Linguagem de Desenho Animado - Volume 1

aridiniz 3,986 views 271 slides Sep 13, 2016
Slide 1
Slide 1 of 271
Slide 1
1
Slide 2
2
Slide 3
3
Slide 4
4
Slide 5
5
Slide 6
6
Slide 7
7
Slide 8
8
Slide 9
9
Slide 10
10
Slide 11
11
Slide 12
12
Slide 13
13
Slide 14
14
Slide 15
15
Slide 16
16
Slide 17
17
Slide 18
18
Slide 19
19
Slide 20
20
Slide 21
21
Slide 22
22
Slide 23
23
Slide 24
24
Slide 25
25
Slide 26
26
Slide 27
27
Slide 28
28
Slide 29
29
Slide 30
30
Slide 31
31
Slide 32
32
Slide 33
33
Slide 34
34
Slide 35
35
Slide 36
36
Slide 37
37
Slide 38
38
Slide 39
39
Slide 40
40
Slide 41
41
Slide 42
42
Slide 43
43
Slide 44
44
Slide 45
45
Slide 46
46
Slide 47
47
Slide 48
48
Slide 49
49
Slide 50
50
Slide 51
51
Slide 52
52
Slide 53
53
Slide 54
54
Slide 55
55
Slide 56
56
Slide 57
57
Slide 58
58
Slide 59
59
Slide 60
60
Slide 61
61
Slide 62
62
Slide 63
63
Slide 64
64
Slide 65
65
Slide 66
66
Slide 67
67
Slide 68
68
Slide 69
69
Slide 70
70
Slide 71
71
Slide 72
72
Slide 73
73
Slide 74
74
Slide 75
75
Slide 76
76
Slide 77
77
Slide 78
78
Slide 79
79
Slide 80
80
Slide 81
81
Slide 82
82
Slide 83
83
Slide 84
84
Slide 85
85
Slide 86
86
Slide 87
87
Slide 88
88
Slide 89
89
Slide 90
90
Slide 91
91
Slide 92
92
Slide 93
93
Slide 94
94
Slide 95
95
Slide 96
96
Slide 97
97
Slide 98
98
Slide 99
99
Slide 100
100
Slide 101
101
Slide 102
102
Slide 103
103
Slide 104
104
Slide 105
105
Slide 106
106
Slide 107
107
Slide 108
108
Slide 109
109
Slide 110
110
Slide 111
111
Slide 112
112
Slide 113
113
Slide 114
114
Slide 115
115
Slide 116
116
Slide 117
117
Slide 118
118
Slide 119
119
Slide 120
120
Slide 121
121
Slide 122
122
Slide 123
123
Slide 124
124
Slide 125
125
Slide 126
126
Slide 127
127
Slide 128
128
Slide 129
129
Slide 130
130
Slide 131
131
Slide 132
132
Slide 133
133
Slide 134
134
Slide 135
135
Slide 136
136
Slide 137
137
Slide 138
138
Slide 139
139
Slide 140
140
Slide 141
141
Slide 142
142
Slide 143
143
Slide 144
144
Slide 145
145
Slide 146
146
Slide 147
147
Slide 148
148
Slide 149
149
Slide 150
150
Slide 151
151
Slide 152
152
Slide 153
153
Slide 154
154
Slide 155
155
Slide 156
156
Slide 157
157
Slide 158
158
Slide 159
159
Slide 160
160
Slide 161
161
Slide 162
162
Slide 163
163
Slide 164
164
Slide 165
165
Slide 166
166
Slide 167
167
Slide 168
168
Slide 169
169
Slide 170
170
Slide 171
171
Slide 172
172
Slide 173
173
Slide 174
174
Slide 175
175
Slide 176
176
Slide 177
177
Slide 178
178
Slide 179
179
Slide 180
180
Slide 181
181
Slide 182
182
Slide 183
183
Slide 184
184
Slide 185
185
Slide 186
186
Slide 187
187
Slide 188
188
Slide 189
189
Slide 190
190
Slide 191
191
Slide 192
192
Slide 193
193
Slide 194
194
Slide 195
195
Slide 196
196
Slide 197
197
Slide 198
198
Slide 199
199
Slide 200
200
Slide 201
201
Slide 202
202
Slide 203
203
Slide 204
204
Slide 205
205
Slide 206
206
Slide 207
207
Slide 208
208
Slide 209
209
Slide 210
210
Slide 211
211
Slide 212
212
Slide 213
213
Slide 214
214
Slide 215
215
Slide 216
216
Slide 217
217
Slide 218
218
Slide 219
219
Slide 220
220
Slide 221
221
Slide 222
222
Slide 223
223
Slide 224
224
Slide 225
225
Slide 226
226
Slide 227
227
Slide 228
228
Slide 229
229
Slide 230
230
Slide 231
231
Slide 232
232
Slide 233
233
Slide 234
234
Slide 235
235
Slide 236
236
Slide 237
237
Slide 238
238
Slide 239
239
Slide 240
240
Slide 241
241
Slide 242
242
Slide 243
243
Slide 244
244
Slide 245
245
Slide 246
246
Slide 247
247
Slide 248
248
Slide 249
249
Slide 250
250
Slide 251
251
Slide 252
252
Slide 253
253
Slide 254
254
Slide 255
255
Slide 256
256
Slide 257
257
Slide 258
258
Slide 259
259
Slide 260
260
Slide 261
261
Slide 262
262
Slide 263
263
Slide 264
264
Slide 265
265
Slide 266
266
Slide 267
267
Slide 268
268
Slide 269
269
Slide 270
270
Slide 271
271

About This Presentation

A obra reúne os trabalhos finais dos alunos de Estudos de Mídia (UFF) na disciplina Linguagem de Desenho Animado, ministrada em 2016.1, e evidencia como há ainda a estudar/descobrir/discutir nessa área.


Slide Content

LIGUAGEM DE DESENHO ANIMADO
VOLUME 1

Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói.
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0
Internacional
Grafi a atualizada respeitando o novo
Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa
Organização: Ariane Holzbach
Revisão: Jackson Jacques
Diagramação: Jackson Jacques
Capa: Laila Arêde / Camila Queiroz
HOLZBACH, A. D.
Linguagem de Desenho Animado - volume 1 /
Ariane Diniz Holzbach – Niterói, 20 16.
1. Desenho animado 2. Infância 3. Televisão. I. Tí-
tulo. II. Holzbach, A. D.
Ariane Holzbach
Professora Adjunta de Estudos de Mídia
Universidade Federal Fluminense
[email protected] .br

ARIANE DINIZ HOLZBACH (org.)
Linguagem de Desenho
Animado
volume 1

Ao Departamento de Estudos Culturais e Mídia, da
UFF, formado por uma equipe incansável na busca
pelo novo.
A Jackson Jacques, editor e diagramador, Laila
Arêde e Camila Queiroz, ilustradoras da capa,
alunos dedicados que toparam dar concretude a este
livro comigo.
A todos que, de alguma forma, mantêm os olhos de
uma criança.

Sumário
Desenhos são mágicos 9
1. DESENHOS ANIMADOS NA HISTÓRIA
1.1
O Incrível Mundo de Gumball: o legado da “era de ouro” da
animação nas novas produções animadas 11
1.2 Entre a Disney e o túmulo: a morte nos filmes de anima-
ção 20
1.3 Como Walt Disney driblou as críticas e como a influência
da literatura lovecraftiana em
Gravity Falls é sintoma de seu
sucesso 39
1.4 Problemáticas da representação da mulher na mídia e seus
desdobramentos nas Princesas da Disney 48
2. DESENHO ANIMADO PARA MULHERES 
2.1
As Meninas Superpoderosas e o feminismo 60
2.2 Representação feminina nos desenhos animados: um estu-
do sobre
As Meninas Superpoderosas 80
2.3 Análise da série animada
Kim Possible 86
2.4
Três Espiãs Demais e os desenhos para meninas – Girl
Power 93
2.5 Análise da animação
Três Espiãs Demais 102
2.6 A espionagem enquanto trabalho em
Três Espiãs
Demais 107
2.7 Análise do filme
A princesa e o sapo 118
2.8
Valente: as disputas discursivas acerca do lugar da mulher
nos desenhos animados 126
2.9
Sakura Card Captor e o gênero shojo 137

3. DESENHOS ANIMADOS PARA ADULTOS?
3.1
South Park: uma outra visão sobre a sociedade 147
3.2
South Park: uma série em desenho animado de humor
pesado 151
3.3
Hora de Aventura: um desenho que viaja gerações 163
3.4 A temática adulta de
Hora de Aventura como ferramenta na
construção do imaginário infanto-juvenil 173
3.5 Analisando o caráter de maturidade de temas sociais em
Apenas um Show 180
3.6
Over The Garden Wall 189
3.7 A realidade inserida na produção audiovisual de
animação 195
4. DESENHOS COMO FENÔMENO SOCIAL
4.1
Irmão do Jorel e a abordagem de temas de importância
social 201
4.2
F is For Family: representação e complexidade narrativa na
série animada do Netflix 210
4.3
Lilo & Stitch: o filme e a série 220
4.4 Imaginário Infantil e Interlocuções na franquia
A Era do
Gelo
 228
5. DESENHOS ANIMADOS PARA ALÉM DO HORIZONTE
5.1 Análise do anime
Samurai X no contexto da violência nos
desenhos animados e influência do público infantil 236
5.2
Avatar: a lenda de Aang 245
5.3 Dobrando a Sociedade: Um estudo sobre
A Lenda de
Korra 254
5.4
One-Punch Man e a desconstrução e afirmação do
shonen 261

9
DESENHOS SÃO MÁGICOS
Além de fazerem crianças sonharem e sorrirem – o que já
justificaria a sua importância social – os desenhos animados con-
tam uma espécie de história alternativa do mundo contemporâneo
para a qual, infelizmente, poucas pesquisas até hoje dão a devida
atenção. Acompanhar o desenvolvimento dos desenhos animados
é ter uma boa noção das mudanças tecnológicas vivenciadas pelas
mídias nos últimos 200 anos. É entender a complexidade que é fa-
lar para crianças, encontrando o dificílimo equilíbrio entre apren-
dizado e diversão. É entender de que maneira narrativas dialogam
com adultos e com crianças, mesmo que seu direcionamento inicial
seja para um público ou para outro. É perceber como um mundo
conectado em rede tem o poder de emanar conteúdo que, a despeito
de ser produzido no Oriente e no Ocidente, produz resultados sem
fronteiras. E, muitas vezes, sem limite de idade.
É por causa dessas e de várias outras consequências que
esta coletânea foi estruturada. Os textos são resultado de um se-
mestre regado a muitas leituras e debates realizados na primeira
vez que ministrei a disciplina Linguagem de Desenho Animado para
os graduandos do curso de Estudos de Mídia, da Universidade Fe-
deral Fluminense, e versam sobre temáticas variadas desenvolvidas
em lindas e longas sextas à tarde. Os autores-alunos escolheram os
assuntos que mais lhes chamaram atenção, selecionaram um dese-
nho animado específico e se debruçaram em análises que mostram
o quão fascinante e o quão desafiador é entender os significados
sociais existentes por trás das narrativas animadas.

10
Os artigos exploram, por exemplo, o poder e a força dos
desenhos animados para meninas, o deslumbrante universo dos
animes, os significados existentes por trás dos desenhos para adul-
tos e a história da tecnologia que possibilitou diferentes avanços na
criação dos desenhos animados. Ao final da leitura, nossa inten-
ção é que você, incauto leitor, também sinta vontade de entender
melhor um dos produtos mais complexos e mais divertidos que os
últimos séculos produziram.
Ariane Holzbach

12
O Incrível Mundo de Gumball
O legado da era de ouro da animação nas novas produ-
ções animadas
João Victor Gonzalez
Juliana Chaves
Luis Gustavo Souza

O Incrível Mundo de Gumball é uma série de animação
criada em 2011 pelo cartunista Benjamin Bocquelet para o canal
de TV a cabo Cartoon Network, inicialmente para transmissão
na Europa, depois estendida à rede completa. A série foi indica-
da a cerca de 25 prêmios e ganhou 11, entre eles o
British Acade-
my Children’s Awards e o Annecy International Animated Film
Festival
. Ela segue a personagem principal Gumball, um gato
azarado, e sua família na fictícia cidade de Elmore. Em cada
um dos episódios acompanhamos Gumball e seu irmão adotivo,
Darwim, anteriormente seu peixe de estimação que passou por
um processo de “evolução” ganhando pernas e se tornando um
novo membro da família Watterson, em suas aventuras cotidia-
nas que, modificadas por seus pontos de vista infantis, parecem
enormes sagas épicas
nonsense.
O estudo tem como foco o episódio 40 da terceira tem-
porada da série, intitulado “The Money”
1
. O episódio trata de
mais um dia do cotidiano de Gumball, no qual a família Watter-
son se vê falida após tentar comprar um Cheeseburguer e palitos
de cenoura e com isso o seu mundo desmorona, literalmente,
afinal toda a história gira em torno de Gumball, logo, do seu
1 Em tradução livre, “O Dinheiro”.

13
ponto de vista, todo o mundo deixa de existir. O episódio inicia
com um discurso ideológico inflamado anticapitalista da per-
sonagem principal, Gumball, direcionado a um funcionário do
fast food Joyful Burguer com o objetivo de fazer o seu pedido de
batatas fritas. Em seguida descobrimos que toda a família está
falida pelo fato do pai, Richard, ter pego todo o dinheiro e ter
jogado numa conta
offshore, aqui usado como um trocadilho
2
.
Vendo que a família está com problemas financeiros, Larry, o
atendente, lhes faz uma proposta de participar em um comer-
cial da rede Joyful Burguer, devido a seu aspecto medíocre. A
família, seguindo o idealismo de Gumball, não aceita a proposta
retornando à casa sem dinheiro algum, o que gera problemas
como a luz ser cortada, falta de comida, chegando ao ponto de,
no dia seguinte, perderem a casa. Logo em seguida, há a utiliza-
ção de metalinguagem, o desmoronamento do mundo de Gum-
ball é retratado por meio da “falha” da animação, como metáfo-
ra da crise monetária que a família vive, forçando-os, assim, a
aceitar a proposta feita por Larry no início do episódio. Este é
finalizado com eles atuando no comercial.
O desenho utiliza diferentes artifícios para contar a his-
tória, emprega diversas técnicas de animação, além da narrativa
complexa com várias camadas de entendimento. Usando pia-
das visuais voltadas ao público infantil e críticas ao capitalismo
e à crise financeira vigente, dando uma profundidade maior à
discussão, atraindo assim o público adulto. As piadas visuais
empregadas no episódio analisado remetem ao período inicial
da animação, conhecido como “era de ouro”, no qual era vincu-
lada principalmente em cinemas, por isso também chamada era
cinematográfica. As técnicas empregadas na série remetem aos
2 O pai confunde uma conta offshore, que é uma conta “clandestina” que benefi-
cia o investidor de forma legal, com o significado literal do termo, jogar no mar.

14
primórdios da animação, principalmente ao conhecido illusion
of life
3
, que são mecanismos desenvolvidos para dar mais realis-
mo e a impressão da vida à animação.
O QUE É ANIMAÇÃO
Desde sua alvorada, a humanidade busca representar
a sua visão de mundo, seja em pinturas nas cavernas ou po-
lígonos tridimensionais por meio de computação gráfica. Dessa
maneira, tornava-se inexorável criar meios de reprodução do
movimento. A partir disto, desenvolveu-se várias artes, entre
elas a animação e o cinema. “Animação não é a arte do dese-
nho que se move; ao invés disso, é a arte do movimento que é
desenhado” (MCLAREN,1940). A animação é uma arte trans e
interdisciplinar, passando por vários aspectos da criação huma-
na, tendo como principal técnica a animação de desenhos (
cell
animation
, também conhecida como animação tradicional). À
capacidade de criar movimento a partir de imagens levemente
diferentes dá-se o nome de
stopmotion. O desenvolvimento des-
ta técnica é a base do cinema e da animação. Este constitui-se de
imagens sequenciais que causam o movimento. As experiências
do fotógrafo inglês Eadweard J. Muybridge ajudaram a enten-
der como o movimento se constitui. Ele usava várias câmeras
para decompor o movimento em instantes; a justaposição dessas
imagens e o fenômeno ótico faz com que vejamos a imagem em
movimento. No entanto, não são os quadros estáticos que geram
o movimento, mas sim seu fluxo. Como destaca McLaren, “o que
acontece entre cada frame é mais importante do que acontece
em cada frame” (MCLAREN, 1940). Portanto, a animação tem
3 Em tradução livre, “A ilusão da vida”.

15
por base as imagens contidas em cada frame e a sua sucessão,
assim como dito por Deleuze a animação não são os desenhos e
sim o movimento que descreve a figura (DELEUZE, 1983, p.10).
A INCRÍVEL ANÁLISE DE GUMBALL – A ESTÉTICA
DE GUMBALL
No Incrível Mundo de Gumball temos uma arte que se
baseia em uma mistura de diversas técnicas de animação, tendo
em um mesmo episódio, personagens e objetos animados em 2D,
3D ou até mesmo o uso de fotos e texturas reais. Gumball e sua
família são animais antropomórficos, assim como o Gato Félix
(criado por Otto Messmer e Pat Sullivan), ou seja, são animais
que agem como seres humanos. Esta característica remete a ar-
tifícios para a fácil identificação com a personagem, a capacida-
de de um animal representar de forma neutra aspectos humanos
e a facilidade de criação de situações cômicas. A semelhança
com Félix vai para além disso, Gumball também é um gato e
no episódio analisado ele se transforma, assim como Félix. Este
fazendo parte do hall dos personagens criados na era de ouro
da animação, usa de muitas
gags visuais e transformações para
contar a sua história.
Apesar de Gumball ter semelhanças visuais com Félix,
seu traço remete aos tempos atuais feito em vetor de maneira
simples, além da predominância de linhas retas e da quase au-
sência de volumes. O que por um lado é uma escolha estética,
por outro é uma escolha técnica. A animação das personagens
da família Watterson é feita, principalmente, por meio da técni-
ca
cut-out, que consiste em animar peças que são as partes dos
corpos das personagens, o que poupa tempo de animação, tendo
em vista que não é necessário redesenhá-los quadro-a-quadro,
basta mover e trocar as peças para formar cada frame da anima-
ção.

16
A técnica de cut-out desenvolveu-se principalmente com
Hanna-Barbera em suas produções televisivas, quando era ne-
cessário que as animações saíssem rápido. Hoje essa demanda
de velocidade continua e com o avanço das tecnologias temos o
cut-out digital (empregado em Gumball), que consiste em peças
vetoriais ligadas a
armatures, esqueletos digitais aos quais as
peças vetoriais são presas para simular uma estrutura e contro-
lar a animação.
Uma parte importante da estética de Gumball é a utili-
zação das cores. O desenho conta com uma paleta baseada em
cores saturadas e claras, conhecidas como
candy colors. Esse
tipo de cor torna o desenho atraente para as crianças, além de
destacar as personagens do fundo, pois são utilizados cenários
reais. Em toda série são usadas fotos de locais reais como textu-
ra e
background, as cidades utilizadas são Londres e São Fran-
cisco.
POR DENTRO DO INCRÍVEL MUNDO DE GUMBALL
Observamos no início do episódio uma predominância
do diálogo, assim como nas animações de Hanna-Barbera. O
que por um lado facilita o processo de animação, pois esta se re-
sume a trocar as peças de boca da personagem, tendo em vista
que eles são recortes, e por outro dá uma maior profundidade
a narrativa. O discurso inicial gira em torno de uma questão
capitalista claramente direcionada aos possíveis espectadores
adultos.
Logo no início do episódio, nota-se a primeira mistu-
ra de técnicas de animação, já que os Watterson são
cut-out e
Larry, o atendente, é feito em animação 3D - isto é algo que se
repete ao longo de toda a série. Em seguida vemos a técnica
de
full animation (animação tradicional) usada em Nicole, mãe

17
de Gumball, enquanto ela se transforma. Essa técnica consiste
em animar toda ação quadro a quadro, empregando os 12 prin-
cípios da animação desenvolvidos na era de ouro, que tinham
como objetivo dar maior realismo ao movimento e potencializar
o que Walt Disney chamou de “ilusão da vida”.
Neste episódio, há uma sequência na qual Gumball can-
ta uma música remetendo aos clássicos musicais do cinema e
também as animações do Disney, que foi o pioneiro em introdu-
zir a música diegética nas animações, tornando-as assim mais
atrativas para o público.
Vemos também a inserção de outros estilos para além
do cartoon, como por exemplo o anime: animação tipicamente
japonesa que consiste em personagens de olhos grandes, narra-
tivas complexas, economia de animação e estética própria. Este
estilo é utilizado na mãe de Gumball, dentro do episódio como
uma
gag visual remetendo a propagandas feitas em outros pa-
íses, neste caso Japão; como eles são
cartoons, o equivalente
nipônico seria o anime.
No decorrer da trama do episódio relacionada com a
falta de dinheiro, há um momento em que a família percebe
que sem capital sua existência é posta em risco. Isso constitui
uma metalinguagem dentro do episódio, pois a desconstrução
da animação é usada para explicar o desmoronamento do mun-
do deles. Dentro deste contexto, o processo de desconstrução
ocorre de maneira a parecer que faltou dinheiro para pagar os
profissionais de cada área da produção da animação, fazendo
assim com que ocorram problemas, como a ausência de cor, des-
sincronização de áudio, problemas de
rig, levando a animação
ao estágio conhecido como
animatic (em algumas bibliografias
conhecido como
cinematic). Este é o layout básico de cena, ou
seja, é uma versão técnica do
storyboard, colocada em movi-
mento para que se tenha uma ideia dinâmica de toda a ação,

18
sequências, cenários, iluminação e estilo da animação. Foi um
processo estabelecido durante a era de ouro da animação, entre
os anos 1920 e 1940, sendo aplicado efetivamente como modelo
de produção industrial nas animações do estúdio Disney.
O
storyboard é uma peça de pré-produção que tem um
papel chave no desenvolvimento da obra, ele está subordinado
diretamente ao roteiro, ilustrando as ações contidas neste, co-
municando de forma visual a história, de maneira a representar
por desenhos os momentos principais dos movimentos a serem
animados do ponto de vista da câmera, indicando também os
enquadramentos, movimentos de câmera e o ângulo do qual a
cena será mostrada auxiliando, assim, na edição.
A desconstrução avança até o processo de
concept, isto
é, a concepção da ideia, usando apenas de esboços simples feito
em blocos de papel autoadesivo com a finalidade de comunicar a
base da ideia, trazendo-a para o material. Ele contém desenhos
não convencionais que servem apenas para direcionar e comu-
nicar os pontos chaves da animação de maneira clara.
Neste episódio, podemos notar o legado da era de ouro
da animação por meio das técnicas empregadas, evidenciando
que elas não ficaram presas às produções cinematográficas, se
estendendo às animações televisivas e digitais. Em determinado
momento, podemos observar o uso de animação 3D e computa-
ção gráfica, que apesar de ser um meio novo, também se utiliza
das técnicas aqui apresentadas. O uso do 3D fica mais perceptí-
vel na desconstrução do mundo, quando as texturas são retira-
das e percebemos que todo o mundo é disposto em um ambiente
virtual.
Portanto, a forma de criar movimento por meio da ani-
mação desenvolveu-se, principalmente, durante a era de ouro e
continua sendo aprimorada até hoje. Esta permanência eviden-
cia que a produção de animação está vinculada a estas técnicas,

19
sendo impossível renegá-las sem perder a ilusão da vida. “A arte
desafia a tecnologia e a tecnologia inspira a arte ”
4
(LASSETER,
2001).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRIER, M. Hollywood Cartoons: American Animation in the
Golden Age. Oxford University Press, ed. 1, New York, 2003.
DELEUZE, G.
A Imagem-Movimento: Cinema 1. Editora Brasi-
liense, 1983.
NAPIER, S. J.
Anime from Akira to Howl’s moving Castle: Expe-
riencing Contemporary Japanese Animation. St. Martin’s Griffin,
ed. 2, New York, 2005.
WELLS, P.
The Fundamentals of Animation. Fairchild Books
AVA, London, 2006.
WILLIAMS, R.
The Animator’s Survival Kit. Faber and Faber,
2009.
4 Tradução livre

20
Entre a Disney e o túmulo:
De que forma e por quais razões a questão da morte está
tão presente em grande parte dos filmes de animação da
Disney
Laura Spíndola
Luiz Filipe Paz
É pertinente afirmar que o mundo da animação vem
passando por intensas transformações a partir dos incríveis
avanços tecnológicos que testemunhamos desde o seu advento.
Tendo se manifestado em diferentes mídias e nas mais variadas
formas, pode-se estabelecer, como bem referenciam Carol Sta-
bile e Mark Harrison em sua obra “Primetime Animation: Tele-
vision Animation and American Culture”, de 2003, as matrizes
concernentes à animação ramificadas em 3 principais vieses: ci-
nematográfico, televisivo e digital, respectivamente. Cada uma
dessas fases vem sendo cada vez mais ponderadas e exploradas
através de incontáveis estudos e pesquisas, que têm o principal
objetivo de contemplar suas principais fundamentações, desem-
penhos e processos.
Ao decorrer desta análise, nos debruçaremos acerca
de um referencial fílmico composto por obras pertencentes aos
estúdios Disney, que se tornou extremamente importante nes-
te contexto devido às mudanças visionárias que implementou
em termos práticos e estéticos; por exemplo, industrializando e
compartimentando processos produtivos e, portanto, facilitan-
do a viabilização de produtos do gênero (STABILE; HARRISON,
2003). Mas, indo além dos meros aspectos técnicos, iremos ana-
lisar a profundidade e complexidade das narrativas desenvolvi-

21
das em suas produções, sendo suas temáticas fundamentais para
o estabelecimento da marca Disney como um dos mais impor-
tantes legados não só para o mundo da animação, mas para a
própria indústria cinematográfica em geral.
Até o início do século XX, muito por causa das limita-
ções tecnológicas da época, as animações, em seu estágio inicial,
não apresentavam, necessariamente, verossimilhança interna e
nem uma construção detalhada e crível a níveis de personagens.
Foi somente a partir da “Era Disney”, na década de 1920, que
protagonistas mais próximos da realidade em termos de dese-
jos e motivações passaram a integrar ambientes convincentes
ao público e a tecer tramas que apresentassem certo grau de
credibilidade (STABILE; HARRISON, 2003). Desta maneira, tais
figuras começaram a possuir estórias mais profundas e a serem
representadas de forma complexificada.
No entanto, ainda hoje, quando se fala em desenhos
animados ou em longa-metragens de animação, uma rápida as-
sociação entre estas formas de narrativas e o espectro infantil
invade nosso imaginário. Alguns fatores talvez sejam capazes
de explicar esta curiosa ponte: a palheta de cores mais viva, a
linguagem descomplicada pela qual se dão os diálogos - geral-
mente puxando para um caráter bem cômico -, elementos lúdi-
cos e até fantasiosos em evidência em suas estórias, a presença
de músicas que embalam cenas e eternizam instantes, o próprio
fato da representação de personagens e de suas ações serem ex-
pressados através de traços e não de corpos, entre outros.
Tais aspectos estruturais e artísticos, muitas das vezes,
levam à crença de que os conteúdos abordados e evidenciados
por obras deste gênero são frívolas e banais, a fim de atender
exatamente ao público para o qual seria voltado, no caso o in-
fantil. Porém, muito além de se restringir a um mero fator de
entretenimento, os exageros e elementos devaneadores são esta-

22
belecidos, sempre em diálogo com a narrativa, a fim de eviden-
ciar, problematizar e até mesmo ironizar diversos aspectos de
nossa sociedade.
É através da correlação de todos estes aspectos e dimen-
sões que são construídas histórias extremamente abrangentes,
que de fato têm a capacidade de fascinar as mais variadas fai-
xas etárias e contextos socioculturais. A autora Juliane Odinino
(2004), ao elaborar constatações sobre determinados desenhos
televisivos que são capazes de abranger públicos diversificados,
faz uma consideração cuja ideia básica é pertinente e pode ser
relacionada ao objeto de estudo deste presente trabalho:
A fusão desses públicos se dá na apresentação de uma lingua-
gem não tão direta e presumível como em muitos dos outros
desenhos animados anteriores, mas remetendo a figuras e ima-
gens enraizadas neste imaginário, aos quais os adultos também
encontram ponto de apoio para se empatizarem. (ODININO,
2004, p.112).

Para entender um dos temas mais recorrentes nas pro-
duções da Disney e um fundamental mecanismo de envolvimen-
to em relação a um público tão diversificado, vamos analisar e
tecer reflexões acerca da questão da morte e como ela é traba-
lhada ao longo destas obras.
A noção de morte é essencial para entendermos intrin-
cadas relações presentes em vários filmes da Disney (e essencial
para ilustrar o argumento destas narrativas animadas cada vez
mais multiformes e surpreendentes). Desde quando o pequeno
Bambi perde sua mãe, vítima de um cruel caçador (
Bambi, 1942),
até o violento assassinato de Mufasa pelo seu irmão Scar, em
O
Rei Leão
(1994), é possível observar nestas estórias o discurso
de perda e ausência. Embora densos de serem contextualizados
com os pequenos, estes temas constituem-se na força motriz de
muitas animações do estúdio e são pertinentes ao objetivarem

23
oferecer novas nuances e contornos a personalidades que pro-
curam fugir da estética simplista e chapada no que se refere à
construção de personagens.
Dividimos nosso trabalho em 4 bases categóricas funda-
mentais para discutirmos o óbito (bem como suas implicações)
por entre as tramas do estúdio em questão. São elas, respectiva-
mente: “morte de pais ou parentes das personagens principais
como força motriz da narrativa”, “morte ou ausência de pais
como um elemento de desenvolvimento e construção de caráter
das personagens”, “morte de vilões” e, por fim, “tentativas de
assassinato e experiências de quase morte”.
TIPOS DE MORTES E AS INTENÇÕES POR TRÁS DE
CADA UM DESTES PADRÕES
Morte de pais ou parentes dos personagens principais
como força motriz da narrativa
Nesta primeira categoria, procuramos abordar as ani-
mações que, de alguma forma, trabalham com a passagem de
entes queridos como uma maneira de sustentar os principais
plots da narrativa. Muitas das vezes, a perda de um esteio ou
referencial, faz com que as personagens principais do enredo
tenham de amadurecer para encararem desafios e obstáculos
que serão interpostos em suas jornadas, mudando seus compor-
tamentos na medida em que passam a ter de assumir responsa-
bilidades e superar traumas.
Além disto, a morte neste contexto assume um impor-
tante papel, pois é a grande responsável por guiar e dar sentido
à narrativa dos heróis da trama, muitas vezes encaminhando as
personagens e tornando-se a causa por trás de suas tomadas de
decisão (como, por exemplo, vingar a morte dos pais ou honrar

24
os ideais dos entes queridos).
É interessante observar, ainda, como nos identificamos
em relação ao sofrimento das personagens que se veem órfãs,
projetando nossas subjetividades e sentimentos no que está
sendo contado na tela. A perda da figura da mãe, por exemplo,
apela para nossas emoções, mesmo quando a personagem se
apresenta numa outra forma que não a humana.
Conforme argumenta Katia Perea, em seu artigo “Girl
Cartoons Second Wave: Transforming the Genre”, de 2015, é
justamente porque as representações gráficas das animações
possuem certa aura fantasmagórica que sua representação pode
acontecer sob a forma de um humano, animal ou objeto que
ela terá sua essência feminina ou masculina explícita (como o
instinto maternal, por exemplo, no caso das mulheres); dessa
forma, faz com que nos identificamos e soframos junto ao longo
dos minutos de filme. Isto acontece, por exemplo, em
Procuran-
do Nemo (2003), quando a mãe do protagonista e seus irmãos
morrem logo no início da estória, chocando a todos que assistem
à película, mesmo que estes personagens sejam peixes.
Como exemplos de personagens que veem na morte de
pais ou parentes sua principal motivação ou maior trauma a ser
superado, podemos citar: Bambi (Bambi), Simba (
O Rei Leão),
Tarzan (
Tarzan), Lilo e Nani (Lilo & Stitch), Kenai (Irmão Urso),
Tiana (
A Princesa e o Sapo), Anna e Elsa (Frozen), Hiro Hamada
(
Operação Big Hero), Marlin (Procurando Nemo), Carl (Up! Al-
tas Aventuras).
Morte ou ausência de pais como um elemento de de-
senvolvimento e construção de caráter dos personagens
Em relação a esta segunda categoria, é demonstrado
que a morte de pessoas importantes para os personagens prin-

25
cipais (especialmente os pais, pela grande quantidade de per-
sonagens órfãos que podem ser listados) é uma questão ainda
que, de certa maneira, secundária, por não fazer parte necessa-
riamente do arco narrativo principal. Ao longo destas histórias,
estas ausências não são um trauma a ser superado, ou seja: sua
superação não são elementos determinantes para a transposição
de obstáculos ou resolução de conflitos.
De fato, podem ser classificados como acontecimentos
de grande importância para a trajetória pessoal destes persona-
gens e construção de caráter e personalidade dos mesmos; além
disso, geralmente (mas nem sempre) são um elemento catalisa-
dor que leva tais personagens a serem inseridos em determina-
dos contextos, sendo estes normalmente problemáticos. As prin-
cipais inseguranças e questões de personagens como Cinderela
(1950), Ariel (1989), Bela (1991), Jasmine (1992) e Pocahontas
(1995) e o fato de estas se sentirem tão perdidas e deslocadas
em determinados ambientes, por exemplo, talvez possam ser
explicadas graças à ausência de suas mães em seus respectivos
períodos de crescimento e amadurecimento.
Um dos casos mais emblemáticos para demonstrar a
morte como fator de superação e amadurecimento dos perso-
nagens é o destino do personagem Bing Bong (
Divertida Mente,
2015), amigo imaginário da personagem principal Riley, que
cai no chamado abismo das lembranças apagadas e cuja perma-
nência contínua lá o faz desaparecer com o tempo, literalmente
“caindo no esquecimento”. O fim do personagem é uma metáfora
para a etapa em que jovens em fase de crescimento têm que
atravessar, que no caso é deixar lembranças e comportamentos
relativos à infância para trás a fim de se desenvolverem como
pessoas e chegarem a novas etapas da vida.
Exemplos de personagens cujas ausências de pais são um
elemento de construção de caráter e provavelmente o principal

26
fator que os deixou em determinado contexto: Cinderela (Cin-
derela), Peter Pan e os Meninos Perdidos (
Peter Pan), Arthur (A
Espada era a Lei
), Mogli (Mogli, o menino lobo), Penny (Bernar-
do e Bianca), Dodó (O Cão e a Raposa), Ariel (A Pequena Sereia),
Bela (
A Bela e a Fera), Aladdin e Jasmine (Aladdin), Pocahontas
(
Pocahontas), Quasímodo (O Corcunda de Notre Dame), Milo e
Kida (
Atlantis: O Reino Perdido), Remy (Ratatouille), Bing Bong
(
Divertida Mente).
Morte de vilões
Já nesta terceira categoria, buscamos raciocinar em
cima das mortes referentes a uma peça fundamental e de ex-
trema importância para o desenrolar de todo enredo: os vilões.
Tendo em vista que a maior parte do público consumidor das
animações da Disney ainda é infantil, há a necessidade de rei-
teração do caráter moralista nestas narrativas, visando a dar o
exemplo aos mais novos e a fazer, até, com que o mais velhos
encontrem nestas estórias alguma forma de alívio - se compa-
rado às injustiças e à violência que testemunham externamente
à trama. O triunfo do bem sobre o mal pode ser ilustrado, por
exemplo, a partir da emblemática morte da bruxa dos mares,
Úrsula, em
A Pequena Sereia (1989). Muito maior do que seu
tamanho original, ali ela era a representação do mal encarnado,
a vilania em sua mais perversa e temível forma. A feiticeira é
morta, no entanto, pelo príncipe da narrativa, Eric, que está de
branco (reafirmando e demarcando, claramente, quem está cor-
reto e quem não está, em uma fácil assimilação).
Muitas das vezes, ainda, o próprio mocinho se vê na
iminência de matar o vilão, mas acaba optando por não fazê-lo
em decorrência de sua bondade (lamentando-se se o “malvadão”
é levado à morte por outros fatores). Em contrapartida, também

27
é possível acontecer o oposto: o mocinho tem de matar o vilão,
pois sua sobrevivência e a de outras pessoas depende deste ato
que, a nível diegético, é definido como de bravura e/ou honra.
Como exemplo, pode ser citada a morte de Malévola (
A Bela
Adormecida
, 1959) em sua forma de dragão (a partir de uma
simbologia extremamente destrutiva e feroz) pelo príncipe do
conto, Phillip. Ali, era necessária a morte da Rainha dos Corvos
em prol do bem-estar de toda uma comunidade, que estava ame-
açada.
No entanto, e mesmo quando ocasionada pelo mocinho,
a morte do vilão é sempre resultado das más ações que ele pró-
prio cultivou, mesmo que indiretamente, ao longo de sua traje-
tória e do recorte de sua trama que está sendo divulgado a nós.
Mais uma vez, encontra-se a ocorrência do aspecto moralista e,
de certa forma, “resolutivo” da narrativa.
Como exemplos de personagens antagonistas cujas mor-
tes no final da narrativa são causadas direta ou indiretamente
por suas próprias ações e intenções malignas, pode-se elencar:
Rainha Má/Madrasta da Branca de Neve (
Branca de Neve e os
Sete Anões
), Malévola (A Bela Adormecida), Úrsula (A Pequena
Sereia
), Gaston (A Bela e a Fera), Scar (O Rei Leão), Juiz Frollo
(
O Corcunda de Notre Dame), Shan-Yu (Mulan), Clayton (Tar-
zan), Comandante Rourke (Atlantis: O Reino Perdido), Dr. Faci-
lier (
A Princesa e o Sapo), Gothel (Enrolados), Rei Doce/Turbo
(
Detona Ralph), Hopper (Vida de Inseto).
Tentativas de assassinato e experiências de quase morte
Por fim, chegando à quarta categoria, analisaremos al-
guns aspectos e dilemas das tentativas de assassinato e experi-
ências de quase morte ocorridas durante as produções da Disney.
Se as mortes por causas naturais ou acidentais já são uma ques-

28
tão naturalmente problemática e de implicações extremamente
complexas e diversas, é válido traçar considerações acerca das
tentativas de mortes intencionais.
As tentativas de assassinato, como poderiam ser tam-
bém descritas, são encaradas como uma forma de resolução de
problemas e conflitos, geralmente intencionalizadas e ocasio-
nadas pelos vilões dos filmes. Nestes casos, eles creem que so-
mente com o fim da existência de determinado personagem é
que terão plena possibilidade de alcançar seus objetivos de vida.
As motivações por trás de tais atos podem ser diversas, desde
o desejo para criar um casaco de peles com pelo de filhotes de
dálmatas, como é o sonho da personagem Cruella de Vil (
101
Dálmatas
, 1961), até um mero ato de retaliação, sem vantagens
reais além de satisfazer desejos de vingança, como é o caso da
tentativa por parte do Juiz Frollo de matar a personagem Es-
meralda, depois de ela o rejeitar (
O Corcunda de Notre Dame,
1996).
Se, em alguns dos casos, estas tentativas são nulas e não
chegam a atingir os personagens “marcados para morrer” de
maneira nenhuma, por outro, várias vezes eles de fato são atin-
gidos e chegam muito perto de morrer (ou até de fato morrem,
mas são capazes de voltar à vida). Estas experiências de quase
morte, que podem ou não ser causadas pelos antagonistas, po-
dem ser definidas como um recurso narrativo para levar os per-
sonagens principais a momentos de extrema tensão logo antes
de reverterem a situação e “darem a volta por cima”, resolvendo
assim o conflito principal de todo o arco narrativo.
A morte “temporária” de Branca de Neve (1937) depois
de comer a maçã envenenada presenteada pela Rainha Má, por
exemplo, é um processo que leva os espectadores a terem senti-
mentos de profunda tristeza e desolação para, quando a prince-
sa é acordada pelo Príncipe Encantado, serem alçados imedia-

29
tamente à felicidade plena, concluindo-se assim a narrativa de
maneira positiva e intensa. Outro caso válido de se mencionar é
a morte da personagem Mégara (
Hércules, 1997), que empurra
Hércules no momento em que uma pilastra está para matar o
herói e toma o seu lugar no último segundo. Ela, então, mor-
re, mas logo Hércules, incrivelmente desolado e determinado a
trazê-la de volta à vida, é capaz de trazer sua alma do submundo
fazendo com que ele mesmo ganhe imortalidade devido ao seu
ato de bravura, o que era seu principal objetivo durante a maior
parte do filme. Nesse caso, a morte e o retorno de Mégara é fun-
damental para a conclusão da jornada do personagem principal.
Exemplos de personagens cuja superação da morte
“temporária” (ou somente o escape da morte) é um elemento
fundamental para o desenvolvimento e conclusão da narrativa:
Branca de Neve (
Branca de Neve e os Sete Anões), Aurora (A
Bela Adormecida
), Filhotes de dálmatas (101 Dálmatas), Fera
(
A Bela e a Fera), Simba (O Rei Leão), John Smith (Pocahontas),
Esmeralda e Quasímodo (
O Corcunda de Notre Dame), Mégara
(
Hércules), Mulan (Mulan), Tarzan (Tarzan), Milo (Atlantis: O
Reino Perdido
), Kenai (Irmão Urso), Flynn Ryder (Enrolados),
Elsa e Anna (
Frozen), Remy (Ratatouille), Woody e seu grupo de
amigos (
Toy Story 3).
CONCLUSÃO
A partir desta breve análise, tomando por base grandes
clássicos da Disney e a ideia de morte tão presente em suas nar-
rativas (influenciando, também, na construção do perfil ideoló-
gico e identitário de suas personagens), procuramos buscar um
novo caminho a ser discutido quando filmes de animação são
colocados em pauta, para além da tão difundida dicotomia con-
ceitual entre desenho animado e infância, somente. Buscamos,

30
a partir de nossa contextualização, mostrar que estas narrativas
possuem um caráter mais complexo e intrigante do que aparen-
tam, a princípio.
ANEXOS
LISTA DE MORTES OCORRIDAS, MENCIONADAS OU VELADAS
NOS FILMES DE ANIMAÇÃO CLÁSSICOS DA DISNEY/PIXAR
Foram compilados filmes de animação da Disney per-
tencentes às companhias Disney Animation Studios e Pixar Ani-
mation Studios, sendo esta compilação uma seleção das obras de
maior sucesso e de maior relevância para o desenvolvimento do
presente trabalho.
As produções foram organizadas em ordem cronológica
e, em cada uma delas, foram descritas as cenas/situações para
se entender de que forma a questão da morte é evidenciada e
trabalhada ao longo destas obras.
Clássicos da Disney Animation Studios:
• 1937 -
Branca de Neve e os Sete Anões
• Mortes ocorridas durante o filme: Madrasta/Rainha Má,
no final do filme, que caiu de um penhasco enquanto fugia
dos anões.
• Ausências/mortes veladas: Rei e Rainha/Pais da Branca de
Neve, causa desconhecida.
• Tentaivas/experiências de quase morte: Tentativa de assas-
sinato da Branca de Neve a mando da Rainha pelo Caçador;
Morte “temporária” de Branca de Neve depois de comer a
maçã envenenada.

31
• 1942 - Bambi
• Mortes ocorridas durante o filme: Mãe do Bambi, no início
do filme, morta por um caçador.
• 1950 -
Cinderela
• Mortes ocorridas durante o filme: Pai da Cinderella, no
início do filme, por alguma doença não mencionada.
• Ausências/mortes veladas: Mãe da Cinderela, causa desco-
nhecida.
• 1953 - Peter Pan
• Ausências/mortes veladas: Pais de Peter Pan e dos Meninos
Perdidos.
• 1959 - A Bela Adormecida
• Mortes ocorridas durante o filme: Malévola, no final do
filme, morta pelo Príncipe Phillipe.
• Tentativas/experiências de quase morte: Aurora (Bela
Adormecida), que é amaldiçoada e cai em um sono sem fim
até ser salva pelo Príncipe Phillipe.
• 1961 - 101 Dálmatas
• Tentativas/experiências de quase morte: Tentativa de fazer
um casaco de peles com pelo de filhotes de dálmata pela
Cruella de Vil.
• 1963 -
A Espada Era a Lei
• Ausências/mortes veladas: Pais de Arthur, causa desconhe-
cida.
• 1967 -
Mogli - O Menino Lobo
• Ausências/mortes veladas: Pais de Mogli, causa desconhe-
cida.

32
• 1977 - Bernardo e Bianca
• Ausências/mortes veladas: Pais da Penny, causa desconhe-
cida.
• 1981 -
O Cão e a Raposa
• Mortes ocorridas durante o filme: Mãe de Dodó, a Raposa,
por um caçador.
• 1989 -
A Pequena Sereia
• Mortes ocorridas durante o filme: Úrsula, no final do filme,
morta pelo Príncipe Eric.
• Ausências/mortes veladas: Mãe de Ariel, cuja morte é cau-
sada por humanos.
•1991 -
A Bela e a Fera
• Mortes ocorridas durante o filme: Gaston, no final do filme,
depois de sua tentativa de assassinar a Fera, que cai em um
abismo.
• Ausências/mortes veladas: Mãe de Bela, causa desconhe-
cida.
• Tentativas/experiências de quase morte: Fera, que é ferido
por Gaston mas é salvo magicamente pelo amor de Bela.
•1992 -
Aladdin
• Ausências/mortes veladas: Pais de Aladdin, causa desco-
nhecida; mãe da Jasmine, causa desconhecida.
• 1994 -
O Rei Leão
• Mortes ocorridas durante o filme: Mufasa, no meio do fil-
me, causada por seu irmão Scar; Scar, morto pelas hienas
que antes eram suas aliadas.

33
• Tentativas/experiências de quase morte: Tentativa das hie-
nas de assassinar Simba a mando de Scar; “Morte” de simba
durante a maior parte do filme para seus amigos e parentes.
• 1995 -
Pocahontas
• Mortes ocorridas durante o filme: Kocoum, morto a tiros
por Thomas, quando este estava tentando proteger John
Smith.
• Tentativas/experiências de quase morte: John Smith, pri-
meiro atacado e quase morto por Kocoum e depois senten-
ciado à morte pelo pai de Pocahontas e chefe de sua tribo,
Cacique Powhatan; declaração de guerra entre os índios da
tribo de Pocahontas e os compatriotas de John Smith.
• 1996 -
O Corcunda de Notre Dame
• Mortes ocorridas durante o filme: Mãe de Quasímodo, no
início do filme, a mando do juiz Frollo em sua perseguição
a grupos ciganos; Juiz Frollo, no final do filme, que caiu do
alto da igreja de Notre Dame.
• Tentativas/experiências de quase morte: Esmeralda, sen-
tenciada à morte na fogueira por bruxaria; Quasímodo, que
foi perseguido e quase assassinado pelo juiz Frollo em sua
tentativa de proteger Esmeralda.
• 1997 -
Hércules
• Tentativas/experiências de quase morte: Mégara, que é
morta ao salvar Hércules de ser atingido por uma pilastra
que o mataria e depois é trazida de volta à vida por ele;
Hércules, que chega perto da morte em sua tentativa de
trazer Mégara à vida.
• 1998 -
Mulan

34
• Mortes ocorridas durante o filme: Shan-Yu, no final do fil-
me, morto por Mulan depois de sua tentativa de assassinar
o Imperador.
• Ausências/mortes veladas: Habitantes de um vilarejo ata-
cado pelo exército huno.
• Tentativas/experiências de quase morte: Mulan, quando
sua verdadeira identidade é descoberta pelo exército chinês,
é quase morta por desrespeitar as leis do país, mas poupada
pelo General Shang.
• 1999 -
Tarzan
• Mortes ocorridas durante o filme: Pais de Tarzan e o filhote
de Kala, no início do filme, mortos por Sabor, um leopardo;
Kerchak, líder dos gorilas e “pai adotivo” de Tarzan, alve-
jado por Clayton; Clayton, em sua tentativa de assassinar
Tarzan, morto asfixiado acidentalmente.
• Ausências/mortes veladas: Mãe de Jane, causa desconhe-
cida.
• 2001 -
Atlantis: O Reino Perdido
• Mortes ocorridas durante o filme: Kashekim, pai de Kida
e rei de Atlantis, morto pelo Comandante Rourke; Coman-
dante Rourke, no final do filme, morto por Milo.
• Ausências/mortes veladas: Rainha de Atlantis e mãe de
Kida, que deu a vida para salvar seu povo; pais de Milo,
causa desconhecida.
• 2002 -
Lilo & Stitch
• Ausências/mortes veladas: Pais de Lilo e Nani, devido a um
acidente não mecionado.
• 2004 -
Irmão Urso

35
• Mortes ocorridas durante o filme: Sitka, no início do filme,
morto enquanto lutava com um urso; Urso morto por Kenai
em vingança pela morte de Stika, que mais tarde se revela
ser a mãe de Koda.
• Tentativas/experiências de quase morte: Kenai, transfor-
mado em urso, é perseguido durante a maior parte da nar-
rativa por seu irmão Denahi, que acredita que ele é o urso
que teria matado seus irmãos.
• 2009 -
A Princesa e o Sapo
• Mortes ocorridas durante o filme: Dr. Facilier, no final do
filme, levado à morte pelos seres do submundo que ante-
riormente eram seus aliados.
• Ausências/mortes veladas: Pai de Tiana, no início do filme,
morto durante a Primeira Guerra Mundial.
• 2010 -
Enrolados
• Mortes ocorridas durante o filme: Gothel, no final do fil-
me, quando Rapunzel perde a mágica proveniente de seus
cabelos e os encantos de rejuvenescimento que Gothel usou
durante décadas se acabam.
• Tentativas/experiências de quase morte: Flynn Ryder, mor-
talmente ferido por Gothel, mas trazido à vida por Rapun-
zel.
• 2012 -
Detona Ralph
• Mortes ocorridas durante o filme: Rei Doce/Turbo, atraí-
do inevitavelmente para a explosão de um vulcão de Coca-
-Cola com Mentos na Terra dos Doces.
• 2013 -
Frozen: Uma Aventura Congelante
• Mortes ocorridas durante o filme: Pais de Anna e Elsa, em

36
um naufrágio.
• Tentativas/experiências de quase morte: Elsa, que é quase
morta pelo Príncipe Hans mas salva por sua irmã; Anna,
que vira gelo graças aos poderes de sua irmã Elsa, mas volta
à vida depois de salvá-la de Hans.
• 2014 -
Operação Big Hero
• Mortes ocorridas durante o filme: Tadashi, irmão de Hiro,
morto em um incêndio ao tentar salvar seu professor.
• Ausências/mortes veladas: Pais de Hiro e Tadashi, causas
desconhecidas.
Clássicos da Pixar Animation Studios:
• 1998 -
Vida de Inseto
• Mortes ocorridas durante o filme: Hopper, no final do fil-
me, é mlevado à morte por um pássaro que o dá de alimen-
to para seus filhotes.
• 2003 -
Procurando Nemo
• Mortes ocorridas durante o filme: Coral, esposa de Marlin
e mãe de Nemo, e todos os outros filhotes de Marlin e Coral,
no início do filme, mortos por uma barracuda.
•2007 -
Ratatouille
• Mortes ocorridas durante o filme: Chef Auguste Gusteau,
que morre depois que seu restaurante é duramente critica-
do e perde prestígio.
• Ausências/mortes veladas: Mãe de Remy, causa desconhe-
cida; ratos atingidos por armadilhas, quando o pai de Remy
tentava demonstrar os perigos de se misturar entre os hu-
manos.

37
• Tentativas/experiências de quase morte: Remy, que é quase
morto por Alfredo Linguini, pelo fato de ser um rato e ser
encontrado em um restaurante.
• 2008 -
Wall-E
• Ausências/mortes veladas: Grande parcela da humanida-
de que não foi capaz de evacuar o planeta, provavelmente
morta pelo que levou a Terra a ser praticamente extinta.
• 2009 -
Up - Altas Aventuras
• Mortes ocorridas durante o filme: Ellie, esposa de Carl, no
início do filme, de velhice.
• Ausências/mortes veladas: Filho não-nascido de Carl e
Ellie.
• 2010 -
Toy Story 3
• Tentativas/experiências de quase morte: Todo o grupo de
brinquedos amigos de Woody, que chegam perto de ser
mortos quando se encontram por acidente dentro de um
incinerador de lixo, mas conseguem escapar no último se-
gundo.
• 2015 -
Divertida Mente
• Mortes ocorridas durante o filme: Bing Bong, o amigo ima-
ginário de Riley, que é “morto” por ter caído no abismo do
esquecimento.

38
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HARRISON, M.; STABILE, C. Primetime Animation: Television
Animation and American Culture. Londres e Nova York: Rou-
tledge, 2003.
PEREA, K. Girl Cartoons Second Wave: Transforming the Genre.
In:
Animation: an interdisciplinary journal, SAGE Journals, Vol.
10(3) 189-204, 2015.
ODININO, J.
Imaginário infantil e desenho animado no cenário
da mundialização das culturas
. Dissertação de Mestrado. Cam-
pinas, SP: 2004.

39
Como Walt Disney driblou as críti-
cas e como a influência da literatu-
ra lovecraftiana em Gravity Falls é
sintoma de seu sucesso

Caio Coelho
Tassiana Benamor
No que se pode conferir por meio da historiografia hu-
mana, o ser humano utiliza como um de seus diferentes meios
de comunicação, a ilustração. Conforme a humanidade se de-
senvolveu, as ferramentas e recursos de aprimoramento desses
meios fizeram com que os desenhos caminhassem de mãos da-
das a eles. Seguindo essa linha histórica, o que antes era uma
imagem estática, hoje é possível assisti-la animada e atrelada a
uma trilha sonora.
Porém, cursar essa trajetória foi uma tarefa difícil aos
que buscaram realizá-la. Walt Disney é um nome de peso nesse
quadro, podendo ser considerado o pioneiro a realizar esse tra-
balho durante o século XX até os dias de hoje. Além disso, desde
as críticas recebidas no longa-metragem de 1940,
Fantasia, até
Gravity Falls, de 2012, a inserção social desse formato dependeu
não somente de seu aprimoramento técnico como também de in-
fluências externas, incluindo a essa lista de influentes o escritor
de horror H. P. Lovecraft.
Sendo assim, o ato de desenhar pode até ser um ato ins-
tintivo para o homem, mas cair no gosto do público e o caminho
até conquistá-lo é seu maior desafio.

40
H.P. LOVECRAFT E OBRA
Howard Phillips Lovecraft (1890-1937) foi um autor es-
tadunidense que conquistou a fama póstuma por meio de suas
obras ficcionais. De origem pobre, era praticamente desconheci-
do e havia publicado somente em
pulp magazines. Todavia, hoje
é considerado um autor de grande peso do século XX no gênero
do horror. Em meio a muitos outros contos,
The Call of Cthulhu
está na sua lista de títulos mais conhecidos ao redor do mundo.
O impacto gerado por este, por sua vez, é conhecido por “Mitos
de Chtulhu” e também responsável por inspirar inúmeros artis-
tas, escritores e obras – como é o caso de
Gravity Falls.
Famoso por articular diversos elementos - como a fan-
tasia e o realismo especulativo - a revolução no gênero literário
que suas obras proporcionaram consiste em transcender os li-
mites do que se entendia como horror e transformá-lo em um
híbrido com ficção científica. Ademais, Lovecraft também funda
uma mitologia profundamente ancorada não somente no horror
mas também na estranheza. Em vez de seres antropomorfizados,
isto é, vagamente humanos – por exemplo elfos,
hobbits e orcs
- o autor cria seu próprio bestiário. Sendo não somente o oposto
retrato do ser humano, essas criaturas são disformes, horríveis
e monstruosas. Um universo habitado por criaturas de dimen-
sões monstruosas de milhões de anos de idade e com tentáculos
saindo de diferentes partes do corpo, o grotesco, o repulsivo, os
odores nada agradáveis e as gosmas pegajosas são marcas do
autor que escorrem de cada página. Infelizmente, durante muito
tempo alguns críticos não reconheceram o trabalho de Lovecraft
como horror. Em contrapartida, foi durante parte de sua vida e
após sua morte que seu nome se consolidou no gênero.
A influência de Lovecraft é tamanha atualmente, que
perpassou o mundo da leitura e hoje notamos referências a mi-

41
tologia criada pelo mesmo em séries de televisão, filmes, jogos,
chaveiros, desenhos animados e em muitos outros produtos.
Pode parecer radical afirmar, porém é quase impossível viver
nos tempos atuais e não esbarrar com alguma influência de Lo-
vecraft, e o desenho animado
Gravity Falls não é uma exceção.
DA ÁGUA PARA O VINHO: COMO A DISNEY SUPE -
ROU OS DESAFIOS VIVIDOS NA TRANSIÇÃO EN -
TRE FANTASIA E GRAVITY FALLS.
É importante situar-se acerca do surgimento e da inser-
ção do desenho animado na sociedade para então prosseguir
sobre a influência dessa literatura em
Gravity Falls. Para isso, é
preciso entender que a introdução da consagrada arte literária
nos desenhos animados é consequência de um longo processo
de aceitação tanto por parte da sociedade quanto de desenvolvi-
mento técnico por parte dos produtores.
Walt Disney se destacou como o pioneiro - em muitos
sentidos - na produção das animações. Pensando em suas produ-
ções iniciais e de grande destaque, uma animação que marcou
a história da Disney foi o longa-metragem
Fantasia, de 1940. A
superprodução que mistura música erudita, animação e inspira-
ção artística europeia, apesar do grande apelo técnico e investi-
mento em marketing, não repercutiu de forma positiva - muito
menos na dimensão esperada - no seu ano de estreia. Para além
das céticas e pesadas críticas de muitos especialistas quanto ao
“desperdício” da música erudita em uma animação, muito tam-
bém foi comentado - e permanece até os dias de hoje - quanto ao
caráter artístico escolhido em determinadas partes do filme.
Uma das principais temáticas abordadas em
Fantasia é
a bruxaria, em que Mickey Mouse surge como o aprendiz do
mago Merlin. Não fugindo de uma das marcas mais pertinentes

42
às produções animadas, o humor surge no longa nas variadas
situações onde os feitiços do famoso rato acabam saindo erra-
do. Porém, isto não é o que chamou a atenção da crítica e de
parte do público, mas sim algumas atitudes interpretadas como
possíveis mensagens subliminares e cerimônias presentes nesta
produção.
A primeira parte da produção a receber críticas - quanto
ao seu caráter “pesado” para a faixa etária destinada - se dá no
momento em que Mickey concede vida a uma vassoura para que
ela lhe poupe do trabalho de carregar água de um poço. Essa
vassoura ganha vida e começa a se comportar como um perso-
nagem, com braços e todo um conjunto de características típicas
de um ser humano. Neste momento, Mickey adormece e quando
acorda, uma verdadeira desordem está instalada.
A vassoura inunda o ambiente com água e não há como
fazê-la parar. É então que o ícone da Disney, no intuito de pará-
-la, utiliza-se de um machado para literalmente matá-la. A cena,
que é ilustrada num jogo de sombras, ganha um ar ainda mais
pesado, lúdico e propício a diferentes interpretações. Considera-
da inapropriada para crianças, na leitura de muitos, o que ocor-
re é um verdadeiro esquartejamento da vassoura humanizada.
Tendo em vista essa interpretação, esse dado momento
foi visto como inapropriado ao psicológico do público infantil,
pois os mesmos supostamente não seriam capazes de discernir a
fantasia da realidade e, para eles, o que Mickey cometeu foi um
assassinato. Para os que assistiriam ao filme nas salas de cinema,
a experiência dessa cena seria ainda mais intensa, como conta
Pegaro (2012, p.5):
A ideia era que o filme fosse visto em uma tela larga e ou-
vida com som dimensional. Deste modo, durante
O Apren-
diz de Feiticeiro, quando as vassouras escapam do con-
trole do Mickey e marcham para a fonte com seus bal -
des d’água, o som cercaria o público espectador, e as
sombras das vassouras alcançariam os lados do teatro.

43
A experiência, muito provavelmente, resultaria em crí-
ticas ainda mais duras.
O segundo momento na referida animação digna de
fortes críticas é a parte chamada, em inglês, de
Night On Bald
Mountain
. Nesta narrativa específica, um grandioso e escuro
monte que aparece na paisagem do desenho, ao anoitecer, mos-
tra ser na realidade um monumental monstro tão poderoso e
aterrorizante quanto Chtulhu, de Lovecraft. Ao despertar de seu
sono, a monstruosidade invoca uma multidão de almas dos mor-
tos para adorá-lo e prestar uma espécie de culto. A passagem é
ilustrada como um ritual de sofrimento e opressão a essas almas,
que são torturadas pelo monstro e lançadas ao fogo.
Não é muito recente que as diversas mensagens subli-
minares e referências apocalípticas são relacionadas a obras do
universo Disney; o mesmo ocorre com
Hércules, Branca de Neve
e os Sete Anões
, Cinderela e muitas outras produções. Porém,
em meio a tantas, Fantasia continua sendo lembrada como uma
das criações com as maiores insinuações obscuras e míticas. Boa
parte do público e crítica especializada não têm o conhecimento,
mas muito dos traços nas animações Disney são inspirados no
“estilo gótico da Idade Média, ao surrealismo, a arte de Gustave
Doré, Daumier, os pintores do Romantismo alemão, simbolistas,
pré-Raphaelistas ingleses e expressionistas” (Girveau, 2005).
Todas essas referências explicam muito da estética adotada pela
marca de Disney em suas criações e nos mostram o porquê de
críticas e interpretações tantas vezes embasadas em discursos
relacionados ao horror e ao subliminar.
Apesar dos aprimoramentos desenvolvidos por Walt Dis-
ney não terem sido plenamente aceitos pelo público no século
XX, hoje elaboradas estéticas, narrativas e influências externas
são vistas por outros olhos pela sociedade.
Gravity Falls não so-

44
mente utiliza de refinada tecnologia para sua produção - poden-
do atribuir essa característica à trilha sonora, à animação em si,
entre outros aspectos - como também é acolhida pelo público
de maneira profundamente positiva por motivos como este. Em
meio a uma enorme variedade de desenhos animados ofertados
pela indústria, ser autêntico é um desafio cada vez maior. Por
esse motivo, exibir em seus produtos esse rebuscamento é sinô-
nimo de ostentação. Sua relação a literatura lovecraftiana é uma
prova profunda disso.
COMO A LITERATURA LOVECRAFTIANA IN -
FLUENCIA DIRETAMENTE A SÉRIA ANIMADA
GRAVITY FALLS
Novamente tratando-se do objeto de estudo em questão,
Gravity Falls é a série animada da Disney que traz em seu en-
redo as experiências vividas pelos gêmeos de doze anos Dipper
Pines e Mabel Pines durante suas férias de verão na cidade de
Gravity Falls. Porém, nem tudo é o que parece ser nesse lugar
e, com o auxílio de um diário que Dipper encontra na floresta,
inicia-se a busca pela solução dos enigmas dessa cidadezinha.
Ao longo da narrativa, é introduzido Bill Cipher à atmos-
fera de mistérios, demônio triangular, amarelo e ciclope vindo
de uma dimensão paralela. Sua aparência - e principalmente o
olho no centro de seu corpo - é uma nítida referência ao olho da
providência e assemelha-se a magnitude dos seres construídos
na obra Os Mythos de Lovecraft, os quais estão acima da ordem
natural.
Compreender sua complexidade é uma tarefa árdua,
pois assim como os monstros de Lovecraft, tanto a descrição
escrita quanto imagética não são capazes de captar e transmitir
seus limites dimensionais, seus poderes e suas fraquezas. Apesar

45
de não ter sua história como personagem narrada em Gravity
Falls
, é evidente sua periculosidade e seu caráter megalomaní-
aco, o que se comprova por meio do sumiço de alguns dos per-
sonagens na trama e da constante tentativa de dominar tudo e
a todos. Além disso, Bill personifica o tempo-espaço e não habi-
ta o nosso universo e sim sua própria dimensão. Nos episódios
finais da série, Cipher invoca com seus poderes sobrenaturais
monstros um tanto inspirados na estética lovecraftiana para lu-
tar contra os moradores d
e Gravity Falls.
Assim como o medo do desconhecido é uma das carac-
terísticas presentes nas obras de H. P. Lovecraft,
Gravity Falls
também utiliza essa ferramenta para impulsionar sua trajetória.
Partindo dessa lógica, é possível notar que os personagens são
movidos por diversos medos - como da perda, da solidão, de
memórias, de traumas e até mesmo da insignificância humana
frente a um universo imenso e indiferente. Entretanto, diferen-
temente de Lovecraft, que utilizava o seu terror movido a ódio
e intolerância,
Gravity Falls subverte essa lógica ao escolher,
assim como a maioria dos programas voltados para o público
infantil, o amor e a aceitação como caminho para a solução das
problemáticas vividas em sua narrativa. Sendo assim, a série
promove um comportamento positivo nas crianças.
Os autores dessa série animada, ao introduzirem o hor-
ror cósmico em um formato palpável para o telespectador da
Disney, souberam dosar de maneira equilibrada o aterrorizante
e o divertido, adaptando os elementos da literatura lovecraftia-
na à infância atual. Seguindo essa linha de pensamento,
Gravity
Falls
é um exemplo que comprova que os impactos de Lovecraft
na cultura contemporânea não se restringem a uma faixa etária
específica, mas sim palatável aos mais diferentes públicos e pre-
sente nos mais diversos produtos midiáticos.
A reprodução de conceitos e referências aos livros e con-

46
tos de H. P. Lovecraft surgem como um fenômeno atemporal no
mundo contemporâneo. As constantes alusões feitas à Lovecraft
nos mais diferentes campos alimentam um ramo do horror que
carece de pensadores e gênios como ele. Esta constante reprise
de sua mitologia mantém vivas suas obras, seus antigos e fiéis
fãs. E, mais do que isso, alimentam a imaginação de uma nova
geração de artistas que hoje pode entrar em contato com as suas
mais diferentes referências, desde as mais clássicas até as mais
improváveis, como nos desenhos animados.
CONCLUSÃO
Apesar de as obras de H. P. Lovecraft não terem efe-
tivamente conquistado significativo sucesso na época em que
foram escritas, hoje é indiscutível o fato de referências às suas
obras estarem em muitos lugares, não somente limitadas ao gê-
nero horror. Lovecraft inspirou outras obras dentro e fora do
seu gênero, no ocidente e no oriente. Para desavisados, essas
referências podem passar despercebidas na maioria das vezes,
mas a partir do momento que se conhece o estilo e a mitologia
lovecraftiana, é possível enxergar esses traços muito presentes
na cultura contemporânea, seja em séries, livros, filmes, mú-
sicas, games ou desenhos animados. Nem sempre essas obras
inspiradas contém o tom que o autor dava a suas histórias. Por
essa razão, grande parte do que é produzido hoje ainda trabalha
com as dicotomias bem vs. mal, luz vs. trevas. Apesar disso, é in-
teressante perceber como um autor que publicou suas histórias
em pequenas revistas de nicho e morreu sem alcançar sucesso
mundial, é hoje tão importante para ficção de modo geral, inclu-
sive para a ficção animada.
Seguindo essa linha de raciocínio, a força e solidez que
os desenhos animados conquistaram nas mais diversas plata-

47
formas e formatos é notória e inegável. Disney parece usar do
mesmo clima de misticismo e horror, que há tempos a fez alvo
de duras críticas, na sua série
Gravity Falls. Com isso, atinge
o sucesso ao articular com sabedoria o rebuscamento técnico
às influências da arte literária contemporânea, caindo na graça
de seu público ao redor do mundo. Assim como H. P. Lovecraft,
Gravity Falls não se limita à sua vã estética ou filosofia. Vai
além, pois por meio da arte e do lúdico, transgride os limites
do entretenimento e torna-se mais um marco para a história do
desenho animado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GIRVEAU, B. Il Etait une Fois Walt Disney. Paris: RMN, 2006.
KHAW, C.
Disney’s Gravity Falls is weird Americana meets Lo-
vecraft for kids. In Arstechnica. Disponível em <http://arste-
chnica.com/the-multiverse/2016/02/disneys-gravity-falls-is-
-weird-americana-meets-lovecraft-for-kids/>. Acessado em 18
de julho de 2016.
PEGORARO, C. Fantasia e uma Nova Dimensão Sonora: conver-
gência de linguagens musical, artística e cinematográfica. In
Revista Anagrama: Revista Científica Interdisciplinar da Gra-
duação, 2012.
SIMMONS, D.
New Critical Essays on H. P. Lovecraft. Nova York:
Palgrave Macmillan, 2013.

48
Problemáticas da representação da
mulher na mídia e seus desdobra-
mentos nas Princesas da Disney

João Pedro Pinho
Luiza Costa
A representação midiática da mulher sempre foi proble-
mática por refletir a imagem que o patriarcado e uma socie-
dade machista mantinham do papel feminino e por ajudar a
preservá-lo e difundi-lo cada vez mais, criando novos estere-
ótipos, “tipos” de mulheres e subclassificações que difundidas
massivamente acabavam - e ainda o fazem, até hoje - educando
mulheres e meninas de várias gerações a agirem de maneiras
“corretas” e homens e meninos a como eles deveriam tratar e
olhar para a figura feminina.
Em seu artigo “Mas por que, afinal, as mulheres não sor-
riem?: jornalismo e as razões da (in)felicidade feminina”, João
Freire e Talita Leal discorrem sobre como o papel da mulher na
sociedade é pautado pela imprensa como um ser submisso, que
deve sempre atentar-se às necessidades de sua família e de seu
marido, que nunca deve colocar sua vontade própria acima da
vontade do patriarcado e deve estar sempre feliz, dócil, arruma-
da, perfumada e perfeita.
Já o autor Edgar Morin, em seu livro “Cultura de Massas
no Século XX”, no capítulo “A Promoção dos Valores Femininos”,
discorre sobre o papel da cultura de massa nessa propagação de
uma feminilidade também passiva e submissa. O autor analisa
a imprensa feminina e a imprensa sentimental, emergidas no
séc. XX, e a maneira como elas abordam por um lado a casa e o

49
bem-estar e por outro a sedução e amor, pautando os interesses
e a existência das mulheres sempre sobre esses dois prismas: o
lar e a família e o romance e a sensualidade.
O objetivo desse trabalho é desdobrar estes conceitos
e aplicá-los, junto a outros, à representação da mulher nos lon-
gas-metragens animados de princesas da Disney, destacando a
maneira como da mesma forma em que a imprensa e o jornalis-
mo feminino doutrinam as mulheres da sociedade propagando
estereótipos e valores machistas, grande parte da indústria de
desenhos animados também ocupa um papel doutrinador das
meninas mais jovens, ensinando-as como se portar e sacrificar
suas vontades e interesses próprios a favor de um homem e da
família, procurando conquistar o príncipe “encantado”, e não
abrir mão de sua fragilidade e passividade, que se manifestam
disfarçadas como doçura e atitude de “princesa educada”. As-
sim, da mesma maneira que a mídia e a imprensa constroem
e perpetuam tipos ideais de mulher, as princesas da Disney re-
presentam um tipo ideal de menina: dócil, frágil, bela, educada,
arrumada e sempre feliz.
BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DOS
DESENHOS ANIMADOS PARA MENINAS
A década de 1980 é conhecida, na história dos desenhos
animados, como o momento da consolidação dos desenhos ani-
mados como um produto midiático infantil e comercial: nessa
época, várias foram as animações que surgiram de produtos que
já existam, funcionando como uma espécie de propaganda deles.
Isso foi possível através da determinação da
Federal Communi-
cation Commission’s (FCC) que permitiu a produção de dese-
nhos animados baseados em brinquedos. É nesse contexto dos
anos de 1980, de animações baseadas em produtos já comercia-

50
lizados, que os desenhos animados para meninas começaram a
ser veiculados nos Estados Unidos (PEREA, 2015).
Segundo Katia Perea, em seu artigo “Girl Cartoons Se-
cond Wave: Transforming the Genre”, essa primeira onda de
desenhos animados para garotas acabou definindo parâmetros
normativos de gêneros que mais do que caracterizar, rotulam
um desenho animado como um programa para garotas. Essas
animações, imprescindivelmente, trabalham com as opções es-
téticas de cor – com predominância do rosa – e com ideologias
como amizade e construção de uma comunidade através da re-
solução de conflitos por meio da comunicação e de uma lideran-
ça feminina motivacional. As garotas, assim, são apresentadas
como líderes e transmitem confiança, determinação e experi-
ência no processamento de emoções e na resolução de conflitos
através da comunicação. Entretanto, por outro lado, nos dese-
nhos para meninos, onde imperam a dicotomia entre bem e mal,
os conflitos são resolvidos sempre à base de violência.
Essas representações são problemáticas tanto para as
meninas quanto para os meninos. Elas enraízam e reiteram a
ideia de que mulheres são mais sentimentais do que racionais,
reforçando, ainda, o estereótipo do instinto materno que des-
perta nas mulheres o impulso de proteger todos que estão à sua
volta, e de que os homens são fortes e viris, reiterando o estere-
ótipo de que “meninos não choram”.
AS PRINCESAS DA DISNEY
Muito antes de 1980, Walt Disney já trabalhava com os
estereótipos femininos. O estúdio, fundado em 1923, época da
fase cinematográfica dos desenhos animados, foi de extrema im-
portância para as animações, uma vez que foi responsável pelos
principais avanços tecnológicos dessa fase do desenho animado:

51
o primeiro filme com som e o primeiro filme em cores foram
produções da Disney - com
Mickey Mouse (1928) e Flores e Ár-
vores (1932), respectivamente. Sendo assim, a Disney é vista,
hoje, como pioneira na indústria de animação.
Seu primeiro grande sucesso foi uma de suas princesas:
Branca de Neve e os Sete Anões, lançado em 1937 (depois de 3
anos de produção), foi a primeira animação de longa-metragem
da Disney. Branca de Neve, depois de perder seu pai, passou a
viver com sua madrasta, uma mulher má, invejosa, vaidosa e
amargurada, que fazia de sua enteada uma servente. Tomada
pelo desejo de ser a mulher mais linda e pela inveja ao saber que
a mulher mais na linda, na verdade, era Branca de Neve, a Rai-
nha Má ordena que um Caçador mate sua enteada. Entretanto,
prestes a matar Branca de Neve, o Caçador fica encantando com
sua beleza e a deixa escapar. Fugindo pela floresta, a princesa
acaba encontrando os Sete Anões, que a abrigam em sua casa,
onde a Rainha Má, disfarçada de bruxa, encontra Branca de
Neve e a envenena. A moça, então entra em sono profundo e
acaba sendo salva pelo beijo do amor verdadeiro dado por um
príncipe que ela havia encontrado durante sua fuga.
O beijo do amor verdadeiro é um elemento intrínseco às
narrativas das princesas da Disney. Depois de Branca de Neve e,
assim como ela, Aurora, de
A Bela Adormecida (1959), foi enve-
nenada por Malévola e, então, entrou um profundo sono, sendo
acordada pelo beijo do amor verdadeiro de um príncipe. Esse
elemento, então, reitera a ideia de que as mulheres precisam
de um homem para serem salvas e que seu propósito de vida é
conseguir se casar.
Além do amor verdadeiro, outro elemento que comu-
mente aparece nessas narrativas é a figura de uma madrasta má.
Assim como Branca de Neve, em
Cinderela (1950), a protagonis-
ta perde seu pai e, então, passa a ser explorada pela madrasta.

52
No caso de Cinderela, ela, ainda, sofre com mais duas figuras
femininas: as filhas de sua madrasta. Essa presença constante
de figuras femininas como vilãs reforça a ideia de que mulheres
são rivais umas das outras.
Um fator também muito recorrente nas representações
das princesas que podemos relacionar com o artigo de João Frei-
re Filho e Talita Leal é a questão da felicidade performática na
representação midiática da mulher. No artigo, referindo-se à im-
prensa feminina estabelecida no passado e sua representação da
mulher:
Para elas [autoras das revistas] a mulher que ostentava uma
face preocupada ou revelava tons de raiva e de ansiedade em
sua voz destruía a vida da família, enquanto que a esposa que
sorria e comunicava-se de modo gentil espalhava ânimo por
toda a sua casa. A felicidade era, portanto, mais do que uma
emoção: representava uma ‘performance’ que deveria ser rea-
lizada ininterruptamente.
Assim como as revistas da imprensa feminina retrata-
vam as mulheres com a obrigação de estar sempre felizes por
carregar a responsabilidade de manter um clima e uma atmos-
fera mais leve e descontraída, negando e reprimindo emoções
como raiva, tristeza, tédio e decepção, a maioria das princesas
da Disney são retratadas como mulheres dóceis que estão sem-
pre com semblantes felizes, descontraídos e apresentam um tom
de voz tranquilo e aconchegante. A maioria delas é negada a
expressão de sentimentos como raiva, revolta, instinto de luta,
determinação e outros sentimentos que a tornariam menos deli-
cadas e “afeminadas”, fazendo-as perder uma determinada pos-
tura de princesa em apuros, que necessita de um príncipe para
resgatá-la. Emoções como tristeza e indeterminação são até re-
tratadas, mas na maioria das vezes puxadas para um lado mais
dócil, manifestando-se como tristeza, colocando a personagem
em um papel de vítima – como o caso de Cinderela. Raras são

53
as vezes que esses tipos de emoções servem como gatilho para
ações mais ativas e emblemáticas. Essas representações, vale
apontar, não ocorrem somente nos filmes, mas também em ima-
gens promocionais das princesas, que as trazem sempre lindas,
maquiadas, arrumadas e sorridentes.
Ultimamente, contudo, a Disney tem trabalhado com
personagens femininas fortes em tramas que não giram em tor-
no de conseguir um homem ou ser salva por eles. Os mais re-
centes filmes, como
Valente (2012), Frozen (2013) e Malévola
(2014) – um
live-action de A Bela Adormecida, onde a narrativa
é contada do ponto de vista da vilã, título esse que é problema-
tizado no filme –, são histórias de amor verdadeiro entre mu-
lheres – entre irmãs ou entre mãe e filha – que se ajudam e se
salvam.
Em
Malévola, filme live-action que é uma das mais re-
centes produções do universo das princesas da Disney, muita
coisa é desconstruída: a clássica vilã do conto de
A Bela Ador-
mecida é transformada em uma personagem multidimensional,
complexa e com uma história profundamente tocante. Violen-
tada e traída pelo homem que amava, Malévola encontra em
outra figura feminina a descoberta do amor verdadeiro e a sua
redenção. Assim como em
Frozen, o príncipe é deixado para o
final, como uma espécie de complemento para que o desfecho
seja feliz em todos os aspectos, mas certamente há muito para
ser apontado como avanço.
Por muito tempo, a imagem da mãe foi colocada de lado,
substituída por madrastas cruéis e invejosas. Essa tendência foi
rompida com
Valente, que, além de contar com uma princesa
fora dos padrões estéticos e de submissão, passividade e fragi-
lidade, apresentou um relacionamento entre mãe e filha como
foco do enredo. Já em
Frozen, a narrativa gira em torno da
amizade de duas irmãs, quebrando um dos maiores paradigmas

54
das narrativas de contos de fadas da Disney: o fechamento da
trama não se dá através do beijo do amor verdadeiro dado por
um príncipe e, sim, pela coragem de uma irmã em arriscar sua
vida pela outra.
A mensagem que fica é que mulheres também podem
ser fortes, guerreiras e capazes de enfrentar monstros – tanto os
fictícios quanto os simbólicos, como relacionamentos abusivos
e crises existenciais. Esse quadro é extremamente positivo para
garotos e homens, que agora têm a possibilidade de passar a
enxergar as mulheres como seres humanos independentes que
podem ser tão fortes quanto eles. Assim, a formação desses me-
ninos pode se tornar menos machista e dominadora, o que, in-
clusive, abre espaço para que esses homens escapem dos rígidos
padrões de masculinidade.
Assim, percebe-se que a identidade das princesas e he-
roínas da Disney tem estado em constante mudança. Princesas
como Branca de Neve, Cinderela e Aurora, as primeiras prince-
sas da Disney, eram menos do que mulheres, mas meninas doces,
meigas, inocentes e ingênuas que viviam à espera de um prín-
cipe encantado para salvá-las das maldades, representadas pela
imagem feminina de uma vilã. Ao longo de suas produções, a
Disney foi alterando esses perfis numa gradativa evolução: Ariel,
de
A Pequena Sereia (1989), queria conhecer além do mar em
que vivia e se tornar humana; Bela, de
A Bela e a Fera (1991),
queria mudar o homem frio e bruto que a aprisionava; Jasmine,
de
Aladdin (1992) desafiava o pai para ser livre e lutar pelo seu
povo; e Tiana, de
A Princesa e o Sapo (2009), queria montar
seu próprio restaurante. Dentre essas princesas heroínas, está
Mulan: representação da mulher moderna, mesmo na época do
império chinês, onde os casamentos eram arranjados e a única
função da mulher era ter filhos e cuidar do seu marido.

55
MULAN: A “PRINCESA” GUERREIRA
Além das narrativas sobre o amor verdadeiro entre mu-
lheres, há aquelas em que a protagonista é uma mulher forte e
independente.
Mulan (1998), história baseada numa das lendas
mais populares da China, se passa na época da Dinastia Han,
450 d.C., quando a construção da Grande Muralha despertou a
fúria dos Hunos que acabam invadindo o território chinês. O Im-
perador da China, então, ordena que um homem de cada família
se apresente ao exército para lutar na guerra e defender seu país.
Mulan, que havia sido rejeitada pela casamenteira, desonrando
sua família, vê seu pai, velho e debilitado, ser convocado para
guerra. Ela, então, corta os próprios cabelos e se transfigura
em homem, fugindo de casa em direção à batalha no lugar do
seu pai. Ao chegar ao campo de concentração, Mulan passa a
treinar para ser um soldado, fazendo tarefas típicas de homens
e ainda tentando esconder seu disfarce. Contudo, como o amor
verdadeiro é um elemento intrínseco nas narrativas de conto
de fada da Disney, Mulan acaba encontrando, no exército, seu
par romântico. Mas, assim como em Frozen e Malévola, esse é
apenas um ponto complementar pra o fechamento da trama.
Mesmo fazendo parte da franquia “Disney Princesa”,
Mulan não é uma princesa nem por direito de nascimento, como
Branca de Neve e Aurora, nem por meio do casamento, como
Cinderela, uma vez que ela se casa com o guerreiro Li Shang,
que nada tem a ver com a realeza. Em
Mulan 2 (2005), a guer-
reira chinesa chega perto de ganhar status de princesa, toman-
do o lugar de uma das filhas do Imperador em um casamento
arranjado, mas ela não vai até o fim.
Além de sua importância como umas das “princesas”
que quebram os paradigmas das narrativas de conto de fada da
Disney, com o beijo do amor verdadeiro, ser salva por um prín-

56
cipe ou a presença de uma madrasta má, Mulan entra também
no time das “princesas” que propõe algum tipo de representa-
tividade. Mas ela não foi a primeira a quebrar essa barreira.
Antes dela vieram Jasmine, de
Aladdin (1992), de origem árabe
– sendo assim, a primeira não-caucasiana princesa da Disney –,
a índia
Pocahontas (1995) e a cigana Esmeralda, de O Corcunda
de Notre Dame
(1996). Após Mulan, ainda temos Tiana, de A
Princesa e o Sapo
(2009), a primeira princesa negra da Disney.
Entretanto, por mais importantes que essas princesas sejam, re-
presentativamente falando, elas ainda carregam algumas pro-
blemáticas: todas são magras e têm cabelos lisos – até mesmo
Tiana, que é negra.
Mulan pode também ser relacionada com a questão de
felicidade performática acerca da qual discutimos no capítulo
anterior deste trabalho. Ao contrário de várias das princesas
Disney, Mulan expressa e extravasa vários sentimentos diversos
(raiva, tristeza, decepção, senso de injustiça, bravura, determi-
nação) que se manifestam através de ações emblemáticas da per-
sonagem, que utiliza estes sentimentos como gatilho para suas
atitudes de guerreira.
CONCLUSÃO
É um fato que já a algumas gerações uma quantidade
enorme de crianças e pré-adolescentes consumem produtos das
princesas da Disney – sobretudo garotas, que além de assistir
aos filmes, consomem bonecas, fantasias e outros produtos ma-
teriais temáticos.
Essa exposição massiva às narrativas de princesas da Disney
tem o potencial de fazer com que se crie no imaginário das
crianças um código de conduta feminino que elas devem seguir
para se aproximar das princesas e dos contos de fadas, desejo
que se manifesta inclusive através de fantasias e festas temáti-

57
cas das princesas, um mercado bem lucrativo. Assim, surge uma
problemática que relaciona-se com as questões levantadas por
João Freire, Talita Leal e Edgar Morin: a representação de um
“tipo ideal” de mulher. Há, em grande parte das narrativas das
princesas Disney, a manutenção de um tipo ideal de garota dó-
cil, frágil, bela e com algumas característica mais problemáticas
como passiva e super feminina.
Como vimos, com algumas narrativas como
Mulan, Fro-
zen e Valente, muitos desses problemas relacionados à passivi-
dade, fragilidade e grande dependência a uma figura masculina
já receberam a atenção do estúdio.
O que continua sendo muito problemático são os pa-
drões de beleza, a baixa diversidade racial e outras questões
que abordamos ao longo do trabalho. Isso não só faz com que
as crianças que assistem à narrativa que não se encaixam nos
padrões das princesas não se sintam representadas, como poten-
cializa a idealização desses tipos de beleza mais eurocêntricos.
Questões como amizade, valorização da família, honra,
moral, justiça, dentre outros tópicos pertinentes são debatidos
pelos filmes, que tem sim o potencial de passar mensagens po-
sitivas para as milhares de crianças e adolescentes que os con-
somem. O que continua precisando mudar e evoluir muito é a
diversidade (em vários níveis) dos tipos de mulheres e princesas
que são representadas.

58
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, F. Clássicos na Crítica | Mulan. In: O Camundongo,
2011. Disponível em <http://www.ocamundongo.com.br/cnc-
-mulan/>. Acessado em: julho de 2016.
ANTUANO, N. Se as princesas Disney estivessem de acordo com
a história?. In: Natalia Antuano, 2015. Disponível em <http://
nataliaantuano.blogspot.com.br/2015/07/se-as-princesas-dis-
ney-estivessem-de.html>. Acessado em: julho de 2016.
ARRAES, J. Malévola, Frozen e Valente: o amor entre mulhe-
res começa a despontar. In: Revista Fórum, 2014. Disponí-
vel em <http://www.revistaforum.com.br/questaodegene -
ro/2014/06/03/malevola-frozen-e-valente-o-amor-entre-mulhe-
res-comeca-despontar/>. Acessado em: julho de 2016.
Disney Filmes. Mulan. Disponível em <http://filmes.disney.
com.br/mulan>. Acessado em: julho de 2016.
Film-Cine.com. Branca de Neve e os Sete Anões. Disponível em
<http://filmes.film-cine.com/branca-de-neve-e-os-sete-anoes-
-m326>. Acessado em: julho de 2016.
FONTENELE, M. A imagem da mulher na mídia: é preciso re-
pensar os papéis. In: Edelman Significa, 2015. Disponível em
<http://www.edelman.com.br/post/a-imagem-da-mulher-na -
-midia-e-preciso-repensar-os-papeis/>. Acessado em: julho de
2016.
FREIRE FILHO, J.; LEAL, T. Mas por que, afinal, as mulheres
não sorriem?: jornalismo e as razões da (in)felicidade feminina.

59
In: Revista Ciberlegenda, Programa de Pós-Graduação em Co-
municação da Universidade Federal Fluminense, 2015.
LAPA, N. A representação da mulher na mídia e em produtos. In:
Carta Capital, 2013. Disponível em <http://www.cartacapital.
com.br/blogs/feminismo-pra-que/a-representacao-da-mulher-
-na-midia-e-em-produtos-7011.html>. Acessado em: julho de
2016.
MORIN, E.
Cultura de Massas no século XX - vol. 1 - Neurose.
Forense Universitária, 1962.
PEREA, K. Girl Cartoons Second Wave: Transforming the Genre.
In:
Animation: an interdisciplinar journal, SAGE Journals, 2015.
Wikipedia. The Walt Disney Company. Disponível em <https://
pt.wikipedia.org/wiki/The_Walt_Disney_Company>. Acessado
em: julho de 2016.
Wiki Princesas. Lista de princesas da Diseny. Disponível em
<http://pt-br.disneyprincesas.wikia.com/wiki/Lista_de_prince-
sas_da_Disney>. Acessado em: julho de 2016.

60
As Meninas Superpoderosas e
o feminismo

Eduarda Colombiano
Helena Araujo
Neste artigo relacionaremos feminismo e desenhos
animados, baseando-nos, principalmente, no texto “Girls
Cartoon Second Wave: Transforming the Genre“ de Katia
Perea e estudos sobre o feminismo, suas ondas, pós-feminismo
e backlash. Os exemplos trabalhados serão diversos, porém,
com foco no desenho animado
As Meninas Superpoderosas, o
qual teve grande sucesso no fim dos anos 90 e início dos anos
2000 e um esperado relançamento em 2016, sendo esta última
temporada o centro de nossa análise. Outros desenhos animados
que utilizaremos neste artigo serão
Três Espiãs Demais, Peppa
Pig,
Os Padrinhos Mágicos, gêneros de desenhos animados de
princesas, super-heróis, entre outros.
Primeiramente, resumiremos a contextualização
histórica da luta pela igualdade de gêneros, depois relacionaremos
com o texto, a fim de entender como as questões de gênero e
modelos de feminilidade influenciaram os desenhos animados,
sejam eles voltados tanto para o público feminino, quanto para
o masculino.
CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA LUTA
FEMINISTA
O feminismo é uma luta constante pelos direitos das
mulheres e possui uma diversidade grande de conceitos, um

61
deles é de Chimamanda Ngozi Adichie, que enxerga o movimento
como busca por igualdade política, social e econômica (ADICHIE,
2014). Desde muito tempo houve opressão e resistência em cima
dos movimentos feministas. A Igreja Católica teve - e ainda tem
- grande influência na vida das mulheres. A submissão feminina
e a moralidade cristã eram vistas como modelo de vida: “bela,
recatada e do lar”. No decorrer de toda a história, os homens
se utilizavam de discursos médico e intelectual para justificar
cientificamente e ideologicamente que as mulheres eram seres
inferiores.
Em 1837 o termo “feminismo” foi usado pela primeira
vez, atribuído por Charles Fourier, um socialista francês, o
qual observou essa época como início de uma prática política
organizada. O contexto social era de movimentos operários na
Europa e nos EUA, como palco de importante ação de contestação
feminina.
Os estudos feministas são divididos em ondas,
exatamente por dar a ideia de movimento com avanços e
retrocessos, facilitando a compreensão de demandas de cada
momento. A partir do final do século XIX e início do século XX
podemos ver a primeira onda do movimento feminista, a qual foi
fruto de uma luta intensa por direitos civis na Inglaterra. É neste
contexto que aparecem as sufragistas, mulheres que lutavam
pela expansão do conceito liberal de cidadania, ou seja, elas
queriam ter o direito de votar. O direito ao voto das mulheres
foi conquistado no Reino Unido em 1918 (PINTO, 2010, p. 5).
A segunda onda feminista foi consolidada no início dos
anos 1960. Marcada pelo livro
O Segundo Sexo (1949) de Simone
de Beauvoir, que analisava a mulher como apêndice do homem,
como “o outro do homem”. A política, a religião, o sistema jurídico,
a vida intelectual e artística, passam a ser compreendidos como
construções de uma cultura predominantemente masculina. O

62
masculino e o feminino passam a ser entendidos como criações
culturais: “não se nasce mulher, torna-se” (BEAUVOIR, 1970).
Enquanto a primeira onda é marcada por disputas em
lugares predominantemente públicos, a segunda é marcada
por práticas subjetivas - como relações de casamento, onde a
esfera doméstica entra definitivamente em questão: casamento,
mercado de trabalho, entre outros pontos. É nesta época que
os brinquedos femininos relacionados ao ambiente doméstico
e maternidade ganham força - como por exemplo brinquedos
de panelinhas, vassouras, bonecas, entre outros -, reforçando
a ideia de gênero como algo imutável e servindo diretamente à
manutenção das estruturas de poder.
Nos anos 1960 e 1970, a contracultura estava em alta,
questionando a ordem e a moral tradicionais. É nesse momento
que as pautas feministas ganham um viés libertário e começam
a se questionar sobre padrões de beleza e a autonomia da mulher
em relação ao corpo - tendo como marco o caso da “queima de
sutiãs” no Miss América, em 1968. Não é apenas sobre trabalho
e direitos civis, é sobre o direito ao corpo e à vida de forma
plena.
É importante lembrar que essas correntes de pensamento
tiveram predominância na Europa e EUA. Além disso, eram
defendidas por uma parcela de mulheres bem específica: brancas
e de classe média. Aqui no Brasil o contexto era outro, vivíamos
em uma ditadura militar, onde a repressão era muito grande e
por isso todos os movimentos de contestação eram clandestinos.
Os exílios tiveram grande importância nesse sentido, pois muitas
mulheres trouxeram para cá ideias feministas que estavam em
vigor nos países de onde foram exiladas.
A terceira onda do movimento feminista foi em
meados dos anos 1980 e 1990, na qual é possível observar uma
fragmentação radical no movimento, tornando-o interseccional.

63
As diferentes identidades femininas - mulheres negras e lésbicas,
por exemplo - não se viam representadas no feminismo. Começa
então o pensamento reflexivo sobre o movimento e a autocrítica
do feminismo.
Na década de 1980, o movimento feminista se apropria
do pôster
Rosie the Riveter (1942) do artista gráfico Howard
Miller. Originalmente, o desenho foi feito apenas como um
discurso de uma empresa para suas funcionárias, com o intuito
de aumentar a produtividade delas. Hoje em dia, essa imagem
foi muito incorporada pelo movimento feminista e pela cultura
pop.
A partir dos anos 1980, também, teóricos começam a
chamar o movimento de pós-feminismo, usando frequentemente
o termo
backlash (retrocesso), o qual é uma resposta conservadora
ao feminismo. Afirmavam que o movimento feminista havia
acabado, pois as mulheres já tinham conquistado “tudo” - direito
ao voto e de trabalho e, por isso, o termo utilizado passaria
a ser “pós-feminismo”. Novamente é importante lembrar do
recorte, pois as mulheres negras sempre trabalharam - só que
de maneira escrava, ou na pós-escravidão, para o sustento da
família; para elas o trabalho não era uma opção, muito menos
uma conquista. O pós-feminismo tem sido definido como “uma
despolitização do feminismo, em inerente oposição à política
feminista ativista e de coletivos” (GENZ & BRABON, 2009, p.
167). Para muitos teóricos, o pós-feminismo está relacionado
com a liberdade da mulher, sem necessariamente precisar de
um posicionamento político, basta que ela faça suas próprias
escolhas. Entretanto, o termo despolitização é problemático,
uma vez que qualquer atitude de empoderamento feminino, seja
ela em larga ou pequena escala, é um ato político! Uma mulher
que decide parar de se depilar ou aquela que luta por direitos
trabalhistas estão exercendo atos políticos. Corpo, moda e beleza

64
são vistos também como lócus de empoderamento e a partir
dos anos 1990 nasce o
girl power, com um discurso otimista,
divertido e confiante, que influenciou direta ou indiretamente
vários desenhos animados dos anos 1990 em diante.
REPRESENTAÇÃO FEMININA NOS DESENHOS
ANIMADOS
O texto “Girls Cartoons Second Wave: Transforming
the Genre” de Katia Perea fala sobre o gênero de desenhos
americanos voltados para meninas, que se inicia a partir dos
anos 1980. Nessa época, a Comissão Federal de Comunicação
da Televisão passa a permitir desenhos animados baseados em
brinquedos infantis e foi a partir daí que houve uma separação
entre desenhos animados femininos e masculinos. Os brinquedos
para meninas seriam bonecas com tons claros e, principalmente,
com a cor rosa; já os brinquedos para meninos seriam robôs,
bonecos de ação, carros etc, com as cores predominantemente
escuras. Portanto, nessa época os principais desenhos para
meninos eram
He-man, G.I Joe e Transformers, desenhos
com muita luta, ação, heróis e vilões; enquanto os primeiros
desenhos femininos -
My Little Pony, Moranguinho, etc -
falavam sobre comunidades em que os conflitos eram resolvidos
verbalmente através de uma líder motivacional. Pela primeira
vez, as garotas eram as personagens principais. Entretanto, esses
desenhos eram pautados em estereótipos femininos: excesso de
cores - principalmente rosa -, personagens meigas e delicadas,
constantemente preocupadas com a aparência etc.
A segunda onda de desenhos femininos é influenciada
pelo
girl power, no qual as personagens além de resolverem
problemas de suas comunidades através do diálogo, também
estão envolvidas em ensinamentos didáticos e problemas

65
pessoais. São personagens lógicas e corajosas, e normalmente
resolvem conflitos através de suas habilidades físicas. Como
maior exemplo utilizaremos
As Meninas Superpoderosas,
por acreditarmos ser um dos desenhos para meninas mais
interessante em termos de empoderamento.
AS MENINAS SUPERPODEROSAS
The Powerpuff Girls , conhecido no Brasil como As
Meninas Superpoderosas
, é uma série de desenho animado
criada e escrita por Craig McCracken. Sucesso em todo o mundo,
a série foi considerada a nova mania dos Estados Unidos durante
o fim da década de 1990 e início dos anos 2000 e teve um reboot
chamado
The Powerpuff Girls (2016) no ano de 2016. A série,
produzida inicialmente pela Hanna-Barbera, e alguns anos
depois pelo Cartoon Network Studios, conta a história de três
garotas com superpoderes: Florzinha, Lindinha e Docinho, as
quais foram criadas pelo Professor Utônio, que acidentalmente
derrubou o elemento X na poção da “garotinha perfeita“ (uma
mistura de “açúcar, tempero e tudo que há de bom”). Sendo
assim, o elemento X deu a elas superpoderes, e entre uma
brincadeira e outra, precisam salvar a cidade fictícia norte-
americana de Townsville de diversos monstros
5
.
De acordo com o texto “Girls Cartoons Second Wave:
Transforming the Genre“, Craig McCracken resolveu criar
As
Meninas Superpoderosas
sem nenhum intuito de fazer um
desenho feminista, ele apenas achou que seria fofo e divertido
fazer um desenho em que pequenas meninas batem em vilões.
Nos últimos dez anos, podemos perceber claramente
5 The Powerpuff Girls. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Po-
werpuff_Girls>. Acessado em 21 de agosto de 2016.

66
um aumento de estudos, debates e questões que envolvam o
feminismo, seja nas redes sociais, faculdades, programas de TV,
como também nos ambientes familiares. Por muito tempo, a
visão que a maioria da população tinha sobre as feministas era
algo totalmente deturpado, aos poucos isso está sendo mudado.
Com isso, muitos produtos da indústria cultural começaram a
se apropriar do discurso feminista, atitude que não temos nem
ideia do quão forte e influenciável pode ser, como por exemplo
a cantora americana Beyoncé, que em seu último disco trabalha
a temática feminista. Após vermos os 19 episódios da nova
temporada d’
As Meninas Superpoderosas, pudemos concluir
que esse relançamento veio muito mais preocupado em tratar
as questões de gênero, algo que influenciará positivamente as
novas gerações. No decorrer do artigo analisaremos alguns
episódios da antiga e, principalmente, nova temporada e, assim,
fazer uma comparação com outros desenhos animados.
DESENHOS QUE DESCONSTROEM O ESTEREÓTIPO
E QUESTÕES DE GÊNERO
Iremos analisar alguns desenhos animados desta última
década que, assim como
As Meninas Superpoderosas, estão
quebrando padrões de gênero e estereótipos. Em sua nova
temporada, assim como nas antigas, o desenho retrata alguns
personagens masculinos como incapazes de fazerem qualquer
coisa, até mesmo as mais simples. Um grande exemplo disso é o
Prefeito da cidade de Townsville, que é totalmente dependente
das Meninas Superpoderosas e de sua secretária, Senhorita
Sarah Belo. No episódio “Bye, bye Bellym” (S01E07), o prefeito
apavorado chama as meninas para o ajudarem pois Sarah Belo
havia tirado férias de 1000 dias, visto que em muitos anos ela
não tirou férias para cuidar dos problemas do prefeito e, assim,

67
ele ficou completamente sem saber o que fazer. Apesar da
atmosfera geral de incompetência masculina do desenho, havia
um homem realmente incrível: o Professor Utônio, que criou
as Meninas (afinal, quem deu origem às garotas só poderia ser
uma pessoa sensacional mesmo). Além de deixar as crianças
abusarem da criatividade com suas roupas, o Professor era um
dedicado e carinhoso pai solteiro. Em um episódio da primeira
temporada, as meninas são questionadas por um super-herói
homem que quer tomar o lugar delas e salvar a cidade: “Existem
algumas funções desempenhadas só por homens ou por mulheres,
certo? Peguem a sua família como exemplo. Quem trabalha
fora e sustenta a casa?”, perguntou-lhes o homem. “Nosso
pai”, responderam. “Exato! E quem cozinha?” “O pai” “Quem
lava as roupas? Quem lava a louça? Quem faz bolo?” “O pai”,
responderam repetidamente. Este é mais um elemento que faz o
desenho tão genial – quebrando outra vez a estrutura tradicional
com a qual a sociedade está acostumada, de pai e mãe. No fim
da cena, o super-herói pergunta: “Então quem corta a grama
do quintal e lava o carro?” “A Lindinha!”, elas respondem em
coro. O mais interessante desse episódio é que a Lindinha é vista
como a mais feminina das três meninas e, mesmo assim, é ela
quem faz os trabalhos manuais mais pesados – porque ela é
incrível.
Outro personagem interessante no desenho é o vilão Ele,
que presumivelmente era um homem, mas usava saia de balé,
maquiagem e possuía uma voz ambiguamente andrógina. Em
um episódio, Ele e Macaco Louco - outro vilão - criavam uma
versão masculina das Meninas Superpoderosas, os Meninos
Desordeiros. Apesar do objetivo ser destruir as meninas, era
interessante o fato que os Meninos Desordeiros tinham dois pais
e ninguém achava isso estranho.
Há também outros desenhos que tratam as questões

68
de gênero de maneira interessante, são eles: Peppa Pig e Os
Padrinhos Mágicos
. Em um episódio de Peppa Pig chamado
“Mamãe Trabalhando”, Peppa narra os afazeres de sua família
dentro de casa. Enquanto sua mãe trabalha no computador, o pai
de Peppa faz o jantar. Essa inversão de papéis é minimamente
comum na sociedade moderna e deve passar despercebida pelas
crianças que assistem o programa. Porém, por mais que seja
sútil, é muito importante essa representação nos desenhos, uma
vez que ela desconstrói o padrão - ainda presente em muitas
famílias.
Em
Os Padrinhos Mágicos, a personagem Wanda é
casada com Cosmo e os dois são fadas mágicas que realizam
desejos do personagem principal, Timmy Turner. A primeira
questão interessante é o fato de que há vários personagens fadas
que são homens, quebrando com a ideia normativa de que as
fadas pertencem exclusivamente ao universo feminino. Além
disso, Wanda é muito mais inteligente que Cosmo e se encontra
frequentemente salvando o marido das furadas em que ele se mete.
Novamente, temos o homem como ser dependente da mulher -
como no caso do Prefeito em
As Meninas Superpoderosas.
É comum que discussões bastante complexas de gênero
apareçam em
Os Padrinhos Mágicos. Em um episódio, o pai
de Timmy pergunta ”onde, nesta sociedade discriminatória,
está escrito que um homem não pode ser bonito?”. Há outro
episódio, intitulado “The Boy Who Would Be Queen”
6
, em que
Timmy se transforma em uma menina para descobrir qual é o
presente perfeito para personagem feminina Trixie. A conclusão
do episódio mostra que nem todas as meninas pensam igual
– ou seja, não há «presentes de menina» ou algo do tipo. “A
6 NT: “O menino que seria rainha”

69
questão da ambivalência reflete muito o contemporâneo. O que
é o homem? O que é a mulher? Os desenhos mostram muito a
questão do ambíguo, de ter duas ou várias coisas presentes em
só uma pessoa” (Analice Pillar, da Faculdade de Educação da
UFRGS).
AS MENINAS SUPERPODEROSAS VS. TRÊS ESPIÃS
DEMAIS
Três Espiãs Demais , bem como As Meninas
Superpoderosas
, é um desenho animado em que as personagens
principais são do gênero feminino e salvam o dia. Neste caso
elas não são super-heroínas, mas são super espiãs, desvendando
vários tipos de mistérios e crimes. Porém, problematizando
um pouco, podemos perceber que o desenho traz questões
complicadas e que podem ser prejudiciais para a formação das
crianças que o assistem. As personagens estão claramente dentro
dos padrões de beleza aceitos pela sociedade, prezam muito pelo
consumo de roupas e produtos de maquiagem e vivem correndo
atrás de garotos, reforçando estereótipos femininos. Além disso,
as armas utilizadas por elas eram sempre objetos de beleza como
secadores de cabelo, batons etc, um mero detalhe normativo que
pode passar batido a um espectador desatento. Analisando as
letras das músicas de aberturas de
Três Espiãs Demais e de As
Meninas Superpoderosas
, podemos ver a diferença na maneira
de representar o feminino entre os dois desenhos.
Estamos prontas para qualquer missão enfrentar
E vamos encarar
Mas toda vez que entramos no shopping
Queremos comprar
Elegantes e charmosas

70
Nas missões desvendamos a trama
Bem espertas, corajosas
De três espiãs conquistamos a fama
E é para já, vamos lá girem nosso programa!
A letra acima, do desenho Três Espiãs Demais, ressalta
o consumo e a preocupação com a aparência, frequentemente
vivida pelas personagens.
Por outro lado, o reboot de
As Meninas Superpoderosas
ganhou uma nova música-tema: “Who’s Got The Power?”, do
quarteto feminista e americano de pop-punk, Tacocat. A
versão brasileira da abertura estendida retrata questões muito
diferentes às
Três Espiãs Demais e o foco principal é a força e
poder das três menininhas:
Açúcar, tempero e tudo que há de bom,
Esses foram os ingredientes escolhidos para criar as
menininhas perfeitas
Mas o Professor Utoniô acidentalmente acrescentou um
ingrediente extra na mistura, o Elemento X.
E assim nasceram as Meninas Superpoderosas!
7
(Ohhh! Yeah!)
Superpoderosas vão lutar,
Antes de dormir vão nos salvar!
Com o nosso brilho criminoso algum vai durar!
Quem é poderosa? Somos Poderosas!
Muro ou parede nada poderá nos parar
Quem é poderosa? Somos Poderosas!
7 Introdução traduzida utilizada na versão brasileira da abertura de As Meninas
Superpoderosas.

71
Voando alto elas são
Super-irmãs de coração.
Pondo o mau pra fugir,
sem deixar de se divertir!
Essa energia é total,
na família é normal!
Florzinha; A líder pronta pra guiar!
Lindinha; O dia vai alegrar!
Docinho; Ela é feroz, vai soltar a voz!
(Açúcar, Tempero e Tudo Maneiro!)
Com o nosso brilho criminoso algum vai durar!
Quem é poderosa? Somos Poderosas!
Muro ou parede nada poderá nos parar
Quem é poderosa? Somos Poderosas!
(Ohhh! Yeah!)
Primeiro é dançar com ursinho,
Depois são monstros no caminho.
Com meninos e meninas zoar,
depois o mundo ir salvar!
Juntas pra ganhar o jogo,
Mãos no ar, corações em fogo!
Com o nosso brilho criminoso algum vai durar!
Super soco! Tô na raia! Bem alerta! Linda saia
Muro ou parede nada poderá nos parar
Quem é poderosa? Somos Poderosas
8

8 Tradução livre das autoras.

72
AS MENINAS SUPERPODEROSAS VS. DESENHOS
DE SUPER-HERÓIS
Os desenhos animados de super-heróis vieram a partir
do mundo das histórias em quadrinhos. Histórias que, na
maioria das vezes, são feitas por homens e para homens, se
tornando, assim, um meio muito machista. Diferentemente das
Meninas Superpoderosas, as figuras femininas nos desenhos
de super-heróis, são inferiorizadas, sexualizadas e, na maioria
das vezes, são personagens secundárias. Quando não estão
representando papéis de donzelas em perigo, prontas para
serem salvas por homens fortes e másculos, são super-heroínas
com roupas extremamente sensuais e curtas, fazendo com
que sejam completamente sexualizadas - pontos que são um
grande retrocesso para a luta feminista. Para ilustrar melhor,
escolhemos uma foto básica do desenho
A Liga da Justiça em
que o personagem central e principal, obviamente, é um homem,
o Super-Homem, e do lado a Mulher Maravilha. É claro como
a diferença de vestimentas é destoante, seu corpo está muito
mais à mostra do que qualquer outro personagem do gênero
masculino.
AS MENINAS SUPERPODEROSAS VS. PRINCESAS DA
DISNEY
Pode-se afirmar que as Princesas da Disney compõem
o gênero de animação de maior influência no público feminino.
Essa força foi conquistada devido a uma verdadeira estratégia
de marketing que transformou os desenhos não só em filmes,
mas em uma marca capaz de vender os mais variados produtos
com o logotipo das princesas. Não que esse fator seja uma

73
exclusividade das Princesas Disney, afinal, qualquer filme/
desenho hoje em dia está sujeito a ser apropriado por uma
marca e virar um produto. Entretanto, é interessante pensar no
que as Princesas Disney representam dentro do contexto social
em que estão inseridas: mulheres que atendem a um padrão
de beleza predominantemente europeu - pele clara, cabelo liso,
traços finos, etc -, que estão sempre à procura de um príncipe ou
sendo salvas por ele. Na cabeça de crianças essa imagem pode
ser muito forte, uma vez que impõe um certo modelo de como
devem se vestir, agir e viver de uma maneira geral.
No reboot de
As Meninas Superpoderosas, o episódio
“Once upon a Townsville”
9
(S01E17) é uma ótima crítica ao
mundo das princesas. O título remete aos contos de fada “era
uma vez” e assim que o episódio se inicia, vemos a princesa
Bluebell que põe sua vida em risco para que um príncipe a salve.
De acordo com ela, sua vida realmente começaria apenas depois
de ser salva por um príncipe, porém, quem verdadeiramente
salva a princesa inúmeras vezes são as Meninas Superpoderosas.
Durante todo o episódio, as meninas possuem um discurso de
empoderamento dizendo que a princesa não precisa de um
príncipe. Lindinha diz que ela não precisa ser salva e que pode
fazer o que quiser com a própria vida. A princesa no desenho
é retratada de forma muito satirizada, a roupa é semelhante
à de Cinderela, os animais gostam dela e assim como várias
outras princesas famosas, ela gosta de cantar. Em determinado
momento do episódio, as Meninas Superpoderosas ficam em
perigo, fazendo com que a princesa vá salvá-las. Logo após, o
príncipe aparece e então Bluebell diz que está cansada de esperá-
lo: “aprendi que não preciso de um príncipe para me salvar para
9 NT: “Era uma vez Townsville”

74
minha vida realmente começar, posso confiar em mim mesma
agora e não preciso de você [se referindo ao príncipe encantado]
e nem de vocês [se referindo às Meninas Superpoderosas]. Não
me respeitaram inicialmente pelo o que eu era. Gosto de ser uma
princesa, usar vestidos com babados e cantar na floresta. Não
gosto de socar as coisas. É hora de viver a minha própria vida!
Preciso de uma mudança de cenário, acho que vou arrumar um
apartamento no centro e escrever um musical!”. Por final, as
Meninas Superpoderosas desabafam que a interpretaram mal.
Esse episódio em questão retrata muito bem o feminismo, pois
demonstra que as mulheres têm liberdade de escolha para serem
o que quiserem, seja uma super-heroína ou uma princesa.
REPRESENTATIVIDADE
A falta de representatividade de meninas negras, gordas,
lésbicas e outras que fujam do padrão da sociedade, é um
problema no que diz respeito à identificação e aceitação. Se uma
menina não encontra uma princesa parecida com ela, como fica
sua autoestima? Então ela não se encaixa nesse mundo? Não
nasceu para ser princesa? Por esse motivo, representatividade é
muito importante, assim como desenhos animados que trazem
personagens femininas que fogem do padrão óbvio de beleza e
comportamento. Por exemplo, os desenhos americanos
Rocket
Power
, KND - A Turma do Bairro e Hey Arnold!, transmitidos
pelo canal Nickelodeon e Cartoon Network. Em
Rocket Power,
a personagem Reggie andava de skate, surfava, fazia todos os
esportes radicais possíveis e era muito boa em todos, algo que
a Docinho d’
As Meninas Superpoderosas amava fazer. Além
disso, era a mais velha dentre os demais personagens - que por
sua vez, eram todos meninos - e por isso, tomava frente em
várias situações, adotando uma postura de líder. No desenho

75
animado KND - A Turma do Bairro, podemos ver uma das
poucas personagens negras de desenhos animados do circuito
mainstream, Abigail Oliveira Linconl, Nº 5, é membro-espião
cuja especialidade é efetuar despercebidamente o trabalho e
sem sair da moda. É a agente mais cool. Além do Nº 1, a Nº 5
parece ser o único membro-agente do setor que parece ter algum
bom-senso, o que às vezes, traz uma certa tensão entre os dois.
Apaixonada por doces, está sempre com seu boné vermelho, um
adereço que muitas vezes é relacionado aos meninos. Já em
Hey
Arnold!
, a personagem Helga tinha uma postura agressiva e
não se preocupava com a aparência. Ao ressaltar a personagem,
não queremos defender que as meninas sejam desleixadas
e agressivas, mas sim que nem todas são meigas, delicadas e
obcecadas com roupas, cabelo, maquiagem etc. Inclusive, há um
episódio em que Helga vira modelo e começa a se arrumar, mas
no final ela percebe que não estava sendo verdadeira consigo
mesma. Essa é a importância da personagem, pois nem toda
menina vai se adequar no “padrão princesa”, mas isso não
deve ser motivo para frustração, pois nem todas as meninas
são iguais! E apesar de Helga ser grossa e mal-humorada, ela
se impõe sempre, principalmente em relação aos personagens
masculinos, mostrando que as mulheres não precisam e não
devem ser submissas. Por fim, apesar da postura agressiva,
Helga tinha uma paixão intensa por Arnold, revelando que uma
menina pode ter atitude e personalidade forte ao mesmo tempo
que é capaz de se derreter de amores por alguém. Além do que,
o número de meninas que se identifica com o amor platônico da
personagem é incontável. Quem nunca teve vergonha de revelar
o amor ao ser amado, ainda mais quando criança? Por mais
que Helga seja uma personagem secundária, o público feminino
possivelmente se identifica muito mais com suas questões e
atitudes do que com a passividade e o mundo maravilhoso - e

76
irreal - das Princesas Disney.
CONCLUSÃO
Os movimentos sociais, hoje em dia, sofrem um
retrocesso muito grande devido ao crescimento da ala
conservadora. Seja nos EUA, com políticos como Donald Trump,
ou aqui no Brasil com uma bancada evangélica assustadora no
Senado, que faz com que discussões sobre gênero - “ideologia de
gênero”, como eles chamam pejorativamente - sejam proibidas
em escolas. Felizmente, a cultura - seja de desenhos animados,
filmes, música, etc - busca cada vez mais o questionamento das
normas sociais e desigualdades de gênero.
Os desenhos animados que retratam o feminino, por
terem personagens sexualizadas, como em desenhos de super
heróis; no discurso pelo consumo excessivo, em
Três Espiãs
Demais
; na manutenção de padrões de beleza, como nos contos
de fada e também na falta de representatividade positiva de
personagens que fujam do padrão, podem ser problemáticos.
Porém, com o passar o tempo, aparecem cada vez mais desenhos
animados que desconstroem padrões de beleza e de gênero
como a nova temporada d’
As Meninas Superpoderosas, Peppa
Pig
, Os Padrinhos Mágicos, entre outros. Ver esses desenhos
ganhando espaço na programação dos canais infantis é
esperançoso. A nova temporada de
As Meninas Poderosas, assim
como outros produtos da indústria cultural, parece se apropriar
de um discurso feminista, algo que pode ser muito positivo
para o movimento, pois são produtos de escalas mundiais e não
fazemos ideia de quantas pessoas podem alcançar. Entretanto,
nós mulheres, temos que ficar atentas, pois a apropriação do
movimento pela mídia pode ser perigosa. É o que acontece com
a marca
Disney Princess hoje em dia, ao lançar vídeos com um

77
discurso de que qualquer menina pode ser uma princesa, mas
somente meninas brancas aparecem no vídeo, enquanto um
homem canta uma música no fundo. Sim, um homem cantando
uma música em um vídeo que teoricamente tinha o intuito de
empoderar meninas. Parece contraditório, não? Além do que,
são esses desenhos que influenciam a cabeça das crianças e
quanto mais a desconstrução dos estereótipos for estimulada,
melhor para o futuro.

78
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADICHIE, C. Sejamos todos feministas. Companhia das Letras:
São Paulo, 2014.
BEAUVOIR, S.
O segundo sexo – volume 1: fatos e mitos. Difusão
Europeia do Livro: São Paulo, 1970.
CALZAVARA, B. Estudos de Gênero: 6 razões pelas quais as
Meninas Superpoderosas dão uma aula. In: Hype Science, 2013.
Disponível em <http://hypescience.com/estudos-de-genero/>.
Acessado em 21 de agosto de 2016.
FALUDI, S.
Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada
contra as mulheres. Rocco: Rio de Janeiro, 2001.
FRITZSCHE, B. Negociando o feminismo pop na cultura jovem
feminina: um estudo empírico com fãs de grupos femininos. In:
Revista Estudos Feministas, v. 12, n. 2. Florianópolis, 2004, p.
106-115.
FOSTER, G. Desenhos animados mudam a abordagem em
questões de gênero e de família. In: ZH Entretenimento,
Junho de 2015. Disponível em <http://zh.clicrbs.com.br/rs/
entretenimento/noticia/2015/06/desenhos-animados-mudam-
a-abordagem-em-questoes-de-genero-e-de-familia-4770748.
html>. Acessado em 21 de agosto de 2016.
MAGALHÃES, J; RIBEIRO, P. (Re)Pensando as representações
de gênero nos episódios de Peppa Pig. In:
Espaços Educativos,
v.2 n.4, 2014, p. 24-32.
MCROBBIE, A. Pós-feminismo e cultura popular: Bridget Jones

79
e o novo regime de gênero. In: CURRAN, J; MORLEY, D. Media
and Cultural Theory
. Routlege, Londres/New York, 2006, p. 59-
69.
ODININO, Juliane.
História social da criança na mídia.
Dezembro de 2004, p. 24 – 40.
PEREA, K. Girl cartoons second wave: transforming the genre.
In
Animation: an interdisciplinary journal, 2015, vol. 10(3), p.
189-204.
STABILE, C; HARRISON, M. Introduction: prime-time animation:
an overview. In
Prime Time Animation: Television animation
and american culture. Routledge, 2003, p. 1-10.

80
Representação feminina nos
desenhos animados

um estudo sobre As Meninas Superpoderosas
Luiza Martelotte
Os desenhos animados representam uma fase importante
no crescimento cognitivo da maioria das crianças. Ali Hassam
(2013, p.6) aponta que têm entretido as crianças por mais de 80
anos e que isso influencia diretamente em seus comportamentos.
Ao considerar-se a estrutura patriarcal da sociedade,
na qual mulheres possuem funções sociais bem delimitadas,
claramente os desenhos animados – pelo menos os mais
comerciais – representam esta lógica de alguma maneira.
Logo, a reflexão perpassa o quanto os desenhos influenciam
na construção da mentalidade infantil feminina e se por vezes
ajudam a desconstruir, outras ajudam a fixar essas ideologias.
Estar condicionada a papéis secundários faz parte da
vida de todas as mulheres, apresentadas de diferentes formas
no cotidiano. Isso se apresenta também em como a sociedade
lida com as personagens de desenhos animados e o quanto de
destaque as personagens femininas apresentam. Pesquisando
personagens de desenho animado femininos no Google, o
primeiro resultado é: “As 50 mulheres mais lindas dos desenhos
animados “; enquanto, ao pesquisar personagens de desenho
animado masculinos encontra-se: “Os 25 melhores personagens
de desenhos animados de todos os tempos “.
O desenvolvimento do trabalho se dá através do
desenho animado
As Meninas Superpoderosas que, em algum
grau, desafia as práticas de marcação de gênero.

81
CARTOONS E SEU IMPACTO MUNDIAL
Historicamente o Cartoon Network está em posição
de destaque na vida cotidiana, principalmente, das crianças.
Segundo Ali Hassam (2013, p.6) desde 2002 o canal Cartoon
Network já alcança 80 milhões de casas em 145 países e quase
70% do seu público tem entre 2 e 17 anos, mas principalmente
as que possuem entre 6 e 11.
Devido ao largo alcance das mídias televisas, os
desenhos animados afetam a linguagem, comportamento e até
se apresentam de maneira materializada como em brinquedos,
os modos de se vestir e alimentos industrializados destinados
para esse público.
Outros aspectos como violência também influenciam
no comportamento das crianças. Hassam (2013, p.10) ainda
ressalta que quase 60% das crianças quer lutar com os colegas
de classe após assistir a desenhos animados violentos.
A mídia e seu poder hegemônico, portanto, incide tanto
sobre adultos quanto sobre crianças e ultrapassa as barreiras
da televisão. Introduzem a criança dentro de uma lógica de
consumo – inclusive com as propagandas dos brinquedos e
alimentos dos desenhos animados – e esta lógica tem ideologia
de gênero.
O binarismo fortemente marcado pelas empresas de
brinquedos para crianças se apresentam na construção dos
primeiros cartoons, que funcionavam como uma plataforma
publicitária para essas empresas. Essas diferenças no universo
dos brinquedos são exemplificadas por Juliane Odinino (2009,
p.52) :

Do ponto de vista cultural, saltam as diferenças binárias
entre os universos masculino e feminino, um representado

82
sobretudo por carrinhos, bola, videogame, super heróis, no
qual se destaca um mundo “azul”, e outro das meninas, “cor­
de­rosa”, repleto de bonecas, princesas, bichinhos de pelúcia e
utensílios para a brincadeira de “casinha”.
Além disso, as personagens femininas secundárias eram
constantemente apresentadas com pouca roupa, sexualizadas, ou
então como agentes passivos, subordinadas à figura masculina
para realização plena. São exemplos a Teela, de
He-Man e os
Mestres do Universo
ou as princesas da Disney – outro símbolo
de consumo que perpassa a construção da identidade.

As Meninas Superpoderosas também estão inseridas
nessa lógica, principalmente por fazerem parte do Cartoon
Network, ainda que se distancie um pouco da lógica patriarcal
de representação do feminino. A Senhorita Belo, por exemplo,
é a assistente do Prefeito, a qual nunca tem seu rosto revelado.
Com uma roupa justa e salto alto, ambos vermelhos, além de
uma voz sedutora, ela é um retrato da mulher sexy e inteligente.
Ainda, a Senhorita Sara Belo é a mente por trás do
Prefeito: é ela que tem as soluções para os problemas da cidade.
No entanto, ela permanece como a assistente e ele ocupa o cargo
superior.
OS DESENHOS ANIMADOS E AS TRANSFORMAÇÕES
DO GÊNERO FEMININO
Ao longo das últimas décadas – e até no que diz
respeito aos primeiros cartoons televisivos voltados para
meninas - as representações femininas têm apresentado
mudanças significativas em relação à padronização do gênero.
As personagens principais deixam de ser donzelas em perigo e
passam a exercer características como “teamwork, savvies and
heroics.
Dora the Explorer, for example, clearly embodies the

83
motto of the United States Marine Corps: Improvise, Adapt and
Overcome.” (PEREA, 2015, p. 192).
SUPER-HEROÍNAS
Historicamente as super-heroínas têm sido versões
femininas erotizadas dos super-heróis, sobretudo os dos
quadrinhos, voltadas para uma estética masculina e também
destinadas a esse público.

As Meninas Superpoderosas foram as primeiras
super-heroínas voltadas para o público infantil, em 1998. Se
compararmos com He Man, por exemplo, que foi lançado em
1983, temos uma diferença de 15 anos entre os dois.
Nos casos dos contos de fada, as heroínas são vítimas –
o que também não as faz menos heroínas - que são submetidas
a sucessivas aprovações até atingirem o resultado final: casar-
se com o príncipe. Elas são meigas, delicadas e passivas:
características-padrão atribuídas comumente à feminilidade.
A
s Meninas Super Poderosas apresentam essas
características – que são, por sinal, muito infantilizadas - sob
uma nova ordem: ao mesmo tempo que são delicadas e sensíveis,
trabalham com a ideia de coragem, força e inteligência,
desafiadas a salvar o dia da cidade de Townsville. Muitas dessas
características estão nos super-heróis dos quadrinhos.
As três irmãs Lindinha, Florzinha e Docinho apresentam
características que se balanceiam: Lindinha, em um extremo, é
hipersensível e hiper ingênua, enquanto Docinho está no outro
extremo: é mais agressiva e violenta. Essa forma de representação
se dá, também, para a construção do humor. Odinino explica:
“suas personalidades parecem exagerar na figura de clichês
já consagrados pelos desenhos animados e outrora buscam
referenciais em representações sociais bem recorrentes da

84
sociedade atual. (...) O exagero como são retratadas é marca
bem característica do gênero humorístico.”
CONCLUSÃO
O fato das personagens serem femininas dá um contorno
diferente a essa trajetória, pois representam as mulheres que
estão inseridas num contexto da cidade, muitas vezes cruel.
As
Meninas Superpoderosas
apresentam a dificuldade em lidar
com as questões cotidianas como o medo do escuro e as tarefas
em casa e ao mesmo tempo tem que lidar com o fato de terem
que salvar a cidade dos terríveis monstros que invadem a cidade
de Townsville. Aí está muito das problemáticas da mulher na
contemporaneidade.
Criado num cenário de tensões e mudanças, inclusive
dentro da formação dos desenhos animados, as Meninas
Superpoderosas abrem espaço para uma nova discussão das
dicotomias de se construir um personagem feminino: o que se
espera socialmente e as aspirações, engatilhar a presença da
fantasia e do lúdico e ao mesmo tempo lidar com as concepções
e padronizações de identidade e de gênero.

85
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HASSAM, Ali. Cartoon Network and its Impact on Behavior of
School Going Children: A Case Study of Bahawalpur, Pakistan.
In
International Journal of Management, Economics and Social
Sciences
. Vol. 2(1), pp. 6 – 11. 2013
Legião dos Heróis. As 10 melhores versões femininas de heróis
da Marvel e da DC. Disponível em <http://legiaodosherois.
uol.com.br/lista/10-melhores-versoes-femininas-de-herois-da-
marvel-e-da-dc.html> Acesso em 21/07/16
ODININO, Juliane. A
s Super-heroínas em Imagem e Ação: Gênero,
Animação e Imaginação Infantil no Cenário da Globalização das
Culturas
. Tese de Doutorado. Florianópolis, UFSC. 2009.
ODININO, Juliane.
Imaginário Infantil e Desenho Animado
no Cenário da Mundialização das Culturas
. Tese de Mestrado.
Campinas, UNICAMP. 2004.
PEREA, Katia. Girl Cartoons Second Wave: Transforming the
Genre. In
Animation: an interdisciplinary journal. Vol. 10(3)
189–204. 2015.

86
Análise da série animada Kim
Possible
Laila Arêde
Thayanne Branco
CONTEXTUALIZAÇÃO E FUNDAÇÃO DO DISNEY
CHANNEL
O canal televisivo Disney Channel foi fundado oficial-
mente em 1983, exatamente na mesma década em que as crian-
ças passaram a ser vistas como consumidores em pontencial
(ODININO, 2004). Essa perspectiva comercial influenciou não
só a produção da animação seriada, mas também na elaboração
de outros produtos que fossem pertinentes para o contexto, tais
como os brinquedos - produtos que dialogavam com os univer-
sos narrativos apresentados nos desenhos.
Segundo Juliane Odinino (2004), “os desenhos animados con-
quistaram definitivamente espaço através dos meios de comuni-
cação de massa a partir dos anos de 1960”. Apesar do destaque
das produções da Walt Disney no cinema, a popularização das
animações ocorreu definitivamente na era televisiva, quando
começou a fazer parte “do imaginário popular das massas” de
acordo com a autora.
A partir da Era Disney, os desenhos animados ganha-
ram uma maior expressão no mundo ocidental, tendo então uma
linguagem mais voltada para o público infantil dentro da cultu-
ra massiva (ODININO, 2004).

87
Ao analisar a estrutura narrativa de alguns episódios
de Kim Possible, subentende-se que seu “público-alvo” seriam
as crianças (principalmente a partir de 7 anos). Contudo, vale
ressaltar, como afirma Odinino (2004) não podemos certificar
que uma produção animada é sempre voltada para as crianças,
mas que expressivamente na história da animação ocidental,
prevaleceu-se o universo infantil massivo.
A FICÇÃO SERIADA ANIMADA KIM POSSIBLE E
SUA PREMISSA
Kim Possible é um desenho animado estadunidense cria-
do por Bob Schooley e Mark McCorkle, em que conta também
com a parceria de Stephen Silver (
concept artist) no processo de
criação. A série animada foi a segunda da Disney Channel Ori-
ginal Series, e a primeira série a ser produzida por Walt Disney
Television Animation, em associação com a Disney Channel. No
Brasil, além de ser exibida pelo canal pago Disney Channel,
Kim
Possible
foi exibida na televisão aberta pelas emissoras SBT e
Rede Globo.
Originalmente, a série animada foi transmitida entre os
anos de 2002 a 2007, possuindo assim 4 temporadas e um total
de 87 episódios em que cada um possui em média 24 minutos.
Kim Possible é uma das mais longas séries animadas produzidas
e exibidas pela Disney Channel
10
. A par do enorme sucesso, a
Disney lançou dois longas-metragens –
Kim Possible Movie: So
the Drama
e Kim Possible: A Sitch in Time – que foram exibidos
diretamente na Disney Channel, e posteriormente, lançados em
10 Wikipedia. Kim Possible. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/
Kim_Possible>. Acessado em julho de 2016.

88
DVD.
A história da animação gira em torno da menina ado-
lescente Kimberly Ann Possible (Kim), que além de ser uma lí-
der de torcida e ter uma vida comum dedicada aos estudos e a
família, luta contra o crime com seu amigo de infância Ronald
Stoppable (Ron), que possui como bichinho de estimação uma
toupeira careca chamada Rufus; os três personagens combatem
diversos vilões que atuam na pequena cidade de Middleton.
No início da primeira temporada, Kim e Ron estão no
primeiro ano do ensino médio. A série acompanha a trajetória
e o amadurecimento do relacionamento entre os protagonistas
até culminar na graduação escolar de ambos
11
. A partir da quar-
ta temporada, os melhores amigos viram namorados e, a partir
daí, desenrola-se um novo plot que possui maior ênfase no ro-
mance.
Kim, além de ser inteligente, possui um temperamento
muito estável, domina muito bem as artes marciais e é fisica-
mente e emocionalmente madura se for comparada a muitos da
sua idade. Ron, por sua vez, é o alívio cômico da série. Ele é
brincalhão e destrambelhado, não domina as artes marciais tão
bem quanto Kim, mas ele consegue arrancar gargalhadas dos
espectadores com situações e atitudes nonsense juntamente com
seu fiel companheiro Rufus.
Além dos protagonistas, temos também construções de
diversos personagens coadjuvantes como Wade (um garoto nerd
e hacker), que é responsável por dar informações e propiciar
apetrechos para as realizações das missões. Wade e Monique
são dois amigos afrodescendentes – tendo assim uma represen-
tatividade negra na série animada da Disney – que possuem um
11 Episódios 22 e 23 da 4ª temporada.

89
destaque especial em determinados episódios. Ambos ajudam
Ron e Kim em algumas missões, e eles curiosamente engatam
em um namoro no quarto episódio (“The Cupid Effect”) da 4ª
temporada.
Em relação a família de Kim, tanto a mãe quanto o pai
são cientistas e ela possui irmãos gêmeos – em torno de 13 anos
– que também são fascinados pela ciência e fazem experimentos
loucos no tempo livre.
Já no âmbito dos vilões, temos como antagonista princi-
pal o atrapalhado Drakken – cujo é cientista e estudou com o pai
da Kim na universidade
12
– e a sua parceira astuta e capciosa,
Shego.
Sobre a construção do personagem-vilão Drakken, per-
cebemos a presença do estereótipo do “cientista maluco” (SI-
QUEIRA, 2009) – tal elemento não só está nas narrativas da
Disney, mas está presente em tantas outras de outros estúdios.
Porém, ao contrário de outras obras animadas, o cien-
tista representado em
Kim Possible (Drakken) não é um perso-
nagem esperto ou que possui ideias tangíveis; a sua ambição
pelo poder através da dominação do mundo é apresentada como
principal característica de sua vilania. Em contrapartida, Shego
é a mais bem centrada, possuindo inteligência e habilidades físi-
cas para transformar as ideias insanas de Drakken em realidade.
EMPODERAMENTO FEMININO
A representatividade feminina no desenho Kim Possible
é posto em voga com personagens femininas fortes, inteligentes,
12 Kim Possible Wiki. Dr. Drakken. Disponível em: <http://kimpossible.wikia.
com/wiki/Dr._Drakken>. Acesso em: julho 2016.

90
sagazes e determinadas, constituindo-se assim em um desenho
que evidencia o
girl power, ou seja, empoderamento feminino
(PEREA, 2015). Katia Perea (2015) analisou em determinados
desenhos animados alguns personagens femininos que possuem
uma aparência frágil mas que são fortes combatendo contra o
mal (como por exemplo
The Powerpuff Girls).

Kim Possible apresenta uma protagonista que não possui
necessariamente aspectos ultrafemininos ligados a uma imagem
de fofura, delicadeza e fragilidade, mas também não constuitui-
-se em uma imagem hipersexualizada (como Betty Boop). Kim
é representada como uma garota normal – sem super poderes –,
com roupas que remete a um estilo atlético e sua excentricidade
pode ser vista quando a mesma está em combate, lutando – com
socos, chutes e apetrechos especiais – contra as forças do mal.
Por outro lado, temos uma antagonista que é parceira
do vilão-principal (Drakken), Shego
13
. Drakken não consegue
exercer sua vilania – e nem abrir uma tampa de conservante –
sem Shego. Ela é sarcástica, demonstra ser uma pessoa com um
complexo de superioridade, e tem uma personalidade mais fria
que a de seu companheiro Drakken (que muitas vezes é retrata-
do como alguém “bobo”).
Shego teve um passado um tanto quanto peculiar pois
ela participava de uma equipe – composta por seus quatro ir-
mãos – denominada “Team Go” que tinha como principal obje-
tivo combater os crimes na cidade de “Go City”
14
. Entretanto,
desde nova, ela sempre possuiu interesse pela vilania e esponta-
neamente decidiu abandonar o “Team Go”, formando assim uma
13 Youtube. Dr Drakken vs The Pickle Jar. Disponível em: <https://youtu.
be/5GQN8Yni0m8>. Acesso em: julho 2016.
14 Kim Possible Wiki. Team Go. Disponível em: <http://kimpossible.wikia.
com/wiki/Team_Go>. Acesso em: julho 2016.

91
parceria com Drakken.
Além de ser sagaz, ágil, determinada, ela possui habi-
lidades especiais: Shego é capaz de lançar uma espécie de raio
verde altamente mortal em seus inimigos (ou em qualquer um
que a irrite, incluindo o próprio Drakken)
15
.
Os personagens masculinos são, em sua maioria, retra-
tados como alívios cômicos na tessitura da narrativa. Tanto Ron
quanto Drakken necessitam da figura feminina – seja Kim ou
Shego – para poder defendê-los, pois elas são as únicas que pos-
suem habilidades e conhecimentos de luta.
A GUERRA ENTRE O BEM E O MAL
O escopo do desenho visa apresentar o embate entre o
bem x mal, onde os mocinhos vivem constantemente combaten-
do os planos maléficos e ambiciosos dos vilões, e sempre termi-
nam salvando o mundo, o que caracteriza Kim Possible – a pro-
tagonista – como uma personagem heróica. Nesse conflito entre
heróis e vilões, percebe-se intrinsecamente a violência que está
presente nas lutas entre os personagens – mesmo de maneira
sutil, ou seja, não aparecendo muito sangue ou nem acabando
em morte.
Apesar de serem expostas cenas de violência física
16
,
o elemento cômico está muito presente na construção da nar-
rativa; aliás, esta é uma tendência herdada de produções cine-
matográficas — paródia e comédia —, onde são apresentados
acontecimentos inesperados capaz de provocar o riso do recep-
15 Youtube. Dr. Drakken deals with Sego’s Mood Swings. Disponível em: <ht-
tps://youtu.be/Z_l-aLeYCiw>. Acesso em: julho 2016.
16 Youtube. Kim Possible So The Drama Kim vs Shego fight. Disponível em:
<https://youtu.be/Wu6ECS8VtHg>. Acesso em: julho 2016.

92
tor (ODININO, 2004).
Como abordado por Siqueira (2009), “nos desenhos
mais antigos a morte era um tabu — portanto, sempre reversível
—, em várias produções mais recentes a morte é dramatizada e
ocorre como consequência de violência física”. Em
Kim Possible,
a morte não é um elemento explícito e nem é retratado como
tal. Os vilões são derrotados em determinados episódios, mas
posteriormente eles retornam com novos planos para dominar
o mundo e os mocinhos aparecem para derrotá-los novamente,
constituindo-se assim em um ciclo narrativo muito usual nos
desenhos infantis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ODININO, J. Imaginário infantil e desenho animado no cenário
da mundialização das culturas
. Campinas, SP : [s.n.], 2004.
PEREA, K. Girl cartoons second wave: transforming the genre.
In
Animation: an interdisciplinary journal, 2015, vol. 10(3), p.
189-204.
SIQUEIRA, D. Ciência e poder no universo simbólico do desenho
animado. In
Ciência e Público: caminhos da divulgação científi-
ca no Brasil. Série Terra Incógnita, Casa da Ciência, UFRJ.

93
Três Espiãs Demais e os desenhos
para meninas

Girl Power
Rafaela Martins
Thayná Kaizer
Este artigo visa compreender e analisar o universo do
desenho animado
Três Espiãs Demais e, através dele, relacionar
questões sobre os desenhos para meninas e seu universo sim-
bólico. O desenho tem como seu público alvo majoritariamente
garotas pré-adolescentes, abordando uma temática que foi mui-
to explorada no início dos anos 2000, na “segunda onda” de
desenhos animados para garotas (PEREA, 2015), o
girl power.
Nesta nova fase dos desenhos animados, é possível ge-
rar discussões importantes em relação aos estereótipos utiliza-
dos na retratação da menina/mulher na televisão, as questões
de gênero e o feminismo. Usamos como exemplo a comparação
entre
Três Espiãs Demais e As Meninas Superpoderosas, dese-
nho este que foi um marco para o surgimento da expressão girl
power nos desenhos animados televisivos.
TRÊS ESPIÃS DEMAIS
Totally Spies!, mais conhecido no Brasil como Três Espi-
ãs Demais, é um desenho de origem francesa, criado por Vincent
Chalvon-Demersay e David Michel, produzido e distribuído pelo
estúdio Marathon Media, que também produziu outras obras
de animações infanto-juvenis de sucesso, como
Martin Mystery
e
LazyTown. A série teve 6 temporadas e 156 episódios, cuja

94
transmissão começou em novembro de 2001 em seu país de ori-
gem. No Brasil, ela chega um ano após a sua estreia, em março
de 2002, no canal Fox Kids, sendo transmitida posteriormente
pela Rede Globo no programa TV Globinho.
A narrativa da série se passa em Los Angeles, na es-
cola denominada Beverly Hills, onde as personagens principais
– Alex, Clover e Sam –, estudam. Na primeira temporada elas
estão no primeiro ano do high school (ensino médio america-
no), com 14 anos. Secretamente, as alunas vivem uma vida na
qual são agentes espiãs de uma corporação chamada WOOHP
(Organização Mundial de Proteção Humana, em português). Lá
elas são requisitadas quando vilões atrapalham a paz mundial,
sempre resolvendo e combatendo crimes e terrores.
AS PROTAGONISTAS E SEUS ESTEREÓTIPOS
A série é composta por três protagonistas: Alex, Clover e
Sam. Porém, é possível perceber através do enredo e de como as
fotos promocionais são divulgadas, de que Clover é considerada
a líder. Nas imagens, em sua maioria, ela está posicionada no
meio ou em destaque, como no exemplo acima.
Alex é a heroína que usa o uniforme amarelo, tem cabe-
los pretos e é a mais morena em comparação as outras duas. Sua
personalidade é baseada em ser a esportista, atlética e engra-
çada do grupo. Também é a mais ingênua e a mais inexperien-
te das três espiãs. Muitas vezes, durante alguns episódios, ela
transparece ser inocente demais, mas sempre acaba resolvendo
bem os problemas apresentados e demonstrando exatamente o
contrário. É o principal alívio cômico da série.
Clover, a loira de uniforme vermelho, além de ser a líder

95
do grupo, é conhecida como a “fashionista” do colégio. É a que
mais entende e se preocupa com assuntos relacionados à moda.
Um traço importante da personalidade de Clover é que, das três,
é a espiã que mais fala sobre garotos e compras, sendo um retra-
to quase perfeito do estereótipo de “patricinha” que encontra-
mos em muitas obras cinematográficas e televisivas. Por ser a
líder, também é a que mais se impõe em relação aos problemas
apresentados e que possui o que podemos chamar de personali-
dade forte.
Sam é o “cérebro” do grupo. De cabelos ruivos e trajan-
do um uniforme verde, é considerada a garota mais inteligente
da escola. Calma, gentil e sempre pensando nas formas mais
inteligentes e estratégicas de resolver os problemas e combater
o mau, é a mais “pé no chão” e racional das três.
Ao analisar as características das personagens principais
apresentadas na série, podemos ter em vista o conceito utilizado
por Katia Perea, quando a autora apresenta o “the feminine trip-
tych: Beauty, brains and brawn” (“O tríptico feminino: beleza,
inteligência e força”). Essa é uma fórmula comumente usada nos
desenhos para meninas da segunda geração, como por exemplo
As Meninas Superpoderosas, que também seguem esse modelo.
No tríptico feminino, as personagens de
Três Espiãs Demais são
facilmente encaixadas nesse conceito: Alex como a força, Sam
como a inteligência e Clover como a beleza.
Apesar desses arquétipos não quebrarem totalmente
com os estereótipos da mulher que é retratado nas mídias he-
gemônicas (tendo em vista também que essas personagens são
caucasianas e de classe média alta), ainda assim cria-se uma
possibilidade de uma nova visão sobre protagonistas mulheres
nos desenhos animados no qual é explicitado que mulheres po-
dem ser inteligentes, fortes e heroínas, sem as limitar a um pa-

96
tamar superficial de sexo frágil e futilidades.
A personagem que mais conseguimos perceber o motivo
desses arquétipos não serem tão revolucionários assim é a Clo-
ver, típica patricinha americana, consumista e que adora falar
com as suas amigas sobre garotos. As outras duas espiãs, Alex e
Sam, também possuem algumas dessas características que ain-
da demarcam muito a presença do gênero feminino socialmen-
te aceito nos desenhos animados infantis (“coisa de menina” x
“coisa de menino”), como iremos abordar mais à frente.
PERSONAGENS SECUNDÁRIOS EM UM UNIVERSO
GIRL POWER
No mesmo texto sobre a segunda onda de desenhos para
meninas, Perea cita que mesmo nesse universo de empodera-
mento feminino, as personagens secundárias acabam caindo em
um lugar onde suas ações ou características se contrastam com
as da protagonista. Frequentemente são retratadas como “
mean
girls
” (garotas más), superficiais, esnobes e manipuladoras.
Em
Três Espiãs Demais, existe uma personagem chama-
da Mandy, considerada a maior rival de Clover na escola. Elas
vivem brigando entre si e disputando quem é a mais bonita,
quem se veste melhor e até mesmo disputam os mesmos garo-
tos. Esse embate ocorre por elas terem a personalidade parecida,
porém, uma é vista como vilã e a outra como heroína. As duas
são a típica patricinha, porém, com Mandy esse estereótipo é
mais exacerbado, tendo em vista que é necessário demonstrar
uma diferença entre as duas. Mandy é retratada constantemente
com as características observadas por Katia Perea. É reforçado,
principalmente, que ela seja a clássica “garota má” das escolas
americanas.
Outro personagem secundário muito importante da sé-

97
rie é Jerry. Ele é o chefe do trio na WOOHP e também o mentor
de Alex, Clover e Sam. Logo no segundo episódio da primeira
temporada, “The New Jerry”, podemos observar a relevância
deste personagem como bússola moral para as meninas, fazen-
do-o encaixar na ideia do personagem “cientista racional” que
Denise Siqueira propõe. A autora apresenta uma série de anima-
ções que faz uso da “figura do cientista como o representante
da racionalidade” (SIQUEIRA, 2002, p. 116). Um dos exemplos
é o Professor Xavier no desenho
X-men, que tenta conciliar seus
ideais nobres enquanto lida com os problemas de seus alunos,
que são os heróis do desenho. Da mesma forma, Jerry tenta tra-
zer um senso de responsabilidade nas personagens principais de
Três Espiãs Demais. Jerry também é responsável por apresentar
todos os gadgets usados pelas meninas em suas missões espe-
ciais, sempre de forma bem didática para que o público possa
entender da melhor forma possível sua função.
GIRL POWER: FEMINISMO E GÊNERO
De acordo com Rebecca Hains, podemos pensar o termo
girl power como:
Girl power se tornou um termo familiar no final da década de
90 quando era o grito de guerra das Spice Girls, a girlband pop
que graças as suas devotadas fãs pré-adolescentes, alcançou a
fama mundial. Girl power sugere que garotas são fortes, inte-
ligentes, e capazes de qualquer coisa, e que ser feminina pode
ser uma coisa positiva e empoderadora. (HARRIS, 2016, p. 65).
Não poderíamos tratar de poder feminino no universo
dos desenhos animados sem citar
As Meninas Superpoderosas.
O desenho, criado em 1998, é um marco na história dos dese-
nhos para meninas que incorporam os ideais do
girl power. A
animação narra as aventuras das irmãs Florzinha, Lindinha e

98
Docinho, criadas em laboratório pelo Professor Utônio, ao ten-
tar inventar uma garota ideal usando como ingredientes: açúcar,
tempero e “tudo que há de bom”. Entretanto, no processo, o
Professor acrescenta acidentalmente o “elemento X”, que acaba
fazendo com que as meninas adquiram superpoderes.
O desenho animado ganhador de um prêmio Emmy
abriu espaço para que uma série de animações com personagens
femininas fortes e bonitas, como
Kim Possible, W.I.T.C.H e Três
Espiãs Demais
, fossem lançadas nas grades televisivas. Inclu-
sive, as
Três Espiãs Demais era exibido nos EUA pelo Cartoon
Network, mesmo canal que exibia (e depois passou a produzir)
As Meninas Superpoderosas. As animações eram exibidas em
um segmento do canal chamado girl power, que exibia somente
desenhos com protagonistas femininas.
Em
Três Espiãs Demais, as personagens principais, na
primeira temporada da série, têm 14 anos de idade. Porém, a
impressão que temos como espectadores é que elas aparentam
uma idade muito mais elevada do que elas supostamente te-
riam, seja por causa de seu figurino, modo de falar e até mesmo
seus relacionamentos com garotos durante a série. Isso se deve
à hipersexualização de personagens femininos que Katia Perea
aponta, no qual muitas vezes são colocadas curvas nos corpos
de personagens meninas que ainda não teriam, biologicamente,
idade para tê-las. Essa sexualização da mulher não é somente
algo observado nos desenhos animados, em outras obras cine-
matográficas e televisivas, objetos publicitários e em revistas, é
bem explícita a objetificação do corpo feminino, que é reflexo
de uma sociedade patriarcal e machista.
Apesar de serem super espiãs, Clover, Alex e Sam não
quebram com o estereótipo de feminilidade criado pela nossa
sociedade. Entre a salvação de uma nação e outra, possuem

99
como prioridade ir ao shopping ou visitar salões de beleza, de-
marcando muito bem o que seria considerado do gênero femi-
nino. É recorrente também o fato de Clover precisar lidar com
problemas de relacionamentos e garotos no espaço entre as mis-
sões.
No episódio 1 da 9ª temporada, Clover decide entrar em
um concurso de beleza (mais uma vez rivalizada por Mandy). O
enredo do episódio é sobre uma ex-modelo que após sofrer um
acidente, abre uma agência na qual “rouba” partes do corpo de
outras mulheres, em busca de criar modelos perfeitas. Nota-se
que todas as modelos criadas pertencem ao estereótipo de bele-
za de Hollywood. Nenhuma delas, por exemplo, é negra. Após
derrotarem a vilã e passarem a mensagem de que “beleza não é
tão importante”, elas voltam ao concurso que Clover queria par-
ticipar e decidem desistir após a missão. Quando ela descobre
que teria perdido um prêmio de 25 mil dólares e um carro, a
personagem fica arrasada. Ao encerrar o episódio dessa forma,
os roteiristas conseguem deixar a lição de moral sobre a beleza,
mas sem perder o estereótipo de menina fútil de Clover.
Portanto, precisamos enxergar o conceito de
girl power
com um olhar crítico. É importante perceber até que ponto o
empoderamento feminino é positivo e mercadológico, ou seja,
até onde ele será bem aceito ao senso comum e consumido. Por
mais que seja importante a quebra dessa barreira; agora mulhe-
res podem ser retratadas como seres inteligentes, fortes e inde-
pendentes, não podemos tratar essa conquista como um final,
mas sim um caminho, onde num futuro próximo mais perso-
nagens mulheres possam existir e com uma variedade muito
maior de personalidades, sexualidades (não heteronormativas) e
estilos de vida, sem limitá-las ao que é considerado “coisa para
meninas”.

100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da análise da animação Três Espiãs Demais, é
possível concluir que mesmo apontando algumas problemáticas
encontradas no desenho, é uma obra que, para o seu tempo (ano
de 2001), se concretiza bem no que se propõe, tendo em vista
que foi produzida dentro dos conceitos de girl power perante a
sociedade da época. Como citam Stabile e Harrison, os desenhos
animados têm se tornado uma importante parte do nosso cená-
rio cultural, portanto, é inegável que o que é retratado nessas
obras televisivas, são um grande reflexo da sociedade de um
certo recorte temporal. Por isso, as obras de animação também
não devem se ausentar da responsabilidade de transmitir uma
mensagem de conhecimento e informação sobre o mundo em
que vivemos. Lembrando que “o desenho animado pode refle-
tir e reproduzir ideologias, violência, relações de poder e trans-
mitir valores” (SIQUEIRA, 2002, p. 111), as animações acabam
indiretamente exercendo a função de formadoras de opinião
do público. No caso de
Três Espiãs Demais, principalmente do
público feminino pré-adolescente, reforçando as representações
que já circulam na sociedade e fazem parte do imaginário.

101
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HAINS, R. C. Pretty Smart: Subversive Intelligence in Girl Power
Cartoons. In:
Geek Chic: Smart Women in Popular Culture, 2007,
p. 65-84.
PEREA, K. Girl cartoons second wave: transforming the genre.
In
Animation: an interdisciplinary journal, 2015, vol. 10(3), p.
189-204.
POTTS, D. L. Channeling Girl Power: Positive Female Media
Images in “The Powerpuff Girls”. In:
Studies in Media & Infor-
mation Literacy Education, vol. 1, Issue 4, novembro de 2001,
p. 1–9.
SIQUEIRA, D.
Ciência e Público: caminhos de divulgação cien-
tífica no Brasil. Casa da Ciência/ UFRJ; Editora UFRJ: Rio de
Janeiro, 2002.
STABILE, C; HARRISON, M. Introduction: prime-time anima-
tion: an overview. In
Prime Time Animation: Television anima-
tion and american culture. Routledge, 2003, p. 1-10

102
Análise da animação televisiva Três
Espiãs Demais
Michelle Moreira Camargo
Atualmente encontramos desenhos animados que unem
os interesses de meninos e meninas, mas isso nem sempre foi a
realidade televisiva. Este texto apresenta brevemente a história
dos “girl cartoons”, com a finalidade de inserir
Três Espiãs De-
mais em tal contexto.
Nos anos 80, empresas de brinquedos se uniram a estú-
dios independentes de animação para criar desenhos animados
baseados em brinquedos, inseridos na lógica de gênero biná-
rio já existente. As grandes marcas financiavam a produção do
conteúdo midiático infantil e as vendiam, recebendo dinheiro
ou tempo para propagandas na programação como recompen-
sa. Consequentemente, a venda dos brinquedos utilizados como
base para criação aumentou.
Durante esse período surgiu a primeira era de desenhos
feitos para meninas. As personagens não eram necessariamente
humanas, mas todas traziam em si características que as identi-
ficavam como pertencentes ao gênero feminino. Em sua narrati-
va estavam presentes elementos como a amizade, vivência pací-
fica em comunidade, arco-íris e unicórnios, entre outros temas
que fazem parte do “universo das meninas”.
Nos anos 90 tais produções passaram a ter um custo
muito alto devido às novas regras implantadas nos Estados Uni-
dos para o segmento e foram interrompidas. O mercado ficou
escasso até o surgimento de animações como
As Meninas Super-

103
poderosas, lançada em 1998, dando início a uma segunda era.
Nela, as meninas começaram a ser retratadas como explorado-
ras, agentes secretas e heroínas (PEREA 2015).
Assim como
As Meninas Superpoderosas, Três Espiãs
Demais
mostra a força e a capacidade das mulheres para salvar
o mundo. Trata-se de um desenho francês criado em 2001. Ao
longo dos 26 episódios de cada temporada, Sam, Clover e Alex
dividem suas atividades cotidianas com trabalho de espionagem
para agência WOOHP (World Organization of Human Protec-
tion). Os principais temas abordados são espionagem, moda,
consumo e relacionamentos. Na televisão aberta brasileira era
um dos desenhos fixos da antiga TV Globinho, programa infan-
til transmitido toda manhã na Rede Globo. Por ter como pro-
tagonistas três adolescentes, a animação não está inserida no
grupo de desenhos da segunda era, mas traz elementos dela.
A espionagem é prioridade para as três adolescentes.
Em muitos momentos, suas atividades escolares são interrom-
pidas para que possam atender ao chamado de Jerry, dono da
agência. Quando chegam ao escritório, a missão do episódio é
apresentada. Em seguida, todas recebem os equipamos necessá-
rios para que possam cumpri-la e são transportadas até o local
onde atuarão.
A animação pode-se ainda ser comparada com o super-
-herói Batman. Assim como as adolescentes, ele “não tem super-
poderes. Sua força é física e suas armas não são de ordem so-
brenatural, mas sim invenções desenvolvidas em um laboratório
especial” (SIQUEIRA). Enquanto seus equipamentos são feitos a
partir de objetos do dia a dia, como embalagens de maquiagem
e secador de cabelo, e disponibilizados pela WHOOP, o homem-
-morcego inventa seus próprios produtos na “batcaverna”, o que
é possível devido ao poder aquisitivo do personagem.
Apesar de deixar claro que estudar não é o foco princi-

104
pal das meninas, como deveria ser devido a suas idades, existe a
preocupação em mostrar todas as atividades sendo conciliadas.
Isso ocorre tanto nas temporadas em que estão no colégio quan-
to nas que se passam na Universidade. A personagem respon-
sável por enfatizar a importância da educação é Sam, segunda
melhor aluna do colégio. Biologia e química são suas matérias
de maior destaque. Clover e Alex não têm as mesmas carac-
terísticas “nerds” da amiga, mas também apresentam bons re-
sultados. O maior interesse em comum entre as três espiãs é a
moda. Todas estão sempre buscando acompanhar as tendências.
A aparência é utilizada para manter a popularidade no meio es-
colar, além de servir como ponte para criar conflitos com Man-
dy, principal “inimiga” do grupo. Outro fator trabalhado, ainda
com base na paixão pela moda, é o consumismo. Em diversos
momentos a narrativa se passa em um shopping localizado em
Beverly Hills. Nessas cenas o lado extremamente consumista
das adolescentes é revelado. Utilizando o cartão disponibiliza-
do a cada uma delas pela empresa, Sam, Clover e Alex fazem
muitas compras em liquidações como hobby e compram objetos
considerados necessários no mundo da moda assim que são lan-
çados, estimulando a competição através de bens materiais. Em
momento algum as espiãs mostram qualquer tipo de preocupa-
ção ou responsabilidade financeira. De acordo com Ali Hassan
e Muhammad Danyal, assistir a desenhos animados interfere na
atitude e no comportamento das crianças além de ter um forte
efeito sobre sua forma de falar, vestir e até mesmo interagir com
outras crianças. Por isso, o estímulo ao consumismo em
Três
Espiãs Demais
é tão grave quanto a apologia à violência feita em
outras animações.
O desenho aborda também relações amorosas, mais um
fator para as distinguir das
Meninas Super Poderosas. As espiãs

105
criadas em um contexto com “boobs and boyfriends” vivem em
busca de uma nova paixão, mas nunca namoram. Os relaciona-
mentos abordados sempre foram superficiais e passageiros até
a quinta temporada, quando Clover passa a ter Blaine como seu
namorado fixo. Um dos motivos para isso é a WHOOP. Por serem
agentes secretas, não podem relevar a espionagem para os ho-
mens com os quais se relacionam, causando grande desconforto
nas personagens toda vez que têm seus encontros interrompidos
por missões.
Seguindo a lógica da indústria cultural que produz os
desenhos, periodicamente novos personagens e enredos são lan-
çados. Os de maior sucesso ganham versão para cinema e vídeo
e passam a ilustrar uma série de outros produtos: capas de ca-
dernos, mochilas, camisetas e bonés. (SIQUEIRA, Denise)
O trecho acima justifica a presença de um par român-
tico fixo para Clover, além de antecipar o que viria a acontecer
com desenho. Em 2009, seis anos após o término do desenho
animado, foi lançado
Três Espiãs Demais! O Filme. Na sema-
na de estreia o longa animado ficou em nono lugar no ranking
de bilheteria francesa
17
, arrecadando um total de U$571,695
no primeiro final de semana. Através do filme, fãs de todas as
idades tiveram a oportunidade de descobrir como tudo havia
começado desde o momento em que as meninas chegaram em
Beverly Hills.
Desenhos animados apresentam continuidade no que
diz respeito à construção de narrativas mesmo quando estão
separados por décadas. No caso do desenho analisado, novos
elementos foram incorporados, até mesmo as técnicas utilizadas
17 Box Office Mojo. Disponível em <http://www.boxofficemojo.com/intl/
france/?yr=2009&wk=30&p=.htm>. Acessado em 20 de julho de 2016

106
mudaram ao longo das temporadas, trazendo traços cada vez
mais aperfeiçoados, mas ainda carregando consigo o foco no
público feminino.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HASSAN, A; DANIYAL, M. Cartoon Network and his impact on
behavior of school going children: a case study of Bahawalpur,
Pakistan. In
International Journal of Management, Economics
and Social Sciences
, 2013, Vol. 2(1), p. 6-11.
PEREA, K. Girl cartoons second wave: transforming the genre.
In
Animation: an interdisciplinary journal, 2015, vol. 10(3), p.
189-204.
SIQUEIRA, D. Ciência e poder no universo simbólico do desenho
animado. In
Ciência e Público: caminhos da divulgação científi-
ca no Brasil. Série Terra Incógnita, Casa da Ciência, UFRJ.

107
A espionagem enquanto trabalho
em
Três Espiãs Demais
Cecília Martins Xavier Lima
O desenho animado do estúdio francês Marathon Pro-
duction, focado para o público adolescente, (e também atrativo
a outros públicos)
Totally Spies!, no Brasil conhecido como Três
Espiãs Demais
, tem como protagonistas três jovens: Sam, Clover
e Alex, que dividem suas atividades de adolescentes (ir à escola,
ao shopping, viagens de férias, etc.) com o fato de serem espiãs
em uma agência secreta. Essa espionagem pode ser entendida
como um trabalho, e o objetivo desse artigo é investigar como
características convencionais do trabalho, ou do ato de traba-
lhar, são retratadas neste desenho e como o trabalho interfere
na vida pessoal das protagonistas, e vice-versa. Para tal, usarei
como análise os dez primeiros episódios da série (primeira tem-
porada), na versão dublada em português do canal à cabo Jetix.
Logo na abertura de
Três Espiãs Demais, fica claro que
as três adolescentes são muito amigas e realizam atividades jun-
tas fora do trabalho (como fazer compras, praticar esportes e
se divertir de outras diversas maneiras possíveis). No campo da
linguagem de desenho animado, essa abertura funciona como
um instrumento de contextualização, presente no início de cada
episódio, através de uma junção entre imagem e música tema.
Percebemos a tentativa de apresentar características da perso-
nalidade de cada uma das adolescentes, onde Sam é vista como
“nerd”, Clover como “namoradeira” e “fashionista” e Alex como
“desastrada”; além, é claro, de apresentar as protagonistas como

108
espiãs, que saem em missões comandadas pelo chefe Jerry, para
combaterem vilões.
LOCAL DE TRABALHO
As jovens são funcionárias da WHOOPI - Organização
Mundial de Proteção Humana. Por serem espiãs, as meninas
não têm um local de trabalho fixo, (fazem o que pode ser inter-
pretado como trabalho de campo) e precisam estar na sede da
empresa, quando solicitadas, para receberem a missão. Essas
coordenadas, do trabalho a ser feito, são dadas pelo próprio pre-
sidente da WHOOPI, Jerry Lewis.
Logo no primeiro episódio “Uma queda por músicos”,
Alex brinca em serviço, enquanto seu chefe explica as especifi-
cações da missão. As meninas, em um momento seguinte, criti-
cam algo sem saber que foi escolha do chefe, e ficam envergo-
nhadas ao descobrirem. O fato da Alex não ser advertida, nos
leva a concluir que é um ambiente de trabalho que permite de-
terminados tipos de brincadeiras e menos formalidade, além de
ser um local onde a troca de opiniões, ainda quando desagrada
alguém que ocupe um cargo superior, seja aceitável.
INSTRUMENTOS DE TRABALHO
Assim como em outras profissões, as espiãs têm ins-
trumentos que possibilitam/facilitam a realização do trabalho.
Quando Jerry apresenta a missão para as funcionárias, ele ex-
plica brevemente a função de cada dispositivo disponível para
aquele trabalho. Sendo assim, ao tomarem conhecimento da
função de cada instrumento, elas são encorajadas a usar (par-

109
cialmente) a sua criatividade para utilizá-los de maneira a aju-
dar a resolver os problemas da missão. No episódio “Cidadãs
Modelos” (S01E09), Sam reconhece a qualidade de um dos ins-
trumentos com a frase “nunca subestime o poder de um bom
acessório”.
QUALIFICAÇÕES
Para exercer o trabalho de espiãs, as jovens precisam
demonstrar determinadas habilidades e conhecimentos. No
terceiro episódio da temporada, “O novo Jerry”, as jovens re-
clamam tanto dos instrumentos ofertados que não atendem as
expectativas, quanto da missão dada pelo chefe, que está abaixo
das qualificações avançadas que elas possuem. Além disso, es-
sas habilidades e conhecimentos estão sujeitas a teste do chefe,
que pode ou não renovar o contrato de trabalho. No mesmo epi-
sódio, as espiãs são testadas sem seu conhecimento (teste anual
da WHOOPI): uma estrutura é montada para que elas fossem
monitoradas e as habilidades, conhecimentos e reações perante
os problemas, fossem avaliadas. Por hora, o chefe chega a deci-
dir que as espiãs foram reprovadas, e precisam passar por um
processo de reciclagem (retreinamento).
Dentre essas habilidades para ocuparem o cargo, esteve
presente no objeto de análise:
* Soluções criativas para resolução de problemas: As espiãs
usam de sua criatividade e inteligência para utilizar de ou-
tros objetos para além dos instrumentos de trabalho (quando
esses não estão disponíveis, mas não somente) para auxiliar
na missão. Esses objetos foram utilizados, é claro, de manei-

110
ra diferente da que ele serviria originalmente, demostrando
a capacidade de superar obstáculos.
* Trabalho em equipe: As jovens trabalham juntas, para me-
lhor solucionarem a missão. Por vezes ocorre uma divisão de
tarefas, onde cada uma pode contribuir de uma forma. Elas
sempre se reúnem durante o dia de trabalho para fazerem
uma espécie de balanço das pistas que possuem, trocar opi-
niões, (eventualmente consultam o chefe para sanar dúvi-
das), e juntas poderem decidir o caminho a ser seguido.
* Proatividade: As espiãs precisam, antecipar e solucionar os
problemas, para que assim o trabalho possa fluir: como no
episódio “A escapada” (S01E03) em que, apesar de ser uma
atividade perigosa, onde todos estavam prestes a ser atingi-
dos por um vulcão em erupção, Clover tem a iniciativa de
pular em direção a lava, fazendo um balão de ar quente e
salvando o grupo.
* Autonomia: As espiãs possuem certa autonomia no traba-
lho, para que o processo de espionagem seja feito por elas
(em equipe). Porém, eventualmente, elas entram em contato
com o chefe para que ele possa fornecer algum tipo de ajuda.
Quando necessário, o chefe também entra em contato para
oferecer novas informações para ajudar no caso. Jerry, jun-
to com a equipe da WHOOPI, costumam chegar no final da
missão para fazer as atividades que não competem as espiãs
(espionar e solucionar o problema), como prender os crimi-
nosos. E orientar os reféns, por exemplo.

111
* Network: Uma boa rede de contatos com profissionais
da área pode ser bastante útil. No episódio “A escapada”
(S01E03), se encontrando em situação de perigo e não con-
seguindo se comunicar com o chefe, as espiãs ligam para o
cientista que conheceram anteriormente no episódio, para
que ele pudesse dar algum tipo de auxílio.
ABUSO DE PODER
O chefe, Jerry, é quem controla quando e como as meni-
nas vão à sede. Elas são “abduzidas”, fazendo as mais distintas
atividades, nos mais diversos lugares, como durante a aula de
química (S01E04), e no estacionamento do shopping (S01E09).
Logo no primeiro episódio da série, Clover reclama das condi-
ções de trabalho, porque “aterrissou” fora do acolchoado. Na
maioria das vezes essas abduções acontecem na parte da manhã,
porém no episódio “O novo Jerry” (S01E02) elas foram retiradas,
sem consentimento prévio, da casa de uma delas, enquanto con-
versavam às 10:30h da noite. Sem contar que as meninas tam-
bém são dispensadas pelo chefe, depois que ele termina de dar
as instruções do trabalho, no apertar de um botão. Não existe
a opção de elas, tendo a demanda de trabalho, sair por vontade
própria e seguirem para a missão. Elas são jogadas de helicóp-
teros em movimento (S01E01) e sugadas por um depurador de
gordura (S01E10), entre outros, dando a entender que o chefe
é que tem o controle do direito de ir e vir das funcionárias na
empresa, podendo chamá-las independente do local, da situação
e da hora que elas estiverem e elas tem que, obrigatoriamente,
atender a esse chamado.
Esse comportamento abusivo do Jerry também é ques-

112
tionado pelas jovens no episódio “O novo Jerry” (S01E02), por
ele estar sempre vigiando/atrapalhando as vidas pessoais das
adolescentes. Elas chegam a cogitar “cair fora”, ou seja, pedir
demissão (mostrando-se insatisfeitas e dispostas a não aceitar
esse tipo de comportamento do chefe, de querer se meter em
suas vidas particulares e as infantilizar). Durante o episódio,
Jerry invade (digitalmente) a privacidade de Sam no provador
do shopping, para falar que a roupa dela está muito apertada. (O
que nos leva a questionar: a quanto tempo ele estava ali? E se as
meninas estão em constante vigilância.); ele também questiona
Clover sobre seus namoros e repreende Alex por ter notas baixas
na escola.
BENEFÍCIOS E ÔNUS DO TRABALHO
Nesses dez primeiros episódios de Três Espiãs Demais
não é explicado como as jovens se tornaram espiãs e se elas fize-
ram algum acordo de contrato de trabalho - se ficou claro quais
são os direitos delas enquanto funcionárias, e qual os deveres
a cumprir perante a empresa. O trabalho que as meninas reali-
zam é perigoso (por diversas vezes elas correm perigo de vida) e
violento, com lutas físicas e perseguições em velocidade elevada
(S01E08), tiroteio (S01E01) e estarem no local onde um vulcão
entra em erupção (S01E03), por exemplo. Porém, ao longo dos
episódios, percebe-se que as jovens possuem certos benefícios
por serem espiãs, como no episódio “Sequestro” (S01E08), onde
o Jerry avisa as adolescentes da prova surpresa de biologia que
elas terão no dia seguinte, e posteriormente no mesmo episódio,
quando elas se encontram atrasadas para prova, as adolescentes
utilizam do avião particular da WHOOPI para chegar na escola

113
a tempo.
*O trabalho interfere na vida pessoal: Fora do trabalho, as
jovens por vezes deixam de realizar atividades que anterior-
mente foram consideradas prazerosas, por terem sofrido al-
guma situação estressante no trabalho, como no episódio “A
escapada” (S01E03), onde as jovens depois de passarem por
situações intensas com um vulcão em erupção no Havaí, che-
gam no tão aguardado baile da escola e coincidentemente o
tema da festa é o Havaí. Todos os demais alunos da escola
pareciam estar se divertindo, porém, sem pensar duas vezes
elas decidem ir embora do baile (fogem correndo da festa,
pois não aguentam mais ouvir falar de Havaí).
*A vida pessoal interferindo no trabalho: Fora do trabalho, as
meninas possuem uma rival, a Mandy. No episódio “O apa-
gador” (S01E06), Mandy acaba aparecendo de surpresa no
local aonde as meninas estão disfarçadas e trabalhando em
uma missão. Em determinado momento, Clover joga a Man-
dy, uma civil, em direção a uma máquina para que o cabelo
dela enrosque e trave o equipamento, tendo apenas como
motivação a rivalidade e inimizade que é restrita a vida pes-
soal, e não pensando em momento nenhum na consequência
disso (a Clover estava em serviço).
Concluindo, foi uma escolha pessoal problematizar a
representação do trabalho nesse desenho. Uma vez que exis-
tem uma outra série de outras problemáticas possíveis, como
a representação das mulheres: as adolescentes, principalmente
a Clover (mas não somente), se apaixonam facilmente, se mol-

114
dando aos desejos do homem (ou pelo menos se adequam as
características que elas sabem que determinado rapaz que elas
estão gostando, valorizam). No episódio “As fugitivas” (S01E07),
Clover chega na escola vestida completamente diferente do ha-
bitual, com uma espécie de roupa de “cowgirl” e diz estar assim
por ter um garoto novo na escola vindo do Texas, e que precisa-
va impressioná-lo.
NesTe episódio, a Mandy aparece vestida da mesma
maneira que a Clover (com as mesmas roupas) e, ao abordar o
rapaz primeiro, “conquista” a sua atenção. No final do episódio
esse rapaz aparece com uma namorada vestida de uma maneira
completamente diferente da que as meninas estavam e, ao ser
questionado, explica que saiu do Texas justamente porque não
aguentava mais “
country” e que a namorada dele era original e
única. Nesse momento, Mandy e Clover começam a brigar entre
si, e o episódio termina assim! Elas buscaram mudar sua apa-
rência especificamente para agradar o rapaz no qual ambas pos-
suíam interesse amoroso, baseado em um estereótipo (o rapaz
é do Texas, logo ele deve curtir garotas “
cowgirl”), sem sequer
buscar saber, com mais profundidade, os reais interesses dele.
(Não justificando a prática, é claro, mas levantando a questão,
porque isso acontece em vários dos episódios analisados, e com
várias das garotas representadas no desenho, o que nos leva a
pensar se a Clover, Mandy e as demais jovens de maneira mais
moderada, chegam a serem dependentes desse constante desejo
e aprovação dos personagens masculinos).
QUESTÃO DO CONSUMO

115
Estas não são quaisquer jovens. São jovens que estudam
e são residentes de Beverly Hills, cidade que é conhecida por
suas mansões luxuosas e por abrigar várias celebridades. Em
alguns episódios, como em “O novo Jerry” as meninas vão ao
shopping, fazer compras e tentar “aliviar” um pouco o peso do
trabalho. Elas são adolescentes que se preocupam com a aparên-
cia, e utilizam isso como argumento de brigas, como no episódio
“Presas na idade média com você” (S01E04), onde a Clover “dá
um fora” na Mandy por estar usando roupas de liquidação de
coleções passadas”, promovendo uma espécie de contagem de
foras, (e incentivando as meninas a brigarem entre si, agora, por
questões materiais).
A própria moda está presente também no ambiente de
trabalho, onde percebe-se que o design dos dispositivos foi pen-
sado tendo a moda como referência, como o comunicador em
formato de pó compacto, um batom que sai laser, uma mochila
à jato em formato de coração, etc. Estes objetos precisam passar
despercebidos (elas vão disfarçadas na missão), e possuem for-
matos de objetos comuns que as meninas, por estarem ligadas à
moda, usariam.
No que se trata de marketing, a série lançou uma di-
versa quantidade de produtos e, uma vez que fantoches e ani-
mações criam uma oportunidades de vendas melhores do que
atores de verdade quando na forma de brinquedos e, um time
de protagonistas, como é o caso de
Três Espiãs Demais, adiciona
ainda, em termos de vendas, o fator de coleção; o fato das meni-
nas possuírem personalidades diferentes, faz com que o público
possa se identificar com uma ou mais personagens em especial,
além do fato de que cada uma possui uma cor de uniforme espe-

116
cífica, que pode levar a venda de objetos e acessórios diferentes
para cada personagem;
Em nível de análise de desenho animado, percebe-se
que a construção do desenho utiliza técnicas de produção de-
senvolvidas na era Disney (ainda em sua fase cinematográfica)
e que posteriormente foram aprimoradas por Hanna-Barbera,
como a repetição cíclica dos movimentos, coreografia simples
em números de dança, repetição de expressões, além da ani-
mação ser limitada: em determinados momentos o cenário fica
estático e apenas as espiãs se movem, o que nos leva a enten-
der que existe um privilégio da história em relação ao traçado
(técnicas essa visando facilitar e baratear a produção em larga
escala). Essas e outras questões são válidas, e também cabíveis
de análise.
O que pude concluir com esse artigo é que a questão
do trabalho precisa ser pensada com cuidado, principalmente
por se tratar de um desenho para um público tão jovem e que
possivelmente nunca trabalhou. Em
Três Espiãs Demais existe
uma hierarquia onde as jovens trabalham para um chefe/em-
presa que tem comportamento abusivo e controlador, e quando
reivindicados que esses comportamentos sejam revistos, apenas
há uma resolução utópica para aquele episódio específico, quan-
do existe. São constantes as reclamações em relação a maneira
como elas são transportadas, requisitadas, e tem sua privaci-
dade invadida, porém nada é feito em relação a isso. O chefe
continua mandando e elas, obedecendo.

117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUCKINGHAM, D. Child-centred television? Teletubbies and the
educational imperative. In:
Small Screens: Television for Chil-
dren, Leicester University Press, 2002
IGNÁCIO, P. As pedagogias do consumo no desenho animado
Três espiãs demais — narrativas sobre como ser jovem meni-
na na sociedade do consumo. In:
Revista Texturas, v. 17, n. 34,
maio/agosto de 2015, p. 158-181.
HASSAN, A; DANIYAL, M. Cartoon Network and his impact on
behavior of school going children: a case study of Bahawalpur,
Pakistan. In
International Journal of Management, Economics
and Social Sciences
, 2013, Vol. 2(1), p. 6-11.
PEREA, Katia. Girl cartoons second wave: transforming the gen-
re. In
Animation: an interdisciplinary journal, 2015, vol. 10(3),
p. 189-204.
SIQUEIRA, D. Ciência e poder no universo simbólico do desenho
animado. In
Ciência e Público: caminhos da divulgação científi-
ca no Brasil. Série Terra Incógnita, Casa da Ciência, UFRJ.
STABILE, C; HARRISON, M. Introduction: prime-time anima-
tion: an overview. In Prime Time
Animation: Television anima-
tion and american culture. Routledge, 2003, p. 1-10

118
Análise do filme A Princesa e o
Sapo
Ana Luiza Monteiro Alves
Luís Lessa Sôlha
O presente artigo tem como objetivo analisar o filme
A Princesa e o Sapo, produzido pela Walt Disney e lançado em
dezembro de 2009. A análise será feita a partir de um recorte de
gênero e raça, focando no tema desenho para meninas.
O filme chamou atenção desde a pré-estreia por ter
como protagonista a primeira princesa negra da Disney. Desde
a década de 1930, a empresa produz animações, porém nun-
ca com personagens protagônicos negros(as) e, por esse motivo,
vinha a décadas recebendo críticas. Esse fator chama atenção
principalmente nos filmes que tem meninas como público alvo,
principalmente nas histórias de princesas. Já que muitas me-
ninas são sociabilizadas tendo estas narrativas e personagens
como o ideal de beleza e parâmetro para a construção de rela-
cionamentos afetivos.
Segundo o estudioso de literatura infantil, Peter Hunt
(2013, p. 65), a infância é uma fase em que estamos em um
limbo, onde ainda não adquirimos as habilidades sociais e o
arcabouço cultural dos adultos, mas já nos entendemos enquan-
to pessoas. A quantidade dessa “cultura adulta” que a criança
adquire, além da diversidade, ou não, definirão não só o estágio
que a criança se encontra em sua jornada para se tornar um
integrante da sociedade, mas, principalmente, o quão bem ela
aceitará a diferença.
Dentro desta perspectiva, é importante pensar sobre a

119
representatividade de crianças que fazem parte de minorias so-
ciais. Em um contexto de pouca diversidade nas representações
raciais nas animações, se faz necessário não apenas incentivar
a criação de novas narrativas e representações, mas também
analisar as que exitem até o momento, na tentativa de perceber
quais são seus êxitos e problemas.
Quando direcionamos nosso olhar para as representa-
ções sobre meninas negras, o cenário se complexifica, afinal,
além das representações serem escassas, muitas vezes são car-
regadas de estereótipo que em muitos casos são trabalhados de
forma pouco complexa. Isto, com frequência, acaba por enqua-
drar os personagens em lugares pré-determinados, como se fos-
sem colocados em pequenas caixas, dificultando a possibilidade
de tornar visível outras características, comportamentos e his-
tórias diferentes das que já foram delimitadas e fixadas sobre
o grupo social refletido no personagem. É importante lembrar
que os estereótipos são fundamentais para a interpretação da
realidade em que se vive, porém, a repetição destes com a au-
sência de um tratamento que os complexifique, pode ocasionar
o aprisionamento dos personagens (e o grupo que está sendo
representado) em uma espécie de ciclo em que se vê sempre os
mesmo signos, resultando no apagamento de uma gama de sím-
bolos, histórias e de outras possibilidades para o personagem e
grupo representado.
Percebendo a quase ausência de representações de me-
ninas negras em histórias de princesa, uma grande produção
como
A Princesa e o Sapo se torna muito importante e isso fez
com que fosse aguardada com ansiedade.
A personagem principal, Tiana, foi criada a partir do
princípio do
girl power, que visa mudar alguns aspectos das re-

120
presentações femininas nos filmes, trazendo junto a estas repre-
sentações personagens mais independentes e realizando feitos
heróicos, sem perder, é claro, os elementos chaves dos contos de
fada.
É possível perceber isso em Tiana, que é uma perso-
nagem cativante, que capta a empatia do público e que inclui
várias qualidades, como a luta por seus objetivos, a manutenção
de valores morais ligados a família e honestidade.
O filme traz, como em outras histórias de princesas não-
-brancas, uma série de elementos e símbolos culturais de sua
região natal. Outros exemplos de filmes com essa característica
são
Mulan e Pocachontas. É claro, existem muitas críticas em
relação a alguns aspectos trabalhados sobre estas personagens,
sendo Mulan, talvez, a personagem mais exitosa em relação a
representação cultural e ao conceito de girl power (PEREA p.
190, 2015), por ser representada como alguém independente,
poderosa e autônoma, sem, é claro, perder o respeito por sua
família e cultura.
CARACTERÍSTICAS CULTURAIS E ESTEREÓTIPOS
A Princesa e o Sapo se passa na década de 1920, na
cidade de Nova Orleans, no estado da Luisiana, que fica no sul
dos EUA. Algumas das características culturais desta cidade são
a comida
soul food (tipo de comida afro-estadunidense), o mardi
gras
(uma das festas de carnaval mais conhecidas do mundo),
o
voodoo (religião de matriz africana) e, é claro, o jazz (Nova
Orleans é um dos berços desse estilo musical, que foi criado por
populações negras). O filme conta com a presença de todos estes
elementos em sua narrativa. A trilha sonora do filme é marcada

121
pela presença de jazz, que também aparece em números musi-
cais feitos por alguns personagens.
O
voodoo aparece de forma muito marcante, sendo re-
presentado de forma dicotômica nas figuras da “fada madrinha”
e do vilão do filme. É interessante pensar nesta questão pois, a
exemplo de outros filmes de princesa, a religião tradicional não
foi tratada da mesma forma. Podemos utilizar como exemplo o
filme
Mulan, no qual o templo religioso fica na casa de seus pais
e seus ancestrais e seu protetor (Mushu) são representados po-
sitivamente. No caso de
A Princesa e o Sapo, o vilão utiliza um
misto de elementos de culturas africanas e voodoo para ter po-
der e fazer mal às pessoas da cidade. Esse é um elemento muito
problemático no filme, já que organiza alguns artigos religiosos
de forma a demonizar as religiões de matriz africana. Esse tipo
de representação reproduz racismo religioso e contribui para
que crianças cresçam associando artigos religiosos de matriz
africana a coisas ruins.
No caso de
A Princesa e o Sapo, o figurino da persona-
gem que representa fada madrinha é composto por um turbante
e roupas brancas, estes elementos são referências explícitas a re-
ligiões de matriz africana. Em alguns momentos a personagem
aparece carregando uma cobra. Esta representação também me-
rece ser questionada, dada a construção simbólica cristã que
existe sobre este animal.
A história de Tiana é bem diferente da maior parte de
histórias de princesas que a Disney produziu, a personagem é
de origem pobre, tem mãe costureira e pai cozinheiro. Através
de seu pai a personagem nutre desde criança o sonho de ter um
grande e famoso restaurante em Nova Orleans.
A s
oul food, outro aspecto utilizado no filme, tem esse

122
nome por ser feita com amor, com alma. Isso tem uma relação
muito forte com a história e com a relação que algumas popu-
lações da África tem com a comida, que é parte importante de
rituais religiosos e tem um papel muito importante, também, na
sociabilidade entre as pessoas; essa referência também é bastan-
te explícita no filme.
Alguns elementos da
soul food são galinha empanada,
macarrão e queijo, quiabo empanado, entre outras coisas. Estas
comidas são calóricas e por isso, criou-se nos EUA, uma conota-
ção racista que relaciona este tipo de comida à população negra
e à falta de cuidado com o corpo e a saúde. O estereótipo é cons-
truído dando a ideia de que pessoas negras estão sempre comen-
do comidas gordurosas, de forma irracional, sem se preocupar.
É importante ressaltar isto pois desde o início do filme Tiana, a
personagem principal, tem como objetivo ter um restaurante em
uma região que tem este tipo de comida como uma das carac-
terísticas mais importantes, utilizada até mesmo como atrativo
turístico.
Além da
soul food, existe outro estereótipo racista liga-
do à população negra e à alimentação, neste caso a melancia. A
fruta não existia nos EUA, foi levada por africanos que foram
escravizados. O estereótipo que se criou é que esta população
gostava muito de melancia e por isso comiam a fruta de forma
animalesca. O estereótipo é tão forte, que foram criadas uma
série de imagens que o representam e reforçam, além de ser uti-
lizado o termo
nigga bait (isca de criolo) para se referir à fruta.
Tendo isto em mente, é possível analisar também um
dos produtos que foi produzido a partir do filme. É notório que
desde a década de 1980 são fabricados produtos associados a
personagens de desenhos animados, ocorrendo também o in-

123
verso em alguns casos, produtos que deram origem a desenhos
animados (BUCKINGHAM,2002, p. 03- 04,).
No caso de
A Princesa e o Sapo, um dos produtos mais
controversos foi um doce que foi associado a personagem Tiana,
um doce de sabor melancia. Isso foi feito mesmo sendo ampla-
mente divulgado, desde a década de 1980, o quão negativo e
racista esse estereótipo é.
PERFORMANCE DE GÊNERO
Algo muito questionado pela crítica do filme é o fato
dos personagens principais aparecerem a maior parte do tempo
como um sapo e uma rã. Apenas nos minutos iniciais e finais
do filme eles aparecem em sua forma humana. Mesmo sendo
representados como animais, a performance de gênero é bem
demarcada.
Por ser uma fantasmagoria os personagens podem ser seres
humanos, assim como elefantes, antropomórficos, a personifi-
cação muda mas seu gênero é marcado por padrões femininos
de cílios, por serem dublados por atores de vozes mais agudas,
e terem penteados e roupas direcionados ao gênero feminino.
(PEREA, 2015,p 191)
A utilização de animais em animações é super comum,
porém as críticas iam no sentido de Tiana ser a única princesa
que passa a maior parte da narrativa fora de sua forma humana.
FELIZES PARA SEMPRE CONTROVERSO
Outro elemento que merece ser analisado no caso de A
Princesa e o Sapo
é o final da história. Mesmo que a ideia de
girl power esteja associada à independência, poder e autonomia,

124
Tiana foi enquadrada em um dos esterótipos mais comuns de
mulheres negras: o de cozinheira. Este estereótipo é em parte
quebrado por ela ter seu próprio negócio e ser uma empresária.
Mas a ideia, proveniente da escravidão, que associa o trabalho
doméstico e a cozinha às mulheres negras ainda é muito presen-
te. Neste contexto é importante analisar e comparar a história e
os objetivos almejados por outras princesas, que foram criadas
dentro da ideia de
girl power, muitas delas almejam casar, sal-
var seu povo e algumas salvam até mesmo o seu príncipe.
No caso de Tiana, além de seu sonho ser ter um res-
taurante, o filme deixa claramente a entender que seu castelo
é o restaurante. Ou seja, a princesa mora onde trabalha. Este
elemento final do filme é extremamente problemático, princi-
palmente quando olhamos para a história da população negra
nos EUA e percebemos qual é o período e contexto social em que
negros e negras moravam no mesmo lugar em que trabalhavam.

125
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, Rosane da Silva. Mídia, racismos e representações do
outro: Ligeiras reflexões em torno da imagem da mulher negra.
In: BORGES, Roberto Carlos da Silva, BORGES, Rosane (org.).
Mídia e Racismo. Coleção Negras e Negros: pesquisa e debate.
Petrópolis e Brasília: ABPN, 2012, p.180-205.
BUCKINGHAM, David.
Child-centred Television? Teletubbies
and the Educational Imperative
. Leicester: University Press,
2002
HUNT, Peter.
Crítica, teoria e literatura infantil, ed. 1. São Pau-
lo: Cosac, 2015
PEREA, Katia. Girl Cartoon Second Wave: Transforming the
Genre. In:
Animation: an interdisciplinary journal, SAGE Jour-
nals, Vol. 10(3), p. 189-204, 2015

126
Valente
as disputas discursivas acerca do lugar da mulher nos de-
senhos animados
Anna Carolina A. Martinez
Laura Albano
O presente artigo analisa a animação
Valente, se pro-
pondo, paralelamente ao filme, discutir relações de gênero e
poder, estereótipos e estigmatizações da mulher em contos de
fadas. Buscamos também comparar o filme com outras anima-
ções, a fim de entender a evolução destas questões, disputas dis-
cursivas e como elas se colocam de diferentes maneiras durante
a história.
Ao decorrer da disciplina, desenvolvemos concepções e
aprendizados que nos permitiram olhar mais criticamente para
o desenho animado no audiovisual e na televisão. A partir dos
textos da disciplina e das discussões apresentadas em sala, além
de textos complementares escolhidos por nós, apresentamos o
presente artigo como trabalho final.
Este artigo tem como objetivo principal discutir as rela-
ções de poder acerca do lugar da mulher em desenhos animados,
mais especificamente em contos de fadas, utilizando a anima-
ção da Pixar/Disney
Valente como objeto de análise. Pretende-
mos não apenas elogiar ou criticar, mas complexificar e realizar
comparativos entre o modo como
Valente aborda questões que
antes não foram abordadas ou que foram, mas de uma maneira
diferente. Queremos olhar para as representações imagéticas e
discursivas da mulher nas animações ao longo de sua história,

127
comparando-as com as atuais, no intuito de assim perceber evo-
luções e os novos estigmas que abarcam essas questões.
O FILME E AS DEFINIÇÕES DE CONTOS DE FADAS
Valente (Brave, no original) é a décima-terceira anima-
ção da produtora estadunidense Pixar Animation Studios, lan-
çada em 22 de junho de 2012 nos Estados Unidos e distribuída
pela Walt Disney Pictures. O filme conta a história da princesa
Merida, filha do rei Fergus e da rainha Elinor, uma garota de-
terminada, com um grande senso de liberdade e proporcional
aversão aos “modos” que uma princesa deveria ter segundo a
tradição. Desde criança, sua mãe tentava, sem sucesso, ensiná-
-la a se portar como mandava o costume, mas Merida preferia
caçar, cavalgar e explorar as belas paisagens da Escócia me-
dieval. Quando sua família resolve que é a hora de preparar
seu casamento e escolher o noivo, Merida, que não queria nada
disso, entra em pânico e procura ajuda de uma bruxa para ten-
tar reverter a situação a seu favor. A mágica da bruxa, no entan-
to, prova ser completamente diferente do que a princesa havia
imaginado, transformando sua mãe num grande urso, animal
que seu pai, o grande rei Fergus, abominava, por ter perdido a
perna em combate contra um no passado. Merida, então, precisa
correr contra o tempo para reverter a mágica antes que seu pai
acidentalmente faça mal para a rainha.
Primeiramente, devemos destacar que
Valente foi pro-
duzido para se encaixar na categoria de contos de fadas, mas
segundo o diretor, de uma forma mais “acreditável”. Devemos
notar que a escolha da palavra “acreditável” aqui revela uma

128
preocupação em adequar o filme a valores atuais, ou seja, ele
entende que os contos de fada clássicos não sejam mais críveis
para nossos valores. Sabemos que essas narrativas são variações
de contos populares ou de fábulas, e que remontam a muitos sé-
culos atrás, mas o que exatamente caracteriza um conto de fada?
Segundo Corso, as definições divergem, mas podemos destacar
alguns pontos comuns à maioria e que são explicitados no filme.
Um deles é
a suspensão da lógica comum e a entrada em um reino pecu-
liar fora do tempo e em lugar nenhum, um espaço de utopia
que se inicia quando enunciamos: ‘Era uma vez’. Esse reino é
mágico, mas sempre dessacralizado. A força dessa utopia afu-
genta qualquer necessidade de referir-se concretamente a uma
cronologia, assim como são dispensáveis quaisquer coordena-
das geográficas reais. Com isso, tudo fica genérico.” (Corso,
2011).
Em Valente a temporalidade e a localidade são muito bem defi-
nidas: a história se passa na Escócia, na Idade Média (séc. XII),
tendo inclusive este fato exigido uma longa pesquisa histórica
e geográfica da equipe em torno da vegetação, topografia, e os
hábitos antigos.
No entanto, há elementos comuns em
Valente e os con-
tos tradicionais, com algumas pequenas diferenciações. Pode-
mos destacar o caráter resolutivo da narrativa e também a jor-
nada de crescimento do herói, mas que no caso de
Valente não é
uma pessoa só, e sim o relacionamento de Merida com a família,
especificamente a mãe.
Por maior que seja a desordem da trama, em algum momento
existe um reordenamento, em um patamar superior àquele em
que a história começou. Ou seja, a mensagem é sempre tran-
quilizadora: é possível reorganizar um mundo em desordem,
existe saída para a angústia e o desamparo. (Corso, 2011)

129
O herói faz uma jornada de crescimento. Em geral é leva-
do a isso porque ocorre algo que desequilibra uma situação
inicial em que tudo estava em ordem. É nessa desavença ou
contratempo que a trama encontra seu ponto de partida “...
“Para resolver a situação que criou, ou na qual se viu envolvido,
costuma ser necessário partir, sair de casa, ser expulso, ou
determinar-se a iniciar uma caminhada de busca, uma missão.
(Corso, 2011)
Por fim, há também o maniqueísmo presente nos contos
de fada tradicionais. O bom é sempre bom, e o mau é sempre
mau. Isso é uma tendência que vem sendo questionada não só
em
Valente, mas também em outras animações, como o enorme
sucesso
Frozen, no qual a personagem Elsa, a mais querida pelo
público, começa como uma antagonista.
A EVOLUÇÃO DOS ESTEREÓTIPOS DE PRINCESAS
E RELAÇÕES DE GÊNERO E PODER
Para falar de contos de fadas e do lugar da mulher na
animação, é imprescindível falar sobre os arquétipos e estereóti-
pos de gênero acerca das princesas Disney. Precisamos entender
primeiramente que a sociedade é constantemente influenciada
pela indústria cultural e seus arquétipos.
Os filmes de princesas, extremamente simbólicos, produzem
efeitos psíquicos em seus consumidores, levando a uma pa-
dronização e uniformização. Ao mesmo tempo, entretanto, a
própria sociedade e suas constantes mudanças influenciam a
cultura de massas que, na busca pela representação da vida
cotidiana, do real, acompanha essas mudanças. (LOPES, 2015)
Assim, como um produto da cultura de massa, o dese-
nho reflete a sociedade e seu imaginário na tela da televisão e
pode refletir sua construção na sociedade por intermédio das
crianças. Dessa forma, o desenho animado pode refletir e re-

130
produzir ideologias, violência, relações de poder e transmitir
valores.
Lopes divide as princesas em alguns arquétipos, no qual
podemos dar destaque: a donzela e a guerreira heroína. A don-
zela abarca praticamente toda a representação da mulher nas
princesas clássicas, uma representação feita por e para homens,
essencialmente machista.
Ligada à auto-estima, a beleza sempre foi um aspecto valori-
zado da feminilidade e, ainda, fonte de poder sobre os homens.
Porém, nos anos 60, buscando negar que a beleza e a sexuali-
dade eram aspectos da feminilidade, o movimento feminista
atacou os conceitos até ali existentes por considerá-los uma
ideia “passiva” (RANDAZZO, 1996).
A guerreira heroína, em contrapartida, exibe uma na-
tureza pautada em liberdade, força e coragem. Tem um grande
senso de justiça e é capaz de fazer tudo por aquilo que acredita.
Uma das conquistas realmente importantes do movimento fe-
minista foi fazer com que as mulheres abandonassem os tra-
dicionais “arquétipos femininos” para experimentar a vida na
condição de Guerreiro e Andarilho. Ao mesmo tempo, ao ver
mulheres em papéis não tradicionais, os homens sentiram-se
encorajados a assumir o seu lado carinhoso e sensível, adotan-
do arquétipos que até então eram associados exclusivamente
com as mulheres. (RANDAZZO, 1996, p. 124)
Diante disso, podemos observar que as princesas con-
temporâneas ainda carregam elementos do arquétipo da donze-
la, mas também possuem muito da guerreira heroína. No caso
de
Valente, o arquétipo da guerreira heroína é muito presente, o
próprio cabelo armado e bagunçado já representa uma afronta
estética contra o padrão “super arrumado” da donzela. O filme é
extremamente importante por centrar a narrativa em uma mu-
lher que no final não se casa, não necessita do amor masculino

131
para a trama se resolver. O amor retratado no filme é fraternal
e o conflito se dá pelos valores tradicionalistas da donzela e a
reafirmação de papéis de gênero fortemente introjetados que a
protagonista se recusa a seguir, e que no final consegue vencer.
Não há como afirmar que estes arquétipos retratados
nas princesas contemporâneas são totalmente benéficos para a
luta das mulheres, até porque existem estigmas de outras natu-
rezas, a representação nunca dá conta de abarcar a totalidade
da realidade e os esteriótipos sempre existirão. A dominação
masculina é presente em tudo, a nível inconsciente, homens e
mulheres incorporam “sob a forma de esquemas inconscientes
de percepção e de apreciação as estruturas históricas da ordem
masculina” (Bourdieu, 2003). No entanto há como afirmar que
desde as donzelas, já se percorreu um longo caminho, e que hoje
em dia estes valores tão “tradicionais” e machistas não agradam
mais, sendo até retratados com ironia e de forma cômica nes-
tas animações, mostrando que a independência das princesas se
tornou bastante evidente com o passar do tempo.
Assim como as mulheres não abrem mão de suas conquistas,
as mudanças de comportamento e estética expressas pelas
princesas rebeldes também já estão incorporadas às prince-
sas contemporâneas e a seus estereótipos. Porém, em face da
liquidez da modernidade, esses estereótipos mostram-se ainda
inacabados, em constante transformação. (LOPES, 2015)
CONTRIBUIÇÃO NA CRIAÇÃO DO IMAGINÁRIO
INFANTIL
Os desenhos animados são vistos por muitos como pro-
dutos audiovisuais feitos para entretenimento. Essa ideia de di-
versão como premissa acaba ofuscando a importância que eles

132
têm no processo social, educativo, construção imaginário e vi-
são de mundo do público infantil.
Mesmo considerando-se a importância do elemento lúdico e
da comunicação no processo social e educativo, os desenhos
animados são, em geral, colocados como entretenimento,
como diversão infantil. Mas esse divertimento não é vazio de
conteúdos simbólicos. O elemento lúdico, nos produtos cul-
turais, é sempre desenvolvido por conteúdos outros: político,
cultural, social, religioso, econômico. (SIQUEIRA, 2015)
Como asseverou Vasconcelos, “do ponto de vista sociológico,
pode-se afirmar que a ação de brincar, como o comportamento
que é, permite a percepção social e sua estrutura, levando o
indivíduo a perceber noções tais como: estratificação social,
papéis sociais, poder/autoridade, enfim, as normas sociais”.
(SIQUEIRA, 2015)
A concepção de criança, esse indivíduo que faz parte
da noção infantil, sempre esteve atrelada à ideologia e moral
da época, antigamente (Idade Média) era vista como um ‘mini-
-adulto’; agora a criança é o indivíduo que depende do adulto
para cuidar e ensinar, que aos poucos vai tendo acesso ao “uni-
verso adulto”. Como afirma Juliane Ondino (2004):
Segundo Philippe Ariès, a definição de criança se modificou
de acordo com os parâmetros ideológicos, assim como o de-
senvolvimento da educação que se deu como uma construção
social e se manteve muito ligada à ideia dos cuidados que a
criança demanda para atingir a maturidade.
A partir dessa breve exposição do processo da concep-
ção de criança como conhecida hoje, podemos retomar ao pú-
blico infantil o qual as mídias dirigem, a ideia de criança como
consumidora só foi consolidada a partir da década de 1980, um
dado bastante importante para a nossa análise.
Essas produções direcionadas, os desenhos infantis, são
feitas estrategicamente com linguagem clara e fácil, “a dialé-
tica bem e mal está apresentada de forma bem clara entre vi-

133
lão e mocinho, as personagens propiciam um forte movimento
de identificação por parte das crianças e aparece nos desenhos
muito humor e brincadeiras típicas infantis” (ONDINO, 2004).
Depois de muitas produções voltadas para o público masculino,
a de público feminino infantil surgiu com a mesma estruturação
Ao longo do curso da história, os desenhos acompanha-
ram as mudanças das representações femininas. O binarismo
criado pela indústria de brinquedos trouxe mais fortemente
para as produções audiovisuais conteúdos com marcação de gê-
nero. A principio, as representações femininas bastante estereo-
tipadas, como excessivo uso de cor rosa, com crises emocionais,
dependendo de outro para protegê-la e salvá-la, como é o caso
das Princesas da Disney Clássicas, que fortaleciam os códigos
normativos de gênero. No entanto, essas produções abriram es-
paço para uma reflexão maior sobre o papel social da mulher.
Tempos depois a mulher começa a ser tratada como um indi-
víduo mais independente, atrelado a imagem de heroinas, que-
brando um pouco a lógica patriarcal que viera até então sendo
construída.
Enquanto nos cinemas princesas como
Pocahontas e
Mulan iam surgindo, na televisão desenhos como As Meninas
Superpoderosas
(The Powerpuff Girls) estavam dando conta
dessa outra forma de representar a mulher no produto audio-
visual. Analisando rapidamente a estrutura do desenho, temos
três meninas com superpoderes, fortes enquanto meigas, sendo
criadas por um pai, lutando todo dia com um monstro diferente
que aterroriza a cidade. Veja, mesmo com pontos a ser discuti-
dos que não cabem nessa análise, só com a breve amostra da
narrativa já é perceptivel a mudança de “menina submissa”, re-
tratada em desenhos mais antigos. Elas se apropriam do lugar

134
de herói que antes, em sua maioria, eram representados por ho-
mens e ainda quebram a lógica da família tradicional.
The tradicional presentation of girl characters, and its femi-
nist critique, is that girl characters are represented as depen-
dent on a boy character (...). The mean girl Princess keeps
these identities current and thus limits the Powerpuff Girls
potential in creating a new gender normative coding for girl
identity. (PEREA, 2015)
Para finalizar e reforçar sobre a importância das repre-
sentações e mensagens em geral passadas pelos desenhos ani-
mados, demos espaço para dois trechos do texto que mostram
criticamente de mesma autora (PEREA, 2015):
We never treat the [Powerpuff] girl as girls. We just trat
them as kids...I hope that [little girls] realize that thay can
do anything boys can do; that there’s no difference between
genders. It’s all just life and we all experience the same thing
(MACMILLIAN, 2001:45)
However, girls and boys don’t experience life the same way
because girls are at a sexist disvantage - widespread discri-
mination in sports, education, safety and basic human rights.
McCraken’s sentiments of gender equality and girls as power-
ful, even dominant, represents a post-feminism perspective
that is central critique in the discourse of that era’s Girl Power
media representation. (TAFT, 2004)
CONCLUSÂO
Conclui-se, portanto, que apesar de as narrativas de
desenhos animados/animações atuais ainda trazerem em sua
estrutura traços da construção tradicional, o papel da mulher é
representado de um forma menos normativa e mais como indiví-
duo com sua própria identidade e anseios. Ainda que esteja num
processo de transformação, assim como socialmente, a mulher
ainda luta por direitos e igualdade.

135
Pode-se notar também como as narrativas lúdicas são
importantes para a formação do indivíduo, formação de imagi-
nário, noções de mundo, valores sociais, simbólicos e de poder,
o reconhecimento de si e do outro na sociedade a partir do con-
tato com as histórias infantis. Por isso, desenhos animados como
As Meninas Superpoderosas, e princesas como Merida, Elsa, Po-
cahontas, Mulan, entre outras, são fundamentais para que haja
mudanças no paradigma do que é ser mulher numa sociedade
patriarcal e predominantemente com conteúdos e valores nor-
mativos de gênero.

136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BOURDIEU, P.
A Dominação Masculina. Rio de Janeiro: Ber-
trand Brasil, 2003
CORSO, D. L.
A psicanálise da Terra do Nunca: ensaios sobre a
fantasia. Porto Alegre: Penso, 2011.
LOPES, K.E.L.
Análise da evolução do estereótipo das princesas
Disney
. Brasília, 2015
ODININO, J.
Imaginário infantil e desenho animado no cenário
da mundialização das culturas
. Universidade Estadual de Cam-
pinas . Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, SP,
2004.
PEREA, K. Girl Cartoons Second Wave: Transforming the Genre.
In:
Animation: an interdisciplinar journal, SAGE Journals, 10 nº.
3, 189-204, 2015.
RANDAZZO, S.
A criação e mitos na publicidade: como os pu-
blicitários usam o poder do mito e do simbolismo para criar
marcas de sucesso
. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
SIQUEIRA, D. Ciência e poder no universo simbólico do desenho
animado. In:
Série Terra Incógnita, Casa da Ciência Universida-
de Federal do Rio de Janeiro, 2008.

137
Sakura Card Captors e o gênero
shojo
Aimee Pereira
Alinne Kristine
Ivy Souza

Shōjo, shojo ou mangá shoujo são termos que fazem re-
ferência a determinadas produções de mangás e animes japo-
neses voltados para o público feminino entre 12 e 18 anos
18
.
Dentro do shoujo podem haver produções de diversos gêneros
narrativos, como ficção científica, drama, aventura e até mesmo
subgêneros como o mahou shoujo, que trata de produções onde
há uma personagem central feminina, jovem e com poderes má-
gicos. Ao lado de sua contraparte, o shonen (animes e mangás
voltados para o público jovem masculino), o shoujo é só mais
uma das várias categorizações utilizadas pela indústria japone-
sa quando se trata de animes e mangás. Assim como no ocidente,
onde as produções de desenhos animados são feitas seguindo a
lógica “desenhos para meninas vs. desenhos para meninos”, o
oriente também baseia seus produtos culturais em binarismos.
Segundo Katia Perea, no texto ”Girl Cartoons Second
Wave: Transforming the genre”, a primeira onda de desenhos
para meninas nos EUA ocorreu na década de 1980, quando al-
gumas animações começaram a mostrar personagens femininas,
geralmente abaixo dos 12 anos, que não eram apenas perso-
nagens secundárias, mas sim as líderes de seus grupos (2015,
18 Wikipédia. Shōjo. Disponível em < https://pt.wikipedia.org/wiki/
Sh%C5%8Djo>. Acessado em 05/07/2016

138
p. 190). Essas personagens não precisavam de meninos para
resgatá-las, elas eram as heroínas. Muitas dessas animações
mostravam essas personagens resolvendo conflitos através da
conversa e um dos temas mais recorrentes nas narrativas eram
os dramas pessoais. A segunda onda de desenhos para meninas
ocorre com o aparecimento do desenho
As Meninas Superpode-
rosas no ano de 1998 e, apesar das muitas semelhanças com a
primeira onda, agora as personagens principais não estão mais
presas apenas a dramas pessoais e começam a resolver proble-
mas não só através da conversa, mas também através da luta
física (2015, p. 193). O objetivo desse trabalho é entender como
a lógica dos
girl cartoons pode se relacionar ao gênero shoujo,
levando em consideração que este também é voltado para o pú-
blico feminino jovem e que a maioria das animações orientais
deste gênero se encaixam bem na primeira ou na segunda onda
de desenhos para meninas que ocorreu nos EUA. Além de inves-
tigar essa possível relação, também é um objetivo desse traba-
lho entender as particularidades do gênero
shoujo em relação ao
público para qual é destinado. Não pretendemos aqui dizer se o
ocidente influenciou o oriente e vice-versa, mas sim entender as
semelhanças e diferenças entre produtos audiovisuais que são
voltados ao público feminino. Para isso, vamos analisar aqui o
anime
Sakura Card Captors, produção japonesa que se encaixa
muito bem no gênero shoujo e possui algumas características
presentes nos
girl cartoons.
SAKURA CARD CAPTORS E O MAHOU SHOUJO
Sakura Card Captors é um mangá do gênero shoujo

139
(subgênero mahou shoujo) criado pelo grupo CLAMP
19
e publi-
cado de 1996 a 2000. Foi adaptado para um anime de 70 episó-
dios, 2 filmes e 3 OVAs
20
. No Brasil, o anime foi exibido no canal
a cabo Cartoon Network em 2000 e na TV Globo em 2001. Para
esse trabalho nossa atenção é voltada para a análise do anime.

Sakura Card Captors conta a história de Sakura Kinomo-
to, aluna da quarta série na escola Tomoeda. Sakura, por aciden-
te, acaba encontrando um livro cheio de cartas mágicas, que são
liberadas e se espalham pela cidade quando a menina invoca
sem querer o poder da carta Vento. Essas cartas são conhecidas
como Cartas Clow, desenhadas pelo Mago Clow; cada uma delas
possui um poder diferente e estão relacionadas a elementos da
natureza, ações, objetos etc. A função de Sakura é procurar e
capturar cada uma dessas cartas, com a ajuda de Kerberos (o
guardião do livro) e de Tomoyo (a melhor amiga), para que o
mundo não acabe sofrendo as consequências da liberação dessa
magia. Ao longo do anime somos apresentados a outros persona-
gens, que se tornam amigos ou rivais de Sakura nessa aventura.
Mangás e animes com esse mesmo tipo de narrativa: persona-
gem principal que recebe poderes mágicos de uma criatura ou
artefato e em que o amor tem papel principal na vida das per-
sonagens são conhecidos como
Mahou Shoujo (SANTOS et al,
2008, p. 8). Outras obras muito famosas desse gênero são
Sailor
Moon
, Guerreiras Mágicas de Rayearth e As Meninas Superpo-
derosas: Geração Z, a versão oriental de As Meninas Superpode-
rosas.
19 Grupo de mangakás (cartunistas) muito famoso no Japão, formado por quatro
mulheres: Ageha Ohkawa, Mokona, Tsubaki Nekoi e Satsuki Igarashi.
20 Wikipedia. Carpcator Sakura. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/
wiki/Cardcaptor_Sakura>. Acessado em 14/07/2016

140
A primeira diferença que podemos perceber é em rela-
ção à faixa etária. Enquanto os
girl cartoons são voltados ao pú-
blico feminino infantil, geralmente abaixo dos 12 anos,
Sakura
Card Captors
é voltado ao público jovem, como todos os outros
animes shoujo. Sabemos que a faixa etária de uma produção
é importante, pois é a base que diz de que forma um desenho
será feito. Apesar disso, muitos desenhos que foram feitos para
um determinado público acabam ganhando a atenção de outros
públicos, também. Assim como
As Meninas Superpoderosas
- desenho americano voltado para o público feminino infantil
- ganhou os corações de públicos mais velhos,
Sakura Card Cap-
tors conquistou também o público infantil, apesar de ser voltado
para uma faixa etária mais jovem. O fato desse anime ser um
conhecido de quem era criança no início dos anos 2000 deve-se
ao fato de ter sido exibido no canal fechado Cartoon Network,
famoso por exibir produções para o público infantil. O anime
também foi exibido em outros países, mas em alguns, como
EUA e Canadá, ele sofreu censura severa por exibir conteúdo
considerado impróprio ao público-alvo das emissoras desses pa-
íses. Além de ser censurado, no Canadá os cortes foram feitos de
modo a focar no personagem masculino da série, Syaoran, para
atrair o público masculino ao invés do feminino
21
.
Quando se fala em conteúdo de mangás/animes
shoujo,
os temas são bem variados e os cenários podem incluir “amores,
disputas, desilusões, competição e morte dentro de cidades, es-
colas, castelos ou florestas, trazendo um aspecto fantasticamen-
te real dentro de uma situação fantasiosa.” (FARIA, 2007, p. 12).
21 Cardcaptor Sakura Wiki. Cardcaptors. Disponível em <http://cardcaptor-
sakura.wikia.com/wiki/Cardcaptors>. Acessado em 19/07/2016

141
Além disso, a produção desses mangás/animes voltados para o
público feminino é feita com base em pesquisas, onde o público
responde quais são os temas e preferências que gostariam de
ver na televisão. Assim, algumas outras características comuns
nessas produções são “histórias com fantasias, ação e romance,
heroínas fortes, determinadas e meigas, que se sacrificam pelo
amor, rivalidade, amores impossíveis etc” (FARIA, 2007, p. 13).
Considerado um anime do gênero
shoujo, Sakura Card Captors
apresenta muitas das características comuns a esse gênero em
sua narrativa. Logo nos primeiros episódios é possível perceber
que o anime trata das relações interpessoais que cercam a per-
sonagem principal, uma menina de 10 anos. Mesmo tendo ape-
nas 10 anos, os temas apresentados ao longo do anime geram
uma identificação por parte do público, pois são temas comuns à
faixa etária ao qual o anime é dirigido. Logo no primeiro episó-
dio (“Sakura e o Misterioso Livro Mágico”) vemos a personagem
principal se apresentar e apresentar sua escola, sua família, sua
melhor amiga e seu interesse amoroso. Esses são os pontos prin-
cipais na maioria dos shoujos: as relações entre a personagem
principal e esses outros personagens.
Sakura é a personagem principal, a estudante que do
dia para a noite se vê como heroína. Podemos relacionar Sakura
à primeira onda de desenhos para meninas tendo em vista que
ela não é uma personagem secundária e a segurança de sua es-
cola, família e cidade depende dela e de suas habilidades. Além
disso, a construção feminina de Sakura é semelhante à constru-
ção presente nos primeiros desenhos para meninas. Ela é fofa,
gentil, se assusta facilmente e é possível ver que seus objetos,
roupas e quarto são tipicamente femininos: há muitas flores, co-
res claras, estrelas, asas e bichinhos de pelúcia. As roupas são

142
um ponto muito importante na construção da personagem em
si como heroína, já que a utilização das fantasias, feitas por sua
melhor amiga, toda vez em que ela sai para capturar uma carta
é algo presente em quase todos os episódios. Mas, mesmo sendo
a heroína da história, Sakura é uma menina insegura de suas
habilidades e se sente ainda mais insegura quando outro perso-
nagem aparece na série. Esse outro personagem é Syaoran, que
também está à procura das cartas e que não faz questão de ser
gentil com Sakura, sempre apontando os defeitos e inabilidades
da menina. Ter um personagem masculino minimizando a per-
sonagem principal é algo bem problemático em um produto cujo
público alvo é feminino. Esse tipo de personagem masculino
secundário é comum nos shoujos, principalmente os que se pas-
sam em ambiente escolar. Na maioria das vezes também é esse
personagem masculino que no final do anime percebe a força
e o valor da personagem feminina, que está sempre tentando
provar a ele que não é fraca. Em
Sakura Card Captors não é
diferente, no final do anime Syaoran e Sakura acabam gostando
um do outro e desenvolvendo uma amizade e parceria na busca
pelas cartas.
Segundo Katia Perea, na primeira onda de desenhos
para meninas é comum encontrar dois tipos de personagens se-
cundários que tentam atrapalhar o empoderamento feminino: o
menino misógino ou homofóbico e a menina má (2015, p. 192).
Não é realmente possível dizer se Syaoran seria esse tipo de
personagem masculino secundário. Homofóbico não se encai-
xaria, pois desde o momento em que ele aparece fica claro sua
“paixonite” pelo personagem Yukito, o mesmo rapaz por quem
Sakura é apaixonada. Em relação à misoginia, Syaoran não di-
minui Sakura por ela ser menina, mas sim por acreditar que ela

143
como uma card captor não é capaz de realizar o trabalho, já que
não recebeu o treinamento que ele recebeu. O mais próximo
de menina má que podemos ver no anime é a personagem Mei-
lin, prima de Syaoran que chega de Hong Kong com a intenção
de ajudá-lo na captura das cartas. Meilin vê em Sakura uma
rival, já que é apaixonada por Syaoran e não quer ver outra
menina perto dele. Ela acaba fazendo de tudo para ser melhor
que Sakura e não se conforma quando não consegue. Diferente
da personagem principal, Meilin é escandalosa e mimada, co-
locando não só a própria vida em perigo, como a de Syaoran
também por causa de sua teimosia. Essa figura da menina rival
não é comum só nos desenhos americanos para meninas, mas
nos shoujos também, principalmente relacionada a uma disputa
amorosa. No caso aqui em questão, Sakura ainda não vê Syao-
ran dessa maneira, é apenas a paranoia de Meilin que a faz ver
Sakura como uma concorrente.
A semelhança entre o anime e a segunda onda de de-
senhos animados para meninas é o fato de Sakura não resolver
os problemas apenas usando inteligência e lógica. Ela usa esses
dois atributos em muitos episódios, já que a maioria dos pro-
blemas que encontra ao tentar capturar as cartas é de natureza
lógica. Ela precisa pensar em estratégias, escolher de forma in-
teligente qual carta e poder usar para capturar outra. Mas, além
desses atributos, em alguns episódios vemos Sakura recorrendo
a habilidades de luta para vencer determinadas cartas, como no
episódio 20 (“Sakura luta com a nova aluna”), onde a carta que
Sakura precisa enfrentar é a carta Luta. A carta Luta só enfrenta
alguém que seja muito forte e, a princípio, a pessoa escolhida é
Meilin. Vendo que Meilin acabará perdendo, Sakura decide usar
a carta Força, que ela já havia capturado anteriormente, para

144
enfrentar a carta Luta. Sakura vence. A bravura e esperteza dela
frente a esses obstáculos também são características presentes
na segunda onda de desenhos animados para meninas, que pos-
suem ainda características da primeira onda, mas que agora tra-
balham com heroínas que vão além dos dramas pessoais e da
conversa (PEREA, 2015, p. 193).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por mais que possamos traçar características semelhan-
tes entre os mangás/animes do gênero
shoujo e os denominados
girl cartoons, encaixar um produto em outro é uma tarefa im-
possível e, até mesmo, injusta. Cada uma dessas categorias pos-
sui suas particularidades e especificidades, tendo em vista que
são produtos de origens diferentes. Apesar de serem voltados
para o público feminino, cada um tem como público alvo meni-
nas de faixas etárias diferentes. Enquanto os girl cartoons são
voltados para meninas abaixo dos 12 anos, os shoujo geralmente
abordam temas mais interessantes para o público acima dos 12
anos. O anime que escolhemos trabalhar aqui, particularmente,
apresenta personagens principais e algumas narrativas que são
voltadas para um público mais novo. Mesmo assim, alguns te-
mas ainda têm como alvo o público jovem. Além das diferenças
em relação à faixa etária, é importante considerar também que
são produtos inseridos em culturas diferentes. O que é produ-
zido para determinada faixa etária no Ocidente não necessaria-
mente é o que está sendo produzido para aquela mesma faixa
etária no Oriente. As narrativas particulares de cada um des-
ses produtos dependem intrinsecamente das relações culturais
onde estão inseridas.

145
O que podemos concluir é que há, tanto no Ocidente
como no Oriente, uma movimentação de tentar empoderar mu-
lheres através desses produtos audiovisuais. No Ocidente isso
ocorreu na década de 1980, com a primeira onda de desenhos
para meninas. No Oriente isso ocorre a partir de 1966, quando
as mulheres começam a entrar no mercado de trabalho para
fazer mangás, já que essa área, antes dominada por homens,
começa a carecer de desenhistas que entendessem seu público
alvo e que dessem conta das problemáticas referentes a ele (SIL-
VA, 2007, p. 7). Além de existir, no Japão, um grande número
de produtos voltados ao público feminino, a maioria das autoras
de mangás
shoujo são mulheres (FUJINO, 1997, p. 15-18). O em-
poderamento feminino, nesse contexto, acontece no fato de que
há mulheres produzindo conteúdo midiático para mulheres. No
Ocidente, por mais que haja um movimento em direção ao em-
poderamento feminino e à busca por esse público, não podemos
dizer que esses produtos estão sendo produzidos de mulheres
para mulheres. Cada caso é bem específico e só podemos torcer
para que essa preocupação em dedicar produtos não só específi-
cos para meninas, mas também com representações empodera-
das das mulheres, continue a acontecer e que, no Ocidente, mais
mulheres tenham espaço na indústria dos desenhos animados,
assim como as mulheres tem um papel importante na indústria
dos mangás/animes japoneses voltados para meninas.

146
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FARIA, M. História e Narrativa das Animações Nipônicas: Al-
gumas Características dos Animes. In:
1º Encontro Juventude,
Consumo e Educação
, v.1, 2007, Porto Alegre.

FUJINO, Y. I
dentidade e Alteridade: A Figura Feminina nas Re-
vistas Ilustradas Japonesas nas Eras Meiji, Taishô e Showa. São
Paulo: ECA/USP, 2002.
PEREA, K. Girl Cartoons Second Wave: Transforming the genre.
In:
Animation: an interdisciplinary journal. Vol. 10(3), 189-204.
2015.
SANTOS, H. et al. A construção de gênero nos animes Sakura
Card Captors e Yu-Gi-Oh!. In: Intercom,
X Congresso de Ciências
da Comunicação na Região Nordeste
. São Luís, MA. 12 a 14 de
junho de 2008.
SILVA, V. Mangá feminino, Revolução Francesa e feminismo: um
olhar sobre a Rosa de Versalhes. In:
História, Imagem e Narrati-
vas, Vol. 5, 2007, p. 4.

147
South Park
uma outra visão sobre a sociedade
Pedro Lasevitch
Thales C. Menezes

South Park é uma sitcom animada estadunidense cria-
da por Trey Parker e Matt Stone para o canal Comedy Central.
Destinado ao público adulto, o programa tornou-se alvo de de-
bates por suas críticas através de humor negro, cruel, surreal e
satírico que abrange uma série de assuntos. A narrativa padrão
gira em torno de quatro crianças — Stan Marsh, Kyle Broflovski,
Eric Cartman, e Kenny McCormick — e suas aventuras bizarras
na cidade de nome igual ao título do programa: South Park.
Eric Cartman é a personificação de tudo que uma pes-
soa não deve ser. Ele é “politicamente incorreto” e antissocial.
Ele se comporta e reage excessivamente a tudo, criado pelos
autores expressamente para destacar o ridículo do racismo, a
misoginia, o legalismo, injustiça, ignorância e outras pragas so-
ciais. Ele também serve para mostrar como é fácil, nos meios
de comunicação social, qualquer material doido ganhar tração
e seguidores simplesmente compartilhando opiniões desagradá-
veis e brincando sobre temas que muitos consideram ofensivos.
Não há como negar que o show é terrivelmente ofensivo, mas
esta ofensividade exacerbada é uma paródia deliberada e sem
remorso de toda a máquina de mídia social e um reflexo do
microcosmo humano de que a mídia social é,
South Park muitas
vezes também pode ser tratado como uma visão de “internet

148
projetada”, já que os personagens da série raramente mascaram
seus preconceitos ou possuem qualquer tipo de decoro social.
A relação de
South Park com a internet não se limita
apenas às suas semelhanças paradigmáticas, a primeira apari-
ção dos personagens principais da série pode ser rastreada de
volta para um cartão postal virtual natalino, encomendado pela
FOX para os criadores da série, o cartão postal retratava um
grupo de crianças assistindo a uma luta entre o Papai Noel e
Jesus, o cartão rapidamente viralizou e fez um sucesso na rede,
esse sucesso levou à encomenda de 13 episódios de uma anima-
ção na qual os membros do cartão fossem os protagonistas. A
“sensação” era tanta que antes mesmo da estreia da série, já exis-
tiam mais de 250 sites não oficiais sobre ela e seus personagens.
SOUTH PARK E AS RELIGIÕES
Os criadores de South Park afirmam que não discrimi-
nam nada, pois fazem graça de tudo, sem se preocuparem se
é algo que pode ofender alguém. Já perderam até dubladores
devido a temas que não agradavam aos mesmos. O dublador do
personagem “Chefe”, Isaac Hayes, por exemplo, era um seguidor
da Igreja da Cientologia, e acabou que se demitiu por se recusar
a fazer parte do episódio que fazia graça das pessoas que acre-
ditavam naquela religião.
Porém as sátiras de
South Park não são apenas socos
sem sentidos em pontos sociais ou crenças religiosas. Por exem-
plo, no episódio “All About the Mormons”, ao mesmo tempo na
qual eles ridicularizam as crenças mórmons e de carona algu-
mas outras religiões judaico-cristãs, eles fazem questão de mos-
trar que a família do personagem mórmon, Gary, é bem mais

149
feliz e em harmonia do que a família do Stan e terminam o
episódio com um discurso sobre aceitação religiosa, indepen-
dentemente de crenças e como muitas vezes as diferenças entres
as bases das religiões podem causar atritos desnecessários.
Outro ponto no qual
South Park bate de frente com as
religiões é quando muitas vezes ele gravitaciona entre conside-
rar seus mitos como reais ou simplesmente as considerar “ami-
gos imaginários para adultos”, como no episódio de três partes
“Imaginationland” onde, ao viajar para a terra da imaginação,
Butters encontra Jesus Cristo entre personagens de videogame,
mitos da literatura e outras figuras do imaginário popular.
MATURIDADE
South Park utiliza-se do fato de que seus personagens
principais são crianças para interpretar de um ponto de vista
infantil a falta de maturidade da nossa sociedade; os adultos
na série são sempre retratados como incapazes, superficiais e
infantis. Muitas vezes cabe as crianças resolverem os problemas
criados pelos próprios adultos. Uma crítica muitas vezes bem di-
reta à sociedade atual, que prefere ignorar problemas gritantes,
apenas para que eles cresçam no futuro e sejam problema das
gerações futuras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
S outh Park é uma série de comédia crítica que conse-
gue alcançar muito bem seu objetivo, o de apontar o dedo para
os problemas do mundo e muitas vezes para a cara do próprio
telespectador e não só forçá-lo a encara seus defeitos como tam-

150
bém ao fazê-lo rir deles, criando assim uma imagem crítica, po-
rém bem-humorada, da sociedade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
STABILE, C; HARRISON, M. Introduction: prime-time anima-
tion: an overview. In
Prime Time Animation: Television anima-
tion and american culture. Routledge, 2003, p. 1-10
WEINSTOCK, J. A.
Taking South Park Seriously. State University
of New York Press, 2008.

151
South Park
uma série em desenho animado, de humor pesado
Ana Gabriela D’Ávilla
Raphael Ribeiro
Como um desenho direcionado para o público adulto,
South Park, criada por Trey Parker e Matt Stone, teve sua pri-
meira aparição em agosto de 1997 nos Estados Unidos para o
canal Comedy Central. Desde então se tornou o programa mais
aclamado e duradouro do canal, apesar da oscilação em sua
audiência.
Sua narrativa comumente gira em torno dos 4 perso-
nagens principais - Eric Cartman, Stan Marsh, Kyle Broflovisk
e Kenny Mccormick - e suas vidas na cidade de South Park. As
quatro crianças em questão são personagens carregados de ca-
racterísticas próprias que são claramente trabalhadas ao longo
dos episódios e as histórias acerca de seu mundo vêm carrega-
das de um humor polêmico, voltado para os adultos, mas tam-
bém com grandes críticas ao mundo e à ações dos seres hu-
manos (principalmente os adultos). Porém, apesar de críticas
que realmente são importantes para a sociedade e precisam ser
levantadas, é nítida a falta de critério em relação ao que se pode
ou não fazer piada.
A série de desenhos já ganhou inúmeros prêmios e está
categorizada como melhor desenho em diversas listas, além de
ser o terceiro desenho animado mais antigo na televisão ameri-
cana, atrás apenas de
Os Simpsons e Arthur.

152
CARACTERÍSTICAS ESTÉTICAS
Algo interessante a ser ressaltado inicialmente a respei-
to do desenho como animação e suas características estéticas, é
a simplicidade encontrada no seu padrão de traços. Inicialmen-
te
South Park foi produzido através da animação de recortes e,
apesar de atualmente ser feito digitalmente através de progra-
mas como Corel Draw e Maya, o desenho permanece com as
mesmas características, já que tais programas são capazes de
simular o efeito que uma animação de recortes oferece.
(...)essa é uma técnica característica de animação que no pro-
cesso de criação pode ser usado de tudo! Papel, cartão, foto-
grafia e até tecidos mais duros para fazer os personagens e os
cenários. A partir daí o processo é o mesmo usado em grande
parte das animações: fotografar os quadros e colocar tudo em
sequência para gerar a impressão de movimento.
22
Apesar de uma animação voltada para adultos e com o teor mo-
ral um tanto problemático, algumas características tradicionais
de desenhos animados estão presentes em
South Park:
- Não existe a necessidade de ligação com o real, ou seja,
acontecimentos impossíveis são “permitidos” sem que haja ques-
tionamento nesse sentido. Por exemplo: uma toalha que fala e
fuma maconha.
- A questão da moral, que foi implantada desde o início
dos desenhos, está também presente aqui. Além de em muitas
22 Agência Rastro. Entre recortes de papel animados e a neve. In: Anima Mundi.
Disponível em: <http://www.animamundi.com.br/entre-recortes-de-papel-ani-
mados-e-a-neve/ >. Acessado em 17 de julho de 2016 (adaptado)

153
narrativas, um dos personagens principais claramente fazer um
discurso sobre a moral da história do episódio (neste momento,
costuma haver uma mudança no tom de voz do personagem, e
fundo sonoro característico também) ou apenas estar implícito
no enredo uma mensagem específica, por exemplo: em um de-
terminado episódio, é abordado o tema piolhos nas escolas. A
história segue ao mesmo tempo no mundo dos humanos e no
mundo dos piolhos. Neste segundo, é possível traçar um parale-
lo de seu enredo com o nosso mundo, a partir do momento que
um dos piolhos tenta chamar atenção para “o mundo em que
vivem”, a possibilidade daquele mundo ser um ser vivo e estar
sofrendo com as alterações no ecossistema que eles estariam
causando. Aqui está presente uma comparação clara e crítica
para com problemas que temos no nosso ecossistema e que pre-
cisam de atenção. É ainda possível encontrarmos traços satíri-
cos com filmes de Hollywood como
O dia depois de amanhã ou
2012.
23

Em um outro episódio, o tema racismo é também trazi-
do à tona, dessa vez num embate entre crianças e adultos, onde
os adultos tem uma dificuldade maior para entender os proble-
mas da sociedade e o preconceito que rodeia a temática, en-
quanto as crianças conseguem lidar melhor com os problemas e
serem mais simpáticas com eles.
Ao mesmo tempo que o desenho é capaz de abordar
temas importantes como racismo, homofobia, política, religião,
ecossistema e possuir no seu próprio enredo personagens tran-
23 Exemplo referente ao 3º episódio da 11 º temporada de South Park. Dispo-
nível em: <http://www.redecanais.com/south-park-11a-temporada-03-piolhos-
-video_a4a1fb322.html>.

154
sexuais, negros e religiosos, não existe um critério sobre limites.
Tudo é passível de “zoação” e é através dela que os debates são
trazidos ao centro da discussão, sendo que não existe preocupa-
ção com a moral diretamente.
Diversas críticas sobre a forma que humorizam e satirizam ques-
tões importantes originaram pedidos de suspensão de alguns
episódios ao longo dos anos, porém, aparentemente, não foram
capazes de diminuir a popularidade do desenho ou sequer mu-
dar a visão dos autores em relação a forma que abordam deter-
minados assuntos.
HUMOR PESADO: O QUE SERIA ISSO?
Nos coube problematizar um pouco a construção hu-
morística do desenho. Muitos telespectadores e críticos con-
vencionaram a chamar de humor negro, apontando para uma
produção que se propõe a fazer seu humor rompendo com os
limites do respeito e da moral. Indo nessa perspectiva, porém
não aderindo ao termo pregoado pelo senso comum visto sua
marca discriminatória, pretendemos observar que tipo de cons-
trução de humor é essa, e qual impacto teve na recepção do pro-
grama. S
outh Park é uma animação irreverente, protagonizada
por quatro jovens garotos que moram na cidade de South Park,
nome que dá nome ao
sitcom. Esta cidade fica localizada em
Colorado, onde frequentemente ocorrem algumas situações fora
do comum. Longe de serem personagens considerados dentro
de um padrão de normalidade que se espera, onde sejam bem-
-comportados, os meninos falam muitos palavrões e tiram sarro
de tudo e de todos - desde ícones da cultura pop até Jesus Cristo.
Num vídeo de análise, a dupla de youtubers do canal Pipocan-

155
do
24
apontou alguns episódios como os mais pesados da série,
justificando o motivo
25
.
Através da inocência das crianças sobre alguns temas,
percebemos uma possível crítica presente em quase todos os
episódios da série. Aparentemente, a maioria dos adultos de
South Park são carregados de preconceitos e visões errôneas do
mundo, visões essas que são culturalmente construídas ao longo
do crescimento de um indivíduo e o contexto social que estão
inseridos - traçando aqui também um possível paralelo com o
mundo real - sendo assim, as crianças, ainda não carregadas
dessa influência e, portanto, inocentes, conseguem ver o mundo
de forma mais simples, e entender questões que seus pais e ou-
tros adultos não conseguem entender - talvez por isso sejam elas
quem estão presentes no momento moral das histórias. Esse ce-
nário, no qual crianças são capazes de solucionar problemas, ou
expor opiniões menos contraditórias e mais respeitosas - apesar
de suas características infantis, as piadas sem critério que estão
presentes o tempo todo no programa - acerca de questões que
devem de fato ser problematizadas, exemplificam essa teoria de
uma constante crítica presente no desenho do adulto vs. criança.
A MÍDIA E A SÉRIE
A televisão norte-americana, ou talvez a mídia como
um todo, se construiu ao longo dos anos de forma que diversos
24 Canal Pipocando. Youtube. Disponível em <https://www.youtube.com/pi-
pocandovideos>.
25 Canal Pipocando. Os 5 episódios mais polêmicos de South Park (+18). Dispo-
nível em <https://www.youtube.com/watch?v=XBhXbikX6uA>

156
setores e segmentos se alimentassem mutuamente. Ainda que
existam claras diferenças, conflitos entre estúdios e canais, o
show business se estruturou através de uma prática autofágica
de publicidade que não só sustenta os Estados Unidos no impe-
rialismo cultural, como enrijece um verdadeiro grande negó-
cio, uma máquina que funciona com vários braços. Está lá, na
primeira ementa da Constituição, uma liberdade de expressão
que se traduz na “não intervenção” do Estado e que, com isso,
possibilita a circulação de ideias – que representem, em muitos
casos, alguma possibilidade de retorno mercadológico. É quase
inexistente no Brasil uma análise da mídia nacional tão liber-
tária, direta, mordaz e inteligente como S
outh Park é para os
Estados Unidos. Além das razões óbvias já explicitadas aqui, que
diferenciam a estrutura midiática – que é também política – dos
dois países, vale pensar o quanto a aceitação do humor negro,
da referência direta a figuras em instâncias de poder e da com-
pleta ausência de limites no que diz respeito aos bons costumes
encontram, em
South Park, representatividade das mais geniais
na televisão norte-americana.
Claro que a série não é um fenômeno isolado, mas um
desenvolvimento de um próprio espaço dentro da televisão que
permitiu a existência de programas como Beavis and Butt Head,
Jackass, dentre outros anteriores. Mas em
South Park há uma
linha que parece ter sido cruzada, e aí vem a questão: qual li-
nha, efetivamente, seria esta? A televisão, como instrumento de
representação, acaba sendo um filtro da circulação de pensa-
mentos e ideias que ocorrem mais livres em ambientes como a
internet e as ruas, onde, geralmente, não há censura direta da
expressão por instituição formal. Há regras em várias instâncias,
o que pode ser dito e o que não pode ser dito, os bips no lugar

157
de palavrões, postura de apresentadores, postura de convidados,
etc. Havendo a vontade de liberdade de expressão ou não, qua-
se não existe plena liberdade, mas um caminho possível, uma
busca de flexibilidade dentro das regras – um provável paradig-
ma da própria televisão na contemporaneidade. E é exatamente
neste ponto que
South Park pode passar a ser encarado como, de
certa forma, um fenômeno midiático de resistência atípico, que
ao mesmo tempo em que busca bater de frente com o comum,
o padrão e a moralidade, é totalmente fruto de um espaço que
se deu para sua própria existência, ou seja, hoje a série trans-
forma todo seu impacto em entretenimento puro, um cinismo
“da moda”. Reflete, portanto, um estado de estetização de uma
crítica ou pensamento de oposição a um sistema, ideia ou moral
vigente estabelecendo-se na sua forma, mesmo pelo seu conteú-
do, como um instrumento de diversão.
FORMA E CONTEÚDO
A série buscou se estruturar desde o início com uma
linguagem que gerasse sempre um estado de primitivo, de cola-
gem, de brusco. Com o tempo a animação da série visivelmente
evoluiu, mas sua essência no que diz respeito a desenhos, mo-
vimentos e recortes permanece próxima da proposta inicial de
ressaltar o ridículo das situações apresentadas. O posicionamen-
to praticamente sempre em um mesmo plano, sem profundidade,
traça um espaço teatral ao desenho, uma perpendicularidade
com o olhar que não só enfatiza o caráter 2D, como direcio-
na os personagens sempre para o espectador. Existe o mundo
dentro de
South Park, completamente absurdo, como um espe-
lho distorcido da nossa mediocridade. Não há lugar para poesia,

158
portanto, neste universo. Toda e qualquer forma de expressão é
apenas uma deixa para que a estupidez, o preconceito, o sarcas-
mo e o cinismo se sobreponham a qualquer virtude.
Ao propor uma representatividade estética do mundo
que denuncia seu caráter construtivista (o recorte),
South Park
define-se completamente como instrumento de representação
crítica, de “contra hegemonia”. Se existe de um lado a ideia de
boa qualidade, busca por uma perfeição dentro do universo dos
desenhos (Disney, Pixar, Dreamworks e etc), existe S
outh Park e
outros na busca pelo “traço falível”, no caso da série em questão,
uma tentativa de exprimir o signo do caos que devidamente se
instala narrativamente. E talvez seja definitivamente esta ques-
tão que diferencia hoje a política de representação e a publicida-
de da política de representação. Enquanto existe em momentos
no cinema (principalmente contemporâneo) escolhas estéticas
que busquem vender um propósito crítico (o dito cinema publi-
cidade), há de outro lado a linguagem como uma afirmação por
si só, como é o caso de
South Park.
A série é também uma peça de entretenimento que bus-
ca tomar como matriz a falibilidade da comunicação humana,
abraçando a quebra do politicamente correto através da explo-
ração máxima do humor negro. Um problema de fala em um
garoto deficiente físico que quer fazer
stand up comedy torna-
-se mais que uma ferramenta de humor, mas um elemento que,
dentro da dialética existente nos vários episódios da série, torna
este garoto mais uma peça de destruição de uma moral social-
mente criada, o conservadorismo desde o mais óbvio ao mais
velado. Através do embaraço visto nas diversas situações colo-
cadas dentro da série, é possível ver, nos vícios espalhados pe-
los diversos grupos, uma tentativa de desestruturar as barreiras

159
existentes entre estes mesmos grupos. Racismo aberto, piadas
com deficientes, depreciação da mulher e do idoso, disparida-
des socioeconômicas, tudo isto faz parte daqueles personagens
e, colocados no exagero, acabam por abrir feridas em todos os
setores de comunicação. Mais que isso, a utilização direta destas
ferramentas de expressão expõe uma distorção do preconceito
analisando como a baixa autoestima, o paternalismo e todas as
tentativas de “bom convívio” das diferenças acabam por enfati-
zá-lo e pior, torná-lo latente. Se é preciso de um lado lutar contra
este preconceito, é preciso mais ainda entender seus meios de
operação.
O niilismo e a descrença vigentes na sociedade real, que
se refletem bastante na forma como a comunicação se efetiva
através da criação de uma sociedade “ideal”, representações
ficcionais – criação de ídolos, de modelos -, são essências que
circundam a criação e tonalidade de
South Park. Os problemas
do mundo da mídia, estes que são apontados em diversas esferas
críticas, estão de certa forma absorvidos por parte da socieda-
de, tanto que, muitas vezes, eles continuam existentes e visíveis
sem que isso gere um efetivo incômodo. E como a mídia repre-
senta não só poder, mas também este universo de sociedade
ideal, virtuosa, os “crimes da mídia” acabam sendo velados pelo
controle existente dentro deste próprio sistema. Em um episódio
específico da série é mostrada a exploração de toda e qualquer
atividade de Britney Spears, expondo parte do que é realmente
a cobertura da mídia sobre a carreira/vida desta cantora. Ela
acaba se deprimindo e tenta um suicídio com um tiro de escope-
ta na cabeça que, bem, acaba não dando certo: sobra a Britney
viva com apenas o corpo e a mandíbula. Tirando a questão hi-
perbólica, é possível ver como realmente muito pouco se difere

160
do tratamento dado na realidade e do tratamento dado na série.
E o mais interessante é como o humor nascente de tudo isto des-
creve um verdadeiro deboche da aceitação de “ridicularidades”
óbvias existentes na mídia norte-americana. De alguma manei-
ra,
South Park é um desenho sobre como a ficção intersecta a re-
alidade corrompendo a vida pela constituição de uma sociedade
midiática.
Em um complexo social que por mais que coloque a
liberdade como ponto de partida, elabora diversas tensões no
caminho até uma efetivação de uma política realmente aber-
ta à aceitação, é crucial ter
South Park como um elemento de
desconstrução de toda e qualquer imagem existente da cultura
norte-americana. Por mais que o seu caráter crítico funcione
pelo viés do humor – e o humor é uma excelente forma de críti-
ca, por mais que esta possa se perder dentro dos efeitos naturais
que produz -, a visão antropológica da série reflete um estado de
desorganização e caos que surge pela incompetência na organi-
zação, na lei, na hierarquia, ou mesmo na relação com a história
e a memória. S
outh Park é, se encarado como fenômeno poltico,
quase uma utopia, praticamente uma oposição a tudo e todos
que, exatamente por isso, não se constitui como um manifesto
sólido em sua totalidade. Entretanto, Trey Parker e Matt Stone,
criadores, não estão aqui necessariamente para fazer este mani-
festo ou mudar o estado das coisas. Eles são a desconstrução, o
produto de um negócio que deu e dá certo na mídia norte-ame-
ricana – grandes estúdios “liberais” que recrutam pequenos ta-
lentos independentes -, sendo, não menos por isso, detentores de
um modo de fazer que desconcerta as noções de humor.

161
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode parecer apenas mais um desenho animado, com
aparência independente, mas nos primeiros minutos já é pos-
sível notar que não se trata de uma animação qualquer. Sen-
do um desenho direcionado para o público adulto, é por vezes
considerado como obsceno, vulgar e em certa medida insolente,
mas trata-se na verdade de uma crítica sobre muitos aspectos da
cultura norte-americana e eventos históricos recentes com uma
leitura politicamente incorreta da sociedade. Distribuída pela
Warner Bros desde 1997, o desenho se tornou sucesso não ape-
nas nos Estados Unidos, mas em outros países e apesar de man-
ter a aparência de animação independente, movimenta milhares
de dólares e utiliza recursos de última geração para criação dos
episódios.
A animação dirige críticas a inúmeros personagens da
política internacional, como Fidel Castro, Barak Obama, Osa-
ma Bin Laden, personalidades e produções do mercado do en-
tretenimento e cultura de massa (cantores, esportistas, filmes,
reality shows entre outros) e movimentos como os mórmons, a
cientologia, a ku klux klan e outros. Embora outras séries apre-
sentem caráter crítico, como
Os Simpsons e Family Guy, o que
diferencia
South Park é que este apresenta uma crítica da pró-
pria mídia que deu espaço para sua existência com uma ironia
inteligente e cinismo ousado que desafia pelo ataque crítico em
meio a proposta de ser um instrumento de diversão. Não estan-
do comprometido com nenhuma visão específica, direciona as
farpas irônicas para todos os lados, de liberais a conservadores,
religiosos a ateus e escracha, inclusive, a si próprio.
Contrariando o molde do universo dos desenhos (Dis-

162
ney, Pixar, Dreamworks e cia), South Park se torna sucesso mun-
dial com um traço falho, exposição da estupidez, preconceito,
sarcasmo e cinismo como um reflexo da mediocridade social
e tudo isso utilizando uma linguagem de cunho sexual explíci-
to, expressões e palavrões que em canais conservadores seriam
bloqueados com os conhecidos “bips”. Embora faça críticas de
ordem política,
South Park não tem nenhuma intenção reforma-
dora em relação a sociedade, mas nem por isso se trata de uma
crítica vazia, podendo ser pensada como uma didática constru-
ída a partir de exemplos incorretos. Em última análise pode ser
entendido como um convite à reflexão dos discursos e contra
discursos da mídia, da política e da sociedade como um todo,
desconstruindo-os como falíveis e questionáveis.
Nas palavras de Trey Parker, um dos criadores do dese-
nho:
O que dizemos com o programa não é nada de novo, mas acho
que é algo ótimo de se mostrar. É que as pessoas que estão gri-
tando desse lado e as pessoas que estão gritando do outro são
as mesmas pessoas e não tem problema ser alguém que está no
meio, rindo dos dois lados.

163
Hora de Aventura
uma desenho que viaja gerações
Guilherme Cunha
Lara Castelo

Hora de Aventura (Adventure Time, no original) é um
dos grandes sucessos de audiência do canal norte-americano
Cartoon Network. Teve sua estreia em abril de 2010 e teve mais
de 2,5 milhões de espectadores no seu episódio piloto intitula-
do “Pânico na Festa do Pijama”
26
. Um dos fatos curiosos sobre
esse desenho animado diz a respeito à sua audiência. De acordo
com o sistema de medição de audiência Nielsen Ratings
27
, a
série atrai muitas crianças de 2 a 14 anos, porém também atrai
um público adulto significativo, mesmo originalmente sendo
produzida com o foco no público infantil. Outro fato que não
pode passar despercebido é sobre as críticas negativas e positi-
vas que o desenho recebe; o desenho é muito questionado sobre
sua classificação livre e se deveria ou não ser “um desenho para
criança”, sendo a animação mais censurada da história da Car-
toon Network tanto no Brasil, nos Estados Unidos e em todos os
26 TV by the Numbers. Monday Cable: Pawning & Picking Good for History;
“Damages “ & “Nurse Jackie” Damaged. 2010. Disponível em <http://tvbythe-
numbers.zap2it.com/2010/04/06/monday-cable-pawning-damages-em-nurse-
-jackie-damaged/>. Acessado em 24 de junho de 2016.
27 CLARK, N. Adventure Time: post-apocalyptic ‘candyland’ attracts adult fans.
In Hero Complex, Novembro de 2012. Disponível em <http://herocomplex.la-
times.com/tv/adventure-time-post-apocalyptic-candyland-attracts-adult-fans>.
Acessado em 25 de junho de 2016.

164
países na qual se transmite tal produto audiovisual
28
. E porque
tal produto atrai tanto um público mais velho?
A série segue as aventuras de Finn o humano e seu me-
lhor amigo e irmão adotivo, Jake o cachorro (que possui poderes
especiais, no qual conforme a sua vontade consegue se alongar e
mudar de forma). Os dois personagens principais se aventuram
na Terra de Ooo, num futuro pós-apocalíptico, por volta de mil
anos após a Grande Guerra dos Cogumelos, sendo Finn, presu-
midamente, o último humano existente que foi abandonado pe-
los seus pais numa floresta, até que o casal de cães Josué e Mar-
garet (pais biológicos de Jake) o adotaram. Além deles há outros
personagens antagonistas, mas também muito importantes para
construção narrativa do desenho, como por exemplo a Prince-
sa Jujuba (a soberana do Reino Doce), o Rei Gelado (um mago
com poderes de gelo que governa o Reino Gelado), Marceline (a
rainha vampiro) e outros secundários, como Gunter (o pinguim
de estimação do Rei Gelado), Lady Íris (da raça dos iriscórnios,
uma mistura de arco-íris com unicórnio; a namorada do Jake),
Princesa Caroço, Princesa de Fogo e muitos outros.
Assim como outros desenhos da Cartoon Network, que
sofreram críticas por possuir um caráter considerado assustador
para crianças (
Coragem, o cão covarde e As Aventuras de Billy
e Mandy
), Hora de Aventura também possui algumas caracte-
rísticas sombrias. Em vários episódios é possível coletar pistas
sobre o fato de a Terra de Ooo ser supostamente o nosso mundo
pós-apocalíptico, sendo resultado de uma guerra nuclear que
ocorreu em nosso planeta. Durante o desenho descobre-se que
28 CASTANHARI, F. 10 coisas que você não sabia sobre Hora de Aventura. Ca-
nal Nostalgia, Youtube, Agosto de 2015. Disponível em <https://www.youtube.
com/watch?v=vMIUN8H6XWA>. Acesso em 25 de junho de 2016.

165
essa guerra é chamada de Grande Guerra dos Cogumelos
29
.
Na maioria dos desenhos animados, os personagens são
muitas vezes presos em uma infância permanente. Em Hora de
Aventura, os personagens se desenvolvem ao longo das tempo-
radas e silenciosamente vão avançando para a idade adulta. E, à
medida que vão crescendo, novas questões e o jeito de lidar com
elas vão surgindo, como o fato da Princesa de Fogo só aparecer
nas últimas temporadas, nas quais o Finn, já maior, começa a
lidar com o fato de ter uma namorada, gostar de mais de uma
garota e saber como se portar à tal situação. As primeiras tem-
poradas podem ser julgadas pelo senso comum como “bobinhas”
e “coisa para criança”, porém, à medida que a narrativa vai se
desenvolvendo, vão surgindo as críticas ao desenho. Quando se
trata em dizer que
Hora de Aventura não é um “desenho pró-
prio para crianças” somando com alguns detalhes considerados
sombrios, também há críticas sobre o conteúdo da série englo-
bar questões de violência, tortura, vingança, orgulho, algumas
palavras de cunho ofensivo, maus exemplos e alguns relacio-
namentos polêmicos, como o da Princesa Jujuba e Marceline
(na realidade, nunca ficou muito explicito, mas alguns episódios
apresentam vários indícios desse romance escondido, ou seja,
subliminarmente é trabalhado a questão da homossexualidade
no desenho) e o relacionamento de Jake e Lady Íris, no qual em
determinado episódio a Lady tem uma gravidez acidental, ou
seja, eles são o primeiro casal da história dos desenhos anima-
dos a ter uma gravidez não planejada e sem casamento, dando
29 Nerd do Gueto. A verdade por trás do desenho Hora de Aventura. Disponível
em <http://www.nerddogueto.com.br/a-verdade-por-tras-do-desenho-hora-de-
-aventura-adventure-time/>. Acessado em 25 de junho de 2016.

166
à luz 5 filhotinhos. Há vários episódios censurados, como o inti-
tulado “Péssima Hora”, no qual a Princesa Caroço aparece num
bar bebendo uma bebida que parece alcoólica e supostamente
apresenta um comportamento de embriaguez, passando mal e
vomitando arco-íris depois e, no mesmo episódio, ao reencon-
trar um amigo da época do ensino médio nesse mesmo bar, ela
segue até a casa dele, dorme lá e se interessa por ele e acaba mo-
rando lá por um tempo. Estes são só alguns exemplos de coisas
polêmicas ligadas à
Hora de Aventura.
Entretanto, é um desenho que possui muito duplo sen-
tido, no qual somente alguns jovens e adultos com um senso
crítico notariam, pois na maior parte do tempo nada é muito
explícito e o desenho possui uma inteligência emocional mui-
to bem trabalhada, encarando problemas de forma supersen-
sível e colorida. E, antes de julgar e rotular um desenho como
próprio ou impróprio para crianças, devemos pensar no próprio
conceito de criança. Além de criar tabus, é necessário entender
também a forma como estes assuntos são abordados dentro das
narrativas dos desenhos animados.
Vale ressaltar que o próprio Cartoon Network surgiu
em 1922 com o objetivo de proporcionar animações que seguis-
sem uma linha “
all-ages network”, ou seja, ao invés de criarem
produtos somente destinados ao público infantil, decidem criar
um lugar para “crianças de todas as idades”, como define Ca-
rol Stabile. Em sua reflexão, destacam-se os seguintes trechos,
traduzidos, que exemplificam esta característica peculiar des-
sa indústria: “adultos, meninas adolescentes – realmente todo
mundo – podem e devem assistir cartoons”(WILSON, 1999: 30);
“Se a Nickelodeon é para empoderar crianças, Cartoon Network
é para dar a liberdade de ser maluco e doido” (ROSS, 1998: S-1,

167
S-16).
Por este motivo, pensar em o que é “ser criança” e como
se dá, de fato, a representação da infância dentro dos meios
midiáticos pode ser essencial para o entendimento da lógica por
trás das diferentes apropriações etárias que
Hora de Aventura
possibilita no universo dos desenhos animados. A própria noção
do conceito de criança hoje reconhecido na sociedade moderna
se construiu social e historicamente através de diferentes ques-
tões ligadas à moral e à interpretações mais amplas dos indiví-
duos, sociedades e culturas (ODININO, 2009).
É importante compreender que antes do século XIX, não
havia tanta preocupação com a infância propriamente dita, da
forma como lidamos com essa fase nos tempos modernos. O pró-
prio indivíduo criança, enquanto um ser e ator social, surge so-
mente a partir do século XVII, quando a instituição escolar ado-
ta a aprendizagem como uma forma de educação, demarcando
a infância como uma fase de extrema importância na formação
de um indivíduo.
A própria concepção de desenhos animados como um
produto destinado ao público infantil se construiu através do
tempo e com a evolução dessa indústria. Os primeiros desenhos
animados, por exemplo, quando surgiram dentro do cinema-
-mudo, geralmente visavam um público mais adulto, com piadas
e roteiros para uma faixa etária mais elevada do que a dos dias
atuais. Portanto, é importante que haja a compreensão que tan-
to a representação e conceituação da infância quanto a constru-
ção das narrativas dos desenhos animados, incluindo o público
consumidor, são elementos que se constroem e se desconstroem
culturalmente ao longo do tempo.

Hora de Aventura quebra paradigmas por apresentar

168
narrativas que fogem dos padrões de desenhos animados dos
dias atuais, principalmente por conter teores considerados “ina-
propriados” para crianças. A concepção de criança sempre es-
teve e sempre vai estar atrelado à moral e em diálogo com a
ideologia da época (ODININO, 2009), por isso é importante con-
siderar essa ideia ao interpretar e julgar um desenho acessível
ou não à crianças.
A relação de preferências por desenhos animados está
atrelada não somente às narrativas em si, mas também à cons-
trução de seus personagens. Pesquisas mostram que existem
diversas características que podem influenciar no gosto ou des-
gosto de um personagem, tais como gêneros, acessórios e roupas
que eles utilizam, idade, inteligência, comportamentos em suas
relações sociais e até na quantidade de maldade ou bondade que
aquele personagem possui em seu perfil (KLEIN; SHIFFMAN,
2006).
Este desenho não somente é assistido por crianças e por
adultos, como também é apropriado de formas completamente
distintas por ambas as categorias. A própria relação de consumo
com
Hora de Aventura pode se dar de forma diferente quando
separamos as gerações. As crianças irão ser as principais teles-
pectadoras do desenho animado pela televisão, enquanto os jo-
vens e adultos muitas vezes procuram outros meios midiáticos
para ter acesso a estes materiais. Além disso, a narrativa de
Hora de Aventura é calcada, quase que em todos os momentos
da animação, por possibilidades de diversas interpretações, o
que o permite ser um produto adaptado para este consumo que
viaja entre diferentes gerações.
Para entendermos um pouco melhor sobre o porquê
adultos também são atraídos por essa animação fizemos a se-

169
guintes perguntas para dois entrevistados
30
: “Por que você gos-
ta de Hora de Aventura?” e “Você acha que é um desenho para
crianças?”. Seguem abaixo as respostas que obtivemos.
> POR QUE EU GOSTO DE HORA DE AVENTURA ? <
Entrevistado 1: “Porque Hora de Aventura apresenta um dife-
rencial de muitos desenhos, seus personagens e o desenvolvi-
mento deles. Com uma história incrível e uma arte única, o de-
senho trabalha todos seus personagens (principais ou não) de
uma forma extraordinária para um desenho infantil, eles cres-
cem, desenvolvem características novas, a personalidade deles
muda, o vilão pode ter sido um herói, a princesa inocente pode
não ser tão inocente... e o Finn, principalmente, apesar de ser
uma criança nas primeiras temporadas, desenvolve um senso de
justiça e heroísmo. Ele tem conflitos internos sobre suas ações,
aprende com seus erros (ou não) e vai se tornando cada vez mais
um adulto, o último Humano em um planeta Terra parcialmen-
te destruído e totalmente mudado.”
Entrevistado 2: “O primeiro contato que eu tive com o desenho
foi por acaso, quando um primo mais novo assistia ao desenho
na TV. Os doces viravam zumbis e soltavam uma gosma no-
jenta, os personagens principais também me cativaram. Eu já
tinha ouvido falar de
Hora de Aventura, mas até aquele mo-
30 Entrevistado 1: Lucas Castelo, 20 anos, morador de São Paulo e estudante
de biologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie; entrevistado 2: Natália
Ribeiro, 27 anos, moradora de São Gonçalo (Rio de Janeiro), mestranda em
comunicação na UFF.

170
mento não tinha parado para assistir. Depois, por curiosidade,
fui assistindo aos episódios em sites na internet e assim assisti
praticamente todos os episódios até a quinta temporada. Sempre
gostei de cartoons “estranhos”, antes de
Hora de Aventura, mi-
nhas preferidas eram [
As trapalhadas de] Flapjack e Shin Chan.
A relação de Jake e Finn é muito bonita, uma coisa meio amigão,
irmão mais velho, um sempre ajudando o outro, convivendo em
harmonia e se divertindo juntos. Eles são super diferentes um
do outro e se respeitam. O universo fantástico de Ooo também
é incrível, parece uma terra onde praticamente tudo é possível.”
> É DESENHO PARA CRIANÇA ? <
Entrevistado 1: “Apesar da classificação atual, 12 anos se não
me engano
31
, qualquer um pode assistir e se divertir com as
piadas e aventuras, mas para conseguir sentir no fundo a histó-
ria, a emoção e o envolvimento com os personagens acho que
é necessário um pouco de maturidade e seriedade, coisa que
geralmente falta tanto em crianças, quanto em adultos.”
Entrevistado 2: “Acredito que os produtores pensam um grande
público, de crianças de 8-10 anos à adultos que curtem uma
boa história, com um humor inteligente. Acredito que limites
não combinam com o mundo de Ooo, me parece que eles estão
sempre atrás das coisas mais absurdas e isso é interessante. É
comum ouvirmos que “quem escreveu esse desenho usou dro-
gas”, acredito que seja justamente por essa questão da viagem,
31 A rede de TV a cabo Sky coloca essa classificação, porém, no site oficial da
emissora do desenho, a classificação consta como sendo livre.

171
da aventura, de explorar mundos desconhecidos, criar situações,
tornar possível cachorros mágicos, unicórnio de arco-íris, a
Princesa Cachorro-Quente. Cada um vai assimilar de uma for-
ma, a percepção de uma criança sobre questões do desenho será
diferente, mas elas gostam por outros motivos. Nas lojas de rou-
pas, as camisas de
Hora de Aventura estão na sessão infantil e
na adulta, a permanência dessas peças nas lojas mostra o suces-
so desses personagens entre esses diferentes público.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hora de Aventura é um desenho animado que foge das
narrativas tradicionais, principalmente no que tange aos diver-
sos e complexos elementos que compõem todas as suas atuais
temporadas. Por conter um caráter de entretenimento, com ele-
mentos chaves de uma animação, também é um desenho cons-
truído por um humor inteligente e narrativas que se conectam
em cada episódio. Todas essas particularidades de
Hora de Aven-
tura fazem com que esta animação seja um produto midiático
capaz de viajar gerações, atraindo crianças com todas as cores
e personagens cativantes e também atraindo jovens e adultos
com suas histórias misteriosas e com diversos sentidos abertos a
diversas interpretações.
É evidente que a categorização de desenhos animados
como produtos de consumo somente para crianças já se encon-
tra longe de existir. Os modelos de animações estão cada vez
mais se transformando e criando públicos compostos por diver-
sas faixas etárias, muitas vezes combinando todas essas idades,
como é possível observar em
Hora de Aventura. A sociedade cul-
turalmente passa por mudanças e entender este fato é essencial

172
para compreendermos a análise por trás dos diferentes públicos
que
Hora de Aventura atrai e, principalmente, a questão simbó-
lica por trás do conceito de infância na modernidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HASSAN, A.; DANIYAL, M. Cartoon Network and his impact on
behavior of school going children: a case study of Bahawalpur,
Pakistan. In
International Journal of Management, Economics
and Social Sciences
, 2013, Vol. 2(1), p. 6-11.
ODININO, J.
História social da criança na mídia. In: Imaginário
infantil e desenho animado no cenário da mundialização das
culturas
. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universida-
de Estadual de Campinas, São Paulo, 2004, p. 24-40.
STABILE, C. A.; HARRISON, M. Prime time animation: an over-
view. In:
Prime Time Animation: television animation and Ame-
rican culture, Routledge, Nova York, 2003, p. 1-11.

173
A temática adulta de Hora de
Aventura como ferramenta na
construção do imaginário
infantojuvenil

Hugo Mateus
Mayra Mello
O desenho animado
Hora de Aventura contém uma te-
mática pós-apocalíptica, epresentando mundos paralelos, reen-
carnações, mitologia e tem muitas referências adultas, vertente
que o desmembra do resto dos desenhos hoje produzidos e dis-
seminados pela mídia, se destaca por seus cenários surrealistas
e episódios que, muitas vezes, parecem não ter sentido algum,
complicados até no entendimento adulto.
Assim, é compreensível ter se popularizado no meio de
jovens e adultos, pois aborda temas que fazem parte do imaginá-
rio adulto, onde o contexto maduro está subentendido, de modo
que até mesmo os mais velhos precisam pensar duas vezes para
compreendê-lo.
Mesmo com esse teor um tanto profundo e introspectivo,
característico da maioria dos episódios, a série acerta no tom
humorístico, leve e com situações divertidas, que está gradual-
mente atraindo um público maior de crianças, que se divertem
com os conflitos apresentados e se encantam com a originalida-
de e colorismo dos gráficos de desenho.
Na questão do tema pós-apocalíptico: a história se passa
na Terra de Ooo, uma crítica à atualidade do consumo. Repre-

174
senta o futuro do nosso planeta, após um período denominado
pelo desenho de Guerra dos Cogumelos, fazendo referência a
bombas atômicas, algo visto com mais clareza na abertura, com
árvores sem folhas e bombas adentrando o terreno.
Entretanto, Finn, o personagem principal, é um humano,
e durante os episódios, como “O Mistério da Masmorra” (episó-
dio 8 da 5ª temporada), o pai de Finn é apresentado como um
cachorro; ele e Jake (que é um cachorro) o chamam de pai. Algo
sem muito nexo em um primeiro momento. Mas Finn é o único
ser humano que sobreviveu a Guerra dos Cogumelos, e encon-
trado ainda bebê pelos pais de Jake, sendo adotado pela família
e crescendo junto com Jake, onde uma amizade e relações de ir-
mãos nasce. Nesse ponto a narrativa apela para o público infan-
til: engraçado e com situações divertidas, todos os personagens
possuem características marcantes e criativas, cativando seus
espectadores.
REI GELADO
Apesar de ser tratado como vilão – por sequestrar prin-
cesas -, o Rei Gelado é um personagem que merece ser reconhe-
cido e adorado. Ele mora sozinho em um castelo feito de gelo
que é isolado dos outros reinos. Lá, ele vive com seus diversos
pinguins e escreve histórias paralelas com gênero trocado, nas
quais Finn é Fiona, a princesa Jujuba é Chiclete, e Marceline é
Marshall Lee.
MARCELINE, A RAINHA DOS VAMPIROS
A vampira, que é compositora e faz seu arranjos em sua

175
guitarra, primeiramente parece ser também uma vilã, mas aca-
ba ficando claro que é amiga de Finn, Jake e que aparenta ter
uma amizade colorida com a princesa Jujuba. A relação entre
as duas é diferente desde o início, quando as duas se encontra-
vam, ficavam encabuladas. Elas são mais próximas do que o
comum, levando a um entendimento de um contexto gay entre
elas. Além disso, ela tem problemas com o seu pai, que, pelo
jeito, não é muito bom em lidar com ela como filha.
PRINCESA JUJUBA
Jujuba é um exemplo de que mulheres podem ser inte-
ligentes, bonitas e femininas. Apesar do típico vestido rosa de
princesa, ela é vista em diversas roupas sofisticadas. Fora isso,
cuida muito bem de seu reino, que é conhecido como Reino dos
Doces e as pessoas que moram lá são doces, como ela mesma.
Pelo que se percebe através do desenvolvimento da história, é
possível que ela tenha centenas de anos e também seja expert
em ciências. Ela faz todo tipo de experiências e, diversas vezes,
Finn recorre a ela quando tem problemas.

Dentro do contexto de histórias épicas e que instigam
um pensamento mais elaborado, “O Você Verdadeiro” (episódio
15 da 2ª temporada) é uma que se destaca. Neste episódio Finn
tenta impressionar a Princesa Jujuba e pede ao Gansinho Vizi-
nho uma magia para ficar mais inteligente. Ele lhe dá um par de
óculos e ,quando o coloca, parece saber mais do que a própria
princesa. Resultado: Finn abriu um buraco negro com o tanto de
conhecimento obtido, literalmente sabendo mais do que devia.
Até dá a impressão de que ele vê tudo o que acontece, desde o

176
início ao fim dos tempos. E até grita para todos: “Todos nós nas-
cemos para morrer.”
Além deste, um episódio que chama muita atenção foi
“O Cofre” (episódio 34 da 5ª temporada). Nele, fica bem mais cla-
ro a complexidade de Hora da Aventura, ao mesmo tempo que
se faz fácil de entender, tendo acompanhado o episódio “Finn,
O Humano” (episódio 1 da 5ª temporada). Neste, Finn vai para
uma outra dimensão e descobrimos outra ressurreição de Finn
(problematizando a temática espírita), que também pode ser
considerada como seu eu de outra dimensão. E isso fica claro
por meio da simbologia de um braço mecânico.
A narrativa da série é repleta de subtextos e mensagens
subentendidas, como a relação nebulosa da Princesa Jujuba e
Marceline, que na maioria das vezes beira um relacionamento
amoroso, como a ausência de gênero de BMO, que não é dis-
cutida em nenhum momento na série, ou até mesmo o fato de
a maioria dos personagens não se prenderem a um comporta-
mento normativo de gênero - realizam ações ditas masculinas
e femininas. Assim, fugindo do conceito que desenho animado
direcionado para crianças só deve abordar temas simples e sem
complexidade, transfigurando a forma de se ver um personagem
infantil, não focando somente nos pontos que o fazem diferen-
te, mas nele como um todo, o tornando “normal” na narrativa,
como é abordado no texto “Child Centered Television? Teletub-
bies and the Educational Imperative” (2002), que diologa sobre
o fato de um personagem de um desenho animado direcionado
para bebês e crianças apresentar um subtexto gay e isso nunca
ser colocado em pauta pelos personagens em nenhum dos episó-
dios.
Todavia, o que faz a maioria dos jovens buscar Hora de

177
Aventura, não só por ser uma produção do Cartoon Network,
canal que foi, e ainda é, fruto de desenhos marcados na histó-
ria desses jovens como clássicos, com uma temática madura e
bem-humorada, mas também tendo como principal fator o fato
da série “não infantilizar a si mesmo em ordem de ser mais
atrativo às crianças. Afinal, mesmo com todos esses temas que
as crianças mal conseguem realmente entender, o sucesso da
série com o público infantil é imenso. A série conseguiu o equi-
líbrio entre ter um bom apelo infantil em seu visual e entre seus
personagens, e ter uma camada forte de temas adultos para dar
profundidade à obra”, como é abordado em “Hora da aventura e
a sexualidade não-romantizada de seus personagens” (2015).
Tal fanatismo e adoração desencadeou uma sequência
de obras transmidiáticas, como
fanarts (principalmente dos per-
sonagens com sexos trocados),
fanfics e composições de imagens
em geral, com cores fortes e legendas profundas, intrigando
mesmo quem vê apenas um gif ou printscreen.
Entremeada pelos personagens e episódios, estas lições
se encaixam na vida de qualquer pessoa que assista à série. Para
os menores, talvez passe despercebido, mas, principalmente se
eles se colocarem nas situações, eles se identificarão e conse-
guirão, de maneira rápida e simples, aplicar essas lições no seu
cotidiano, o que reforça o conceito abordado por Juliane Odini-
no em seu artigo “Imaginário Infantil e Desenho Animado no
Cenário da Mundialização das Culturas” (2004), sobre a ponten-
cialidade das mídias na construção do imaginário infantil, onde
o conteúdo apresentado para as crianças na infância influencia
no desenvolvimento do pensamento crítico, tanto de uma for-
ma positiva, quanto de uma forma negativa. Já para os adul-
tos, alguns assuntos ficam mais claros, pois se aplicam à vida

178
comum e à experiências passadas. Como no episódio chamado
“Puhoy” (episódio 16 de 5ª temporada), Jake tenta ensinar Finn
a se desapegar das coisas. “Está vendo essa caneca?“, ele diz. “É
literalmente minha favorita. Observe.” Então ele joga o objeto
longe, deixando-o quebrar. E continua: “Agora ela foi embora
para sempre. Então não é mais real e eu não me importo mais
com ela“. Exemplificando de forma bruta e simples a efemeri-
dade das coisas no mundo atual, onde mesmo algo adorado e
cuidado pode se perder ou quebrar, por culpa do próprio dono, e
o mesmo não se importa no final, ou tenta não se importar, pois
esta coisa pode ser substituída.
Enfim, ao contrário de desenhos animados que chamam
atenção de crianças e de adultos, como
Os Simpsons e South
Park
, Hora de Aventura trata de temas adultos com cautela, não
usando palavras chulas e nem violência para representar a dura
realidade a suas críticas sobre o mundo. Dessa forma alcança
um público maior infanto-juvenil, impactando na sua forma de
ver e de estar na sociedade brutal atual, através do humor e do
carisma de cada personagem ao decorrer da narrativa.

179
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUCKINGHAM, D. Child Centred Television? Teletubbies and
the Educational Imperative. In:
Small Screens: Television for
Children. Leicester University Press, 2002.
ODININO, J. I
maginário Infantil e Desenho Animado no Cená-
rio da Mundialização das Culturas. Universidade Estadual de
Campinas, São Paulo, 2004.
STABILE, C. HARRISON, M.
Prime Time Animation: Television
Animation and American Culture. Routledge, 2003.
______. Adventure Time e a sexualidade não-romantizada de seus
personagens. In: Dentro da Chaminé, 2015. Disponível em <ht-
tps://dentrodachamine.wordpress.com/2015/01/12/adventure-
-time-e-a-sexualidade-nao-romantizada-de-seus-personagens/>.
Acesso em: 20/07/2016.

180
Analisando o caráter de maturida-
de de temas sociais em
Apenas um
Show

Juliana Andrade
Nicollas Fraga
Não é de hoje que a discussão envolta na natureza de
direcionamento de público de desenhos animados é levantada
inúmeras vezes no dia-a-dia, em variados círculos sociais. Fre-
quentemente taxado e relegado a uma forma de entretenimento
meramente infantil, o desenho animado ainda é visto como pro-
dução midiática destinado à crianças, com temas mais simpló-
rios e de fácil conteúdo simbólico para atender ao seu público-
-alvo. Essa noção ainda se mantém forte em grande parte por
meio de linhas de pensamento mais tradicionais, ainda culti-
vadas entre grupos sociais que cresceram em meio ao processo
midiático cultural em que a produção dos programas visava a
publicidade de material simbólico para o con-sumo de pais que
compravam para seus filhos o que assistiam na televisão. A esté-
tica irrealista de seus personagens e cenários e a recorrência de
material educativo em alguns dos tradicionais desenhos da dé-
cada de 1970 e 1980 fomentam a base ideológica de indivíduos
que reiteram esse ponto de vista. Mas por mais que haja um con-
senso ou não acerca do debate, o ramo na indústria midiática
não se viu estagnado mediante a uma única identidade, abrindo
espaço para que novas iterações, performances e temáticas pu-
dessem ser abordadas em seus programas em meados da década
de 1990. Desenhos como
Os Simpsons, Beavis and Butt-Head e

181
South Park vinham trazendo em seu conteúdo diferentes formas
de crítica social permeando suas narrativas elaboradas, carac-
terística recorrente de obras televisivas que experimentavam a
onda artística fragmentária e multirreferencial pós-modernista
da época. Programas como estes inspiraram e inspiram desde o
formato até a abordagem narrativa de inúmeros desenhos ani-
mados e a abordagem crítica social, entrando novamente nesse
embate ideológico e pondo-o sob um viés subvertido. Dentre os
diversos desenhos animados atuais que seguem uma linha res-
significadora de conceitos mais tradicionais, pretendemos aqui
abordar o caso de
Apenas um Show, programa exibido no canal
televisivo Cartoon Network, pioneiro da animação televisa em
meados dos anos 1990 e atualmente um dos poucos canais de
televisão de rede fechada dedicados exclusivamente a exibição
de desenhos animado. Com base no programa em questão:
- Vamos trabalhar com a temática jovem adulta do de-
senho, em que instân-cias ela se dá no decorrer dos episódios,
de que forma ele trata essa temática e trazer à tona o questio-
namento do desenho como mídia exclusivamente in-fantil, sua
relativa permeação em decorrência do Século XXI e críticas a
esta linha de pensamento.
- Por meio de exemplificação de determinados episó-
dios do desenho, vamos ilustrar como o programa ressignifica e
destaca dinâmicas narrativas que re-velam conteúdo simbólico
mais maduro em relação àquele esperado em um desenho infan-
til, enquanto sua estética visual mascara, seja intencional-mente
ou não, o conteúdo apresentado.
- Como base teórica, analisaremos o caso do desenho
animado seguindo as definições teóricas de trabalhos como

182
Chantal Herskovic e Jason Mittel, ambos com suas teses sobre
sátira do cotidiano e base na realidade em
Os Simpsons, respec-
tivamente. Também serão correlacionados temas trabalha-dos
por Buckingham em sua tese sobre programas centrados na fi-
gura da criança em fase de aprendizado.
INTRODUÇÃO AO PROGRAMA
Apenas um Show, ou Regular Show – título original -, é
uma série de desenho animado criada pelos estúdios norte-ame-
ricanos Cartoon Network em 2010, e que con-tinua em produção
até o momento dessa análise (2016). A série conta as aventuras
de Mordecai, um pássaro gaio-azul, e seu melhor amigo Rigby,
um guaxinim, en-quanto enfrentam situações bizarras e inusi-
tadas no parque onde trabalham, jun-tamente com os outros
personagens recorrentes da série.
O desenho é influenciado por situações vividas por seu
criador, J. G. Quintel, durante a época em que estudou no Cali-
fornia Institute of the Arts, e muitos dos personagens principais
são reciclados de curtas produzidos pelo mesmo durante essa
época. Além disto, o show também conta com influências de
outros produtos culturais importantes na criação das situações
vividas pelos personagens e também na criação do humor pró-
prio ao desenho, tais como
Os Simpsons (1989), Beavis and Butt-
-Head (1992), Rocko’s Modern Life (1993), e séries como The
Office
(2001) e The Mighty Boosh (2003). E, assim como estas
outras séries e desenhos, a cultura de vídeogame tem papel fun-
damental dentro de
Apenas um Show, e muitos dos episódios
envolvem referências diretas a títulos e consoles que marcaram
principalmente as décadas de 1980 e 1990.

183
Apenas um Show é também considerado um dos dese-
nhos mais bem-sucedidos comercialmente do Cartoon Network,
tendo atingido um pico de 2,5 milhões de espectadores sema-
nais, além de mais de 200 episódios, sete temporadas e um fil-
me longa-metragem. O show já foi indicado a diversos prêmios,
tendo sido ganhador de um Grammy em 2012.
A série segue um formato próximo ao de
sitcom, com
episódios curtos de cerca de 11 minutos e que formam arcos
narrativos fechados, independentes uns dos outros, o que faz
com que não haja uma ideia de continuidade fixa para os episó-
dios, que podem ser assistidos até mesmo fora de ordem sem que
ocorra perda de sentido ou humor.
A animação é também trabalhada e feita de maneira
tradicional, sendo necessário, em média, 9 meses para comple-
tar a produção de apenas um episódio.
TIPOS DE PÚBLICO
Embora Apenas um Show seja uma das séries primeti-
me do Cartoon Network atualmente, o desenho foi inicialmente
pensado por Quintel para ser um produto do bloco adult swim,
que transmite conteúdo exclusivamente adulto em animação.
No entanto, na tentativa de diversificar e aumentar a audiência,
alterações foram feitas no programa, que o conferiram a classi-
ficação etária nos EUA de 11+ anos.
Essa mudança na lógica de produção da narrativa, po-
rém, não mudou o humor muitas vezes “adulto” que é conferido
ao programa, e por este motivo, mes-mo ainda sendo considera-
do um desenho infantil,
Apenas um Show possui uma enorme
base de fãs adultos entre 20 e 40 anos. As situações absurdas, a

184
forma como a violência é tratada, o uso de diversas referências,
além do humor ácido são fatores que contribuem para a cria-
ção de um sentimento de nostalgia que envolve uma forma de
resgate aos valores e ambientação da década de 1980 - criando,
as-sim, espaço para esse tipo de público dentro da animação.
Os próprios personagens principais, Mordecai e Rigby,
são de uma faixa etária entre 20 - 25 anos, e nenhum outro
personagem no programa é identificado como uma criança e/
ou vivem situações centradas no imaginário infantil tradicional,
o que também não diminui o apelo do programa com o público
infantil.
CRIAÇÃO DE HUMOR E REFERÊNCIAS
Parte da criação do humor em Apenas um Show reside
na condição dos personagens principais: ambos trabalham in-
tegralmente no parque onde também moram e são sustentados
por apenas um salário mínimo. Ambos têm uma personalidade
caracterizada como “preguiçosa”, e grande parte dos problemas
vividos por eles se dá por este fato.
Os arcos geralmente envolvem a criação de um proble-
ma banal vivido por Mordecai e Rigby, que acaba se tornando
algo muito maior, graças à incompetência dos protagonistas, e,
eventualmente, o problema transcende ao bizarro e ao absurdo,
como viagens no tempo ou à aparição aleatória de monstros.
Outro fator que se destaca, principalmente com o públi-
co adulto, é o uso de referências da cultura pop ou formas de
satirizar a publicidade e os diversos estereótipos que envolvem
a cultura televisiva tradicional. Ao longo do programa, os per-

185
sonagens praticamente só se utilizam de mídias mais antigas,
como fitas cassete, vinis e VHS, além de que todas as televisões
são de tubo e os videogames são retrô.
As referências muitas vezes também são feitas em forma
de música. Diversas composições originais da série são baseadas
em músicas já existentes, e são utilizadas em momentos chave
na animação. O programa também já conseguiu a licença para
tocar/fazer versões adaptadas de canções reais durante a série.
Durante o último episódio da segunda temporada, “Karaoke Vi-
deo”, há uma adaptação da melodia de “Working Man”, música
da banda canadense Rush; além de versões de “We’re not gonna
take it” do Twisted Sister e “Footloose” de Kenny Loggins. Sím-
bolos escondidos de bandas das quais Quintel e os outros cria-
dores do programa são fãs também são imagens frequentes nos
cenários do desenho.
Esse tipo de utilização de referências, no entanto, não
interfere diretamente no humor criado. Em grande parte destas
situações, as colocações permanecem sutis, novamente, como
uma forma de criar um clima nostálgico em relação à década
1980, além das pequenas críticas à televisão como mídia.
Porém, a narrativa é repleta de pontos polêmicos na
criação de humor, este que muitos ainda consideram “pesado”
para crianças, que é o uso de substituição de certas falas e obje-
tos. A linguagem original do desenho continha o uso de diversos
palavrões e, no entanto, mesmo cortados, as gírias utilizadas
ainda são vistas como consideravelmente agressivas - outro pon-
to que causa a “simpatização” do público adulto com o progra-
ma.
Em suma, grande parte do material apresentado pelo de-
senho remete à mesma temática satírica que pioneiros do ramo

186
estipularam em seu auge, como Os Simpsons fez em apontar
segmentos da sociedade contemporânea de forma humorística
na construção de seus personagens e arcos narrativos do progra-
ma, e conti-nuamente o fez ao longo de sua trajetória televisiva.
Assim como o consagrado desenho fez,
Apenas um Show apre-
senta referências a elementos culturais que per-meiam seus es-
pectadores de forma satírica, sendo o caso dele a cultura de um
público que cresceu e se apropriou de desenhos entre a década
de 1980 e 1990 para construir sua identidade cultural e que se
identificam em algum ponto de suas vidas com as situações re-
presentadas em seus episódios e personagens; paralelamente, o
mesmo ocorre no teor do programa aqui analisado, em que seus
personagens se veem em situações que se assemelham a jovens
adultos que continua-mente têm uma atitude procrastinadora
com as formalidades de suas vidas e se rodeiam de referências
culturais, situação que claramente espelha ao que foi vivencia-
do pelo seu autor e criador. Porém, a inclusão desse conteúdo
mais maduro em um desenho que apresenta uma estética visual
ainda calcada em algo mais infantil e inocente, a se notar pela
representação antropomórfica de animais dóceis como um pás-
saro e um guaxinim, pode se passar despercebida por olhos in-
cautos como “só mais um desenho de criança”. Essa ingenuidade
de indivíduos a parte dos de-senhos talvez remeta aos casos de
escândalos e polêmicas criados em cima do conteúdo presente
neles, pois não veem além da problemática de se ter conteúdo
simbólico “adulto” em algo que crianças possam ver livremente,
sem perceber que se produz ali uma contextualização de repre-
sentação de mundo que critica e questiona segmentos da socie-
dade de forma satírica, que põe seu público para pensar sobre
o seu contexto sociocultural a sua volta. E, deveras, até o mais

187
inofensivo dos programas infantis como Teletubbies já passou
pelo mesmo com um segmento de pais e pesquisadores incautos
que enxergaram nele algo de prejudicial ao desen-volvimento de
crianças em fase de aprendizado, quando apenas entravam em
um viés de confirmação perpetuado por outros indivíduos que
infimamente tinham con-tato com o programa; não chega a ser
surpreendente desenhos com cunho mais maduro ainda sofre-
rem com isso.
Mas mesmo que ainda se tenha esse repertório enviesa-
do sobre desenhos animados,
Apenas um Show segue em meio
a outros programas do cronograma do Cartoon Network que
buscam se adaptar e atender à uma mescla de telespectadores
que vivenciaram o período inicial de sua programação e agora,
devidamente chegando a fase adulta, experimentam diferentes
circunstâncias vivenciais enquanto ainda se apegam ao que
mais lhe agradavam em seu amadurecimento, nesse caso, os de-
senhos; ainda se propondo a quebrar paradigmas fixados a dé-
cadas no ramo, a fim de incluir novos públicos e tendências para
sua audiência, reformulando que desenhos não são só “coisa de
criança”.

188
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUCKINGHAM, D. Child-centred television? Teletubbies and the
educational imperative. In:
Small Screens: Television for Chil-
dren, Leicester University Press, 2002
HERKOVIC, C. Chegando a Springfield: Humor e Sátira na Série
Os Simpsons,
REVISTA USP, São Paulo, n.88, p. 100-111, dezem-
bro/fevereiro 2010-2011.
HUMPHREY, A. ‘Adventure Time,’ ‘Regular Show,’ and the Good
New Days of Children’s TV. In: Filmschoolrejects 2012. Disponí-
vel em <https://filmschoolrejects.com/adventure-time-regular-
-show-and-the-good-new-days-of-children-s-tv-7d4fdd046678#.
xot16pitl> Acessado em 20/07/2016
MITTEL, J. Cartoon Realism: Genre Mixing and the Cultural
Life of The Simpsons. In:
The Velvet Light Trap, nº 47, University
of Texas Press, 2001.
WIKIPEDIA. Regular Show. Disponível em <https://en.wikipedia.
org/wiki/Regular_Show>. Acessado em 20/07/2016

189
Over the Garden Wall

Caroline Bitencourt
Vitória Freitas
Este artigo se propõe a analisar como se dá a construção
do desenho animado
Over The Garden Wall e suas múltiplas
narrativas, que possuem importantes significados para a forma-
ção da minissérie enquanto desenho animado infantil. Trata-se
de uma análise das representações técnicas e artísticas presen-
tes em desenhos animados, em especial na produção do Cartoon
Network, considerando, sobretudo, questões da TV segmentada
e a complexidade das estratégias produzidas.

Over The Garden Wall, lançada em 2014, é a primei-
ra minissérie de animação do Cartoon Network. Essa produção,
ainda que teoricamente destinada a um público de menor fai-
xa etária, traz uma narrativa muito mais sombria e reflexiva
se comparada a outras obras infantis da emissora. A animação
se desenvolve em torno de dois meios-irmãos: Greg, o adorável
caçula e Wirt, o pré-adolescente cheio de questões existenciais
e inseguranças. Os dois se veem subitamente perdidos em uma
floresta, chamada “O Desconhecido”, e precisam voltar para
casa. Durante o desenrolar da história, a dupla de irmãos per-
cebe que seu caminho de volta não será tão simples e desde o
primeiro episódio uma ameaça ronda suas jornadas. Contando
com um passarinho azul falante como guia, eles vão, a cada epi-
sódio, explorando diferentes facetas do Desconhecido enquanto
tentam achar seu caminho de volta para casa e se manterem

190
fora do caminho da Besta, uma criatura misteriosa que vaga
pela floresta.
CARTOON
A Cartoon Network é conhecida pelas suas produções
que cativam tanto crianças quanto adultos. Com
Over The Gar-
den Wall não é diferente. A animação atrai o público infantil
com músicas, personagens visualmente atraentes e histórias
mágicas sobre castelos, abóboras falantes, feitiços e todos os
clichês de contos de fadas. Já o público mais adulto é atraído
pelos aspectos humorísticos e subliminares da narrativa, que
tratam de assuntos como relacionamentos familiares, amizades
e sacrifícios feitos por amor de forma bastante sutil e poética.
Over The Garden Wall trabalha com a quebra de expectativas,
desconstrução de personagens e plot twists, o que complexifica
a narrativa e deixa o expectador em constante estado de refle-
xão.
Apesar de bem recebida pela crítica, não atingiu o públi-
co com a mesma expressividade dos desenhos prime time. O fato
de ser uma minissérie e, portanto, um conteúdo com um arco
narrativo bem específico e limitado, torna impossível a compa-
ração, em termos de alcance, com as grandes e longas produções
de animação televisiva. Em termos narrativos, no entanto,
Over
The Garden Wall
combina muitos dos aspectos sobre os quais
Carol Stabile discorre sobre em “Prime Time Animation – An
Overview”. A produção é igualmente apelativa tanto para o pú-
blico infantil quanto para o público adulto, sendo um programa
prazeroso para pais e filhos, o que do ponto de vista mercadoló-
gico é muito vantajoso. É possível também perceber a constante
autorreferência da narrativa, assim como a referência a outros

191
produtos audiovisuais, como filmes e outros desenhos animados
da Cartoon Network. A animação é toda em 2D, numa paleta
de cores pastéis e com fundos bem detalhados, o que lembra a
técnica da celulose, mais usada na chamada fase televisiva da
animação. Tudo isso contribui para o estilo
vintage do desenho,
relembrando antigas obras do Cartoon Network.
CARTOON NETWORK E SEU PÚBLICO
Em seu estudo sobre o impacto dos desenhos animados
na vida de crianças em idade escolar, Hassan e Daniyal apontam
que 68% do público da emissora estão na faixa etária entre 2
a 17 anos, enquanto os outros 32% pertencem à faixa etária de
18 anos ou mais. Essa porcentagem mostra que, ainda que em
sua programação sejam veiculados apenas desenhos animados,
o Cartoon Network conta com uma boa base de público para
suas produções mais “maduras”. No caso de
Over The Garden
Wall
não há a violência explícita que, segundo os autores, é ca-
racterística dos desenhos animados para crianças. Muito dessa
violência está relacionada ao humor físico de desenhos como
Tom e Jerry e Looney Tunes, nos quais há cenas onde perso-
nagens montam armadilhas um para o outro, perseguem-se
mutuamente, etc. Nesse caso específico, a minissérie
Over The
Garden Wall
tem poucas piadas, mas o humor está presente de
modo sutil nas situações e toma forma principalmente por meio
de Greg, o irmão mais novo.
Ambos os personagens são bem trabalhados durante a
narrativa. Wirt é o irmão mais velho que, ainda que não tenha
maturidade ou autoconfiança, se vê responsável pelo ingênuo e
agitado Greg, seu meio-irmão. Eles apresentam traços de perso-
nalidade quase opostos um ao outro, oque pode gerar identifica-
ção com diferentes faixas etárias.

192
CONSTRUÇÃO DE OVER THE GARDEN WALL
A inserção do eletrodoméstico televisivo nos lares e a
naturalização disto para as crianças têm possibilitado que as
grandes produtoras de programas infantis realizem atrações te-
levisivas voltadas para o público infantil. Dentre essas atrações
destacam-se desenhos animados voltados, à priori, exclusiva-
mente para as crianças. Partindo do princípio de que o desenho
O
ver The Garden Wall é, como já citado acima, uma minissérie
criada intencionalmente para o público infantil.
Inicialmente, podemos avaliar que o desenho detém
um teor cômico, ampliando seu público alvo de crianças para
adolescentes e adultos. Logo, toda trama dada como sombria e
assustadora é, por vezes, suavizada com alívio cômico. O perso-
nagem Greg, irmão mais novo, é um dos principais responsáveis
por este efeito no desenho. Greg encontra-se a todo instante
fazendo piadas, levando humor, entrando em enrascadas e ate-
nuando toda aflição posterior aos momentos sombrios.
Como destaca Juliane Odinino, segundo Postman, a
criação da infância obrigou concomitantemente a invenção do
adulto, pois antes era possível que ambos transitassem no mes-
mo universo e usufruíssem das mesmas experiências.
A criança passa então, a partir dos anos 1980, a ser vis-
ta como consumidora pelos produtores de conteúdo midiático
massivo. Neste ponto, deve-se levar em conta o que seria então
um desenho configurado exclusivamente a um público infan-
til. Quais seriam, dentro destes contextos, as características que
não se enquadram em
Over The Garden Wall para tal faixa etá-
ria e, para além disso, o que delimita se um desenho é ou não
produzido para crianças.
O desenho é retratado em sua maioria em uma floresta

193
e, como já afirmado, protagonizado pelos dois irmãos. O mais
velho, Wirt é um adolescente que, como tal, possui suas ques-
tões existenciais. Este elemento nos leva a questionar a faixa
etária alvo do desenho, pois percebemos nos diálogos traçados
por Wirt determinadas complexidades em seus pensamentos e
isto certamente nos instiga a refletir sobre a compreensão que
as crianças têm desses diálogos.
Odinino afirma que todo conteúdo midiático é majoritariamente
produzido por adultos. Estas produções estão intrinsecamente
ligadas ao que se tem de ideal de criança predominante em nos-
sa cultura. A criança é receptiva das mensagens veiculadas a
TV, e a recria de acordo com suas experiências, em um processo
de troca de conhecimentos. Ela incorpora o que vê e ouve de
maneira criativa, absorvendo aquilo que lhe interessa naquele
momento. Portanto, é válido pensarmos que, mesmo que indire-
tamente,
Over The Garden Wall pode ser um desenho pensado
para adultos pelos insights que possui. A produção da animação
que enfatiza o medo, assusta o espectador e deixa a sensação de
que o perigo pode estar em qualquer lugar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenho ainda levanta, em partes, questões filosófi-
cas discutidas há tempos, que é a relação entre o bem e o mal
constantemente retratada nas animações. Além disso, temos um
mundo onde animais assumem características humanas, surgem
abóboras falantes e cada personagem possui uma característica
única. Não esquecendo que, para o conjunto da obra, a história
se utiliza do mistério e do suspense para se construir ao longo
dos episódios, é também de maneira inteligente combinada a
arranjos musicais e praticamente tudo no desenho ganha uma

194
canção, e isso traz uma experiência bem mais especial.
Conforme foi estruturado ao longo de todo o artigo, a
construção do desenho animado
Over The Garden Wall é consti-
tuída por diferentes esferas que possibilitam diversas interpreta-
ções. Sendo assim, findamos aqui esta breve análise consideran-
do aberto para futuros desdobramentos que sejam relacionados
a este e outros assuntos referentes a desenho animado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HASSAN, A; DANIYAL, M. Cartoon Network and its Impact on
Behavior of School Going Children: A Case Study of Bahawalpur,
Pakistan. In
International Journal of Management, Economics
and Social Sciences
, 2013, Vol. 2(1), p. 6-11.
ODININO, J.
História social da criança na mídia. Dezembro de
2004, p. 24 – 40
STABILE, C; HARRISON, M. Introduction: prime-time anima-
tion: an overview. In
Prime Time Animation: Television anima-
tion and american culture. Routledge, 2003, p. 1-10

195
A realidade inserida na produção
audiovisual de animação
João Victor Braga Louvise
Luis Filipe Capellão
Este texto tem por objetivo apresentar e analisar quais
os artifícios utilizados na construção e justificativa dos univer-
sos nos quais estão inseridos alguns desenhos animados televi-
sivos. Para tanto, iremos analisar três séries animadas voltadas
para diferente públicos alvos:
Os Simpsons, Apenas Um Show e
Show da Luna. O aspecto comum às produções analisadas no
qual o texto será focado consiste na busca por uma aproximação
ou relação direta com a nossa realidade, de forma a explicar ou
tornar possível a existência desses universos no mesmo mundo
em que os espectadores existem.
A busca pela fidelidade à representação material dos
universos não é exclusividade dos casos citados, mas sim uma
tendência recorrente na produção artística como um todo. A
necessidade do ser humano em interpretar seus conflitos e seu
próprio mundo espelhados nas obras que produz e consome
está presente desde a antropomorfização de animais e objetos
à abordagem de temáticas humanas em suas narrativas. Além
desses aspectos, obras audiovisuais também tendem a buscar
justificativas de acordo com a realidade aos aspectos fantasiosos
presentes em suas tramas.
Além dos criadores, os espectadores também reprodu-
zem a necessidade de aproximação à sua realidade, o que pode
ser observado pelo grande número de teorias sobre filmes e sé-
ries que buscam “encaixar” seus distintos universos no nosso.

196
Podemos usar como exemplo a série Coragem, o Cão Covarde,
que é fonte de um extenso número de teorias que buscam asso-
ciar a realidade dos personagens à aspectos presentes empíricos
dos espectadores. Em uma destas teorias, propõe-se pensar no
Coragem, o personagem principal, como um simples cão obser-
vando o mundo diante de si da forma como é representado a
realidade no desenho. Dessa forma, justifica-se a narrativa e a
ambientação, totalmente associáveis à vida cotidiana de quem
assiste.
Ao longo do texto, falaremos de outros exemplos da ma-
nifestação dessa busca pela realidade em obras audiovisuais, e
de como ela pode trazer efeitos importantes para a construção
da linguagem de cada série.
OS SIMPSONS
Os autores Carol A. Stabile e Mark Harrison, em seu
texto “Primetime Animation: Television animation and ameri-
can Culture”, falam sobre a renascença da animação no prime-
time americano trazida por
Os Simpsons, série criada em 1989
e transmitida desde sua estreia pela Fox Broadcasting Company.
Enquanto o texto cita diversos fatores associados ao humor da
série e sua relação com aspectos clássicos de sitcoms america-
nas, fica evidente a busca da série em trazer para a narrativa
temas e conflitos cotidianos e relevantes em nossa sociedade.
É importante notar que, apesar dessa busca constante
pela realidade, esta busca e a inserção efetiva dela variam de
acordo com o público e suas expectativas. Ao tratar de assuntos
como problemas cotidianos e familiares, trabalho, e a sociedade
como um todo,
Os Simpsons busca realçar a aproximação de seu
público, que consiste em adultos.

197
Outro aspecto interessante é que, apesar das persona-
gens apresentarem clara semelhança com as formas humanas,
com exceção da coloração amarela, e o universo em que eles
existem funcionar como uma versão do mundo real, a série não
se passa de fato na mesma realidade dos espectadores. Inicial-
mente, a ideia do criador da série, inclusive, era de criar uma
família de coelhos, o que distanciaria a série mais ainda do na-
tural, mas traria os mesmo temas em sua narrativa.
Além disso, no episódio “The Treehouse of Horror VI”, é
explicitada a coexistência do mundo real do público e do mundo
das personagens da série. Durante o episódio, Homer encontra
atrás do armário de sua sala um buraco negro, que o leva a
outras dimensões. Na primeira delas, ele aparenta estar num
mundo digital e após problemas neste mundo, Homer acaba por
ser levado ao que seria o mundo real.
Com esta história, os criadores da série posicionam a
ambientação da série num contexto diretamente relacionado à
realidade da Terra. Além disso, o arco traz um entendimento do
motivo de a série trazer noções tão semelhantes à nossa realida-
de, no entanto divergente em diversos aspectos.
APENAS UM SHOW
Apenas um Show é um desenho animado estadunidense
criado por J. G. Quintel e chegou à televisão norte-americana
no ano de 2010 com o nome de
Regular Show. Seu lançamento
no Brasil se deu dois anos mais tarde, veiculado pelo canal de
TV por assinatura Cartoon Network. Sua trama conta a história
de dois amigos antropomorfizados, um gaia-azul chamado Mor-
decai e um guaxinim chamado Rigby. Além dos protagonistas,
as demais personagens apresentam formas muito variadas que

198
vão desde um Pé grande (Saltitão) até uma máquina de doces
(Benson).
Para além da aproximação das relações e características
humanizadas de suas personagens, a série possui uma justifica-
tiva bastante inusitada para as formas animalizadas e objetifi-
cadas que formam seu universo. É importante ressaltar que se
trata um conteúdo audiovisual infanto-juvenil veiculado em um
canal voltado para esse público específico. Entretanto, a cons-
trução desse universo se dá no episódio piloto da série que, ape-
sar de nunca ter feito parte da grade do Cartoon Network, pode
ser visto no site de hospedagem de vídeos Youtube. No piloto,
chamado “2 in the AM PM”, Mordecai e Benson aparecem como
figuras humanas que trabalham em uma loja de conveniência.
Em determinado momento, e depois de muita insistência, Ben-
son aceita uma bala que Mordecai estava lhe oferecendo. Ao
perceber que havia algo de estranho no sabor da bala, Benson
pergunta ao companheiro de trabalho o que é. Mordecai então
responde que tem drogas na bala. A partir de então as persona-
gens, ao sentir os efeitos da droga, se enxergam com a forma em
que aparecem nos demais episódios do desenho. Ou seja, todo o
universo construído na série que vai à televisão corresponde à
“viagem” causada pelo efeito da droga.
O SHOW DA LUNA
O Show da Luna é a representante brasileira das séries
analisadas. Criada em 2014, por Célia Catunda e Kiko Mistrori-
go, é exibida atualmente pelos canais Discovery Kids, TV Apa-
recida e TV Brasil. A série gira em torno da personagem Luna,
uma menina apaixonada por ciência, seu irmão mais novo Ju-
piter e seu furão de estimação Cláudio. Criada para um público

199
de 3 a 5 anos, a série trata principalmente de temas como des-
coberta e aprendizado, utilizando o amor de Luna pela ciência
para explorar o mundo à sua volta.
Apesar de retratar a fase de exploração e descobertas
das crianças,
O Show da Luna apresenta em sua trama uma
espécie de realidade fantasiosa criada por Luna e seu irmão. A
partir deste momento, Cláudio passa a ter voz e conversa com as
demais personagens. Além disso, Luna, Jupiter e Cláudio mer-
gulham no mundo da imaginação e se transformam em animais
e objetos sobre os quais pretendem compreender.
Ao deixar claro o teor imaginativo dessa realidade alter-
nativa, a série promove uma aproximação muito maior com seu
público-alvo, visto que este passa a ver espelhado na tela crian-
ças comuns, mas com potencial de imaginação enorme. Essa
escolha, apesar de trazer essa relação, garante a representação
do descobrimento intrínseco à vida infantil, unindo a realidade
representada à realidade do público, não só no que é cotidiano,
mas também no imaginário muito presente na infância.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como exemplificado durante este texto, é evidente a
tendência de se tornar verossímeis aspectos que naturalmente
fugiriam à realidade do público que consume os produtos au-
diovisuais citados. Além disso, o fato de muitas vezes ideias tor-
nando os shows mais verossímeis partirem do próprio público
indica um desejo natural por esse aspecto.
O uso de diferentes ferramentas, de acordo com a lin-
guagem específica de cada show, se mistura com a própria lin-
guagem, e acrescenta por si só mais significado às tramas. Com

200
isso, os shows conseguem suprir um desejo natural, ao mesmo
colocando em suas histórias aspectos que acrescentam à com-
preensão de sua narrativa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
G1. “Os Simpsons” faz aniversário; veja 25 curiosidades sobre
o desenho. In: G1: Pop & Arte, 2014. DIsponível em <http://
g1.globo.com/pop-arte/noticia/2014/12/os-simpsons-faz-ani-
versario-veja-25-curiosidades-sobre-o-desenho.html>. Acessa-
do em: 17 de julho de 2016.
RALTS, R. Coragem o cão covarde: Mistérios e teorias bizar-
ras. In: Ei Nerd!Disponível em <http://www.einerd.com.br/co-
ragem-o-cao-covarde-misterios-e-teorias-bizarras/>. Acessado
em: 17 de julho de 2016.
STABILE, C. HARRISON, M.
Prime Time Animation: Television
Animation and American Culture
. Routledge, 2003.

201
Irmão do Jorel e a abordagem de
temas de importância social

Daniela de Lima Sousa
Juan Guillermo G. Fischer
Neste trabalho, analisaremos o desenho animado I
rmão
do Jorel
, uma animação desenvolvida pelo Copa Estúdio e exi-
bida pelo Cartoon Network. O objetivo deste texto é explorar
a animação em questão, e tentar mostrar as particularidades
encontradas através dessa observação. Assumimos que o
Irmão
do Jorel
traz em seu enredo temas importantes para o desen-
volvimento crítico de seus espectadores, uma vez que aborda
assuntos que ocasionam debates intensos. Trazer tais questões
para o meio da animação é algo que não era tão comum, essa
mudança é sintomática no aspecto da consciência social, que al-
guns estúdios mais recentes buscam mostrar em suas produções.
O estúdio que produz esse desenho fica localizado no Rio de
Janeiro e foi inaugurado em 2009. Ele também produziu
Trom-
ba Trem, Kiara e os Luminitos, Historietas Assombradas - Para
crianças malcriadas
, entre outras produções.

Irmão do Jorel é a primeira animação original do Car-
toon Network no Brasil e na América Latina. O desenho estreou
em setembro de 2014 e foi exibido em sequência até o seu 26º
episódio, em novembro de 2015, sendo no primeiro ano o mais
visto entre crianças de 4 a 11 anos e recebendo o prêmio de
melhor roteiro no Festival Telas. O sucesso foi tamanho que sua
segunda temporada já está em fase de produção e tem estreia
prevista para o segundo semestre de 2016.
Ultimamente o cenário de animação brasileira vem

202
ganhando notável atenção. Com a indicação de O Menino e o
Mundo
ao Oscar de 2016, tivemos os olhares voltados para a
produção nacional de desenhos animados, mas como podemos
ver, esse processo já possuía certa popularidade. O Brasil nos
últimos anos tem valorizado mais sua produção de animação. O
país, apesar de não ter histórico longo de produções que galgas-
sem sucesso internacionalmente, sempre teve grande importân-
cia na cena, abrigando inclusive o maior festival de animação da
América Latina, o Anima Mundi. Não seria estranho que canais
de TV segmentada, ao passar dos anos, enxergassem no nosso
país um potencial para o ramo.
O Cartoon Network, ainda hoje, é um dos canais com
maior audiência no ramo da TV por assinatura. Ele começou a
ser transmitido em 1992 e quebrou o recorde de popularidade
em agosto de 2002, quando foi assistido em mais de 80 milhões
de casas somente nos Estados Unidos, e exibido em mais de 145
países. Segundo Kevin S. Sandler, o Cartoon Network tem uma
audiência devota e abrange um público de todas as idades; 68%
dele é composto por crianças e adolescentes, de 2 a 17 anos, e
32% é formado por adultos, tendo na faixa de 6 a 11 anos seus
principais espectadores. Apesar disso, o Cartoon Network está
sempre buscando produzir conteúdo que possa ser consumido
por todas as idades, uma forma de angariar todo tipo de audiên-
cia
32
.
Esse Canal de TV fechada voltado somente para a exibi-
ção de desenhos animados segue essa tendência desde seu surgi-
mento. Entendemos como TV segmentada, a seguinte definição
proposta por Wolton em “Elogio do grande público: uma teoria
32 STABILE, Carol; HARRISON, Mark. Prime Time Animation – Television ani-
mation and American culture. Psychology Press, 2003

203
crítica da televisão” (1996):
Uma televisão, gratuita ou paga, concebida para um público
específico. A ideia básica é de não mais oferecer uma progra-
mação que misture gêneros, mas sim visar estreitamente a
uma população, um público. É a ideia de ʻprogramaçãoʼ levada
ao limite, pois que a programação já visa a ajustar ofertas e
demandas no plural. (p.103)
33
Mesmo reconhecendo o papel de atender a uma deman-
da específica não podemos excluir a possibilidade da amplia-
ção do público desses canais, por conta da fragmentação de sua
programação, como a exibição de programas de animação que
variam de público alvo (faixa etária, gênero etc.). Ainda seguin-
do as lógicas mercadológicas para um maior consumo, vemos a
incorporação e adaptação dos canais de TV fechada a essa nova
modalidade, que foi possível graças a existência de um público
plural, a possibilidade de ofertar conteúdo específico e ao des-
gaste relativo da TV aberta de caráter generalista.
O Cartoon Network abordou a tática de exibir produ-
ções feitas nos países nos quais tem transmissão como maneira
de ampliar seu público na região. Isso também foi fomentado
com regulamentações feitas nesses países, regimentando obri-
gatoriamente a exibição de produção nacional, como no caso
do Brasil com a Lei da TV paga (Lei 12.485/2011), que determi-
na que os canais que exibem predominantemente filmes, séries,
animação, documentários (chamados de canais de espaço qua-
lificado) passem a ter a obrigação de dedicar 3 horas e 30 mi-
nutos semanais de seu horário nobre à veiculação de conteúdos
audiovisuais brasileiros, sendo que no mínimo metade deverá
ser produzida por produtora brasileira independente, segundo
33 ANDRELO, Roseane. TV a cabo e a segmentação da comunicação. In Revista
FAMECOS, nº 20. Porto Alegre, abril, 2003.

204
site da ANCINE
34
.
Com isso podemos perceber uma demanda maior por
produções audiovisuais (no caso, desenho animado) no Brasil
nos últimos anos. O desenho
Irmão do Jorel se enquadra nesse
contexto. A série surgiu de um concurso promovido pelo canal
em 2009 para o mercado nacional. Em reportagem no site da
revista RollingStone, Juliano Enrico, criador da série, conta que
a ideia para o desenho surgiu ao vasculhar fotos e lembranças
antigas da família, e perceber que de lá poderiam sair persona-
gens interessantes para uma série animada
35
. O próprio nome
do desenho está relacionado a questões familiares, neste caso
com um certo sentimento de inferioridade em relação ao irmão,
algo que é compartilhado por várias pessoas, causando uma
identificação com o personagem principal, cujo nome próprio
nunca é mencionado, sendo conhecido apenas como “irmão do
Jorel”, nome de seu irmão mais notável.

Irmão do Jorel traz em seus episódios temáticas pou-
co tratadas em desenhos do gênero, dentro de uma abordagem
palatável a qualquer público. Alguns dos temas são muito im-
portantes no quesito social, que vão desde questões ambientais
até questões de gênero. Em alguns episódios podemos notar a
preocupação do próprio estúdio ao criar os roteiros. Eles têm
como premissa “acreditar na inteligência de sua audiência”, o
que é exposto no próprio site da empresa
36
.
34 ANCINE. Lei da TV Paga. Disponível em <https://www.ancine.gov.br/faq-
-lei-da-tv-paga>. Acessado em 18/07/2016.
35 Rolling Stone Brasil. Criador de Irmão do Jorel conta como surgiu a ideia da
insana série animada, 2014. Disponível em <http://rollingstone.uol.com.br/vi-
deo/criador-de-iirmao-do-joreli-conta-de-onde-surgiu-ideia-da-in/>. Acessado
em 18/07/2016.
36 COPA Studio. Quem somos. Disponível em <http://www.copastudio.com/
copa_dw/quem.html>. Acessado em 21/07/2016.

205
Mesmo levando em consideração que muitas formas de
entretenimento, isso inclui os desenhos animados, não estão ne-
cessariamente preocupadas em levar uma mensagem útil a seu
público, todo entretenimento tem seu grau educativo. Segundo
o texto “Child-centred television? Teletubbies and the Educatio-
nal Imperative”, que discute os graus de aprendizagem entre as
crianças que assistem programas educativos voltados especifica-
mente para elas, o nível de aprendizado presente nos programas
televisivos vai depender também de uma série de contrapartidas,
tanto familiares quanto públicas. Porém toda mídia de distração
infantil acaba passando algum ensinamento, ainda que intuiti-
vo, e que pode ser obtido por qualquer um, principalmente por
aqueles que não tem o desenvolvimento cognitivo (enfatizando
crianças abaixo dos 6 anos). Além disso o texto afirma que toda
educação também deve conter entretenimento se o objetivo for
manter o interesse de quem quer aprender, uma vez que a obten-
ção de conhecimento passa por processos variados
37
. Esse pen-
samento vai ao encontro da teoria de Reinhart Koselleck, sobre
o espaço de experiência e o horizonte de expectativa, no qual
o espaço de experiência pode ser entendido como as vivências
e conhecimentos adquiridos, formando a bagagem necessária
para compreensão de seu horizonte de expectativa, que a grosso
modo é a maneira de se entender o mundo e as consequências
de determinadas ações. Quanto mais dados reunimos sobre algo,
melhor saberemos lidar com ele
38
.
37 BUCKINGHAM, David. Child centred television? Teletubbies and the educa-
tional imperative. In: Small Screens: Television for Children. Leicester University
Press, London, 2002.
38 KOSELLECK, Reinhart. ”Espaço de experiência” e “Horizonte de expectativa”
duas categorias históricas In: Futuro Passado. Ed.PUC Rio, Rio de Janeiro, 2006,
p.306 – 327.

206
Não é tão comum a desenhos do gênero infantil tra-
zer críticas ou indiretas tão ácidas. Muitas vezes esses temas
são negligenciados pela subestimação do entendimento de seus
espectadores. Não estamos negando a existência de animações
que voltam suas narrativas para um público misto, trazendo
ao mesmo tempo animações engraçadas de forma a agradar as
crianças e também mostrando situações próprias da vida adul-
ta, de um ponto de vista muitas vezes cômico para justamente
agregar a família inteira no sofá. Em Irmão do Jorel esses temas
são tratados com uma atenção própria. O seriado traz assuntos
relacionados à estrutura familiar que são criticados de forma
saudável e podem ser entendidos facilmente.
Um fato curioso do desenho é que ele faz referência a
conteúdos que não se enquadram, necessariamente, dentro da
geração infantil, seu principal público. Um exemplo disso é o
personagem Steve Magal (clara brincadeira à semelhança entre
os nomes e as aparências do ator americano Steven Seagal com
o cantor brasileiro Sidney Magal). Isso faz com que os jovens e
adultos que o assistem sintam uma conexão.
As referências são das mais variadas. Algumas delas
passam quase despercebidas, outras são muito claras. Até no
nome de alguns episódios notamos citações a outras obras, tan-
to da cultura pop universal (filmes, músicas, outras animações)
como especificidades brasileiras (modos de agir, gírias, festas
típicas).
Além disso, personagens como as avós do protagonista
(Juju e Gigi) geram um sentimento de identificação. É importan-
te notar que esses personagens fazem uma relação direta com o
cotidiano do brasileiro, uma vez que despertam lembranças que
são comuns a quase todos. No caso, Juju é aquela avó fofa, com
uma voz doce e que gosta de mimar seus netos. Já Gigi é a avó

207
mais durona.
Algumas questões presentes no desenho são de suma
importância, uma vez que, ao vê-las retratadas de um modo su-
til, no meio de desenhos animados, cotidianamente, as crianças
podem absorver essas ideias mais facilmente e assim crescer
com um discernimento diferenciado. Dentre alguns exemplos
que são retratados, por exemplo, a poluição gerada por automó-
veis, o autoritarismo militar, o jornalismo sensacionalista, a pre-
servação ambiental e questões de higiene pessoal e alimentação
saudável.
Um assunto muito bem trabalhado está presente no epi-
sódio 25, intitulado “Fúria e poder sobre rodas”, o qual come-
ça abordando diretamente a questão de gênero, ao mostrar os
personagens indagando sobre o que são “coisas de menininha”
através do diálogo do irmão do Jorel e Sara, sua amiga mais
próxima. Ao longo do episódio vemos a desconstrução da ideia
tradicional de que existem coisas específicas para cada gênero,
como futebol para meninos e miniaturas de pôneis rosas para
meninas. Em seu desenrolar, é apresentado um esporte muito
agressivo, chamado
roller derpy, cuja característica principal é
a de ser praticado exclusivamente por meninas, embora inicial-
mente passe a ideia de ser um esporte masculino pela exigência
da força como atributo básico. Ao conhecer esse jogo, o irmão
do Jorel quer tanto praticá-lo que ao comentar tristemente com
sua família que não pode por ser menino, é estimulado a se
transvestir, para assim poder participar. No final, ele ajuda o
time de suas amigas a ganhar uma partida, mas é descoberto,
causando indignação em primeiro momento, mas logo depois
vemos uma aceitação de todos, que comemoram a vitória da
equipe.
Se levarmos as considerações de Hassan e Daniyal, au-

208
tores de “Cartoon Network and its Impact on Behavior of School
Going Children: A Case Study of Bahawalpur, Pakistan”, cujos
estudos apontam que os desenhos influenciam diretamente no
comportamento das crianças, as quais tendem a copiar atitudes,
sejam elas boas ou não, de seus personagens favoritos, percebe-
mos que os efeitos que os desenhos trazem atuam na maneira de
agir das crianças, nos seus gostos, no seu jeito de falar e até de
se vestir, comer e interagir com outras pessoas.
Claro que assumir esse tipo de posicionamento é tam-
bém ignorar uma série de outras influências. O ambiente de
aprendizado de uma criança é motivado por inúmeros fatores,
culpar os desenhos animados por “desvios de conduta” e “com-
portamentos não adequados” ao seu modo de agir habitual soa
um tanto determinista. Essa tese acaba por se desmontar com
os estudos sobre o aprendizado e o desenvolvimento cognitivo
dentro do campo da psicologia e pedagogia. Esse trabalho não
tem folego para abordar mais profundamente este assunto, mas
mesmo se tomássemos o ponto de vista dos autores como algo
legítimo, enquadraríamos o desenho Irmão do Jorel como um
influenciador positivo, uma vez que ele aborda temas até então
pouquíssimo tratados no ramo da animação.
A influência das mídias, especialmente da televisão,
como mecanismo de aprendizagem é considerada muito impor-
tante. A TV tem um forte impacto em seus espectadores, não
só as crianças, mas todos os grupos. Ela tem a capacidade de
sugerir o uso de produtos, reforçar comportamentos e induzir
pensamentos ideológicos. Porém acreditar que quem assiste não
filtra as informações adquiridas e/ou não possuiu um pensa-
mento crítico, é assumir que as pessoas são tábulas rasas e que
não tiveram até aquele momento uma formação anterior, mes-
mo sendo crianças e estando no princípio de sua jornada por

209
conhecimento.
Ver temas importantes inseridos em desenhos animados
faz perceber que os produtores reconhecem que seu trabalho
lida diretamente com o desenvolvimento das crianças e que eles
tem uma grande responsabilidade social. Mesmo inseridos den-
tro de lógicas de consumo, podemos averiguar pontos de resis-
tência e crítica social dentro de algumas animações, que é o que
percebemos no desenho analisado aqui,
Irmão do Jorel.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRELO, R. TV a cabo e a segmentação da comunicação. In:
Revista FAMECOS, nº 20, Porto Alegre, abril de 2003.
BUCKINGHAM, D. Child centred television? Teletubbies and the
educational imperative. In: S
mall Screens: Television for Chil-
dren. Leicester University Press, London, 2002.
KOSELLECK, R. “Espaço de experiência” e “Horizonte de expec-
tativa” duas categorias históricas. In:
Futuro Passado. Ed. PUC
Rio, Rio de Janeiro, 2006 p.306-327.
STABILE, C.; HARRISON, M.. Prime Time Animation – Tele-
vision animation and American culture. In: Psychology Press,
2003.

210
F is For Family
a representação e a complexidade narrativa na série
animada do Netflix
José Pereira
Suzane Frota
Quando se fala sobre
Os Simpsons, Os Flinstones, Os
Jetsons
e outros tantos desenhos que são centrados em um nú-
cleo familiar, a partir do protagonismo do pai de família como o
ser principal que rege todo aquele universo, e como o indivíduo
que começa e termina as principais tramas na maioria de seus
episódios. A tradição de
sitcoms com essas características vai
para além dos desenhos animados e permeia diversos aspectos
do entretenimento da sociedade contemporânea. Ainda que o
processo de uma representação menos centrada no homem adul-
to como provedor e centro dos acontecimentos esteja em cresci-
mento e em até certo ponto em um debate muito mais esclare-
cido socialmente, a desconstrução sobre a persona masculina e
o questionamento sobre a realidade diária dessa família ainda é
feito de uma forma muito lúdica ou é inexistente.
Na contramão dessa ordem ainda vigente do imaginário
coletivo sobre a vida,
F is For Family é uma série que questiona
esses valores e expõe, de uma forma muito singular, a fragilida-
de das relações familiares e da própria inadequação do homem
a esse papel social. A série expõe a complexidade de seu perso-
nagem principal, Frank Murphy, desde suas frustrações pessoais
e busca por alienação, até o seu próprio machismo que constan-
temente sabota e frustra seus próprios filhos e esposa durante
o decorrer dos episódios. A trama discute toda uma nova pos-

211
sibilidade de representações e questionamentos reais dentro do
desenho animado adulto.
Sem abrir mão totalmente dos aspectos oníricos e das
possibilidades que a linguagem do desenho animado permite, a
série retrata, segundo a definição do Wikipedia em Português:
Nos Estados Unidos de 1973, Frank Murphy (Bill Burr) é um
tradicional pai de família, casado com Sue e tem três filhos.
Eles vivem em um bairro de classe média e Frank não tem o
mínimo de paciência com os filhos, em especial com o rebelde
adolescente Kevin, e desvaloriza o trabalho da esposa. Ainda
assim, eles provam se amar após passarem por diversos pro-
blemas no trabalho, na escola e na vizinhança.
A obra representa uma crítica sobre a decadência do
sonho estadunidense. A narrativa aborda questões como proble-
mas trabalhistas e racismo e ainda ridiculariza situações como a
Guerra do Vietnã. Temas como abismos sociais e inveja também
são abordados - na relação de Frank com seu vizinho solteiro
e rico e entre o protagonista e seus subordinados do trabalho.
F is for Family vai na direção oposta ao politicamente correto.
Os palavrões não são poupados nem mesmo pelos personagens
infantis, assim como as piadas sobre temas polêmicos. As situ-
ações absurdas do dia-a-dia são escancaradamente expostas e
ironizadas para o expectador.
A série animada de época retrata uma típica família
americana de classe média da década de 1970. Ao longo da
trama acompanhamos essa família enfrentando questões que,
naquela época, ainda eram tabus, estavam sendo incorporados
pela sociedade para levantar discussões com o público da atua-
lidade. O personagem principal é o estereótipo de um homem de
meia idade infeliz com os rumos que sua vida tomou. A esposa
é a típica mãe e dona de casa, que ao longo da série também
percebe que sente um vazio por exercer praticamente só essas

212
funções. O filho mais velho é a representação do adolescente re-
belde, e por isso está sempre em conflito com seu pai. Enquanto
isso, o filho do meio vive fugindo de valentões da escola. Já a
filha mais nova é a princesinha da família, perfeita na visão do
pai.
A série é baseada em um
stand-up de Bill Burr, humo-
rista e ator americano que participou das comédias Uma Noite
Fora de Série (2010) e As Bem-Armadas (2014), além da aclama-
da série Breaking Bad. O projeto foi criado por Burr e Michael
Price, roteirista de Os Simpsons, e foi lançada pelo site de stre-
aming Netflix. Bill Burr também dubla o patriarca da família,
Frank Murphy. A animação para adultos foi lançada em dezem-
bro de 2015 e possui uma temporada com 6 episódios com me-
nos de 30 minutos cada. A segunda temporada já foi confirmada
pela Netflix e dessa vez ela terá 10 episódios. A produção é da
Gaumont International Television e Wild West Television.
PRIMETIME E AS NARRATIVAS COMPLEXAS DO
NETFLIX

Em uma era de consumo digital, os hábitos do especta-
dor e a liberdade de produção crescem cada vez mais em dire-
ção a uma nova concepção de criação e acesso ao conteúdo. A
partir de conceitos como a cauda longa de Chirs Anderson, a ló-
gica mercadológica e financeira se expande e se transforma em
um caminho muito amplo e vasto dentre suas matrizes originais
de produção.
Distinto de uma produção padrão e tradicional para
uma grade televisiva,
F is For Family se encaixa em um novo
modelo de experimentação para os próprios desenhos animados.
Mesmo depois da criação de
BoJack Horseman, série animada

213
original do Netflix que estreou em 2014, percebe-se a relação
da criação de uma temporada piloto de 6 episódios com pri-
metime televisivo atual e vigente em produções como
Breaking
Bad
. Não obstante, pode-se refletir como a história de Frank e
sua família concede uma nova perspectiva para o primetime
e seus vínculos históricos com a cultura americana na relação
com o desenho animado, não só como um conteúdo, mas como
um exercício de formato à própria lógica atual de consumo de
narrativas.
Carol A. Stabile e Mark Harrison versaram em suas
reflexões sobre a cultura americana e as séries animadas no
primetime da grade televisiva e sobre modelos de sucesso que
se assemelham ao objeto de estudo proposto, em seu conteúdo,
mas que são partes de uma grade de consumo fechada. Em uma
era de binge watching e de um fluxo descomunal de novidades,
talvez, a apropriação de modelos semelhantes ao que cativa os
espectadores, seja a nova possibilidade de força dentro de uma
produção de desenhos para se estabelecerem dentro das diver-
sas escolhas possíveis ao espectador no mesmo patamar que o
conteúdo do primetime contemporâneo acompanhando um mo-
vimento de deslocamento ideológico que se iniciou nos anos 90
na linguagem dos desenhos animados.

Enquanto nos anos 1960 e 1970 havia um clima de contestação
e conscientização política, nos anos 1990 há um desgaste des-
ses ideais. Tendo início na dé cada de 1980, segundo Douglas
Kellner, esse período passou por diversas crises sociais e
econômicas, que se reiteram em produções cinematográ ficas e
outras manifestações da cultura popular. (HERSKOVIC, 2011)
A partir dessa linhagem histórica recente, em uma nar-
rativa satírica e ao mesmo tempo realista, as representações e
questões abordadas na série, seus arcos narrativos e o desloca-
mento de quem assiste seu conteúdo para uma época em que

214
certos valores que não são mais admitidos como inquestionáveis
são somente alguns dos aspectos capazes de reforçar uma lei-
tura crítica que ela propõe. Constituindo-se além do humor, da
banalidade cotidiana e dos personagens complexos, o conjunto
de seus elementos dramáticos alinhados à sua inserção nesse
modelo televisivo é algo muito relevante para compreender-se
como seu próprio tempo, espaço e contexto são as bases que
propiciam sua concepção, progressão e consolidação, enquanto
conteúdo, formato e exibição.
Em uma tonalidade mais sóbria e menos infantil do que
Os Simpsons, F is for family é um produto cultural que pode ser
associado a outros tão complexos como sua proposta e contem-
porâneos à sua realização. Tim Ferris analisa a relação entre a
criação de narrativas complexas e o modelo de produção permi-
tido pelo Netflix através de
House of Cards. Em muitos aspectos,
os mesmos parâmetros podem ser utilizados para refletir sobre
como a possibilidade de uma janela de exibição em massa per-
mite rearranjos do conteúdo de uma obra audiovisual, sendo ela
um desenho ou não.
A liberdade artística e a subversão de limites propostos
pelas narrativas mais clássicas e seus arquétipos são possíveis
através de um ambiente que não limita o formato e não censura
os temas em detrimento da quantidade de espectadores possí-
veis, mas se estruturam na criação de um conteúdo sólido e
possível de ser assimilado pelas mais diversas pessoas. Logo, o
controle criativo permite uma narrativa complexa e menos pau-
tada em fórmulas e modelos pouco flexíveis para sua realização.
Na série, as relações de trabalho, a alienação e as nuan-
ces das relações humanas não são apenas elementos presentes
na história em segundo plano, mas a base principal para criação
de um universo coeso e mais profundo dentro de sua trama. A

215
banalidade das coisas não se perde, mas se acumula naqueles
personagens que não se renovam a cada episódio, porém pos-
suem diversas camadas e aspectos distintos de suas personalida-
des e experiências dentro de cada contexto em que são inseridos,
abrindo espaço para um debate ainda mais complexo sobre a
pluralidade de interpretações, sobre suas ações e aspectos psico-
lógicos.
MACHISMO E A PROBLEMATIZAÇÃO DAS QUES -
TÕES DE GÊNERO
Ao longo da série várias questões polêmicas são inseri-
das no cotidiano da família. Vale lembrar que certos assuntos
que são considerados tabus para os personagens e para o público
do programa, são temas recorrentes. A narrativa se utiliza exa-
tamente da ironização desses temas para levar o expectador a
refletir sobre o assunto. Uma dessas questões é a do machismo,
que foi abordado de forma mais intensa no episódio “F is for
halloween”. De um lado está Sue, que recebe uma proposta de
emprego, mas que acaba sendo boicotada pelo marido, já que
ele não quer que ela trabalhe. Do outro está a filha mais nova,
que é vista como uma “princesa”. Frank acredita que a filha,
diferente da visão que tem de seus outros filhos, não faça nada
de errado e seja extremamente delicada. Essa visão de perfeição
acaba ora ajudando, ora limitando as ações da filha.
É possível relacionar essas questões com o artigo “Girl
Cartoons Second Wave: Transforming the Genre”, que mostra
algumas perspectivas sobre os desenhos animados e a represen-
tação feminina. Na obra, Katia Perea examina como os desenhos
animados podem ser uma forma de rever ou reforçar as defini-
ções sexo-normativa estabelecidas no senso comum. A autora

216
estabelece também duas fases dos desenhos animados infantis
femininos.
A primeira fase era baseada em uma produção de con-
teúdo pensada primordialmente para a venda de brinquedos. As
protagonistas das tramas eram líderes e resolviam os problemas
em grupo através da comunicação verbal. Já ao final da déca-
da de 1990 uma nova era de desenhos voltados para meninas
se iniciou. Essa segunda onda também colocava meninas como
protagonistas, mas ao contrário da primeira, não delimitava a
resolução de problemas apenas a conversas, mostrando que ga-
rotas poderiam ter força física. O principal representante dessa
mudança foi o desenho
The Powerpuff Girls, que ajudou a ex-
pandir a produção de desenhos voltados para meninas. Além
disso, o desenho expandiu as definições de gênero ao questionar
diversos estereótipos, como a ideia de fragilidade das mulheres.
A autora define que um tipo de personagem frequentemente
presente em produções desse tipo é o que se pode chamar em
uma tradução livre de “menino misógino”. Esse tipo de perso-
nagem deprecia traços considerados femininos e está sempre
deixando isso claro para as protagonistas. Esse arquétipo ajuda
a bloquear as representações de igualdade de gênero.
A produção
F is for Family está longe de ser um progra-
ma voltado para crianças. Porém, ao traçar um paralelo entre
algumas ideias propostas por Katia Perea com a série animada,
é possível ver pontos em comum, como por exemplo o “menino
misógino” representado por Frank. Papel que fica claro quando
Maureen, sua filha mais nova, tenta escolher uma entre várias
opções de fantasias consideradas masculinas, e o pai não deixa
por considerar todas elas inapropriadas. O personagem princi-
pal tem uma visão conservadora e acredita que existem funções
e comportamentos diferenciados para homens e mulheres. Um

217
exemplo disso é o diálogo em que o pai diz para a filha que ga-
rotas não podem ser astronautas.
Podemos perceber também o uso do “menino misógino”
na relação de Frank com o trabalho de sua esposa. A questão do
trabalho da personagem Sue já havia sido abordada em outros
episódios. Inicialmente ela era uma revendedora que trabalhava
de casa. Enquanto levava essa função a sério, o marido sempre
tratava a questão como se fosse apenas um hobbie, por mais que
sua esposa dissesse o contrário. O ápice do problema acontece
quando seu marido atende a um telefonema em que a chefe
de sua esposa faz proposta para Sue trabalhar no escritório da
companhia. Frank então afirma que a esposa não quer trabalhar
fora e que ela prefere ficar em casa cuidando dos filhos. Ele só
não esperava que ela descobrisse.
Como analisado anteriormente, a narrativa ironiza
questões polêmicas para gerar o debate. Em relação ao machis-
mo não é diferente. Ao final do episódio ambas as mulheres
acabam conseguindo o que querem. A mãe começa a trabalhar
fora por meio período e a filha consegue se fantasiar de um per-
sonagem que, pela visão da época, não condiz com o seu gênero.
O pai acaba cedendo e tendo que conviver de diferentes formas
com as escolhas das mulheres de sua família. A narrativa tam-
bém deixa claro que não existe nenhum problema em relação as
escolhas feitas por essas mulheres e acaba nos mostrando que
os preconceitos que parecem ser de décadas passadas não estão
assim tão longe dos dias atuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Iniciando essa discussão e compreendendo o contexto
histórico televisivo e social do qual a série se origina, é evidente

218
a potência dos desenhos animados, não como apenas um entre-
tenimento superficial e pouco relevante para o debate de ques-
tões complexas e sociais. Exemplos como as críticas e reflexões
em
Os Simpsons ou South Park refutam em ampla divulgação,
desde os anos 90, esse juízo de valor dado comumente às anima-
ções.
No entanto,
F is for Family é capaz de se aproximar de
um novo horizonte de formato e conteúdo que não abandona a
história de sua matriz, mas que expande suas perspectivas para
debates e representações em uma direção singular que dialoga
e se insere na atualidade do processo evolutivo da própria dra-
maturgia televisiva.

219
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDERSON, C. A Cauda Longa: do mercado de massa para o
mercado de nicho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.
FENNIS, T.
How Do Netflix Production Practices Allow for Com-
plex Storytelling? An Analysis of House of Cards, University of
Amsterdam, junho de 2016.
HERSKOVIC, C. Chegando a Springfield: humor e sátira na série
Os Simpsons. In:
Revista USP, v.88, Universidade de São Paulo,
2011.
MITTELL, J. Cartoon realism: genre mixing and the cultural life
of The Simpsons. In:
The Velvet Light Trap, n. 47, 2001, p. 15-28.
PEREA, K. Girl Cartoons Second Wave: Transforming the Genre.
In:
Animation: an interdisciplinar journal, SAGE Journals, 10 nº.
3, 189-204, 2015.
Premiere Date. Netflix has officially renewed F is for Family
for season 2, 2016. Disponível em <http://premieredate.tv/
cartoons/2508-is-f-is-for-family-coming-back-for-season-2-
-release-date.html>. Acessado em: 19 de Julho de 2016.
Wikipedia. F is for Family. <https://pt.wikipedia.org/wiki/F_Is_
for_Family> Acessado em: 19 de Julho de 2016.

220
Lilo & Stitch
o filme e a série
Carolina Tocci
Victor Hugo Salles
A animação
Lilo & Stitch, dos estúdios Disney, começou
sendo um longa-metragem em 2002. Em 2003, foi feita uma
continuação com
Stitch! O Filme, que foi o ponto principal e de
partida para a série animada na TV do canal Disney,
Lilo & Sti-
tch: A Série. Esta, por sua vez, é constituída de duas temporadas
e 65 episódios; os plots giram em torno de Lilo, Stitch, Pleakley
e Jumba capturando as 625 experiências feitas por Jumba que
estão por uma ilha do Havaí e não deixa-las cair na mão de Gan-
tu e de seu “ajudante”, a experiência 625 (uma antes de Stitch).
TEMÁTICAS SOCIAIS
A série segue a mesma premissa do filme e aborda, im-
plicitamente, questões sociais assim como o filme, que trouxe
um olhar humanizado e mais próximo da realidade, motivo
claro pela conexão e repercussão do filme até os dias de hoje.
Juliana Odinino afirma que o sucesso dos programas infantis
não depende só da imposição dos pais no que as crianças as-
sistem, mas também das suas próprias preferências, “marcadas
principalmente pelo jogo de projeção-identificação com as per-
sonagens.” (p.52). A personagem de Lilo é um exemplo desse
processo de identificação pessoal, pois ela não se encaixa nos
padrões comumente apresentados nos filmes da Disney: ela é
aquela menina que não está dentro dos padrões estéticos, tem

221
gostos tidos como estranhos, é um pouco obscura por ter uma
vida mais complicada, e talvez seja por isso que não tem amigos.
Os diálogos entre Lilo e Nani, sua irmã mais velha, são bem
“reais” e fáceis de serem identificados em uma situação normal
de irmãs, assim como a situação social e financeira em que a
pequena família da ilha exótica do Havaí se encontra, com as-
sistentes socais e trabalhos variados.
A QUESTÃO FEMINISTA
A protagonista da série, junto com Stitch, é Lilo, uma
menina que enfrenta vários obstáculos sociais após ter perdido
os pais e sofrer nas mãos das “meninas malvadas” que moram
na ilha junto com ela. À primeira vista os traços usados para
desenhar todos os personagens são claramente diferenciados
das demais produções da Disney. No entanto, é explícito que
nem Lilo nem Nani seguem o padrão de beleza imposto pela
sociedade e presente em quase todos os filmes da Disney. Seu
comportamento também é destoante; em várias cenas é possível
ver como Lilo e sua irmã mais velha Nani são personagens fe-
mininas fortes e independentes. Em certas ocasiões Lilo poderia
até ser vista como uma menina bruta, no início do filme isso é
retratado, quando ela se envolve em uma briga com uma das
meninas da turma de dança, Mertle, a clássica líder da paneli-
nha que incita outras meninas a rejeitarem Lilo. Nani, por sua
vez, está em um relacionamento complicado com David e, em-
bora ele tente tomar os problemas para si, Nani é firme e está
sempre tentando cuidar de sua irmã sem ajuda alheia e luta para
manter sua irmã junto a ela, mesmo enfrentando o sistema de
adoção, uma questão pouco abordada até então.

222
Ao mesmo tempo em que a história de Lilo e Nani é re-
pleta de quebra de estereótipos femininos nos filmes da Disney,
vemos em Mertle a menina que humilha, é maléfica e “menini-
nha” (comum no protagonismo da primeira onda de Cartoons de
meninas), assim como na sucessão do primeiro filme da trama
(
Stitch! O Filme e Leroy & Stitch), nos quais quem está no pro-
tagonismo do filme é Stitch, como quem diz “legal termos uma
protagonista forte mulher, mas também temos dois filmes de
protagonismo masculino” para atrair e fazer com que o público
masculino goste mais de Stitch, como afirma Katia Perea (p.10).
Lilo & Stitch: The Series involves Lilo and Stitch rehabilitating
the remaining 625 alien animals on Kauai. Like Dora, Lilo is
also an explorer. She is heroic and brave as she traverses the
island often engaging in perilous activity. Carried over from
the movie is mean girl Mertle Edmunds who is constantly cri-
ticizing Lilo for not acting like a normal girl. Lilo is fond of
non-traditional girly traits; she is an Elvis fan, as well as a
fan of mummies, bugs and overeating, to name a few. Mertle
calls Lilo a ‘loser’, ‘riffraff’ (‘Yapper: Experiment 007’, 2003)
or ‘Weirdlo’ (‘Swapper: Experiment 355’, 2004) and sabota-
ges Lilo’s attempts to integrate into girls’ activities such as
hula pageants or tea parties (‘Mr. Stenchy: Experiment 254’,
2003). Mertle reminds us that little girls are not supposed to
be alienfighting, Elvis fans while Disney reminds us that boys
are supposed to be fans of Stitch not Lilo.
Outra personagem que deve ser levada em consideração
é a Grande Conselheira da União Federativa da Galáxia. Embo-
ra ela apareça em poucas cenas, fica claro sua autoridade e em
poucos filmes é visto uma mulher com uma posição de poder
como a dela. Embora em nenhum momento fique claro a exten-
são de tal autoridade, podemos compreender que ela tem grande
controle sobre questões que dizem respeito a toda Galáxia.
INCLUSÃO SOCIAL

223
A série apresenta as outras 625 experiências, além de
Stitch, que foram por fim lançadas na Terra, especialmente na
Ilha onde Lilo mora (cada uma delas possui um aspecto e po-
der único). Esse elemento dá continuidade direta à questão da
diferença social que existe desde o filme. As experiências são
uma expressão da diversidade racial e, em certo ponto, até de
ideologia, pois cada experiência tem sua própria personalidade
e se relaciona de forma diferenciada com o ambiente terrestre.
A experiência com mais destaque além do próprio 626 (Stitch) é
o 625 (Reuben), o antecessor falho de Stitch que, apesar de ser
retratado como um acomodado durante a série, é uma das pou-
cas experiências que possui um diálogo contínuo e articulado.
Embora seja um tipo de anti-héroi, ele representa diretamente a
questão da diversidade de ideologia em seus discursos com o vi-
lão Gantu, sempre de alguma forma tentando influenciar Gantu
a “aproveitar mais a vida”. Durante a série, as experiências são
encontradas e a princípio se mostram problemáticas e revoltas,
porém ao final de cada episódio elas encontram uma forma de
se encaixar na realidade daquela sociedade - normalmente eles
eram empregados pelos lojistas que vivem na ilha.
Partindo de outra questão relevante das diferenças, é a
personalidade da Lilo, principal motivo da sua exclusão do gru-
po das meninas. Lilo é uma menina um tanto solitária que não
se importa em ser diferente. Um de seus costumes excêntricos é
Fofuxo, um peixe que ela alimenta no início do filme afirmando
que o peixe “controla o tempo”; outra de suas peculiaridades é
sua boneca caseira, Xepa, a boneca é um claro reflexo da situa-
ção financeira que Lilo vive por não ter um suporte financeiro
tão grande, no entanto, ela não se importa em mostrar a boneca
e sua afeição ao brinquedo é clara.
Em outras cenas é possível ver como Lilo tem uma per-

224
sonalidade que, embora infantil, é mais “sombria”, provavel-
mente influenciada pela perda dos pais numa idade tão jovem.
Essa personalidade é o principal fator para seu vínculo com Sti-
tch, que foi “adotado” no canil local. Lilo se identifica com ele
por ele também ser rejeitado pelos demais cães e mais adiante,
quando ela começa a conhecer melhor a personalidade a princí-
pio maligna de Stitch, ela ainda assim não se assusta mas tenta
ajudar para que ele possa se tornar um cachorro mais civilizado.
OHANA
“Ohana quer dizer família e família quer dizer nunca
abandonar ou esquecer”
Embora exista uma atenção grande para com as mino-
rias, o foco principal desde o filme são os valores familiares.
Retratando 2 órfãs no filme, já nos deparamos com um quadro
raro dentro do universo Disney, a relação de Lilo e Nani é estrei-
ta, porém é exatamente o que é: uma relação entre irmãs que
vivem brigando e implicando uma com a outra, um aspecto pou-
co retratado que são essas relações em seu teor mais puro, onde
mesmo que se amem, continuem a ter problemas. O filme não
retrata exatamente o luto de ambas, mas é implícito pelo com-
portamento mais revoltado de Lilo, que se dissipa ao longo das
séries com um amadurecimento progressivo, e Nani, que enfren-
ta as responsabilidades súbitas de ser a guardiã de Lilo e ainda
gerenciar uma casa sozinha. Esta delicada mistura de fatores
cria uma ponte com a realidade de muitas pessoas. No entanto
o quadro mais delicado do relacionamento delas é a iminente
separação imposta pelo governo, que envia o assistente Cobra
Bubbles para intervir na situação e levar Lilo para o sistema

225
de adoção. Esse fator é um dos motores chave da história, pois
além de gerar um sério questionamento nas personagens, leva à
adoção de Stitch e um estreitamento do laço das irmãs.
Outro relacionamento complexo é o de Nani e Stitch.
Desde o momento da adoção Nani reluta em levar Stitch com
elas por ele não ser um cachorro “comum” e logo ela percebe
que Stitch não é um animal comum e suspeita dele e de seu
comportamento grande parte do filme. Na cena da praia na qual
Jumba ataca Stitch e ele acidentalmente se agarra a Lilo quase
a afogando, Nani resolve mandar ele embora para manter Lilo
segura. Ao final do filme, quando Gantu acidentalmente captura
Lilo, que mais tarde é resgatada por Stitch, ela se convence de
que ele é da família depois de trazer Lilo sã e salva para casa.
Stitch, por sua vez, é uma criatura criada dentro de um
laboratório feito para destruir, começa como um ser hostil e
maligno, beirando um certo sadismo e tendo prazer nisso. Na
sua primeira aparição ele aparece como uma criatura primitiva,
embora Jumba afirme que ele seja mais inteligente e com um
pensamento mais rápido do que o de um supercomputador. Na
mesma cena ele demonstra ter compreensão do que é dito e
também que possui a capacidade de se comunicar, mesmo que
ainda seja por um dialeto alienígena, mais tarde ele é mostra-
do usando algumas palavras soltas, mostrando certo grau de
humanidade. Ao chegar na Terra, ele acidentalmente vai parar
no canil onde é encontrado por Lilo. A princípio seu plano é se
esconder como um animal de estimação para fugir das mãos de
Jumba, mas acaba se afeiçoando a Lilo devido as suas tentativas
de transformar ele em um homem como Elvis. Stitch demonstra
uma natureza selvagem que vem do fato de ele ter sido criado
e isto está diretamente relacionado ao seu comportamento sel-
vagem e seu afastamento emocional que aos poucos é revertido

226
pela sua ligação com Lilo. Lentamente é possível ver sua transi-
ção de criatura para um membro da família, mas só ao final do
filme ele compreende completamente o que significa ohana e se
dá conta de sua ligação com a Lilo. Sua transformação pode ser
vista na série refletida nos seus primos, que ele sempre auxilia
e instrui para que também possam se integrar no meio de viver
da terra. Podemos notar que ao decorrer da série ele está mais
humanizado e consegue passar isso para os outros aliens de for-
ma que todos encontrem a sua forma seu lugar na Terra.
DO PAPEL PARA AS TELAS
Após se tornar oficialmente um projeto, sua produção
durou 3 anos onde a equipe, sob a direção de Chris Sanders e
Dean DeBlois, foi até o Havaí para um estudo do local e seus cos-
tumes, de forma a criar uma representação fiel e que capturasse
a exuberância real do cenário e seus costumes, segundo ele mal
representados previamente.
Eles estudaram as cores e padrões da região, fauna, flo-
ra e até mesmo do céu para conseguirem por fim transmitir por
meio da aquarela um cenário para o filme que de fato reprodu-
zisse todos os detalhes. Stitch, apesar de sua aparência, recebeu
sons e movimentos baseados em diversos animais até que pudes-
sem criar seu padrão.

227
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ELLIS, A. “Lilo & Stitch” foi o filme da Disney mais REALISTA
de todos os tempos. In: Buzzfeed.com, dezembro de 2015. Dis-
ponível em: <https://www.buzzfeed.com/adamellis/lilo-stitch-
-foi-o-filme-mais-real-da-disney-de?utm_term=.qhapwenbl#.
mszLXno4G> Acesso em: 17 jul. 2016
OCamundongo.com. Lilo & Stitch - Curiosidades. Abril./2006.
Disponível em: <http://www.ocamundongo.com.br/lilo-stitch-
-curiosidades/> Acesso em: 17 jul. 2016
ODININO, J. História Social da Criança na Mídia. In: I
maginário
Infantil e Desenho Animado no Cenário da Mundialização das
Culturas
, ed. 1, São Paulo: [s.n.], 2004.
PEREA, K. Girl cartoons second wave: transforming the genre.
In
Animation: an interdisciplinary journal, 2015, vol. 10(3), p.
189-204.

228
Imaginário infantil e interlocuções
na franquia
A Era do Gelo
Mariana Leite Silva

A Era do Gelo consiste em uma franquia de cinco filmes
de animação lançado pela 20th Century Fox e produzida pela
Blue Sky Studios, que começou em 2002 e cujo último episódio
foi lançado em 2016. Apenas o primeiro filme da série arreca-
dou cerca de U$383,257,136 de bilheteria em todo mundo.
Esta é uma série de filmes voltada para o público in-
fantil, mas são exploradas questões relacionadas às interações
sociais e diversidade, devido à amizade que surge no decorrer
da série entre animais de espécies diferentes, assim como fatos
e teorias históricas e geográficas (por exemplo: o derretimento
das geleiras, a separação dos continentes e, mais recentemente,
a teoria do big ben).
Tendo essas questões em vista, a proposta deste traba-
lho é analisar a construção do imaginário infantil e seu apelo
a outros públicos através das temáticas dos filmes, animação
como fonte de produtos e suas interlocuções em termos de gêne-
ro de desenho animado.
CONSUMO INFANTIL EM A ERA DO GELO
Os filmes de A Era do Gelo foram alguns dos longas-me-
tragens de animação mais bem-sucedidos no cinema em termos
de venda de bilheteria nos últimos anos. Com o total de cinco
filmes, A Blue Sky Studios e a Fox desenvolveram um produto
capaz de cativar o público infantil, com grande potencial de

229
consumo que se estende para além do material audiovisual.
A série se passa na Era Cenozóica conhecida como a
última Era do Gelo que aconteceu no planeta terra, e conta a
história de uma bando formado por um mamute (Manny), um
bicho-preguiça (Sid) e um tigre dente-de-sagre (Diego) que sem-
pre precisam fugir de um possível apocalipse ou salvar uns aos
outros. O início da série conta como os três se conheceram em
uma tentativa de devolver um bebê humano à sua “tribo” e aca-
baram se unindo e se tornando um bando. Existe também um
esquilo (Scrat), que possui um único objetivo na vida em todos
os filmes: pegar a noz
No segundo filme (
A Era do Gelo 2), 2006, todos os ani-
mais precisam fugir de uma inundação iminente causada pelo
aquecimento global que está derretendo as geleiras; neste filme
Manny descobre que não é o último mamute da terra e conhece
Ellie. Em
A Era do Gelo 3, 2009, Manny e Ellie estão prestes a
ter um filho quando descobrem que Sid foi parar em um sub-
mundo habitado por dinossauros e o bando precisa resgatá-lo.
No quarto filme,
A Era do Gelo 4, de 2012, a busca de
Scrat pela noz leva a uma consequência dramática: a separação
dos continentes. Nele Manny, Diego e Sid são separados do resto
do grupo e precisam encontrar um modo de voltar para a casa,
exceto que eles são capturados por piratas que querem os impe-
dir de retornar. Diego se apaixona por uma das piratas, a tigresa
Shira. O quinto e último filme da série,
A Era do Gelo: O Big
Bang
, foi lançado no Brasil em julho de 2016 e relata as últimas
aventuras do bando que tentam salvar o mundo de um asteróide
que está vindo em direção à terra.
A cada filme aparecem novos personagens que adicio-
nam novos arcos narrativos e novas dimensões para a história,
como quando os personagens encontram uma parceira ou quan-

230
do eles têm filhos.
É possível perceber que o primeiro filme especificamen-
te trata sobre amizade e união, valorizando a moral, enquanto
os outros, apesar de continuarem a valorizar a amizade e a fa-
mília, trazem outros elementos ao adaptarem assuntos sérios,
como aquecimento global, para o contexto infantil. De praxe
é comum ensinar uma moral para as crianças através dos de-
senhos animados, mas assuntos sérios costumam ser evitados
como uma forma de “proteger” a criança destes problemas. Se-
gundo Odinino, o gênero de animação infantil caracteriza-se
por:
[...] Seu enredo, para recapitular, basicamente traz: muito hu-
mor, a rivalidade entre os personagens, bem e mal muito bem
definidos – o bem é retratado pelo belo e o mal pelo feio -, qua-
se sempre apresentam uma personagem central em torno de
quem a trama se desenrola e pela qual a criança se identifica,
há muita fantasia, não aparecem mortes violentas nem cenas
de sexo, há um problema a ser resolvido no final, presença
de muito colorido, o masculino e o feminino são demarcados
com características muito claras, são de fácil entendimento,
possuem o caráter de entretenimento e , é claro, apresentam
(quase) sempre um final feliz. (ODININO, 2004, p. 57-58)
Apesar da autora se referir aos desenhos animados para
a televisão, é possível observar estas características muito cla-
ras e
A Era do Gelo, exceto que a temática muitas vezes agrada
a públicos mais velhos, que conseguem entender certas piadas
cujo repertório não faz parte do entendimento de uma criança
de dez anos, por exemplo. Percebe-se que estes temas foram es-
colhidos para gerar humor, e não por uma questão de fato edu-
cativa, mesmo assim os filmes são muito utilizados para explicar
um pouco sobre essa época para o público infantil e a instigar a
curiosidade do mesmo.
Como uma animação, os filmes possuem um elemen-
to lúdico muito forte, e como a série se passa no período pré-

231
-histórico, do qual não sabemos muita coisa a respeito, muitos
elementos são adaptados para esse contexto, o que gera humor
e estimula ainda mais a imaginação.
Os elementos que tratam sobre o período da Era do Gelo
e as mudanças que aconteceram no planeta Terra também po-
dem ser vistos como um fator que atrai os adultos a irem junto
com a criança ao cinema, fazendo com que o filme lucre com
todos os públicos. Mesmo assim o foco sempre foi o público in-
fantil.
Em um estudo sobre o programa de televisão
Teletub-
bies, Buckingham (2002) explica que o mercado faz produtos in-
fantis que englobam programas de TV, vídeos, filmes, brinque-
dos e outros, porque o público infantil é muito grande e possui
muito potencial de consumo. Com
A Era do Gelo não foi diferen-
te, durante estes quatorze anos em que as animações foram pro-
duzidas, além dos incontáveis brinquedos, roupas, bonecos dos
personagens no McDonald’s, entre outros produtos com os per-
sonagens da série, foram desenvolvidos dois episódios especiais
para a televisão e quatro curta-metragens lançados em DVD.
A criação de cinco filmes sequenciais, além dos produ-
tos extras, foi possível devido ao potencial de consumo deste
público alvo, os outros produtos são “efeitos colaterais” do su-
cesso dos filmes que criam a dicotomia entre desenhos anima-
dos como produto e produtos dos desenhos animados. Colocar
o público infantil na função de consumidores pode desagradar
a muitos pais, mas na verdade consumir faz parte da essência
humana ocidental atualmente e significa mais do que gastar di-
nheiro com coisas, sejam elas “inúteis” ou não. Para Canclini
(2010), o consumo não só é um instrumento de diferenciação
como possui uma função sociocultural, que move a indústria e
reproduz a força de trabalho.

232
ENTRE O CINEMA, A TELEVISÃO E O DIGITAL
O desenvolvimento da linguagem dos desenhos ani-
mados data do início do século XX, de acordo com Harrison
e Stabile (2003). Deste então, as animações fizeram parte do
cinema, da televisão, até chegar aos dias de hoje, conceituada
pelos mesmos autores como sendo a era digital. Atualmente este
tipo de produto audiovisual é produzido através de meios digi-
tais, aumentando a qualidade dos produtos, as possibilidades de
criação e extrapolando os limites do cinema e da televisão como
suportes de exibição.
Harrison e Stabile separam a história da animação nes-
tas três épocas (cinematográfica, televisiva e digital), contudo,
eles não se preocupam em mostrar como estes três momentos
nunca acabaram para que outro precisasse começar. De fato,
estúdios que produziam curta-metragens para exibi-los no ci-
nema não funcionam mais da mesma forma, pois hoje em dia
a produção cinematográfica está focada em longas-metragens,
mas as animações para o cinema coexistem com aquelas para
a televisão e até mesmo encontram seu lugar na programação
de alguma emissora algum tempo depois de o filme ter saído de
cartaz.

Apesar desta categorização – Fase Cinematográfica e Fase
Televisiva – uma fase não acaba para que outra comece, elas
coexistem e se complementam. Muitas séries de animação
dão origem a filmes (como exemplo temos a série de anima-
ção
Os Simpsons e também Os Simpsons – O Filme), o que
mostra que a época cinematográfica não só não se esgotou
como complementa um produto da televisão. Já a Fase Digital
modificou a referência na forma como as animações são feitas,
pois agora existem técnicas computadorizadas que eliminam
a maior parte do trabalho manual de se desenhar o mesmo
quadro várias vezes para criar a ilusão de movimento. A Fase
Digital transpassa as duas outras (cinematográfica e televisi-
va), aumentando a capacidade de produção e a qualidade dos
produtos, mas a animação digital não se limita apenas a esses

233
dois suportes de exibição, podendo existir também em compu-
tadores, dispositivos móveis e na internet. (SILVA, 2016, p. 20)
Os filmes da franquia A Era do Gelo foram feitos em
formato digital visando à exibição cinematográfica; o primeiro
foi lançado em 2002 e, logo após uma estreia bem sucedida
com boas vendas de bilheteria, o segundo filme já começara
a ser idealizado pelos produtores. Anos depois, os filmes são
constantemente exibidos no canal Fox Brasil, inclusive durante
o horário nobre em dias de semana entre animações como Os
Simpsons.
Foram criados diversos produtos complementares aos
filmes, entre eles dois especiais para a televisão:
A Era do Gelo:
Especial de Natal
(2011), um especial de natal que foi exibido no
Brasil pela Record um ano após sua exibição nos Estados Unidos.
A Era do Gelo: Uma Aventura de Páscoa (2016), um episódio de
páscoa que foi exibido no Brasil pela Rede Globo uma semana
depois do seu lançamento nos Estados Unidos.
Também foram lançados quatro curtas-metragens:
A
Aventura Perdida de Scrat
(2002), Sem Tempo para Nozes (2006),
Sobrevivendo ao Sid (2008) e Cosmic Scrat-tastrophe (2015). Os
dois primeiros são sobre Scrat perseguindo a noz e foram lança-
dos nos DVD’s de
A Era do Gelo 1 e 2, respectivamente. O último
apresenta e mesma temática dos dois primeiros, na verdade é
a história que antecede os acontecimentos do último filme da
série, mas ainda não foi lançado em DVD.
Sobrevivendo ao Sid
conta sobre Sid, que leva algumas crianças para acampar; foi
lançado no DVD de
Norton e o Mundo dos Quem.
Estas outras criações mostram a versatilidade de uma
história de animação voltada para o público infantil, assim
como a capacidade de fidelização de público que torna possível

234
a realização de produtos para além dos filmes. A Era do Gelo é
um exemplo de como a era digital da animação transita também
entre o cinema e a televisão.
CONCLUSÃO
A Era do Gelo se consolidou como alguns dos filmes de
animação mais vistos nos últimos tempos, mesmo quando com-
petindo contra empresas já consolidadas no ramo como Pixar e
Disney. Todos os elementos dos filmes, incluindo a temático e o
estilo de animação, desde a ideia até a execução, foram bons o
suficiente para gerar resultados satisfatórios, o que estimulou a
produção de outros materiais do gênero.
A indústria de animação sabe que desenhos infantis são
propícios ao sucesso e a Fox, que possui boas experiências no
ramo de animações para a televisão, soube explorar este público
a fim de produzir mais materiais audiovisuais e também uma
grande gama de brinquedos e produtos com o tema dos filmes.

235
Referências Bibliográficas
BUCKINGHAM, D. Child-centred television: Teletubbies and the
Educational Imperative
. Leicester University Press, 2002.
CANCLINI, N.G.
Consumidores e Cidadãos: Conflitos multicultu-
rais da globalização. UFRJ: Rio de Janeiro, 2010.
HARRISON, M.; STABILE, C.
Primetime Animation: Television
animation and American culture. New York: Routledge, 2003.
ODININO, J.
Imaginário Infantil e Desenho Animado no Cená-
rio da Mundialização da Culturas. São Paulo, 2004. Dissertação
de Mestrado em Sociologia. Universidade Estadual de Campinas,
2004.
SILVA, M.
De Bedrock a Springfield: Representação nos dese-
nhos animados do horário nobre. Niterói, 2016. Trabalho de
Conclusão de Curso de Produção Cultural. Universidade Federal
Fluminense, 2016.

236
Análise do anime Samurai X no
contexto da violência nos desenhos
animados e influência do público
infantil
Adriana Ferreira
João Victor Cupolillo
O QUE É ANIME?
A palavra anime (animação em japonês) é, comumente,
associada aos desenhos animados provenientes do Japão. En-
tretanto, anime não é um gênero, mas sim uma forma de arte
(ou meio) por onde são contados diversos tipos de histórias, de
gêneros como terror, ficção científica, comédia etc.
O estilo é conhecido por seus traços bem definidos e
personagens com olhos grandes, que conferem ao mesmo mais
emoção. Seu sucesso, na maioria das vezes, está associado à cul-
tura dos mangás - histórias em quadrinhos feitas ao estilo japo-
nês -, que são responsáveis por “bancar” a produção de grandes
séries para a televisão, filmes, home video (OVAs e OADs) ou
para a internet (ONAs).
O primeiro produto do estilo foi produzido para o cine-
ma e lançado em 1917. Anos mais tarde, em 1958, o gênero foi
exibido pela primeira vez na televisão - e já de forma colorida.
A partir dos anos 60, portanto, as animações começam a se es-
tabelecer como produtos rentáveis e de sucesso, e a ocupar um
grande local de importância na grade de programação das prin-
cipais emissoras japonesas - fato que ocorre até os dias atuais.
Influenciados pela cultura pop norte-americana por conta da
ocupação de seu território durante os anos após a 2ª Guerra

237
Mundial, os desenhistas japoneses começaram a ter contato,
também, com revistas em quadrinhos da época e com os dese-
nhos animados - em sua forma já mais moderna.
O primeiro grande anime de sucesso foi
Astro Boy - ba-
seado no mangá de mesmo nome escrito por Osamu Tezuka -
que, além de alavancar a indústria de animação do país (por
viabilizar o investimento para a criação dos primeiros estúdios
de animação), conquistou fãs do outro lado do mundo, no oci-
dente - mais precisamente, no próprio país de onde via sua in-
fluência: os EUA. Importante citar que também foi em
Astro Boy
que surgira a estética de traços e desenhos adotada até os dias
atuais.
Com o passar dos anos e a expansão do número de
animes, surge uma necessidade de direcionamento de público.
Dessa forma, diversas ramificações em relação aos gêneros fo-
ram criadas de modo a segmentar o tipo de público específico
para qual determinada série era feita ou os elementos presentes
em determinada produção. Bastante populares no ocidente, os
shounen, por exemplo, são voltados para o público masculino
jovem.
SAMURAI X
Samurai X ou Rurouni Kenshin (a palavra rurouni não
existe propriamente em japonês; trata-se de um trocadilho do
autor com a palavra ronin que significa “andarilho”) é uma série
de mangá criada pelo artista Nobuhiro Watsuki e posteriormen-
te adaptado para desenho animado no estilo anime. Em meados
de 1800, período de transição do Japão para o mundo moderno,
os samurais foram se tornando obsoletos e estavam acabando
por dificultar a solidificação do poder do novo governo. Usando
os hitokiri (que literalmente significa “homens-cortadores”, ou

238
seja, assassinos profissionais) e o exército de conscritos, o gover-
no foi capaz de derrotar os samurais rebeldes de uma vez por
todas, iniciando a instauração e uma nova era no Japão, a era
Meiji. Nessa fase, o Japão conheceu uma acelerada moderniza-
ção, vindo a constituir-se em uma potência mundial.
No entanto, o mais poderoso e mortal
hitokiri, Kenshin
Himura, mais conhecido como
Battousai - o retalhador (por sua
grande habilidade com o
Battoujutsu - uma técnica que tem
como objetivo derrotar o oponente com um único golpe, a partir
do desembainhar da espada), ganhou uma nova consciência. Ele
jurou nunca matar de novo e se tornou um rurouni, um andari-
lho que usaria seus poderes para proteger ao invés de matar.
Kenshin vagou errante pelo Japão durante dez anos até
encontrar abrigo no Dojo Kamiya, na cidade de Tokyo, onde
conhece a jovem Kaoru Kamiya que lecionava
kendo (a arte da
espada) no estilo
kamiya kashin (que significa “Espada para a
Vida”) e outros personagens. Ao se tornar um andarilho, Himu-
ra buscava a expiação pelas inúmeras mortes que causara du-
rante o perído
Bakumatsu (fim do período Bakufu/Shogunato)
quando era um hitokiri a serviço do grupo Ishin Shishi (monar-
quistas que desejavam a restauração do governo para as mãos
do imperador), do feudo de Choushuu.
A história é contada de um jeito cômico que acaba por
contrastar com o passado obscuro do protagonista. Há muitas
lutas e, evidentemente, sangue - muito embora Kenshin tenha
como fiel companheira sua Sakabatou (espada de lâmina inver-
tida). Alguns pais podem achar
Samurai X demasiado violento
para seus filhos mais jovens. No entanto, crianças mais velhas,
adolescentes e adultos podem usufruir de uma história incrível,
contada de um jeito cômico, com personagens profundos, acom-
panhando um importante momento histórico vivido no Japão.

239
A batalha travada por Kenshin dentro de si mesmo entre um
assassino e um amante da paz é o grande trunfo emocional para
esta série.
A série de TV tem um total de 95 episódios (mais um
especial). Os episódios de 1 a 66 foram produzidos pelo estúdio
Gallop; do 67 ao 95, pelo estúdio Deen. A série em anime é di-
vidida em três sagas, com os 27 primeiros episódios formando a
saga de Tokyo, seguidos pela saga de Kyoto (ou de Shishio), que
se estende do episódio 28 ao 62. Os episódios restantes (63-95)
não são baseados no mangá, sendo criação original do estúdio.
Em 2006, foi lançado o episódio 96, que consiste em um com-
plemento para o episódio 95, representando o fim definitivo da
série.
CHEGADA AO BRASIL
Samurai X chegou ao país no final do ano de 1999, tra-
zido - de surpresa - pela Rede Globo, para ser transmitido jun-
tamente com os demais desenhos, no horário voltado para o gê-
nero - na parte da manhã. A emissora exibiu a série até meados
de 2000. Isso porque ocorreram diversos problemas ao longo
da exibição do mesmo, com várias cenas violentas e episódios
censurados devido à Classificação Indicativa da época.
No ano seguinte, o canal de TV por assinatura Cartoon
Network adquiriu os direitos do desenho, exibindo-os entre os
anos de 2001 e 2002. Buscando evitar os problemas ocorridos
durante a experiência de exibição anterior, a Cartoon distribuiu
o anime de acordo com as exigências de Classificação Indicativa.
Sendo assim, a animação era inicialmente exibida em horários
de menor audiência (mais precisamente entre 0h e 1h30 da ma-
nhã), dentro do programa T
oonami - que reunia diversas outras

240
animações japonesas que faziam sucesso na época.
De fato, o anime possui diversas cenas de luta, mas elas
são feitas, principalmente, como uma forma de ênfase dramáti-
ca e em meio a pontos de conflito. Os combates em
Samurai X
são feitos, em grande parte, usando armas brancas e, em diver-
sas ocasiões, o sangue está presente - como um tom de veracida-
de. O protagonista Kenshin, apesar de mostrar-se extremamente
pacífico, em determinadas situações é obrigado a lutar com sua
espada de lâmina invertida (que exemplifica bem suas reais in-
tenções pacifistas), por conta da crueldade presente nas atitudes
tomadas por parte dos vilões da trama.
Violência explícita não é comumente mostrada, mas
muitas vezes sugerida. Isso mostra que, associado a uma lingua-
gem cômica, o desenho usa a violência para retratar a realidade
da época, e não como um dos elementos principais de desenvol-
vimento da narrativa.
ANÁLISE
No texto “Child-centered television”, notamos que a criadora do
programa Teletubbies segue uma filosofia moderna de que “os
programas infantis deveriam seguir o ponto de vista da criança”
e que “as crianças possuem direito à diversão e entretenimento
equivalente aos adultos”. Seguindo a mesma linha de raciocínio,
no texto “Imaginário Infantil e Desenho Animado no Cenário
da Mundialização das Culturas”, a autora lembra que “os de-
senhos animados ao longo de sua trajetória dentro da cultura
de massa foram se consagrando como produtos genuinamente
infantis. Apresentam linguagem fácil, personagens estereotipa-
das, estrutura simples e tratam de assuntos “permitidos” a esse
público, ou seja, aparentemente abordam situações com saídas

241
moralmente aceitas e tidas como corretas dentro de um consen-
so considerado universal”.
Diferentemente do que ocorreu nos primórdios dos de-
senhos animados no ocidente - onde estas produções eram asso-
ciadas somente ao público infantil -, no Japão, a cultura das ani-
mações e desenhos animados não apenas alcançou uma grande
parcela de público, como se tornou muito popular em um curto
espaço de tempo.
Grande parte desse fato deve-se à complexidade aborda-
da pelas narrativas criadas, que englobavam diversos públicos
de diferentes idades.
Astro Boy, por exemplo, apesar de parecer
uma série com contornos infantis por contar com um protago-
nista semelhante a um garoto, possui uma narrativa elaborada
que lida diretamente com sentimentos intensos, tais como a per-
da de familiares, e questões como inteligência artificial - temas
nem um pouco tradicionais para o público infantil do ocidente
na época.
No texto “Cartoon Network and its Impact on Behavior
of School Going Children: A Case Study of Bahawalpur, Pakis-
tan”, evidencia-se que conforme os desenhos animados foram se
popularizando e sendo direcionados para o público infantil, os
mesmos passaram a ser a primeira opção delas em seu tempo
livre, influenciando diretamente seus comportamentos, hábitos
e atitudes, inclusive as de consumo. Os autores afirmam que:
Cartoon watching affects the attitude and behavior of kids i.e.
their liking and disliking, way of talking, and behaving with
other children. It also has a strong affect on their language and
the way of their dressing and eating.
De acordo com eles, as crianças têm a prática de ati-
vidade física limitada por conta da preferência por assistir a
desenhos animados. Para a maioria dos pais é um alívio ter seus

242
filhos comportados dentro de casa, seguros (em nível de segu-
rança física) e calmos, comportamento esse que se dá quando a
criança encontra-se na frente da TV assistindo a animações pro-
duzidas para o público infantil. A questão é se psicologicamente,
e até emocionalmente, essa segurança prevalece.
De acordo com o texto, uma das emissoras de desenhos
animados mais populares no mundo, Cartoon Network, tem
como principais telespectadores crianças na faixa etária de 2
a 17 anos. Dentro desse grupo, as crianças com idade de 6 a 11
anos são o público consumidor mais forte de sua programação.
Grande parte dos desenhos animados contém violência, elemen-
to já considerado como parte elementar para sua produção. Essa
violência não é notada tão facilmente se comparada com outras
programações, como filmes e séries, já que frequentemente é
apresentada mesclada com o humor, tendo como protagonistas
personagens cativantes e graciosos. Isso mostra o quanto o pú-
blico infantil está exposto à violência assistindo desenhos ani-
mados. Os efeitos disso podem ser observados nos comporta-
mentos agressivos. De acordo com os autores,
Children often demonstrate television-related behaviors in the
classroom. Research on the violence shown in television pro-
grams and video games is clear cut evidence that violent con-
tents will increase aggressive and violent behavior of youngs-
ters in both short-term and long-term context (Anderson, 2003)”
Eles também afirmam que
Cartoon Network is now no longer safe for kids due to its adult
contents. Before it was believed by both the parents and chil-
dren that cartoons which are being presented on television.
Também pode-se notar os efeitos dos desenhos nas lin-
guagens adotadas pelas crianças, bem como seu modo de vestir,
suas preferências e gostos, em especial em itens de consumo

243
como brinquedos, roupas e objetos escolares. De acordo com
Hassan e Daniyal,
The children are the most important faction of the society
which is being affected by the television contents and carto-
ons that is why children like dresses and accessories/ belon-
gings of their favorite cartoon characters.
Samurai X foi um desenho animado no estilo anime de
grande sucesso mundial, e assim como outros de sucesso similar
como
Sailor Moon, Dragon Ball, Cavaleiros do Zodíaco, Naruto
e Yu Yu Hakusho
, tem a violência como parte do seu enredo,
assim como o humor, que também é um forte elemento no seu
caso. Nota-se que a violência, quando trabalhada em conjunto
com o humor, tem seu impacto atenuado, abrandando a percep-
ção dos seus efeitos, inclusive no que diz respeito ao compor-
tamento infantil, partindo-se também do princípio de que as
crianças estão assistindo a uma programação voltada para elas
- a visão de desenho animado como “coisa de criança”.
Apesar de ter sido veiculado em TV aberta (Rede Globo)
com muitas das cenas de violência tendo sido cortadas, e no
Cartoon Network em horários adequados para um público não
tão novo, as cenas de violência mostradas através de lutas com
espadas e outras armas de forma não cômica, retratando-as de
forma verossímil, com sangue e mortes, já sugere um impac-
to considerável no telespectador infantil. Assim como acontece
com outros desenhos, as crianças que assistem a
Samurai X po-
derão reproduzir as cenas de luta, o linguajar e comportamento
dos personagens, bem como ter preferência por itens de consu-
mo dos mesmos.
Ainda que o elemento violência tenha um grande peso,
a história narrada em
Samurai X enfatiza temas éticos univer-
sais como o valor da amizade, do repeito, do perdão, da repara-
ção dos erros e mudança íntima para se tornar alguém melhor.

244
Também trata de temas como a justiça e humildade, bem como
o amor ao próximo.
Podemos concluir que apesar de
Samurai X retratar a
violência e, assim como a maior parte dos desenhos, ser uma
influência para o público infantil reproduzi-la, ele trata, em con-
trapartida, de uma série de temas que podem influenciar positi-
vamente as crianças em suas atitudes e, consequentemente, na
formação do seu caráter. Porém, por se tratar de uma obra de
maior complexidade a nível de compreensão, o público infan-
til mais novo pode não ser tão impactado positivamente como
crianças de mais idade e adolescentes que seriam, junto com os
adultos, o público mais indicado para o anime.
Pode-se considerar ainda, através da presente análise,
que a violência nos desenhos animados, por estar tão constan-
temente presente, já se tornou banalizada e por isso pode vir
a ficar neutralizada diante da aparição de outros elementos que
tendem a se destacar na história, como valores morais e éticos
universais. Acreditamos que
Samurai X exemplifique essa hipó-
tese.

245
Avatar: a lenda de Aang

Nincow Luciano
Ygor Marques

Avatar: A Lenda de Aang foi criado e produzido por Mi-
chael Dante DiMartino e Bryan Konietzko, para o canal Nickelo-
deon, onde estreou em 2005. Uma série repleta de misticismo e
espiritualidade, referências à cultura asiática, com traços muito
similares ao dos animes. É fechada em três temporadas deno-
minadas: “Livro Um: Água”, “Livro Dois: Terra” e “Livro Três:
Fogo”, contendo ao todo 61 episódios.
Avatar conta a história
de um menino chamado Aang, que nasceu entre os Nômades
do Ar e que, após descobrir ser o Avatar - a reencarnação de
uma poderosa entidade -, o único capaz de controlar os quatro
elementos, decide fugir de seu templo, pois não quer aceitar o
fardo de ter que carregar a responsabilidade de ligar os quatro
povos existentes na Terra: O Reino da Terra, A Tribo da Água, A
Nação do Fogo e os Nômades do Ar.
Enquanto foge, em seu bisão voador, Appa acaba sendo
congelado ao cair no mar em uma tempestade (e espírito do
Avatar cria uma barreira protetora ao seu redor, impedindo que
ele venha a morrer, mas deixando-o congelado e inconsciente).
Ao acordar, 100 anos depois, descobre que uma guerra se instau-
rou e o mundo que ele conheceu já não é mais o mesmo e que,
ainda por cima, ele é caçado pela Nação do Fogo, responsável
pela tal guerra contra os outros povos, em busca de uma hege-
monia. Então ele se junta a Katara e seu irmão Sokka, nativos
da Tribo da Água do Sul, para atravessar o mundo em busca de

246
um dobrador de cada elemento para ensinar Aang, já que essa
é, aparentemente, a única maneira de livrar o mundo da domi-
nação da Nação do Fogo. Em suas viagens, é apresentado um
universo rico em detalhes e cultura, mas que também carrega
o peso de apresentar um mundo dividido e fragilizado por uma
guerra centenária. Extremamente maduro, o desenho não tem
medo de tocar em pontos delicados, quebrar tabus e mostrar de
forma lúdica e poética como a violência em qualquer nível pode
trazer consequências.
LIVRO UM: ÁGUA.
Uma road trip animada onde nos deparamos com um mundo
dividido, violento, triste e a espera de um salvador.
Quando se pensa em desenhos e animações com um
tom mais adulto que o normal, ou até mesmo animes de modo
geral, é aceitável se pensar em violência e excessos de sexualixa-
ção da figura feminina. Em
Avatar: A Lenda de Aang, o caminho
percorrido é o contrário. O que deixa a trama tão madura é a
densidade de sua narrativa, de seu roteiro, como se desenvol-
ve e aprofunda tanto os personagens, como o próprio universo.
Logo nos primeiros episódios conhecemos uma pequena tribo,
localizada no Polo Sul do mundo, chamada Tribo da Água do
Sul, onde todos os adultos (a maioria, homens), deixaram a tribo
para lutar na guerra, restando apenas as crianças e idosos no
geral. Um lugar desesperançoso, onde nos é apresentada Kata-
ra (a voz esperançosa existente logo na abertura), uma menina
que encontra Aang, o Avatar que ficou desaparecido por 100
anos, e vê nele a possibilidade de ajudar a mudar o mundo e
acabar com essa guerra e, juntamente com seu irmão mais velho,
Sokka, deixam a aldeia para seguir com Aang. Por outro lado

247
temos Zuko, um jovem príncipe da Nação do Fogo, que tem sua
autoestima devastada pelo próprio pai, O Senhor do Fogo Ozai,
que o baniu de seu reino sob a ordem de apenas retornar caso
encontrasse o Avatar. Ele tem como tutor seu tio, Iroh, um ex-
-comandante do exército e herdeiro por direito ao trono, ao qual
abdicou depois de perder o único filho em uma batalha contra
o Reino da Terra. Os dois vagam pelo mundo durante dois anos
até que se deparam e entram em conflito com Aang ainda na Tri-
bo do Sul, e assim inicia-se uma caçada durante toda temporada.
Muito além de uma aventura, essa saga traz consigo uma jor-
nada. A perspectiva do espectador se foca através de Aang, que
tem que se confrontar que o mundo já não é mais o mesmo que
conheceu. E, logo nos primeiros episódios, já nos deparamos
com essa situação, quando Aang decide voltar para sua casa, o
Templo do Ar do Sul, mas se depara apenas com um cemitério
e com os restos de um massacre, percebendo que todos de seu
povo foram eliminados pela Nação do Fogo, sendo ele o último
dobrador de ar existente. Eles, então, vão de cidade em cidade,
aldeia em aldeia, tentando ajudar e livrar o povo de algum exér-
cito invasor, deixando, por onde passam, ao menos um pingo de
esperança com o retorno do Avatar.
O que temos no decorrer dessa temporada é o desenvol-
vimento de um mundo onde não nos é apresentada uma dicoto-
mia simples e pura, um mero confronto entre o bem e o mal, e
sim uma sociedade complexa que possui diversos vilões, heróis,
problemas e nuances. A violência está contida, mas também
problematizada, em cada caminho que nossos heróis percorrem.
Seja através de rebeldes que se perderam no caminho de seu
objetivo e que agora estão dispostos a fazer o que for necessário
para atingir seus objetivos, pequenas aldeias que se digladiam,
ou até mesmo um desertor do comando de um exército da Na-

248
ção do Fogo que se esconde, mas também busca o seu lugar
de paz, pois se arrepende e é assombrado pelo seu passado. A
violência é questionada, também, quando Aang enfrenta o que
seria, até então, seu antagonista, Zuko, quando, após o Avatar
ser capturado, o jovem príncipe disfarça-se de O Espírito Azul
para libertá-lo, pois somente ele poderia capturar o Avatar, já
que essa seria a única maneira de voltar para casa e recuperar a
honra e respeito de seu pai e de todos da Nação do Fogo. As coi-
sas não vão como planejado e, após um sério confronto contra o
próprio exército do Fogo, Zuko acaba ferido, Aang acaba salvan-
do o jovem e reflete sobre o posicionamento deles em relação a
esse mundo, tendo um dos mais belos monólogos de toda a série.
“Sabe qual é a pior parte de ter nascido há mais de cem anos?
Saber que perdi todos os amigos que eu tinha. Antes da guerra
começar, eu visitava meu amigo Kuzon. E nós dois arrumáva-
mos muitas encrencas juntos. Ele foi um dos melhores amigos
que eu tive e era da Nação do Fogo, assim como você. Se nós
nos conhecêssemos naquela época, você acha que seriamos
amigos também?”
(Aang, Livro Um: Água, Episódio treze, “O Espírito Azul”)
LIVRO DOIS: TERRA.
Representatividade: as mulheres comandam a temporada, um
olhar muito além da Tríade Beleza, Cérebro e Músculos.
Com o início da segunda temporada, mantemos nova-
mente os questionamentos sobre violência, tendo, logo no pri-
meiro episódio, Aang sendo forçado a entrar no estado Avatar,
ferramenta de autoproteção, onde ele perde o comando de seu
corpo para suas antigas vidas tomarem o controle. Ele teme en-
trar nesse estado pelo descontrole de sua força e de seus poderes,
mas também por não se reconhecer, principalmente pelo que
ocorre na batalha ocorrida no fim da primeira temporada, na

249
qual ele acaba com a investida da Nação do Fogo contra a Tribo
da Água do Norte, eliminando boa parte do exército. Mas os
heróis têm de continuar sua jornada, agora em busca de um
dobrador de Terra. É então que entra a personagem mais caris-
mática de toda a série, a pequena “Bandida Cega”, Toph. Uma
baixinha e encrenqueira menina que vem de uma família no-
bre e tradicional do Reino da Terra. Logo de início, podemos
interpretar que a cegueira de Toph e, consequentemente, sua
proteção exagerada por parte da família, só mostra como as
famílias ricas se portam perante a guerra, tentando se proteger
o máximo possível e procurando não enxergar como o mundo
é realmente. Mas, além disso, ela representa um dobrador que
está conectado diretamente com sua dobra, e usa o que poderia
ser uma desvantagem, ou limitação física, a seu favor. Por outro
lado, Zuko e seu tio Iroh se deparam com uma ameaça terrível e
se veem dessa vez caçados pela própria nação, através da irmã
mais nova do Príncipe do Fogo e, consequentemente, a Princesa,
Azula. Uma pessoa fria, cínica, que beira o sadismo, mas tam-
bém uma dobradora extremamente poderosa. Com a entrada
dessas personagens, temos a confirmação do quão diversificado
é esse mundo, não limitando os talentos apenas para os homens.
Katara, que até a temporada passada era uma mera dobradora
aprendiz, teve que por si só lutar para ter o direito de ser trei-
nada como uma guerreira. Agora ela já evolui a passos largos,
não ficando atrás das novas personagens, e nem mesmo de Aang,
que é superado por Katara.
Outro ponto forte quando se trata do desenvolvimen-
to dessas três personagens é a maneira que são representadas.
Azula, que poderia facilmente em qualquer outra história ser
vista como uma femme fatale, podendo ser sexualizada para
mostrar um certo tipo de liberdade, aqui não possui essa re-

250
presentação. A interpretação vai no caminho contrário, dando
a ela um ar de soldado funcional, perigosa, que intimida quem
atravessa seu caminho, uma estrategista. Toph também reflete
essas novas interpretações, pois é uma menina desleixada, que
sempre está suja de terra e, muitas vezes, por causa de seu gênio
forte, acaba sendo bruta, o que não a faz ser vista menos como
uma menina do que as demais. Outras personagens surgem no
decorrer da série, como Mai, Ty Lee e podemos citar, até mesmo,
a entrada de Suki para a Gaang. Todas elas têm um background
bem explorado, e características que as fazem únicas.
LIVRO TRÊS: FOGO.
Uma desconstrução da vilania e questionamento do que é o bem
e o mal, com enfoque no amadurecimento, tanto dos persona-
gens quanto da própria trama.
A terceira temporada de Avatar começa com os heróis
em busca de um dominador de fogo para ensinar Aang como
dobrar este último elemento a tempo de enfrentar o senhor do
fogo, antes que Ozai use a força do cometa para destruir o Rei-
no da Terra. O lugar mais óbvio onde eles poderiam procurar é
dentro da própria Nação do Fogo, o que, como é de se esperar,
pode e vai gerar impasses e desconforto nos personagens. É jus-
tamente aí que começam a se deparar com um questionamento
do que é certo e errado, lição que, apesar da tentativa de al-
cançar também as crianças, é muito madura, e possivelmente
terá um entendimento maior por parte dos adultos. Um exemplo
encontra-se no segundo episódio desse livro, que se chama “A
faixa de cabeça”. A Gaang desembarca na nação do fogo e, ainda
com medo de serem reconhecidos, acabam roubando algumas
roupas para se disfarçarem de moradores comuns, mas o Avatar

251
acaba, por falta de conhecimento das roupas locais, pegando o
uniforme escolar, e é, então, obrigado a ir para a escola. O que
acontece nos 20 minutos do episódio é extremamente emocio-
nante quando nos damos conta de que esse não é apenas um
episódio divertido em que os personagens vivem altas confusões,
e sim uma desconstrução na base da crença que os personagens
tem de que a Nação do Fogo é má por inteira (já que, até então,
temos a ideia de que foi a Nação toda que atacou os outros pa-
íses). Eles acabam descobrindo que o Senhor do Fogo comanda
seu território com mão de ferro e quando, ao final do episódio,
o Avatar e seus amigos, juntamente com vários alunos da escola
para a qual ele foi mandado por engano, quebram a regra (que
não permitia que ninguém dançasse em território da Nação) e
dançam, o simbolismo por trás disso é o que faz com que o
espectador se emocione e compreenda quem é o real inimigo
desse mundo. Talvez essa relação, a princípio, não fique muito
clara para as crianças que assistem ao desenho, já que a sen-
sação que eles terão será de empatia imediata para com esses
alunos que são proibidos de fazer uma coisa tão básica quanto
dançar, mas a desconstrução que isso gera a partir de então, e
toda a personalidade que é dada aos personagens nascidos na
nação depois de então (incluindo o príncipe Zuko) é usada para
demonstrar que, ou as pessoas mudam, ou elas já não concorda-
vam com a guerra desde o início ou, finalmente, elas não eram
nem nascidas quando isso começou, apenas vieram ao mundo e
o encontraram da maneira como está.
Outro ponto fundamental do terceiro, e último, livro
da série é o amadurecimento que os personagens apresentam
entre o final do anterior e o começo deste. Em
Avatar: A len-
da de Aang muitas vezes esquecemos que os personagens ainda
são apenas crianças, ou adolescentes, que estão perdidos em um

252
mundo em guerra. No livro “Fogo” tanto Zuko, quanto Soka,
passam por uma transformação em seu caráter, aceitando quem
são e passando a agir de outra forma para com seus arredores.
Peguemos como exemplo, aqui, o Príncipe do Fogo, Zuko. Ele
é o “vilão” da série no primeiro livro mas, ainda assim, em di-
versas ocasiões conseguimos simpatizar com a sua causa, já que,
no decorrer da trama, temos a sua história apresentada passo a
passo até chegar onde se encontra, uma das mais belas (senão
a mais bela, de fato) histórias que é contada nesse universo. Ao
chegar no terceiro livro, entretanto, sua missão parece sem sen-
tido, e Zuko acaba por entender, em um momento quase que
catártico, que talvez (e muito provavelmente) ele esteja agindo
do lado errado da batalha, e que sua alma e coração já não per-
tencem mais àquele desejo de vingança e de provar-se para um
Senhor do Fogo que, mesmo sendo seu próprio pai, nunca esteve
presente em seus momentos mais difíceis e importantes, tendo
sido substituído por seu tio, Iroh. Esse momento de transição é
extremamente importante, não só para o desenrolar do enredo
do mundo e do personagem, mas também para notarmos que
esse momento de contestação está presente na vida de todos os
espectadores, o que gera uma identificação imediata com o pas-
sado de muitos, mas ensina, também, para os mais jovens, que
o momento poderá ser difícil e chegará o momento em que ele
terá que escolher o caminho que seguirá, mas que é importante
dar ouvidos aos mais velhos e sábios que se importam com eles
e que os amigos sempre estarão lá para apoiá-los. O momento
final de Zuko é coroado, literal e figurativamente, com a passa-
gem do personagem de príncipe para Senhor do Fogo, que é a
representação da passagem da adolescência para a vida adulta,
deixando no ar que, apesar de uma difícil etapa ter sido conclu-
ída, ainda há muito o que ser feito e que a jornada está apenas
começando.

253
CONCLUSÃO
Avatar: A lenda de Aang é um desenho animado que
possui discussões extremamente pertinentes, tanto para o públi-
co adulto quanto para o infantil. Por apresentar uma temática
muito forte e madura, as discussões que podem ser feitas ao
redor da obra são diversas, mas o que fica comprovado quando
analisamos este desenho em particular, é que é possível tratar
de assuntos considerados do universo adulto com uma lingua-
gem voltada para crianças, já que, até mesmo a discussão sobre
a guerra e a violência, que são muito bem apresentadas, conse-
gue se manter na linha de não pender para o lado da glamou-
rização, nem para o da condenação imediata de ambas. Possui
como tema importante a representação, tanto de gêneros, com
personagens masculinos e femininos com funções narrativas
equiparáveis, quanto na questão de etnia, já que cada nação tem
seus traços físicos e culturais muito bem definidos, apresentan-
do a diversidade como algo natural e que deve ser enaltecido.
Para além disso, seria possível apontar muitíssimos pontos em
que Avatar é extremamente bem-sucedido, como a questão da
vingança ou de compreender a utilização de seus poderes, e que
nem sempre é o correto utilizá-los. Uma jornada de autoconhe-
cimento onde todos os personagens, em determinado momento,
alcançarão algum grau de descobrimento de sua personalidade,
o que apresenta, para todos aqueles que assistem, a possibilida-
de de simpatizar e compreender essa mudança, que vai muito
além dos personagens, se refletindo na vida de cada espectador.

254
Dobrando a sociedade
um estudo sobre A Lenda de Korra
Gabriel Loureiro
Pedro Lima
Como objeto de estudo selecionado, foi optado pela obra
Avatar, dividida em A Lenda de Aang e A Lenda de Korra. A
dupla criadora da obra, Bryan Konietzko e Mike DiMarti, levou
sua obra ao ar pela Nickelodeon, que transmitiu
A Lenda de
Aang
entre 2005 e 2008, e A Lenda de Korra entre 2012 e 2014.
A obra foi um dos desenhos mais populares da década em que
esteve no ar.
A saga conta a história de um mundo onde existem ape-
nas quatro grandes nações, cada uma representada por um ele-
mento (Fogo, Ar, Água ou Terra), onde pessoas conhecidas como
“dobradores” são capazes de manipular um desses elementos,
porém com o Avatar sendo uma pessoa especial, uma entidade
espiritual que é capaz de dominar todos os quatro ao mesmo
tempo, e encarna na terra para usar seus poderes para manter o
equilíbrio no mundo.
A Lenda de Aang narra uma guerra entre
a Nação do Fogo e os demais povos e a missão do Avatar em
trazer a paz, enquanto
A Lenda de Korra se passa setenta anos
após o final da saga anterior, contando a história da nova Avatar,
num mundo teoricamente em paz em que as pessoas buscam eli-
minar as fronteiras das nações, porém com diversos problemas
sociais que não foram resolvidos pelo Avatar até então.
O foco específico desse trabalho é
A Lenda de Korra,
discorrendo sobre as mensagens sociais e políticas apresentadas
na série, ao mesmo tempo em que a obra busca quebrar diversos

255
paradigmas, estimulando a valorização e respeito às diferenças,
trazendo mensagens de autovalorização e empoderamento femi-
nino para o público (que ia desde crianças a partir de 6 anos, até
jovens adultos).
AR
Ao longo da primeira temporada fica claro que Korra
é uma boa Avatar (interessada em ajudar e ambiciosa), porém
uma pessoa com mil defeitos (preguiçosa, mal-humorada e ego-
ísta em muitos momentos), confrontando um inimigo que ela
não entende: o antagonista da temporada levanta o ponto de
que a sociedade é estruturada de forma a dar poder aos dobra-
dores, em detrimento das pessoas que não nasceram com essa
capacidade: assim as pessoas já nascem determinadas como par-
te de uma classe oprimida .
Embora não concorde com a metodologia adotada pelo
vilão, Korra é o tempo todo confrontada se o status quo dessa so-
ciedade, onde as condições de nascimento acabam tendo grande
influência nas oportunidades e na vida política das pessoas, é
justo.
Com o tempo, descobre-se que Amon tem o poder de ti-
rar a dobra elementar das pessoas, e em sua tentativa de impedi-
-lo, Korra perde sua própria dobra. Considerando que ela busca-
va desesperadamente a aceitação do povo como uma boa Avatar
e o quanto sua dobra era parte de si, é uma queda devastadora
para a personagem.
Ao final da temporada, Korra se reconecta aos Avatares
anteriores, e não apenas recupera sua capacidade de dobrar os
elementos, como também restaura sua autoconfiança e acaba
namorando Mako.

256
ESPÍRITOS
A segunda temporada é focada num discurso de reco-
nexão religiosa do povo, em como que a banalização da fé e
dos valores religiosos levou sua nação a decadência, e faz fortes
críticas a teocracias e partidos religiosos em geral. Nessa tempo-
rada, Korra decide aprender sobre o mundo espiritual com seu
tio Unalaq, líder religioso e político de seu povo. Inicialmente
um aliado, Korra descobre que ele possui planos próprios e a
manipulou para atingir suas metas, e com isso ela fica contra o
vilão.
Por causa das repercussões dos atos de Unalaq, Korra
e Mako se separam por não concordarem com a forma de lidar
com a situação. Vítima de um atentado por parte do tio, Korra
passa por um tratamento espiritual que a reconecta com suas
vidas passadas, descobrindo a verdade sobre o Avatar e sua mis-
são na Terra: o Avatar é a encarnação de Raava, o Espírito da
Luz, destinado a enfrentar Vaatu, o Espírito das Trevas, num
evento específico e garantir a prosperidade da humanidade por
milênios. Nesse instante, Korra percebe que seu tio planeja des-
pertar Vaatu e parte para impedi-lo.
Unalaq se junta a Vaatu e derrota Korra, separando Ra-
ava dela e eliminando o Avatar da Terra. Porém, como Luz e
Sombras estão interligadas, Korra consegue se reunir com Raa-
va, renascida dentro de Vaatu, e derrota o tio, porém perde todo
o contato com suas vidas passadas.
Novamente confrontada com uma perda, Korra sofre
com a falta de perspectiva: como Avatar, ela sempre contou com
o auxílio e sabedoria de vidas passadas, que ela nunca mais
terá. Seu mestre lhe ensina que a real sabedoria começa quando

257
a pessoa aceita quem ela é de verdade, e não quem as pessoas
esperam que ela seja.
EQUILÍBRIO
Uma repercussão dos eventos da segunda temporada é
que diversas pessoas ao redor do mundo descobrem a capaci-
dade de dobrar o ar. Porém uma dessas pessoas é Zaheer, um
terrorista líder de um grupo anarquista.
O grupo de Zaheer é composto por um representante
de cada elemento. O quarteto tem como objetivo maior a coe-
xistência de humanos e espíritos num estado de ordem natural
e liberdade, porém, para isto, acreditam que precisam eliminar
todos os sistemas hierárquicos do mundo, incluindo o próprio
Avatar por sua função reguladora da paz.
O grupo consegue capturar Korra e, após intensa tortu-
ra, ela é envenenada com um componente metálico que deveria
deixá-la no Estado Avatar: forma poderosa porém vulnerável
- se morto nesse estado, o Avatar nunca mais reencarna.
Apesar de ter escapado e ter sido resgatada pelos seus amigos,
Korra sofre um trauma físico intenso do veneno: apresenta sé-
rios indícios de transtorno de estresse pós-traumático, sofre de
severa depressão, pesadelos, síndrome do pânico, psicose e bus-
ca se afastar de todos os entes queridos por três anos.
MUDANÇAS
No início da quarta temporada, ainda temos uma Korra
quebrada: ela se recuperou fisicamente, porém sofre com sín-
drome do pânico durante parte da temporada, tendo flashbacks
da tortura em diversos momentos em que tenta ter alguma ati-

258
tude em momentos decisivos.
Sem rumo inicialmente, Korra foge de todos e encontra
Toph, uma dominadora de Terra cega que foi aliada de Aang,
o Avatar anterior, e uma das mais poderosas dominadoras do
mundo. Ao ver que Korra está fugindo de seus medos, Toph in-
siste que ela os enfrente, pois é o que impede a recuperação total
dela. É feita uma metáfora entre o trauma e o fato de que ainda
há traços de veneno metálico no corpo de Korra e que, embora
Toph, como inventora da dominação de metal, seria capaz de
tirá-los, ela mesma que precisa lidar com isso e remover o vene-
no com suas próprias forças.
Finalmente no caminho da recuperação, Korra volta a
cidade para descobrir que Kuvira, uma antiga aliada, se tornou
ditadora no Reino da Terra após os eventos da terceira tempo-
rada. Embora disposta a lutar, ao confrontar a ditadora, Korra
percebe ainda estar sofrendo sintomas do TEPT, que só supera
totalmente ao confrontar Zaheer preso, e com isso ser capaz
de superar o trauma que sofreu. Após confrontar Zaheer, Korra
diz que nunca irá esquecer o que houve, mas que está pronta a
aceitar o passado, e que isso irá torna-la mais forte.
Ao final da temporada, Korra confronta Kuvira não ape-
nas em corpo, mas em mente. A ditadora demonstra que suas
intenções são positivas, ela realmente amava seu povo e sentia
a necessidade de dar um caminho ao povo perdido, que seria
a família que ela nunca teve, porém seus métodos que foram
questionáveis.
A série termina com Korra e Asami deixando implícito
um relacionamento amoroso, construído ao longo das duas ulti-
mas temporadas e sento consolidado no momento em que ambas
decidem aceitar o passado que sofreram, porém abraçando os
problemas como força para o futuro.

259
CONCLUSÃO
Avatar foi um dos desenhos mais populares da década,
tocando crianças e adultos pelos mais diversos motivos. Porém
um ponto sempre trabalhado por Bryan ao longo de ambas as
séries, foi o poder que sua obra teria sobre uma geração. Em
“Cartoon Network and its Impact on Behavior of School Going
Children: A Case Study of Bahawalpur, Pakistan”, Ali Hassan
discorre sobre como as crianças são afetadas pelo que assistem
na TV e como existe um impacto forte do Cartoon Network no
estilo de vida dessas crianças.
Avatar busca ativamente esse im-
pacto nas crianças: desde personagens como Toph e Ming-hua
(ambas deficientes físicas, personagens tradicionalmente frágeis
em desenhos que nesse assumem papéis marcantes, como mu-
lheres poderosas), os traumas psicológicos de Korra e como ela
os enfrenta, e até mesmo na revelação da sexualidade da per-
sonagem ao final, os criadores buscam desde o início transmitir
uma mensagem de autoaceitação no espectador.
Ainda em relação a essa influência que o desenho tem,
Denise Siqueira levanta um questionamento importante em Ci-
ência e poder no universo simbólico do desenho animado:
Exercendo a função formadora – independente do sentido
que essa função possa adotar –, a televisão reforça, com re-
presentações veiculadas por meio dos desenhos, imagens que
já circulam na sociedade, atuando sobre a construção do ima-
ginário infantil e adulto. É claro, no entanto, como observam
os autores de estudos sobre recepção, que os indivíduos só vão
acatar ideias ou pressupostos aos quais já tenham, de antemão,
predisposição para acatar. Porém, quando se trata de um pú-
blico que é principalmente infantil, e está em formação, essas
predisposições ganham nova conotação.
É interessante ressaltar também o papel do período de ex-
posição nesse processo. Os desenhos animados que serviram de
exemplo às reflexões deste artigo são veiculados em vários ho-
rários, durante o dia e a noite.

260
Korra encontra uma barreira em sua última temporada:
a revelação da orientação sexual da personagem desagradou a
Nickelodeon, que chegou a cancelar a série na terceira tempora-
da, ao saber dos planos para o final de Korra e Asami. O desa-
grado do público refletiu em quedas abissais na audiência, o que
levou o estúdio a voltar atrás. Porém a Nickelodeon, ainda assim,
não levou a última temporada de Korra ao ar na televisão, ape-
nas na internet. Essa foi a forma do estúdio controlar justamente
a exposição que as crianças teriam a essa abordagem sobre a
sexualidade, tão destoante dos desenhos apresentados até então
e fugindo do padrão da emissora.
Vale a pena lembrar também o quanto a representação
feminina é interessante. A animação bebe direto da fonte dos
anos 90, quando o advento do poder feminino ficou evidente.
Um olhar mais prático e complexo para a personagem da Kuvi-
ra, observamos como sua construção é algo bem interessante, a
dualidade da personagem (ao mesmo tempo que é ditadora, ela
se importa com seu povo). Essa questão altera o que se foi pen-
sando e feito nas décadas anteriores da mulher ser secundária e
sem profundidade como personagem. Temos algo bem montado
e, pensando no objetivo de criar narrativa, e não feito somente
no intuito de sexualizar a personagem, a força é o núcleo da his-
tória. E por mais que se observe em Kuvira algumas caracterís-
ticas masculinas, a antagonista se mostra como alguém sensível
e interessante, de certa forma, isso potencializa a representação
da mulher em um cenário de violência. Kuvira representa uma
parcela de personagens que estão emergindo nas histórias e se
estabelecendo com propriedade cada vez mais.

261
One Punch Man
a desconstrução e afirmação do shonen
Victor de Oliveira Guebel

Shonen é um gênero que classifica primeiramente man-
gás e que geralmente é usado, também, para classificar animes,
porque boa parte das animações produzidas são adaptações di-
retas das histórias em quadrinhos japonesas. Sendo este um dos
gêneros mais populares de mangá, a palavra shonen se refere à
faixa demográfica que os produtos desta categoria se destinam,
no caso seriam meninos pré-adolescentes e adolescentes.
39

Convenções narrativas típicas incluem um foco muito
grande em ação, girando em torno de temas como heroísmo,
honra, superação e muitas vezes um certo desleixo com desen-
volvimento de personagens e as relações entre eles. Apesar de
recentemente alguns exemplos de personagens femininas mais
bem desenvolvidas em casos como
Inuyasha ou Attack On Ti-
tan, na maioria das vezes mulheres não possuem papéis muito
expressivos e são fontes constantes de
fanservice
40
, mantendo o
foco da história nos homens .
Com o passar
41
do tempo e inspiração sendo carregada
39 AOKI, Deb. What is Shonen Manga?. In Introduction to Shonen Manga. Dis-
ponível em < http://manga.about.com/od/mangacategories/p/shonenintro.
htm>. Acessado em 19/07/2016.
40 Um elemento colocado no produto apenas para agradar fãs, tendo pouca ou
nenhuma importância para a progressão da narrativa. No contexto, é referente
a conteúdo erótico, como aparição de personagens (geralmente femininas) com
roupas reveladoras de maneira geral ou até mesmo sem roupa alguma.
41 BRENNER, 2007, p.31-32

262
entre obras com temas semelhantes, além da influência do que
é popular entre a faixa demográfica alvo, várias peculiarida-
des foram se desenvolvendo e se repetindo em vários trabalhos,
formando vários clichês que se tornaram altamente comuns e
geralmente pesam bastante na classificação de um mangá ou
anime como shonen. Muitas delas vieram da obra
Dragon Ball
(1984-1995) (e suas variantes), iniciada nos anos 80 e que ga-
nhou altíssima popularidade não apenas no Japão, mas em todo
o mundo, sendo o exemplo absoluto do anime destinado para
meninos, incorporando as principais características do gênero
e sendo de grande influência para vários produtos posteriores.
O HERÓI JAPONÊS E O HERÓI AMERICANO
O herói japonês não é perfeito, ele possui falhas e nem
sempre as supera, enquanto o conceito do herói clássico ociden-
tal é de um indivíduo idealizado, alguém que seja um modelo a
ser seguido e que englobe os valores puritanos norte-americanos
e europeus. Nas narrativas japonesas, é mais importante a de-
dicação que alguém tem com algo do que o resultado final, em
muitas narrativas, o herói pode morrer por uma causa vã, mas o
seu esforço é reconhecido e tido como mérito. Por isso, boa par-
te das séries shonen giram em torno de superação e dedicação
42
.
Em quase todas as narrativas
shonen, o protagonista é
alguém que quer ser o melhor em alguma coisa, seja para salvar
o mundo, se provar e ganhar reconhecimento, ou honrar seus
parentes e/ou amigos. Alguns exemplos populares incluem:

Naruto (1997-2014): O personagem-título quer ser o
42 LEVI, 1998, p.68-69

263
melhor dos ninjas para conquistar o respeito de sua aldeia.

Dragon Ball Z (1989-1996): Goku quer se tornar o mais
forte do universo para proteger a Terra de diversas ameaças.
Desenvolvendo até mesmo um prazer em treinar e enfrentar ad-
versários fortes para desafiar seus próprios limites.

Yu-Gi-Oh (1996-2004): Yugi (e sua segunda personali-
dade, Yami) precisa se tornar o melhor num jogo de cartas para
salvar o mundo, tornando também algo mundano em extraordi-
nário por causa da dedicação direcionada à atividade.

Cavaleiros do Zodíaco (1986-1990): Os protagonistas
precisam derrotar inimigos muito superiores para defender a
deusa Athena e, consequentemente, todo o mundo.
Como já apontado no tópico sobre
Yu-Gi-Oh na tabela,
uma tendência do
shonen é tornar a atividade da qual o protago-
nista faz parte em algo extraordinário e altamente importante,
mesmo que seja algo comum e mundano, como um simples jogo
de cartas.
Por conta destas características do heroísmo japonês, as
séries tendem a ter um modelo mais ou menos padrão de como
as coisas acontecem: o protagonista costuma ser alguém simples,
muitas vezes desprezado pela sociedade e que é sempre subes-
timado por seus inimigos e cada luta é um grande esforço para
ser vencida; o protagonista, à primeira vista, não é páreo para
o oponente, que normalmente é de algum jeito de uma casta
superior, seja por berço, classe social ou puramente força ou ha-
bilidade superior; o herói apanha, se machuca muito, e quando
está praticamente derrotado, acaba superando seus limites físi-
cos, normalmente após se lembrar de um árduo treinamento e
preparação para aquele momento e/ou do apoio de seus amigos
ou família. Isso tem um aspecto quase milagroso, de repente o

264
personagem acaba superando a dor e debilitação causada por
vários ferimentos e possui uma força superior. Este processo
pode ser acompanhado do despertar de algum tipo de poder
oculto do personagem, como uma transformação, liberando um
novo nível de força que virá a ser útil contra uma próxima ame-
aça mais forte.
Este tipo de acontecimento é como a materialização do
conceito de heroísmo japonês já mencionado, o herói não é ob-
jetivamente mais forte do que o vilão, porém o seu esforço e
determinação são mais importantes do que os resultados e, num
meio de fantasia, o autor pode simplesmente dar a vitória ao
herói e recompensá-lo pela sua bravura e dedicação, mesmo que
isso não faça muito sentido considerando o nível de força dos
oponentes.
ONE-PUNCH MAN
One-Punch Man é uma série que começou em formato
de história em quadrinhos online (
webcomic) em 2009, roteiri-
zada e ilustrada por um autor que utiliza o pseudônimo de One
e atingiu grande popularidade, ganhando uma adaptação para
mangá tradicional em 2012 com ilustrações de Yusuke Murata.
Em 2015 a série foi adaptada para uma série animada para TV
pelo estúdio Madhouse.
A série conta a história de Saitama, um jovem adulto
que age como super-herói por passatempo, porém ele treinou
tanto para ser forte, segundo o próprio treinou até ficar careca,
que ele se tornou forte a ponto de derrotar qualquer oponente
com apenas um soco, como diz o título do anime . Esse é o maior
diferencial da série, a estrutura da narrativa é basicamente con-
trária à dos shonens, pois Saitama derrota seus inimigos sem o

265
menor esforço, tornando a série mais um produto de humor do
que de ação e não sendo um
shonen, mas sim um seinen, que
seria o gênero destinado a jovens adultos, mas que se apoia em
desconstruir as peculiaridades e clichês do primeiro.
Saitama é provavelmente o personagem mais poderoso
do universo criado no anime, porém possui uma aparência ridí-
cula e nem um pouco intimidadora, usando uma roupa amarela
com luvas, botas vermelhas e capa branca, além de ter uma ex-
pressão vazia e desinteressada quase o tempo todo, além disso,
diferente da maioria dos protagonistas de anime com cabelos
coloridos e pontudos, que ajudam a definir a personalidade dos
personagens só pela aparência, o que não é uma característica
exclusiva dos shonens, mas de animes para TV em geral (não ne-
cessariamente todos os produtos animados japoneses possuem
esse traço, animações para cinema, por exemplo, possuem ou-
tras referências visuais. Não haverão cabelos coloridos e pontu-
dos num filme do estúdio Ghibli, por exemplo), Saitama ainda é
careca, sua ausência de cabelo seria seu único traço físico distin-
tivo, porém ironicamente, isso o deixa ainda mais genérico.
Nos primeiros episódios de
One-Punch Man, acontecem
muitas reversões de expectativa, monstros gigantes com designs
incrivelmente detalhados atacam, dizem que vão destruir o
mundo, se transformam e adquirem forças inacreditáveis (como
no clichê da força oculta, já mencionado anteriormente) e Saita-
ma apenas observa sem emoção antes de dar um simples soco e
destruir os vilões. Os maiores desafios da vida do protagonista
são coisas mundanas como fazer compras, consertar seu aparta-
mento depois de um ataque de monstros, ou simplesmente ma-
tar um mosquito que o está importunando em casa, daí que vem
o humor do arco inicial da série.
Embora a série tenha essa premissa diferente, ela não

266
foge ou “trai” o espírito japonês da persistência e determinação
inquebráveis pois, primeiramente, seus coadjuvantes abraçam
este espírito. No segundo episódio da série é apresentado o per-
sonagem Genos, um ciborgue que deseja combater o mal e se
vingar de quem matou sua família e destruiu sua cidade, uma
motivação extremamente clichê; ele se impressiona com a força
de Saitama e imediatamente pede para ser seu discípulo e conta
sua história, se estendendo muito em detalhes sobre como ele
sofreu e vem se esforçando para se tornar forte, chateando o
herói careca que manda Genos resumir tudo em 20 palavras ou
menos.
Após ter uma conversa, Genos e Saitama por animais
antropomorfizados a serviço de um cientista obcecado que quer
capturar o protagonista para estudá-lo e tornar seus lacaios
geneticamente modificados mais fortes. Após derrotá-los (com
apenas um golpe do protagonista), a dupla decide atacar dire-
tamente o cientista na sua base. Ao chegar lá, após ser ques-
tionado por Genos, pelo cientista e por seu lacaio mais forte
com quem ele estava prestes a lutar, Saitama resolve contar o
segredo da sua força em alto e bom som: uma rotina de exercí-
cios pesados e uma alimentação saudável. Mais uma vez reverte
expectativas, a força do herói não vem de nenhum grande méto-
do especial, não há força oculta, não há benção mágica ou mo-
dificação genética, apenas abdominais, agachamentos, flexões
e corrida, porém ao mesmo tempo que desconstrói o
shonen,
ele é fiel ao espírito japonês de persistência e dedicação, Genos
e os vilões imediatamente se sentem enganados e perguntam
se Saitama está de brincadeira, mas este afirma que diz a ver-
dade. Aquele treino não era algo tão extraordinário aos olhos
dos seres daquele mundo fantástico com ciborgues, monstros
gigantes e alienígenas, mas para Saitama aquilo foi um esforço

267
descomunal e como já foi explicado, para as narrativas japone-
sas o esforço posto em algo é mais importante do que o objetivo
final, a dedicação tem mais poder do que a ciência que fez um
papel de centralizadora de poder nesta parte da narrativa com
os lacaios melhorados geneticamente e também faz esse papel
em muitas produções ocidentais como observa Denise da Costa
Oliveira Siqueira em dois trechos de um artigo seu:
Entre um sortido repertório de temas, os desenhos veiculam
imagens de ciência e de cientistas. Em vários desenhos vei-
culados por emissoras de sinal aberto, como U.S. Manga, a
ciência e a violência, como expressão de poder, são mostradas
em conjunto. Com esses argumentos, pode-se notar que esse
tipo de desenho – assim como seus congêneres impressos, as
histórias em quadrinhos – foi conquistando um público mais
velho, que inclui adolescentes e adultos.
(...)
Outro desenho recente, de origem americana, X-Men, mostra
um grupo de mutantes que enfrenta o preconceito dos huma-
nos e problemas existenciais. Mesmo assim, eles vivem resol-
vendo problemas da Terra. Os mutantes são liderados por um
cientista e médico, que luta por ideais nobres e procura repri-
mir os desejos de vingança e descompromisso dos mutantes.
Os heróis são os mutantes, mas, por trás deles, sempre há a
figura do cientista.
Esse tipo de desconstrução é algo parecido com o que
Os Simpsons fazem com o gênero de sitcom norte-americano,
em uma análise sobre os traços de paródia da série, Jason Mit-
tell, após comentar sobre um episódio onde um dos personagens
fica extremamente obeso da noite pro dia e do mesmo jeito tam-
bém volta ao seu tamanho normal, ele afirma o seguinte sobre
a característica das
sitcoms de todo o universo em torno dos
personagens sempre precisar voltar ao estado original ao final
de cada episódio, não importando o tamanho dos problemas que
possam ter acontecido durante a narrativa e como
Os Simpsons
a usa e ao mesmo tempo faz piadas com ela:

268
Os Simpsons trabalham para afirmar as convenções do seu
gênero sitcom simultaneamente parodiando as premissas que
o gênero tipicamente requer. Este tipo de paródia genérica ex-
plícita e referência é típica de outros episódios também, com
alusões comuns a falta de continuidade entre episódios e a
perda de memória dos personagens sobre eventos passados.
Esta combinação de negação e exagero das normas da
fórmula sitcom mostra como
Os Simpsons usam paródia para se
definir genericamente
Outro ponto interessante é como
One-Punch Man traz
uma abordagem mais fresca para os animes de ação que, para
alguns, pode ficar um pouco saturado pelas fórmulas repetitivas
que já foram descritas. Ao mesmo tempo, um público que tenha
certa vivência com esse tipo de produto vai achar
One-Punch
Man
ainda mais interessante ao assistir e reconhecer os traços
estilísticos do shonen. Voltando ao contraponto ocidental, ainda
em Os Simpsons, na introdução do livro “Prime Time Anima-
tion: Television Animation and American Culture”, é observado
como a animação da família foi capaz de reascender o gênero
cansado de sitcom com sua natureza satírica, e se torna ainda
mais interessante para pessoas que forem familiares com pro-
gramas clássicos da televisão norte-americana:

O que atraiu os espectadores para Os Simpsons foi sua ha-
bilidade de colocar uma nova vida no quase saturado gênero
de sitcoms domésticas. A brincadeira da sua forma híbrida – a
sitcom animada – permitiu ao programa brincar, e em vários
casos destruir convenções narrativas existentes.
(…)
Além da brincadeira, Os Simpsons também capitalizaram na
tradição televisiva da sua audiência de modos sem preceden-
tes. Assumindo que sua audiência cresceu assistindo televisão,
Os Simpsons oferece um texto rico em alusões a um corpo
de história cultural popular quase equivalente à história da
televisão
.

269
Boa parte do público brasileiro de jovens adultos atual,
por exemplo, cairia nessa categoria de público que detecta as re-
ferências na animação japonesa, pois foi uma geração que cres-
ceu com os animes durante a grande difusão pós
Akira (1988),
sendo expostos a muitos produtos japoneses, tanto animados
como
Cavaleiros do Zodíaco, Yu Yu Hakusho (1990-1994) ou
o próprio
Dragon Ball, além de séries de super-heróis live ac-
tion que possuem alguns traços dos shonen como
Jaspion (1985-
1986) e B
lack Kamen Rider (1987-1988).
CONCLUSÃO
Os animes e mangás shonen fizeram parte da infância
de várias pessoas e continuam sendo da geração atual e
One-
-Punch Man não visa desmerecer os shonens pois, para apreciar
uma paródia em sua plenitude, é preciso gostar do original, o
autor provavelmente leu/assistiu vários
shonen para ter a ideia
de escrever e brincar com os clichês. É saudável de vez em quan-
do rir das coisas que gostamos e explicitar quando algo se torna
muito formulaico para que possam ser feitos questionamentos
e discussões, e a partir disso novas ideias surgirem. Além disso
comparar e trocar valores culturais entre o ocidente e o oriente
também ajuda a injetar novos ares em produções de ambos os
lados.

270
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRENNER, R. E. Understanding Manga and Anime, Libraries
Unlimited, 2007, p.31-32
LEVI, A. The New American Hero: Made in Japan. In KITTEL-
SON, M. L.
The Soul of Popular Culture: Looking at Contem-
porary Myths and Monsters. Chicago: Open Court Publishing
Company, 1997
MITTEL, J. Cartoon Realism: Genre Mixing and the Cultural
Life of The Simpsons. In:
The Velvet Light Trap, nº 47, University
of Texas Press, 2001.
SIQUEIRA, D. Ciência e poder no universo simbólico do desenho
animado. In
Ciência e Público: caminhos da divulgação científi-
ca no Brasil. Série Terra Incógnita, Casa da Ciência, UFRJ.
STABILE, C; HARRISON, M. Introduction: prime-time anima-
tion: an overview. In
Prime Time Animation: Television anima-
tion and american culture. Routledge, 2003, p. 1-10

271
Livro digital composto
em tipografia Charis SIL,
sob licença Creative Com-
mons 4.0; Niterói, 2016