O ILUSTRADOR ENQUANTO
TRADUTOR VISUAL E VERBAL
KAMASUTRA OU AFORISMOS
SOBRE O AMOR 1.2.1 O prazer, a mulher e o patriarcado
O prazer sexual-erótico (Kama) é, para o Kamasutra, enquanto discurso da Ars Erotica,
a categoria soberana e domínio principal; a sua autonomia legislativa, em relação
a todos os outros domínios, é o principal objectivo do texto. O significado de Kama,
na obra, “tem quatro significados distintos, mas intimamente relacionados: prazer se-
xual e erótico, desejo de prazer e amor" (GAUTAM, 2016, p.52). Existe uma rotina sexual
descrita no Kamasutra, chamada de “moon gazing”, que convida os casais apaixonados
a vislumbrar o céu estrelado e a trocar pareceres sobre as várias constelações. Tal prá-
tica não envolve qualquer acto sexual, mas, como descrito pelo autor, envolve o “prazer
supremo”, consequência do amor que envolve o casal. Logo, Kama (prazer sexual e eró-
tico) é indistinguível de amor, assim como de desejo; desejo, amor e prazer são termos
que não existem, isoladamente, no texto.
Quando falamos de prazer, falamos de uma capacidade exclusiva do ser humano. É isso
que nos distingue do resto dos seres vivos; ao contrário dos seres humanos, os animais
acasalam, somente, em determinados períodos (nas épocas de acasalamento), condu-
zidos apenas pela necessidade de reprodução da espécie, uma necessidade puramen-
te biológica. Por outras palavras, ao contrário do resto dos animais, o prazer sexual
excede, para o homem, “a necessidade e a lógica da reprodução biológica” (idem, p.56).
O homem persegue o prazer de forma pensada e consciente, isto é, discursivamente;
sendo o prazer sexual um fenómeno discursivo, pertence exclusivamente ao domínio
humano, visto que, os animais não possuem intelecto.
De acordo com o Kamasutra, outra grande diferença entre os seres humanos e os ani-
mais é que, ao contrário das fêmeas no mundo animal (desnudadas; o que quer dizer
livres e sem restrições), as fêmeas entre os seres humanos, estão escondidas e veladas,
referindo-se, no fundo, à sua falta de liberdade. Esta falta de liberdade, foi parte de um
processo social e cultural, sofrido na Índia ao longo dos tempos. Mas a realidade nem
sempre foi esta, como é explicado no Mahabharata, um dos dois grandes épicos
da cultura indiana antiga:
“aqueles tempos antigos eram favoráveis às mulheres, o que significa que eram
livres e não precisavam de viver subordinadas ao homem. […a mulher] não estava
ligada ao seu marido, nem confinada à casa, como se veio a tornar mais tarde. […]
a relação marido-esposa não se baseava na monogamia e na lei da fidelidade […]
[naquela altura] o prazer era o princípio e a lei soberana, numa sociedade onde
o poder estava ausente” (GAUTAM, 2016, pp. 60-61).
Foi o terceiro elemento da família, o filho, que deu origem à ruptura de uma sociedade
marcada pelo não patriarcado, ancorada na soberania do prazer sem identidade,
na qual a mulher era livre. De acordo com algumas passagens históricas do Mahabha-
rata, a subjugação do homem, da mulher e do prazer à lei Brâmane, teve a sua origem
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