica que, ao “abre-te sésamo”, fizesse jorrar conhe-
cimento e cultura por horas a fio.
Miguel sabia encontrar, nos escritos atribuídos aos profetas, a senha certa
para fazer explodir a barreira da resistência que se interpunha em seu caminho,
naquele universo católico apostólico romano sectário e mesquinho.
Como a maioria dos homens do seu tempo na nossa provinciana Irará,
Miguel Paes Coelho usava chapéu, de baeta e marca prada. Contudo, a diferença
entre Miguel e os demais usuários residia no ato de tirar o chapéu da cabeça.
Enquanto os demais o faziam para aliviar o calor e coçar-se - ações comezinhas -,
Miguel Paes Coelho o tirava ao mudar o discurso – sair do dogmatismo religioso
e penetrar no pragmatismo do conhecimento abrangente e profuso. O gesto fun-
cionava como uma saudação ao que iria brotar daquela fonte inesgotável que
se escondia sobre a baeta marca prada.
Escutar os ensinamentos do crente Miguel equiparava-se a consultar a Grande
Enciclopédia Delta Larousse.
Miguel Paes Coelho é, inquestionavelmente, personagem inesquecível do
Irará – Anos 50 / 60.

109
Parte V - Personagens Inesquecíveis
Raul Cruz, o Delegado Comunista (29 de junho de 2004.)
“Moscouzinha da Bahia”, o Irará – Anos 50/60 teve – negativa da contradição
– o notório comunista Raul Cruz como Delegado de Polícia. O cargo era político,
o que demonstra o peso da nomeação. Raul Cruz delegado não desmentiu nem
desmoralizou Raul Cruz comunista. Sua fé revolucionária e sua dialética marxista
-leninista foram as ferramentas que forjaram sua atuação como mandatário
da Lei e da Ordem.
Raul Cruz, comunista da primeira hora, era o líder do Partido na “Mos-
couzinha da Bahia”. As reuniões que chefiava na ampla sala de sua casa situada
na esquina da Rua Direita com a Praça da Matriz, sempre tinham início com
a leitura e discussão de clássicos do marxismo-leninismo, que brotavam fácil
da sua biblioteca tantas vezes encaixotada ao primeiro bafo de repressão.
Senadinho da Praça do Comércio, oito horas da noite. Raul Cruz, o comunista,
era o mediador destemido das acirradas discussões entre udenistas no poder
e pessedistas aguardando o poder. A lógica e a dialética do seu raciocínio marxista-
leninista lhe permitiam conviver com os opostos e ser por eles respeitado. Ali
via-se e ouvia-se Raul Cruz acrescentar conteúdo ao debate inútil dos que nada
tinham a dizer. Afora ele, os demais apenas pensavam nas próximas eleições
e, quiçá, na alternância do poder. Udenistas e pessedistas eram farinha do mesmo
saco. Imperceptível e sutilmente, Raul Cruz dava rumo ao vazio de idéias e fazia
brotar semente de bruta pedra.
O “Bongue” era seu refúgio semanal. Lá, embalado pelo mugir pachorrento
de suas vacas, assentado em duro assento, meditava a ler seus clássicos, prepa-
rando-se para as lições que ministraria a seus fiéis camaradas, lições que nesses
calaram fundo, tornando-os capazes de sobreviver ao ocaso da “Moscouzinha
da Bahia” sem perder o espírito revolucionário.
Raul Cruz é, no seu misto de comunista e delegado, personagem inesquecí-
vel do Irará – Anos 50 / 60.

110
Janelas Abertas
Alberto Nogueira (30 de junho de 2004.)
A casa grande ainda domina a Praça, embora não mais abrigue senhori-
tas a vigiar o movimento pelas frestas das gelosias. Nos seus salões não mais
se faz política e as cores das paredes rememoram os anos idos. Hoje, ao ver-se
a casa grande - vazia mas imponente - recorda-se o Coronel Elpídio, patriarca dos
Nogueira, e logo vem à mente que as crianças daquela casa cresceram sabendo
que o mundo pode ser transformado pela fé revolucionária, pela honestidade
lídima e pela humanidade perseverante. O Coronel Elpídio Nogueira não era temido,
era respeitado. Seus herdeiros não o fizeram por menos.
Alberto Nogueira é mais que sinônimo de humanidade, humildade e per-
severança; Alberto Nogueira é o Pai dos Desvalidos. No patrimônio da família
instalou o “Abrigo dos Pobres”, nos tempos em que tais empreendimentos não con-
tavam com o apoio de ONGs nem obtinham deduções no imposto de renda.
A motivação de Alberto Nogueira era mitigar o sofrimento dos desampa-
rados e, para isso, quase que esmolava mensalmente de porta em porta. Trans-
formava, não se sabe como, os parcos recursos que arrecadava em meios para
prover teto, alimento, ungüento e alegria aos que punha sob sua proteção.
“Anda, come teu pão com alegria e bebe contente teu vinho, porque Deus se agra-
dou de tuas obras.” (Salomão, Eclesiástes 9,7). Nada poderia se aplicar melhor
a Alberto Nogueira do que a citação do sábio profeta. No entanto, ele era uma tris-
teza só – circulava calmo, mas taciturno e pensativo, saindo de uma porta com dois
tostões para arrecadar não mais que um cruzado na porta a seguir. Fazia as contas
e via que a sopa da semana teria que ser menos encorpada. Certamente, daí
vinha a sua profunda, mais que profunda altahman.
“O que devo fazer para sensibilizar essa gente, meu Deus, para que aprendam
a dividir!?” devia pensar Alberto. Para cada gesto de apoio e compreensão, sobra-
vam alguns de hostilidade e desapreço. No silêncio do seu quarto de dormir,
certamente se dizia: “Esta gente não conhece o dito de Salomão: “Mais vale visitar
a casa em luto do que a casa em festa, porque ali o desfecho de cada homem vem à cons-
ciência de quem vive”. (Salomão, Eclesiástes 7,2).”. No dia seguinte, no entanto, ao ver
seus desvalidos, Alberto Nogueira perseverava na sua faina por humanidade.
Alberto Nogueira tratou leprosos, medicou tísicos, abrigou mendigos, socorreu
abandonados, mitigou sedentos, amparou inválidos, doou e, por inteiro, se doou.
Por se ter doado tanto, Alberto Nogueira é, para os que têm consciência e
memória seletiva, personagem inesquecível do Irará – Anos 50/60.

111
Parte V - Personagens Inesquecíveis
Manoel Fogueteiro (23 de junho de 2004.)
Diz o poeta que “Manoel Fogueteiro era o deus das crianças...”. E era. Nosso
Manoel Fogueteiro, tenda instalada nos finalmente da Rua de Baixo, em frente
ao sítio dos Portela, bem fez jus ao verso do poeta.
A tenda, de três portas, ficava a poucos passos da sua ampla casa avarandada.
Lá pilava-se terra, socava-se pólvora, serrava-se bambu, encerava-se cordão, cortava-se
papelão, faziam-se embrulhados, torcidos e canudos, os ingredientes vitais para os fogos
de artifício artesanais.
Fins do mês de maio. A garotada começava a quebrar seus mealheiros
de barro e contar os tostões a ver o que podiam adquirir de fogos para o São João
que se aproximava. Havia-se de comprar logo no início de junho, antes de os
estoques se acabarem. Ia-se à tenda sondar os preços e olhar o sortimento. Quase
sempre ganhava-se umas amostras “pra ver como é bonito...”.
E bombinhas, e espirais, e traques, e chuveiros, e estrelinhas, e buscapés, e espa-
dinhas, e chuvinhas, e fósforos de cor, e... . A variedade satisfazia a todos os gostos
da criançada. Para os grandes , ia-se de foguetes, espadas e bombas de bater, além
dos morteiros. O que não havia era festa sem fogos, São João e São Pedro sem
a marca de Manoel Fogueteiro.
Um dia a tenda explodiu, como costuma acontecer em quase todos os
fabricos artesanais de fogos de artifício. O cronista já não mais se encontrava por
perto, mas soube que Manoel Fogueteiro partiu com a sua tenda, certamente para
ver, do céu, como é triste noite de São João sem suas maravilhas..
Manoel Fogueteiro foi, de fato, “o deus das crianças” e é personagem inesque-
cível do Irará – anos 50/60.

112
Janelas Abertas
Lulu Tipógrafo (23 de junho de 2004.)
Aquela casa de janelas altas na Rua Direita escondia um mistério que o
menino queria descobrir. Diziam que ali morava Lulu Tipógrafo, o mágico que
fazia as palavras se colarem ao papel, para o povo ver e ler. Um dia, ousou:
“Ô de casa!!”. “Pode entrar”. Entrou. A porta semicerrada dispensava vacilações.
Corredor a dentro, deu-se de frente com o mágico em sua cadeira de rodas.
Deficiente das pernas, Lulu recorria a apoio mecânico para reduzir o esforço
físico. “Entre, a oficina fica lá no fundo”. Ele sabia que fora a curiosidade quem
trouxera o menino, como já ocorrera a outros.
Naquele mundo novo, o menino descobriu que as letras eram de chumbo,
que se agrupavam em réguas para formar palavras e frases, essas encaixadas
a tábuas de apoio para a composição de textos. O menino viu que as letras eram
tateadas – não se olhava o tipo, escolhia-se ao toque com a ponta dos dedos, tal era
o manejo e a prática. O menino, que já lera sobre Gutemberg, transportou-se para
séculos atrás, no velho continente, ao ser apresentado à prensa de impressão
manual, na qual se punha a composição e se imprimia folha a folha, na marra
e no aperto. Ainda bem que Lulu Tipógrafo não possuía linotipo. Assim, o menino
tinha o que apreciar.
Lulu Tipógrafo era o impressor, o propagandista, o jornalista de Irará. De sua
tosca prensa gutemberguiana, saiam proclamas e convites de casamento, infor-
mes sobre missas de sétimo dia, reclames de ervas e chás, anúncios eleitorais e,
supra-sumo do melhor, jornal semanário – iraraense da gema - vendido de porta
em porta e disputado como ouro em pó.
O menino cresceu, foi-se da cidade, trabalhou em jornal, escreveu e distri-
buiu panfletos, pichou muros e fez mundo, mas não esquece a porta semicerrada
e a oficina de Lulu Tipógrafo, personagem inesquecível do Irará – anos 50/60.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis
Joana das Bonecas (10 de dezembro de 2003.)
Numa casinha simples da Rua de Baixo da pequena Cidade de Irará, Estado
da Bahia de um país de nome Brasil, residia uma Fada, daquelas de estórias
encantadas. Sua varinha mágica eram agulha e tesoura.Com essas ferramentas
comuns, a fada fazia multiplicar figuras de pano e cores, para o agrado e a alegria
das crianças da cidade.
Essas simples linhas já seriam suficientes para descrever o papel de Joana das
Bonecas na vida das meninas dos anos 50/60 de nossa terra, não fosse a neces-
sidade que o cronista sente de registrar a hospitalidade humilde mas profunda
com que essa Fada verdadeira recebia suas visitas, compradores ou não, crianças
ou adultos. A todos mostrava suas criações, tocando-as com meiguice e carinho,
como se o fizesse a um recém nascido.
Era difícil visitar Joana, ver suas obras e não adquiri-las. As meninas ali che-
gavam com olhos faiscando de curiosidade. Ao verem as bonequinhas, o faiscar
tornava-se marejar, um sorriso se abria e a voz embargada e imperativa murmu-
rava: “Mamãe, eu quero uma...”.
Festejos da Padroeira. Nas noites de novena, a festa era na Praça. Lá havia
de tudo: mesas de cisplandim, cercados pra jogar argola, barracas de doces, até leilão.
A algazarra infantil indicava onde estavam as meninas: cercando a mesinha
humilde de Joana das Bonecas, a expor suas obras primas, irmãs entre si.
Pela satisfação que proporcionou a nossas irmãs, pelo milagre de multipli-
car - com sua arte inigualável de pano e cores - os sorrisos infantis de nossa terra,
Joana das Bonecas é personagem inesquecível do Irará – anos 50/60.

114
Janelas Abertas
Valfredo Sapateiro (14 de janeiro de 2004.)
Salvador da Bahia, terra privilegiada. Terra de magarefes nas Sete Portas,
de ourives na Rua da Misericórdia, de alfaiates na Rua Direita da Piedade, de pin-
tores no Terreiro de Jesus. Ah, sim, de sapateiros na Baixa dos Sapateiros. Eram
tantos e tão conhecidos, que a longa via ainda ostenta o nome nos dias atuais.
Tão somente por ter em si a oficina de Valfredo, a Rua do Canta Galo, em nossa
Irará, deveria chamar-se Rua do Sapateiro, ficando Canta Galo como apelido. Val-
fredo Sapateiro fez história com sua oficina, onde tantos aprenderam o nobre ofício.
Um dos seus mais renomados auxiliares foi Zequinha, o Rouxinol dos Metais.
Sapato de vaqueiro e fazendeiro, sapato de menino e menina, sapato pra
senhor, sapato pra senhora, até os de casamento a oficina de duas portas produzia.
E chinelo, e cinto, e alpercata. Também havia botas, tanto as de cano longo como
as de cano curto. No espaço da frente, balcão de rústica madeira cercava pratelei-
ra recheada. Ali, na mesinha de centro, Valfredo aguardava a clientela certa, tão
logo pronta a encomenda. A sala de “serviço”, no fundo, fazia-se apresentar pelo
vozerio de mestres e aprendizes.
Couro prensado e colorido, cola regulada, tesoura afiada, agulha e sovela,
máquina de costurar, apoio para bater sola e salto, cordão devidamente encerado,
rebites e ilhoses, cadarços com extremidades metalizadas, pregos de pontas rom-
budas, eis os ingredientes da receita. A mistura perfeita dependia da qualidade
do mestre. Valfredo era O Mestre, que o digam os pés bem calçados que tão bem
nos conduziram em nossa juventude pelas ruas da cidade natal.
Artesão e mestre de qualidade e paciência ilimitada no tolerar as exigências
da clientela, eis o retrato fiel de Valfredo Sapateiro, personagem inesquecível do
Irará – anos 50/60.

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Parte V - Personagens Inesquecíveis
Zé Estrela, o Funileiro (22 de fevereiro de 2004.)
Quem não teve, nos idos anos 50/60, um fifó para alumiar?? Zé Estrela o fazia.
Quem não quis por bica em casa de eira e beira?? Zé Estrela a montava. Qual dona
de casa não ralou coco em ralador de flandre?? Zé Estrela o fornecia. Quem,
fazendeiro ou vaqueiro, não pôs os pés em estribo de zinco?? Zé Estrela o fabri-
cava. E fabricava bandeja e forma para as doceiras, baú para as jóias das distintas
senhoras, canecos para a medição dos grãos, mealheiro redondo e quadrado para
a guarda dos trocados da criançada, funil de bico reto e bico curvo para as bode-
gas. Até alça de zinco para caixão de pobre, Zé Estrela se dispunha a fazer.
Ferramentas, eram poucas mas imprescindíveis: moldes em madeira de lei,
tesourões de cortar chapa, talhadeiras e furadores, martelos de bola e dente, ma-
cetes de madeira para desempeno, serra de arco reto e arco curvo, aplicadores de
rebite e o ferro de soldar, daqueles de aquecer em brasa de carvão e calibrar em
solda derretida na telha.
Em sua oficina de três portas na Rua Manoel Julião, Zé Estrela ditava o ritmo:
“Ver o sortimento, separar os moldes, cortar as folhas de zinco e flandre, traba-
lhar rápido que o sábado vem aí, e as encomendas precisam ser entregues”.
Era prazeroso avistá-lo todas as manhãs, a vir de bicicleta de seu sítio lá pras
bandas do Cruzeiro da Queimada, para encarar a labuta do dia sorrindo para quantos
o visitassem, embora lhe doessem os calos do rijo batente.
Na oficina, o trabalho era de sol a sol, num cortar, moldar, bater e soldar
sem fim, criando peças dignas de museu, não pela idade, mas pela perfeição e
originalidade.
Zé Estrela, Artesão, Artista e Funileiro, é personagem inesquecível do Irará
– anos 50/60.

116
Janelas Abertas
Olavo, o Ferreiro (15 de fevereiro de 2004.)
A forja atiçada lança faiscas no ambiente. O bater do martelo na bigorna se
faz ouvir. O vizinho comenta: “Olavo já chegou e ainda não são 7 horas. Eta homem
danado! Nem vi o Lito passar”. É que Lito, estudando na parte da manhã, somente
comparecia ao batente após o almoço.
Primeiro no velho galpão da Rua do Canta Galo, depois nos fundos do cine-
ma, esquina da Rua Manoel Julião com a Rua Nova, a oficina do ferreiro Olavo era
uma azáfama nos seis dias da semana. O domingo servia para descansar o braço
pro rojão da segunda entrante, “que ninguém é de ferro” embora no ferro fosse o
trabalho.
O forjado contava com a forja de fole de couro. O fundido, com cadinho rústico
protegido por bom barro. Forjado e fundido era a base do trabalho no quase ateliê
de Olavo Ferreiro.
Do estanho derretido e lançado nos moldes e do bater do martelo no ferro
em brasa acostado à bigorna, nasciam peças pra fazenda e pra cidade. Aldrabas,
rebitões, estribos, argolões, dobradiças, ferrolhos, argolas de brida, ganchos, tra-
vas de cancela, tudo aparado a milímetro. O limar, lixar e polir incessantes, após
a esfriada no vento da porta, faziam as peças brilharem como espelho. Tudo pura
arte, sem tirar nem por.
“Zé, chame um carregador pra levar essa caixa de enxadas lá no Olavo, pra bater.”.
Bater enxada era ajustar a ferramenta nova a fim de dar-lhe a inclinação correta
para o trabalho. Forja, bigorna e martelo ficavam conhecendo o instrumento
do tabaréu. Na tarefa de bater se incluía amolar – “Um pouco, bem pouco, que en-
xada muito afiada corta o pé do lavrador”. Na oficina também se amolava foice,
estrovenga e machado, esses sem bater mas afiados a gosto.
O cinema, aquisição tardia, apenas foi um desvio de rota daquele empreende-
dor sertanejo, sisudo e trabalhador como boi do coice em canga de carro. O depósito
de bebidas voltado pra Rua de Baixo serviu, tão somente, para facilitar o acesso à
oficina no velho galpão.
Pela modéstia – própria de sua profissão e ainda mais dos verdadeiros mes-
tres –, pela perseverança e pela profunda fé que devotava ao trabalho, o artesão,
ferreiro e artista Olavo é personagem inesquecível do Irará – anos 50/60.

117
Parte V - Personagens Inesquecíveis
Zequinha, o Rouxinol dos Metais (25 de março de 2004.)
Dia da Independência. Os escolares enfileirados aguardavam a hora da mar-
cha: assim que a banda chegasse. A Filarmônica 25 de Dezembro dava o tom e o
acorde do festejo patriótico. Os músicos, todos de primeira, pareciam em sim-
biose com seus instrumentos, fossem de sopro ou de repique. O destaque ficava
por conta do trombone manipulado com maestria por Zequinha, sapateiro, mú-
sico e rouxinol.
Festa da Padroeira. Missa no Cruzeiro da Queimada. A folia começava na Praça,
afunilava pela Rua de Baixo e partia em arrelia para o Largo do Cruzeiro pelo ca-
minho de João de Bila. Animando os foliões, a banda de música atacava de “arriba
a saia peixão. Todo mundo arribou, você não”. O tom estava no sopro do Rouxinol,
vibrante e forte.
Teclados é a elite da música, dizem os especialistas; cordas é coisa de boêmio,
afirmam os da madrugada; tambores e caixas são de folclore, repetem os con-
servadores; flautas e fagotes cheiram a coro de igreja, insistem os desentendidos;
metais só em banda escolar, corroboram os pretenciosos. Todos esses pseudo crí-
ticos são desprovidos de equilíbrio e bom ouvido, são incapazes de perceber que
a música não discrimina, mas interage; que não tem cor, nem raça, nem credo.
Contudo, há que se afirmar – nem que seja para confirmar o dito – que metais são
metais, tal e qual brilhante em colar de safiras e rubis.
No universo musical de então, Zequinha foi o Rouxinol dos Metais, o sopro que
transmutava a melodia em alegria, a competência que transformava escala de dó
sustenido a si bemol em frêmitos de prazer.
Zequinha, sapateiro, músico e Rouxinol dos Metais, é personagem inesque-
cível do Irará – anos 50/60.

118
Janelas Abertas
Zé Petu e o Bar (15 de abril de 2004.)
Irará –anos 50/60 possuía bares em praticamente todas as ruas, nem que
fossem primos, como bodegas e depósitos. O maior era o da Rua Direita, em frente
da barbearia de Nelson Guarda e vizinho da antiga Farmácia Confiança. Per-
tencia a Braúlio Miranda, antes fora de Manoelzinho da Paixão e, mais pra trás,
de Everton Martins. Lá tinha sinuca e bilhar dos grandes e mesas para o carteado.
Na esquina oposta da Rua Direita com a Praça do Comércio, havia ainda o bar
de Nelson Coronel – danado de bom - esse com filial na Rua da Quixabeira.
Apesar das atrações dos dois maiores e dos primos bodegas e depósitos,
os bares que mais fizeram história foram o de Henrique, na Praça do Comércio,
vizinho da loja de Everton, e o de seu irmão, Zé Petu, na Rua Manoel Julião.
Zé Petu montou seu bar de três portas em casa de estilo colonial – eira, beira
e arcadas. Dois ambientes bem distintos possuía o negócio. O da frente, com
mesas pra servir bebidas e olhar pra rua. Ver o movimento era estimular a ima-
ginação e atiçar o gosto pra tomar mais uma, antes da saideira. Nos fundos,
havia amplas mesas, disputadas pelos que somente sabiam bebericar ao bater
do carteado. Sempre cheio, os fundos desbragava risos, gargalhadas mesmo, quando
alguém tinha ases pra ganhar do destino de perder.
Além do variado estoque de bebidas – de cana mineira a jurupinga fermentada
-, Zé Petu servias refrescos – de maracujá, cajá e limão . Sua loura era sabida como
a mais gelada da cidade. Numa disputa firme com o de Nelson Coronel, no bar
de Zé Petu tinha sanduíches e outras iguarias, a maioria vinda de casa. Era entrar
e pedir daqueles de bife batido, mais guaraná Fratelli Vita ou Laranja Turva.
O serviço saía rápido, ao gosto do freguês. Os do lanche preferiam disputar com
os do carteado as mesas dos fundos, talvez para comer com mais gula a iguaria,
sem que os vissem os passantes.
Zé Petu, com seu andar rápido e falar trovejante, sabia ser afável como
um gato angorá. De seu bar os boêmios eram assíduos freqüentadores – afinal,
aquela rua era a abençoada Rua dos Boêmios, bastava o sol dormir. Passagem se-
gura para a Mangabeira: na ida, uma pinga bem dosada pra acender; na volta,
apesar do frio da madrugada, uma loura bem gelada pra relaxar.
Zé Petu - um verdadeiro abrigo dos boêmios - é personagem inesquecível
do Irará- anos 50/60.

119
Parte V - Personagens Inesquecíveis
João Tanoeiro (15 de abril de 2004.)
Aguardente saborosa é a envelhecida em boa dorna. Vinho que se pre-
ze passou por bons barris. O que se guarda em pipa de boa cepa não envelhece,
enobrece. Dorna, barril e pipa de bom pai não vazam pelas costelas. Quem
é do ramo sabe: barril vazando entre as costelas dá prejuízo, contamina o conteúdo
e este perde qualidade.
Irará – anos 50/60 tinha alambique renomado, possuía depósitos de amplo
sortimento, fabricos artesanais de jurubeba e vinagre. O barril, a pipa e a dorna
eram presenças constantes nesses ambientes. Ainda há que se lembrar dos de
água, daqueles que, em lombo de jumento sestroso, iam de porta em porta, desde
a Fonte da Nação.
João Tanoeiro era o pai dos barris: desde o escolher das tábuas para o preparo das
costelas, o cravejar das cintas de aço na inclinação devida, o tornear dos tampos
de alto e fundo – aquele com boca e tarugo, o moldar das costelas para a curvatura
adequada, o aquecer do piche para argamassar as gretas, o montar do conjunto – cos-
telas, cintas e tampos - até o aprumar e arrochar pelo bater do martelo. E há que brunir
o exterior, dar brilho e cor à madeira bruta no molde vergada, testar a vedação
das juntas e tampos e, ao final, olhar o resultado com olhos de pai que viu o filho
crescer sob a proteção do seu esteio.
João Tanoeiro labutava ao som de sua orquestra natural, seus pássaros de estima-
ção. Mãos de mestre e fundo musical de pintassilgos e curiós produziam obras
dignas da melhor adega mediterrânea.
Para João Tanoeiro, em sua tenda na Rua Manoel Julião, não havia tempo ruim.
A barba branca por fazer não era desleixo mas urgência no atender à freguesia,
ansiosa por seus vasilhames. Afinal, cachaça não espera na boca do alambique;
vinagre fermentou, tá pronto e tem que ser armazenado; água em lombo de ju-
mento, só com barril bem vedado pro suor do bicho não entrar. Tempo vago, somen-
te para limpar as gaiolas e comprar alpiste.
A qualidade do que fazia – criava, melhor dito, pai que era - o bom trato com
a freguesia e o amor pelo harmonioso canto dos pássaros tornam João Tanoeiro, in-
questionavelmente, personagem inesquecível do Irará – anos 50/60.

120
Janelas Abertas
O boêmio Zé Vermelho (20 de maio de 2004.)
Anos 50/60. Anos de Ouro do Rádio, não somente por “O Direito de Nascer”,
mas sobretudo pela “Hora da Boemia”. Anos de Nelson Gonçalves, de Augusto
Calheiros, de Angela Maria, de Orlando Silva, de Carlos Galhardo. Ouvi-los era
rasgar o coração e afogar os olhos:
“Boemia, aqui me tens de regresso...”.
“Chorei, chorei de dor...”.
Na pequena Cidade de Irará, Jota Gomes comandava a melancolia ao micro-
fone de “A Voz da Liberdade”.
Noites iraraenses. Não havia bar sem boêmio a cantarolar, a cismar por algum
amor perdido ou por uma desilusão, voz afinada por boa e gelada loura.
Nesse cenário, o destaque era Zé Vermelho, filho de Graziela e irmão de Velho
, morador da Rua de Baixo. Voz perfeita fosse nos graves ou nos agudos, em sua
garganta fizeram morada os astros da então música romântica nacional.
Tempos de serenata. Cantava-se – sorria-se – para o amor que se tinha;
cantava-se – rezava-se – para se ter um amor; cantava-se- chorava-se – quando
o amor partia.
Zé Vermelho era o seresteiro perfeito. Sabia sentir na face da platéia a mensa-
gem desejada. Se o amor partira, voltava ao chamado do Zé Vermelho, ali Agosti-
nho dos Santos:
“Maria dos meus pecados... cadê, meu amor, cadê...”
Se a amada não correspondia, Carlos Galhardo assumia a garganta e a voz
de Zé Vermelho:
“Sorris da minha dor, mas eu te quero ainda ...”
Se era amor distante, daqueles do qual só se vê carta, Zé Vermelho tomava
emprestado o vozeirão de Nelson Gonçalves:
“Nada consigo fazer quando a saudade aperta...”
O violão de Dante de Guga era o acorde seguro para a voz de ouro do cancio-
neiro iraraense. Não havia dó bemol sem pausa certa na melodia, nem fá sustenido
sem um agudo vibrante. Violão e canção, mais que rima, era vinho do Porto casado
com champanhe francesa. Os aplausos e urras intercalados de Agnaldo Maia não
conseguiam desafinar a dupla. Palmas para um, palmas para dois, palmas para
o bater palmas.
Um dia o boêmio partiu. Diziam que fora batalhar a vida lá pras bandas
de Minas Gerais. O certo é que a saudade apertou e o trem de Minas o trouxe pra
Bahia e o entregou à velha marinete, que o pôs em casa. Ganhou apelido novo:
“Zé Vermelho, o mineiro”. Também é certo que não perdeu aplausos nem elogios.
Na sua volta, nada mais justo do que uma encarnação viva de Nelson Gonçalves,
voz de um, voz do outro:

121
Parte V - Personagens Inesquecíveis
“Boemia, aqui me tens de regresso,
e suplicante te peço
a minha nova inscrição.
Voltei pra rever os amigos que um dia,
eu deixei a chorar de alegria,
me acompanha o meu violão...”.
A noite iraraense voltou a brilhar mais que nunca, a lua recuperou seu sor-
riso apaixonado e as moças da terra voltaram a dormir e sonhar ao tom e som
da voz de ouro do Zé Vermelho boêmio.
Zé Vermelho - o rei da voz da romântica cidadezinha - que nas horas
vagas cortava couro e fazia alpercatas, é personagem inesquecível do Irará
– anos 50/60.

A Linguagem Iraraense dos
Anos 50 / 60
Lista de Palavras

124
Janelas Abertas
A Linguagem Iraraense dos Anos 50 / 60
A escolha do período compreendido pelos anos 50 / 60 tem a ver com a vi-
vência do autor, além de ter sido, nesse período, que ocorreram os grandes avan-
ços da formação cultural e política no Brasil. Não há como pensar em linguagem
desvinculando-a da cultura e da ação política, os verdadeiros caldeirões da for-
mação de um povo.
O vocabulário listado inclui palavras corriqueiras em outras regiões e mi-
crorregiões, mas que eram de grande habitualidade entre as gentes de Irará. Algu-
mas palavras são exclusivas da cidade e estão marcadas por um asterísco. Aqueles
termos de uso geral aqui indicados apresentam , tão somente, seu sentido local ou
regional, deixando-se de lado o sentido geral – que diz respeito a dicionário am-
plo e irrestrito. Preferenciou-se, também, palavras relativas a costumes locais, as
que nomeiam ferramentas de uso dos diversos artífices, as indicativas de plantas
e pássaros comuns à região, os termos utilizados na conversa familiar e na labuta
diária bem como as corruptelas adotadas pelas gentes da roça.
A descrição do significado de cada palavra não segue regras fixas de dicioná-
rio, pois tem como objetivo fazer entender o que se desejava expressar, naqueles
anos, em nossa comunidade. Evidentemente, a dificuldade de pesquisa fez com
que o trabalho ficasse restrito aos ditames da memória do autor.
A maioria das palavras incluídas no trabalho continua ativa na linguagem
geral e da região, mas já não tem o peso que possuía no falar coloquial do período
abordado.
Os exemplos apresentados para alguns termos foram escritos de forma a pre-
servar a fala coloquial da época e da região, que abusava das próclises, dos prono-
mes pessoais e da junção de preposições com pronomes.
Novos termos surgiram, as gírias fizeram e fazem a festa, mas o que se falava
calou no coração.
Na devida medida, o trabalho é, apenas, uma Lista de Palavras .

125
A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
A
Abafa-banca* Picolé feito em cuba de geladeira, geralmente de coco.
Abaixar-se Agachar-se, acocorar-se.
Abaixe-se aí para que eu veja como estão seus cabelos. Se tiver piolhos,
vou colocar creolina.
Abancar-se Instalar-se. Estabelecer-se.
Ele abancou-se lá na praça, pra vender miudezas.
Abano Instrumento semelhante a um leque, feito de palha, utilizado
para ativar o fogo nos fogões a lenha.
Abarrotado Cheio até à tampa. Tão cheio que já não cabe mais nada.
O cinema, hoje, estava abarrotado de gente.
Abatido (a) Acabrunhado. Enfraquecido. Adoentado.
Achei o João tão abatido. Será qu’ele está doente!?
Abaular Dar a forma de barril.
Abelhudo Intrometido. Metido. Bisbilhoteiro.
Lá vem aquele abelhudo escutar nossa conversa.
Aboiar Conduzir a boiada utilizando-se do aboio.
Aboio Canto monocórdio utilizado pelo vaqueiro a fim de facilitar a
condução da boiada.
Aborrecido Chateado.
Fiquei muito aborrecido com esta estória de que você não vai bem
na escola.
Aborrecimento Chateação.
Abrir o apetite Estimular a fome. Desejar comer.
Vou tomar uma pra abrir o apetite.
Abusado Chato. Implicante.
Deixe de ser abusado, menino..
Abusar Aborrecer. Chatear. Desonrar. Irritar.
Fique quieto, menino. Deixe de ser abusado.
Ele abusou da moça. Vai ter que casar.
A coisa pega Fica difícil. Fica complicado.
Se ele não se tratar, a coisa pega. Aí, não tem jeito.
A coisa vai ficar Vai ter encrenca. Vai ter briga.
feia Acho bom você acabar com esse namoro. Se seu pai souber, a coisa
vai ficar feia.
Acoitar Esconder. Abrigar.
Eu soube que tem fazendeiro aí acoitando jagunço fugido.
A conversa é outra É outra estória. È outro papo.
Agora que você perdeu, a conversa é outra. O que acertamos não

126
Janelas Abertas
vale mais.
Aderente Parente por afinidade.
Ele nada tem a ver comigo. Não é parente nem aderente.
Adjutório Ajuda dada em grupo. Mutirão.
Vamos fazer um adjutório pra ralar a mandioca, pois a safra foi
grande.
Adobe Bloco de barro seco ao sol utilizado para construir paredes
e muros.
Agourar Predizer. Adivinhar. Supor provável acontecimento bom
ou ruim.
Agourento Diz-se da pessoa que prevê mau agouro.
Não gosto de falar com aquela mulher. Ela é muito agourenta.
Agritalhado Na base do grito.Com gritaria. Com barulho.
O baba, ontem, foi muito agritalhado.
Aguar Regar. Molhar a lavoura ou o jardim.
Agüentar Suportar. Aturar. Aguardar.
Não sei até quando vou agüentar isso.
Agüente aí qu’eu já volto.
Ajeitar Consertar. Dar um jeito.
Domingo vou ajeitar essa fechadura.
Vocês brigam e eu é quem tenho que ajeitar as coisas.
Ajuntar Reunir. Juntar. Agrupar.
Vou ajuntar dinheiro pra ver se compro uma bicicleta.
Ajuntar-se Reunir-se. Formar uma turma. Amigar-se.
Alcoviteira (o) Mexeriqueira. Fuxiqueira. Leva-e-traz.
Aldraba Argola ou pequeno macete preso às portas de entrada, pelo
lado de fora, para funcionar como se fosse uma campainha.
O mesmo que aldrava.
Alesado (a) Abobalhado. Adoidado. Palerma.
Chico é muito alesado. Faz cada merda...
Alforje Bolsão duplo feito de couro de boi curtido, utilizado para trans-
porte de suprimentos. Normalmente é colocado sobre a sela,
com um saco pendente de cada lado da montaria.
Algazarra Gritaria. Bagunça. Balbúrdia.
Esses meninos fazem muita algazarra quando estão brincando.
Algibeira Bolso de calça situado logo abaixo do cós e ao lado da braguilha.
Aguadeiro Aquele que entrega água de porta em porta, conduzida por
jumento provido de barris.
O aguadeiro chegou cedo, antes d’eu lavar o porrão.
Almanaque Publicação em forma de revista, com conteúdo diversificado,
priorizando o lazer e as informações populares.

127
A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Alpercata Calçado de couro curtido costurado a mão.
Alvoroço Barulho. Gritaria. Confusão.
Pra que esse alvoroço todo por causa de uma besteira?!
Ama Empregada doméstica. Criada.
Totonho colocou duas amas em casa, pra ajudar a família.
Amarrado Lote de coisas (frutas, pedaços de madeira, papéis etc) amarra-
dos em bloco.
Faça um amarrado desses paus e guarde lá no quintal.
Amarrados um Diz-se de duas pessoas que sempre estão juntas.
no outro Aqueles dois parecem amarrados um no outro.
Amêndoa* Fruto da árvore conhecida como coração-de-negro, de forte
coloração arroxeada.
Amigar-se Tornar-se amante. Juntar-se (homem e mulher) sob o mesmo
teto sem estarem casados.
Amolar Afiar o corte de instrumento doméstico ou agrícola, a exemplo
de tesoura e enxada. Aporrinhar. Chatear. Irritar.
Vou amolar as foices para a limpeza do pasto na próxima semana.
Não venha me amolar com essa conversa de viajar pra roça.
Amuado (a) Melindrado. Chateado. Quieto no seu canto*.
Depois da briga ele ficou amuado.
Anágua Espécie de saia feita de tecido fino, usada por baixo do vestido
(ou da saia externa) para dar mais recato.
Maria, lembre-se que moça direita não sai de casa sem anágua.
Anarquia Bagunça. Arrelia. Confusão.
Eta menino danado para gostar de uma anarquia.
Ancas Quadris, tanto dos animais de criação quanto das pessoas.
Ancorar-se Apoiar-se. Namorar encostado à porta da casa da namorada.
Passei pela Rua Direita ontem à noite e vi Joãozinho ancorado. Toda
noite ele tá lá.
Andanças Viagens. Passeios.
Nas minhas andanças por aí, tenho visto muita coisa boa e mais
ainda coisa ruim.
Andor Armação de madeira no formato de plataforma, utilizada para
o transporte de imagens durante as procissões.
Andu Espécie de feijão que se assemelha à ervilha.
Angu Mingau de farinha de mandioca, cozido no leite ou na água.
Anil Tablete de mineral na cor azul, utilizado na lavagem de roupas
para facilitar o alvejamento.
Aninhar-se Acomodar-se. Agasalhar-se. Recolher-se.
Aninhou-se todo e pegou no sono.
Ano Bom Ano Novo. O dia do Ano Novo.

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Janelas Abertas
Ansiar Desejar ardentemente. Almejar.
De tanto ansiar por uma casa boa, Pedro endividou-se para com
prar a que mora.
Antonte* Corruptela de anteontem, usada pelas pessoas da roça.
Anum Anu. Pássaro de bico forte que come gafanhotos e outros insetos
maiores e que levanta o rabo quando pousa.
Ao léu À toa. Perdido. Sem rumo.
Aquele menino ficou ao léu depois que a mãe morreu.
Vou sair ao léu, pra ver onde vou parar.
Apanhar Levar surra. Molhar-se na chuva. Recolher.
Apanhei ontem de mamãe, por causa de sua arenga, seu sacrista.
Não saia sem sombrinha, pra não apanhar chuva e se resfriar.
Apanhe esses brinquedos do chão e guarde lá com suas coisas.
Aparar Ajudar a parturiente nos trabalhos de parto (tarefa a cargo das
parteiras). Segurar algo que foi atirado por outrem.
João, acho bom mandar avisar a Comadre Melânia, pois acho que
de hoje pra amanhã ela vai ter nenê pra aparar.
Apare essa garrafa, mas cuidado pra não deixar cair.
Apear Descer da montaria.
Quando fui apear, o cavalo deu um pinote e me derrubou.
A peça O sujeito. Aquele sujeito. Forma depreciativa de se referir a alguém
de quem não se gosta.
A peça não me sai da cabeça. Se o vir novamente, vai ter briga.
Aperrear Atanazar. Provocar. Prejudicar.
Chico só anda aperreando o pai com essa estória de jogar futebol.
Aperrear-se Enrolar-se. Endividar-se. Ficar em situação difícil.
Aperreado (a) Endividado; enrolado; assustado; constrangido; humilhado.
João está aperreado devido às despesas com a doença do pai.
Ao ver o vulto escuro, fiquei aperreado.
Aquelas pirraças da turma me deixaram aperreado e resolvi me esconder.
Aperreio Ato de ficar em dificuldades ou sob pressão. Endividamento.
Susto.
Apois* Então. Pois então.
Apois não é qu’ele se deu bem!?
Aporrinhação Aborrecimento. Chateação. Incômodo.
Isso qu’está se passando só me causa aporrinhação.
Essa tosse é uma grande aporrinhação.
Aporrinhar Incomodar. Chatear. Abusar. Aborrecer.
Apurar Ganhar. Ter lucro.
Com a vendagem do fumo, apurei o bastante pra reformar a casa.
Aprumar-se Equilibrar-se. Fortalecer-se.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Se você não parar com essas exorbitâncias, nunca vai aprumar-se.
Aquetar-se Corruptela de Aquietar-se. Ficar quieto.
Veja se se aqueta aí, até sua mãe chegar.
Araçá* Nome regional dado à goiaba.
Arapuá Abelha grande e agressiva.
Arapuca Armadilha feita de galhos presos uns aos outros, para a captura
de pássaros e pequenos animais. Engodo. Tapeação.
Tico caiu numa arapuca com aquela mulher que ele arranjou lá em
Água Fria.
Araque (de...) De baixa qualidade..
Fulano é um pintor de araque.
Araruta Farinha obtida da raiz de planta do mesmo nome, utilizada
para fazer mingau.
Arcada Formato típico das portas e janelas das casas coloniais.
Arenga Fuxico. Intriga. Conversa fiada.
Essa arenga toda não leva a nada.
Arengueiro (a) Fuxiqueiro (a). Leva-e-trás.
Fulana é uma arengueira de marca maior
Argola Brinco. Pingente.
Armado Pronto para chover.
O céu tá armado. O toró vai ser já.
Armar chuva* Diz-se de condições atmosféricas com nuvens propensas
a chover.
Hoje o dia amanheceu armando chuva.
Arranchar-se Encontrar abrigo. Construir um rancho.
Eles chegaram hoje do Pedrão e se arrancharam na casa do tio.
Deixei ele arranchar-se lá no terreno da lagoa.
Arranjar Conseguir. Obter. Procurar.
Veja se arranja uma tábua maior.
Ele vive arranjando briga.
Arredar Afastar. Sair. Recuar.
Arrede essa cadeira daí.
Arrede daqui e vá pro seu canto.
Arredar o pé Ir embora. Ir para casa.
Ele arredou o pé foi cedo.
Arregaçar Dobrar a bainha da calça, geralmente para protegê-la da lama.
Dobrar a manga da camisa.
A estrada estava cheia de lama. Tive que arregaçar as calças..
Arrear Pôr arreios na montaria ou no animal de carga.
Já arreou o cavalo? Quero sair logo.
Arrelia Barulho. Gritaria de crianças quando brincando.

130
Janelas Abertas
Deixe de arrelia, menino e vá estudar.
Arreios Apetrechos de couro utilizados nos animais de montaria
e de carga.
Arreliar Fazer bagunça. Gritar. Vaiar.
Fiz besteira e a turma me arreliou.
Arremedar Imitar de forma rude. Fazer arremedo.
Arremedo Imitação mal feita.
Isso aqui é um arremedo das coisas que Zé Freitas faz.
Arrenegar Negar. Expulsar. Amaldiçoar.
Eu te arrenego, maldito. Vai pro diabo que te carregue.
Arrepiar-se Reagir fisicamente, através de arrepios, como conseqüência de
susto, medo, surpresa, horror, entusiasmo etc.
Arrepiei-me todo ao ouvir o discurso que Aristeu fez. Aquele é o que
se pode chamar de bom político.
Arriar Baixar. Pôr no chão.
Areie esse saco na balança, pra ver o peso.
Arribar* Levantar. Erguer. Sair. Arriba a saia peixão.
Arribe daqui, antes qu’eu lhe dê uns sopapos.
Arrimar Apoiar. Proteger.
Se você resolver montar negócio, vou lhe arrimar.
Arroba Unidade de peso equivalente a 15 quilos, largamente utilizada
nas operações que envolviam produtos a granel.
Tiago e a gente dele colheram esse ano mais de 200 arrobas de fumo !!!
Arrochada Apertada. Muito cheia.
A casa tava arrochada de gente.
Arrochar Apertar. Ajustar. Gritar em grupo.
Precisa arrochar a porca bem, pra evitar do parafuso soltar-se.
“Arrocha, negrada...”,diz o palhaço.
Arrocho Aperto. Dificuldade.
Com essa seca, o arrocho vai ser grande pros da roça
Arrodear Corruptela de Rodear. Cercar.
Arruaça Confusão, barulho, bagunça...
Que arruaça é essa aí fora?!
Arruado Arruamento. Agrupamento de casas formando um lado de rua.
Arrumado* Posto em ordem. Organizado. Ajuntamento de coisas em
forma de ruma*.
Mamãe, já arrumei meu quarto. Posso sair pra brincar??
O arrumado foi posto nos cantos da despensa, assim que chegou
da feira.
Arrumar Organizar. Procurar. Atirar.
Arrume isso, menino. Que bagunça.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Maria, veja se arruma uma faca amolada aí.
Arrume longe esse pau, que tá com cupim.
Arte Travessura. Estrepulia.
Deixe de fazer arte, menino.
Assadeira Utensílio de cozinha fabricado com folha-de-flandres, próprio
para levar ao forno as carnes que se deseja assar.
Assanhaço Sinônimo de sanhaço, pássaro muito arisco de cor esverdeada.
Asseado Limpo.
Só deixo os meninos saírem bem asseados.
Assento Selim de bicicleta. Bunda (nádegas).
O doutor mandou tomar banho de assento.
Assim, assim* Mais ou menos.
Ela está assim, assim, desde que voltou da roça.
Assuntar Observar. Prestar atenção.
Assunte bem no que estou falando, menino!
Até à tampa Até não caber mais. Completamente cheio.
Encha a lata até à tampa.
A tempo No devido momento. Na hora.
Ele chegou a tempo de ver o filho sair.
Atiçar Cutucar as achas de lenha para avivar o fogo. Provocar.
Atice esse fogo senão ele apaga.
Atiça ele, pra ver se sai briga...
Aticum* Fruto da árvore do mesmo nome que se assemelha a uma pêra,
embora com casca enrugada.
À toa Perdido (a). Sozinho. (a). Abandonado (a). Largado (a) ao léu.
Ele ficou à toa, desde que a mãe morreu.
Atoleiro Brejo. Área muito úmida com aspecto de lamaçal.
Auê Confusão. Gritaria. Barulho.
Que auê é esse, aí na cozinha!?
Avarandado Varanda comprida situada na parte frontal das casas-de-
fazenda.
Avivar Dar mais vida. Atiçar. Reforçar.
Para avivar a cabeça, precisa comer coisa forte.
Avexado Apressado. Agoniado.
Pedro tá avexado pra ir pra casa. O filho está doente.
Azulão Pássaro canoro de cor azul, comum nas regiões onde existem
árvores frutíferas.
B
Baba* Jogo de futebol sem regras a cumprir, praticado por jogadores

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Janelas Abertas
descalços.
Pedro foi bater um baba com os amigos da escola.
Babado Acabamento em roupa feminina, na forma de franzido.
Babau Foi-se embora. Partiu repentinamente. Acabou-se.
Você demorou e o doce... babau.
O circo mal chegou e ... babau.
Badaró* Doido. Louco.
Bacio Sinônimo de urinol. Penico.
Chica, coloque um bacio embaixo da cama de Francisco, pois ele está
com febre e não pode sair do quarto.
Badogue Atiradeira rudimentar feita com duas tiras de borracha atadas
a um pedaço de couro e a um gancho de madeira.
Aquele menino aprendeu a caçar com badogue desde pequenininho.
Baé Porco pequeno e roliço.
Que menino gordinho, parecendo um porquinho baé !!!
Baeta Tecido grosso feito de lã, com textura felpuda, normalmente
utilizado como enchimento ou forro.
Bafo Odor desprendido pela boca. Mau hálito.
Cumpadre Mané já chega da roça c’um bafo danado de cachaça.
Bagunça Baderna. Confusão. Desarrumação.
Lá na festa foi a maior bagunça.
Essa casa tá uma verdadeira bagunça.
Bahia Nome usado pelos mais velhos para referir-se à Salvador.
Se ele passar de ano, vai estudar na Bahia.
Baita Muito grande. Forte. Enorme.
Veja que baita manga está ali naquele galho.
Baixa Lugar mais baixo de uma roça ou estrada.
Lá naquela baixa tem um riacho muito bom pra pescaria de piaba.
Bajular Adular. Ser servil. Puxar o saco.
Em época de eleição, até pobre é bajulado.
Balaio Cesto grande feito com cipós entrelaçados, utilizado para o
transporte ou a guarda de frutas e raízes.
Balanço Brinquedo infantil formado por uma tábua ou barra de ferro
suspensa por duas cordas geralmente atadas aos caibros do
telhado ou a um galho de árvore. Conferência anual dos esto-
ques de um empreendimento comercial.
Passei a manhã toda no trapézio, já qu’estou de férias.
Papai está fazendo o balanço da venda e vai chegar mais tarde em
casa.
Balangandã Amuleto. Colar feito com miçangas.
Balde Vaso com alça suspensa, próprio para a apanha de água na fonte

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
ou em cisterna. Geralmente os baldes têm capacidade variando
entre 10 e 20 litros.
Balofo (a) Gordo. Fofo.
Como aquele sujeito está balofo, gente. Vai ver que só come gordura.
Bamba Competente. Capacitado...
Pedro é bamba nesse serviço de pedreiro..
Bambo Troncho. Defeituoso. Que balança (por estar mal aprumado)
Esse banco tá bambo. Bote um calço nele.
Banana mabaça* Má formação no cacho de bananas, quando aparece dois frutos
presos um ao outro.
Banana nanica* Banana de casca verde mesmo quando madura, muito doce,
de dimensões maiores que as da prata.
Banca Local de jogo. Pose.
As bancas de cisplandim já foram instaladas na praça.
Deixa de banca, rapaz. Tu não é de nada...
Banco Espécie de assento rústico, disponível sobretudo nas casas da
zona rural.
Bangüê Espécie de estrado feito com cipós ou tábuas utilizado para
o transporte de barro ou tijolos.
Banguela Diz-se da pessoa que perdeu os dentes. Desdentado.
Baque Pancada. Queda. Perda.
Que baque foi esse aí, que eu ouvi daqui de fora?
Carlinhos sofreu um grande baque no seu negócio, desde que mudou
de ponto..
A morte da irmã foi um baque para ele.
Banqueiro Que bota banca. Posudo. Metido a importante.
Mas que sujeito mais banqueiro aquele.
Baraúna Árvore de madeira escura e resistente. Pessoa forte e de muito
vigor.
Aquele menino bem merece o apelido de Baraúna. Veja como não
cansa.
Bardame* Corruptela de baldrame, apoio de madeira que cerca as varandas
das casas de fazenda.
Zé tá lá fora, encostado no bardame, olhando o pasto.
Barra da saia A bainha da saia.
Barrica Vaso de madeira com formato abaulado no centro, próprio
para a guarda de cereais.
Barril Tonel de madeira com capacidade de 20 litros, próprio para o
transporte de água em lombo de jumento ou para a guarda de
cachaça.
Barrufo Corruptela de borrifo. Sopro de água pela boca.

134
Janelas Abertas
Maria barrufou a roupa antes de passar, pra estirar melhor.
Bastardo(a) Diz-se do(a) filho(a) que não é legítimo(a). Filho(a) tido(a)
fora do casamento.
Sabia que Fulano é filho bastardo de seu Beltrano? Pois é, nasceu da
vida amigada que seu Beltrano tem com Sicrana.
Bastidor Armação dupla de madeira, que serve para fixar e estirar
o tecido que será bordado. Geralmente tem forma circular.
Batedeira Utensílio doméstico próprio para bater ovos, no preparo de
bolos, gemadas etc, feito de arame de aço enrolado na forma de
um cone e provido de cabo de madeira.
Batente Esteio no qual a porta se apoia ao ser fechada. Trabalho diário.
Bote um calço naquela porta, senão vai folgar o batente de tanto
o vento dar.
Ele parte cedo pro batente.
Bater papo Conversar amigavelmente. Prosar.
Fiquei até tarde no bar, batendo papo e ouvindo Zé Vermelho
cantar.
Bater pernas Andar sem destino. Passear.
Saí cedo e bati pernas por aí.
Bater um Jogar baralho.
carteado
Batuque Samba praticado pelas comunidades negras. Canto usual nos
candomblés.
O batuque na cozinha sinhá num qué...
Batuta Competente. Eficiente.
Zequinha é um músico muito batuta.
Beiju Petisco feito de farinha de mandioca (beiju mole e beiju seco).
A merenda, hoje, vai ser os beijus que sua vó mandou.
Beira Beiral. Beirada. Borda. Margem. Saliência junto à caída de águas
e perpendicular à parede, para enobrecer a fachada da casa.
Lá na beira da lagoa tem muito caranguejo.
Ele mora em casa com beira, o que mostra as posses.
Beldroega Erva rasteira utilizada como ração para porcos.
Bem que eu avisei Tá vendo aí!? Eu não disse!?
Você se deu mal porque quis. Bem que eu avisei.
Bença Corruptela de a benção.
Bença, dindinha!. Bença, papai!.
Benza Deus Graças a Deus. A expressão é utilizada também como elogio.
Benza Deus. Que criancinha linda você tem!
Berrar Refere-se ao som emitido pelos bovinos, caprinos e ovinos.
Gritar. Chorar alto.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
O boi berrou assim que ficou atolado no brejo.
Esse menino berra a noite toda.
Besta Presunçoso. Orgulhoso. Coisa fácil e abundante.
Que sujeito mais besta. Parece que tem o rei na barriga!.
Pedro ganha uma grana besta com aquele seu jeito de fazer de tudo
um pouco.
Besteira Coisa sem importância. Ato errado.
Ele somente fala besteira. Esse menino anda fazendo muita besteira.
Besuntado Sujo. Mal vestido. Mal pintado.
Chico saiu pra rua todo besuntado.
Que porta mais besuntada !
Bibião* Pequeno candeeiro feito com frasco ou garrafa de vidro, geral-
mente com alça de flandre, provido de pavio de algodão e
alimentado por querosene. Fifó. O mesmo que bibiano.
Biboca Pequeno e rudimentar ponto comercial na roça.
Bica Calha de chapa zincada, colocada no beiral dos telhados para
colher a água da chuva.
Bicheira Ferida purulenta em animal de criação. Ferida que já está com
bichos (morotós).
Bico Chupeta. Palavra com teor depreciativo dirigida às pessoas
tidas como de classe inferior.
Essa menininha não já tá na idade de largar o bico? Vai ficar com a
boca pontuda.
Cale esse bico que ninguém lhe chamou na conversa.
Bigorna Ferramenta de ferreiro, utilizada como apoio para malhar o
ferro em brasa.
Binga Tabaqueira feita de chifre de bovino. Sinônimo popular de pênis.
Biqueira* Tubulação que serve para escoar a água que se acumula nas
bicas. Parte do telhado que sobra na beira, a fim de permitir
a instalação da bica.
Birra Implicância. Teimosia.
Aquela moça está sempre de birra comigo.
Deixa de birra, menino, e vai estudar!
Bisagra* Dobradiça.
Bobe Apetrecho de uso feminino para acomodar os cabelos enrolando-os
e prendendo-os com um misse.
Bobo (a) Tolo (a). Sem preparo. Sem inteligência.
Que menino mais bobo aquele.
Boca da noite* De noitinha. Início do anoitecer. Pôr do sol.
Na boca da noite eu passo na sua casa.
Bocado Mão cheia de comida que se leva à boca. Muito.

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Janelas Abertas
Tinha um bocado de gente na fila do posto esperando o doutor
atender.
Bocadinho Um pouco de alguma coisa.
Me dê um bocadinho desse doce.
Bocapio Espécie de sacola feita de palha de pindoba, usada para o trans-
porte de mantimentos.
Bodega Pequeno ponto comercial na área urbana, basicamente para
vender bebidas e similares.
Chico passa horas e horas bebendo naquela bodega da esquina.
Bofes Pulmões.
Ele está tuberculoso. Os bofes já não dão conta do recado.
Boi-do-coice* Um dos dois bois que compõem a primeira parelha (canga) do
carro-de-bois e que ficam instalados rente ao estrado do carro.
Boi mais forte.
Aquele cara parece um boi-do-coice: é lento mas é forte.
Boi inteiro Boi que ainda não foi castrado. O oposto de boi capado.
Bola, comer Receber propina para facilitar algo irregular.
Aquele picareta vive comendo bola dos grandões aí...
Bola, dar Olhar. Dar atenção. Flertar.
Maria não me dá bola, mas sei que gosta de mim...
Bola, pagar Dar propina em troca de facilidades.
Chico vive pagando bola para não ser multado...
Bolacha fofa Bolacha com textura macia e muito absorvente.
Boléia Cabine de caminhão.
Arranjei uma carona na boléia do caminhão de Inácio, pra ir à
Bahia amanhã.
Bolo Castigo aplicado nas mãos, utilizando-se de uma palmatória
ou um chinelo.
Ele levou meia dúzia de bolos porque errou a tabuada.
Bolodório Conversa fiada. Conversa mole.
Deixa de bolodório, menina. Vai procurar o que fazer.
Bolor Mofo.
O pão tá com bolor. Dê ele pras galinhas.
Borocoxô Fraco. Sem coragem. Sem animação.
Que festa mais borocoxô !!
Ele está assim borocoxô, porque tem febre.
Bosta Sinônimo popular de fezes. Pessoa sem valor.
Vá se lavar, menino. Tá fedendo a bosta.
Aquele cara é um bosta!
Botar Pôr ovos. Colocar algo em algum lugar.
Essa franga já tá botando. Outro dia era uma pintinha.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
A galinha pedrês somente botou dois ovos até agora.
Bote isso aí, menina, e venha cá !
Botar banca Bancar. Fazer pose. Mostrar importância.
Pechincha botou banca de cisplandim durante a Festa da Padroeira.
João foi pra festa e botou banca o tempo todo; não dançou
com ninguém.
Botar de castigo Punir. Castigar.
Se você não tirar nota boa, vou lhe botar de castigo todo o domingo.
Botar de molho Colocar a carne no tempero, para pegar gosto. Pôr o alimento
em líquido, a fim de amolecer.
Botar gosto ruim Dificultar. Atrapalhar. Criar dificuldades.
Minha mãe tá botando gosto ruim no meu namoro. Não sei o que
fazer.
Botar os bofes Arfar. Estar muito cansado.
pela boca Corri tanto, que estou botando os bofes pela boca.
Braça Medida de comprimento equivalente a dez palmos (2,2 m).
Corte e limpe uma vara com duas braças e meia pra dar ao carreiro,
que a dele se quebrou.
Braguilha Abertura vertical nas vestimentas masculinas, situada desde o
cós até o final dianteiro, provido de botões ou fecho-écler.
Brecha Greta. Fenda.
Joaninha gosta de espiar a rua pela brecha da janela.
Breado* Sujo; emporcalhado; mal lavado.
Você tá todo breado, menino. Tava brincando na lama?
Bredo Erva de folhas tenras usada como verdura em cozinhados.
Brega Sinônimo popular de prostíbulo.
Ele encheu a cara e foi pro brega.
Brejo Área pantanosa ou cheia de lama, com cobertura de capim alto.
Atoleiro.
José foi ver se tira a vaca que caiu no brejo e ficou atolada.
Brida Arreio próprio para colocar-se na cabeça do animal de montaria,
munido de embocadura metálica, a fim de permitir a sua
condução e controle. Rédea.
Briguento Pessoa que gosta de brigar.
Aquele menino é muito briguento. Não vai ser grande coisa.
Brocado Furado. Apodrecido. Oco.
Aquela tábua tá toda brocada.
Brocha Prego de pequeno tamanho, com três faces. Tacha.
Broche Adereço feminino provido de presilha para fixar na blusa.
Broco Amalucado. Abobalhado. Diz-se das pessoas idosas que apre-
sentam as dificuldades próprias da velhice.

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Janelas Abertas
Ele já tá broco. Não sabe mais o que faz.
Broto Rebento. Planta nova e frágil.
Brotoejas Pequenas pústulas da pele, que apresentam coceira.
Essa menina tá cheia de brotoejas. É bom passar um pouco de goma,
pra não coçar.
Broxa Pincel largo para caiação de paredes. Impotente.
Dizem que Fulano tá broxa desde aquela queda do cavalo.
Bruaca Mulher velha rabugenta. Bruxa.
Bucha Objeto de má qualidade. Fruta da planta rasteira do mesmo
nome, cuja entrecasca serve como esponja para lavar pratos.
Isso é uma bucha. Não serve para nada.
Buço Leve penugem sobre o lábio superior de homens jovens e de
algumas mulheres.
Bueiro Sinônimo de chaminé, de uso nos fogões a lenha. Na região
não se usava essa palavra para indicar o escoamento de águas.
Esse era sempre chamado de esgoto.
Bufa O ato de soltar gases. Peido.
Aquele cara fica bufando o tempo todo...
Bugigangas Quinquilharias. Coisas sem muito valor.
Ela guarda uma mala cheia de bugigangas.
Buliçoso Teimoso. Impertinente. Metido.
Se crescer buliçoso assim, vai terminar se dando mal.
Bulir Mexer em. Mexer com. Provocar.
Ele buliu comigo, por isso apanhou.
Não bula nisso, menino; deixe de ser teimoso.
Busca-pé Fogo de artifício na forma de canudo, com pequena bomba que
explode ao final da queima.
Buscar Procurar. Apanhar.
Eu busquei ele por todos os cantos, mas não encontrei de jeito
nenhum.
Vou buscar a bola pr’a gente jogar.
C
Caatinga Região seca, com a presença apenas de arbustos e de vegetação
resistente à estiagem.
Cabaça Vaso feito com a casca seca e oca da fruta da cabaceira, utilizada
para conduzir água.
Cabaço Sinônimo chulo de hímen.
Cabeça Rês. A unidade dentro de um rebanho de bovinos.
Zidorinho tem um rebanho com não sei quantas cabeças de bom

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
gado de leite.
Cabeça-de-prego Pequeno abcesso. Furúnculo.
Cabresto Arreio próprio para reter o animal de montaria ou carga, mas
não indicado para a condução do mesmo. Nervura que
mantém a glande dos meninos encoberta.
Cabresto quebrado*Diz-se do rapazinho que realiza relações sexuais pela primeira
vez, perdendo a virgindade.
Caçapa Sacos existentes na mesa de sinuca para aparar as bolas vencidas.
Saco que se prende na ponta de uma vara para apanhar insetos.
Caçar* Buscar alguma coisa que não se sabe onde está.
Antônia, cace o moedor até achar. Não mandei deixar à toa.
Cacarecos Trecos. Troços. Tralha. Coisas sem valor.
Jogue esses cacarecos fora, pra poder arrumar a casa.
Cacarejar Refere-se ao canto das galinhas. Imitar uma galinha.
Ficou ali, a cacarejar como se tivesse botado um ovo.
Cacete Barra de madeira utilizada como arma ou como apoio. Sinônimo
chulo de pênis.
Cacetinho* Pão de sal, pequeno.
Vá lá na padaria de Zinho e peça cinco pães cacetinhos. De hoje,
heim ...
Cachaço O mesmo que nuca; toitiço.
Cacho Conjunto de frutas (geralmente bananas, cocos) agrupadas no
mesmo apoio. Amante do sexo feminino.
Beltrana é cacho de Sicrano.
Cachorro doido* Cão raivoso.
Caco Pedaço de louça, vidro ou cerâmica. Arrasado. Enfraquecido.
A terrina caiu e foi caco pra todo lado.
Fiquei um caco, depois que recebi a notícia.
Caçoar Zombar. Fazer pouco.
Mamãe, Chiquinho tá caçoando de mim...
Caçoleta, Bater a Morrer. Ir-se desta para melhor.
Teco bateu a caçoleta, após um longo sofrimento.
Caçuá Grande cesto feito de cipós entrelaçados, utilizado para o trans-
porte de frutas e objetos por animais de carga providos
de cangalhas.
Cadinho Vaso refratário ao calor utilizado por ferreiros e ourives para
derreter metais.
Caducar Enternecer-se com as crianças.
Aquela mãe vive caducando com a filha pequena.
Caduco (a) Pessoa idosa sem domínio dos sentidos.
Cagar Defecar. Fazer cocô.(Apesar do termo ser considerado, hoje,

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Janelas Abertas
escatológico, era largamente usado por todos, independente do
ambiente ou do meio social).
Vá cagar, menino, senão vai ficar com o bucho crescido.
Caibro Peça longa de madeira lisa utilizada nos telhados como apoio
das ripas que sustentam as telhas.
Caiçara* Arbusto de folhas crespas, muito usadas como bucha para lavar
pratos, por não deixar odor nem manchas.
Maria, vá catar umas folhas de caiçara, pois as de casa já acabaram.
Caída d’água Parte do telhado que ultrapassa a parede frontal das casas.
Biqueira.
Caititu Porco bravo que vive no mato. Peça acoplada por corda ao
rodete, provida de serrilhas de aço, utilizada para ralar as raízes
de mandioca.
Caixeiro Balconista. Empregado de loja ou venda.
Manoelzinho contava que foi caixeiro em Jequié nos tempos de rapaz.
Calango Pequeno réptil parecido com a lagartixa, de cor esverdeada.
Calçola Peça do vestuário íntimo feminino. Calcinha.
Moça decente não usa calçola de cor.
Calhamaço Forma errônea de se nomear canhamaço, tecido grosseiro feito
com fibras de cânhamo. Livro volumoso e antigo.
Califon Sinônimo de sutiã.
Caloteiro Aquele que dá calote. Aquele que não paga o que deve.
Fulano é um caloteiro de marca maior.
Calundu Cara feia. Mau humor. Amuo.
Papai hoje acordou com calundu. Não dá nem pra chegar perto.
Calunga Rato de pequeno porte, comum nas casas-de-fazenda.
Cajuí* Fruto pequeno, típico da região, da mesma família dos cajus,
porém sempre de coloração amarela quando maduro. A casta-
nha do cajuí é, também, de pequeno tamanho.
Cambalacho Tramóia. Mutreta. Treta.
É raro o político de hoje que não apronta uns cambalachos depois
de eleito.
Camisola Espécie de vestido longo e folgado, feito em tecido leve, usado
pelo sexo feminino para dormir.
Campado* Marcado. Ferrado.
Você tá campado comigo, seu corno.
Cancela Porteira de curral ou pasto. Porteira que une duas fazendas.
Canga Peça de madeira utilizada para manter juntos os bois que for-
mam as parelhas no carro-de-bois. Junção de madeira para
dois animais (bois ou cavalos), para puxar o arado. Parelha.
Cangalha Sela feita de madeira e palha, utilizada em jegues e burros para

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o transporte de mercadorias, objetos pesados e para a montaria
rústica.
Cangambá Sinônimo regional de gambá, animal silvestre que, ao ser ata-
cado, exala um forte e desagradável odor.
Cangote Sinônimo popular de nuca.
Corte o cabelo de forma que o cangote fique livre.
Canhamaço Tecido grosseiro feito com fibras de cânhamo.
Canjica Papa feita de milho ralado, na forma de mingau.
Cansanção Arbusto provido de folhas ásperas, que provocam intenso
ardor e coceira quando tocadas.
Canto Ângulo formado por duas paredes ou pelas paredes e o piso.
Coloque suas coisas naquele canto, pra não ficar no caminho da
gente.
Cão Sinônimo sertanejo de diabo.
Ele parece o cão, de tão ruim que é...
Cão vadio Cão sem dono. Cachorro que vive pelas ruas.
Capacho Tapete grosseiro e rústico, feito de palha ou sisal, utilizado para
a limpeza dos calçados na entrada das casas. Pessoa servil
e submissa.
Fulano é um verdadeiro capacho de Sicrano.
Capado Capão. Animal (geralmente de criação) que foi castrado.
Capar o gato Cair fora. Sair às pressas.
No meio daquela confusão, tratei de capar o gato, antes que sobrasse
pra mim.
Capeta Sinônimo popular de diabo. Traquinas. Travesso.
Somente o capeta agüenta essa situação.
Mas que menino mais capeta.
Capoeira Mata nova e rala, nascida em terra antes submetida a queimada.
Grupo de galinhas.
Aquela capoeira nascida ali embaixo tá cheia de boa caça.
Pelo visto, nesta capoeira tá faltando galo. Não se vê um pinto nem
pra remédio.
Caqueiro* Vaso para planta. Vaso já com planta.
Carbureto Composto químico do carbono, utilizado como combustível
de lampiões.
Cardeal Galo-de-Campina. Ave comum nas terras iraraenses, escolhida
para gaiola por seu belo canto.
Carnegão O mesmo que carnicão, a parte central cheia de pus nos furún-
culos.
Carniça Restos de animal morto.
Esse cachorro tá fedendo. Parece que andou comendo carniça

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Janelas Abertas
feito urubu.
Caroá Fibra grosseira utilizada para a confecção de sacos e cordas.
Carocha Besouro pequeno e colorido, que deixa mau cheiro nos dedos
quando apanhado. Escaravelho.
Carola Diz-se de pessoa que é muito apegada à religião. Freqüentador
assíduo de igreja.
Carpina Sinônimo regional de carpinteiro.
Mestre Cassimiro é um carpina de mão cheia.
Carpinteiro Artesão que trabalha com a madeira bruta, aparando-a e trans
formando-a em tábuas e barrotes, além de confeccionar uten-
sílios rústicos com tais peças trabalhadas, a exemplo de cancelas,
balcões e prateleiras.
Carrapeta Brinquedo feito de madeira, à semelhança de um pião.
Carrapicho Arbusto silvestre cuja flor é dotada de espinhos que se pren-
dem à roupa de quem passa tocando-os.
Carreiro Condutor de carro-de-bois.
Casa de morada Diz-se de casa para fins residenciais, com o intuito de diferen-
ciá-la das casas para negócio ou depósito.
Pedro comprou uma casa de morada na Rua.
Casamento Chuva fina com a presença do sol.
da raposa Hoje tem casamento da raposa. Veja que chuvinha fina com o sol
brilhando.
Casco A parte inferior da pata do cavalo ou do boi. A parte externa
que envolve o fruto do coqueiro.
Cascudo Besouro pequeno. Castigo aplicado às crianças, batendo-se as
juntas dos dedos da mão sobre as laterais da cabeça.
Se você não ficar quieto, vou-lhe dar uns cascudos.
Casquinha Avarento. Pão-duro.
Aquele homem é muito casquinha. Apesar do que tem, não compra
nem um sapato pros filhos.
Cataplasma Curativo feito com ervas enroladas em tecido, para extrair o
pus dos ferimentos.
Catar Apanhar um a um (piolho, lenha, planta, fruta etc).
Cate tudo, ponha no cesto e deixe na despensa.
Catatau Coisa volumosa. Muita coisa. Homem muito alto e magro.
Tenho um catatau de coisas para fazer...
Virgem, como esse menino cresceu. Está um catatau!
Catimbó* Feitiço.
Maria parece que está com catimbó .
Catinga Sovaqueira. Cecê. Mau cheiro nas axilas. Mau cheiro oriundo de
corpo suado.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Vá tomar um banho pra tirar essa catinga.
Catingueiro (a) Habitante da caatinga. Roçeiro. Homem (ou mulher) rústico (a).
Cativar Fazer-se amado (a). Tornar-se o preferido (a).
Chiquinha cativou o avô.
Catucar Corruptela de cutucar. Mexer. Futucar. Bulir.
Vai pra casa, menino. Deixa de tá catucando as coisas dos outros.
Cavaco Pedaço de madeira lascada.
Cavador* Ferramenta rural utilizada para fazer buracos na terra, a fim de
fixar-se as estacas de uma cerca.
Cavalo-do-cão* Nome regional dado à libélula.
Cavanhaque Espécie de barbicha no queixo, formando uma ponta para baixo.
Caveira Ossada da cabeça de qualquer animal. Desgraça.
Ele me paga... Vou fazer a caveira dele com o patrão
Cavilha Peça de madeira em forma de calço, usada pelos marceneiros
para ajustar duas partes encaixadas.
Cecê Catinga. Sovaqueira. Mau cheiro nas axilas.
Cedinho Muito cedo. Antes do sol nascer.
Amanhã vou sair cedinho pra caçar.
Cego Assim se intitula a criança que, na brincadeira de cabra-cega,
está com os olhos vendados.
Vamos sortear no pauzinho, pra ver quem sai de “cego”.
Ceroulas Antigo modelo de cuecas, que cobre o corpo desde o umbigo
até abaixo das virilhas, sendo provida de bragilha sem botões
ou fecho-écler.
Cerrar Fechar e trancar as portas.
Céu encoberto O mesmo que dia fechado. Condições em que há acúmulo de
nuvens escurecendo o céu e indicando possibilidades de chuva.
Com esse céu encoberto, vai ter toró já, já.
Chambre Espécie de roupão normalmente utilizado por pessoas idosas,
quando se encontram adoentadas.
Chapa Dentadura postiça. Placa de ferro fundido fixada na parte
superior dos fogões a lenha, possuindo duas ou mais trempes
para a colocação das panelas.
No Abrigo de Amando tem um dentista prático que sabe fazer
chapa.
Limpe a chapa do fogão, que tá toda suja de banha.
Chateação Aborrecimento. Aporrinhação. Amolação.
Me causa uma grande chateação esse seu namoro.
Chato Enganjento. Enjoado. Diz-se de pessoa incômoda. Piolho que
infesta os pelos pubianos.
Que sujeito chato, aquele alí. Vive amolando os outros.

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Janelas Abertas
Pequei chato. Vou ter que comprar Neocid.
Chegar-se Aproximar-se. Buscar intimidade.
O que é que aquele rapaz queria, se chegando assim ?!
Chiada Barulho. Algazarra.Reclamação.
Deixa de chiada, pessoal. Assim ninguém consegue estudar.
Vamos parar com essa chiada. Quem não estiver satisfeito que saia.
Chibata Taca. Instrumento para açoitar os animais de montaria. Instru-
mento para aplicar castigos físicos.
Ou você se aqueta ou vai cair na chibata.
Chicote Rebenque feito de couro curtido, usado para estimular a
montaria.
Chinelo Calçado sem salto, feito com sola curtida.
Chiqueiro Cercado para prender os porcos. Lugar muito sujo
Vá botar comida pros porcos, lá no chiqueiro.
A casa de Fulana mais parece um chiqueiro!
Chocalho Espécie de sineta que se atrela ao pescoço de animais, a fim de
saber-se onde se encontram. Pequeno sino rústico.
Chocar Ato das aves para fazer germinar os ovos, agachando-se sobre eles.

Chocar-se Abalar-se. Assustar-se.
João ficou bastante chocado com a morte da mulher.
Choca Diz-se da ave que está a chocar ovos. Chata, nervosa, abusada.
Você tá parecendo galinha choca, com essa birra.
Chocho Sem graça. Sem gosto.
Um pirão chocho, foi tudo que comi.
Choradeira Lamentação.
Deixe de choradeira, menina. Não vê que, no final, vai dar tudo
certo?!
Chupa-chupa* Sinônimo regional de sanguessuga.
Chuveiro* Fogo de artifício em forma de canudo, muito utilizado nas noites
de São João.
Chuvinha* Fogo de artifício em forma de canudo, menor que o chuveiro e
maior que a estrelinha.
Cilha Tira de couro curtido, utilizada para fixar a sela na montaria.
Cimento armado Estrutura em cimento e ferro, utilizada na construção de pavi-
mentos, postes, colunas etc.
Cinta Aro de aço utilizado para arrochar as costelas dos barris, barri-
cas, tonéis, pipas e dornas.
Ciscador Ferramenta agrária, própria para recolher as folhas secas caídas
ao chão. Ancinho.
Ciscar Ato praticado pelas aves, ao catar insetos no chão. Juntar as

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folhas, gravetos etc.
João, cisque o quintal antes de varrer.
Cisco Sujeira miúda pelo chão ou levantada pelo vento.
Tem muito cisco lá no quintal.
Deu uma ventania e caiu um cisco no meu olho.
Cisma Dúvida. Desconfiança. Incerteza.
Se minha cisma não falhar ,esse namoro não vai longe.
Cisplandim Jogo de azar, constituído de uma tabela numerada e de uma
cumbuca com dois ou mais dados.
Cisterna Fonte profunda, de onde se extrai água mediante a descida de
um balde preso a uma corda acionada por molinete.
Coalhada Calda resultante da precipitação e coalho do leite gordo e cru,
rica em proteínas e gorduras. Kefir. Iogurte.
Cobrinha* Fogo de artifício semelhante a um traque, mas que serpenteia
pelo chão em vez de estalar.
Cochichar Falar baixo. Falar ao mesmo tempo que outrem.
O que é que vocês tanto cochicham, que nem escutam o que digo?
Cocó Coque. Cabelo enrodilhado para trás e preso com grandes
misses.
Pra sair hoje a noite, vou fazer um cocó em seus cabelos.
Cocô Fezes. Merda. Bosta.
Mamãe, o nenê fez cocô.
Cocorote Pancada no alto da cabeça, dada com as juntas dos dedos da mão.
Cocota Menina-moça vaidosa e cheia de trejeitos.
Cochilo Sono leve e ligeiro. Madorna. Soneca.
Essa noite mal tirei um cochilo, preocupado com a doença de Maria.
Cocho Vaso de madeira de médio porte utilizado no preparo da
farinha de mandioca. Vaso pequeno de madeira, utilizado para
dar comida aos porcos.
Cocuruto Alto da cabeça.
Coice Patada aplicada por cavalos, jumentos, burros e similares, uti-
lizando-se das patas traseiras.
Levei um coice tão forte daquele burro que fiquei entrevado.
Coivara Restos de mato amontoados, para serem queimados antes do
preparo da terra para o plantio da lavoura. O que resta dos matos
após a queimada.
Coleiro Pássaro típico do cerrado, mais conhecido como papa-arroz,
escolhido para gaiola por seu canto agudo.
Colhuda* Mentira. Invenção contada para se vangloriar.
Deixa de contar colhuda, homem.
Colocar remendo O mesmo que fazer remendo. Remendar. Consertar rasgão em

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Janelas Abertas
roupa, cobrindo-o com um pedaço de tecido, nem sempre
semelhante ao da roupa.
Cômoda Móvel doméstico composto de várias gavetas de grande porte,
utilizado para aguarda de roupas e outros objetos pessoais.
Como quê Muito. Bastante.
Ele trabalhou como quê o dia todo. Tá mortinho.
Consumição Agonia. Preocupação. Apreensão.
Essa espera tá me dando uma consumição danada.
Contar Esperar apoio ou ajuda.
Eu contava com ele pra fazer o negócio.
Conto Cédula da República Velha que circulou até meados dos anos 50,
no valor de um milhão de réis. Na época, as fortunas eram
avaliadas em contos de réis.
Dizem que Pedro deixou uma herança de cem contos de réis para
a família, mas que os herdeiros já queimaram a metade.
Conversa fiada Papo furado. Conversa mole. Conversa pra boi dormir. Promessa
exagerada feita com a intenção de não cumpri-la.
Vamos deixar de conversa fiada, que não sou bobo pra crer nisso.
Conversa vai, De prosa em prosa... Falando, falando...
conversa vem Encontrei Gilson na Rua. Conversa vai, conversa vem, fiquei sa-
bendo qu’ele vai estudar em Feira.
Convusca (tosse) Corruptela da palavra convulsa. Tosse convulsa.
Coque Cocó. Cabelos enrodilhados para trás e presos com grandes
misses.
Corda* Sinônimo regional de varal.
Coroca Pessoa idosa que se torna chata ou implicante.
Que sujeito mais coroca, aquele velho!!
Corno Marido traído pela esposa. Palavra muito utilizada como xin-
gamento, mesmo que a pessoa xingada não seja traída.
Corre-corre Tumulto. Pressa. Confusão.
Na saída do cinema, por causa da chuva foi um corre-corre danado.
Correria Pressa. Carreira. Azáfama.
Deixem de correria, meninos. Pra quê essa agonia toda!?.
Cós Parte reforçada das calças na altura da cintura, onde se situam
as passadeiras para uso do cinto.
Costurar pra fora Diz-se da mulher casada que está traindo o marido.
Cumadre, eu soube que aquela fulana tá costurando pra fora e o
marido nem desconfia.
Corte* Canal feito em áreas elevadas de um terreno, a fim de permitir
o assentamento de dormentes e trilhos ou a passagem de estrada
de rodagem.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Cova Buraco para enterrar animal morto. Buraco para colocar estaca
ou plantar algo. Sepultura.
Coxear Mancar. Manquejar. Andar puxando de uma das pernas.
Coxo Pessoa a quem falta uma perna ou pé. Pessoa que anda puxando
de uma das pernas.
Coxonilho* Pequeno tapete de tecido (geralmente feito com cordões), utili-
zado para forrar a sela.
Cozinhado O mesmo que cozido. Panelada composta basicamente de ver-
duras e legumes, contendo miúdos de boi ou porco.
Cristaleira Móvel requintado, geralmente disposto nas salas de jantar, que
serve para guardar a louça e os cristais.
Croché Renda feita à mão, utilizando-se de um par de agulhas longas
e linha apropriada.
Cruzado Moeda da época do Império, mas que circulou até meados dos
anos 50. Havia as de um cruzado (quatrocentos réis) e as de
dois cruzados (oitocentos réis).
Cuia Vaso pequeno feito de cabaça ou de madeira leve e macia, uti-
lizada para apanhar água ou cereais.
C’um, C’uma Corruptelas de Com um, Com uma.
C’uma casa dessa, eu também fazia festa, ora...
Cumadre Corruptela de comadre.
Cumadre Bela chega amanhã pra ver a afilhada.
Cumbuca Vaso feito de cabaça, geralmente usado para transportar água
ou cereais. Pequeno vaso utilizado no jogo de dados.
Cumeeira Parte mais alta do telhado, servindo de junção para as duas des-
cidas d’água.
Cupim Saliência em forma de corcova que marca touro.
Cunfundós* Fim do mundo. Lugar perdido.
Faça o serviço direito, senão te mando pr’os cunfundós do Judas....
Pedro mora num lugar tão esquisito que mais parece os cunfundós.
(A palavra é sempre usada no plural)
Cunha Calço de madeira, para evitar que a porta ou a janela bata pela
ação do vento.
Curral Cercado de pau-a-pique que tem por objetivo abrigar os grandes
animais de criação.
Vá lá no curral e traga o cavalo malhado. Cuidado que ele dá coice.
Curtume Salgadeira. Local onde se efetua o curtimento dos couros crus.
Cuspe Saliva. Cuspo.
Custar uma Ser muito caro.
fortuna A operação de Juca vai custar uma fortuna ao pai dele.
Cutucar Mexer em alguém utilizando-se das pontas dos dedos ou de

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Janelas Abertas
algum objeto pontiagudo.
Não se cutuca onça com vara curta.
D
Dado (a) Diz-se de pessoa que se relaciona bem com outras.
Ela é muito dada. Todo mundo gosta de seu jeito.
Danada* Grande. Intensa.
Tô com uma dor de cabeça muito da danada.
Danado (a)* Teimoso. Arguto. Inteligente.
Ô menino danado, esse Francisco!!
Dar banca Dar aulas particulares de reforço escolar.
Profa. Aurelina dá banca nos dias de sábado.
Dar (passar) Não pagar o que deve. Não cumprir com os compromissos.
calote Não venda fiado a Beltrano. Ele costuma dar ( passar) calote em
todo mundo.
Dar chabu Sair pela culatra. Diz-se do tiro que recua, atingindo o atirador.
Diz-se de fogo de artifício que explode antes da hora. Diz-se do
fato de alguém deixar de cumprir um compromisso.
Soltei um foguete para anunciar a chegada do nenê, mas ele deu
chabu. Tive que soltar outro.
Fulano deu chabu. Todo mundo ficou bravo com ele.
Dar corda Instigar. Apoiar. Provocar.
Vou dar corda àquele sujeito pra ver se ele me conta a verdade.
Dar o dia Obrigação que tinha o morador da roça para com o dono da
fazenda, de trabalhar para esse um ou mais dias por semana,
sem pagamento.
Dar o troco Descontar. Devolver na mesma moeda. Diz-se quando fazemos
com outrem algo de mal, como vingança pelo que nos foi feito
Dei o troco àquele sacrista, pelo prejuízo que ele me causou.
Dar ousadia O mesmo que dar trela. Permitir. Dar liberdade.
Não dê ousadia a esse rapaz, que ele não presta pra você.
Dar-se mal Sair-se em desvantagem. Sair perdendo. Arranjar encrenca.
Vai dar-se mal, com essa mania de meter-se na conversa dos outros.
Dar trela Dar confiança. Dar atenção. Dar ousadia.
Acho que você tá dando muita trela a esse seu amiguinho. Já, já ele
vai entrar aqui como se fosse a casa dele.
Dar uma topada Dar um encontrão. Bater-se em algo. Topar em.
Dei uma topada no batente da porta e quase quebrei a cara no chão.
Dar uma volta Sair para passear.
Vou dar uma volta por aí, pra ver se esqueço o que aconteceu.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Dar um jeito Consertar. Machucar uma parte do corpo.
Já dei jeito naquela porta rachada.
Dei um jeito nessa mão, que tá é doendo.
Debaixo da barra Diz-se dos filhos que são mantidos dentro de casa, sob o con-
-da- saia da mãe trole da mãe.
Aquela menina vive debaixo da barra-da-saia da mãe. Ninguém a
vê na porta de casa.
Debulhar Tirar o milho do sabugo ou o feijão da vagem.
Debuxar Fazer debuxos.
Debuxo Desenho prévio do que se pretende bordar ou costurar.
De cor Memorizado. Decorado. Guardado na memória. De memória.
A taboada, eu sei toda de cor.
Dedal Utensílio usado para proteger os dedos ao costurar-se algo.
Pequena medida de volume.
De tanto usar o dedal, aquela moça ficou com a ponta do dedo fina.
Bote aí um dedal de sal.
De dia Durante o dia.
Deixe pra fazer isso amanhã de dia.
De hoje a oito Dentro de uma semana.
De hoje a oito vou a Feira de Santana.
De hoje a quinze Dentro de quinze dias.
De hoje a quinze vou fazer prova final.
Deixar à mão Deixar algo em lugar fácil ou visível.
Deixei o livro à mão, pra quando voltar me lembrar de lê-lo.
De jeito Bem feito. Ajustado. Correto.
Isso é que é um trabalho de jeito, gente ...
De junto Vizinho. Próximo.
De junto da farmácia tá o bar.
De manhãzinha* Ao amanhecer.
Acordei bem de manhãzinha...
De mão cheia De primeira. Competente. O melhor.
Zé Freitas é um artista de mão cheia. Faz cada peça que parece arte.
De marca maior O maior. Useiro e vezeiro.
Aquele sujeito é um enrolão de marca maior. Sempre promete o que
não vai cumprir.
De metal Diz-se de qualquer objeto que seja feito de metal branco (alu-
mínio, estanho etc), desde que não seja a prata.
Esse anel tá barato pra ser de prata. Acho que ele é de metal.
De noite Durante a noite.
Hoje de noite vou até a casa de Zé Dias.
De noitinha* Ao entardecer. Na boca-da-noite.

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Janelas Abertas
De noitinha eu passo lá, pra gente sair juntos.
De primeira. De boa qualidade. Muito Bom. Excelente.
João é um amigo de primeira.
De repente Inesperadamente.
O céu estava azul, azul. De repente caiu aquele toró.
De riba De cima. Por cima. Em cima.
Tire essa caixa de riba da outra.
De tardinha Ao entardecer.
De tardinha o sol se abaixa e o calor melhora.
Desasnado Sabido. Preparado.
Aquele menino ficou desasnado depois que foi pra Bahia.
Desasnar Aprender. Sair da ignorância (deixar de ser asno).
Descarado(a) Sem vergonha. Sem pudor. Brincalhão.
Mas você é muito descarado. Fica aí contando essas coisas pras
meninas...
Desdobrada* Cachaça enfraquecida pela adição de água fervida.
Isso é desdobrada. De “Dois Leões” não tem nada.
Desengalhar Retirar os galhos. Desembaraçar.
O caminho da Picada estava quase fechado, depois do toró que der-
rubou muito pau. Tive que desengalhar para poder passar com o
carro-de-bois.
Despejando gente Cheio de gente até não caber mais.
O mercado, hoje, tá despejando gente pelas portas.
Despenar* Corruptela de depenar .Retirar as penas de ave abatida. Desco-
brir.
Despenei a galinha enquanto mamãe arrumava os temperos.
Despenei o sujeito, botando todos os seus podres para fora.
Despongar Descer da marinete ou do caminhão.
Desponguei no ponto da praça.
De tarde Durante a tarde.
Acho que o enterro só vai sair de tarde.
De tardezinha Ao entardecer.
De tardezinha pode ser que chova, armado como está.
Deu no que deu... O resultado foi esse. Por isso aconteceu.
- O que foi que houve?
- Brigaram até não agüentar mais.
- Mas, por quê?
- Começaram se xingando, e deu no que deu.
De vez Diz-se de fruta que está no ponto de ser colhida.
Essas bananas tão de vez. Leve para casa e enrole, para terminar
de amadurecer.

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Dez réis* Coisa de pouco valor.
Isso não vale nem dez réis.
Diacho Diabo. Coisa ruim ou malévola.
Que diacho de estória é essa que você tá contando?
Dia fechado* O mesmo que céu encoberto. Dia em que há possibilidades de
chuva, devido à aglomeração de nuvens.
Hoje o dia amanheceu fechado. Vai chover lá pras nove horas.
Dindinha Forma carinhosa de chamar-se a madrinha.
Bença, dindinha...
Dinheiro jogado Compra malfeita. Compra inútil.
fora Essa calça foi dinheiro jogado fora. Ficou apertada em mim.
Dinheiro miúdo Dinheiro trocado em cédulas ou moedas de pequeno valor,
próprio para o troco.
Preciso arranjar dinheiro miúdo pra feira amanhã.
Doca Cego de um olho. Zarolho.
Ele ficou doca depois que levou aquele tiro.
“Dois Leões” Aguardente fabricada no Alambique ”Dois Leões”, tão popular
que passou a ser sinônimo de cachaça.
Me dá uma “dois leões” aí, daquela de Feira.
Donzelo Rapaz que ainda é virgem.
Tu vai morrer donzelo, se continuar assim...
Dordolho Corruptela de dor-dos-olhos. Conjuntivite.
Dorna Barrica de grandes dimensões, para a guarda de bebidas a granel.
Dor nos quartos Dor nos quadris. Dor de quarto.
Amanheci hoje com uma dor danada nos quartos. Será que chá de
quebra-pedra é bom pra isso!?
E
É batata... É garantido. É bom. É certo. É seguro.
Esse cara é batata. Sempre chega na hora.
Isso que ele contou é batata. Pode acreditar.
É de hoje... Há muito tempo. Faz tempo.
É de hoje que ele saiu. Já deve tá chegando lá.
Eira Propriedade rural ou urbana sem construção. Título de posse
de terra.
Eira e beira Diz-se de alguém que tem origem nobre ou importante.
Aquele ali tem eira e beira. O pai foi coronel, daqueles....
Embalar Ninar. Acalentar. Pôr para dormir.
Embale ele que o sono já tá vindo.
Embicar Dirigir-se. Tomar a direção de...

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Janelas Abertas
Ele desceu a rua e embicou por aquela esquina.
Embromação Enrolação. Tapeação. Embuste.
Isso tudo que esses políticos dizem é uma embromação pra enganar
os bestas.
Embrulhar Fazer embrulho. Enrolar. Embalar. Tapear.
Vou embrulhar sua compra com papel de presente, pra ficar mais
bonito.
Ele me embrulhou com aquele palavreado de doutor.
Emburacar* Entrar pelo buraco. Passar por baixo da cerca.
Emburaque ali e apanhe aquela manga. Vá logo...
Hoje, no circo, vamos emburacar sem pagar.
Empinar Fazer subir( papagaio). Erguer. Saltar bruscamente (a montaria).
Mal peguei nas rédeas, o cavalo empinou, quase me derrubando.
É natural* É normal. Está certo.
É natural que ele se zangue quando falam mal de seu pai.
Encaixe Torneado feito em peça de madeira, com a finalidade de fixá-la
noutra peça provida de rebaixo. As duas peças assim conju-
gadas são ajustadas mediante a aplicação de uma cavilha. Esse
procedimento é comum aos marceneiros mais experientes.
Zé Freitas não usa prego nem parafuso. É tudo no encaixe, na cavi-
lha e no rebaixo.
Encardido Sujo. Manchado. Mal lavado.
Essa roupa nem parece que viu água. Tá toda encardida.
Encher a burra Encher o cofre. Ganhar muito dinheiro.
Vou encher a burra se esse negócio der certo.
Encomenda Coisa que se solicita que alguém traga de algum lugar. Aquilo
que se pediu.
Titia, a encomenda que a senhora pediu ao Manoel chegou e está na
sua cama.
João, não trouxe sua encomenda porque não tive tempo de procurar.
Encomendar Solicitar algo. Fazer pedido antecipado de algo.
Fui lá na venda de Tuca e encomendei pra sábado duas latas de
goiabada.
Encosto Apoio. Ponto de apoio. Entidade espírita que protege os vivos.
Esse balcão é o encosto para os sacos de farinha ainda não costurados.
Aquele moço parece que tem um encosto protegendo-o do mal.
Encrenca Confusão. Briga.
Se faltar luz hoje, vai ter encrenca no cinema.
Enfonar Faltar com o acertado.
Ele marcou comigo mas enfonou. Fiquei lá esperando e nada...
Enganchar Colocar no gancho. Prender no gancho Parar. Quebrar. Com-

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
plicar. Ficar difícil.
Enganche essa rede alí.
O carro-de-bois enganchou na ladeira da Picada. Parece que
quebrou o eixo.
A situação enganchou. Soube que vai haver três candidatos a prefeito.
Os chefões não sabem como resolver o rolo.
Enganação Embromação. Enrolada. Tapeação.
Isso que você tá dizendo é uma enganação pra besta ouvir.
Enganjento Chato. Enjoado.
Deixa de ser enganjento, menino. Fica aí com essa cara de choro.
Enguiço Mau olhado. Quebra de alguma coisa.
O que é isso? – É enguiço.
O carro deu um enguiço na subida da ladeira.
Enjoado Enganjento. Chato. Antipático. Diz-se de alguém que está com
problemas de enjôo.
Mas como você tá enjoado hoje. Não tem quem suporte.
Fiquei enjoado com aquele doce que comi.
Enlameado(a) Sujo (a) de lama. Breado (a).
Caí na estrada e fiquei todo enlameado.
Enrodilhada (o) Na forma de rodilha. Com rodilha na cabeça.
Enrolada Tapeação. Enganação. Embromação. (Usa-se, com tais signi-
ficados, sempre no feminino).
Aquele rapaz tá de enrolada com essa conversa de emprego em Feira.
Enrolado (a) Confuso. Complicado. Envolvido em algo errado.
Ô sujeito mais enrolado. Não se entende o que ele fala.
Acho que Zefa tá enrolada com alguma coisa. Anda tão retraída...
Enrolão Mentiroso. Falso. Tapeador. Treteiro.
Aquele sujeito é um enrolão. Não dá pra acreditar no que ele fala.
Enrolar Embrulhar. Empacotar. Tapear. Enganar.
Enrole aí dois pães cacetinhos.
Se você me enrolar, ficamos de mal.
Enrustido (a) Fechado. Introvertido. Encaixado.
Aquele ali é um pederasta enrustido.
As peças foram enrustidas e nem se nota a emenda.
Entalado Engasgado. Enfiado no meio de algo.
Fui comer cocada rindo e fiquei entalado.
Trouxe o livro entalado no meio da tralha. Deu foi trabalho para
achar.
Entremeio No meio de... Entre um e outro.
Coloque essa bolsa no entremeio das malas.
Entretela Tecido grosso que se coloca como forro interno de algumas

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Janelas Abertas
partes das vestimentas, a exemplo do cós das calças.
Entrevado Com problemas nas pernas. Torto. Diz-se daquele que sofreu
forte pancada nas pernas e ficou - ainda que por pouco tempo-
com dificuldades para se locomover.
Levei um escorrego lá na fonte e fiquei todo entrevado.
Enturmação Agrupamento. Formação de turma. Formação de grupo.
Ontem foi uma enturmação geral lá no ginásio, pra ouvir o Prof.
Fernando falar.
Enturmar-se Entrar numa turma. Fazer amizade com um grupo.
Logo que cheguei lá me enturmei.
Enxó Ferramenta de carpinteiro usada para desbastar a madeira.
Enxu Espécie de marimbondo.
Enxúndia Gordura das aves, às vezes usada como remédio para inflamação.
Enxurrada Água de chuva que desce pelas ruas ou pelos caminhos e ladeiras.
Eta enxurrada boa pra soltar barquinho.
É o diabo...* Está difícil! Vamos ter problemas....
Do jeito que as coisas vão, é o diabo...
Esbagaçar (-se) Quebrar em pedaços pequenos. Cair ao chão e machucar-se.
Os tijolos estão todos esbagaçados.
O mamão caiu do pé e esbagaçou-se todo.
Pedro esbagaçou-se na descida da ladeira.
Esbojar* Derramar pelas bordas.
O leite ferveu tanto que esbojou.
Escalda-pés Ato de mergulhar os pés do doente em água bem quente, a fim
de apressar a cura (esse procedimento era muito comum nos
casos de febre alta ou resfriado).
Escaldar Introduzir algo em água fervente, a fim de eliminar as impurezas.
Maria, assim que despenar a galinha, escalde no caldeirão grande.
Escarradeira Vaso baixo e redondo, com tampa furada, esmaltado, normal-
mente colocado nos cantos das salas e quartos das casas mais
possuídas, para que as pessoas cuspissem dentro, evitando-se,
assim, que o fizessem no chão.
Escolher a dedo Fazer uma ótima escolha. Ser meticuloso na escolha.
Zé foi escolhido a dedo por Maneco pra ajudar ele na venda.
Esconjurar Amaldiçoar. Deseja o mal.
Sai daqui coisa ruim. Te esconjuro!
Escopro Ferramenta usada pelos marceneiros para desbastar a madeira
lavrada.
Escora Apoio. Reforço. Suporte que serve para apoiar ou reforçar a
sustentação de um objeto, parede etc.
A minha escora é o meu pai, que me ajuda em tudo.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Coloque uma escora naquele muro, senão basta chover e ele cai.
Escorar Colocar escora em algo.
Escorar-se Viver às custas de outro. Amparar-se em outra pessoa.
Casou antes da hora e agora fica se escorando na gente.
Esculhambar Fazer mal aos outros. Falar mal de alguém. Fazer bagunça.
Danificar.
João esculhambou a vizinha ontem, lá na festa.
Deixa de esculhambação, pessoal.
O rádio tá todo esculhambado.
Espada Fogo de artifício em forma de canudo, muito usado nas noites
de São João.
Espadinha* Fogo de artifício em forma de canudo, muito usado nas noites
de São João, parecido com a espada, embora menor e mais fina.
Espanador Utensílio doméstico feito de fibras de sisal ou de pindoba, uti-
lizado para sacudir a poeira que se acumula sobre os móveis.
Penacho*.
Espanar Sacudir a poeira que se acumula sobre os móveis, utilizando-se
de um espanador.
Espanta-boiada* Pássaro de médio porte, de cor branca, que voa em revoada
e fazendo muito barulho.
Corre, José, fecha a porteira pro gado não sair, qui vem ali um
mundo d’espanta-boiada...
Esperteza Capacidade de ser esperto, no sentido de enganar os outros.
Levar vantagem.
Você viu a esperteza daquela mulher? Terminou levando a melhor.
Esperto(a) Sabido. Inteligente. Vivo.
Mas que menina esperta, aquela filha de Maria.
Espevitada(o) Falastrona. Petulante. Posuda.
Viu que moça mais espevitada, aquela !?
Espora Instrumento de montaria que se ata ao sapato ou bota e que
serve para incitar a montaria.
Esporado Diz-se do animal de montaria que está com ferimentos causa-
dos por esporas.
Esporro Bronca. Reclamação.
Espoucar Espocar. Papocar. Pipocar. Explodir.
Mal iniciou-se a festa, os foguetes começaram a espoucar.
Espreguiçadeira Espécie de cadeira com o assento e o encosto em lona e que
dispõe de recurso para graduar a inclinação do encosto.
Espreguiçar-se Estirar o corpo.
Espumoso Cheio de espumas. Com muita espuma.
Gosto de beber leite espumoso, daquele que mal saiu do peito da vaca.

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Janelas Abertas
Esquadro Ferramenta de usos dos marceneiros e pedreiros, para permitir
o ajuste de madeiras ou paredes e muros num ângulo reto com
as suas perpendiculares.
Esquipar Diz-se da capacidade de certos cavalos de andarem saltitando.
O cavalo de seu avô é um esquipador de primeira.
Estabanado (a) Descontrolado. Estouvado.
Que moça mais estabanada, aquela. Deixa cair tudo...
Estaca Barrote irregular de madeira lascada, usado na confecção de
cercas.
Estacar Parar. Ficar quieto.
Ao ver a namorada, ele estacou.
Estado Situação. Condição.
O estado dele não tá nada bom depois que foi pra roça.
Estambo* Corruptela de estômago.
De tanto comer mocotó fiquei com o estambo doendo.
Estar à mão Estar em lugar fácil ou visível.
Este remédio deve estar à mão.
Estar ansiando Estar com fadiga. Respirar com dificuldade.
Ela sofre de asma, por isso está ansiando desse jeito.
Estar na corda Diz-se de alguém que se encontra numa situação difícil.
bamba Paulo tá na corda bamba naquele emprego.
Esterco Fezes de animais, notadamente os de criação.
Estiagem Falta de chuva. Estio. Verão.
Com esta estiagem demorada, não vai ter safra de fumo que preste.
Estirar o corpo Espreguiçar-se.
Acordei, mas fiquei naquela de estirar o corpo, com uma preguiça
danada.
Estouro Papoco. Tiro. Pipoco. Explosão.
Estouvado (a) Imprudente. Estabanado. Grosseiro.
Toma jeito, menino. Deixe de ser estouvado.
Estranhar Não reconhecer. Desconfiar.
Ele tá chorando assim, porque te estranhou...
Estrelinha* Fogo de artifício usado nas noites de São João, constituído de
papel enrolado contendo pólvora colorida que, ao ser queimada,
solta fagulhas na forma de pequenas estrelas cintilantes.
Estribo Apoio lateral para os pés do cavaleiro, normalmente feito de
antimônio ou de zinco.
Estripulia Algazarra. Brincadeira.
Os meninos estão fazendo estrepulias na rua.
Estrompado Desajeitado. Torto. Grosseiro. Machucado.
Aquele menino parece que é estrompado.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Essa mesa está com os pés estrompados.
Levei uma queda feia que me deixou estrompado.
Estrondo Estouro. Tiro. Papoco. Pipoco. Explosão
Estropiado Muito machucado. Muito cansado.
Essa viagem a Pedrão deixou meu cavalo estropiado.
Tou estropiado de tanto andar.
Estrovenga* Ferramenta agrícola com duplo corte, utilizada para a limpeza
dos pastos e roças.
Estrume Fezes de animais de criação misturadas com folhas secas, for-
mando uma espécie de adubo.
Empilhe o estrume do galinheiro, que é pra botar no jardim.
Estuciar* Tramar; pensar; meditar sobre algo que se pretende fazer.
Astuciar.
Ana anda estuciando alguma coisa. Tá tão calada...
Esturricar O mesmo que estorricar. Torrar em demasia.
Fique de olho no toicinho que tá no fogo pra não esturricar.
F
Facão Ferramenta de uso na agricultura para o corte de galhos de
árvore e de pequenos arbustos. Faca grande, também utilizada
como arma.
Falada Diz-se de moça ou mulher de quem se fala mal, geralmente nos
aspectos envolvendo sexo.
Sicrana tá mais falada do que mulher da vida.
Falar pelos Falar em demasia. Tagarelar.
cotovelos Não gosto daquele rapaz. Ele fala pelos cotovelos.
Fardo Conjunto de coisas ajustadas numa prensa e devidamente
amarradas. Os fardos têm pesos diferentes, em função do que
eles contêm. Um fardo de fumo, por exemplo, pesa em volta de
50 quilos. Já o de charque chega a pesar mais de 100 quilos.
Farelo A parte mais grossa de qualquer tipo de farinha. O resultado da
passagem da farinha pela peneira.
Faro Instinto. Intuição. O olfato dos animais.
Se meu faro não falhar, vamos ter confusão essa semana.
Fastio Falta ou perda do apetite.
Tou c’um fastio danado. Não agüento comer nada.
Fátima Esmalte de unha.
Comprei um vidro de fátima vermelha pra minha namorada.
Fateiro Açougeiro que negocia com fato.
Fato Vísceras de animais de criação. Miúdos (de boi, porco, carneiro,
galinha).

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Janelas Abertas
Quando sair pra feira, passe no mercado de fato e compre meio quilo
do de boi pro almoço de domingo.
Fazenda Sinônimo de tecido.
Naquela loja tem fazenda boa, para as tabaroa...
Fazer feira Ir à feira e efetuar as compras da semana.
Vou fazer feira, mas só posso gastar dois mil reis.
Fazer fita Fingir. Simular.
Aquele choro é ele fazendo fita.
Fazer pouco caso Não dar importância. Menosprezar.
Carlos fez pouco caso do que falei. Ele vai ver o resultado.
Fazer pouco de ... Mangar de alguém. Atacar o outro com calúnias ou achaques.
Dei-lhe um sopapo pra ele deixar de fazer pouco de mim.
Fazer-se de santo Passar por bonzinho.
Aquele sujeito se faz de santo, mas não vale nada. Só quem conhece
a peça, sabe.
Fechar navalha Ligar a entrada de luz de uma casa ou de uma rua. O oposto
de abrir navalha (cortar a luz).
Alfredo da Luz passa toda boca-da-noite fechando as navalhas das
ruas. De manhazinha, abre as navalhas mal o sol nasce.
Fecho-écler Sinônimo de zíper. Consta de uma tira dupla de tecido refor-
çado, com serrilhas dentilhadas que se entrelaçam quando se
aciona a trava de união.
Fedor Mau cheiro. Odor desagradável.
Como fede aquele beco!!!
Feição Aparência. Jeito. Forma. Aspecto.
João tá com a feição de quem sofre de grande mal.
Essa boneca tem uma feição tão parecida com gente, que mais parece
que fala.
Feito a facão Malfeito. Feito às pressas.
Essa mesa parece que foi feita a facão. Tá toda bamba.
Fel Vesícula biliar dos animais de criação. Sinônimo de muito
amargo.
Depois que sangrar, lembre de tirar o fel, pra carne não ficar amar-
gando.
Esse remédio amarga como fel.
Ferrão Vara longa provida de ponta de ferro, utilizada pelo carreiro
para estimular os bois-de-carro a andarem.
Ferrado Diz-se do animal que já foi marcado a ferro. Campado. Enrolado.
João tá ferrado. Vai perder o emprego.
Ferrar Marcar os animais com o ferro-de-marcar em brasa. Colocar
alguém na lista negra. Vingar-se.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Aquele sujeito vai se ferrar comigo.
Ferrar-se Enrolar-se. Complicar-se.
Eu me ferrei no exame de admissão.
Ferroada Mordida de inseto.
Não saia pro quintal não, que as abelhas tão soltas e vão lhe ferroar.
Ficar boba Ficar surpresa. Surpreender-se.
Fiquei boba quando ele me disse que me amava. Não acreditei.
Ficar de mal Acabar a amizade. Estremecer-se. Rusgar.
Vou ficar de mal com você, se continuar com essa mania de me
chamar por apelido.
Ficar no barricão Não casar. Ficar solteira.
Sicrana, apesar do dote e da beleza, terminou ficando no barricão.
A culpa foi da mãe, que não deixava ela se mostrar.
Ficar tiririca Ficar zangado. Aborrecer-se.
Zefa ficou tiririca com aquela pintura mal feita na casa.
Fifó Sinônimo de bibião, bibiano: pequeno candeeiro, feito com
frasco de vidro e pavio de algodão em mecha, alimentado por
querosene. Às vezes possui alça de folha-de- flandres.
Filho natural Filho de pais solteiros.
Fina flor A elite. Os ricos. Os poderosos.
Aqui somente a fina flor tem vez. Pros outros é somente chicote.
Fincar Cravar. Enfiar. Plantar.
Juca passou o dia fincando pé de pau no pasto.
Fio Gume. A parte afiada da faca ou de qualquer instrumento de corte
Fita Fingimento. Simulação.
Aquela estória de que tá com dor é pura fita a fim de não ir para a
escola.
Fitar Olhar com insistência. Olhar fixamente.
Por que tá me fitando assim? Parece que nunca me viu.
Flandre Corruptela regional de Flandres. A folha-de-flandres.
Esse caneco é de flandre e aquele é de zinco.
Fodido Encrencado. Enrolado. Lenhado.
Você tá fodido, se perder de ano.
Fofo Mole. Sem consistência. Fraco. Diz-se de criança bonitinha.
Esse bolo ficou fofo. Vai azedar logo.
Mas que menininha mais fofa !
Foice Ferramenta de uso na agricultura para cortar as ervas daninhas
e arbustos indesejáveis existentes numa plantação.
Folgado (a) Intrometido (a). Abusado (a). Preguiçoso.
Deixa de ser folgado, rapaz. Quem te chamou na conversa??
Chico é muito folgado!! Só trabalha na base do empurrão.

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Janelas Abertas
Folha Cachaça com folha.
Me dá uma folha aí...Pode ser cidreira.
Foliador* Instrumento de uso na agricultura para a aplicação de inseticida
nas plantações.
Foliar O ato de aplicar inseticida nas lavouras, notadamente para matar
formigas, usando o foliador.
Fonte Nascente de água que se acumula na superfície.
Forja Fornalha utilizada pelos ferreiros para aquecer ao rubro as bar-
ras de metal a serem forjadas. O conjunto de ferramentas pró-
prias do ato de forjar metais.
Na oficina de Olavo tem uma forja de primeira.
Formão Ferramenta de marceneiro, usada para abrir canais, encaixes
e rebaixos na madeira.
Foscro* Corruptela de fósforo, muito utilizada na zona rural.
Me dê duas caixas de foscro marca “Olho”.
Freguês Cliente. Comprador.
Ele é nosso freguês desde o tempo de meu pai.
Freguesia Os fregueses de um determinado negócio. Localidade subme-
tida à proteção de um determinado santo da Igreja Católica.
Minha freguesia tá aumentando depois que abri o ponto novo.
Esta freguesia é vossa, tudo nela vos pertence.
Fresco Vento leve. Pessoa afeminada.
Fiquei a tarde toda pegando um fresco na varanda.
Aquele rapaz é um fresco.
Fretar Corruptela de flertar.
Minha filha, moça de família não fica fretando pela rua.
Aquele rapaz freta com tudo quanto é moça daqui.
Frieira Coceira entre os dedos dos pés.
Fritada Comida caseira, feita com ovos batidos e com recheio de legumes
e carne picada. Qualquer comida frita em azeite.
Frouxo O que está folgado. Pessoa sem coragem.
Deixei o parafuso frouxo para facilitar o trabalho.
Ele é um frouxo. Não agüenta um tapa.
Fruta-Pão Fruta da árvore de mesmo nome, com muita polpa e com tex-
tura macilenta. Deve ser cozida antes de ser consumida.
Fuá Barulho. Confusão.
Que fuá é esse aí, menina?!
Fubá Farinha feita de milho ou arroz moído.
Hoje o jantar vai ser mingau de fubá de milho com canela em pó..
Fuçar Remexer. Mexer. Bisbilhotar.
O porco baé tá sempre fuçando naquele canto do chiqueiro. Já fez

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
um buraco.
Não fuçe as minhas coisas.
Fujão* Diz-se do noivo que abandona a noiva na hora do casamento.
Fuleiro Ordinário. Sem valor. Imprestável. Vagabundo.
Que emprego mais fuleiro esse que você arranjou !
Furador Ferramenta própria para fazer furos em sola e em borracha,
usada pelos sapateiros e coureiros.
Fumeiro Local onde se expõe carnes à ação da fumaça, para a cura.
Essa carne é de fumeiro... E é nova...
Fungar Aspirar a secreção nasal. Demonstrar vontade de chorar.
O que é que você tem, que tá fungando assim!??
Futucar Mexer. Bulir.
Esse menino é um perigo. Está sempre futucando onde não deve.
Futrica Fuxico. Arenga. Provocação.
Chica já gosta de uma futrica!.
Fuxico Futrica. Arenga. Ato de espalhar notícias de forma destorcida.
Aquela mulher já gosta de um fuxico.
Fuxiqueira (a) Pessoa que costuma fazer fuxico.
Deixa de ser fuxiqueira, mulher. Não tá vendo que vai arranjar
confusão!?
Fuzuê Confusão. Barulho. Arruaça.
Que fuzué é esse aí fora, menino? Vamos parar com isso?
G
Gabola Vaidoso(a). Pretensioso(a).
Maria é muito gabola. Também pudera, ela é linda.
Gago Aquele que gagueja.
Gagueira Deficiência da fala.
Gala Sinônimo chulo de esperma.
Galado* Sujo de gala.
Gamela Pequeno vaso de madeira na forma de bandeja funda, usada
para a manipulação de alimentos.
Garrancho Escrita mal feita. Caligrafia ruim. Pequenos galhos secos, atira-
dos ao chão
Esse menino não aprende nada. Somente sabe fazer esses garranchos.
O quintal está cheio de garranchos.
Garrar* Corruptela de agarrar. Pôr-se. Começar.
O trabalho foi tanto que garrei a maginar na canseira de amanhã.
Garrincha Pássaro de belo canto, de cor parda com listas negras, que cos-
tuma freqüentar a proximidade das casas.

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Janelas Abertas
Garrote Boi ainda novo. Bezerro quase adulto.
Gastar o que Endividar-se.
não tem Geo gastou o que não tinha para casar a filha. Agora tá enrolado.
Gato* Sinônimo regional de ladrão.
Cuidado com aquele sujeito. Ele é gato.
Gatos pingados Pouca gente. Poucos.
A festa foi mixa. Tinha somente uns gatos pingados dançando.
Gás Sinônimo de querosene.
Vá lá na venda e compre dois litros de gás. Leve a lata.
Gelosia Parte da janela provida de gretas que se abrem e se fecham.
Gênio Índole. Temperamento. Estado de espírito.
Ele tem um gênio danado. Por qualquer dá cá aquela folha, já tá brigando.
Gentinha Forma depreciativa de referir-se às pessoas humildes.
Giba Corcunda.
Gilete Diz-se da pessoa, homem ou mulher, que mantém relações bissexuais.
Goela Garganta.
Eu amanheci com a goela inflamada. Acho que vou pegar resfriado.
Gogo Doença das aves que provoca acúmulo de secreção nas vias res-
piratórias, matando-as por asfixia.
Aquela galinha está com gogo. Vou tirar ela do terreiro, pra não
pegar nas outras.
Goma Cola feita de amido de mandioca. O próprio amido de mandioca.
Gongují* Sinônimo regional de centopéia.
Gorgulho Pequeno besouro que infesta os grãos de feijão e milho. Caruncho.
Gosma Muco viscoso expelido pela boca. Secreção de certas plantas e
animais, com aspecto viscoso.
Gosmenta Com aparência de gosma. Nojenta.
Tinha uma lesma gosmenta na minha cama. Me deu um nojo.
Grade Espécie de porta contendo gelosia, normalmente usada para
separar a casa do jardim ou a entrada principal da parte íntima
da casa.
Granel Produto seco, estocado em quantidade e sem embalagem.
Graveto Pequeno galho seco.
Greta Falha em tábua, em tronco de árvore ou em pedra . Abertura de
porta ou janela, de forma disfarçada. Brecha.
Aquela mulher costuma ficar olhando pela greta da janela os homens
que passam.
Guarda-chapéu O mesmo que porta-chapéu. Móvel de madeira com suportes
apropriados para as pessoas colocarem o chapéu, ao entrarem
em casa. Alguns são providos de espelho e de bandeja inferior,
para os chinelos.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Guarda-comida Armário de madeira, geralmente provido de telas nas laterais,
usado para a estocagem de alimentos perecíveis. Localiza-se
na cozinha ou na copa.
Guarda-pó Espécie de capa usada sobre a roupa, para protegê-la da poeira.
Os barbeiros costumavam trabalhar usando um guarda-pó.
Guardar a Esconder. Guardar muito bem guardado.
sete chaves Guardei a sete chaves a escritura da casa.
Gude Pequena bola de vidro colorido usada em jogos caseiros.
Vão brincar de gude lá no corredor. Deixem eu arrumar a casa.
Guiador* Menino que vai a pé na frente da primeira parelha de bois,
indicando o caminho a seguir pelo carro-de-bois.
Gume A parte amolada da faca ou de qualquer instrumento de corte.
Fio.
H
Haveres Bens. Posses.
Aquele homem está rico, com todos aqueles haveres...
Hoje vai ter...* Vai haver confusão. Vai ter briga.
Já vi que hoje vai ter. Essa gente toda bebendo sem parar...
Homem Sinônimo de coragem. Qualidade de ser valente..
Aquilo é que é um homem.
Venha brigar, se você é homem.
I
Ilhós Peça oca de metal aplicada na roupa para a passagem de fita ou
cadarço.
Impaludismo Malária. Sezão.
Inhaca Sovaqueira. Cêcê. Mal cheiro oriundo das axilas.
Vije, mas como você tá com uma inhaca danada, rapaz...
Inhá* Corruptela regional e mestiça de sinhá (senhora).
Inhá sim* Corruptela regional e mestiça de sim, senhora.
Inhô* Corruptela regional e mestiça de sinhô (senhor).
Inhora* Corruptela regional e mestiça de senhora.
Inhô sim* Corruptela regional e mestiça de sim, senhor.
Inteiro Diz-se do animal de criação que não foi castrado.
Invenção Mentira. Conversa inventada.
Deixe de invenção, que a estória não é essa.
J

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Janelas Abertas
Jabá Carne de charque. O termo jabá é basicamente utilizado pelo
pessoal da roça. Os da cidade usam, sempre, a expressão carne
de charque ou simplesmente charque.
Jaleque* Corruptela de jaleco. Blusão feito de couro de boi curtido, com
acabamento acolchoado, usado pelos vaqueiros.
Jataí Pequena abelha de coloração amarela, que produz um mel
muito concentrado e rico em própolis.
Jirau Estrado feito de varas de madeira sobre base de barro, usado
como cama.
Joça Coisa sem valor. Objeto feio.
Deixa essa joça aí. Pra que você quer essa porcaria??
Jogar barro Sondar. Ver como as coisas estão.
na parede Tonho veio aqui e ficou jogando barro na parede, pra ver se eu falava
da estória da Chica.
Jogo do pauzinho Espécie de aposta que consiste em tentar adivinhar quantos
paus de fósforo o adversário tem nas mãos fechadas.
Judiar Maltratar. Ferir.
Chico está sempre judiando daquele cachorro.
Junta As articulações do corpo humano (dos braços, das pernas, dos
dedos etc).. Local onde se dá a união de duas tábuas. Junção de
duas paredes perpendiculares.
Junta-de-bois Conjunto de dois bois atrelados a uma canga, para puxar o carro
ou o arado. Parelha.
Juntar Ajuntar. Agrupar. Reunir. Amontoar.
Junte suas coisas e caia fora de minha casa. Filha minha não se amiga.
Jura Juramento. Promessa.
Eu fiz uma jura de que não vou mais falar com ela.
L
Labuta Trabalho. Lide diária. Esforço.
Hoje a labuta foi dura lá na venda. Teve muito freguês.
Ladrilho Cerâmica geralmente utilizada em paredes, de cor branca.
Laia Qualidade ou classe de uma pessoa. Geralmente é usado com
teor depreciativo.
Não quero conversa com gente da sua laia.
Lambe-lambe Fotógrafo que trabalha com sistema rudimentar de revelação.
Fotógrafo de feira livre.
Lamparina Pequeno fifó, próprio para uso diante dos oratórios.
Teca, vá acender a lamparina de Santa Luzia.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Lapada De uma só vez. Tarefa.
João fez o trabalho de uma lapada só.
Essa lapada é sua.
Lapinha Presépio montado nas semanas que antecedem o Natal. A la-
pinha, montada uma primeira vez, deverá ser repetida por
sete anos, “pra não dar azar”.
Lasca Pedaço de madeira ou pedra, com aspecto afiado ou pontudo.
Lascar Rasgar. Romper. Quebrar em lascas.
Lasquei o papel bem picadinho, ali na frente dele.
Latrina Privada. Sentina. Sanitário.
Eu já lhe disse que não se vai à latrina sem fechar a porta. Que coisa !!
Lavadeira Lavandeira. Pássaro que tem o hábito de procurar comida nas
bordas das poças d’água e dos riachos. Tem cor branca e marca
preta nos dois lados da cabeça.
Lavar a alma Sentir-se realizado. Vingar-se de algo.
Com essa compra, lavei a alma daquele prejuízo que tive o ano
passado.
Pedro levou um tombo e quebrou o braço. Lavei a alma daquele
tapa que ele me deu.
Légua Medida de distância, equivalente a, aproximadamente, seis mil
e seiscentos metros.
Daqui até a fazenda de Tiago dá duas léguas.
Leira Montículo de terra entrecortado por pequenas valas, para o
plantio de verduras.
Leitão Porco novo. Bacorinho.
Leite coalhado Leite cortado. Leite talhado. Leite que já entrou em fermentação.
Leite cortado Leite talhado. Leite que passou da hora de ferver. Leite já em
estado de fermentação.
Esqueci de ferver o leite logo cedo. Agora já tá cortado.
Leiteiro Aquele que entrega leite nas portas, conduzido por jumento
provido de camburões de alumínio. Vendedor de leite.
O leiteiro hoje queria entregar leite cortado.
Leite talhado Leite cortado. Leite coalhado. Leite em estado de fermentação.
Esse leite talhado, vou guardar pra fazer coalhada.
Lenhado* Enrolado. Fodido.
João tá lenhado, com aquela estória de andar falando dos outros.
Lenhar Queimar. Manchar a reputação de alguém.
Você vai ter o troco. Vou lenhar você com a professora.
Lerdo Lento. Preguiçoso.
Que sujeito mais lerdo, aquele ali. O trabalho dele não anda.
Léria Mentira. Conversa Fiada. Pilhéria.

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Janelas Abertas
Deixe de léria menina, senão você fica de castigo.
Lero-Lero Enrolação. Tapeação. Conversa fiada.
Pare com o lero-lero, que aqui ninguém é besta.
Leva Ajuntamento de pessoas. Grupo. Magote.
Tinha muita gente no enterro? – Tinha uma leva.
Leva-e-traz Fuxiqueira(o). Fofoqueira (o).
Aquele ali é um verdadeiro leva-e-traz. Não dá pra confiar.
Levar a melhor Sair ganhando. Levar vantagem.
Zeca sempre leva a melhor no sinuca.
Liberto (a) Ousado (a). Atrevido (a).
Aquela moça é muito liberta pra meu gosto.
Libra Medida de peso do sistema inglês, equivalente a, aproximada-
mente, 500 g, usada habitualmente pelas populações rurais nas
compras de gêneros alimentícios.. Usa-se, também, a meia libra
(250 g.).
Licuri Corruptela de ouricuri. Aricuri. Palmeira baixa e frondosa, que
possui sementes na forma de pequeninos cocos.
Livrinho de violeiroLivro de cordel. Literatura de cordel.
Comprei dois livrinhos de violeiro pra ler na farra de hoje.
Lodo Sujeira. Limo. Mofo.
A beira da fonte estava cheia de lodo.
Lombriga Verme que infesta o ser humano.
Esse menino tá amarelo de tanta lombriga. Dê um purgante de óleo
de rícino pra resolver isso..
Lufada Rajada. Ventania intermitente e forte.
Hoje pela manhã era cada lufada de fazer tremer as telhas.
Lugarão Lugar muito grande. Cidade muito grande.
Dizem que Alagoínhas é um lugarão. Deve ter muita escola.
M
Mabaço (a) Sinônimo popular de gêmeo (a).
Machado Ferramenta agrária, própria para o corte de árvores.
Machucado Ferida. Ferimento. Pereba.
Esse machucado foi o que ficou da queda que levei.
Madorna Ato de dormir por pouco tempo e levemente.
Tirei uma madorna e fui trabalhar.
Madrinha Animal que vai na frente da tropa puxando o caminho.
Madurecer Corruptela de amadurecer.
Se esse abacate não madurecer logo, vai ficar travoso.
Mãe-d’água Expressão regional sinônimo de Iara, a rainha dos rios .

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Magarefe Açougueiro.
Maginar Corruptela de imaginar. Pensar. Julgar.
Ouvindo a conversa dele sobre a Bahia, garrei a maginar como é que
era lá.
Magoar Ferir. Ofender. Causar dor.
Não mexa na ferida, senão magoa e demora de sarar.
Ele me magoou com aquela conversa sobre seu avô.
Magote Muito. Grande quantidade.
Hoje tinha um magote de gente no mercado.
Mais logo* Expressão muito usada na região, com o significado de mais
tarde, logo mais, daqui a pouco .
– Você quer um café? - Agora não, mais logo.
Malassado Carne assada, geralmente no espeto, de forma a manter a polpa
suculenta, avermelhada quando fatiada.
Maldar Julgar mal. Pensar mal de alguém.
Não digo que estou maldando, mas acho que Tonho tá escondendo
alguma coisa.
Maleita Termo regional sinônimo de malária.
Mal e mal Com muita dificuldade.
Mal e mal consegui vender nesse sábado a metade do passado.
Malhada Área cercada próxima ao curral, utilizada para se fazer a sepa-
ração das reses.
Malícia* Planta sensitiva muito comum na região, que possui a caracte-
rística de fechar as folhas quando tocada.
Maluquice Tolice. Doidice. Bobagem. Coisa de maluco.
Mamparra Embromação. Tapeação.
Com esse calor a mamparra é geral: todo mundo fica fazendo de
conta que faz.
Mamparrear Embromar. Tapear. Fazer de conta.
Manaíba O mesmo que manaíva, maniva. Pedaço do caule de mandioca
ou aipim, usado para novo plantio.
Manaíva O mesmo que manaíba, maniva. Pedaço do caule da mandioca
ou do aipim, usado para novo plantio.
Mancar Manquejar. Coxear. Andar falseando um pé, devido a dor ou
ferimento.
Com esse calo que tenho no pé direito, pra andar calçado tenho que
mancar.
Manco Animal que perdeu uma das patas. Animal que está com uma
das patas danificada. Pessoa que puxa de uma das pernas.
Coxo.
Mandaçaia Abelha média de asas escuras, que produz um mel encorpado,

168
Janelas Abertas
perfumado e muito doce.
Você é, para mim, como mel de mandaçaia.
Maneta Pessoa que perdeu um braço ou uma mão.
Mangalô Semente comestível maior que o feijão, de cor esverdeada.
Mangangá* Besouro grande que costuma fazer sua casa nos caibros do
telhado.
Mangar Zombar. Fazer pouco do outro.
Mãe, aquele menino tá mangando de mim.
Manguá Corruptela regional de mangual. Chicote de couro cru preso a
uma barra de madeira, utilizado para açoitar os animais de
carga.
Manha Treta. Disfarce. Embromação.
Deixe de manha e pare de chorar.
Maniva O mesmo que manaíba, manaíva. Pedaço do caule da mandioca
ou do aipim, usado para novo plantio.
Já cortei as manivas pro plantio dessa semana.
Manoca* Pequeno amarrado contendo cinco folhas de fumo, a fim de
facilitar o enfardamento na prensa de madeira.
Amanhã começamos a fazer as manocas da safra. Até o fim da
semana, a prensa vai chiar.
Manoqueira* Mulher da roça que trabalha no armazém de fumo preparando
as manocas.
Manquejar Mancar. Coxear. Andar puxando de uma das pernas. Ato de
quem é ou está manco.
Fiquei manquejando desde que caí da escada.
Mão* Punhado. Quantidade de um determinado produto, geralmente
seco ou de origem agrícola, que cabe em uma mão fechada.
Por quanto a mão de pimenta?
Maravalha* O mesmo que raspa. Diz-se de aparas utilizadas para acender-se
o fogo nos fogões a lenha.
Vá lá na tenda de Mestre Cacimiro e peça um pouco de maravalha
que a de casa já acabou e a lenha está verde
Marceneiro Artesão que trabalha com madeira já desbastada, na forma de
tábuas e barrotes, eque fabrica peças finas e providas de deta-
lhes bem acabados.
Zé Freitas é o mais perfeito marceneiro que temos. Veja os torne-
ados desse porta-chapéu.
Marchante O mesmo que magarefe. Aquele que negocia com carne fresca
nos açougues.
Marinete Sinônimo regional de ônibus.
Acorda, menino, que tá na hora de pegar a marinete.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Maroto Sinônimo de tratante. Esperto.
Marquise Cobertura saliente de uma casa, formando uma espécie de ex-
tensão do telhado, com o objetivo de proteger a sua frente tanto
da chuva como do sol.
Marrada* O mesmo que marroada. Pancada dada por boi, carneiro ou
bode, usando a cabeça.
Levei uma marrada daquele bode, que fiquei troncho.
Marrão Boi teimoso.
Marroada Pancada desferida com a cabeça, por boi, carneiro ou bode.
Marrada.
Filó ficou daquele jeito depois que levou uma marroada do bode
mimoso.
Marruáis Corruptela de marruá. Boi novo e bravo.
Massapê Corruptela de massapé. Consiste de terreno escuro propenso a
tornar-se enlameado quando ocorrem as chuvas e que costuma
rachar no verão.
Mata-borrão Apetrecho para enxugar o excesso de tinta deixado pelas canetas
tinteiro ou pelas penas de escrever.
Mata-burro Espécie de ponte seca nos caminhos e estradas rurais, cons-
truída com barras de cimento ou de madeira, com espaçamento
entre as barras, de forma a permitir o trânsito de carroças e de
pessoas e a impedir o trânsito de animais.
Matraca Diz-se de homem ou mulher que fala demais. Aquele ou aquela
que fala pelos cotovelos. Instrumento de madeira que é usado
durante as procissões da Semana Santa, substituindo a sineta.
Tonha é uma verdadeira matraca.
Maturi* Castanha verde, ainda em formação.
Matutar Pensar; meditar.
Manoelzinho passa horas matutando sobre como manter os filhos
na escola.
Mau agouro Previsão de algo ruim. Qualidade negativa atribuída ao pio da
coruja.
Não quero fazer mau agouro, mas isto não tá me cheirando bem.
Mealheiro Cofrinho usado pelas crianças para guardar moedas. Cofre de
barro.
Mecha Conjunto de fibras torcidas, formando um pavio. Punhado de
cabelos.
Medida* Quantidade préestabelecida para a venda de qualquer produto,
seja da linha de secos e molhados ou de origem agrícola (uma lata,
um copo, um saco, um molho, um punhado etc). É necessário
que a medida escolhida pelo vendedor esteja à vista do compra-

170
Janelas Abertas
dor, geralmente já cheia do produto em exposição.
Quanto é a medida de tapioca?
Meeiro Sócio em negócio ou fazenda. Morador em terra de propriedade
de outro, onde planta e paga o uso do solo com parte da lavoura
colhida.
Meia coronha Calça que está com as pernas acima dos sapatos.
Não vista isso, qu’está meia coronha. Não vê que você cresceu !??
Melpoejo* Mel misturado com própolis. Mel gordo, usado no tratamento
da tosse e de inflamação de garganta.
Mercê Com a graça... Com a fé...
Mercê de Deus, vou ficar bom dessa maldita doença.
Merda Cocô. Fezes. Coisa mal feita.
Limpe essa merda de galinha aí da varanda.
Que merda é essa que vocês tão fazendo?.
Merenda Lanche que as crianças faziam por volta das três horas da tarde
e/ou levavam para a escola.
Joana, não esqueça sua merenda. Preparei um pão com goiabada.
Mesmice Marasmo. Pasmaceira. Repetição.
Que mesmice, essa vida.
Se não tiver cinema domingo, o fim de semana vai ser a mesmice de
hoje.
Mesquinhez Avareza.
Que sujeito mais mesquinho, aquele. Nem aos filhos ajuda.
Mestre O melhor. Aquele que sabe tudo de determinado ofício.
Manoel Fogueteiro é um verdadeiro mestre no fabrico de fogos.
Meter medo Assustar. Amedrontar.
Não meta medo no menino. Assim ele não dorme.
Metido (a) Pretensioso. Gabola. Vaidoso.
Aquela moça é muito metida. Parece que tem um rei na barriga.
Mexer Remexer. Misturar. Espalhar a massa de mandioca sobre o forno
utilizando-se de um rodo, para que a farinha torre de maneira
uniforme.
Não mexa aí, menino. Isso pode quebrar.
Mexa bem o mingau, pra ficar bem macio.
Mexeriqueiro (a) Fuxiqueiro(a). Encrenqueiro(a). Arengueiro(a).
Milingote* Mamulengo plano, feito de papelão. Palhaço de papel.
Misse Grampo de cabelo.
Compre lá na loja de Teófilo duas dúzias de misses graúdos.
Mixa Fraca. Sem graça.
A festa tá muito mixa. Também, Zé Vermelho não veio cantar.
Mixaria Coisa sem valor. Coisa barata. Pouco.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Paguei uma mixaria por esse rádio sem olho mágico.
Mocotó Pé de animal de criação. Comida sertaneja, feita à base de pé de
porco. Sinônimo popular de pés sujos.
Domingo vou preparar um mocotó daqueles, com couve e tudo.
Vai lavar esses mocotós, menino.
Moderno Jovem. Moço.
Ele ainda tá moderno, apesar de já ter fios brancos.
Mofino Tímido. Frouxo. Fresco.
Aquele menino é muito mofino. Queira Deus não afine a voz...
Móio Corruptela de molho, punhado de raízes ou ervas expostas à
venda na feira.
Comprei barato dois móios de coentro. Paguei dois réis.
Moirão O mesmo que mourão, grosso tronco de árvore fincado ao
chão, servindo para amarrar animais bravios.
Moita Pequeno agrupamento de arbustos.
Molenga Preguiçoso. Palerma. Frouxo. Covarde.
Deixa de ser preguiçoso. Vai tratar de estudar.
Aquele sujeito é um molenga. Tem medo de tudo.
Molhados Diz-se dos gêneros alimentícios que são líquidos ou úmidos,
tal como o dendê e o sal moído.
Molhar a goela Beber um aperitivo. Tomar cachaça.
Vou molhar a goela, pra ver se me saio melhor no papo.
Molho Caldo onde se coloca temperos, para ser levado á mesa.
Maria, traga o molho de pimenta.
Mondrongo Pessoa disforme. Coisa mal feita.
Veja que mondrongo ficou essa boneca. Bem diferente das de Joana
Monturo Monte de lixo que exala mal odor.
Moquear* Submeter a carne fresca à ação das brasas, sem contato direto.
Assar.
Morador Aquele que mora como agregado numa fazenda, devendo dar o
de fazenda dia ao fazendeiro, para compensar a moradia.
Morão* Nome dado, na região, a besouro que vive enterrado, mais co-
nhecido como rola bosta.
Moringa Vaso de barro para esfriar a água e servi-la à mesa.
Mormaço Tempo abafado e muito quente.
Hoje tá um mormaço dos brabos. É sinal de chuva.
Morotó Bicho de ferida em animal. Verme que devora os defuntos.
Acharam o corpo dele no mato, já sendo comido pelos morotós.
Morrinha Preguiça. Moleza. Mal cheiro oriundo do animal suado.
Deu-me uma morrinha, com aquele mormaço.
Esse cavalo tá c’uma morrinha danada. Vai dar um banho nele.

172
Janelas Abertas
Mourão Moirão. Esteio de madeira bem grosso, utilizado para amarrar
boi ou cavalo bravo. Principal estaca de uma cerca.
Mulher à toa Mulher da vida. Prostituta.
Mulher da vida Prostituta. Puta. Mulher à toa. Mulher de zona.
Mulher de zona Prostituta. Puta. Mulher à toa.
Mulher largada Diz-se da mulher casada que foi abandonada pelo marido.
Mulher parida Mulher que deu à luz há pouco tempo e está de resguardo.
Munguzá Espécie de papa grossa, feita com milho cozido, preservando os
grãos inteiros. O mesmo que mungunzá.
Mutreta Treta. Tapeação. Enganação.
Essa estória de estrada-de-ferro parece mais uma mutreta.
Mutreteiro Enganador. Mentiroso.
Raro é o político que não é mutreteiro.
Muque Força dos braços.
Usei o muque para tirar o boi do brejo.
Muxoxo Gesto das crianças que consiste em estalar a língua de encontro
ao céu-da-boca ou afunilar os lábios, indicando pouco caso
para o que lhe foi dito.
Que coisa mais engraçada. Fazendo muxoxo pra titia...
N
Na lona Duro. Sem dinheiro.
Fiquei na lona. Perdi tudo na mesa de cisplandim.
Nambu Pássaro de médio porte que tem canto em forma de pio acentu-
ado. Inhambu.
Na moita Nas sombras. Escondido. Diz-se do fato de alguém fazer algo
sem que os outros percebam a tempo de evitar.
Ele agiu na moita pra conseguir aquele emprego.
Nanico (a) Sinônimo de anão. Coisa de pequeno porte.
Aquele menino ficou nanico assim, porque não mamou.
Não cheirar bem Achar que algo vai dar mau resultado. Ver algo errado numa
determinada atitude.
O que esse sujeito falou não me cheira bem. Acho bom a gente tomar
cuidado.
Não dar um pio Não falar nada. Ficar calado.
Não dê um pio, senão apanha.
Não é da sua Não lhe interessa. Não lhe diz respeito.
conta Pra quê quer saber? Isso não é da sua conta.
Não engolir Não aceitar. Não acreditar.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Não engulo essa estória que Fulano conta. Ele pensa que todo mundo
aqui é bobo.
Não querer Não dar atenção. Não estar a fim de papo. Não responder.
conversa Falei, falei mas Pedro não quis conversa.
Não ser grande Não ter futuro. Não valer nada.
coisa Aquela casa não é grande coisa. Tem as paredes de sopapo.
Não ter errada Não ter como errar. Tão certo como dois e dois são quatro. Impos-
sível não dar certo.
Vá por aí que você chega lá. Não tem errada.
Na ponta do lápis Tudo muito certo. Tudo bem feito.
Quero tudo na ponta do lápis. Não gosto de enrolada.
Navalha* Chave de controle da entrada de energia, constituída por uma
base em porcelana, uma haste dupla de cobre e dois fusíveis de
rosca. A utilização do nome deriva do fato de se dizer que o
aparato serve para cortar a luz, tal como faz a navalha com a barba.
Antes de mexer aí, é preciso desligar a navalha, senão vai tomar
choque.
Necas de Não sobrar nada. Não falar nada. Não querer nada. Não saber
pitibiriba* de nada.
Na aula, todo o mundo falou. Ele, necas de pitibiriba!
Nem pra remédio Pouca coisa. Um tantinho de nada.
O doce hoje não dá nem pra remédio. Também, seu pai comeu
quase tudo.
Ness’instante* Agora mesmo.
- Que hora aconteceu isso? - Ness’instante.
Nigrinhagem Baixaria. Safadeza. (Termo pejorativo e racista).
Ninar Embalar. Acalentar. Botar pra dormir.
Vou ninar aquela criança pra ver se ela dorme logo.
No batente Na labuta. No trabalho.
Logo cedo vi Olavo no batente.
Nódoa Mancha deixada na roupa pelo contato com determinadas frutas
e/ou plantas, a exemplo do caju.
Nojo Repugnância. Asco.
Essa sujeira toda na Praça após a feira me causa nojo.
No tope No topo. No alto. A parte mais alta.
Enfie essa argola no tope daquele pau.
Novilha Vaca ainda nova.
O
Obrar Fazer algo. Agir. Defecar.

174
Janelas Abertas
Ele obrou bem, dizendo o que disse.
Esse menino passou o dia obrando mole.
Oferecida Exibida. Que se abre. Mulher fácil.
Deixe de ser oferecida. Que coisa mais feia.
Rapaz, não te mete com aquela fulana, que ela é muito oferecida.
Oitão Parede lateral da casa. Parede dividida com a casa vizinha.
A casa de Zé Dias tem um lindo jardim ao lado do oitão direito.
Oiteiro O mesmo que outeiro. Pátio externo no fundo das casas. Peque-
no quintal rente à casa.
Botei a galinha pra chocar logo ali no oiteiro.
Olaria Fabrico rústico de peças de barro, a exemplo de telhas, potes e
similares.
Olho mágico Dispositivo existente nos rádios mais modernos dos Anos
50/60, que facilitava a boa sintonia das emissoras de ondas curtas.
O negócio O acertado fica parado. O combinado não vale mais.
engancha Se você não fizer sua parte, o negócio engancha e aí, olhe, babau.
Onda Fato contado com dissimulação e mentiras. Confusão.
Deixa de onda, ou você vai se dar mal.
Os fundos A parte do fundo. A parte final de uma casa ou de uma fazenda.
Lá nos fundos tem um quartinho muito abafado.
Os fundos são grandes mas escuros.
Os novos As crianças. Os meninos. Os pequenos.
Os novos não imaginam como a vida é difícil. Vivem para brincar.
Ovos Sinônimo chulo de testículos.
O cavalo esquipou tanto que quase quebrei os ovos.
P
Pabular-se Gabar-se. Exibir-se. Exagerar.
Deixa de se pabular, rapaz.
Pachorra Preguiça. Calma.
Levanta, rapaz. Deixa de pachorra e vai pra roça!
Pachorrento (a) Modorrento. Calmo. Preguiçoso.
Pagar uma Pagar muito dinheiro.
fortuna Ele vai pagar uma fortuna por aquela fazenda, mas vale.
Palerma Molenga. Tolo.
Deixa de ser palerma, rapaz. Trata de adiantar esse serviço.
Que cara mais palerma. Não vê que tão enrolando ele na conversa.
Palmatória Instrumento de madeira em forma de colher plana, utilizado
para aplicar bolos, usado nas escolas particulares ou em casa.
Pera aí, que já vou buscar a palmatória e você vai ver, seu danado.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Palmo Medida de comprimento equivalente a 22cm.
A pressa foi tanta em se desfazer do defunto, que a cova dele somente
tinha cinco palmos.
Pamonha Pessoa molenga.
Aquele sujeito é um pamonha. Não quer nada com a vida.
Pão sovado Pão feito de massa batida.
O melhor pão sovado é o da padaria de Zinho.
Papagaio Sinônimo de pipa. Arraia.
Afonso passa o dia soltando papagaio.
Papeira Caxumba.
Esse menino está com papeira. É preciso cuidar, pois tem o perigo
dela descer pros ovos.
Papel arengueiro* Papel de seda.
Papel pardo Papel para embrulho, de cor entre o branco e o cinza, com tex-
tura grosseira.
Mas não dá pra embrulhar nem num papel pardo!? Vou ter que
levar assim aberto!?
Papocar Pipocar. Espoucar. Espocar. Explodir.
Papoco Pipoco. Estrondo. Tiro. Estouro.
Ouvi um papoco essa noite, que não consegui mais dormir.
Parir Dar à luz.
Assim que Maria parir e logo depois do resguardo, nós vamos passar
uns dias na roça.
Parida Diz-se da mulher que deu à luz a poucos dias.
Parteira Aquela que apara os nenês durante os trabalhos de parto. Nor-
malmente as parteiras eram chamadas de comadre.
Mandei avisar a Comadre Melânia que essa semana vou parir. Ela
que se prepare.
Passada Comida já um tanto velha. Comida dormida.
A canjica tá passada mas ainda dá pra comer.
Passadeira Espécie de argolas presas ao cós das calças, para a fixação do
cinto.
Passadiço Passagem em forma de S, feita nas cercas que separam os pastos
ou propriedades rurais, de forma que as pessoas possam circular
sem que os animais fujam ou invadam o pasto vizinho.
Passado Estragado. Azedo. Quase podre.
Esse leite tá com cheiro de passado.
Passar de ano Ser aprovado na escola.
Passei de ano e vou estudar na Bahia.
Passar o troco Devolver ao freguês parte do dinheiro que esse entregou a mais
no pagamento da compra efetuada.

176
Janelas Abertas
Espere. Deixe eu lhe passar o troco.
Pata Perna de qualquer animal.
Pataca Moeda da época do Império que permaneceu em circulação
até meados dos anos 50, e que valia 320 réis.
Patacoada* Presepada. Tolice. Brincadeira ridícula.
Deixe de patacoada, menino.
Pau-a-pique Varas ou estacas amarradas uma às outras, formando uma es-
pécie de parede ou cerca.
Lá na fazenda tem muita cerca de pau-a-pique pra proteger as plan-
tas da boca dos animais.
A casa dele é de sopapo e pau-a-pique mas tem bastante espaço.
Peado Preso por peia. Imobilizado.
Aquele cavalo foi peado pra não se afastar da casa.
Pear Ato de amarrar as duas patas dianteiras ou uma dianteira com
uma traseira de um animal de montaria, afim de que ele não se
afaste da casa enquanto pasta.
Peca Fruta que foi colhida ou caiu do galho antes de amadurecer por
completo.
Pechinchar Tentar reduzir o preço de algo. Regatear.
Pechinchei até que ela baixou pra duzentos réis.
Pé-duro Boi ou cavalo que não tem raça definida.
Pedra de escrever Lousa de ardósia, usada nas escolas primárias para o aprendi-
zado da escrita e da tabuada. Escrevia-se sobre ela com uma
espécie de lápis de ardósia.
Pegar gosto Absolver as qualidades do molho ou do tempero.
Deixe a carne de molho, para pegar gosto.
Peia Laço curto provido de duas alças que serve para pear o animal
que se deseja manter por perto da casa ou da cocheira. Surra.
Se você não se quetar, vai cair na peia.
Peido O mesmo que bufa. Ato de eliminar gases intestinais.
Aquele sujeito peida até na escola.
Pelanca Carne de má qualidade, cheia de restos de pele e nervos.
Essa pelanca só serve pra sopa.
Pelar Retirar os pelos de animal morto.
Pelar-se* Queimar-se em água ou outro líquido muito quente.
A sopa saiu agora do fogo. Cuidado pra não pelar a lingua.
Pelejar Insistir. Teimar. Tentar.
Pelejei foi muito pra ver se os dois não brigavam.
Penacho* Espanador feito com fibras de sisal ou pindoba.
Penca Pequeno punhado de frutas, presas pelo mesmo apoio. Usa-se,
habitualmente, referindo-se a bananas.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Penico Sinônimo popular de urinol. Bacio.
Fulana, precisa lavar esses penicos com bucha grossa.
Per’aí Corruptela de espere aí. Aguarde.
Per’aí, isso não tá certo não...
Per’aí um pouquinho, que já volto.
Perder de ano Perder o ano na escola. Ser reprovado...
Se você perder de ano, vai pra roça.
Pereba Ferida. Machucado. Ferimento.
Fui caçar na mata e voltei cheio de perebas, de tanto me encostar nos
espinhos.
Piaba Peixe pequeno de água doce, muito usado para fazer moquecas
fritas enroladas em palha de banana.
Piaçava O mesmo que piaçaba. Espécie de palmeira que fornece uma
fibra dura muito usada na confecção de vassouras e asseme-
lhados.
Pica Sinônimo chulo de pênis.
Picada Caminho estreito aberto no mato, por onde as diversas roças se
comunicam.
Pegue aquela picada que você sai lá no sítio de Carlos
Picado (a)* Agitado (a). Furioso (a).
A doida tava picada da vida.
Picareta Ferramenta agrícola utilizada para quebrar pedras ou abrir
buracos em chão duro.
Picula Brincadeira infantil, na qual uma ou mais crianças correm para
uma delas as pegar. A criança que tem a função de pegador é
sorteada no início da brincadeira.
Pigarro Incômodo na garganta.
Toda vez que fumo Astória fico com um pigarro danado. Acho que
vou mudar pra Continental.
Pijama Vestimenta folgada masculina usada para dormir, feita em duas
peças com tecido leve.
Pilastra Coluna de amarração de parede.
Pilha* Sinônimo popular de lanterna.
Se sair de noite, não se esqueça de levar a pilha.
Pilhéria Zombaria. Troça. Mentira.
Deixe de pilhéria, menino. Não vê que isso é feio?
Pindoba Espécie de palmeira baixa que fornece uma palha fina e resis-
tente, muito usada para a confecção de esteiras, vassouras, cha-
péus e bocapios*.
Pingueira* Vazamento de água de chuva, que cai por defeito ou falha no
telhado.

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Janelas Abertas
Joana, ponha uma bacia debaixo daquela pingueira do quarto.
Pinicar Picar. Beliscar. Coçar.
Ô coisa pra pinicar é ferroada de abelha.
Pinóia Coisa sem valor. Pessoa reles.
Essa pinóia de sela que você comprou vai fazer calo no lombo da
mula.
Aquele ali é um pinóia. Não quer nada com a vida.
Pinote Pulo. Salto.
Ia pelo mato e cruzei com uma jararaca. Dei um pinote pra ela não
me morder.
Pintar e bordar Fazer de tudo. Fazer tudo para...
Ele pintou e bordou, mas ela não quis conversa.
Pintar o sete* Fazer molecagem. Aprontar.
Esse menino pinta o sete na escola. Só anda tomando bolo.
Pipa Grande barril de madeira, com capacidade para 500 litros. Pes-
soa gorda.
Sicrano tá uma pipa de tanto beber cerveja.
Pipoco Papoco. Estrondo. Barulho. Tiro. Estouro. Explosão.
Piripicado* Palavra usada em conjunto com rebocado para indicar que o
outro estará complicado se não cumprir o prometido. Dar cer-
teza de algo.
Se você não fizer o que prometeu, tá rebocado piripicado.
Pirraça Atitude tomada para chatear outro. Implicância.
Você vai apanhar, se não parar com essa pirraça.
Ele tá de pirraça comigo.
Pitada Pequena quantidade de sal ou de rapé.
Pitó* Bronca. Reclamação.
Dei-lhe um pitó, que ele logo se calou.
Pixaim Cabelos crespos.
Vou comprar vaselina pra ver se ajeito esse pixaim dos diabos.
Pixote Corruptela de pexote. Menino pequeno. Aprendiz. Mau jogador.
Mas que pixotinho lindo !!!..
Você é pixote ainda. Precisa aprender mais.
Que sujeito pixote. Não acerta uma bola...
Plaina Ferramenta de marceneiro, que serve para acertar as faces de
uma peça de madeira.
Pó Sinônimo popular de talco. Rapé (o pó resultante da folha seca
de fumo após ser moída ou triturada).
Pegue aí a punça, pr’eu passar pó no nenê.
Eu não fumo. Prefiro tomar uma pitada de pó e espirrar.
Polegada Unidade de medida do sistema inglês, largamente utilizada pelos

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
marceneiros, carpinteiros e ferreiros, equivalente a 2,75 cm.
Vá lá na oficina de Olavo e compre uma enxada de dez polegadas..
Peça pr’ele amolar de jeito.
Poleiro Espécie de apoio de madeira para o agasalho noturno das aves
de criação.
Pongar Subir na marinete ou no caminhão.
Ponguei assim que a marinete parou.
Porcaria Coisa suja. Coisa insignificante.
Que porcaria é essa, menino!?
Por inteiro* Completamente. Todo.
Ele se molhou por inteiro, quando passou pelo rio.
Porta-bacia Lavatório. Suporte de aço com três pés, provido de um aro su-
perior para apoiar uma bacia esmaltada e de um outro menor,
intermediário, para a colocação de jarro esmaltado com água
de reserva.
Porta-chapéu* Espécie de suporte múltiplo, geralmente disposto na entrada
das casas, para que as pessoas, ao chegar, colocassem seus cha-
péus. Alguns tinham espelho e bandeja inferior, para os chine-
los. Guarda-chapéu.
Porrão Grande vaso de barro cozido para armazenar água, com capa-
cidade de, aproximadamente, 100 litros, no formato de uma
pêra.
Porrete Cacete de madeira grossa, usado como arma. Pancada muito
forte, dada com os punhos.
Posses Os bens que alguém possui. Os possuídos de alguém.
Posuda (o)* Que bota pose. Metida a importante.
Não gosto daquela mulher. Ela é muito posuda.
Possuído (s) Bens. Fortuna. Posses. Aquilo que alguém possui. (É mais usado
no plural).
Os possuídos dele vão a mais de cinco contos de reis.
Pote Vaso de barro cozido, bojudo, com capacidade para, aproxima-
damente, 16 litros de água.
Pote de dinheiro Diz a estória popular que os antigos enterravam potes de barro
cheios de ouro ou de dinheiro nos quintais das casas, para
garantir o futuro dos herdeiros.
Pra Corruptela de para.
Vou a Feira de Santana pra comprar um chapéu Prada.
Pra chuchu Diz-se de algo que é especial, muito bom.
Esse licor tá bom pra chuchu.
Pregar peça Fazer teimosia. Aprontar.
Deixe de tá pregando peça aí, ou eu não lhe levo na feira.

180
Janelas Abertas
Prenúncio Aviso. Previsão. Sinal.
Tanajura é prenúncio de trovoada.
Presepada Palhaçada. Brincadeira boba. Patacoada*
Deixe de presepada, menino!!
Presepeiro (a) Aquele que faz presepada.
João tá muito presepeiro.
Pr’esse, p’ressa Corruptelas de para esse, para essa.
Pr’esse caso, não tenho jeito. Melhor procurar o doutor.
Presilha Peça feita em aço, composta de arame com mola e ponta e encaixe
para fixar a ponta. Broche. Fixador para prender as fraldas dos
recém-nascidos.
Presunçoso Vaidoso. Gabola. Pretencioso.
Aquele menino ficou muito presunçoso depois que foi estudar na
Bahia.
Prevenido Precavido. Atento. Avisado.
Ele é muito prevenido. Só vai pra mata com a espingarda.
Ele foi prevenido. Se não se cuidou, não foi por falta de aviso.
Privada Sinônimo popular de quarto sanitário. Latrina. Sentina.
Pro mode De maneira á. A fim de.
Vou acordar cedo pro mode pegar o caminhão que vai pra Ala-
goinhas.
Prosa Conversa agradável. Papo bom. Mentira.
Meu primo chegou ontem. A prosa durou até tarde.
Deixa de prosa, rapaz. Mas tu não aprende.
Prosar Conversar amigavelmente. Bater papo.
Vão prosar lá fora, que aqui estão atrapalhando.
Pr’uma Corruptela de por uma, para uma.
Ele seguiu pr’uma ladeira que tem logo ali.
Não serve nem pr’uma coisa nem pra outra.
Prumo Aparelho usado pelos pedreiros para alinhar as paredes em um
ângulo de noventa graus com o piso.
Pua Ferramenta de marceneiro, utilizada para fazer furos.
Puba* Massa puba. Massa de mandioca amolecida n’água.
Pucumã Fuligem acumulada nas teias-de-aranha do teto da cozinha,
oriunda da queima de lenha nos fogões. Costumava-se aplicar
pucumã sobre cortes para acelerar a cicatrização.
Puído Roto, gasto, rasgado.
Não vista essa blusa, menina. Não vê qu’está puída?!
Pule Recibo de aposta no jogo-de-bicho.
Perdi minha pule. Vou repetir o jogo.
Punça* Esponja para passar talco. Pequena almofada de tecido macio.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Passe um talquinho nele. Tome a punça.
Punhado Mão. O que cabe numa mão fechada.
Comprei um punhado de amendoim torrado por dois réis.
Purga Laxante. Purgante. Remédio caseiro usado para curar prisão de
ventre e/ou limpar os intestinos.
Se você não fizer cocô até de noite, vou-lhe dar uma purga.
Puta O mesmo que prostituta. Mulher da vida. Mulher de zona. Mulher
à toa.
Puxando fogo Embriagado. Bêbado.
Meu compadre tá puxando fogo como sempre. Não diz nada que se
entenda.
Puxar da perna Mancar. Andar manquejando.
Quando tirar o gesso, acho que ainda vou ficar um tempo puxando
da perna.
Puxar o caminho* Guiar. Conduzir. Indicar o caminho a ser seguido.
Q
Quarana* Arbusto cujas folhas são semelhantes às de fumo.
Cate umas folhas de quarana e dê pra ela aprender a fazer manoca.
Quarar Corar. Pôr a roupa lavada ao sol para que clareie.
Não enxague a roupa sem quarar senão vai ficar amarelada.
Quarta Medida para secos a granel, equivalente a ¼ de alqueire (não
se trata do alqueire para área), representando, aproximada-
mente, nove litros.
Hoje vou comprar somente uma quarta de farinha. Zilda mandou
um pouco lá das “Pedras”.
Quartos Sinônimo popular de quadris.
Essa viagem para Santanópolis me deixou com dor nos quartos. O
cavalo que montei era esquipador.
Quebra-pote Brincadeira que consiste em amarrar um pote cheio de presentes
no alto de uma vara ou entre duas varas, para que uma pessoa
vendada tente quebrá-lo durante um certo tempo antes acorda-
do. Os presentes, quando caídos, são recolhidos pelos assisten-
tes e a pessoa que fez a quebra ganha um presente especial.
Quebra-queixo Guloseima feita de açúcar queimado, com castanha ou amen-
doim, servido em pedaços. Puxa-puxa. Normalmente, o ven-
dedor de quebra-queixo utiliza-se de uma pequena talhadeira
e de um martelinho para retirar os pedaços que vende enrolados
em papel de seda.
Queimada Área derrubada a machado e foice, cujos restos são queimados

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Janelas Abertas
em coivaras, a fim de permitir o plantio da lavoura.
Zé já tá com a queimada pronta pra roça desse ano.
Queimado Bombom enrolado em papel de seda, formando uma espécie
de cordão com nós, geralmente feito de mel ou açúcar mascavo.
Quentar* Corruptela de esquentar.
Ponha a água pra quentar pro mode fazer o cuscuz.
Quentura Calor.
Hoje tá uma quentura danada.
Quetar* Corruptela de aquietar-se. Ficar quieto.
Queto* Corruptela de quieto .
Fique queto aí, menino....
Quieto no Expressão que significa não se meter no que não é da conta.
seu canto* Fique aí quieto no seu canto que o assunto não é da sua conta.
Quintal-de- Quintal de casa na cidade, onde é possível deixar a montaria
guarda guardada até a hora da partida em troca de um pequeno paga-
mento. Cocheira.
Quitanda Armazém de pequeno porte, menor que a venda, no qual se
comercializam secos e molhados. Seu dono é chamado de qui-
tandeiro.
Minha filha, vá ali na quitanda de seu Dodó e veja se ele tem açúcar
mascavo.
Quixaba Fruta parecida com a jabuticaba, embora de menor tamanho e
possuindo um visgo branco adocicado. A quixabeira possui
muitos espinhos e é nativa da caatinga.
R
Rabugento Mal-humorado. Zangado. Ranzinza.
Aquele homem é muito rabugento. Por qualquer coisa trata as pes-
soas de forma grosseira.
Rajada Ventania forte e brusca. Sopro forte de vento.
Passou uma rajada ali na Praça, que levantou até pedaço de pedra.
Ralhar Reclamar. Chamar a atenção.
Mamãe ralhou comigo por causa do barulho que eu fazia.
Ralado* Ferido. Descascado.
Escorreguei na ladeira e fiquei todo ralado.
Vai deixar o chão todo ralado, arrastando assim essas pedras.
Ralador O mesmo que ralo, utensílio de cozinha próprio para ralar fru-
tas e legumes.
Ralo O mesmo que ralador, utensílio de cozinha próprio para ralar

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
frutas e legumes. Coisa pouco espessa. Fino. (A palavra ralo
não tinha o significado usual de hoje, relacionado com a entrada
de esgoto. Essa era simplesmente chamada de esgoto).
Esse caldo tá ralo. Nem parece que levou carne.
Nâo vai chover hoje. Somente tem umas nuvens ralas no céu.
Ramerrão Rotina. Mesmice.
Aqui é sempre esse ramerrão. Nada acontece de novidade.
Rancho Casa pobre na zona rural. Comida feita para toda a família na
roça.
Ele tem um rancho na fazenda de Pitaco.
Ele trouxe uma preá pro rancho de hoje.
Ranger Refere-se ao barulho de dois objetos que se arrastam um de
encontro ao outro.
Bote um óleo naquela porta, que ela pára de ranger.
Ranzinza Zangado. Rabugento.
Mas seu avô tá é ranzinza. Não sei o que deu nele.
Rapariga Sinônimo popular de amante do sexo feminino.
Dizem que aquele sujeito tem duas raparigas na cidade.
Rapaz Homem ainda moço e solteiro. Costuma-se, também, utilizar
a palavra como um termo exclamativo, mesmo que se fale com
alguém do sexo feminino.
Rapaz, veja que coisa mais feia !
Raspa Aparas de madeira trabalhada pela enchó, formão ou plaina.
Maravalha.
Raspar o prato Comer até o último grão.
Ele tava morto de fome. Raspou o prato e ainda pediu mais.
Raspar o tacho Comer as sobras de doce que ficaram grudadas no tacho. Gas-
tar todo o dinheiro que se encontrava guardado.
Ela raspou o tacho até não ficar nem sinal do doce.
Fulano raspou o tacho pra fazer a festa de casamento da filha.
Rato Tratante. Canalha. Mau caráter.
Aquele sujeito é um rato. Não se pode tratar com ele.
Rebento Filho. Broto. Planta nova.
Os rebentos dele são a cara do pai.
Esse rebento parece que não vai vingar.
Rebocado* Palavra usada juntamente com piripicado . Dar certeza.
Reclame Propaganda. Anúncio. Publicidade.
Na “Vida Doméstica” tem cada reclame que é uma beleza.
Recomendar Aconselhar. Sugerir. Indicar.
Recomendei a ele que evitasse o caminho da fonte, pois choveu e lá
deve estar escorregando.

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Janelas Abertas
Lá na Rua, procure Dr. Aloísio, pois já lhe recomendei a ele.
Rédea Corda feita de couro curtido, própria para manter os animais
de carga ou de montaria presos a um moirão.
Rédea curta, a Sob controle. Sem muita liberdade.
Manoel trata os filhos a rédea curta.
Redemoinho Movimento giratório de vento, fazendo com que a poeira se
eleve.
Redoma Espécie de cúpula de vidro, usada para a proteção de imagens.
Sinônimo clássico de proteção.
Ela é criada como se estivesse dentro de uma redoma.
Rego Vala por onde a água escorre. Passagem d’água nos terrenos
alagados.
Réis Plural de real, dinheiro da República Velha que circulou até me-
ados dos anos 50. Havia moedas de um real e de dois, cinco,
dez, vinte, cinqüenta, cem e quinhentos réis e cédulas de um
real e de dois, cinco, dez, vinte, cinqüenta, cem e quinhentos
mil réis. A cédula de um milhão de réis chamava-se um conto
de réis. Com a criação do Cruzeiro por Getúlio Vargas, nos anos
40, esse passou a valer um mil réis, mas ambos padrões mo-
netários circularam ao mesmo tempo, até o recolhimento do
real por volta de 1955.
Relampejar Passar relâmpago. Cair relâmpago.
Maria, tá relampejando. Cubra os espelhos.
Relho Tira de couro de boi curtido ao sol. Utilizam-se relhos de di-
ferentes espessuras na costura de indumentárias de vaqueiro e
de montaria, bem como para costurar calçados rústicos.
Rebenque.
Remela Secreção que se aglutina no canto dos olhos.
Vai lavar esses olhos cheios de remela, menina.
Remendar Colocar remendo. Consertar. Dar um jeito.
Já remendei seu capote.
Fizeram merda e quem teve que remendar fui eu.
Remoso* Qualquer tipo de alimento que ofereça reais possibilidades de
causar algum mal estar.
Não coma carne de porco, que é remosa pra quem tá no seu estado.
Renca* Grupo de pessoas de uma mesma família. Forma ofensiva de se
referir a um grupo de pessoas.
Não quero ver mais você e sua renca aqui na minha casa.
Rente Junto. Vizinho.
Corte o cacho bem rente ao tronco.
Eu tô morando rente ao armazém de Zuca.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Requentar Esquentar novamente alimento já parcialmente usado.
Não gosto de café requentado. Parece chá mal feito.
Rês Cabeça. Unidade de gado bovino.
Aquele ali é o que se pode chamar de criador. Tem pra mais de qui-
nhentas reses.
Resfriado Sinônimo de gripe.
Com essa chuva, peguei um bruto resfriado e tou até com febre.
Resguardo Repouso após uma doença ou depois do parto.
Maria tá de resguardo. O parto foi bom, mas ela ainda tá fraca.
Retado Bom. Valente. Inteligente. De primeira.
Aquele menino é retado. Precisa ver como joga bola.
Eu sou mesmo retado. Botei todo mundo pra correr.
Rinchar Refere-se ao som produzido pelos cavalos. Relinchar. Ranger.
O cavalo tá rinchando de dor.
Aquela gaveta rincha toda vez que abre.
Riba, em, pra A parte de cima. Em cima. Pra cima.
Bote o pacote em riba da mesa.
Ripa Tira fina e longa de madeira, usada nos telhados para servir de
apoio lateral das telhas.
Roça Forma popular de identificar tanto a zona rural quanto a pe-
quena propriedade rural. Identifica, também, determinada
plantação
João mora na roça.
Pedro tem uma boa roça.
Os filhos de Tiago, cada um tem roça de fumo.
Roça de meia Manter plantação em terra de outro, pagando o uso do solo
com parte da lavoura obtida.
Zeca tem roça de meia na fazenda de Pedro.
Rodagem A estrada de rodagem.
A rodagem tá coberta de lama. É capaz da marinete atolar-se.
Rodete* Grande roda de madeira que serve para acionar a bola ou caiti-
tu (cilindro navalhado), que tritura a raiz de mandioca. O ro-
dete é acionado por força humana quando na posição vertical e
por força animal quando na posição horizontal.
Rodia* Corruptela de rodilha, disco de pano enrolado usado sobre a
cabeça, para o transporte de objetos.
Não carregue pote d’água sem rodia, que vai fazer calo grande no
cocuruto.
Rodilha Pano torcido e enrolado na forma de uma espiral que se coloca
sobre a cabeça, a fim de permitir o transporte de objetos.
Rodo Utensílio próprio para mexer farinha no forno, constituído de

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Janelas Abertas
uma vara com uma tábua presa na horizontal em uma das ex-
tremidades. Chama-se também de rodo a ferramenta utilizada
para amontoar areia ou pequenos pedaços de pedra.
Rodopiar Dar muitas voltas. Rodar.
Fiquei rodopiando com as crianças e estou tontinho.
Rogar praga Desejar o mal a alguém. Desejar má sorte.
Acho que te rogaram foi praga. Você não fica boa disso.
Rola Pássaro muito comum na região, também chamado de rolinha
fogo apagou. Sinônimo popular de pênis.
Esconda essa rola, menino.
Rolo Confusão. Briga.
Ontem, na abertura do cinema, foi um rolo danado. Todo mundo
queria entrar logo.
Roliço Formato cilíndrico de determinados objetos.
Rombuda Que tem ponta grossa ou malfeita.
Com essa agulha rombuda, você não vai fazer nada.
Ronceiro Preguiçoso, lento.
Deixa de ser ronceiro. Esse trabalho é pra hoje?!
Rosalgar Nome popular do dissulfeto de arsênico, usado como veneno
para ratos e como meio de provocar a queima branca e brilhan-
te dos fogos de artifício.
Rosete Peça de porcelana utilizada nas instalações elétricas das casas,
para permitir o desvio de corrente para um fio pendente com
lâmpada incandescente.
Rua Forma com que as pessoas da roça chamam a cidade.
Amanhã vou na Rua, comprar veneno pr’esses formigueiros.
Rua abaixo Descer a rua. Estar andando em direção ao fim da rua.
Todos os dias vejo esse homem passar aqui, rua abaixo.
Rua acima Subir a rua. Andar em direção ao início da rua.
Se você for rua acima, vai sair na Praça do Comércio. Não tem
errada.
Rude Ignorante. Sem educação. Grosseiro.
Ele foi rude com a irmã, coitada.
Ruim da bola Fraco do juízo. Adoidado.
Se você não se cuidar, vai terminar ruim da bola, bebendo desse
jeito !
Ruma Pilha de alguma coisa. Muita coisa. Amontoado.
Faça uma ruma de tudo, que a carroça já vem.
Tinha uma ruma de gente no enterro.
Rumar Corruptela de arrumar. Atirar. Jogar.
Rumei uma pedra nele e saí correndo.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Rusga Briga. Implicância.
Deixem de rusga, meninos, senão vocês caem na taca.
Rusgar Brigar. Implicar com.
S
Sabido (a) Esperto (a). Desenvolvido (a).
Ana está muito sabida pra idade dela.
Sabonete Planta de grande porte, cuja semente pode ser usada como sa-
bão por seu alto poder espumante.
Sabugo O que resta da espiga de milho depois que se debulha os grãos.
Sabugueiro Árvore cujas folhas são usadas em chás para fazer brotar o sa-
rampo ou a catapora que se encontram enrustidos.
Sacrista* Mau caráter. Malvado.
Aquele sujeito é um sacrista.
Seu sacrista, batendo num menino !
Saída Diz-se de moça que se expõe em demasia. Atirada.
Aquela moça é muito saída. Vai se dar mal, já, já.
Sair de casa Diz-se de moça que se amiga ou que perde a virgindade antes
do casamento.
Beltrana saiu de casa e foi morar com o namorado, lá em Feira.
Salgadeira* Curtume. Local onde se trabalha o couro cru. Vasilha de cobre
ou barro, utilizada para salgar carne fresca, a fim de se poder
guardá-la por alguns dias.
Sanhaço Pássaro também conhecido como papa-mamão, de cor esver-
deada e canto grave. Assanhaço.
Sapeca Teimosa (o). Arisca (o).
Essa menina é muito sapeca. Queira Deus não faça bobagem daqui
a uns anos.
Sapecar Chamuscar. Queimar de leve. Jogar. Atirar.
Cuidado pra não sapecar os dedos com esse tição.
Sapequei uma pedra naquele boi bravo que vai ali
Saqué* Galinha d’Angola, também chamada de tô fraca.
Saruê O mesmo que gambá. Cangambá.
Se amigar Amigar-se. Tornar-se amante. Juntar-se (homem e mulher) sob
um mesmo teto, sem estarem casados.
Eu vou é me amigar, que esse negócio de casamento é pra rico.
Sebo Gordura sólida retirada da carcaça de animais de criação aba-
tidos.
Nada melhor pra amaciar relho do que sebo de boi.
Secos Gêneros alimentício secos, geralmente disponíveis a granel

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Janelas Abertas
(arroz, farinha, fubá-de-milho, café etc).
Se dar mal Sair-se mal. Complicar-se. Dar-se mal. Sair perdendo. Arranjar
encrenca.
Ele vai se dar mal, agindo com tanta teimosia.
Se matar Trabalhar até a exaustão. Cansar-se muito no trabalho.
de trabalhar O pai deles se mata de trabalhar para que todos possam estudar
Sem um vintém Sem dinheiro. Na lona. Duro.
Aquela mulher deixou o pobre do Fulano sem um vintém furado
Se mostrar Exibir-se. Aparecer.
Ela se mostra muito. Logo, logo, vai sair de casa.
Sem eira Diz-se de pessoa sem tradição. Pessoa de pouca importância.
nem beira Aquele alí é um sem eira nem beira qualquer.
Sentar praça Entrar para a polícia. Ser soldado de polícia.
Sentina Sinônimo popular de vaso sanitário. O vaso sanitário das pri-
vadas em forma de fossas, constituído de uma boca de cimento
que funciona como local para o usuário acocorar-se.
Se picar Cair fora. Fugir. Sair com rapidez.
Se pique daqui, antes que o guarda chegue.
Sereno Chuva rala, geralmente ao amanhecer ou entardecer.
Vá pra dentro, menino, Não vê que tá caindo sereno?!
Se resfriar Resfriar-se. Pegar um resfriado.
Saia desse sereno, senão vai se resfriar logo.
Sestro Mania. Cacoete.
Ele tem o sestro de ficar batendo as pálpebras, como se estivesse com
cisco no olho.
Sezão Malária. Diz-se do estado febril próprio de quem está com ma-
lária. Febre intermitente e esporádica.
Shuite* Sinônimo local para interruptor. (Será originário de algum ter-
mo em inglês??)
Sianinha Tira de tecido em algodão, na forma de ziguezague, utilizado
como adorno em vestimentas femininas.
Sinal Marca. Notícia.
Esse sinal é de nascença.
Ele nunca mais deu sinal, desde que foi morar em Lustosa.
Siririca Masturbação feminina.
Sisudo Austero. Sério.
Tião é muito sisudo. Nunca vi ele rindo.
Soberba Arrogância. Exibição de superioridade.
Deixe de soberba, que você não é lá grande coisa.
Sofrê Apelido do pássaro corrupião.
Sombrinha Guarda-sol de uso feminino.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Soneca Madorna. Cochilo. Sono ligeiro.
Todo dia eu tiro uma soneca depois do almoço.
Sonso Fingido. Dissimulado. Enganador.
Deixa de ser sonso, menino e para com essas mentiras.
Sopa Coisa fácil. De fácil execução.
Isso pra mim é sopa. Faço desde pequenininho.
Sopapo Tapa violento, dado com as mãos fechadas. Soco. Tipo de pa-
rede rústica, feita com barro socado entre varas amarradas por
cipó.
Dei-lhe um sopapo, pra ele aprender a se comportar.
Filó mora numa casa de sopapo, bem junto da capoeira.
Soqueira Espécie de reforço para os punhos, a fim de tornar o soco mais
violento. O termo (e o instrumento) surgiu na região na onda
dos filmes americanos que mostravam as badernas dos chama-
dos playboys.
Sovaco Axilas.
Sovaqueira Cecê. Mau cheiro oriundo das axilas.
Rapaz, tú tá c’uma sovaqueira de dar dó.
Sovela Ferramenta usada pelos coureiros e sapateiros para fazer furos
nas peças de couro curtido, a fim de passar os fios de algodão
encerado ou de couro cru.
Sovina Avarento. Unha-de-fome.
Aquele sujeito é muito sovina. Nem esmola a cego ele dá.
Sumiço Desaparecimento.
Não sei que sumiço ele levou. Nunca mais o vi por aqui.
Suplício Sofrimento. Sacrifício. Grande esforço.
É um suplício para mim saber desse seu namoro. Não consigo engolir
isso.
Foi um verdadeiro suplício ,o que passei para chegar aqui.
Surrão Sacola de couro curtido, utilizada para o transporte de comida
quando o lavrador ou o vaqueiro se afastam da casa de morada.
Suspensórios Apetrecho da vestimenta masculina que visa manter a calça à
altura da cintura sem o uso de cinto.
Sussurro Conversa a voz baixa. Murmúrio.
A conversa dele era quase um sussurro. Mal dava pra se ouvir.
Sustança Força. Vigor.
Coma essa sopa, pra ter mais sustança.
T
Tá, tava, tavam Corruptelas de está, estava, estavam.

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Janelas Abertas
Os meninos tavam no quintal, catando manga.
Tabaréu Homem da roça. Matuto. (O feminino é tabaroa).
Tabaroa Mulher da roça. Matuta. (O masculino é tabaréu).
Tabatinga Barro mole e pegajoso.
Tabuleiro Terras altas, arenosas, com vegetação rasteira.
Taca Chibata. Rebenque de couro curtido, utilizado para estimular
os animais de montaria. Instrumento de castigo.
Ou você deixa de fazer traquinagem, ou vai cair na taca, seu
moleque !
Tacar* Atirar. Jogar. Lançar.
Taquei uma pedra nos urubus que tavam lá no quintal
Tacho Vaso de cobre usado para o preparo de doces ou para ferver
água.
Taco Pedaço (de arame, de carne, de madeira, de papel etc).
Me dá um taco desse pão aí.
Tagarela Falador. Conversador. Que fala pelos cotovelos.
Que sujeito mais tagarela.
Tagarelice Ato próprio dos tagarelas. Muita conversa.
É uma tagarelice que não acaba mais.
Talhadeira Ferramenta de pedreiro, utilizada para quebrar pedras ou abrir
cortes em pisos e paredes.
Talisca* Tira fina de madeira rachada. A nervura da palha de coqueiro.
Taludo Crescido. Grande.
Como esse menino tá taludo. No ano passado era tão pequeno!
Tanajura Espécie de formiga voadora que perde as asas ao cair. Diz-se
que as tanajuras quando aparecem estão indicando que vai tro-
vejar e chover grosso.
Tanino Substância segregada por algumas plantas, com características
adstringentes, a exemplo do que se sente quando se morde uma
banana verde. Produto usado para curtir couro cru.
Tanoeiro Artesão que fabrica barris, tonéis, dornas, barricas, pipas e si-
milares.
João Tanoeiro é o melhor fabricante de dornas da Bahia.
Tanque Pequeno açude resultante do acúmulo de água de chuva. Re-
servatório doméstico para a captação de água de chuva, geral-
mente feito de cimento.
Tapeador Aquele que tapeia. Enganador. Mentiroso.
Mentindo como mente, esse menino vai ser um grande tapeador.
Tapear Mentir. Enganar. Enrolar. Falsear..
Ele me tapeou o tempo todo. E eu, besta, acreditei.
Tapeie ela um pouquinho. Depois, com calma, você conta a verdade.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Taquara rachada Diz-se de alguém que canta mal.
Eu não gosto de cantar, pois tenho uma voz que mais parece uma
taquara rachada. (taquara é um tipo de bambu).
Tarefa Unidade agrária de medida de área, equivalente a 4.356 m²
(trinta braças quadradas). Essa unidade é largamente usada
para indicar o tamanho de uma propriedade rural ou para in-
formar quanto se plantou de determinada lavoura. Trabalho
diário. Atividade obrigatória.
O sítio de Zequinha tem cento e vinte tarefas de boa terra.
Augusto plantou, esse ano, dez tarefas de mandioca.
Minha tarefa é ingrata. Não sei se o dia vai dar pra fazer tudo.
Minha tarefa é roçar o pasto. Qual é a sua?
Tarugo Tampa de barril. Pedaço roliço de madeira, utilizado para fixar
pranchas ou barrotes.
Tá vendo aí? Eu não disse!? Eu bem que falei.
Tá vendo aí?. Eu sabia disso, falei e você não acreditou.
Teimosia Implicância. Insistência..
Deixe de teimosia, menino. Você vai apanhar.
Teimoso Implicante. Insistente.
Que sujeito mais teimoso. Fica ali que não arreda pé.
Telheiro Área coberta de telhas, normalmente sem paredes. Galpão
aberto.
Tenção Corruptela de intenção.
Faço tenção de passar na casa de vovó esse domingo.
Tenda Local onde trabalham barbeiros, alfaiates, sapateiros, ferreiros
e outros artesãos. Oficina.
Tento Atenção. Cuidado.
Tome tento ao andar por esse caminho cheio de buracos.
Ter jeito Ter conserto. Ter correção. Ter habilidades.
Aquela parede tem jeito. É só reforçar as pilastras.
Ele é teimoso mas tem jeito. Basta o pai querer.
Aquela menina tem jeito pra costura.
Ter modos Ter educação. Ser educado. Agir de forma correta.
Tenha modos. Não vê qu’estão olhando?
Terreiro Área limpa ao redor das casas da zona rural, geralmente cercada.
Terrina Vaso de porcelana, provido de alças e de tampa, utilizado para
levar a sopa à mesa.
Ter tutano Ser inteligente. Pensar bem.
João tem tutano, por isso se dá bem na escola.
Ter vergonha Envergonhar-se. Ter pudor. Ter brio. Ter honra.
Tenha vergonha, rapaz. Fazendo besteira no meio da rua!

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Janelas Abertas
Teve Corruptela de esteve.
Ele teve lá em casa ontem.
Ti, ti, ti, ti, ti...* Som utilizado para chamar as galinhas na hora de dar a ração.
Tição Pedaço de madeira em brasa. Xingamento racista.
Vá pegar um tição lá na cozinha para acender a fogueira.
Tipóia Tira de pano que envolve o pescoço e serve para apoiar o braço
doente.
Pronto, tá engessado. Agora ponha o braço numa tipóia, pra evitar
esforço.
Tinindo Brilhante; caprichado; arrumado.
Pedro só sai de casa tinindo.
Tintim por tintim Tudo muito bem detalhado. Tudo bem esmiuçado.
Conte o que aconteceu tintim por tintim.
Tiquinho Bocadinho. Pouquinho.
Ela só me deu um tiquinho de doce.
Tirar de casa Diz-se do fato de um rapaz iniciar relações sexuais com moça
virgem.
Ele tirou ela de casa e o pai nem desconfia.
Tiririca Irritado. Nervoso.
Quando soube do acontecido, fiquei tiririca.
Titica Coisa insignificante. Tarefa fácil.
Isso aí, pra mim, é titica.
Tive Corruptela de estive.
Eu tive lá hoje, mas foi cedo.
Toco Pedaço de tronco de árvore que permanece preso ao solo de-
pois da derrubada.
Tô fraca Sinônimo popular de saqüé. Galinha d’Angola. O termo “Tô
fraca” deriva do som que as saqüés produzem ao cantar.
Toiceira O mesmo que touceira. Parte d árvore cortada que renasce pela
sobra do tronco que restou na terra. Toucheira.
Toicinho O mesmo que toucinho. Parte gordurosa da carne de porco.
Toitiço Nuca. Cachaço.
Encontrei o jumento morto. Parece que foi uma pancada no toitiço.
Tolerar Suportar. Agüentar.
É preciso ser Cristo pra tolerar essa gente.
Não sei se vou tolerar essa dor por muito tempo.
Tolete Pedaço de fezes ressequidas. Cocô duro.
Doutor, ele não tá bem. O senhor precisa ver os toletes que saem.
Tolo Bobo. Imaturo. Novo.
Ele ainda é muito tolo, apesar de já tá crescido.
Tomara Queira Deus. Espero. Oxalá.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
“Tomara que chova logo”.
Tomar banca Freqüentar aulas de reforço escolar.
Tou tomando banca com a Profa. Aurelina, pra ver se passo de ano.
Tomar cuidado O mesmo que ter cuidado.
Quando sair, tome cuidado pra não escorregar nessas pedras mo-
lhadas.
Tomar rumo Sair. Ir pra casa. Partir. Ir embora.
Tomei meu rumo, assim que a festa acabou.
Tomar uma* Beber um trago. Bebericar.
Vou tomar uma e depois vou pra casa.
Tonteira Tontura. Vertigem.
Deu-me uma tonteira ontem , que não caí por pouco.
Tonto Zonzo. Atordoado.
Fiquei tonto depois daquela nossa farra.
Tontura Vertigem. Tonteira. Perda momentânea do equilíbrio.
Senti uma tontura e quase caí.
Topar Dar de frente. Encontrar. Bater em.
Topei com Zé, hoje, na feira.
Assim que ele apareceu, topei a mão na cara dele.
Tope Tamanho. Altura. Pancada no pé.
Manoel é do mesmo tope do primo. E só andam juntos.
Levei um tope danado, jogando bola.
Tora Pedaço grosso de árvore cortado a machado.
Torar Cortar rente. Derrubar. Quebrar.
Mandei cortar o cabelo e ele torou tudo. Ficou que nem um coco.
Tore aquele tijolo e me dê um pedaço.
Toró Chuva muito forte. Aguaceiro.
Ontem caiu o maior toró.
Torquês Alicate em forma de tenaz, usado para torcer arame farpado e
segurar chapas quando postas na forja. Ferramenta habitual de
ferreiro.
Torrão Pedaço duro de terra. Pedra de açúcar.
Hoje merendei banana pisada com torrão de açúcar mascavo.
Torrar Secar bem. Esturricar. Gastar tudo.
Vamos torrar e moer esse café, pois o que tinha em pó já acabou.
Ela deixou a carne torrar demais.
Torrei no bicho tudo que ganhei na feira. Fiquei duro novamente.
Torreno* Corruptela regional de torresmo (pedaços de toucinho fritos,
usados como complemento do almoço ou como tira-gosto).
Tosse convulsa Coqueluche.
Tostão Moeda da época do Império que circulou até meados dos anos

194
Janelas Abertas
50 e que valia cem réis.
Tou Corruptela de estou.
Eu tou c’uma dor de barriga das bravas.
Touca Cobertura feita de pano para proteger a cabeça. Espécie de
boné para uso feminino.
Se vai sair, ponha um touca por causa do sol.
Toucheira* Corruptela de touceira. Toiçeira. Grupo de pequenos arbustos
formando um amontado. Parte de árvore cortada que renasce
pela sobra do tronco que ficou na terra.
Vi a galinha pedrês se escondendo naquela toucheira. É capaz de ter
ninho por lá.
Toucinho Parte gordurosa da carne de porco, que é separada em forma de
manta e usada como fritura. Toicinho.
Trado Ferramenta de carpinteiro, usada para furos de grande espes-
sura.
Traíra Peixe de água doce muito comum nos rios e lagoas.
Tralha Cacarecos. Objetos sem valor. Pessoas desqualificadas.
Guarde essas suas tralhas, senão eu jogo tudo fora.
Aquela tralha que mora alí embaixo não serve pra nada.
Tramela Trava utilizada para a segurança de portas e janelas, constituída
de um pequeno pedaço de madeira preso ao esteio lateral por
um prego com arruela, o qual funciona como eixo.
Tranca Barra de madeira utilizada para travar portas e janelas, instalada
no sentido transversal.
Traque Bombinha para festas juninas.
Traquinagem Teimosia. Travessura. Brincadeiras perigosas.
Esse menino ainda vai se machucar com essa traquinagem de andar
sobre pernas-de-pau.
Traquinas Teimoso. Inquieto. Travesso. Buliçoso
Esse menino é muito traquinas. Vai terminar levando uns bolos.
Traste Coisa sem valor, geralmente móvel doméstico. Pessoa sem
caráter.
Joguei aqueles trastes que vieram da roça no lixo.
Aquele sujeito é um traste. Não vale a merda que caga.
Tratar com Acertar com. Entender-se com.
Tratei com Tiago a sua ida para a Bahia.
Trato Acerto. Combinação.
Nosso trato foi que você iria pra roça assim que chovesse. Tá na hora
de ir.
Travesso (a) Teimoso. Traquinas. Buliçoso.
Deixe de ser travesso, menino. Quer apanhar?

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Travessura Teimosia. Traquinagem. Brincadeira perigosa.
Travo Amargor. Adstringência.
Esse abacate tá travando. Acho que foi tirado verde.
Travoso Que trava. Amargo.
Como é travoso esse remédio!.
Trecho Parte de uma estrada, pronta ou em construção.
Lama mesmo só no trecho entre Coração de Maria e Irará.
Treco Troço. Cacareco. Tralha. Coisa sem valor.
Esse treco não serve para nada. Foi dinheiro jogado fora.
Trejeitos Gestos. Caretas. Postura anormal para chamar a atenção.
Feia como é, só mesmo com esses trejeitos para que a olhem.
Tremendo feito Assustado. Amedrontado.
vara verde Acordei essa noite tremendo feito vara verde: sonhei com o bicho
papão.
Trempe Suporte de aço com três pés, usado para apoiar uma panela
sobre um braseiro. Os furos de uma chapa de fogão a lenha.
Coloque o cozido na trempe do meio, que apronta mais ligeiro.
Trens Tralhas. Trastes. Objetos pessoais das pessoas mais humildes.
Vou juntar meus trens e cair fora antes que a confusão comece.
Treta O mesmo que mutreta. Enrolada. Manha. Velhacaria. Malan-
dragem.
Não gosto de treta. Tudo comigo é na ponta do lápis.
Treteiro Malandro. Manhoso. Enrolão.
Sujeito treteiro, aquele que tá ali na esquina.
Triscar* Tocar de leve. Encostar.
Trisquei naquele fio e tomei um baita choque.
Triscou pegou Lance da brincadeira de Picula, no qual o menino pegador toca
em um dos meninos que correm, passando este à condição de
pegador.
Troça Bagunça. Zombaria.
Vamos deixar de troça, que a aula vai começar.
Trocados Dinheiro miúdo, em moedas. Dinheiro próprio para troco.
Gastei os trocados que tinha pra comprar um presente pra mamãe.
Troço (os) Cacarecos. Tralha. Coisas sem valor.
Esses seus troços só estão servindo pra ninho de barata.
Trompaço Empurrão. Esbarro.
Encontrei o sujeito na rua e dei-lhe o maior trompaço.
Troncho Desengonçado. Torto. Desequilibrado. Bambo de um lado.
Levei uma queda do cavalo e fiquei todo troncho.
Aquela mesa tá troncha. Bote um calço nela.
Tropa Grupo de animais com carga, devidamente conduzido por um

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Janelas Abertas
tropeiro.
Tropeçar Topar. Esbarrar. Cambalear.
Tropecei na escada e quase caí.
Ando assim, tropeçando, desde que caí do cavalo.
Tropeiro Aquele que conduz uma tropa.
Nos tempos antigos, por aqui passavam muitos tropeiros com suas
mercadorias em lombo de burro.
Trouxa Volume formado por objetos ou roupas colocados dentro de
um pano cujas pontas se encontram e são amarradas entre si.
Pessoa que se deixa enganar facilmente.
Faça uma trouxa de suas coisas e caia fora daquí.
Que sujeito trouxa aquele. Se deixou enganar até pelo bobão do
Fulano.
Trovão Som que se dá após a passagem de um relâmpago. Conseqüência
ruidosa da caída de um relâmpago.
Relampejou, vai ter trovão. É só esperar.
Trovejar Ocorrer trovões.
Trovoada Ribombar de trovões. Chuva forte acompanhada de trovões.
Vamos ter trovoada já. Tá relampejando muito.
Turma do sereno Turma da farra. Turma da boemia. Boêmios.
Turma miúda Os pequenos. As crianças. Os meninos.
A turma miúda não cansa de brincar.
U
Uma pechincha Coisa barata. Coisa de pouco valor.
Paguei uma pechincha por esse chambre.
Umbaúba Árvore alta, comum das terras iraraenses, constituída de tronco
roliço e sem divisão.
Um mucado Corruptela de um bocado. Um pouco. Uma parte.
Mãe, me dê um mucado de carne.
Um mundo Muita coisa. Fartura. Coisa grande.
Essa casa parece um mundo.
Tinha um mundo de gente na feira.
Um tantinho Um quase nada. Um tantinho de nada.
assim Ele só me deu um tantinho assim de comida. (mostrando a ponta
da unha do dedo polegar).
Um tantinho Muito pouco. Quase nada. Um tantinho assim.
de nada Com a venda de hoje, na feira, somente apurei um tantinho de nada.
Unha de fome Casquinha. Sovina. Avarento.
Aquele sujeito é tão unha de fome que nem roupa pras filhas ele

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
compra.
Unheiro Sinônimo popular de panarício. Inflamação nas unhas.
De tanto catar lenha, estou cheio de unheiro.
Urinol Bacio. Vaso de porcelana utilizado para recolher a urina das
pessoas doentes que não podiam se locomover até o banheiro.
Uruçu Abelha tradicional, grande produtora de mel e muito comum
na região.
Urucubaca Feitiço. Azar. Má sorte.
Só ando doente. Parece até urucubaca.
Urupemba O mesmo que urupema. Peneira feita com palhas de coqueiro
ou com cipós finos.
V
Vadiagem Vagabundagem. Ociosidade. Falta do que fazer.
O problema mais sério daqui é a vadiagem da gente moça.
Vadiar Vagabundar. Brincar.
Vão vadiar lá fora, meninos. Não agüento essa arrelia.
Vadio Vagabundo. Aquele que não trabalha por preguiça.
Aquilo é um vadio de marca maior. Vê o pai se matando no batente
mas não ajuda.
Vagabundo Ordinário. Vadio. Coisa mal feita ou de má qualidade.
Não quero você tendo amizade com aquele vagabundo, que nem
estudar estuda.
Mas que roupa mais vagabunda você comprou!.
Vaqueiro Aquele que cuida do gado vacum. Encarregado de zelar pelo
gado.
Laurinho é o melhor vaqueiro dessas bandas. Com ele boi não tem
vez.
Varapau Pessoa grande. Pessoa muito alta.
Aquele varapau nem parece o menininho que andava lá em casa.
Variar Delirar. Falar besteiras.
Bebeu tanto que ficou variando até dormir.
Veadagem Coisas de veado.
Vamos deixar de veadagem, pessoal. Tomem vergonha.
Veado Sinônimo popular de homossexual passivo.
Venda Ponto comercial menor que um armazém. As vendas se espe-
cializavam por grupos de produtos: as de secos e molhados, as de
artigos de couro, as de ferragens; as de materiais de construção.
Algumas vendiam produtos de mais de um grupo, como se
fossem pequenos supermercados.

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Janelas Abertas
A venda de Joel está bem sortida. Tem até louça nadir!
Venda de Secos Venda especializada na comercialização de gêneros alimentí-
e Molhados cios. Ato de vender gêneros alimentícios.
Somente a venda de secos e molhados é que tem futuro. Todo mundo
precisa comer
Vendagem Resultado da comercialização em dia de feira. O resultado da
feira.
- E aí, como foi a vendagem nesse sábado? - Valeu a pena. Vendi
quase tudo.
Venta (s) Nariz. Narinas.
Limpe essas ventas , menino. Que coisa mais nojenta.
Verruma Ferramenta de marceneiro semelhante a um saca-rolhas, utili-
zada para facilitar o ato de atarraxar parafusos.
Verter água* Urinar. Fazer xixi.
Por causa da cerveja de ontem, passei o dia vertendo água.
Vexado (a) Agoniado. Preocupado. Envergonhado. Humilhado.
Essa demora pra criança nascer tá me deixando vexado.
Ele falou umas coisas que me deixaram vexado.
Ficou vexado assim porque urinou nas calças.
Vexame Aperreio. Vergonha.
Passei o maior vexame, com meu irmão chegando bêbado em casa.
Vidona* Situação boa em que alguém se encontra, seja no aspecto finan-
ceiro ou de lazer.
Antonio tá passando uma vidona, desde que se mudou pra Feira.
Violeiro Tocador de viola ou violão.
João tá um violeiro de mão cheia.
Vingar Crescer. Sobreviver.
Acho que esse rebento não vinga. Tá muito murcho
Vintém Moeda da época do Império equivalente a vinte réis, que circulou
até meados dos anos 50.
Visagem Assombração. Fantasma.
Essa noite me assustei como se tivesse vendo uma visagem.
Visgo Sumo pegajoso existente em algumas frutas (a jaca, por exem-
plo), galhos e folhas.
Vivo Esperto. Inteligente. Atento.
Eta menino vivo, aquele filho do Zé.
Vitrola Sinônimo de radiola. Instrumento antigo para rodar discos de
78 rotações.
Volta Corrente decorativa usada ao pescoço. Colar.
Comprei uma volta de ouro pra Joana.
Vulto Sombra. Pessoa não reconhecida. Assombração.

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A Linguagem Iraraense dos anos 50/60
Vi um vulto ali na esquina e fiquei assustado.
Acho que Joaquim tá na cidade. Ontem vi o vulto dele na feira.
X
Xale Manta de uso pessoal para proteger contra a friagem. Normal-
mente os xales são confeccionados em flanela.
Xereta Diz-se de pessoa que gosta de bisbilhotar a vida alheia. Abelhudo.
Aquela mulher é muito xereta. Não quero ela aqui em casa. Olhe
bem !
Xibungo Pederasta passivo. Veado. Usada como xingamento, a palavra
causa grande mal estar e ofensa.
Seu xibungo. Tá pensando o quê?
Xingamento Ofensa. Depreciação. Calúnia.
A coisa começou com xingamentos dos dois lados. Aí, passaram pra
briga, e deu no que deu.
Xingar Ofender. Depreciar. Caluniar. Acusar com palavras de baixo
calão.
Y
Ypisilone Termo que nomeava a letra Y, que foi usada até a reforma da
Língua Portuguesa.
Z
Zabelê Pássaro de porte médio, de coloração preta e amarela, também
conhecido como jaó.
Zanzar Andar a esmo. Estar perdido no mato. Andar sem destino.
Fui caçar e zanzei até encontrar o rio.
Vou zanzar por aí, pra ver se acho alguém conhecido.
Zinabre Secreção esverdeada resultante da oxidação de objetos de cobre
e que deixa forte odor nas mãos, quando tocada. Azinhavre.
Zoada Barulho. Ruído alto.
Pessoal, deixem de zoada, senão ninguém consegue ouvir o cantor.
Zóio (s) Corruptela de olho, olhos.
Os zóios dela parecem dois vagalumes brilhando no escuro da noite..
Zonzeira Tonteira. Tontura. Vertigem.
Toda vez que bebo desdobrada fico com uma zonzeira da braba.
Zonzo Tonto. Atordoado.
Tomei uma pancada na cabeça que fiquei zonzo bem uma meia hora.

Zorra Confusão. Arruaça.
Que zorra é essa!?
Isso aqui tá uma zorra. Ninguém se entende.
Zumbi Fantasma noturno que vagueia pelos campos.
De noite eu pareço um zumbi. Não consigo dormir até a madrugada
chegar.
Zunhada Corruptela de unhada. Ferimento feito com as unhas.
Levei uma zunhada da namorada, porque quis beijá-la á força.
Zurrar O som produzido pelos jumentos.

201
Janelas Abertas
Notas e Esclarecimentos
No presente trabalho ousei utilizar palavras e expressões da minha
imaginação, bem como outras de uso pouco comum. Certas palavras, inclusive,
têm muito a ver com os anos retratados e já não são de uso corrente nos dias
atuais. Tais abusos ficam por conta da intenção de melhor caracterizar o que
tinha em mente. Utilizei, igualmente, algumas palavras e expressões dos idiomas
russo, latino, árabe e iorubá, bem como termos onomatopéicos. Nessas Notas e
Esclarecimentos facilito a leitura indicando o significado das minhas ousadias,
abusos e pretensões.
Altahman: Palavra do idioma árabe escrita no alfabeto latino, que significa:
profunda tristeza; grande amargura.
Anos cinco: A década na qual se insere o ano de 1905.Os anos em que se
deu a Primeira Revolução Russa.
Anos de chumbo: Os anos que se passaram sob o tacão da ditadura militar,
iniciada a 01 de abril de 1964.
Aparelho: Local onde se escondiam os comunistas caçados pelas forças da
repressão, durante a ditadura militar. Local secreto de reuniões
dos comunistas.
Arre égua: Puxa vida!; eu hem!. Expressão de uso corriqueiro na forma
coloquial de se comunicar do cearense.
Aspirar o bater
dos corações: Sentir os corações a bater.
Azar da sorte: O que se obteve de negativo no lugar da boa sorte desejada e
esperada.
Berioska: Palavra do idioma russo escrita no alfabeto latino, que significa:
Loja de presentes; bazar; loja de miudezas.
Blimblomblando: O som dos sinos a tocar. Essa palavra é criação do poeta popular
paraibano Dijiê Quirino.
Caaba: O local sagrado dos muçulmanos na cidade de Meca, Arábia
Saudita.

202
Janelas Abertas
Canyon: Desfiladeiro em cujas profundidades passa um leito de rio ou
uma vereda.
Capa-e-Espada: Fiel ao senhor até às últimas conseqüências.
Cinzento: A massa cinzenta; o cérebro; a inteligência.
Corta-Sola: Sapateiro; coureiro.
Dã cividânia: Expressão do idioma russo escrita no alfabeto latino que
significa: Adeus; até logo; até breve.
Escambo: Comércio baseado na troca de mercadorias, sem a utilização
de qualquer tipo de moeda.
Esbirros: Prepostos; puxa-sacos; subordinados sem qualificação.
Fez mundo: Viajou por outras terras; andou por aí...
Gajão: Título com o qual os ciganos se dirigem aos homens que não
são ciganos; meu senhor.
Iorubá: Povo negro africano que vive na Nigéria, Daomé e Togo. A
língua falada pelo povo iorubá.
Karachô: Palavra do idioma russo escrita no alfabeto latino que significa:
Bem; muito bem; ótimo.
Matraca: Instrumento usado nas cerimônias religiosas católicas da Sexta-
Feira Santa em substituição à sineta.
Média flor: Classe média; os remediados.
Na ponta da
agulha: De pronto; imediatamente; de chofre.
“Ogun, ka ji re;
nji owo ni;
nji aya ni”: “Ogun, que nosso despertar seja na felicidade; que encontremos
dinheiro; que encontremos companhia”.
Panacéia: Remédio para todos os males.
Papirochka: Palavra do idioma russo escrita no alfabeto latino que significa
cigarro rústico; cigarro de palha.
Patena: Espécie de aparador que serve como apoio para a hóstia e de
cobertura para o cálice de vinho.
Pei buf: Tiro e queda; pensou, agiu; bateu, caiu; desejou, fez.
Possuídos: Que têm bens; que têm posses; ricos.
Primo: Negócio ou objeto assemelhado a outro.
Que não vem
que não vem
que não vem: Forma onomatopéica de imitar o som provocado pela passagem
de um trem.
Quilombo: Povoado rústico cujos habitantes eram escravos fugidos.
Ramadã: O mês do jejum na religião muçulmana.

203
“Si veritatem
dico vobis, quare
non creditis mihi?”:“Se vos digo a verdade, por que não me credes?”
Sine qua non: Expressão latina que significa: ”sem a qual não é possível”. O uso da
expressão determina uma condição para a realização de um ato.
Spassibo: Palavra do idioma russo escrita no alfabeto latino que significa:
Obrigado; agradecido.
Tipo: Molde de letra ou sinal alfabético feito em chumbo, usado na
composição de textos para impressão tipográfica.
Tovarich: Palavra do idioma russo escrita no alfabeto latino que significa:
Camarada; companheiro.
Vermelho: Comunista; revolucionário.
Vinhoto: Resíduos poluentes resultantes da fermentação da cana-de-açúcar.
Voçoroca: Canal aberto em solo pedregoso, como conseqüência da erosão
provocada pela água das chuvas.
Za izdaróvie: Expressão do idioma russo escrita no alfabeto latino que
significa: Saúde!; à sua saúde!.
Janelas Abertas

205
Crítica após a Leitura
“Janelas Abertas” nos leva, de maneira carinhosa, a uma viagem pelos
caminhos de Irará, personagens e histórias desta cidade, despertando em nós
um desejo de defendê-la, para que seu passado seja respeitado e melhor o seu
futuro.
Foi muito bom, criança da Rua de Baixo que fui, “rever” Amélia, o pé de
sabonete, a Mangabeira, o Cajueiro, as Lajes.
Após a leitura, nota-se o quanto Irará mudou do período abordado até os
dias atuais. Seus caminhos ainda existem, mas neles há outras realidades. Já não
bebemos a água da Fonte da Nação; no entorno do Cruzeiro, surgem loteamentos
que formam novos caminhos; a Lagoa da Madalena está poluída; o “senadinho”
não mais existe... Hoje Irará tem novos personagens e, certamente, novas
histórias.
Tomara que, nos caminhos atuais desta querida cidade, meninos e meninas
estejam a observar seus personagens para, num tempo futuro, nos contar suas
histórias, como fez o autor de “Janelas Abertas”.
Jandira Oliveira Paixão
Janelas Abertas