Lygia Bojunga - Sapato de Salto.pdf

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About This Presentation

Livro Lygia Bojunga - Sapato de Salto


Slide Content

Em2002Lygiacriouumacasa
editorial comaintenção deabrigar nela
todososseuspersonagens:
Editora CasaLygia Bojunga. Paraso,seus
livrosforamsendo resgatados,
umaum,desuasantigaseditoras.
Em2005,naBienal doLivrodoRde
Janeiro, Lygia comemorou areunião
detodooseu"pessoal" naCasa.
Quando lheperguntam porquesetornou
editora,elanãohesita:"Arazãoprimordial
foiaprofundar aminharelação como
LIVRO -companheiro constante desde os
meus seteanos.Sonhei percorrermos
juntostodoocaminho: desde omomento
emqueinicio acriaçãodemeus
personagens atéodiadeveroobjeto-livro
pronto, namãodemeus leitores."
Moradorafieldohistórico bairrode
Santa Teresa,noRdeJaneiro,
Lygia continua umaapaixonada doRio,
embora hámuitosanosmoreum
pedaçodoseutempo emLondres
(écasada comuminglês).
Trabalhou como atriz,tradutora
eautoraemrádio, teatroetelevão.
Escreveu 22livros.Tevetraduções
em20idiomas. Quasetodos osseus
livrosforam premiados -nacnale
internacionalmente.
LYGIABOJUNGA
SAPATODESALTO
IlustraçãodaCapa:
Rubem Grilo
2"Edição
2"Reimpressão
RiodeJaneiro
wL
2011

Copyright 2006©Lygia Bojunga
Todos osdireitos reservados à
Editora CASALYGIABOJUNGA LTOA.
RuaEliseu Visconti, 421/425-SantaTeresa
20251-250 -RiodeJaneiro -RJ
Te!.:(21)2222-0266
Fax:(21)2222-6207
e-mail:[email protected]
www.casalygiabojunga.com.br
PrintedinBrazil/lmpresso noBrasil
Nenhuma parte destaobrapodeserapropriada eestocada em
sistema debanco dedadosouprocessosimilar,emqualquer forma
oumeio,semapermissão dadetentora docopyright.
Projeto Gráfico: Lygia Bojunga
Ilustração daCapa:Rubem Grilo
Assistente Editorial: VeraAbrantes
Revisão:JoséTedin
Auxiliar Geral: Paulo Cesar Cabral
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dosEditoresdeLivros, RJ.
~~a -f~ ~th7/LS
Ib &zaê
v~f~iee
JtJ5.R~/J1-e __
t'(/~~rtY.f &kâ2?7U~c:w6-
ma-à0i»~~4~4à1JqÚ'~4.-
A/"??1-1mha. !jfhaPcIIá:::..
~67s
Bojunga, Lygia
Sapato desalto/LygiaBojunga ;-RiodeJaneiro: Casa
LygiaBojunga, 2'ed.-2'reimpr.-2011
276p. il.:19em
ISBN 85-89020-18-5
1.Literatura brasileira.1.Título.
b6-I090. C00028.5
COU087.5

'1~~~
1.
osegredoazulfraquinho
n
rv-f'família estavaalmoçando quandoa
~ Sabrinachegou. DonaMatilde
franziu atestaefalou debocacheia:
-Ih,maselaémuitopequena praserboa
babá. Queidadevocêtem,menina?
-Voufazeronze.
SeuGonçalves olhou devagar praSabrina;
bebeuumgoled'água:
-Oqueinteressaéseelatemjeitocom
criança. Vocêtemjeitocomcriança?
-Tenho, sim;eugosto debrincarcomcriança.
DonaMatilde seendireitou nacadeira:
-Vocênãoveprabrincar, vepratrabalhar.
-Euseisim,senhora.-Largouoembrulho
nochãoechegouperto domenino.

10 cf'lgiaBojunga
-Comoéoteunome?
-Betinho.
-Quantosanos'cêtem?
-Quatro.
-Evocê?
Emvezderesponder,ameninacomeçoua
batercomacolhernopratopedindomacomida.
Betinhotrepounacadeiraepuxouocabeloda
Sabrina:
-Bonito!Bonita!
Sabrinariu.DonaMatildeolhouproprato.
SeuGonçalvesgostoudaradaedojeitofrancoda
Sabrina;explicou:
-Aminhafilhanãoédemuitaconversa,não.
Mastambémsóagoraqueelavaifazertrêsanos.
-Puxa,maselaétãogrande!Comoéqueela
sechama?
-Marilda.
Sabrinaolhoupradonadacasa:
-Quenemasenhora,nãoé?
-EusouMa-til-de.
-Ah.SeráqueeuaguentocarregaraMatilde
nocolo?
-Matildesoueu!ElaéMa-ril-da. Vêse
aprendelogo, tábem?Deixaelaquieta,elaainda
nãoacaboudealmoçar.Vailápracozinhaeespera.
')
SapatodeSalto
Depoeuvoufalarcomvocê.Aquelaportaali.E!e
esseembrulhonochão?
-Éaminharoupa.
Eraumembrulhopequeno, eraum
rnal,eraumbarbanteemendado.
-Leva.
Sabrinalevou.
Afamíliaficouquietacomendo.Lápelas
tantasdonaMatildeolhouproseuGonçalves:
-Nãogosteidojeitodela.
-Porquê?
(' -Ah,seilá,qulogoirpegandoaMarilda.
-Massevocêchamouelapraserbabádas
crianças,vocênãovaiquererqueelapegueas
crianças?
-Nãochameinada.Quandomeofereceram
umameninaládoorfanatoeudselogo,éuma
experiência,voufazerumaexperiência.
-Ecomoéqueelavaiexperimentarsevocê
nãodeixaelatocarnascrianças?
-Masnãoassimdecara!
SeuGonçalvescomeçouapalitarosdentes.
DonaMatildeencheuopratodebatatafrita;falou,
olhandoproprato:
-Seráqueelapresta?
-Eporquequeelanãovaiprestar?
11

12 J'1giaBojunga SapatodeSaho
-l?mameninaassimsempai,semmãe,sem
~
-Masvocênãodsequenãoseiquem
arranjouumaempregadaótimanesseorfanato?
-Foi.
-Então?
-É.-Comeuumabatatafrita.-Maseuacho
queumapessoamavelhaiasermelhor.
SeuGonçalvesatirouopalitonoprato.
-Escutaaqui,Matilde,vocêsabiaqueas
meninasdesseorfanatosãonovinhas.Vocêtopoua
experiência.Ameninalargoutudoeve.Eagora,
malelachega,vocêjácomeçaaacharsoeaquilo.
-Sóestavadizendoque...
-Tododiavocêtaíreclamandoquenão
encontraninguémpratomarcontadascriançaseque
tudoqueébabánãotempaciênciaenãotemjeito.
Agorachegaessamenina,ronha,viva,gostando
decriança,evocêjácomeçaabotardefeitonela.
-Tábem,tábem,nãovoudizerma
nada.Pegouumabatatafritacomodedo.-Mas
ordenadonãopreca:agentevaidarcasa,comida,
roupaecalçado.Evocêviuoembrulhinhoqueela
trouxe,nãoviu?Ésempreassim:elaschegamsem
nada.Agenteéquetemquedartudo.Evocêviu
comoelaéforte?édotipoquetásemprecomfome.
-Bom,masjáqueelanãovaiterordenadoé
justoqueelacomaàvontade,nãoé?
-Sótôavando.Eutenhoprática:essa
meninavaidarumadespesadanada.Evailogo
precardedentta,vocêvaiver.
J
')
DonaMatildechupavamuitabala,tinha
pressãobaixa,dormiadepodoalmoço,denoite
tinhaumsonodepedra.AvoupraSabrina:
-Deixaaportadoteuquartoaberta.Epresta
atenção:secriançachoradenoite,jásabe:vailáevê
oquequeelaquer,seéágua,bcoito,seécalça
molhada.
Ededia,odiatodinho,aSabrinatinhaque
dtrairaMarildaeoBetinho.Earoupadosdo
pralavarepassar.Eamamadeiraprapreparar.Ea,
calçapratrocar.Eomingaupramturar.Eo
telefonepraatender(taíàtoa,menina?quandoo
telefonetoca,jásabe,atendelogo).Eatodahora
umacomprinhaprafazer:
"Dáumpulonapadariaepegaopão:'
"Vaibuscarumlitrodeleite:'
"Correnobotequim:seuGonçalvestásem
. "
Clgarro.
13

14 c!'JyiaBojunya
SapatodeSalto 15
Sabrinacorria,numinstantinhovoltava,achava
tudolegal;malacabavaoalmoçojápensavanolanche;
erasóacabardelancharprapensaroquequeiater
projantar.AMarildasempredolado,oBetinhodo
outrolado,ostrêssegostandomuito,tomeradae
brincadeira,festinhaebeijoestalado.Denoite,
quandodeitava,Sabrinaaindaqueriaficarlembrando
obifedessetamanho,opãocomgeleiaemanteiga,a
tevêtãoenorme,masdormialogo:ocorpomoído.
Pulavacedodacama;quandoocasalacordava,a
Sabrinajátinhalavado,passado,brincado,cuidado.
costasdadonaMatilde,assim,levandojeitode
quemestáfazendofesta.Quandooengasgopassou,
perguntou:
-Possochamarasenhoradetia?
-Porque,ué?
-Équeseeuchamodemãeasenhorapode
nãogostar.
-N~tia,nemmãe,nemcoanenhuma,que
queéso?táesquecendoqueébabádascrianças?
ora,jáseviu!
DonaMatildeentrounasalaeviuaSabrinade
péjunto,braçocruzado,corporígido,sóboca,nariz
eolhomexendo.MarildaeoBetinhorolavamno
chãodetantorir,asstindoaoshowdecaretaquea
Sabrinaestavadando.DonaMatildeparoueficou
olhando.Semnemsedarconta,começouarir
também.Sabrinavirouorostoassustada.Ficoulogo
deslumbrada.QuandoviuorodadonaMatilde
acabando,começouafazercaretadenovo.Maso
rodadonaMatildetinhatropeçadonabalaqueela
estavamastigando:adonaMatildeseengasgou.
Sabrinacorreu,trouxeágua,bateudelevinhonas
SeuGonçalvesfoificandoimpressnado:
-Quemeninainteligente,Matilde!aprende
tudocorrendo.
DonaMatildenãorespondeu.Estalouuma
balanodente.
-Ecomoétrabalhadeira!queboavontadepra
fazertudo.Vocênãoacha?
-Hmm.
-Vocênuncateveumababáassim.Nembabá,
nemcozinheira,nempassadeira,nemnada;essa
meninanãoparaumminuto.
DonaMatildeescolheuoutrabalanosaquinho
deplástico.

16 J'19iaBojun9a
SapatodeSalto
-Vocênãoacha,Matilde?
-É.
-Masvocênãotásatfeita comela?
-Elatrocadenome.Tásempremechamando
dedonaMarildaeaMarilda deMatilde.
SeuGonçalves riadaquela história daSabrina
trocarnomes.Eficavaesquecido davidavendoelae
osfilhosbrincando.Quandoelaviravacambalhota
pradivertirascrianças, eleainda riamais.§~
uefechavaoolhouerendo vermelhor acale'ha
~ Umdiatrouxe balapraela.Ela
seespantou:
-Pramim?
-Presente.
-Presentepramim?
-Quequetem,ué?
-Primeiravezqueeuganho.
-Ah,é?-Enooutrodiatrouxe mais.
Sabrinaseencantou.
-Osenhoratétáparecendo meupai.Deve
serbomterumpaipradarbalaesabonete pra
gente.
-Saboneteporquê?
-Pracheirargostoso.
SeuGonçalvestrouxe umsabonete praSabrina
efalou baixinho:
-Nãocontapraninguém,viu?
-Porquê?
-Psiu!
Elaabaixouavoz.
-Porque,hein?
-Porqueeutôpedindo.
-Ah,entãotá,eunãoconto.
~
SeuGonçalveschegoupertodaSabrinaefalou
emtomdesegredo:
-Olhaoqueeutrouxepravocê.
-Hmm, quantobombom!
-Nãocontapraninguém,viu?
-Podedeixar.
-Você táescondendodireitinhotudoqueeu
tedou?
-Aqui.-Mostrouabarriga.
Ohábitodosegredoseformouentreosdo.
Àsvezeselariaquesóvendo:
-Achotãogozadoagentefalarbaixinho
assun.
-Psiu!
Eledeupraesconderbombomnojardim.
Anunciava comarmterso:
17

18 JY'JiaBojun'Ja
-Tãoporaí...
QuandooBetinhoeaMarildasedtraíam,
aSabrinasaíaprocurandobombom.Adoravaa
brincadeira.Quandoencontravaopresente,cochichava
proseuGonçalves:ache!Semnemsedarcontade
queanovabrincadeiraeramaumsegredose
formandoentreosdo.Umdiatomoucorageme
pediuumacoaquehámuitotempoqueria:
-Lánoorfanatoagenteestudavaumpouco;o
senhorquercontinuarmeensinando?
Elealouocabelodela:
-Vocêvaiserumamulhermuitobonita,não
precaestudar.
-Ah,eunãoqueroficarburra.-Elançou
mãodeumargumentomágico:-Agenteestuda
baixinho.
SeuGonçalvesficouquieto.Elainstiu.Ele
acabouconcordando.
-Tábem,euensino.Masnãovouensinarem
segredo,não.Agenteguardaosegredopraoutra
. ')
COa,ta.
-Oquê?
-Nãosei,voupensar.
DonaMatildesezangou:
-Queabsurdoperdertempocomessamenina!
pareceatéquevocênãotemmanadaprafazer.
SapatodeSalto 19
-ÉqueeuvoudaraulaproBetinho,assimos
doaprendemjuntos.
-OBetinhonãotáprecandodeaulanenhuma.
Epraquequeessameninaqueraula?elaéempregada!
-Ora,Matilde,elaéumameninatãoviva,
temtantavontadedeaprender,éatéumamaldadea
gentenão-fazernadaporessapobreórfã.
-Damosroupa,casa,denttaecomida.
Enãoébrincadeiraoqueelacome,deveestar
botandoemdiaotempotodoquenãocomeu.
-Maselatrabalhaumbocado.
-Brincaàbeça!
-Ascriançastãosemprepedindopraela
brincar.
-Elanãotemnadaquefazeroqueascrianças
pedem.
-Masseelanãofazvocêzanga,nãoé?
-Ah!-Enfuumabaladehortelãnaboca.
FicouvalendoavontadedoseuGonçalves.As
aulaseramantesdojantar.
-Escreveovo,uva,vovó.
-Ah,soéfácildema.
-Então:perstente,perpendicular,maçã.
-Querouma!-oBetinhogritava.
Sabrinasaíacorrendo,traziaamaçãpro
Betinho,se.debruçavaoutraveznocaderno...

20 J'1yiaBojunya
SapatodeSa&o
-Descasca!
...largavao_rcdepressa,descascavaamaçãpro
menino,perguntavaseelequerianaboca,voltava
depoprocaderno:per-s-ten-te.
) SeuGonçalvesficavacuidandoelacomoolho,
1examinandocabelo,braço,pescoço.
-Escreveumafrasecomapalavrasegredo.
-Queroágua!
Elatraziaaáguacorrendoe,pensativa, escrevia:
~ -Osegredoéazulfraquinho.
) SeuGonçalves ficouparado,interpretando
r~afrasedeolhofechad~.EeladsequeB~tinho
vDeraumnomeazulmaforte,mãeeramaíspra
)-'~amarelo, saudadeerabemcor-de-rosa, tinhadado
tP.pravertudocolorido,adorouacaixade_rcde
corqueoseuGonçalvesescondeunopédemanga;
setinhaumtempinholivre,sentavaefaziaum
desenho.
corpo.Diziamqueerasurra,queelafugiaprair
roubar. UmdiaaSabrinaperguntou:éverdadeque
vocêfogepraroubar?
"Eu,não!Eufujopraverseeuencontro
,,,
umpai.
"Q'-t5u pai?"
"Qal "uquerumserve.
Daúltimavezquefugiu,custoupravoltar.
Sabrinaqulogosaber:
"Encontrou?"
"O","que.
"O ')"pai.
Ameninafezummuxoxoesacudiuacabeça.
Sentounumcanto, cruzouosbraçosenãofalou
macomninguém. Diaseguintesumiudenovopra
nuncamavoltar.
Sabrinacaprichounodesenho dafloreconcluiu:
nãovoltouporque,nacerta, achouumpai.Quenem
eu.Edeuaflordepresente proseuGonçalves.
Enquanto oseuGonçalvestentavaexplicar
proBetinhoumacontadesomar,aSabrinaia
desenhando umaflornopapel.Desenhando ese
lembrandodeumacolegaquefugiutrêsvezes do
orfanato.Etrêsvezesvoltou.Demancha roxano
Acuriosidade eragrande: Sabrinaprogredia
tantonosestudosqueoseuGonçalvesquverse
outras aulas iamsertãobemassimiladasassim.
Entrouumanoite noquartodelaeseinstalouna
21

22 cf'1giaBojunga
SapatodeSaho 23
~\"u
(/1'
camacomjeitodequemestáinventandouma
novabrincadeira.QuandoaSabrinafoigritarde
susto,eletapouogritocomumbeijo.Edepo
cochichou:
-Essevaiseronossomarsegredo,viu?-e
foibrincandoderoçarobigodenacaradela.
Sabrinasentiuocoraçãodparando.Obigode
desceupropescoço.Sabrinanãorestiu:teveum
acessodero.Depuronervoso.
-Psiu!psiu!-elepedia.Massemmuita
preocupação:donaMatildetinhasonodepedra,
eseapequenariadaquelejeitoéporqueestavase
divertindo.Obigodefoivarrendocadavezma
forteoscantinhosdaSabrina.Elasufocava:o
nervosmoeratãograndequecadavezriama.
Eletiroudocaminholençol, camola,calcinha.
Dedentrodaradasaiuumasúplica:
• -Quequehá,seuonçãfv7s? nãofazso,
peloamordedeus!Osenhoréquenemmeupai.
Painãofazassimcomagente.-Conseguiuse
desprenderdasmãosdele.Correupraporta.Ele
pulouatrás,arrastoueladevoltapracama:
-Vemcácomoteupapaizinho.
-Nãofazso!Porfavor!Nãofazso!-
Tremia,suava.-Nãofazso!
Fez.
DepoqueoseuGonçalvesfoiemboraa
Sabrinaficouparadaolhandopramaçanetadaporta.
Aluzquevinhadaruaclareavaumpoucooquarto,
masSabrinasóolhavapramaçanetaemanada.Já
erademadrugadaquandoreviveuasensaçãodo
bigodeandaítdo pelocorpo.Estremeceu:eagora?
continuavafalandobaixinhocomele?sumiadali?
olhavaadonaMatildenoolho?sumiaprasempre?
brincavacomaMarildaeoBetinho?sumiapraonde?
Quandoodiaselevantouelasentiuqueia
ficar. Semplanos,semescolha.Sócomoinstinto
dizendoque,apesardetudo,eramafácilficar.
Eograndesegredodosdopassouaanimara.
vidadele,abotarsombranosdiasdela;edenoite,
----'-
.~Q~que énoite,am!smatensão:elehojeve~Oolho
hipnotizadopelamaçanetaredonda,delouçabranca,
ocoraçãobatendoassustado.Foiseesquecendode
prestaratençãonoestudo,foiseesquecendodepensar
quecorqueerasoeaquilo,nuncamadesenhou.
SeuGonçalvesviulogoqueaSabrinanãoera
muitoboaalunanasaulasdanoite.
-Vocênãofaznada,benzinho,tásempretão
dtraída.

24 cf'J'Jial3ojun'Ja Sapato deSago 25
~
Aalunasóconseguiaprestaratençãona
maçanetabranca.Dedia,aimagemdamaçaneta
rodandonãolargavaopensamentodela;denoite,
assimquesedeitava,oolhogrudavanamaçaneta,
esperando omomentodelarodar. Quando oseu
Gonçalvesnãoaparecia, aSabrinasóiadormirde
madrugada, osonoenfimvencendo aansiedade.
Mas, seelevinha, aatraçãopelamaçaneta ainda
setornavamaforte:quemedodeveradona
Matildeentrando!Vualizava acena.Dona Matilde
acordando.Vendovazolugar doseuGonçalves.
Onde équeeleandava? Esperando eelenão
voltando. DonaMatildeenfiandoochinelo de
saltoepompom.Procurandopelacasa.Abrindoa
portadoescritór. Dobanheiro.Dadespensa.
0-'0Aquidoquarto!E,àsvezes, aimaginação exaltada
t~~"pintavaacenacomtantorealmo,que,quando a
~SabrinaviaadonaMatildeentrando, abafavaum
~y!.gritodesusto, ocorpoestremecendotodo.Seu
. Gonçalvessuspiravacontente:
~. -Isso,benzinho...
olhodaSabrinasedespencou damaçanetapratira
deluzque,derepente,apareceu debaixodaporta.
Ocoração,adoidado, desatou amartelarnoouvido,
semturando comosgemidos doseuGonçalves.
Umchinelo desaltoentrou sorrateiro nafaixade
luz.Parou. Sabrina quabafaraspalavrasque

explodiam aoseuGonçalves, masestavaparalada
demedo. Ochinelo também: paralado. Edepo
queoseuGonçalves seaquietou ochinelo continuou
semsemexer. Durante umtempoqueparecianão
terfim.Atéque,lápelastantas, ochinelodesgrudou
dochão.Eatiradeluzseapagou.
Nooutrodiaadona Matildenãoolhoupra
Sabrina. Séria,ruganatesta,enfiandobalanaboca,
triturando eladepressa, mastigando outraem
seguida.
Sabrina voltaemeiaolhava pradonaMatilde,
querendo encontrar oolhodelapraficarsabendo
seelasabiamesmo ounão;masquemedode
encontrar oolhodela!maquedepressa mudava
oolhodelugar.
Quando oseuGonçalves denoiteentrouno
quarto, aSabrina tomou coragem:
Atéqueumanoite,justoquandooseu
Gonçalvesvinhanumcrescendodeexclamações, o

26 cf'FJiaBojun'ja SapatodeSalto
-Émelhorosenhornãovirma.
Elenãogostou:
-Quequeéso,porquê?!
-Porfavor,- porfavor!
-Masporquê,ué!
-Éque...
-Vocênãogostademim?
-Hein?
-Diz!
-Ai.
-Nãogosta?!
-Éque...équeadonaMatildevaidescobrir.
-Nãovai,não.
-Eseeladescobre?
-Deixacomigo.
-Eseelajásabe?
-Deixacomigo,jádse!
-Seeladescobreelamemandaemboraeeu
nãoquerovoltarproorfanato.
-Entãoeuvoudeixarvocêvoltarpr'aquilolá?
Deixacomigo.
DonaMatildedeuprarepreenderSabrina
cadavezcommaaspereza.Botouelapralavar
prato,arearpanela,esfregarchão,limparvidro,
varrerjardim.Nahoradecuidardascriançasa
Sabrinanãoconseguiamavencerocansaçoevolta
emeiacochilava.DonaMatildecomeçouabaterna
Sabrinacadavezquepegavaelacochilando.
~
SeuGonçalvesentrounoquartoeabraçoua
Sabrina.Elaqucontarqueapanhava,masdeu
medode,contando,apanharaindama.Desatoua
chorar.Eleseenterneceu.
-Táchorandoporque,benzinho?para
comso.Olha,amanhãeutetragoumpresente
bembonito.
Trouxe.Umacalcinhaderenda.
-Escondequandonãoestiverusando,viu?
-Onde?
-Vocênãotemumesconderijo?
-Esseburaconocolchão.
-Então?
Naoutravezquevoltoutrouxefrutacrtalizada.
Nãobrincavamadeesconderbombomebala
nojardim:deixavanacadeiradoquartoquando
entrava.Quandosaíafalava:
-Abalinhaquevocêgostataínacadeira.-,
Ouchocolate.Ourevtaemquadrinho.Ou
lenço.Maslevavasempreumacoa.Equandouma
noitenãolevou,explicou:
27

28 cflj'JiaBojun'Ja
-Hojenãodeutempodecomprar.
-Ah...
-Masguardaessedinheirinho.-Saiu.
Sabrinalevantou,pegouodinheiro,levoupra
~juntodajanela,examinou,largouprolado,sentou.
~'\Ficouolhandoprochão.Pegoudenovoodinheiro,
;/ dobroudevagaranota,enfuelanocolchão.E,na
,,<:foutranoite,quandooseuGonçalvesjáiasaindo:
-E!!eodinheirinho?
I)

2.
AtiaInês
~o: s6acampainhatocarqueadona
Matildegritou,temgentenaporta!
eaSabrinacorreupraabrir.Umamulhernacasa
dostrintaesperavadebraçoscruzados.Primeiro,
oolhodaSabrinaseprendeunoolhodamulher;
depo,subiuprocabelo:ruivo,farto,umamecha
louradaqui,umencaracoladodelá;desceupra
orelha:argolonadouradanaponta;atravessoupra
boca:oláberagrosso,obatombemvermelho;
mergulhounopescoço:contadevidrodando
trêsvoltas,cadavoltadeumacor;oolhoganhou
velocidade,atravessouodecoteousado,meque
tropeçounaalçadabolsaefoidespencandopro
cintogrosso(quecinturinhaqueelatem!),epro
brancoapertadodasaia,eprapernamorenae

cllj'jia lJojun'ja30 SapatodeSa&o
forte,quedescansavaopénumsapatodesalto.
Bemalto.Unha damãopintadadamesmacor
dobatom.
Veavozgritadaládedentro:
-Queméquetaí?
AmulherinformoupraSabrina:
-AtiaInês.
EsóaíaSabrinareparouquetinhaumro
meternoebrincalhãonoolhodatiaInês.
-Tôteachando comcaradeSabrina. Você
nãoéaSabrina?
FoisóaSabrinafazerquesimqueogrito
voltou:
-Sabrina!temgenteaí?
-Tem!
-Quemé?
-UmatiaInês.
-Oquê?
EdessavezfoiatiaInêsquegritoulápra
dentro:
-AtiadaSabrina!aInês.-Ecàbhoolho
praSabrina.
Pausa.
Sabrinaestavaperplexa:
-Minha tia?
AtiaInêsfezquesim.Oronoolhoaumentou.
-Tiapravalerousótia-que-a-gente-chama-
de-tia?
-Tiamesmo:irmãdatuamãe.
-Nãopode.
-Nãopode porquê?
-Eununca tivemãe,comoéqueeuvoutertia?
-Sevocênunca tevemãe,vocênãopodia
extir, podia? -Torceu umbelcãonobraçoda
Sabrina.
-A!
-Doeu? Então?!vocêexte. -Esoltouuma
gargalhada.
DonaMatilde veládedentroajeitandoo
vestido,estreitando oolhopratiaInês,aboca
mastigandoumrestodecomida, atestafranzida.
MediuatiaInêsdealtoabaixo:
-TiadaSabrina?
-Hmm-hmm. (Eorosemprealinoolho.)
Novamediçãodealtoabaixo:
-Asenhoradeveestarenganada:aSabrina
nãotemparente nenhum.
Parece queatiaInêsachougraçanaênfase
dadaaosenhora:imitoudireitinho:
-Asenhoraéqueestáenganada:aSabrinatem
umatia:eu;etemtambém umaavó:adonaMariada
Graça Oliveira, conhecidacomodonaGracinha.
31

32 J'fgiaBojunga SapatodeSalto 33
AperplexidadedaSabrinapegoujeitode
fascín:
-Nãoacredito!Eutenhovótambém?!
AruganatestadadonaMatildeficouma
funda:
-Eutambémnãoacredito:aSabrinafoi
apanhadanaCasadoMenorAbandonado,eláeles
nosinformaramqueelanãotinhaparentenenhum;
elachegouaquiemcasasócomaroupadocorpoe
unscacarecosnumembrulhodejornal.
AtiaInêsdeuumasacudidela deombro:
-Issonãoquerdizernada.
-Ah,não?-Fezumgestodecabeçaindicando
aSabrina.-Elaerarecém-nascidaquandolargaram
elalá.Embrulhadanumpano.Comumbilhete na
barrigadizendoqueacriançanãotinhaninguém pra
olharporela.
AtiaInêsfezumafestanorostodaSabrina:
-Tadinha!
-NuncaapareceuparentenenhumlánaCasa
querendosaberseameninatavavivaoumorta,e
agoraasenhoramevemcomahtóriadequeessa
infeliztemtiaeavó?
OolhodatiaInêsderepente ficousér.(Esó
nessahoraaSabrinaconcluiuquecorqueeleera:
verde-amarelado; puxa!quenemogatoaídolado.)
-Infeliz porquê?Elatámeparecendomuito
bemdposta.
-Claro!agentetratadela,dátudoqueela
preca, atédedenteelatratou;eelaficaaíàtoa,só
brincandocommeusfilhosemanada:temmaisé
queestarbemdposta.C
AtiaInêsolhoupraSabrina.OolhodaSabrina
escapouprarua.DonaMatildecontinuou:
-Senãofosseagenteelacontinuavalá
naquela espelunca.Magraassim.-Levantouodedo
mindinhoeoolhomediuoutravezatiaInês.-Que
.tiaequeavósãoessasque,derepente,aparecem,
depodepassardezanossemdarbolanenhuma?
-Bom,soéumahtóriamecomprida
que...
-Francamente, eunãotôinteressadaem
ouvir.Mesmoporqueaminhafilhatáláchorando.
Vailá,Sabrina!vaiveroquequeelaquer.
Sabrinanãosemexeu.DonaMatildepegou a
portaprairfechando:
-Asenhoradesejamaalgumacoa?
-Claro!senãodesejasseeunãotavaaqui.-
EspichouoqueixopraSabrina.-Euquerolevarela
comigo.
OfascíndaSabrinapegoucaradeespanto;a
donaMatildefoilogobotandoasmãosnacintura:

34 c1ljfjiaBojunfja
-Assim,é?semmanemmenos?
-Assim,sim.
-Sabiaque,alémdoresto)asenhoraémuito
folgada?
AtiaInêsimitoutambémogestodemãosna
cintura:
-Queresto)hein?
DessavezadonaMatildeolhouostensivamente
odecotedovestido,acoxaforçandoasaiajusta,o
sapatodesaltoesódse:
-Hmm!... (queassimmesmosaiupelonariz).
-EmpurrouaSabrinapradentroejáiafechando
aporta,mas...
-Ummomentinho!-E,justoatempo,atia
Inêssemeteunocaminhodaporta,abriuabolsa,
tirouumpapelládedentroesacudiuelenonariz
dadonaMatilde:-AutorizaçãodaCasadoMenor
paraqueameninasejaentregueaInêsMaria
Oliveira.-Levouopapelaopeito:-Eu.-Tirou
outropapeldabolsaedeutambémumasacudidela
nele:-AutorizaçãojudicialparaqueaCasado
MenorAbandonadoreconheçaInêsMariaOliveira
(eu)comolegítimaparenteconsanguínea(tia)da
meninaSabrina,etambémcomolegítimaparente
consanguínea(avó)asenhoraMariadaGraçaOliveira,
vulgodonaGracinha;ambas,portanto,comdireito
Sapatodess.
àpossedameninaatésuamaridade.-Cavou
dentrodabolsaeextraiuumacarteiradeidentidade.
Apontousorridenteoretrato:-Eu.-Cavoudenovo
nabolsa,extraiuoutropapel:-Ah,t'aqui:otelefone
daCasadoMenoreonomedadiretora.Achoboma
senhoratelefonareconfirmar.tudo comela.
Pausa.
OolhodaSabrinanãoparava:datiaInêspra
donaMatilde,dadonaMatildepratiaInês.
-Vailáverporquequeaquelameninanão
paradechorar,Sabrina!
MasaSabrinanãoqueriaperdernadada
conversa.Deuumpassoatrásfmgindoqueia,enãofoi.
DonaMatildearrancouospapédamãoda
tiaInêsecomeçouapassaroolhoneles,enquanto
comentava:
-Asenhorapodia,pelomenos,perguntarà
meninaseelaquerasuacompanhia,nãoé?
E,semnempensar,aSabrinaexclamou:
-Ah,quero!querosim!
DonaMatildesevirouegritou:.
-Eudsepravocêirláverporquequeela
táchorando!
Sabrinasumiucorrendo.AtiaInêsremexeu
denovonabolsa,tirouqueiroecigarro,seencostou
namolduradaportaecomeçouafumar.
35
-i

36 J'j~ia Bojun~a SapatodeSa&o 37
oolhoiadeumpapel prooutro,masadona
Matilde sóenxergavaoquadro quetinha acabado de
seinstalar nopensamento dela:
euvouencontrar outrababáparecida,
mediz?"
"Ordem judicial. Tivequeentregara
menina:' Eestendiaospapé proseu
Gonçalvesler.Enquantoeleliaeacarase
complicava, elaacrescentava: "Foiaprópria
tiaqueve:umasenhora muito distinta.
Achoquenãovamos terquenospreocupar
comasortedamenina:' Acaradoseu
Gonçalves pegava feitio deraivaededor.
Elaentãoinventava outropedaçoda
htória: "Elaiaviajarcomamenina pra
casadaavó.Játinhacomprado aspassagens.
Estavamemcimadahora." Afrustração na
caradoseuGonçalves agoraeratãogrande
queadonaMatilde foisesentindo cadavez
masegura. "Não, elanãoqumedizer
ondeéqueaavómora. Mastalvez
adiretoraládaCasadoMenor saiba,você
pode telefonar sequiser,onúmero éeste,
toma. Claroqueeufaleicomadiretora!
Claroqueeuconfirmei ahtória toda! Eu
nãoiaentregar amenina semserobrigada,
nãoé?Ascriançasadoram ela!Ondeéque
Olhou pratiaInês:
-Estespapéis ficam comigo.
-Tireicópiapraissomesmo.
-Espereaíqueeuvoutelefonaripra verseessa
suahtóriaestábemcontada. -Semmanenhuma
hesitaçãoempurrou atiaInêsefechouaporta.
Ficou umtempoparada, concentrada em
aprimorar afrustraçãonacaradoseuGonçalves.
Marchou protelefone.Fingiu quedigitava (quem sabe
aSabrina eascriançasestavam espiando). Começou a
falaraltopratodomundo escutar.Intercaloufala
compausaprafmgir queestavaouvindo.Desligoucom
forçaprafazerbarulho, chamou aSabrinagritado e
abriuaportadaruanumtranco. DeclaroupratiaInês:
-Pode levaraprenda. -Virou praSabrina:
-Pegaastuastralhas, vocêvaiemboracomela.-
Eespichou oqueixo pratiaInês.
-Euvouláteajudar aarrumarascoas,
Sabrina -atiaInêsfalou.
AntesqueadonaMatilde tivesse tempode
abriraboca,aSabrina gaguejou:
-Eunãotenho quasenada,pode deixar, num
instantinho euvolto.-Esaiuquenemumfoguete.

38 J'jCjiaBojuftCja SapatodeSalto
QuandoadonaMatildeentrounoquarto,
aSabrinajátinhatiradodocolchãoeenfiadona
calçaos"presentinhos"doseuGonçalves.Agora
empurravapradentrodeumasacoladeplástico
livro,caderno,têneumapoucaroupa.Dona
MatildevigiavapraveroquequeaSabrinaestava
levando.EquandoaSabrinadsequeiasedespedir
dascrianças,eladse,deixa,nãopreca.
-Mas...
-EudseDEIXA!Andacomsoqueatua
tiatáesperando.
NasaídaaSabrinafoiralentandoopassona
esperançadeaindaverascrianças.Masadona
Matildeabriuaportapraelasairdeumavez.Sem
saberdireitooquedizer,aSabrinafalou:
-Desculpequalquercoa,viu?
DonaMatildeficouolhandopraela.
-LembrançaspraMarilda,proBetinhoepro
seuGonçalves.
DonaMatildeaindaolhando.
QuandoaSabrinachegoumapertopradar
umbeijodedespedida,recebeuumabofetadana
cara:
osustopregouatiaInêsnochão.Maslogo
elaserecuperou:
-Oquequedeunessabruxa?!-Afundouo
dedonacampainha;aoutramãodesatouabater
naporta.
-Deixa,tiaInês,deixa,vam'bora.
-Nãodeixoporranenhuma1- oquequeelatá
pensando?Baternumacriançadessejeito!
-Écostume,vam'bora.-PuxouatiaInês.
-Melarga,Sabrina!-Gritoupradentrode
casa:-Querbater,bateemmim!Abreessaportae
experimenta.Experimentapraverseeunãoarranco
esseteunarizdebruxaefaçopicadinhodele!
-Deixapralá,tiaInês,vam'bora!
-Levaumabofetadadefazerdentepularfora
equerdeixarpralá??Xi,olhaaí!tásaindosangueda
tuaboca.-Seesqueceudaraivaepegouoqueixo
daSabrina.-Deixaeuverteusdentes!Assim,assim
feitoagentevêdentedecavalo.Isso.Hmrn.Não,
nãotáfaltandonadanão,filhinha,vocêtádeboca
inteira.Sóagengivatámachucada.Peraaí,deixaver
seeutenhoumlençolimpinho.-Procuroudentro
dabolsaetirouumlencinhoderenda.Masamão
amoleceu,despencou:oolhodaSabrinaestavache
delágrimas,esetinhacoaqueamoleciaatiaInês
todinhaeravergentechorando.
-Épravocênãoseesquecerqueeunãovou
meesquecer. -Ebateuaportacomamesmaforça
dabofetada.
39

40. c11j~iaBojun~a SapatodeSa&o
-Tádoendo,filhinha?
Sabrinafezquenão.
-Masolhaaíquantalágrima.
Sabrinafezquesim.
-Ah,nãochoranão,filhinha,vaipassar,vai
passar.-Molhouolençonaslágrimaspralimpar
melhor osangue.-Tádoendo,nãotá?
Sabrinafezquenão.
AtiaInêsseimpacientou;bateuosaltodo
sapatonochão:
-Massenãotádoendoporqueque'cêtá
chorando,ra?!
-Équenuncaninguém mechamoudefilhinha.
-Efungoucomtantaforçaqueacaraseentortou
toda.
AtiaInêsdesatouarir.
-Pô,masquecaretona!-Estendeuolenço.
-Toma,ficacomele.
-Vam'bora,tiaInês,vam'bora!
-Vamos,sim.
Sabrinasaiucorrendo,chegoulogonaesquina
edobrou. Parouerespiroufundo.QuandoatiaInês
emparelhou comelaasduasforamandandocom
maiscalma.Duranteumtemponãofalaramnada.
Depois atiaInêsperguntou:
-Porquequeeladseaquilo?
-Oquê?
-Pravocênãoesquecer.
-Ah...
Eagora? contavaounãocontavaosegredo
azulfraquinho?Agoraelatinhaumatia.<Queaté
chamava eladefilhinha. Etinhatambémumavó,já
pensou?Eseelacontavaeficavadenovosemvóe
semtia?
Andarammaumpedaço doquarteirãosem
falar. Comoéqueeraessatia?seráqueeratiada
gente contarsegredo?ecomoéqueiaseressavó?
Maumpedaçodechãoandado. Sabrinaolhoude
rabodeolhopratiaInês:quem sabeelajátinha
esquecido apergunta?
-TiaInês?
-Hmm?
-Asenhoradse...
-Cortaessesenhora, tá?
-Équeeuchamava adonaMatildedesenhora,
elánaCasadoMenortambém:tudosenhora.
-Nãotenhonadacomso:eusoueu.
-Bom...-Ecomeçou denovo: -TiaInês?
-Hmm?
-Vocêdsequeeutenhomãe.
-Temnão:teve.
-Quefimelalevou?
41

42 J'I9iaBojun9a
SapatodeSaAo 43
-Afundou nor.
Sabrinaparou deestalo. OlhoupratiaInês:
-Seafogou??
AtiaInêsfezquesim:
-Abraçada comumapedrona.
-Comquem?
-Com umapedragrande. -Oolhoda
Sabrina cresceu. -Praafundar maisdepressa-atia
Inêsexplicou.
Eagoraelasandaram maisdevagar. Em
silêncio. Depois:
-Foiquando?
-Logodepo delargarvocêlánatalcasados
abandonados.
-Dseram queeueradessetamanhinho.
-É.
-Avida,Sabrina, avida.-Edessa vezlançou
umolharduropraSabrina.-Ouvocêachaquea
vidaéumafesta?-Parouebotouamãonacintura.
Sabrina ficou sustentando oolhardatia
Inês.Sustentando só,não:espelhando. Atralponto
espelhando, que,derepente, atiaInêssesurpreendeu
devertanta durezanoolhodeumacriança.
-Não-aSabrina respondeu afinal-,eunão
achoqueavidaéumafesta.-Eseguiram andando.
NahoradeatravessararuaatiaInêspegou
amãodaSabrina.Deruaatravessada,seguiram do
mesmo jeito: mãodada.
-Vocêmeconheceu assinzinha?
-Hoje éoprimeirodiaqueeutôtevendo.E,
sabe?-Enviesou umolharapreciativo praSabrina.
-Nãopenseiquevocêfossetãobonitinha.
Sabrinaestavaimpressnadíssima coma
pedragrande.Nem curtiuoelogio.
-Minhamãeerafeia?
-Bonita.Masachoqueavidaestragou ela
cedo.
-Quem?

SapatodeSa&o 45
3.
-Oi.
...evoltouOolhopratiaInês:
-Seguinte:acoaqueeumagostonavidaé
dançar.
ApareceunoolhodatiaInêsotalrinhoque
gostavadeaparecerporlá. C
E.d/)
-vaial....
-Evaidaíqueeuqueriadançarcomvocê...
Querdizer...nãoénadanão,viu,ésópravocêirme
dandoumaorientaçãoedizendoseeusouounão
bomdepé...Eusonhoserdançarinoe...
-Comoémesmooteunome?
-An-dre-a Do-ri-a.
-Masquedançavocêsonhadançar?clássica,
contemporânea,samba,salsa,gafieira,rock,oque
quevocêquer?
-Euquerodançar)ponto.
-Peraí,vamoscomcalma.Queidadevocê
oprimeiroencontro
y
rv4s duasestavamquasechegandoem
~ casa,atiaInêseaSabrina,quando,
derepente,umgarotoatravessouaruacorrendo,
parounafrentedatiaInêseperguntou:
-VocêéqueéaInêsquedança?
-Eumesma,porquê?
-Bemqueeuache!Quandovivocêaparecendo
lánaesquinalogopensei:sópodeserela!Quebom
queémesmovocê!EumechamoAndreaDaria,
muitoprazer.
-Chamaoquê?
-AndreaDaria.
-Ah,prazer.-Seapertaramamão.Andrea
DariaolhourápidopraSabrina...
-Oi.
-Treze.
Puxa!(aSabrinapensou), sódoanosmaque
eu,mascomoelejátádaalturadatiaInês-com-salto!
OolhodatiaInêsmediuoAndreaDaria
devagar.
-Éque...de~xaeuteexplicarumacoa,meu
filho.Eunãoformobailarinos.Eudançoporque...
tem?

porque dançarébom, fazbemprasaúde, pracuca,
pratudo. Entãoeudanço.Esealguém querdançar
comigo,eudanço. Masédança semestilo,sem
pretensão, eudançoconforme amúsica. -Riu
curtinho. -Mascobro. Ecobro bem.Nacertavocê
nãovaiterdinheiropramepagar,vai?
-Não.Querdizer...
-Então,nadafeito.Sintomuito, meuamor,
maseuvivodso.Eueaminha mãe.Eagoraa
minhasobrinhatambém.-OlhoupraSabrina, mas
oolhodaSabrinaestava presonodesapontamento
doAndrea Doria. -Ma alguma coisa?
-Bom...euachoquenão...Eu...euachoque
erasósomesmo.
-Entãotá.Tchauzinho.
-Tchau. -Acenou devagar efoiseafastando.
SabrinaolhouderabodeolhopratiaInês:ela
continuava paradavendooAndrea Doriaatravessar
arua,seguirpelacalçada oposta, dobrar aesquina e
desaparecer; deposuspirou, sevirou praSabrina
eapontou:
-Acasaélogoali.Aquela pintada deamarelo.
-Sederam denovo amãoeseguiram emfrente.
~casa eradebeiradecalçada.Porta e
~ duasjanelas. Nahoraquepintaram
afachada atiaInêsnãoestavaemcasaeadona
Gracinha ordenou propintor:
-Tudoamarelo! amarelo bemforte!
Eleobedeceu: parede, porta, janela,número
dacasa,beiral dotelhado, maçaneta, fechadura,
tudoamarelo. Bemforte.
Aporta estavaaberta. AtiaInêsseimpacientou:
-NãotemjeitodadonaGracinha selembrar
defechar aporta darua.Oquesalvaéqueessa
cidade ainda écalma.
Sabrina estavaachando engraçado ouvira
tiaInêschamar amãededona. Efoidecoração
alvoroçado queentrou emcasa;maldavapra
46 Jy9ia Bojunga
L
4.
AdonaGracinha

48 -s-.Bojun'Ja SapatodeSa&o
acreditarquetinhaumaavó,umatia,equeagora
vinhamorarcomafamília.
Aportadeentradadavadiretonasala.No
centro,amesaderefeiçõesrodeada decadeiras.
Numcanto,umapoltronavermelha eumsofáazul,
umeoutrafazendopontariapraumatelevisão
ligada.AtiaInêsabriuumaporta:
-Meuquartoéesteaqui,olhasó.Adoro ele!
Nãoélegal?
-Supero
-Sempregosteidequartogrande, cama
grande,espelhogrande.
Sabrinafoiseolhar noespelho.
-Puxa!praqueassimtãogrande, tiaInês?
-Pragenteseverdançando, ébom.
-Éaquique'cêdança?
-Fazeroquê?adonaGracinha queria
porquequerianasalaumamesacomsecadeiras;
queriasofá,queriapoltrona, queria televão,
queriaeunãoseiquema:entulhou!-Desceu do
sapatodesalto, jogouabolsanacama,tirouo
cintodevernizegritou: -Dona Gracinha, asua
netachegou!-Acendeuumcigarro. -Achoque
elatánoquintal. -Apontouoladooposto. -Você
vaificarnoquartodela,viu?Ébemmenorqueo
meu, masvocêémiudinha, vaidarcerto...-Foi
indoprasaladepénochão:-Tôcomumasede!
Quer água?
Acozinhaerapequena eabriaproquintal. Foi
sóentrarem nacozinhaqueouviramocantarolado
dadonaGracinha.
-Bemqueeudesconfiava:elatálánovaral.
SabrinasesentiulogoatraídapeloquinW:
mebagunçado,muitoensolarado,todoenfeitado
demangueira, bananeira, pédechuchuepimenta,
tabanascendo deumlado,limoeirodandolimão
deoutro,umaredependuradaentreotroncoda
mangueira eomurodavizinha, edobambussecos
enterradosnochão, separadosdeunsdometros,
fazendodevaral.
DonaGracinha, nafrentedovaral, estendia
roupa.Osmovimentosquefaziaseajustavamna
melodiaqueelacantava,oumelhor, queelalaralalava,
equereproduziam, direitinho, asequênciade
apanhar roupa nabaciadezincoqueestavanochão,
sacudiraroupabemsacudida,estenderobraçopra
umasacola deplásticopenduradanumgalho do
limoeiro,pegarumpregador, prenderaroupano
arame, seabaixardenovo,pegaroutrapeçade
roupaelaralalalá ...
Sóque:nãotinha roupanabacia,nem
pregadornasacola, nemarame nenhum.
:4 ,J
,..C~i
r-1JA-Ccc..7
49
"

50 J~giaBojunga
-Neta!minhaboneca!-EcolheuaSabrina
numabraçoapertado,repetindo:-Neta!minha
boneca!
AtiaInêsfezumafestanocabelobranco:
-Vocêpassoubemodia?
DonaGracinharespondeuentusiasmada:C
-Muito!muitobem!Deupralavartanta
coaqueamanhãjávoupoderentregararoupa
todaprasfreguesas.
-Olhaqueémuitaroupa.
-Deixacomigo.
-Eolhaque'cêtásufocandoaSabrinanesse
abraço.
-Sabrina?
-Asuaneta.
-Neta!minhaNeta!-Desmanchouoabraço
eficouolhandoencantadapraSabrina.Quelinda
queelaé!-AlouocabelodaSabrina.-Mac...
Énatural,Neta?
SabrinaarrcouumolharpratiaInês.Atia
Inêsfezquesim.Sabrinafezquesimpradona
Gracinha.DonaGracinhaseentusiasmouaindama;
começouaalarcomgostoocabeloeorostoda
Sabrina.Recuou.MediuaSabrinadeolhopensativo:
-Maseuvouvestireladiferente,viu,Inesinha?
Quefequeéessetênquebotaramnopédela!
SapatodeSalto
Sabrinaficouparadanomedoquintal,de
testafranzidapraestranhacena.Esóquandoadona
Gracinhasevirouéqueoespantofoilargandoa
Sabrina.Porcausadeumarazão:adonaGracinha,
batizadaMariadaGraça,eramesmoumagracinha:
Maprabaixaquepraalta.
Gorducha.
Ocabeloeraumenfeitesó:bembranco,
todoenroscadinho,rodeandoacabeça.
Quenemumaauréola.
Bochechaepontadenarizavermelhadas.
FeitocoaqueadonaGracinhaera
pau-d'água.
Umolhopretoque,detãovivoe
brilhante,nenhumpau-d'águapodiater.
Vestidodealça:algodãodeflorzinha.
Atéojoelho.
Sandáliadededoque,nãosesabeporque,
umpéeravermelhoeooutroverde.
QuandoviuaSabrina,adonaGracinhase
abriunumsorroeaínasceuumacovinhaemcada
bochecha.
AtiaInêsbeijouadonaGracinhaeapresentou:
-Aquiestáasuaneta.
Ascovinhassealargaram.DonaGracinha
abriuosbraços:
51

52 c1yfiía Bojunfia SapatodeSa&o 53
equecalçatãodesbotada.Não,não,nãogostodso.
Voubotarnopédelasapatodepulseirinha.Evestidode
tafetá cor-de-rosa.Elaaindavaificarmalindinha.-
EoutravezpegouaSabrinanosbraçoscomo
querendo pegarelanocolo.-Minhaboneca!... Neta.
VoltaemeiaaSabrinaolhavaderabodeolho
pratiaInês,masatiaInêssópareciainteressadana
mangamaduraquetinha acabadodepegar.Dona
GracinhafoiconduzindoaSabrinapraescadinha
queligava oquintalàporta dacozinha;fezelasentar
numdegrau;sesentoubemjuntinhoequlogo
saber:agentevaibrincar dequê?
Sabrinamequeencolheuoombro.
-Vocêsabebrincardecabra-cega?
Sabrinaficouemdúvida;depofezquenão.
-Éassim:euamarroumpanonoolhopravirar
ceguinha.Vocêvailánovaraletrocadelugartudoque
eupendurei.Aívocêlevaaceguinhaatéláemanda:
"pegaaMartela!"
"pegaapedra!"
" r"pegaosapato.
"pegaobilhete!"
H "
pega...
-Calma,donaGracinha,calma,temque
mandarumacoadecadavezsenãoagentese
atrapalha. -AtiaInêstinhasesentadoumdegrau
abaixo, jádemangarasgadadedente;eagora, se
debruçandoeabrindoaspernas prasuconenhum
pingarnasaia,elasugavaamanga comgosto.Dona
Gracinhaobedeceu:
-Tá.EntãoagentesómandaaMartela.
Depomanda ma. l
-Explica onegócdotáesquentandoedotá
esfriando-atiaInêsfalousemsevirar.
-Ah,éassim, Neta:euvoudebraçoestendido
praverseeupegoaMartela. Aí...aí...-Odedo
indicador seenfunoenroscadinho docabelo e
começouaenrolareleainda mais. Atestasefranziu.
-Eaí...comoémesmo, Inesinha?
Entre duassugadasdemanga atiaInêsrespondeu:
-Sevocêvaichegandoperto agentegrita:
táesquentando! táesquentando!
DonaGracinhacaiunagargalhada como
táesquentandogritadodatiaInês.
-Sevocêvaiindopralongeagenteava:
táesfriando!táesfriando!Esevaiaindaprama
longeagente grita:esfrooooou!
E,outra vez,adonaGracinha achouuma
graçaespantosa doesirio.Como elanãousava
sut -nem-nada,egorducha daquele jeito,arada
balançavaelatoda.Semnemsedarconta,a
Sabrinacomeçou arirtambém. Mesmo assim:

54 J'Igia Bojunga
nãoentendendocoanenhumadaquelacabra-cega
queestavasendoexplicada.
-Aí,seeuacertopegaraMartela...-Deixou
afrasenoareacarafoificandotriste,trte,cada
vezmatrte;aSabrinaatéachouqueelaiachorar.
MasatiaInêsselevantounumpulo,anunciando:
-DeixaeuavarpraMartela quevocêvailá
pegarela.-Fezmiranovaraleatirouocaroçode
manga:-Aveeeee!
DonaGracinhaseanimououtravez:
-Aí,seeupegoela,euganhoojogo.Eévocê
quetemqueficarceguinhaevirarcabra-cega, viu,
Neta?-SelevantouepegouamãodaSabrina.
-Vamoslábrincar.Apanhaumpanodepratoaína
cozinhapragenteficarcega.
-Depo,donaGracinha,depo;asuaneta
aindanãolanchounemguardouascoasdela;não
tevenemtempodeiraobanheiro, coitada.Depo
vocêsbrincam.
-Entãoeuvoufazeroquê?
-Vocênãoquervertelevão?
-Ahé,televão.-Foiprasala,aumentouo
volumedatevêesesentounapoltronavermelha.
Silênc.
LápelastantasaSabrinaresolveucomentar:
-Gozado:avóGracinha atépareceoBetinho.
SapatodeSalto 55
-QueméoBetinho?-EatiaInêsimpulsnou
ocorpoprodegraudecimapraficarladoalado
comaSabrina.
-Ogarotoqueeutomavacontalánacasaem
queeutavatrabalhando. Elequeriapassarodia
todobrincando. Agentetambémbrincavadetapar(
oolhoeumpegarooutro.Maseunãosabiaque
sosechamavacabra-cega. Eeutambémnãosabia
que...-hesitou-...queagentepodiabrincarde
pegar semternadaprapegar.
AtiaInêscontinuouquieta.
-AvóGracinhaésempreassim, tiaInês?
parecendooBetinho?
-Nãoera.Masdepoficou.
-Masoquequeaconteceupraelaficarvirada
criança?
-Seilá!umtroçoqualquersedesarrumoulá
dentrodacabeça dela.Perguntei pr'ummédicoque
examinouela:porquê?!Elecomeçouafalarumas
coas queeunãoentendi direito,epelacaradele
achoqueeletambém não,eacaboudizendoqueso
àsvezes acontece. Aí,nahoradetomarbanho, em
vezdeselavarelaficabrincando defazerbolhade
sabão; nahoradecozinhar elafazbolinhodeterra
prafritarnafrigideira; nahoradelavarroupa(ela
sempre lavouroupa prafora),emvezdependurara

56 J'jgiaBojunga
Sapatodess.
nãogostounemdaprimeiranemdasegundaqueeu
chamei:dsequeelasnãosabiambrincar.Sóde
olharpraelasdemanhãjáemburravaprorestodo
dia.Daterceiraelagostou.Masaterceirasemandou:
dsequeserbabádegentepiradanãoeraapraia
dela.Eaí...querdizer...agora...eutôachandoque
vocêvaigostardebrincarcomela...eela...com
você...-OlhoupraSabrina:-Nãoé?
Acampainhadaportadafrentetocoueatia
Inêsachouqueeraumbompretextopradarum
temponaconversa:selevantouefoiabrir.Erao
AndreaDoria.
roupanovaral, elacomeçaapendurarnada, quer
dizer,nocomeçoeuacheiqueeranada,depoeu
fuientendendoqueelapenduraascoasqueelafica
lembrando.ElalembrademadaMartela...
-Quemqueera?
-Atuamãe.
-Ah!!-EocoraçãodaSabrinapulouma
altoqueoah!
-Apedranãosaidacabeçadela,entãoela
vaiependuraapedra,feitoelatavatododia
pendurandoroupanovaralprasecar.
-Quepedra?
-Aqueatuamãeamarrounopeitopra
afundarmadepressanor.
Sabrinadseoutroah!Sóquebaixo.
-Penduratudoqueelalembra.Masela
lembrasempreasmesmascoas.Nocomeçoela
recolhiaaslembrançasprapassarelastodasaferro
antesdeentregarprasfreguesas. Sequeimou,
queimoutábuadepassar, queimouroupa, quase
botafogonacasa:sumicomoferro.-Levantoua
mãofechadaemostroupraSabrinaopolegar se
abrindo,depooindicador,depoopaidetodos.
-Chameiuma,chameiduas, chameitrêspessoas
pratomarcontadela.Seeuficocuidandodela,
quem équesustentaacasa?MasadonaGracinha
57
l

5o.ktvv~<À ~'~h~'J)~
SapatodeSaAo
comgosto,oolhosedemorandoemcadadetalhe
dabermuda,docintoedacametaqueseajustava
nocorpoesgudoAndreaDoria.Oolhoda
Sabrinaiaevoltava:dopescoçoprocabelo;doqueixo
procabelo;donarizprocabelo;datestaprocabelo,
queeraclaro,compridoebomdema-elapensou
-depassaramão.
Quantomaiaseapossandodaimagemdo
AndreaDoria,matomadaiaficandopelavontade
decontinuarolhando.Nuncatinhavtoumoutro
_alguémqueelagostasseassimdeolhar.Sentiu
umarrepnobraço:"equandoatiaInêsvoltou
efechouafresta,aSabrinaficoualiparadae
desapontadadeterperdidooAndreaDoria.Se
sentiufrustradanacursidadedesaberondeéque
eleestavaindo,porquequeeletinhavindo,ondeé
queelemorava,comquemqueelenamorava.Uma
cursidadequesuplantavatodasasoutrasque
desdemanhãvinhamaguçandoaatençãodela:atia
Inês,aviagempraumaoutracidade(equedança
eraessaqueatiaInêsdançavanafrentedoespelho?),
adonaGracinhaeovaral.

5.
osegundoencontro
abrinaselevantouefoiatrásdatia
J ês.Masnacozinhaparou:tinha
vtooAndreaDoriaenquadradonaportaqueatia
Inêsabriu.DonaGracinhadormiaasonosoltona
poltronavermelha.Atelevão,aosberros,mostrava
umprogramadeauditór.
TiaInêssaiupracalçadaepuxouaporta.
Masaportamequeseabriuedeixouumafresta
deunsdopalmos.Semsedarcontadosmovimentos
quefazia,aSabrinafoiseposicnandopraencaixar
oAndreaDorianafresta.Acabouconseguindo.Ele
agoraestavadeperfil,falandoegesticulando.O
programadeauditórengoliaafala;afrestaengolia
ogesto;atiaInês,invível,engoliaoolhardele;mas
operfileradela,dela!eaSabrinaseapossavadele
*MasaSabrinaaindaécriança:estáloAgedeespecularo
quequeumserpodefazerooutrosearrepiar.
59
\.

60 J'1'jiaBojun'ja
AtiaInêsbotouasmãosnacabeça:
-Cruzes,donaGracinha!assimnãodá:coma
tevênessesgritosninguémseescutaaquiemcasa!-
Baixouovolumedatevê;sevirou:-Ué!eladormiu.
Comoéquepode,gente,comessabarulhadatoda.
-Desligouoaparelho.-Vamosláarrumaroquarto
everondeéque'cêvaiguardartuascoas.Depo
agentepreparaumjantarzinho,vocêdeveestarcom
fome.-Entrounoquarto-Ai,quelindo!espiaa
luanascendo.Etácheinha-cheinha,olhasó.
SabrinaparouatrásdatiaInês,imaginandoo
AndreaDoriaseguindopelarua(seráqueelejá
tinhavtoalua?).
i>
6.
Aluae...
ANDREADORIA
I'f~u,sim.Efoiralentandoopasso
j/~racurtirmelhoraclaridadequese
espalhavapeloanoitecer. Pensandopraquemcontava
primeiroqueaInêseramesmolegal:tinhaconcordado
dançarcomelecobrando"demãeprafilho".As
aulascomeçavamnaterça-feira.
AndreaDoriaestavacontente.Deolhonalua,
ensauumpassodedança.Seimaginoudandoa
notíciaao
RODOLFO
-Pai,éoseguinte,vocêvaiterqueaceitar,
essaminhacoaémuitoforte:eutenhoque
,I
('

!\
o~('f(.,VV c~ ctlX;qtfC,
SapatodeSalto 63
62 J'1~ial50junga
dançar,euquerodançar!Euseiqueaindaécedo
praeusairaquidacidadeeirpr'umcentro
grande,pr'umlugarlegalquetenhacurso,que
tenhatudopragenteaprenderadançar;eeusei
tambémmuitobemquevocênãovaibancar
nenhumcursodedançanem...Peraípai,perai,
deixaeuacabardefalar,nãocomeçajáaficar
nervoso,eusótôtentandoexplicarqueeunão
possomudar,cadauméoqueé,eseeuresolvi
queadançaéoqueeuquero...calmaaí,pa!Me
dáumachancede...Ah,masquesaco!Assimnão
dápraconversarcomvocê,maleucomeçoa
contarumtroçoevocêjávemcomessenegóc
dequeeutenhomaéquejogarfutebol;quantas
vezeseuprecotedizerqueeunãogostodeme
esfalfaratrásd'umabola,eugostoédedançar!
Maseunãoqueromaficardançandosozinho,
pô!euprecotreinarcomalguémquesaque
movimentocorporalmelhordoqueeu!...Não
tôgritando,nãotôgritando,sótôfalando
explicado,euprecodeumaparceira,oudeum
parceiro,sóque...Parceirodedançapai,parceiro
dedança...Ah!esquece.Nãoadiantaquerer
conversarcomvocê.
AndreaDoriaparounacalçada.Ficou
olhandopralua.Tomouumaresolução:deumeia
voltae,emvezdeseguirpracasa,seencaminhou
praruaondemorao
]OEL,
jáformulandoempensamentoaconversa:
-Joel,amanhãeucomeçoadançarcoma
Inês.Puxa,cara,foiacoamalegaldomundo:
primeiroeumeencontreicomelanarua,pedipra
tomaraulacomela,maseladsequecobravabeme
quandoeufaleiaminhaidadeelanempareceuma
.interessada.Eufiqueimesemjeito,sabe,efuilogo
dandoofora.Masnãotivemasossego,Joel,não
tivemasossego:questudar,nãodeu;quler,não
deu;nãodeunempravertelevão,eaí,nofim
dessetroçodenãodarnada,eupensei,puxa!eu
gosteitantodacaradela,quemsabeeuvoulána
casadelaefalocomeladojeitoqueeutôfalando
aquicontigo:descontraído,olhonoolho,sem
besteiranemnada,eelatopa!Pô,Joel,derepente
eutivetantacertezaqueelaiatoparqueeufui.
Chegueilá,agenteconversouumpouco,enãodeu
outra,elaésúper!"Tábom,meuquerido,vêláo
quequevocêpodepagar,queeutenhomãee
sobrinhapracriar,eagentedança,dançaaté
cansar:'Nãoéomáximo,Joel,nãoéomáximo?!

-<o-o()~o.~ CNé)~!\'h.c..
"~ I J_
64 cf'j'Jia Bojun'Ja
AndreaDoria parounacalçada, visualizando o
Joel:
Noolharumrisinho irônico;
noqueixoamãoapoiada;
nocabelo umamecha pintada;
namãoumlivroantagônico. *
-Joel,nãocomeça agora apensarqueeutô
querendo outracoadaInêsquenãosejadançar
comela,viu?
Noolharorinhoaumentou;
umroqueabocaimitou.
-VIU?!
EoJoelpronuncu:
-Bomproveito.
Quandochegounaesquina oAndrea Doriajá
estava achando melhor falarcomoJoelnumaoutra
*Umdiao[oeldeclarou proAndrea Doria: eusouum
antagônico: daquiprafrente sóvoulerlivrosantagônicos.
Andrea Doria fezumacaradeincompreensão. EoJoeIfalou:
Andrea, meuquerido, pravocêmecompreender melhor você
temquesaberdireitinhooqueéumantagônico; sobretudo
noqueserefere aserantagônico aoSISTEMA. (Equandoo
[oelfalaemsistema ocorpo deleestremecetodo, feitocoa
queestátendo umaconvulsão.)
SapatodeSa&o
hora.Deumeia-volta; foiseencaminhando devagar
pracasa.
Aluacheiaresplandecia, botando maluz
noLargodaSédoqueosvelhos lampiões que
iluminavam aquele htóricorecantodacidade. Ao
atravessarolargo, Andrea Doriaviu
)
PALOMA ELEONARDO
abraçados nobancopertodochafariz. Sesentiu
seguro:agoranãotinha maproblema: praeles,
podiacontar.
-Oi,mãe!Oi,tLéo!
-Eaí,filhote,tudocertinho?
Leonardo afastou aPaloma prolado:
-Senta, Andrea, agentejátinha sedespedido,
nãoé?masquando eusaíolargoestava tãobonito,
assim,comessaluona, queaPaloma eeuresolvemos
sentarnestebancopracurtir.
-Epralembrardotempoemqueagente
vinha brincaraqui...
-...equeatuamãemeempurravapraeucarr
dentro d'água.
-Eusó?Vocêtambém, ué:tavasempreme
empurrando pradentrodochafariz.
-Atuamãeeraterrível, Andrea!
65

66 J'1giaBojunga SapatodeSalto
-MentiradoLéo!omonstrinhoeraele.
-Vemcá,minhaterrível- puxouPalomama
prajunto.Seabraçaram.
AndreaDoriacontinuavadepénafrente
deles,meesquecidodetudo,detantoqueachava
bomolharoquererdosdo.Eramgêmeos;e
tantoacordocabelocomoofeitdabocaedo
narizdaPalomaeramiguaaosdoLeonardo.Mas,
derepente,AndreaDoriaselembroudoqueestava
querendoanunciar:
-Fuilá,mãe.
-Aondemeufilho?
-FalarcomaInês.
-Ah,é?eaí?
-Tudojoia.Terça-feiraeucomeçoasaulas.
Eladsepraeupagaroquepuder.Vamosdepo
veroquequeagentepode?
-Vamos.Vocêjáfaloucomoseupai?
AndreaDoriasacudiuacabeça.
-Hmm...Ah,filho,porfalaremfalar,oJoel
telefonouepediupravocêligarpraele.-Desvuo
olhar.-Dsequeeraurgente.
-Sei...-Ficouuminstantequieto.-Bom,
entãoeu...eudeixovocêsaícurtindoalua.Boa
viagem,tLéo.
Leonardoselevantou, praabraçaroAndreaDoria:
-Gosteimuitodeteverdenovo,Andrea.
Olhasó,Paloma,elejáestáquasedaminhaaltura.
Vouversenapróximavezqueeupassaraquipela
cidadedápraficarmatempo.
-Pelomenosumpernoite,tLéo.
-É.
-VocêvempronascimentodaBetina?
Leonardosevirou.
-Épraquando,Paloma?
-Mêsquevem.
-Comoéquevocêestásesentindodeganhar
.essairmãdepodetrezeanosdefilhoúnico?
-Ah,tôachandoomáximo!Jádsepramãe:
deixaelacomigo:trocofraldaetudo.
Riram;seabraçaramdenovo.Leonardoficou
olhandoAndreaDoriaseafastar.Sentououtravez
juntodaPalomaefixouoolharnosobradãoem
frente.
Silênc.
Depo:
-Vocêtemcerteza,Paloma?
-Certezadequê?-Encolheuoombro.
-Também,nemadiantaperguntar:eunãotenho
macertezadenada,souopróprpontode
interrogação.
-Certezadequeosobradãovaiabaixo?
)
67

68 J~9iaBojunlja
-Ah,dsoeutenho,olhaláapilha:tudopro
tapumequevãolevantarnafrente dopréd:atrás
vaitudoabaixo.
-Masnãoépossível! estelargoéumajoiado
séculoXVIII,eosobradão...
-Dseramqueaestruturaestá
comprometida.
-Ésódescomprometer!
-Oprefeitodizquenãotemverba.
-Levaquantodaincorporadoraimobilria
quevailevantaroespigãoedestruiraharmonia
arquitetônica destelargoprecso? Ah,Paloma, so
meenlouquece! Atéquandoagentevaiterqueviver
vendogovernoatrásdegovernonãolevaraséra
defesadonossopatrimôn, danossaarquitetura, das
nossasflorestas,donossoartesanato,dasriquezas que
temonossochão? Atéquando nósvamoscontinuar
presenciando oabandonoeaentrega dsotudo?!
-É.
Silênc.
-Léo...
-Hmm?
-Euprecotecontarumacoa.
-Hmm.
-TáfazendounstrêsmesesqueoRodolfo
chegou emcasafeitolouco:dsequetinha passado
)
lápelosladosdaestaçãoeviu,delonge, oAndrea
Doria eumamigo dele,oToel(umamigoqueéuns
~~o ouseanosmavelhoueoAndrea ,
pescandonor.FicoueSEiando elápelastantas_
viuos~sebeijando. Naboca. EoRodolfoficou
olhandopramim, feitopedindo umaexplicação. Aí
eufalei,poé,oAndrea Doria agora andaempolgado
peloJoel:enãodeutempodedizermanada: o
Rodolfocomeçou ameacusardetercriadoofilho
deleprasergay.NessahoraoAndreaDoria chegou
emcasa.EvocêpensaqueoRodolfoparoudefalar?
Desatouagritar.Depropósito proAndreaDoria
ouvir. Dissequeeudeviaestarmuito satfeita: eunão
botava omeninopralavarlouça?prafazeracama?eu
nãoviviadizendo quemachmonãodápé?eunão
tinhaaproveitado umaviagemlongaqueeleteveque
fazeraPortugal, quandofoiresolver aherança doavô,
justopraescolhersozinha(eissoeleficarepetindo:
sozinha!sozinha! vocênunca meconsultou) onome
queeuiadarprofilhodele?equeeu,muitolouca,
tinha escolhidoumnomedemulher?!
Leonardoachougraça:
-Você nuncamecontou isso.
Paloma deudeombros.
_Desde quevocêfoipraSãoPauloagente
raramente sevê...
SapatodeSaho 69

Ei
p
70 J'JgiaBojunga
-Maslegal.
-Merabugento,nãoé?
-Masficousupercontentequandoagente
aceitouoconvite praconhecerele.Nuncame
esqueçodaemoçãodelequandonosabraçou.
Tadinho!fazendoforçapraselevantardacadeira...
-Oqueeugostei maláemGênovafoio
porto.AcasadovôGiuliano eraalipertinho,lembra?
Etodahoraagente escapavaprairveromovimento
dosnavsdecarga, deturmoedetudoquerolava
naqueleporto.
-Acoaqueeumaquerianavidaera
poderviajar.
-É.
-Enuncamaviajei.
-Poé.
-Maseuqueriaeraviajardenav.
-Você sempretevemaniademar.
-Efiqueisempre aquinointerr...
-Quandoteperguntavam, noNatal,que
presente vocêqueria, vocêdizia(fazvozde
criancinha): "Euqueroumnav:' Eeuachavaque
vocêeramuitoestúpidaprapedirnavemvez
deav o.
-Eaíeuvinha aquiprolargofazermeunav
navegar naságuas dochafariz.
SapatodeSaho
-MaselenãosabequemfoioAndrea Doria?
-Claroquenão,Léo!Masatéaítudobem:a
gentenãotemnenhumaobrigação desaberquelá,
umbelodia,naItália,emplenoséculoXVI, um
caraqueiaentrarprahtóriarecebeu onomede
AndreaDoria. Masoque...
-Paloma,vocêlembradanossaemoçãoláno
porto?
-Queporto?
-LánoportodeGênova.Agentetava
comquinzeanos,nãoé?quandoovôGiulianonos
convidoupraconhecerele,lánaItália.
-Nãoachoqueagente aindanãotinhafeito
quinzeanosCoitadodovôGiuliano,nãoé,Léo?
Semprequeeupensonelemedátrteza...
-Ah,é?
-Você,não?
-Praserfranco,eununcamatinhapensado
)
nele.
-Tantosanosnaquelacadeiraderodas!E
semprecomtantavontadedeconhecer oBrasil, de
virvitarofilho...Ficouarrasadoquandoopapai
morreunaqueleacidente ...Achavaquesómesmo
conhecendoosnetosiaseconsolarumpoucodeter
perdidooúnicofilho...
-É,eleeraumcaratrte.
71

~
72 JIj'jiaBojun'ja SapatodeSa&o 73
-ElánoportodeGênova,derepente,agente
olhaevêaquele navlindíssimochegando...
PaIomalevantaobraçoecorreamãopeloar:
-...escritobemgrande,assim,nocasco:
AndreaDoria.
-Eraumfimdetarde,melembro,océutava
me vermelho, eaquele navenormeetodo
brancochegando...
-...combandeirinhadetudoqueépaísque
tavanarotadele...
-foimesmoemocnanteaquelachegada...
-escritobonitonocasco:AndreaDoria.
Achei onomelindíssimo.Nemseioquequeme
quei~9.~E.1.J!l:.a..~~rr~..E0 meninopraeleaprender gue
homem nãoécoadeoutrohomembei'arnaboca.
quantomaeupelacalmaemostravapraeleque
oAndreaDoriaestavaalipertoouvindo, maele
meacusavadenãotercortado, desdepequenininho,
essegostoqueoAndreatempradançar,Htemmaé
quejogarfutebol! temmaéquechutarbolapra
aprenderaserhomem!".Ah,Léo,foiumacena
horrível. Euqueriaargumentarcomele,pedir, por
favor, pragenteconversaresseassuntodeoutrojeito,
mastudoqueeuqueriafalaracaboutrancandoaqui
nagarganta,feito,feito...-Eoutraveztrancou:
Palomanãoconseguiufalarmanada;fechouaboca
comforça.
Leonardovoltouaolharprosobradão.
Lembrouque,nopassado,oprédpertenciaaum
comendador,donodeterrasedeumarmazém.
Quandoocomendadoraindaeravivo,oarmazém
funcnavanapartedebaixo;noprimeiroandarera
amoradiadafamília;nosegundo, osalãodefestas.
Leonardosacudiuacabeçadevagar:lindo!eque
construçãosólidaesóbria!equeelegânciaos
balcõesdajanela!equeperfeiçãooferroforjado!
Pensounoprefeito.Comoéquenãobotavam na
cadeiaumprefeitoquedeixavaassassinarum
sobradãoassim, mutilandooharmonsoconjunto
)
. . . .
lmpressiOnou ma, seonavouonome...
-quemsabeosdojuntos?
-sóseiqueonomeficourepetindona
minhacabeça,AndreaDoria,AndreaDoria,e
mesmosemnuncatervtoououvidoaquelenome
anteseupensei:seumdiaeutiverumfilhoelevai
sechamarAndreaDoria.Enemporummomento
meocorreuquealguémpudesseacharqueAndrea
Doriaeranomedemulher.
-MasoRodolfoachou.
-Eatéhojeacha.Esemprequeagentedcute
elebateoutraveznessatecla.Enessediaqueeleviuo
JoeleoAndreasebeijandoeleficoudoidinho:dse

E
74 cfyfjiaBojunfja SapatodeSalto
daquelelargohtórico.Seelefossejuiz,quanto
tempodecadeiaeledavaproprefeito?Crime:
CUM-PLI-CI-DA-DE. Começouacalcularapena.
MasaPalomaperguntou:
~~o- -Lembraquandoagentetinhadezanos?eeu
"'i'yme apaixoneiporaquelameninaquevemorarem
~'j.l frentedanossacasa?
~cr. Alembrançadameninavetãof~rteq~eo
fI.J'"Leonardologoseesqueceudapenaquelaaplicarao
i/v prefeito.
iJ -ElasechamavaAstrid,lembra,Léo?erado
( anosmavelhaqueagente.-Etãodiferente!
Loura,olhoazul,cabelotãofininhoquequalquer
bradeixavaeleesvoaçandonoar.
-Lembradabicicletaqueelatinha?
-Vermelha.Pneudebandabranca,grosso
)
-EquandoopaidaAstridmandoufazera
cV\aTnojardim?
-Nossa,quesensação!eraaprimeira
cV\aTqueaparecianacidade.-Leonardoimitou
osotaquedaAstrid:-"Papaimandoujazerra
cV\aTparranóspoderraguentarroverrãodo
Brrasíl. "-Riu.Palomariujunto.
-Eaívocêvaieseapaixonaporela.
-Sóeu?
-Nósdo.
-Vocêdescobriuquegostavadelaquandoleu
escondidoomeudr.
-Vocêtambémleuomeu...
-Quebrigaquedeu.
-Euvivianajanela.SópraveraAstrid
passar.
-Quandoelameconvidavaprabrincarcom
elaeuquasemorriadeemoção.
-Astrid!
-Astridí
-Euficavahoraspensandocomoéqueeu
podiaroubaraAstrid.Sópramim.
-Umdiainteirinho!Sópramim.
-Eaíbeijareladeumjeitoqueeuachavaque
eraojeitomelhordebeijar.
-Equeeuacabeinuncabeijando.
.~
assrm,
-Anossaeracordeferrugem.
-Cordeferrugemnada!enferrujadamesmo.
Edepneubemfininho.
-Segundas,quartasesextas,eraminha...
-...nosoutrosdias,minha;enodomingoa
gentetiravaparouímpar.
-LembradagovernantadaAstrid?
-Queraivaquedavaquandoasduascomeçavam
afalarnaquelalínguaqueagentenãoentendianada.
75

B
76 c1ygia Boju_nga
-Tudopassoutãodepressa!
-Umdiaagenteestavanajanelaeela
atravessouaruacorrendo.
-Devestidobranco.Tinhafeitoumatrança
nocabelo;umasó.
-Etinhaprendidoumaflornapontada
trança, achoqueeraglicínia.
-Não,não,eraalamanda.
-Comoéquevocêsabe?
_Euviviaarrancandoalamanda dopépradar
praela...
-Ah,é?vocênuncamedse.
-Vocênuncaperguntou...
_Quandoelacorreu, aflorcaiu;elaseabaixou
epegou.
-Parounacalçadaedseassim:"Nósvamos
emoorradoBrrasil.Aminhamãedsequenão
aguentaoutrroverrãoaqui:'
-Agenteficousemsaberoquefazia.
-Sómorrendodevontadedetorcero
pescoçodamãedela.
-Eaíelaficounapontadopéeestendeua
flor.Nóspegamosaomesmotempo, lembra?
-Lembro.
-Astrid.
-Astrid.
SapatodeSa&o 77
)
Palomasuspiroueseencolheumanoabraço
doLeonardo:
-EuqucontarproRodolfooquequeeu
sentiapelaAstridpraverseeleentendiamelhoro
quequeoAndrea DoriaandasentindopeloJoel.
Maselemalicutudo.AíeuconteiproAndrea
Doria.Euviqueeletinhaficadomuitoperturbado
comaquelacenaqueoRodolfofezeentãoeuachei
quedeviacontaressapaixãoqueeutivepelaAstrid,
praelenãoficarseachandoassim,seilá,diferente,
esquito.Sóque...-Paroudefalar.
S' A)
-oque.... . ""
, .~,-
-Eque...bom,éque...àsvezes,meparece101.C.;L.f~
queessahtóriadoJoelestábemdiferentedaJo~
htóriadaAstrid...-Foisaindodemansinhodo~
abraço.-Nãosei.Noprincípeuacheique A~.
erasóempolgaçãodeterumamigomavelho, 1
,fi-
metidoaintelectual, mas.:. -olhouproLeonardo,,(~
-masagoraeuandosentindoqueessaempolgação
virouumagrandeperturbaçãoproAndrea
Doria.
-EessataldeInêsquevaidançarcomele,
quequeésoagora?
-Bom,oAndrea Doria, desdepequenininho,
gostadedançar...
-Issoeusei.
I)

78 ef'J'jia150jufUja
-...e,àmedidaqueelefoicrescendoeesse
gostoaumentando,mafoiaumentandotambémo
conflitocomoRodolfo,quecmouporquecmou
queomenino,emvezdedançar,temquefazer
esporte,temquejogarfutebol.
-Nacertaeleachaquechutarbolavaicurara
delicadezadosgestosedoandardoAndrea...
Palomaperguntoudevagar:
-Vocêachaumadelicadeza. ..delicadadema?...
Leonardodeudeombros:
-Dependedecomquemagentecompara:
comigo?comvocê?comoRodolfo?Secomparar
comoRodolfo,écapazdeacharquesim...-Deu
umrocurto.-Mas,mediz,eessataldeInês?
-Bom,soéumahtóriamemtersae
meengraçada.Amulherapareceuaquinacidade
nãofazmuitotempo.Deveregulardeidadecoma
gente.Ummulheraço!VedoR;moravalá;eve
comamãe;vivemjuntas.Masnãoécasadeporta
aberta,não.Correaíumboatoque,noR,elaera
prostitutaassumida,masaqui,dizem,elarecebeé
pradançar.Dizemqueeladançamuitíssimobem.
-Dançaoquê?
-Parecequeeladançatudo.Dáaulapra
quemqueraprender;dáumparsensacnalpra
quemgostadedançar;dáreun opraquemquer
SapatodeSalto 79
)
dançarcommagente;étudoemtornodadança;
dizemqueelatemláumasteoriasdequeadança
éessencialpracuradocorpoedaalma;enfim,
desdequeelachegouaquinacidadeépratododia
nosmenusdafofoca.
-Masqueprato,hein?
-Tôdizendo.
-Eelacobra?
-Ah,cobra!ebem.
-Masnãoficasónadança,fica?
-Parecequevaria.Podetambémficar.
-Masqueméquevailá?
Palomaolhouemtorno,simulandocautelapra
ninguémouvir.Cochichou:
-Dizemquetodoequalquerfigurãoaquida
cidadeedosarredoresresolveuaprenderadançar.
Leonardocaiunagargalhada.
-Contama!tôadorandoessafofoca.
-Soubequetemdadoummontedebriga
doméstica.
-Játemgenteseseparando?
-Aindanão:seacoaengrossa,omarido
logoenfrenta:sefosseumaacademiadeginástica
vocênãocriavaessecaso,nãoé?!mas,comoéde
dança...
-Eamulhervainessa?

pe
80 Jyilia Bojunga Sapatodess:
-Senãovai,elearrastaamulherpra
Hacademia"eaInêsbotalogoamulher pradançar
também.Parecequetemdadocerto,ecomsoa
Inêsarranjaoutracliente ...
Osdoriem.
-Masninguémsabeporquequeelalargou
oR?
-Mtér.
-Achoquenaminhapróximavinda voutomar
umasaulascomaInêspraassuntar essemistér. X!
aluajávaialtaeeutenhoalgumas horasdeestrada
pelafrente.-Acariciacomternura abarriga da
Paloma.-Eporfalaremlua:espero queaBetina
nasçadebundavoltada pralua,comoopapaidizia
quandoqueriadesejarfelicidadesaumacriançaque
ianascer. -Selevantaebotaatiracoloabolsade
viagem:-Betina. Gosteidonome.Quemqueescolheu?
-DestavezfizquestãoqueoRodolfo
escolhesse.
Derepenteelaseagarracomtantaforçano
braçodoLeonardo, queelesevoltasurpreso. E
sesurpreendeaindamaaoveromedoquetomou
contadacaradairmã. Mais quemedo: umquase
pânico. Elevaisesentandooutravezdevagar e,por
ummomento,ficamassim: umdeolhonooutro.
Palomaseseguranasduasmãosdele:
)
-Eutôcommedo, Léo,eutôcommuito
medo!Agentenãoseentendema,oRodolfoeeu;
parece quecadadiaquepassaagentepensama
diferente. Euseiqueagentesemprepensoudiferente,
maseusemprefuiloucaporele,entãonuncame
custoutantoassimabandonarmeussonhosde
viagem, deumaprofsão, dsoedaquilo, porque,
nofundo,oqueeuqueriamesmoeraviversempre
comele,terfilhoscomele,umafamíliafelizcom
ele,comele!comele!Masnãotádandoma.
Desde queoAndrea nasceu queeletáquerendo
mafilhos.Mas, vocêsabe,eufiztudoqueos
médicosmandaramfazerpraengravidarenão
consegui.Edsotambém elecomeçouameacusar.
Sobretudodepoqueeledeupraficarcomraiva
dessahtóriadoAndreaDoriaserHdiferente",
_._.,....-:-;----;:---....--
feitoelediz.Quantasmilvezeseudseprae'Iê:'"mas
----
vocêpensaqueeutambémnãomorrodevontade
determafilhos?de,pelomenos, terumafilha?a
filhaqueeusempresonheiter?Oúltimomédico
queeuconsulteidsequeeunãosoubemformada
praparir.Eucomecei asentirqueoRodolfome
desprezava porcausadso.Ah!Léo,vocênão
imaginacomosomefezsofrer. Euqutanto
adotarumamenina!Maselefoiirredutível:dejeito
nenhum!filhotinha queserdele;ouentãodemais
81

e
82 JygiaBojunga
-Vocêtáchorando,é?
Elafoilevantandoacabeçadevagar:
-Vocêesqueceuqueochorãodafamília
semprefoivocê?-Seolharam.Elasuspirou:-Tá
vendo?Ésóeucontinuardesabafandoqueessatua
lágrimapresavaidespencar.-Selevantou. -Você
nãoquermesmopernoitaraquiemcasa?
Leonardofezquenãoefoiseencaminhando
procarro.
-Dirigecomcuidado,Léo.Porfavor.
-Prometo.
Quandochegaramnocarroseabraçaram
comprido.EoutravezoLeonardofezumafesta
delicadanabarrigadaPaloma.
-Tchau,minhairmã.
-Tchau,meuirmão.
SapatodeSalto 83
ninguém.Foidaíprafrentequeeucomeceia
questnaressapaixãoqueeusentiporeledesde
queagenteseencontroupelaprimeiravez.E
quando,afinal, umdia,euconcluíquenãogostava
madele,eudescobriquetinhaengravidado
novamente.Isso,nocomeço,pareceuatéqueia
renovaranossarelação.Eumesentitãofelizdeter,
afinal, concebidoaminhaBetina!MasaíoAndrea
DoriacomeçoucomessaamizadecomoJoeleo
Rodolfologocmoucomso.Desatouaespnar
omenino.Agoravivecomumhumordecão.
PerturbandoaindamaoAndreaDoria,que(eu
se!eusinto!elenãomediznada,maseusei,eu
sinto!) jáandatãoperturbadopeloJoel.-Escondeu
orostonobraçodoLeonardo.-Eutôcommedo,
Léo,eutôcheiadepressentimentosruins.Euqueria
tanto,tanto!queaBetinanascessecomtudobem
láemcasapra,desaída,terumacoaboapra
oferecerpraela.Ah,Léo!oquequeeufaçoprasair
dessaangústia,dessespressentimentos,dessemedo,
mediz!eutômesentindoperdidadema.
Leonardoficouacariciandoacabeçada
Paloma.
-Daquiapoucovocêseachadenovo-ele
acaboudizendo.
Elanãosemexeu.
)

e
7.
Lembranças
okiaSabrinaqueabriuaportapro
J'AndreaDoria.
-Oi.
-Oi.
EquandoeledsequeaInêsestavaesperando
elepradarumaauladedança,aSabrinaficou
estática:jápensouseelaentravanaaulaesaía
dançandocomele?!Masserecuperoudahipótese:f
ezumgestoproAndreaDoriaentrar,fechoua
porta,chamouatiaInês,efoisóatiaInêsentrar
queoolhodaSabrinafoidiretoprosapatoqueela
estavausando,desaltobemalto,feitoelasempre
usavaquandosearrumavaprareceber.
-Podebotarosom,tiaInês?
-Pode,pode.
)
SapatodeSalto
-Oquequevocês vãodançar?
AtiaInêsconsultouAndreaDoriacomo
olhar:
-Algumapreferência?
-Não.
-Entãovamoscomeçarcomonossofeijão
comarroz.DeixaaqueleCDquejátálá:temsamba
detudoqueéjeito.
Sabrinaligouosom,correuproquartoe
sentounacamapraapreCIar.
AndreaDoriahesitouummomentodiantedo
gestodatiaInêsconvidandoelepraentrarno
quarto.
-Égrande,temmaespaço-elaexplicou-
etemumespelhãopragenteseacompanhar.
-Possotirarosapato?-elepediu.
-Sevocêprefere...
-Équetudoqueeugostodefazereugosto
defazerdepénochão.
AtiaInêsriu:
-Poeunãosouassim:pracadacoaqueeu
gostoomeupéquerumsaltodiferente.
Sabrinaficouolhandoencantadapropédatia
Inês.Seajeitoumagostosonacamapracurtira
auladedançaesentiuumafrustraçãomedonha
quandoatiaInêsfalou:
85

)
SapatodeSalto86 J'1giaBojunga
-Sabrina,meuamor,adonaGracinhahojetá
muitoagitada:vaibrincarcomelalánovaral, vai.
Nãoeradesculpa:adonaGracinhaestava
mesmoagitada,esetinhacoaquepreocupavaatia
InêseradeixaradonaGracinhasozinhaquandoela
seagitavaassim.Sabrinaselevantouefoisaindodo
quartosemvontadenenhuma,oolhopresono
AndreaDoria.Maselejáestavaconcentradono
movimentodocorpodatiaInêsaosomdamúsica.
-Apedranãoficoubemlimpa!botaelade
molho!-ASabrinabotava.-Viraosapatoprosol!
-ASabrinavirava.-Tiraobilhetedabacia!-A
Sabrinatirava.
OsmovimentosdadonaGracinhaiamficando
cadavezmaenérgicos.Lápelastantaselaparou,
cansada;enxugouosuordatestaeperguntou:
-Achaquedátempodesecartudopr'eupassar
logoànoiteeamanhãcedoentregarprafreguesa?
Sabrinanempestanejou:
-Achoquedá,euajudo.
-Ah,entãotá.
-Dáprasentarnodegrau?
-Dá.
-Entãotá.
Sentaramnodegraudaescadinha.
Deolhopasseandopelocéu,adonaGracinha
apouocotovelonojoelho,abochechanamão
ecomeçouaselembraremvozaltadecenase
conversasdopassado:epódsdesencadeadosque,
praSabrina,nãofaziamnenhumsentido,mas
queelaescutavacomamaratenção,querendo
encontrarumaligação,umasequênciaemtoda
aqueladesordemdelembranças.
JáeranoitefechadaquandoatiaInêsgritoulá
dedentro:
Lánoquintal, commovimentosenérgicos,
adonaGracinhaestendiaroupanovaral,se
abaixando,pegandoumapeça,torcendoelabem
torcida,sacudindoelanoar,prendendoelano
arame;efoisóaSabrinachegarpertopraelajá
gritarcontente,Neta!minhaamigaNeta!Beijoue
abraçouaSabrinaeemseguidaincluiuaSabrinana
tarefadovaral:
-Pegaaíobilhete!estendeeleal!penduralá
osapato!vêseapedrajásecou!
Sabrinacomeçouaimitarosmovimentosda
donaGracinha,feitoquempegaroupa,torceroupa,
penduraroupa.
EadonaGracinhagritava:
L
87

e,
Edi
E
L
88 Jy9ia Bojunga SapatodeSa&o
-Gente!'cêsaindatãoaínovaral?
AdonaGracinhateveumestremecimentoese
botoudepé.
-Aroupajádevetersecado.Vamolápegar.
jáfaztempoqueadonaGracinhadeuprafazer
essamturadaesquitadecoaacontecidaede
coainventada.Foiprandocomotempo.Eno
diaqueelalevouumempurrãoecaiudemau
Jeito...
Sabrinainterrompeu:
-Empurrão?
AtiaInêsignorouainterrupção.
-...daquele diaemdianteelaficoupancada
devez.Edepocomeçoucomessapiraçãode
pendurarlembrançaemvaral.
-Mas, porquenovaral?
AtiaInêsdeudeombros.
-Sóseiquedesde queomeupailargounós
três...
-Nóstrês?
-AdonaGracinha,aMartelaeeu.Desde
queagenteficoulargadanumsufocomedonhode
grana,adonaGracinhasevirouaindamacom
essenegócdelavarroupa.Ficavadiaenoite
lavando, passando, engomando, tirandomancha,
entregandoaquela roupariatodaprafulana, pra
beltrana.Você nãotemideiadoquequeadona
Gracinhaseesfalfoupranosdarcasa,comidae
educação:elaqueriaporquequeriaqueagente
estudasse,queagenteaprendesse,queagentefosse
)
Logonodiaseguintedachegadaàcasa
amarela,aSabrinadeclarou:
-TiaInês,eunãoentendo.
-Oquê?
-OquequeavóGracinhafazlánovaral.
Nãotemvaral,nemarame,nemnada...
-Praelatem.
-nãotemroupanabacia, nemprendedor
nasacola.
-Praelatem.
-...elaficapendurandooquê?
-Lembranças,játeexpliquei.
Sabrinaficouumtemporuminandoa
informação.
-Mascomoéquesofuncna?
AtiaInêsficoupensativa:
-Seilá!Achoquenemeunemninguém
entendesoaqui.-Bateucomoindicadornoalto
datesta.-Oqueeuseiéoqueeujátedse:
89

90 cflj9iaBojun9a Sapato deSalto 91
juntl
pers
LYi
e
e
li'
coadesefirmarnaspernasenãocoaque
qualquerumchutapracáepralá.
Ficaramquietas.
-MastiaInês...
-Hmm?
-...entãoelapenduralembrançaprasecar?e
depopraengomar?passar?entregarprasfreguesas?
éso?
-É.Elachegapertodemimassim,ó••• -
estendeosbraços.
-Issomesmo!Antesd'euvirfalaraquicom
você, avóGracinhaveassimdebraçoestendido,
feitovocêfalou,efingiuquemeentregavauma
roupa.
-Sóqueelanãotáfingindo, não:elatácrente
quetáentregandomesmo.
-Maspode?
-Oquê?
-Acabeçadagenteseatrapalhar assim?
-Pelojeito...-Deudeombros.
-Masaí,sabe,eufiquei assim...mesem
sabercomoéqueeuentravanessa.
-Aceitaaroupa,ué.
-Bom,euaceitei. Masaíelaquconferir otal
dorol,eeunãosabianemoquequeérol...
-Éaltinhadoquequeelalavouepassou.
-Massótinhasapatoebilheteepedraemar
. .,
eareta,umacorsa....
-É:ésempre omesmoroLOsapatoéque
varia:oraéassim, oraéassado.Eomar,àsvezes,
variatambém: oraeladizqueéomardomarido,
oraeladizqueéomardafilha.
-Mascomoéquerola?Elavem,estendea
roupa...eagentefazoquê?
-Entranojogo,ué.Recebearoupaeconfere o
rol.Aíelavaitecontarotrabalhoquedeupralavar
so,praengomaraquilo, eaícomeçaalembrarumas
coasdopassadoevaiseacalmandodaagitação.
.Sabrinaficouummomentopensativa.Depo
concluiu:
-Bom, então nãoédifícilbrincardso.Acho
queeuvoutirardeletra.
Tirou.
J
oROL
},
FoisóaSabrinachegarpertoqueadona
Gracinhaseviroueestendeu osbraços:
-Vimentregar aroupa.
-Cadê orol?
-T'aqui.-Dona Gracinhatirounadadedentro
dobolsoeentregou praSabrina.

92 J'I'jiaBojun'ja SapatodeSalto 93
[une
pers
LYI
Foramandandopracozinha.Sentaramno
primeirodegraudaescadinha.Sabrinabotouatrouxa
nopatamaretirouosalfmetesdefraldaqueprendiam
opanoprotetordaroupa.DonaGracinhaacompanhou
atentamenteamímicadaSabrina.Faziaquestão
absolutadequeosalfinetes(destetamanho!) fossem
logodevolvidospraela.Guardouelesnobolso.
Sabrinadesdobrouopanoecomeçoua"cantar"orol:
-Umapedragrande!...
ErasóaSabrina"cantar"umapeçaquea
donaGracinhacantavadevolta:
-Elamedeumuitotrabalhopraengomare
passar.Tavadeumjeitohorrível,cheiadelimoede
sujeira.Porqueelaéassim,olha,elaébruta,raspaa
mãodagente,nãoélinhanão,tudoqueésujeiravai
seentranhandoaí.Medeumuitotrabalhopralavar,foi
porsoqueeuboteimapreçonorol.Asenhorapaga?
Sabrinaficouumpoucopensativa,depo
confirmou:
-Pago.
-Ah,entãotá.-FicouesperandoaSabrina
cantarmarol.
-Umbilheterasgado!
-Ah,essetambémmedeumuitotrabalho,
tivequeconsertareletodoantesdelavar,olhaaí.
Entãoasenhoravaipagarma,nãovai?
h
-Vou.
MasaSabrinanãosabiabrincarsempreigual:
experimentoumudarasregrasdojogo;dizer,por
exemplo,queorolestavaerradoe...Praquê!Adona
Gracinhaficoumaagitadadoquenunca!Orolnão
podiaestarerrado, asperguntaseasrespostastinham
quesersempreasmesmas,olugardependurara
roupanovaraltambém.Sódentrodamaestreita
mesmiceéqueadonaGracinhaconseguiarecordar
fragmentosdopassadoe,recordando,seacalmar.
Entãocontavadenovocomoeraosapatovermelho
quealnesinhaestavausando;elogodescreviauma
sandáliadesaltoqueaMartelatinhaacabadode
comprar;eemendavacomahtóriadegentechegando
nacasadelapratrazerumpresente.Umapedra.
Grandeassim.Eohomemdeuapedradepresente
praela,dizendo:ocorpodatuafilhaMartelatava
nofundodoramarradonestapedraaqui.
EaSabrinaescutando,imaginando,tentando
vualizarohomem...apedra...or...
)
~
...Elesentraram.Eumdoshomensfalou:
-OcorpodatuafilhaMartelatavanofundo
doramarradonestapedraaqui.-Botouapedra

junn
pers
e
e
li'
94 c1'1~iaBojun~a
emcimadamesa.Assimmesmo:úmida;umpouco
deareiagrudadanela,edelimotambém.
OchoquedeixouadonaGracinhapregadano
chão.Elaolhavadapedraprogrupoquetinha
chegado:dohomensnafrente, umamoçaatrás.A
Martela, tãolindanosseusquinzeanos!tinha,
afinal,aparecidooutravez,masocorpo...
-Jáestavadecomposto-oshomensdseram.
•••0corponãoextiama, sóextiaapedra,
apedra,apedraqueelatinhaamarradonopeito
praafundarmadepressanor.Ela?Ela!a
Martela,tãobonitaqueelaera,decabelocastanho
claro,lofeitoocetim,deolhotãoacompanhando
acordocabelo,quinzeanos!quinzeanos!recémse
preparandopravida;eaquelaradagostosaqueela
tinha;eaquelamãogenerosasempreprontapra
umacarícia;eaquelessescrescendopraalimentar
. .. .
acriançaquetanascer;qUlllzeanos, gente,qUlllze
anos!enadamadelasobrando;sóumapedrae
nadama?
Nogrupovinhaamoçaquesedeixouficarpra
trás,usandooshomensfeitoescudocomatarefade
daropesodanotíciapradonaGracinhacarregar.
Masagoraamoçatomaafrenteeestende um
papel.SemcoragemdeolharadonaGracinhano
olho,eladiz:
SapatodeSa&o
t
-AMartelaescreveuumbilheteexplicando.
Deporasgouejogounolixodizendo,émelhora
minhamãecontinuarnãosabendoofimqueeu
levei.Masdepoeufuilánalatadelixoepegueio
bilhete:mãedeamigadagenteémemãedagente
também:acheiqueessebilhetetinhaqueserda
senhora:táaqui.-Botouopapelnamãodadona
Gracinhaesaiu.Osdohomenssaíramatrás.
DuranteumtempoimensoadonaGracinha
ficoudebraçoscaídos,olhandoprapedra.Depo
levantouobilhetepraler.Grudadoaquiealicom
fitaadesiva,echederugaqueoamassadodeu,o
bilhetetinhasidoescritonumpapelcor-de-rosa
comumaflorzinhaimpressadecadalado.Adona
Gracinhabotouopapel namesaeficoualandoo
bilhetepradesenrugarelema.Depoleu:
)
"Minhamãe,
Pari.Éumamenina.Quemmebotou
prenhanãoquermasaberdemimenão
querverafilhaquefez,sódse,vire-se.
Euqueriaserprofessora,feitoasenhora
semprequ.Masagoraeusóqueromorrer.
Nãotenhocoragemdepedirparaasenhora
tomarcontadamenina.Vaidardespesa.
Vaidartrabalho.Vaidaraindama
95

96 JY9iaBojun9a SapatodeSa&o 97
edi
LYI
e
chateaçãodoqueeujádei.Achomelhor
levaraminhafilhacomigo.Sóqueeunão
seiseeuvoutercoragem,quemsabeum
diaelapodeserfeliz.Desculpequalquer
coa,viu?
-Éimpressãominhaoututádebarriga?
AMartela desvuoolhareficouenrolando
umapontadocabelonodedo.("Alnesinhaéuma
pimenta!EmcompensaçãoaMartelaémelpuro."
EraassimqueadonaGracinhasereferiaàsfilhas.E
ria.Eolhavaencantadapraumaepraoutra,tão
bonitasasduas,mastãodiferentestambém;a
Martelasempresuaveetímida,pranãodizer
humilde esubmsa,sempreprontapraapagaros
"incênds"dalnesinha.) AMartelaolhoupra
donaGracinhaefezquesim:
-Jávaiprasemeses.
AdonaGracinhabotouasmãosnacabeça:
-Semeses?!etunãomediznada??
-Tavasemcoragem.
-Queméele?
-Omeunamorado.
-Quenamoradoéessequeeununcavi?
-Elenuncaquserapresentadoprasenhora.
-Jásevê!jásevêoquequeelequeriadet!
jásevê!
-Nãoéprasenhoraficarchateada.
Ah -)Iah-)'T:c I')
-,nao..,nao.LullCOUmauca,e.
Umameninaqueaindanemfezquinzeanos!
Recém-começando aseprepararpraserprofessora!
Prenhadesemeses!Dumsalafrárquenão
)
Bênção.
Martela,"
SeadonaGracinhativesserecebidosóo
bilheterasgado,sempedra,semnotíciadecorpo
nor,semnada,nacertaelaiapensarqueo"é
melhorlevaraminhafilhacomigo"queriadizer
queaMartelaiasemudardecidade,delugar,e
pronto:tavalevandoafilhajunto.O"agoraeusó
queromorrer"ficavaporcontadessascoasquea
gentedizsempensarquandobateatrteza.Mas
.apedra,ali,emcadamesa,comaguele po~
del1moedeareia,agarrouoolhodadonaGracinha
-------~~----~-------------,
enãoqumalargar.Apedrahipnotizava.A
pedraviravatelão:adonaGracinhasevendonele.
ElaeaMartela.Asduasfrenteafrente.No
diaemqueadonaGracinha,praacabarcoma
ansiedadeobscuraque,atodahora,faziaocoração
baterassustado,compreendeuqueumacerteza,
mesmopéssima,eramelhordoqueaincertezaque
vinharoendoelapordentro.

98 of'1giaBojunga
quernemconhecer afamíliadela!Depode
todosacrifícqueeuvenhofazendodesdequetu
nasceu!Trabalhandodiaenoitepratedaruma
vidaarrumada!pratedareducação!pratefazer
umaprofessora!eessaéapagaquetumedá!?
-Eacadaexclamaçãoavozseesganiçavanum
desesperomar.
OolhodaMartelafoiseenchendode
lágrimas;odedoenrolouapontadocabeloma
devagar;afalasaiutrte:
-Eunãoqueriaterficadoprenha.Masfiquei.
Fazeroquê?
-Issonãopodiateracontecido!Vocênão
podiaterdeixadosoacontecer!Elevaicasar
comtu?
-Eleécasado.
-Oquê!tutemeteucomhomemcasado!tu
ficoumalucadevez?
-Équeeumeapaixonei,mãe.
-Mas,eagora?!vaivirarmãesolteira,com
quatorzeanos?elevaitesustentar?éso?todoo
meusacrifícdecadadia,cadamês,cadaano,pra
tedarestudoeumavidaarrumada,vaitudopro
ralo?!éso?malcomeçaavidaejátáabrindoperna
prahomem!foisoqueeuteensinei?...
AMartelafezquenão.
)
SapatodeSalto
-...foisoqueDeusmandou,queaIgrejate
ensinou?
...quenão.
-Foisoquetuaprendeunaescola?!
...quenão,quenão...
-Eaindaporcimacomhomemcasadoque,
vaiver,tematéidadepraserteupai.
AMartelafezquesim.
OdesesperodadonaGracinhacresceu:
-Issotambém,é?sotambém?!eagora?tu
.temquesairdaescola!antesdetodomundosaber
quetutáprenha.Seéquejánãosabem...
AcabeçadaMartelaiafazerquesim,mas
parounomedocaminho.
-...eeu,muitoburra,aindaquerendo
acharqueessabarrigaaíeradetantabatatafrita
quetugostadecomer.Eagora?eagora?!oque
quetutápensandodatuavida?oquequetutá
imaginandofazer?!
Quantomaodesesperoiaganhandoforma
nafnomiadadonaGracinha,maochoroia
lavandoacaradaMartela.Odedotinhaparado
deenrolarocabeloprairafastandoaslágrimasque
jádesciamtambémpelonariz.
-Asenhoraétãoboapragente,eunãoqueria
fazerasenhorasofrer.
99

100 J'19ialJojun9a
eescondeu acaraládentro. Sóomovimento dos
ombros denunciava ossoluços.
AMartela sentoutambém. Ochoro
continuava silencso. Anãoserporumafungada
daquieoutra dali.
Iadoermenosescutar avozdadona
Gracinha xingando doqueverelaassim, sóoombro
sacudindo, mostrando tudoqueésoluçoqueela
estavaabafando.
Depo deumtempo, aindasemfazerbarulho
nenhum, aMaristela selevantou esaiu.Nunca mais
adonaGracinha viuafilha.
Quando anoite veiochegando entregaram
umacartapradona Gracinha. Amãodelatremeu
quandodesdobrou opapel eoolhoviualetrada
Maristela:
Ly,
Sapato dess. 101
-Jáfez,jáfez!omaljátáfeito. Agoraeusó
queroésaberoquequetupretende fazer.Tueesse
cara.Elevaimontarcasaprati?
-Elenãotemdinheiro.
-Issotambém?! Aaaaah!
Foiumaaaah!quedoeutantonaMaristela
queelaatéfechouoolhopranãover.
AvozdadonaGracinha sequebrounoah;e
agorasaiunofeitdegemido:
-Mastusabe!pracadaanodeestudo, pra
cadauniforme,pracadasapato, tusabequanta
peçaderoupaeutenhoquelavar, passar, engomar!
étrouxa ematrouxa detudoemporcalhado, pra
devolver tudolimpinhoecheiroso, tusabequanto!
tutávendotododiaeudespejar aquele monte de
roupasujanotanque. E,maleuvouenxergando o
fimdocaminhopradarumavidaarrumadapratu
epraInesinha,tumefazso?Canseideprometer
praDeusqueaforçaqueElemedátododiapra
lutaiatersempreoagradecimentodagente, etu
mefazpassaressavergonhacomEle?ecomos
vizinhos? ecomosfregueses? eaindaquerfazereu
trabalharaindamaprasustentar ofruto datua
vergonha dentrodecasa?-Umapertomaforte
nagargantaestancouavozdela.Dona Gracinha
sentou, seinclinousobre amesa, cruzou osbraços
)
"Minhamãe,
Nãoqueroverasenhora passandovergonha
porminhacausa.Nem comDeusnem
comninguém. Vouembora paranãolhedar
maistristeza.Masnodiaqueeupuder
daralegria euvolto logo.Agora, opaida
criança temaobrigação demeajudar. Não
meprocure. Nem sepreocupe comigo.
Asenhora jáfezmuitopormim.Sou
r

102 J'I'JiaBojun'J~
liberdade teme,aaah!erabomdemais.Enfim
tomavaconsciênciadequeavidatambémpodia
serumafesta,edequeserfelizeratãobom!
Resultado:deupraseassustaraomenorsinalde
botarafestaemrisco,querdizer,deaborrecer atia
InêsouadonaGracinha.Entãoresolveuesperar:
quemsabe,umdia,atiaInêsiatervontadede
contarashistóriasqueelaqueriatantoouvir.
Damesmamaneira,nãoquerendoarriscar
deparecerbisbilhoteira,erasóoAndreaDoria(ou
outroalguém) chegarpradançaqueelasumialogo
láproquintalcomadonaGracinha...
Daíocoraçãoterdadoumpinotenaquela
quinta-feira,quandoatiaInêsgritoulápro
quintal:
-Sabrina!vemcádançarcomoAndrea
Doria!
Sabrinanãosemexeu:seráqueelatinha
escutadobem?
-Sabrina!vocêescutou?
Tinha!!Saiuquenemumaflecha,jogandofora
nacorridaasandáliadededo,queobomeradançar
depénochão.
AndreaDoriaolhoutãosurpresopraSabrina
quandoelacomeçouadançarnafrente dele,eatia
Inêsolhoutãocontentepropar,que,seaSabrinajá
SapatodeSalto 103
agradecida.Quandoacriançanascereulevo
elaaíparaasenhoraconhecer.Edepois
arranjoumapessoaparacuidardela
porqueeuvoucontinuaraestudarpara
chegaraprofessora.
UmbeijonaInesinha.
Desculpequalquercoisa.
Bênção.
Maristela,"
DesdeodiaemqueatiaInêsfoibuscara
Sabrinapramorarnacasaamarela(enocaminho
contouqueamãedaSabrinatinhaamarradouma
pedranopeitopraafundarmaisdepressanorio),
voltaemeiaaSabrinapensavanamãe;comuma
vontadedanadadesabermaisdela.Trêsvezes
pediupratiaInêsfalardamãe.Naprimeiraveza
tiaInêsdesconversou;nasegundafingiuquenão
escutou;naterceiranãogostou;aSabrinanunca
maisperguntou:estava tãoencantadadetertiae
avó!tãobomqueeramorarnacasaamarela!tão
gracinhaeraavóGracinhaetãolegalatiaInês!E
quemaravilhanãoterqueficarpensando,abroou
nãoabroageladeira?comoounãocomoissoou
aquilo? tomoounãotomobanho?Pelaprimeiravez
navidaaSabrinaexperimentavaogostoquea

104 J'j'jia15ojun'ja SapatodeSalto 105
vinhaachandoqueavidapodiaserumafesta,
naquelemomentoaindaachoumuitomais.
ArazãodatiaInêsterchamadoaSabrina
pradançarfoiporque,navéspera,voltandode
umasaídaquetinhadado,encontrouaSabrina
brincandodedançarcomadonaGracinha.De
braçoestendidoemãosdadas,aSabrinaia
conduzindoadonaGracinhapracáepralá,
fazendoelaimitarospassosqueiainventando.
DonaGracinhariaàsgargalhadas.MasaSabrina
parecialevaroexercícioasério.Maisasério,no
entanto,foioquepensouatiaInêsvendoaSabrina
dançar.Nãoprecisoumaisdeumminutopraela
compreenderque,aquilosim,eraum"bemde
família":aSabrinatambémtinhanascidocomo
domdadança.Naquelemomentobrotounatia
Inêsodesejodetransformaremrealidadeosonho
queadonaGracinhasonhounopassado.Seela,
Inês,nãotinhaconseguidosetornarumagrande
dançarina, quemsabe,agora,chegavaavezda
Sabrina?
QuantomaisobservavaaSabrinadançando,
maisodesejoganhavaforça:seeunãochegueilá,
agoraeuvoufazerelachegar...
Nodiaseguinte,quandoaSabrinaeoAndrea
Doriadançaramntospelaprimeiravez,aSabrina
seemocionoutantocomosolharesdesurpresae
aprovaçãoqueatiaInêse,muitoespecialmente,o
AndreaDoria,lançavampraela,quedepoisse
sentiucansadaàbeça.Foisóacabardelavaralouça
dojantarquefoilogodormir.
Nãoeraaindameia-noitequandoacordou
comavozdatiaInêsnaportadarua.Estavase
despedindodealguém.Vozdehomem.Vozquea
Sabrinanãoconhecia.Vinhaluzdasala.Doquarto
datiaInêstambém.AdonaGracinhadormiafundo
e,devezemquando,roncava.Aportadaruase
fechou;aluzdasalaseapagou.Ressoarampassos
nacalçada.PassosdatiaInêstambém,indopro
quarto.E,derepente,semmaisnemmenos,a
Sabrinasentiuvontade...vontade,não:necessidade
decontarpratiaInêsoqueelanuncatinhacontado
praninguém.Selevantounumpulo,correupro
quartodatiaInêseanuncioudaporta:
-TiaInêseuprecisotecontarumsegredo!
Umsegredoqueeununcaiacontar,maseupreciso,
tiaInês,euprecisotecontar.Mesmoquevocê
zangue,eupreciso.Masnãozanganãoporqueeu
nãotiveculpa.Quandoeleentrounomeuquartoa
primeiravez,eunemtavapensandooquequeeleia
fazercomigo.Maselefez.Depoisvoltounaoutra
noitee...
"
1I

106 c1'1giaBojunga SapatodeSa&o 107
EaSabrina,alimesmonaentradadoquarto,
depénochãoedemãoagarradanamoldurada
porta(feitocoisaquetavasesegurando),despejou,
sempausaesempontuação,aprimeiraeasoutras
visitasdoseuGonçalves;enempracontardo
chinelodesaltoepompomaparecendonofrisode
luzaSabrinaparouprarespirar;esódepoisque
contoutudoqueécastigoqueadonaMarilda
castigouéqueelaseassustoucomodesabafoe
paroudefalar.Ficoudeolhograndeolhandopratia
Inês.Depoisperguntou:
-Vocêficaaborrecidacomigoporcausa
disso?
AtiaInês,quetinhasentadonabeiradacama
quandoaSabrinachegou,deuumapalmadinha
nolençolindicandoolugarpraSabrinasentar
eespichouoqueixopraportaquandoaSabrinase
aproximou.Sabrinafechouaporta,sentouaolado
datiaInêseperguntoudenovo:
-Fica?
AtiaInêsfezquenão:
-Quandoeuviojeitodaquelamulherte
tratandoeulogosaqueioquequedeviaterrolado
porlá.
-Evocêacha,tiaInês,queaminhamãe...ela
iaficaraborrecidacomigo?
Emvezderesponder,atiaInêsafofouos
travesseiroscontraacabeceiradacama,sereclinou,
acendeuumcigarroeficouolhandoprafumaça
expelida.Depoisselevantou,abriuoguarda-roupa,
remexeudaquiedalievoltoupracamaempunhando
duasfolhasdepapel.Uma,cor-de-rosa,toda
vincadaecolada;aoutra,escritaempapelde
embrulho.FoiestaqueatiaInês,serecostando
outraveznostravesseiros,leuemvozalta:Querida
Marlene...-Baixouopapeleexplicou:-Marlene
éumaamigaqueatuamãetinhaequeemprestou
umagranapraela.-Levantoudenovoopapel:
()
"QueridaMarlene,nãoestádandoparate
pagar. MinhavidaestádifíciLOZecame
abandonou.Esómedeuumamixariaque
logoacabou.Comessabarriganãoarranjo
emprego.Tenteidebabá,faxineira,tudo.
Masnãodeu.Nãotenhocoragemde
voltarparacasa.Ojeitofoiaquelemesmo
quevocêconhece.Temhomemquegosta,
nãoé?detreparcommulherdebarrigona.
Acriançaestáparanascer.Ficocommuita
fome.Fazeroquê?Assimquedereute
pago.Muitosbeijos.Maristela,"
,.

SapatodeSa&o
J'19iaBojun9a
109
108
AtiaInêsbaixouopapeleolhoupraSabrina:
-Taí:atuamãeaindanãotinhafeitoquinze
anosejátavatrepandopranãopassarfome.Então...
-deudeombros-euachoqueelanãoiaficar
aborrecidacomvocê,não.Iaficartristefeitoeu
fiqueiagoraquevocêmecontouessahistória.Eia
tambémficarputadavidacomotaldoseuGonçalves.
FeitoeutôoMasiaentenderfácil.Feitoeuentendo.
-Mas,tiaInês...eunãotôsacando.
-Oque,minhaflor?
-Porquequeamãetavacomfome?Não
tinhacomidaaquiemcasapravocês?
-Atuamãesaiudecasaquandojáfaziaseis
mesesquetavaprenhadevocê.Ocaraeracasado,
nãotavanemaíprada.Maselatavanumapaixão
medonha.AdonaGracinhaficoudesesperada
quandosoube,eaMaristelaentãoachoumelhor
sumir.Nacertapensouqueocaraiaficarcomela.
Masnesseoutrobilheteaqui-mostrouobilhete
rasgado-elacontaoutravezqueocaranãoquis
maissaberdelaemandouelasevirar.
SabrinacontinuouolhandopratiaInêsfeito
coisaquenãoestavaentendendo.MasatiaInês
estavaabsortanafumaçadocigarro.Quandofalou
denovopareciaqueestavafalandomaispraela
mesmodoquepraSabrina:
11
-Sóqueestebilheteelajogouforaemvezde
mandar.Foiaamigadela,aMarlene,quesalvou
eledolixoelevoupradonaGracinha,ntocoma
pedraqueaMaristelaamarrounopeito.Esseeunão
aguentonemler.-Estendeuopapelcor-de-rosapra
Sabrina.-T'aqui.Eapedraumdiaeujogueifora:
nãoaguentavamaisveradonaGracinhaparada
olhandopr'aquelapedra-Suspirou.-Daípra
frenteadonaGracinhafoificandomeiodiferente.
Diferente,assim,nojeitodeencararavida.Masa
cabeçapareciaquecontinuavalegalzinha.Elasó
começouaficardemiolomolequando,tempos
depois,eutambém:meadoideidepaixãoporum
caraquenãovalianadaelargueimeusestudos, minha
dança,minhamãe,minhacasa,largueitudopra
seguirocarafeitocachorrosegueodono.Edepois
queeladeuatalbatidadecabeçaelapiroudevez:
voltouprotempodecriança.-SeviroupraSabrinae
levantouodedonumgestodeaviso:-Atenção,
Sabrina,atenção:amorébonito,ébom;amartodo
mundoquer;seramadamaisainda,masatenção,
prestaatenção.-Odedosetornoumaisenérgico.
-Paixão,não!Paixãodesgraçaagente;agentevira
cachorrinhomesmo:sempreolhandoprodonopra
adivinharoquequeelequerqueagentefaça;rabinho
sempreabanandoquandoadivinhaefaz.Atenção!

edin
Edito
ftO cly9ia Boiun9a SapatodeSa&o
Asduasficaramseolhando.DepoisatiaInês
assumiuumarmeionostálgico:
-Euerafelizquandocriança.AMaristela
também.Agenteerapobre,masagenteerauma
famílialegal.Nósquatro.Legalmesmo.Quandoo
papaicasoucomadonaGracinhaelejátrabalhava
numsítiograndequetinhaaquiperto.Vaiver,
aindatem;umdiadessesvoulápraver.Grandeà
beçaosítio.Plantavamflorneletodinho.Meupai
trabalhavaládesdegaroto.Tuamãenasceulá.Depois
eu.Seishorasdamanhãopaijátavaagachadona
plantaçãodeflor.Vinhaalmoçaremcasa.Falava
pouco.Acabavadecomerejávoltavaprocampode
flor.AdonaGracinhalavavaepassavaaroupada
famíliadonadosítio.Tinhadetudonafamília:oito
filhos,avócomcatarata,tiaquecasoueveiomorar
nto,tinhasogra,tinhasobrinho,tinhatrouxaemais
trouxaderoupapradonaGracinhalavarepassar.
Maselanãoeradereclamar;nuncafezcarafeiapro
trabalho.Sódeumacoisaelafaziaquestão:"as
minhasfilhasvãoestudar".AMaristelaaindanão
tinhaseisanosejátavanaescolapública.Essa
mesmapraonde'cêvaianoquevem,Sabrina,lána
esquina.Anoseguinteeufuitambém.Demanhã
cedoagentesaíapelaestrada.Trêsquilômetrosde
terrapraandar.AdonaGracinhaficavanoportãoda
escolaesperandoagenteentrar;voltavapralavar
roupa,eerasóacabardeestendertudonovaralque
jávoltavapracidadebuscarnósduas.Dizia:"filha
minhaeunãosolto;sósefornafrentedoaltar".A
Maristelalogogostoudeestudaredemeensinar.
Maseugostavaeradedançar. Entãoficoudesde
cedoresolvido:aMaristelaiaserprofessoraeeu
bailarina.Eafamíliaiaviverfelizparasempre.
EatiaInêscontouqueumdiaopaidela,que
cadadiavinhafalandomenos,equecadanoite
fechavamaisacara,derepentefalouumacoisaquea
donaGracinhaachouesquisita:"Sógostadaflor
quemnãotemqueviverdaflor:'Epronto:foisóisso
queeledisse.Selevantouefoiprobotequim.Não
eradadoabebida,mas,nãomaisquederepente,
naquelediaencheuacara.Econtaramqueelebatia
comamãonamesaerepetiagritado:omar!omar!
agoraeuqueroomar!Equandomandaramele
pararcomaquelacantilenaeleselevantouzangadoe
disse:voulimparasujeiradaminhaunha!nãoenfio
maisaminhamãonaterra!nãoralomaismeu
joelhonochão!cheeeeega!Mascomoocheeeeega
nuncachegavanofimexpulsarameledobotequim.
Quemencontroucomelenaestrada,jábemlonge
dacidade,contouqueperguntoupraondeeleia,
eelerespondeu:voupromar.
1ft

editl",,,,
Edito
ff2 Jygial5ojun')a
SapatodeSalto
Quandosoubedosucedido,adonaGracinha
passoutrêsnoitessemdormir,sólembrandododia
emqueomaridofoicomocaminhãodosítiolevar
florproRioeláviuomarpelaprimeiravez.Justo
quando,nohorizonte,umnavioiapassando.Ficoutão-<:",_
impressionadocomasensaçãodeliberdadequeomar
transmitiuaele,etãoenamoradodaquelabelezasem
limites,que,navolta,quandosoubequeoquitandeiro
játinhasidomarinheiro,voltaemeiaarrumavaum
pretextoprairlánaquitandaepuxarconversacom
ohomem.Sópraouvirelecontarcoisasdomar.
NastrêsnoitesqueadonaGracinhaficou
semdormir,milvezeselaselembroudomarido
sentado,deolhoperdidonoar;equandoela
perguntava:pensandooquê?elenãomentia:no
mar.EadonaGracinharolavapracáepralána
cama,pensandoquantohomemlargaamulherpor
outra,masodelaeradiferente:largouelapelo
mar.Seráquenuncamaiseleiavoltar?
EatiaInêsconfirmou:
-Nuncamaiselevoltou.
Sabrinaestavadeolhoarregalado.
-Nemnotíciaeledeu?
-Zero.-Deuaqueleencolherdeombros,tão
dela,eacendeuoutrocigarro.-Nacertafoiser
marinheiro.
EatiaInêscontouquedepoisdosumiço
dopaiavidacontinuouiguallánosítio:afamília
todinhaqueriacontinuarusandoaroupalavada-
passada-engomada-na-perfeição queadona
Gracinhalevava,diasimdianão,praelestodos,e
entãoconcordaramqueastrêscontinuassem
morandonamesmacasinha.Ecomosempre
pagarammuitopoucopradonaGracinha,ecomo
agoranãotinhaosaláriodopai,avidaainda
ficoumaisdifícil.AdonaGracinhacomeçoua
trabalharnahortaemtrocadelevarumas"sobras"
pracasae,mesmoassim,continuavalevandoe
buscandoasmeninasnaescola.Massesentia
recompensadadeverasduasprosseguindoos
estudos,passandodesérieacadaano,etododia
agradeciaaDeus.
Otempofoipassando.Umbelodiaapareceu
umcasaldeamigosdafamíliaprapassarfériasno
sítio:maisroupapralavar!Ohomemdormiaodia
todo;foiserecuperardeumestresse.Amulher,
adonaLili,habituadaavivernoRio,achouavida
nointeriorumapasmaceiramedonha;atodahora
pegavaocarroeiadarumaarejada.Passoua
encontraradonaGracinhanaestrada,indoou
voltandodaescola.Começaramascaronas,as
conversas,eadonaLilificouimpressionadacom
ff3

114 cf'1giaBojunga SapatodeSalto
adedicaçãodadonaGracinhaecomaperfeição
comqueelalavavaepassavaaroupa.Nodiaem
queacozinheiradosítioadoeceuechamarama
donaGracinhapraquebrarogalho,adonaLilise
impressionouaindamais:quedelíciadecomida!
DaípraquererqueadonaGracinhafosse
comelaproRiofoiumpulo.Noprincípioadona
Gracinhahesitou:
-Easmeninas?
-Vãonto,éclaro!
-Mas...eoestudodelas?
-Vãoestudarmuitomelhor!Ondeeumoro
temumaescolaótimapraformarprofessores;etem
umcursodedançadaqui,ó!-apertouapontinha
daorelha.
-Mas...eomar?
-Quequetem?
-Eseelastambém...?
-Oquê?
-Sóficamquerendosaberdele?
-EumoronaTica.
-Ficaonde?
-Longedomar.
-Ah!
EláseforamastrêscomadonaLilieo
maridoestressado.Pradesgostoerevoltadosdonos
NãodemoroupradonaGracinhacairem
estadodeansiedade:compreendeuque,querendo
darumamelhoroportunidadedeestudopras
filhas,tinhaabertopraelasaportadaliberdade:
avidanoRiosemostravaincompatívelcoma
vigilânciaqueelatinhasehabituadoaexercer.
Vendoqueasmeninas,acadadiaquepassava,se
encantavammaiscomo"jeitocariocadeviver",a
donaGracinhaseagarravamaisemaiscomDeus.
NoslongosmonólogosquedesfiavapraElenão
cansavadereprísarquesóumacoisainteressavaa
ela:umavidaarrumadinhapraMaristelaepra
Inesinha:Eleiaadar,nãoianão?
dosítio,dosoitofilhos,datiaqueveiomorarnto,
daavócomcatarata,etc.,etc.
UmdiaafaxineiraconvidouadonaGracinha
praircomasmeninas,nodomingo,passearno
subúrbioondeelamorava.Contouqueláavidaera
maiscalma,maisbarataequeelamoravanuma
casinhacomquintal.AdonaGracinhaseentusiasmou:
IIS

ff6 Jy9ia Bojun9a SapatodeSalto
queriaverterradenovo,nemquefosseum
pedacinhosó(quemsabe,compédecouvee
parreiradechuchu?..).Nãosehabituavacomtanto
asfalto, muitomenoscomelevador,emenosainda
comapresençadofilhodadonaLili,quechegou
emfériasdosEstadosUnidos, ondeestudava, e,ao
chegar,passouaolharasmeninascomaresde
proprietário.
Afilhadafaxineiratrabalhavadecopeira
nacasadofalecido.Eraassimquesereferiam
àcasadeumpolíticodolugarquefezfortunase
dedicandoàcorrupçãoequemandouconstruir
aquelecasarãocomtudoaqueomaugostotem
direito.Aoseconsolidarnaposiçãodefigurãoda
região,morreubaleado.Daíemdiante,também
passaramachamaramulherdeledeaviúvado
falecido.
Aviúvaviviaeternamenteinsatisfeitacom
tudoqueélavadeiraepassadeiraquearranjava.
Tampoucogostavaderoupalavadaàmáquina.
QuandoadonaGracinhasoubequeoposto
nomomentoestavavago, pensoulogoemse
candidatar.Masantesquissaber:
-Tembomestudoporaqui?Minhafilhamais
velhavaiserprofessoraeamaismoça, bailarina.
Tinhaestudosim.
-Eaviúva?temfilhohomem?
-Sómulher.
AdonaGracinhaentãosecandidatouao
postodelavadeira-passadeira docasarão.Passou
notesteaquefoisubmetida pelaviúvadofalecido
ejánasemanaseguinte-sobprotestosgerais,
sobretudo daInesinhaedaMaristela, quetinham
acabadodeconhecer esedeslumbrarcomas
praias dazonasul(motivodenovaansiedadepra
donaGracinha...)-semudavam praumquarto,
nosfundosdapropriedade.
Elánaqueles longes domar,devoltaaum
lugarmaispacato, adonaGracinharespirou
aliviada, achandoqueasfilhasestavam denovono
bomcaminhopravidaarrumada.Chegouatéa
sonhar umanoitequeomaridotinhavoltadoe
agoraafamíliaiaserfelizparasempre.
Confiante, eladesfiava osdiasnotriângulo
al-táb dE" "tanque-var -tauaepassar. ,nasconversas
comDeus,nãosecansava deagradecertododiaa
forçaqueEledavapraelatocar avidaprafrente.
Conversasquesóforaminterrompidas nodiaem
queelaperguntoupraMaristela:
117

fl8 J'I~iaBojun~a fl9SapatodeSalto
-Éimpressãominhaoututáprenha?
Eaí,atiaInêscontoupraSabrinaamudança
queseoperounadonaGracinhaquandolevaram
praelaobilheterasgadoeapedradorio:
-Nuncamaiselafoiamesma:nãose
perdoava;tavasempresecondenando.Daípra
frenteacabeçadelapiorou.
-Elanãoperdoavaaminhamãe?
-Não,não!elanãoperdoavaelamesma!
Viviabatendonopeito,dizendoqueapedraera
culpadela,queeladeviaterditologo:paciência!se
quemfezissocontigonãoquersaberdacriançaeu
teadoacuidardela:ondecomemtrêscomem
quatroepronto!esealguémacharqueévergonha,
quefiquecomavergonha,maseuficocontigoe
comacriança.-Amassouapontadocigarrono
cinzeiro.Suspirou.-Avidaéengraçada,nãoé?Olha
aí:ficousemaMaristela,masacabouficandocontigo.
-Deudeombros.-Sóqueelanãosabedisso.
-Maselamechamadeneta.
-PorqueelaachaqueoteunomeéNeta.Ela
nãosabemaisoquequeéterumaneta.
-MastiaInês...
AtiaInêsinterrompeunumbocejo:
-Quefoi?Agoratámedandosono.-Espichou
oqueixoprorelógio:Também...olhaaíahora.
-Mas...eeu?Porquequeeufuipararlána
CasadoMenorAbandonado?
-Tuamãetedeixounaportadaquelacasa.
Emvezdeteamarrarnopeitoumapedra,ela
amarrouumbilhetedizendo:"EstaéaSabrina.
Sozinhanomundo.CuidemdelapeloamordeDeus."
Sabrinaficouolhandoprochão.AtiaInês
resolveuavançarmaisumpouconahistória:
-SódepoisqueadonaGracinhaserecuperou
dochoqueemecontouoquequetinhaacontecidoé
queagentecomeçouapensarseataldaMarlene
.eraamoçaquetinhaentregadoobilheterasgado,e
aíagentecomeçouaprocurarelapraverseela
sabiaseaMaristelatinhalevadovocêpradentrodo
riotambém.Masninguémtinhaamenorideiade
quemeraessepessoalquechegouláemcasacoma
pedraeobilhete.-Deudeombros.-Agenteficou
semsaberepronto:fazeroquê?Foisóhápouco
tempoqueeudescobriofimquevocêtinhalevado.
Efuilátebuscar.Vamosdormir?
-Mascomoéque'cêacabousabendoqueeu
tavalánaCasadoMenor?
AtiaInêsdemoroupraresponder.Mas
depoisexplicou:
-Équemuitotempodepoiseuacabei
encontrandoataldaMarlene.Eelafalouquea

120 c1'jgiaBojunga
SapatodeSalto
Maristelatinhadeixadovocênumacasadeórfãos.
Comeceiaprocurareumdiaachei.Agoravamos
dormir.
Sabrinavoltoupracama,masaindaficouum
bomtempodeolhoabertonoescuro.Queriasaber
maisdetudo!Mas,maisquetudo,queriasabermais
datiaInês.*Ficoulembrandopedacinhopor
pedacinhotudoqueatiaInêstinhacontado.Era
triste.Maseratambémbomdemaisficaremassim
asduas,elaeatiaInês,conversandodeigualpra
igual. EaSabrinaentãodormiufeliz.
DiadeaniversárioediadeNatalaviúvado
falecidodavaumdinheirinhoprasfilhasdadona
Gracinha.AInesinhafointandoeumdiacomprou
osapatodeverniz.Entrouemcasafelizdavida,já
deverniznopé.Exibiuosapatoempassodedança.
AdonaGracinhaseespantou:
-Quetantosaltoéesse,menina?!
-Meninanão,senhora!meninanãousasapato
assim.-Foidançarnafrentedoespelho,prase
admiraremcimadosalto.-Agorasim,soumulher!
AtiaInêstambémcustoupradormir.
Lembrando-e-lembrandodetudoquetinhacontado.
Maslembrando,sobretudo,doquenãotinhacontado.
Deolhoaberto,viapassarnaescuridãodoquartocena
atrásdecenadopassado,intercaladassemprepela
mesmaimagem:oprimeirosapatodesaltoqueela
comprouprausar.Preto.Deverniz.Saltobemalto.
-Praqueoutrosapato,Inesinha?!
-Osaltodesteédiferente,donaGracinha.-
Sentou,cruzouumapernanaoutra,balançouopé:
-Nãoélindo?Achosapatodesaltoacoisamais
lindaqueexiste.
,.
-Issoéhoradechegaremcasa,Inesinha?
Ondeéquetuandouatéagora?eujátavanamaior
aflição!
-Équehojenãoteveaulalánocurso.
-Edaí?
*Malpodiaimaginarquepoucosdiasdepoisiasaberde
muitacoisa-masdemaneiratãotrágica,queeramelhornão
tersabido.
.t
121

edi
122 c1'1giaBojunga Sapatodess.
-Umacolegamechamoupragenteirpassear
emCopacabana.
-Copacabana?!TufoiatéCopacabana??
-Eufui,ué:tavaumdialindo.Apraiatava
assimdegente,adorei!
-EoquequetufezláemCopacabanaaté
agora?
-Bom,nãofoiatéagora,né?agentelevaum
tempãoprairevoltar.
-Masoquequetufezporlá?
-Agentenãotinhadinheiroprafazernada,ué.
EntãoficouvendovitrinenaAvenidaCopacabana.
Puxa,donaGracinha!tantosapatobacanapra
comprar.Massemgrana,né?fazeroquê.Depoisa
gentefoiprapraiaveromar.Tavalindodemais,
sabia?Medeuumavontadedeficarporlá!...
AdonaGracinhasealarmou:
-Ficarnomar??
-Morarpertinhodele.Jápensouque
maravilha?
-Edequejeitoagentevaipodermorarlá?
-Nãodigoasenhora,maseu...
-Dequejeito?seaminhafamíliaagoraésótu?
-Masaquiétãochato-chatíssimo!Eláétão
bom!Eupodiaarrumarumempregopracomeçara
dançare...
AdonaGracinhaentrouempânico:
-Tuaindaémenor,Inesinha!
-Masdaquiapoucoeunãovoumaisser
eaí...
-Eaíéacabardeumavezcomafamíliasetu
vair'embora!Nãomefalamaisnisso!
/'
-Inesinha!mecontaaverdade:oqueque
táacontecendo?PeloamordeDeus,mecontaa
verdade:quandotuchegaemcasaaessahora,oque
quetuficafazendonarua?
-FicoláemCopacabana.
Eraverdade.
-Fazendooquê?
-Olhandopromar.
Erametadedaverdade.
-Quenemoteupai?éisso?omartáte
fazendoperderacabeça?
-Tá.
Eraumquartodaverdade.
-Mastunãotámalucandodeirtambémpra
ntodele,tá?
-Não.
Eramentira:erasóelechamarqueelaia.
123

edi
124
J'I~iaBojun~a SapatodeSa&o 125
Maseleainda nãotinhachamado: estava
esperando nacalmaelaperder acabeçadevez.
EleeradezanosmaisvelhoqueatiaInês.
Sempre caprichando nosapato enaroupa;noolhar
enosorriso (narisada ainda mais), oexercício da
sedução jásedimentado; noandar meiojingado só
nãodetectava avigarice quem nãotinha experiência
davida-feitoatiaInês.
essamala! Larga omeubraço! nãosoumaiscriança,
vêseentende, 'cêagoratemquesevirarsozinha,
maseuprometo quevenhotevisitar,euprometo, eu
prometo!
Noescuro doquarto, lembrando dacena,a
tiaInêsescutava abuzinaimpaciente dotáxi;sevia
agarrada epuxada peladona Gracinha; seviase
livrando delacomumempurrão, arrebatando a
mala,correndo protáxi,batendo aporta, virando
acabeça,vendoadona Gracinha caída nochão,
desviando oolharevendoocasarão passar...arua
passar...aestrada apontar...
Alembrança datiaInêsdeumarcha aré:se
fixoudenovonoprimeiro sapato desalto;depois foi
percorrendooutros sapatos...sandálias ...chinelos ...
atésedeternuma sandália vermelha desaltoestilete
quetinhaumafloraplicadanaaltura dopeitodo
pé.Ah!...elatavausando asandália naquele dia...
quando foivisitar adonaGracinha ...enoportão de
ferroosegurança dissequejáfaziamuitotempo que
adona Gracinha nãomorava maisnocasarão...
AtiaInêsentãopediuprafalarcomaviúvado
falecido: queria notíciasdamãe.Osegurança sumiu.
-Nãotôtereconhecendo, Inesinha! Cada vez
osaltoémaisalto,eacaraémaispintada, eablusa,
maisdecotada! issotudonãopode serpromar!!
Comquem quetutátemetendo? Poronde tutáte
enfiando? Etusófazérirquandoeufalo...
Masdizer oquê?seelajáestava enredada
numa vidaquetinhaquesermantida emsegredo?
,J
~jr~
-Dona Gracinha, vêseentende, vêseentende!
tôindom'embora praCopacabana evoupramorar!
Tenho queacompanhar ohomem queéapaixãoda
minha vida,vêseentende! Larga essamala! Prometo
queeuvenho tevisitar. Otáxitám'esperando, larga
s.

126 J'fi!c!Bojunga SapatodeSalto 127
Demorouàbeçapravoltar.Nãoabriuoportão;
mandouatiaInêsesperar.(Quantotempoelatinha
ficadoesperandonacalçada,andandopracáepra
lá?)Afinal,aviúvaapareceu.OlhoupratiaInêscom
frieza.Estendeuunspapéisatravésdasgradesdo
portão.Falouaosarrancos:
-Aquiestãoospapéisdeinternamentodoasilo
ondeestáasuamãe.Éumasilopúblico,prapobres
quesofremdedoençasmentais.Oqueeupodiafazer
porelaeufiz.Nodiaquevocêfoiemboraedeixou
elaali,desacordadanochão-fezumgestodecabeça
pratrás-,comumcortenacabeçaquetevena
queda,seeunãotivesseadadoelatinhamorrido
lámesmo:oqueteriasidomelhorpracoitada._
Apontouospapéis.-Aresponsabilidadedissotudo
nãoéminha,édafamília,ésua.-Fezumnovo
gestoprospapéis.-Estacarta,umaportadoraveio
entregartemposatrás.Nãoadiantavamandarpra
suamãe:depoisdaquedaelaficoudemiolomole.
Passebem.-Deuascostas.
AtiaInêsficouolhandoaviúvasumirno
casarão.Voltouprarodoviáriaeesperouumônibus
procentrodoRio.Enquantoesperava,examinouos
papéis:oasiloeraemSantaCruz.Abriuacartaque
atalportadoratinhalevado.Oolhobateu logona
assinatura:Marlene.
Nacarta,cheiadecês-cedilhasinventados,de
essestomandoolugardoscês,evice-versa,emaisa
ausênciaabsolutadequalqueracentooupontuação,
aMarlenecontava,emprimeirolugar,queelaeraa
talquetinhalevadopradonaGracinhaobilheteque
aMaristela jogounolixo;depoisacrescentavaque
sabiapraquemaMaristela tinhaentregueafilha;
sabiaatéonomequeaMaristelatinhaescolhidopra
criança,masnãopodiarevelarnada:tinhaprometido
praMaristelaquenãoiacontarpraninguém.Em
seguidanoticiavaumsufocofinanceiroemque
andavametidaeselastimavaemcincolinhas.Mas
depoissealegrava:tinhadescobertoqueadona
Gracinhacontinuavamorandonotalmesmocasarão
comatalmesmapatroaviúvadeumfalecidoe,aí,
informavaquetinhaumaamigaqueeraumamor:
telefoneemcasaeumaboavontadequesóvendo
prareceberedarrecado.Davaonúmerodotelefone
daamigaepediapradonaGracinha,quando
telefonasse,nãoseesquecerdedizerqueera
urgente.Muitocoerentemente,deixavaprasúltimas
linhasoarrematedetodaessavariedadedenotícias:
seadonaGracinhaouapatroadescolassemuma
granapraelasairdosufoco,elacontavaondeestava
acriança,eelatinhacertezaqueaMaristelaia
perdoarelaporquenocéuagenteperdoatudo.

edi
128 c1';jfjiaBojunfja
SapatodeSa&o 129
ConcluíaacartapedindoaDeuspraprotegera
senhoraeasuafamília.
presaetelefonava(urgente)praMarlene,epagava
opreçodainformação,ebuscavaacriança,e
buscavaadonaGracinhanoasilo,etratavadela,
enuncamaisbrigavacomela,tãoboaqueelaera!
easobrinhaviravaumafilhae...pronto!olhaaíuma
famíliaarrumadadenovo...quemsabe?É:umdia
desses...eaMaristela,tadinha!iaficartãocontente
deverládecimaastrêsntas...
AtiaInêsentrounoônibus,sentountoda
janelaeduranteaviageminteiraficououvindoecoar
nacabeçaasúltimaspalavrasdaMarlene:
...asenhoraeasuafamília.
...asenhoraeasuafamília.
...asuafamília.
Osítiodeflor.Osquatrontos.Masdepois
sóastrês.Eopai?porondeandava?vivo?morto?na
terra?nomar?Quemsabeafundadonágua,assim
feitoaMaristela.Eafamíliaviradasóemduas.
Não:trêsoutravez:aMaristelatinhapartido,masa
criançatinhaficado.Onde?Sópagandoprasaber.
Mas...adiantavasaber?Adiantavairnoasilovera
donaGracinha?Fazeroquecomela?Adardeque
jeito?Cadêagranaprapagar?praadar?Agrana,
agrana,sempreagrana!Erasóganhar,quejá
sumia.Ese,depressinha,nãoganhavaoutravez...E
atiaInêsfechouoolhocomforça,nãoquerendo
nemverse,depressinha,etc.etaL.
Mas...quemsabe?Quemsabeumdia...É:
quemsabeumdiaelaselivravadateiaemqueestava
MasaindaiamrolarváriosanosatéatiaInês
-umdia-localizarataldaMarlenee,depois,
aCasadoMenorAbandonado,eládescobrirquea
Sabrinatinhasidorecentementerecrutadapra
trabalhardebabánaruatal,númerotal,subúrbiodo
Rio.FoisóentãoqueatiaInêsresgatouadona
Gracinhadoasiloevoltoupracidadezinhada
infância,decididaacomeçarvidanova.Seestabeleceu
nacasaamarela(stonaruaquefaziaesquinacom
ogrupoescolarondeestudounainfância). Umavez
instaladas,elaeamãe,atiaInêsfoireivindicara
SabrinantoàfamíliaGonçalves,conseguindo,
afinal!reorganizarafamília.

edi
SapatodeSalto /3/
8.
DonaGracinhaolhavaproAssassino
cadavezmaispensativa,masnãodizianada.Ele
tampouco.Sabrinacomeçouaacharqueerasilêncio
demais:
-Quercomer?
-Obrigado.
Pausa.
-Obrigado-querouobrigado-não-quer?
-Jájantei.
-Ah,entãotá.-Continuoucomendo.Maslá
pelastantassentiuumacoisafeitoumpoucode
nervoso:levantoueligouatelevisão:
-Tánahoradanovela.-Olhoupraelenuma
novatentativa.-Querver?
Eleselimitouaapontarumarodelade
fumaça,indicandoqueatelevisãodeleeraaquela.
Sabrinavoltoupramesaepegoudenovo
ogarfo.Masotalpoucodenervosofoifazendo
sumirdelaavontadedecomer.Oraelaolhavapra
televisão,oraproAssassino.
DonaGracinhaapoiouocotovelonamesa,
descansouoqueixonamão,inclinouacabeça
proladoepegouumjeitodequemcansoude
pensar.Oolhomeioquefechou.Lápelastantas
elacochilou.
Durantemuitotemposóatevêfalou.
oAssassino
f}abrinaeadonaGracinhaestavam
J jantando.Aportadaruaaberta
deixavaentrarumabrisafresca.
OAssassinoentrou,sentoueperguntoupela
tiaInês.Feitocoisaqueeramíntimos.
DonaGracinhaficouolhandosorridentee
pensativapraele.SabrinarespondeuqueatiaInês
tinhadadoumasaidinhaenãodemorava.
-Euespero-eledisse.Eacendeuum
Clgarro.
EcomoaSabrinanãosabiaqueeleiasero
assassino,resolveuperguntar:
-Vocêéquem,hein?
-Umamigoqueridodela.-Efoifazendoa
fumaçaformarrodelinhasnoar.

132 J'j'jia Bojun'ja
Masacabouchegando ahoradatiaInês
entrar.QuandodeudecaracomoAssassino,parou
numsusto.Ficaramseencarando. OolhodaSabrina
seesqueceu datevêeficounosdois.
DonaGracinhacochilando.
AtiaInêsgaguejou:
-Mas...vocênãomorreu?
-Tôaqui,nãotô?Outámeachandocomcara
defantasma?
-Mastodomundofalou!
-Oquê?
-Que'cêtinhamorrido nabriga.
-Evocêachoutãobomquelogoacreditou, né?
-Nuncamaisninguém teviu!
Eleencolheuoombro:
-Quandoatiraramfingiquetinhamme
acertadoecaí"morto" nochão.Deisorte:
acertaramoZicopravalereeleespichoustoem
cimademim. EmseguidachegouasirenedaPolícia
etodomundosemandou.Maltivetempode
empurraroinfeliz doZicoproladoememandar
também.Sóquepraoutrolado.Enaquelanoite
mesmopeguei orumodoParaguai.Estive porláaté
asemanapassada. Sabequeeugostei?
-Entãoporquequenãoficouporlá?
-Deiprasentiratuafalta.
Sapato deSalto 133
-Sei...
-Entãovimtebuscar.
-Ah, é?
-Masagente nãovaiproRio,não;vaipra
SãoPaulo.
-Ah,é?
-Láagente vaifaturarmaisalto.Levei
umamuambadoParaguai praSãoPaulo efiquei
conhecendo umpessoal quetápordentro demuita
coisa, sabia? Massenta, pô!
AtiaInêsselimitouacruzar umbraçono
outro.
-Agora eujáseiquezona' cêvaitrabalhar pra
descolarmuitomaisgrana doquedescolava noRio.
-Acendeuumcigarronooutro, amassou aguimba
nopratomaispróximoeexpeliudevagar afumaça
tragada, estudandoatiaInêsdealtoabaixo: -Tá
emboaforma, hein? -Elacontinuouimóvel olhando
praele.-Sabiaquemedeuamaior mãodeobra
prateachar? SenãoétoparumdiacomaLililáem
Copacabanaeelamedizer que'cêtinha voltado pra
cidadeondenasceu, eununca maisiateencontrar.
Aindabemque'cênãomudoudenomeeessa
cidade épequena: quando comecei aperguntar por
umaInêsassimeassado, nãodemorou prame
dizeremque'cêmoravanestacasaamarela. Eétão

134 ef'FJÍaBojunga
amarelaqueagentenãodemorapraachar.-Meio
queriu;debruçounamesa:-Quequetedeupravir
morarnesseburaco?Massentalogo,porra!troço
maischatoconversarcomumapessoaassimdepé.
Dessavezelaresolveuresponder:
-Épraversevocêlevantadeumavez.A
portatáaberta.Ésósair.
-Támemandando' embora?
-Tô.
-Etápensandoqueeuvou,é?
-Tô.
-Poisficasabendoqueeusósaiodaquicom
você.
-Vamosver.-Deuascostaseseencaminhou
praporta.
OAssassinoselevantourápido, alcançou
aportaprimeiroebateuelacomforça.Dona
Gracinhaacordou:
-Psiu!-Fezumgestopratelevisão.-Assim
eunãoescutoanovela.
-Largaessaporta-atiaInêsordenou.
-Táquerendosair?
-Nãosoueuquevousair,évocê.Ejá!Se
nãovaiporbemvaipormal.Chamoapolícia,o
delegadoémeuamigo.
OAssassinoseencostounaporta:
SapatodeSalto
-Aaaah!... játematéamigodelegado...
-É,eudouaulapraele.
-Dáoquê?
-Aula,agorasouprofessora,sabia?Douaula
dedança.
OAssassinoarmouumaexpressãode
incredulidade.Soltouumabrutagargalhada.Dessa
vezadonaGracinhanãogostouefezumpsiumais
forte.Sabrinafoiseencolhendoedeslizandopro
cantinhodosofá,feitocoisaquenãoqueriamaisser
notada.MasoolhonãolargavaoAssassino.
-Qualéagraça?-atiaInêsperguntou.-Tá
esquecendoquemeconheceudançando?
-Mastavaprontapramudardeprofissão:foi
sóeufazerassimcomodedoemudou...
AtiaInêsficouolhandopraele;norostouma
expressãodoída.
-Vocênuncasacounemquissacaroquanto
eugosteidevocê, né?
-Precisavasermuitoburropranãosacar;
maisburroaindapranãoverlogonaprimeira
trepadaquesevocêeraboadedançaaindamelhor
eradecama.-OlhouproquartodatiaInêsefez
umgestodecabeça.-Porfalarnisso:foisóentrar
prairvendootamanhodacamaedoespelho.Porta
doquartoaberta,portadaruaaberta,freguês
135

.o&.JA~L2.t) r,
r·'1 '. UvvVl)
~rJ..1~ J~gia Bojunga
136 SapatodeSalto 137
delegado...-Deuummuxoxo debochado: -Sim
senhora, tábemequipada! Sónãotôsacandodireito
quetipodeaulaacoroaeameninaaídão.-
Espichouoqueixo pradonaGracinhaepraSabrina.
NorostodatiaInêsaexpressão doídanãose
alterou:
-Acoroaéminha mãe.Fuibuscar elanoasilo
onde elatavanaqueles anosqueeufiquei contigo,
querdizer,queeutrabalhei prati.Ameninaéminha
sobrinha. Fuibuscar elapraserminhafilhaadotiva.-
Seaproxima maisdoAssassino praolhar elebem
nacara.-Epravocêsacarmelhorainda: antesde
vocêmorrer, querdizer, antesdevocêsumire
dizerem que'cêtinha morrido,eurezeidemaispra
SãoJorge medargarra.Canseidedizer praeleque
euprecisavadegarra. Garrapramelivrardevocêe
dadroga. Efizpromessa praele,sabia? Jureiqueele
medandogarraeuiabuscaraminhamãeeaminha
sobrinha praseroarrimodelas;euiateruma
família; iaserumaoutraInês!Expliqueipraeleque
essexodómalucoqueeusentiaporvocêmedeixava
semforça pratedizer não-vou-não-faço-não-me-
pico-não-quero; quenãoadiantavaeuquererdara
voltaporcimaseelenãomeadasse atergarrapra
tedizernão-vou-não-faço-não-cheiro-não-quero! -
Com acaraquase coladanadele:-Nãoqueromais
você!-Recua.-Elemeadou:primeiro,dando
sumiçoemvocê. Sabequalfoiaprimeiracoisaque
eufizquandodisseramquevocêtinhamorrido?
Olheiprocéuedisse:saquei, SãoJorge,saquei: essa
mortejáéosenhormefacilitandoocaminho; agora
medágarraproresto.Eeledeu,tábem? Olha
promeunariz,promeubraço,pramimtoda!
Nuncamaischeirei,nuncamaismepiquei, nunca
maismerdanenhumadaquela drogatoda.Nãotá
acreditando, é?Dei!deiavoltaporcima,sim!equis
começardozero,longedaquilotudo, bemlonge.
Quandoeufuibuscaraminhamãe,resolviquevinha
praessacidade epensei:tai,temtudoavereu
voltarprolugarqueerameu;aqui,eunãoarriscava
deencontrarmaisninguémdaqueleteumundo;do
mundoemquevocêmemeteu; aqui,iasermaisfácil
d'eupagarapromessaqueeufiz.Evim.Evouindo
muitobem,obrigada.
-Dandoauladedança?
-Dandoaulaefazendotudomaisqueé
precisopradarumavidalegalpraminhafamília.
OAssassinonãolargavaoardedeboche:
-OlhaqueoSãoJorgenãovaigostardesse
tudomais...
-Eununca prometiaelequesóiafazerisso
ouaquilo. Oqueeuprometiemtrocadagarraeu

138
J'19iaBojunga SapatodeSalto 139
cumpri:melivreidevocê,dadrogaetôcuidando
daminhafamília.
-Sótáesquecendoumacoisa.
-Nãoseioquê.
-Maseusei:'cêpodeterselivradodadroga,
masnãodemim:eunãomorri,tôaqui:SãoJorge
nãotevecacifepr'acabarcomigo.-Ri.
-Vocênãotáentendendo:eunãopedipra
eleacabarcontigo.Eupedipraelemedargarrapra
euacabarcontigo.Aqui,aqui,aqui:acabarcontigo
dentrodemim.Eacabei,viu?-Dáascostaspraele,
maselepegaelapelacinturaepuxaeladevolta:
-Vocêpensaqueacabou.Masésóeutelevar
pr'aquelacamaque'cêvaideixardepensar.-E
empurraelaproquarto.
MasatiaInêsempaca;sefirmanochão:
-Tiraamãodemim.
OAssassinoabraçaelacomforça.
-Vocêtemésaudademinha,confessa.
AtiaInêsafastaorostododeleegrita:
-Sótenhonojo.Nojo!
DonaGracinhasevirae,pelaprimeiravez,
parecenãosóestranhar,masseafligircomacena:
-Neta!-elachama.
Sabrinaselevantae,semtiraroolhodo
Assassino,vaisechegandopradonaGracinha.Oar
debochadoagorasumiudacaradoAssassino.Ele
ordena:
-Repete.
-Nojo!Nojo!Nojoésóoqueeusinto
quandovocêmetoca.
DonaGracinhacomeçaalaralalaramelodia
deestenderroupa,semselembrarmaisdanovela
quevairolando:riso,falatório,discussão,beijopra
cáepralá.AtiaInêssedesvencilhadoAssassino:
-Éumnojotãograndeque,seagoravocême
ameaçassecomaquelaarmaquevocêescondiano
bolsoaídedentro...
-Aindaescondo,minhaputa,aindaescondo...
-...emedissesse, eutematosevocênãofaz
oqueeuquero,feitovocêsempremedisse...
-...evousempretedizer...
di, -" ,"
-...euIZla,entaovattmata.vau
Sabrinanãosecontevemais:
-Nãodizisso,tiaInês,nãodizisso!
DonaGracinhaselevantou:
-Neta!Vailánotanqueepegaapedraque
eudeixeidemolho.
-Não,minhaputa,eutequerovivaebem
viva,feitosempreeutequis;oquequeeuvoulucrar
detematar?-EagarraoutravezatiaInês,
querendoarrastarelaproquarto.

140 Jy'jialJojun'ja
SapatodeSa&o 141
Numaagitaçãocadavezmaior,adona
Gracinhagritou:
-Apedra,Neta!
Atarantada,Sabrinasumiunacozinhaena
mesmahoravoltoudebraçoestendidocarregandoa
\O....pedraeentregandoelapradonaGracinha.Atia
\I'\~~J Inêsfoipossuídapelaraiva:bracejava,esperneava,
davapontapénoAssassino.Elecomeçouaretribuir
osgolpes.Eagoraosdoisseengalfinhampravaler
numalutafísica.AraivadatiaInêssaipelocorpo
todo;saipelaspalavrastambém:
-Vocêmejogounomaisbaixoqueuma
mulherchega!Sóporqueeumeapaixoneipor
você...
-Meadaaquicomessapedra,Neta!
-Duranteseteanosvocêtiroudemimtudo
queumaputaapaixonadapodedar,játirouque
chega!
-Vem,Neta!vamossentaressapedrana
cabeçadele!
-Játirouquechega!Somedaminhafrente
jááááááá!antesqueeupercaacabeçaeacabe
contigoaquimesmo.-Segurouopescoçodele
querendoenterrarasunhasládentro.
Comumsafanãoviolentoelederrubouatia
Inêsnochão.
-Tápensandooquê?Quemulherépáreo,
é?-Preparouopontapé,masaSabrinaseinterpôs:
-Nãofazassimcomela!Nãofazassim
comela!
NovosafanãodoAssassinoeaSabrinafoi
pararnooutroladodasala.
DonaGracinha,decaraentortadapelaforça
quequisimprimiraogolpe,sentouapedrana
cabeçadoAssassino.Eporuminstanteficouparada,
meioperplexadenãovernenhumareaçãoao
tremendogolpeaplicado.Maslogoserefez:pegou
apedrapranovoataque,aomesmotempoquea
Sabrina,sópensandoempouparatiaInêsdos
pontapés, seenfioudenovonabriga...
-Paracomisso,para,para!
...eassim,feitoumescudo,recebiaosgolpes
destinadosàtiaInês.
DonaGracinharespiroufundoefoi
levantandooutravezapedra.
Natréguaqueoescudodeu,atiaInêsse
levantoudochão, afastouSabrinacomobraçoe
enfiouamãonobolsodedentrodopaletódo
Assassino,ondetantasetantasvezeselatinhavistoa
pistolaquemoravaali.Dirigiuaarmapraele,ao
mesmotempoqueadonaGracinhabaixavaapedra
outravez.Numgestorápido,oAssassinoagarroua

~~~
142 cf'l9iaBojunrJa SapatodeSa&o
mãoqueseguravaaarma, desviouelapratiaInêse,
dededocomandando ogatilho, disparouuma,duas,
trêsvezes.
Durante ummomentoosquatroficaram
imóveis.Olho dilatado.
Depois, foitudoescorregandonatiaInês:o
dedopraforadogatilho, apálpebrapracimado
olho, ocorpoprochão.Foiocorpocairqueo
Assassinocorreupraporta.Sumiuláfora.
DonaGracinhacontinuasemânimodese
mexer.Maspede:
-Ada, Neta,ada:oquequetáacontecendo
aí?
Agora,astrêsestãoaliparadas.Uma,pra
sempre.Asoutrasduas, quetinhamrecuadocomos
dispares,parecem estátuas;sóoolhoacompanhao
sanguequevaiescorregando,escorregandodopeito
datiaInêsprochão.
Atevêcontinua falando.Anovelaacabou,
eonoticiárioqueseseguiuestáavisandoquea
devastaçãodaAmazôniacontinuaaumentando, o
aquecimento doplaneta sealastrando,aobesidade
semultiplicando, afomematando.
Umestremecimentoquebraaparalisiada
Sabrina.Devagar,elachegantodatiaInêsese
ajoelha.Amãotocaatesta,aboca,opescoço,o
braço, amãodatiaInês.
Sabrinanãoresponde;estáapertando com
forçaamãodatiaInêsepedindoempensamento,
nãoficaassim, tiaInês,meada,nãoficaassim,
nãomorre,peloamordedeus,nãomorre,não.
-Neta!-Emaisalto:-Neta,oquequetá
acontecendoaí?AInesinhaficoudodói,né?Então
vamos chamarodoutor.
Sabrinaparecenãoouvir.Estásósentindo na
delaamãodatiaInêsesfriando.
DonaGracinhameioquegrita:
-Neta!Ada,Neta!Vaibuscarumdoutor
praInesinha!
Nãoadiantanemquererdizerqualquer coisa:
agarganta estátrancadaeaSabrinasóconsegue
pedir rezado:meada,tiaInês,meada,não
deixaatuamãoesfriarmais.
E,agora, numgritoaberto:
-EuqueroumdoutorpraInesinha!
Sabrinaengoleemseco,fazquesimcoma
cabeçaeselevantaprabuscarummédico.Masse
movimentaemcâmaralenta...
-Anda!Corre!Corre!
143

11
II
144 J'j;}ia lJojun;}a
II1I
'11
o
,...feitocoisaqueestásemforças; oinstinto
[e-,/confirmando orecado queamãotinha dado: atia
-<Inêsestámorta; atiaInêsperdidaprasempre; a
tiaInêspranunca mais.
"-
IIII
I
9.
Betina
/Íl'telefone tocououtra vez.APaloma se
C/levantou comesforço efoiatender.
-Paloma?
-Eaí,Léo?
_Euéquepergunto: eaí?Telefonei pro
hospital, masdisseram quevocêjáestavaemcasa;
fiquei telefonando pr'aímasninguém atendia;
comecei aficarpreocupado.
_Éque...eutôsozinha. Tomei unscomprimidos
pradormirecaínumsonodepedra. Tivemesmo a
impressão dequeotelefone tavatocando, mas
parecia queeuestavasonhando. Nãotôhabituada
comessesremédios, parece atéqueeuestou bêbada.
-Você dissequetásozinha?
-É.

146 cf'j'JiaBojun'Ja
-ABetinaficounohospital?
Pausa.
-Paloma?
-Hmm?
-ABetina?Comoéquefoi?Correutudobem?
-Porquequevocênãoveio,Léo?Porqueque
vocênãoveio?!
-Maseuteexpliquei,Paloma!Tôsempoder
meafastar:essecongressoquetárolandoévitalpra
nossafirma,e,alémdomais,soumediadoremtodas
asreuniões,tenhoquepassarodiainteiroaqui.Mas
vocêficoudemeavisarquandoiaseroparto.
-É.
-Nãomeavisouporquê?
-Nãodeutempo.
-Conta, conta!Correutudofeitovocêqueria?
Porquequevocênãometelefonoudepoisdoparto?
-Praquê?
Pausa.
SeoLeonardo tevedúvidasquandootelefone
nãorespondeu, agoraopraquêdaPalomatrouxe
acertezadeumatristeza.
-Oquequeaconteceu,Paloma?...Paloma?
Silêncio.
-Eunãotôcompressa,viu,Paloma.Eu
espero.Nãotempressanenhuma.
Sapato deSaho 147
Edurantemuitotempoeleficou láemSão
Paulo, aguardando.Ouvindo,àsvezes,arespiração
dela.Sabendo,ah!entãoelenãoconhecia airmãque
tinha?sabendoqueelaestavaprocurando, sem
achar,aforçaprafalarsemchorar.
-Léo?
-Tôaqui.
-Eledissequeeucometi umcrime.
-Omédico?
_ORodolfo.Ele...-Ficou outravezem
silêncio.Edepois:-Eledissequefoiaminha
teimosia demulaquematouafilhadele.Queeusou
aculpada. Queeucometiumcrime.
Outravezumsilênciocomprido entreos
dois.Quando aPaIomavoltou afalar,avozestava
quebrada. Faloucomdificuldade:
_DesdeoprincípioeleeodoutorRuiqueriam
queeumarcasseumacesárea...Maseuqueria
demais umpartonormal!... Duranteosmesestodos
queaBetinaviveudentrodemim,eucanseide
conversarissocomelaPorqueeuconversavacom
ela,sabe,Léo...MuitoEdetantoprestar atenção
emtudoqueémovimentoqueelafaziadentrode
mim,ultimamenteeufiqueiachandoqueelatavame
escutando, queelatavameentendendo,queelatava
merespondendo;eeudissepraela,eumelembro

SapatodeSa&oJy'jia Bojun'ja 149148
quemaisdeumavezeudissepraela:Betina,eles
tãoquerendo marcardiaehorapramebotar
nocaute,abrirminhabarrigaetirarvocêprafora.
Mashátantotempoeutôteesperando, evocêvai
chegarassim, semeutesentirchegando, tever
chegando,techeirarchegando?vivendontas,
companheiras,adoreoalíviodessachegada?..No
fim,quandoeuconversavaassimcomela,ela
paravadesemexerpracáepralá,dedarpontapé
naminhabarriga,pareciaquesódepensarqueeuia
estarpresenteenãodopada nahoradelachegar
deixavaelaassimconfiante. Confiante feitoeuestava
agora, nofim.Aquelesmauspressentimentos queeu
tive,eteconteidaúltimavez,tinhamidoembora;
euestavatãoconfianteetãocontentedeteraBetina
dojeitoqueeuachavaquedeviater,que,mesmo
quandoasdorescomeçaram,antesdodiaesperado,
eunãomudei deideia;mesmoquando, láno
hospital,eujánãotavaaguentandomaistantador,
eunãomudeideideia.Precisoumedizeremque
nãoeraquestão desuportardorounão,era
questãodaBetinaviverounãopraeupedira
anestesiaeaoperação.Eaí...aíeunãovinem
sentimaisnada...Masdentrodemimtudose
complicou...Eununcafuibemformadapraisso,
nãoé?..JácomoAndreaDoriafoiaquela luta...-A
vozfoificandoporumfio.-Quandomeabriram, já
foiprecisotentarrespiraçãoartificial naBetina.
Silêncio.
LeonardoachouqueavozdaPalomatinhase
apagadodevez.Mas, derepente, avozpegouum
novoímpetoemeioquegritou:
-Orestonãofoiminhaculpa!foidestino;
aconteceu umacidente nessahora: explodiuum
caldeirão degáspertodeondeagenteestava.
OAndreaDoriatavanasaladeesperantocomo
Rodolfo edissequeaexplosão foitremenda,caiu
pedaçodeparede etudo, deuumpânicogeral,
todomundosaiucorrendo, semsaberseera
bomba, seoprédioiacair,senãoseimaisoquê.
Quando oDr.Ruivoltoucorrendo aBetina já
tinhamorrido.Eunãovinada,nãoouvinada,tava
dopada, tãobomquetavaeudopada!semterque
ficarvendoelaali,malnascidaejámorta,sem
terqueouvirdepoisdoRodolfoqueaculpaera
minha, queaculpaeraminha, queerasóter
marcado diaehorapracesáreaqueagoraiaestar
todomundo curtindoaBetinae,aaaaaaahr... -Era
umgemido gritado,quefoigritandoegritando
atLs.e....enfraquecer evirarsilêncio.
Leonardoficousemdizer nada.Nãoestava
maisesperandoouviravozdaPaloma; estavasó

i111,
J
150 Jy9ia Bojun9a
\
I
I
,(
procurando qualquer coisaque,falada,quemsabe?
adava.
MasavozdaPaloma, dessa vezcontida,
chegou aindaoutravez:
-Léo?
-Sim, tôaqui.
-Eledissequeeucometi umcrime.
-Peloamordedeus, Paloma, vocêagoranão
vaiacreditarnisso,nãoé?
-Umcrime, Léo,umcrime. Tchau.-
Desligou.
Quer dizerquebotarammesmo
osobradão abaixo.
10.
OutraveznobancodoLargodaSé
-
-É.
-lnacreditável!
-Nãoé?
PalomaeLeonardoficaram olhando, na
lembrança, osobradão quemorava ondeagora éum
vazio.
-Vãomesmolevantar umespigãoaí?
-Vão.
-Praquequeumacidadinha dessasquer
espigão?
-Praparecer cidadona.
Leonardosuspirou; balançou acabeça devagar.
-Nãohouveprotestos?

152 J'f'Jia Bojun'Ja Sapato deSaAo 153
-Não.
-Achoquetátodomundotãoconcentrado
emganhardinheiroeconsumir, quenãosobramais
energia praprotestar.
Palomaficouolhando aausência dosobradão.
Issomesmo, pensou:energia; parece quetodaa
minhaenergiafois'emboranto comaBetina.
Apertou umlábionooutroemaisumavezse
prometeu quenãoiafalarnaBetina: asvisitasdo
Leonardoeramtãoescassasecurtas...Masoqueque
elaiafazerprarecuperar umpouco, nemquefosse
umpouquinhosó,daenergia, doentusiasmo deviver
queelatinhaantes? Eagorapensou emvozalta:
-É...achoquepragente protestar agente
precisa,antes demaisnada, acharquepodemudar
orumodascoisas.-_9·comoéqueelaiaagora
poder mudaravidadela?Sumir, sumir!Aúnica
vontade queelatinhaeradesumir!Nemquefosse
porunstempos.Ah!nãotermaisqueaguentaros
silêncios rancorososdoRodolfo, nãoterqueverno
olhar doAndreaDoriatodaaperturbaçãõém que
eleandavamergulhadodesde quecomeçou aquela
história comoJoel,nãotermaisqueresolver oque
quevão-comer-ou-deixar-de-comer noalmoço, no
café,nojantar. Atodahoraodinheiro acabando:
Rodolfo, odinheiroacabou; outra vez?;outravez,
sim!agente nãotásempre comendo, vestindo,
calçando,pagandoescola, luz,gás,telefone,ouserá
queatéhojevocênãoreparounasmágicasqueeu
façoprodinheiro dar?!Eaindaterquefingirque
nãoviaojeitoirritadodeleabriracarteirapratirar
odinheiro. Mastambém quem mandou? Quem
mandouesquecer deserumaprofissionalquenemo
Léo?terumacarreira quenemele?viajarfeito
elasemprequis?nãoternuncaquedizer,tôsem
dinheiroprascompras dacasa.Quemmandou
esquecer issotudoebotartodaaenergianogrande
sonhodecriarumafamíliafeliz,quemmandou?!
Quemmandouteimar numpartonormalatéo
últimomomento? quem mandou,quem mandou, ah!
quemmandou?! Apertou oslábiosaindacommais
força,querendo conterogritoqueelasabiainútil:
SOCORRO!Respiroufundo.Não:jábastavao
desabafodaúltimavez;stoaqui,nestemesmo
banco, pensou.
-Agente sentouaquimesmodaúltimavez,
nãoé,Léo?Foitãoboaaquela tuaúltimavisita.É
sempretãobomquandovocêvem.
Durante umtempooLeonardoficouolhando
praPalomasemdizernada.Depois:
-Asrelaçõesporaquiandammeiotensas,
nãoé?

SapatodeSa&o
c1'J<JiaBojun<Ja154
M·?
- elO....
-QuandooRodolfochegouproalmoçoele
nemolhouproAndreaDoria.
-Agoratáassim:malsefalam.Comigo
também,vocêviuojeitodele,nãoé?Foisóeusair
dohospitalpraeledizerqueperdeuafilhadele
porqueeusouteimosafeitoumamula.Járepetiu
essagentilezaváriasvezes.
-Maselepareceumuitointeressadonaquela
memna.
-ASabrina?
-Quegarotasimpática,nãoé?
-Muito.
-Acheiumadelíciaojeitoqueelaolhapro
AndreaDoria:encantada.
-E,decertaforma,oAndreatambémse
encantouporela.
-Ah,é?Masentão...
-Não,não:nãoéporaí,não.Parecequea
meninatemumtalentoextraordináriopradançar,e
vocêsabequeacoisaquemaisfascinaoAndrea
Doriaéveralguémdançandodojeitoqueele
gostariadedançar.
-Porfalarnisso:elecomeçoucomastais
aulasdedança?
Palomaolhoupraeleespantada.
-Maseunãotecontei?
-Oquê?
Palomadesviouoolhareretomouoar
ausente,agorasempretãopresente.Emurmurou
feitopraelamesma:
-Távendosó?Eutôtãoprisioneiradesse
vazio...desse...questionamentotodoemqueeu
ando,queeunãotônemaíprastragédiasque
acontecemláfora...láforademim...
Leonardoficou,pacientemente,esperandoa
voltadaPaIomapraele.Elaacabouvoltando:
-AtaldaInês,lembra?quedavaaulas?Foi
assassinada.Pareceatéque...nomesmodiaemque
aBetina...-avozsequebrou-...também...
-Assassinada??Aqui?
-Oassassinonãoédaqui,não.Pareceque
elesóveiopraissomesmo;sumiulogodepoisdos
tiros;ninguémsabequemé,deondeveio,pra
ondefoi.
-Caramba!
-Essamenina,aSabrina,chegouaquina
cidadenãofazmuitotempo,não.Sobrinhada
Inês.Veiopratomarcontadaavó,que,dizem,
éinteiramentetrololó.-Bateoindicadorna
cabeça.
-MasaSabrinatambém...dáaulas?
155

Sapatodess.
J'1fjia lJojunfja156
-Não,achoqueaInêsestavaensinandoela
adançar,equandooAndreaDariaviuficou
encantado;dissequeelafoifeitapradançar.
-Eagoraelamoralásozinha?
-Comaavó.
-Eelacostuma viraqui?
-Não,hojefoiaprimeiravez.Euatéestranhei
quandooAndreaDariachegoucomela;meapresentou
comoumacolegadedançaeperguntouseelapodia
ficarpraalmoçar.Sefosseumcolegaeulogodiria
quenão,porque eracapazdoRodolfoarmaruma
cenanafrentedomenino.Massendoumacolega eu
acheiqueeraatécapazdoRodolfogostar.
-Mepareceuqueelatavadefome atrasada.
-Éverdade,limpoudoispratoscheios.
-Maselanãotemmaisfamília?
-Parece quesóessaavó.
Leonardo ficouumtempopensativo.
-Vocêjáconversoucomelá?
-ComaSabrina?
-Hmmhmm.
-Aquelaconversinhadoalmoço, vocêviu.E
assimmesmo,noprincípio, elafaloubempouco, só
seocupoucomacomida.
-Hmm...Quemsabeumahoradessasvocê
conversamaiscomela?
-Praquê?
-Praficarconhecendo elamelhor,ué.
.,Epraquê?
Leonardofezumgestovago:
-Éconversandoqueumaamizadecomeça.
Nãoiaserbomvocêseramigadeumaamigado
AndreaDaria?
-Maselanãoéamigadele,elaéapenas...
-Nãoé,maspodeviraser.
Seolharam. Palomameioqueencolheu o
ombro:
-Bom...dequalquer maneiraeupreciso
saber,primeiro, porquequeoAndreaDaria
resolveu trazerelahojeproalmoço.Justo hojeque
vocêveioalmoçaraquiemcasa.
Porquê?
Porqueerasábado, nãotinhaaula.Ena
sexta-feira detardinha,semtermarcadoencontro
nemnada, oJoeleoAndreaDariasecruzaram no
LargodaSé.Pararamprabaterpapo.Masnão
demoroumuitopropapovirardiscussão,pra
discussãoesquentar eproJoeldarascostasdizendo
quenãosabiaseiaperdoar oqueoAndreaDaria
tinhaditopraele.EquandooAndreaDaria,já
157

SapatodeSalto
J'IyiaBojunya158
arrependidodoquetinhadito,correuatrásdele,o
Joelselimitouadizerqlfenãoqueriaouvirmais
nada,eque,seporacasoresolvesseperdoaro
AndreaDoria,namanhãseguinteestarialánabeira
dorioprapescariaquenocomeçodasemanaos
doistinhamcombinado.
AndreaDoriaficouperturbadodemais.De
noite,acordavaatodahorapraolharorelógio.
Oencontrotinhasidomarcadoprasnove
horas,nabeiradorio,depoisdacurva,deondenão
seavistamaisacidade;ondematariaecapinzalse
aproximamdasmargens;ecomtantalarguezade
terraabandonadaedetantamoitadecapimassim
alto,esconderijosideaisseformampracasaisque
,'~:~ nãotê~medodedeitarnomato.
I~ AsseishorasoAndreaDoriaacordoudevez.
,./ FicouseocupandonoquartoatéouviroRodolfo
sairpr?posto.Tomoucafé.Arrumouomaterialde
pescaedeutchaupraPaloma.Maselaquissaber:
-Vocêvaipescarsozinho?
-ComoJoel.
-Olhalá,AndreaDoria.
-Oquê?
-Vocêsabe.
-Sei,sim,mãe.
Ficaramseolhando.
-Tomacuidado.
-Podedeixar,mãe.
-Oriotemcorrentezaforte...
-Eusei.-BeijouaPalomaesaiu.
Eagoraláestáelesentadonobarrancoque
margeiaorio,seocupandoemprepararisca,mas
oolhofugindoatodahoraprapicadaestreitaondeo
Joelvaiaparecer;aimaginaçãofabricandocenaatrás
decenadoencontroquevaiacontecer;opensamento
atarefadoemtudoqueépalavraquevaipovoaras
cenas,"puxa,Joel,quasenoveemeia!játavaachando
quevocênãoiameperdoar".ViaoJoelolhandopra
elecomaqueleeternosorrisozombeteiroque,se
porumladoatraíaeletanto,poroutrodeixavaele
sempreinseguro."Deixaeuteexplicarporque
queeudisseaquilo,Joel.Não,vocênãosabe.Se
soubessenãoiaemboradaquelejeito,dizendoque
nãoiameperdoar.Ah,tá,tá,vocênãodissequenão
ia,vocêdisseque,seporacasomeperdoasse...
Masdámaisoumenosnomesmo,nãodá,Joel?Só
porumacasovocêiameperdoar. Massenta,cara,
senta:'ViuoJoelsentandoelogodepoischegando
maispraperto,edepoisbempraperto.Viuosdois
159

1II
III11
I
Sapato deSa&o
161
J~gialJ,-'ojL-·u-'ngL-a _160
~~o1.~.s.Sehojeeunãovououtrav~e écap_~
defi~.ardesacocheiodemim:'Viuo[oelolhando
;ombeteiro prasiscasqueprq,arava. "Elesabeque
eugostodepescar,masnemprameagradar ele
pescaumbocadinho, vailogomepuxando lápra
moitadecapim:' Seviusendo puxadopelo[oel,se
viuouvindooJoelrepetir, quebonitoquevocêé,
Andrea Doria!Foireclinando ocorpopratrás,
abriuacamisa, osolbateuemcheio nopeitoena
cara,quebomqueeraosol!Olhou orelógio: dez
horas.Masporquequeelenãochegava? porque
queelenãochegava!Sesentou denovo.Quem sabe
elenãoiaperdoar mesmo tersidochamado de
mentiroso, deinútil, defresco.Masentãoelenão
erauminútil? sempre dizendo quenãocursava
faculdade porque nãotinha nadapraaprender
daquelacambadadeprofessores ignorantes? dizendo
quenãotrabalhava porque ainda nãoacaboudeler
todososlivrosdabiblioteca? ...Então,elenãoera
umfresco? Bom, mas..."Você nãomeamacoisa
nenhuma! Semeamasse nãomedeixava aqui
esperando essetempo todo!nãofaziaeusofrer
feitovocêfaz!Aúnicacoisaquevocêgostaemmim
équeeusoubonito, pensaqueeunãosei?Vocênão
tánemaípratudoquetáacontecendo láemcasa
comaminha mãeecomomeupai.Eomeupaitá
seolhando fundo noolho."Eusabiaquevocêia
meperdoar, eusabia! Mas,Joel,quando eute
chamei dementirosoeunãoquisteofender. Eusei,
eusei,chamar alguém dementiroso nãoélegal,
masjáfaztempo queeutôquerendo tedizer isso
mesmo, sóqueontem acabousaindo deumjeito
queeunãoqueria quesaísse, meperdoa, masque
euachoquevocêémentiroso, euacho.""Ih,não!"
Eapagou depressaaspalavras. Eletinha quesesair
~bemdesseencontro dehojesenãooJoelacabava
:fnãoperdoando ele."Masémentira! émentira!ele
1,:\)-vem sempre comessahistória dequemeama.Ele
. sómeamanaquela hora!aíelenãoparademe
)J-.~alisar edemeolhar...Masésóelegozarepronto,
li.rvoltaláproslivrosdele.Aúnica coisa queelequer
<;)véficartrancafiado, lendo umlivroatrásdooutro.
\ Bom, maseutambém nãoprecisava terchamado
IIII1~f"§'eledeintelectual demerda. Maselenãome
I\,~chamou outravezdeignorante? Nãomedisse
~ outravezque,emvezdequerer dançar,eutinha
1I~+-emaiséqueserleitor pradeixar devivernasbrumas
If1'daignorância queosnãoleitores vivem? Brumas
daignorância! Eu,hein? Quando elechegapertode
mimelesótáinteressado énaquilo mesmo:' Viu
oJoelselevantando eindicando comacabeçao
capinzal. "Émelhor hojeeuir.Jádavezpassadaeu
------ --
1
1I11
I
I
I

162 c1lJ'JiaBojun'Ja
assimportuacausa,viu?portuacausa.Porqueele
jásacouqueeupensoemvocêdiaenoite!"
Começouabotaraiscanoanzoleconcluiu:"Azar!
nãoquerperdoar,nãoperdoa;nãoprecisodevocê
prapescaria nenhuma,voutratardepescarpeixe
sozinho:'Levantouobraçopraatiraroanzol eviuo
Joelaparecendonapicada.Ocoraçãodeuumpulo
dealegria;obraçologopuxouoanzol devoltaeo
corpofoiselevantando.Masocoraçãoseaquietou,
surpreso:ué,nãoeraoJoel.
Ohomem quetinhaaparecidonacurvaparou,
sevirou,easurpresadoAndreaDoriaaumentou
quandoviuaSabrinaaparecendotambémnacurva.
Instintivamente, seabaixou, recuou,seescondeu
atrásdeumamoita:nãoqueriaqueninguémvisse
elealiesperando oJoel.
Ohomem veioavançando.Voltaemeiavirava
acabeçaprasecertificarqueaSabrinavinhaatrás.
Àmedidaqueseaproximavam,oAndreaDoriaiase
encolhendo cadavezmaisnoesconderijo.Quando
jáestavam bemperto,ohomemparoueficou
estudando ocapinzal.OolhodoAndreaDoriase
prendeu naSabrina:acaramuitoséria;umasainha
muitocurta.MaisumavezoAndreaDoriase
surpreendeu:achouque,derepente,aSabrinatinha
crescido.
Sapato deSa&o
Ohomem sedecidiu pelasmoitasonde o
capimestavamaisalto;fezumgestodecabeçapra
Sabrinaefoiabrindo caminhocomosbraçospra
enveredar porali.E,nobrevemomento emque
aSabrina atravessouapicada estreitapraseguir o
homem matagal adentro, oolhodoAndreaDoria
viuopédelacalçado numsapato abotinadode
saltobemalto,talequalosapato queaInêsusava
pradançar. Pouco depoisosdoissumiamno
terreno onde asmoitasseadensavam eomato
eramaisalto.
Andrea Doriafoisedesencolhendo. Sentou
nochão. Apartirdomomento emqueaSabrina
apareceu napicada, eletinha concentrado aatenção
nela,nãovoltou aolharpracaradohomem. Mas
agora, rememorando acenadesde oinício, ele
tentavaselembrar denovodacaradohomem,
tomadoporumaimpressãovagadequeerauma
caraconhecida.
Sempre deolhonapicada (entãooJoelnão
vinhamesmo?), voltou apensar noquejátinha
pensadomuitas vezes:eagora?iaatrásdoJoel?mesmo
assim?semtersidoperdoado? Mas, derepente, a
imagemdohomem queapareceu nafrenteda
Sabrina empurrou pralongeaimagem doJoel,eo
Andrea Doria exclamou pensado:oaçougueiro!!
163

164 J'1yiaBojunya
Selembroudeumavezemquetinhaidocom
aPalomaaoaçougueeoaçougueiro,deavental
brancorespingadodesangue,roubounopeso.A
PaIomareclamou.Elebotououtravezacarnena
balança.Mandouelaolharbemproponteiro.Ela
dissequequantomaisolhavamaiselaachavaquea
balançanãoregulavabemdacabeça.Eoaçougueiro
dissequeseaPalomaachavaabalançadeleviciada
eramelhorelaprocurarcarnenoutroaçougue,e
aPalomadissequeeraissomesmoqueelaiafazer.
Nuncamaiseletinhavistonemselembradodo
açougueiro,maseraele!Mesmosemsangue
nenhumrespingadonele,eraele.
Mas...oquequeaSabrinatavafazendoalicom
oaçougueiro?Selevantounumimpulsopraver.Ese...
Será?...Não,nãopodeser...Mas...sefor?Devagar,
foisentandooutraveznochão.Nãopodiaser!ela
eraumacriança,elasótinha...Osencontroscoma
Sabrinanacasaamarelaseatropelaramnalembrança
doAndreaDoria,esóagoraelesedavacontadeque
nuncatinhaconversadocomela.Quandochegava
prasaulasdizia,oi,tudobem?equandoiaemboraera
sótchauepronto,conversarmesmonuncatinham
conversado,queidadeseráqueelatinha?
Pensandobem,elesótinhaprestadoatençãona
SabrinanodiaemqueaInêschamouelapradançar
SapatodeSalto 165
comele.Éclaroqueeletinhaficadoencantadodever
como équeelatodadançavantocomopé:cara,
braço,mão,dedo,cabelo,tudo,tudoqueeradela
dançavantocomopé.Umencantamentomisturado
deespanto:comoéqueela,tãocriança,jápodia
dançarassim?Comoéqueela,tãocriança,vai
poder...Elaeoaçougueiro...será?Maseletambém
nãoiapralácomoJoel?Puxa!umacoisanãotinha
nadaquevercomaoutra,eletavaapaixonadopelo
Joel,eaSabrinaeracriançademais,nãopodiaestar
apaixonada porninguém,muitomenosporumcara
queserespingavatododesanguecortandocarne
pr'aquiepralá.Eselembrouqueumavez,isso
quando eleeramaispequeno,ficouolhandoprobife
malpassado nopratoedepoisperguntouporque
queelescomiamcadáver;equandooRodolfo
arregalou oolhopraele,eleexplicouquetinhaido
nodicionáriopraverseocaJuladaredaçãoque
eletinha escritoeracomcê-cedilhaoudoisesses,
masoolhocaiuemcadáveremvezdecaçula,eodi-
cionário explicouquecadáveréamesmacoisa
quedefunto: "ocorposemvidadehomemoude
animal"; nãoficavachatoelesalicomendoum
pedaço decadáver?Palomatinhaachadograça,mas
oRodolfo seofendeu,dissequeanimaléquemtinha
feitoodicionário,eeleficouolhandoprobifesem

166 ofljgiaBojunga
entender comoéqueumcaraescrevia umdicionário
todinhoseeleeraumanimal.
EagoraoAndrea Doria nãotiramaisoolho
docapimalto,amassado abraço, marcando o
caminhoqueoaçougueiro abriu prapassar.Elesabe
quemaisadiantetempequenos descampados só
comumarelvinhanochão, seráqueélámesmo
queelestãodeitados?Eseelefosseespiar?Sópra
ficarsabendo seeramesmo ounão?Masanoite
maldormida,ashorasdeexpectativa na-ansiedade
dachegadadoJoelemaisasurpresa easindagações
queresultaramdoaparecimento daSabrina ali
naquelesermosforamaumentando detalmaneira
aconfusãodesentimentos emrelação aoJoel-ea
confusãodeideiasemrelação aSabrina -,queo
AndreaDoriacomeçou asentir umaespéciede
paralisia: queriairembora pranãotermaisque
pensarque,quemsabe? oJoelainda iachegar e,
quemsabe?oaçougueiro eraamigo dacasaeestava
levandoaSabrinaprapasseare...Será?..Alassidão
aumentava, enãoadiantava oAndrea Doria quererir
embora: ocorpoparecia presonochão.Atéque,lá
pelas tantas, oruídodepassadas namata ede
braçadas afastandoocapimsacudiu oAndreaDoria
dotorpor.Sesentou, seencolheu, espreitou. Logo
apareceu oaçougueiro. Seencaminhou prapicada;
Sapato deSa&o 167
paroueajeitouocabelocomamão.Emseguida
apareceu aSabrina.Oaçougueiroseviroupraela:
-Aquitáocaminhoporonde agente veio.Eu
vouindonafrente.Dáumtempopravoltar:ébom
queninguém vejaagentento.Tchau. -Deuas
costas.
-Ei,peraaí!-Quasenumsalto,aSabrinase
pôsnafrentedele.-Eodinheirinho?
Oaçougueiro procurounobolso;estendeu
umanotapraSabrina.
-Nãofoiissoqueagentecombinou -ela
faloucomfirmeza.
Oaçougueiro teveumaligeira hesitação; tirou
doJ?olsooutranotaedeupraela.
-Nemisso-eladisse,enfiando dentro da
.blusaasduasnotas.-Agentecombinou queera
trinta,faltamaisdez.
-Vocênãoénenhuma Inês,tácomeçando
agora.Vinte támuitobempago.-Afastou aSabrina
comobraçodomesmojeitoqueafastava omato
eseguiuemfrente.-Dáumtempo pravoltar!-
recomendou outravez.Elaficouumtempo parada;
depois sevirou prorio.
Andrea Doriaagoraestávendo aSabrina de
perfil;vêelachegarnabeiradobarranco esentar;
vêelatirarosapatodesaltoeguardar odinheiro

168 J'jtjiaBojuntja
SapatodeSaAo 169
nele;vêelaassim,descalça, balançando aspernas,
depoisseinclinando pratentaralcançar aágua
comapontadopé.Masdepoisomovimento vai
parando,parando, atéaSabrina ficarimóvel,
sóolhando aáguapassar, emaisnada.Nesse
momentoaimaginação doAndreaDoria mostra o
corpodaSabrina seinclinando mais,mais, vaicair!
caiu!caiunacorrenteza esumiu!Oquadro quea
imaginação delepinta étãovivoque,numsalto
queelenuncatinhaexperimentado dar,jáestá
nto daSabrina, puxando elapelocabelo.Eagora
éaSabrina quegritadesusto sesentindo, assim,
repentinamente, puxada pratrás.Seolham no
maiorespanto. Ela,devereleali.Ele,denãover
elasumida nacorrenteza. E,derepente, osdois
caemnagargalhada.
-Nossa, quesusto! Vocêquase mearrancao
cabelo.
-Achei quevocêiacairnorio.
Tome risada!Depois:
-Oqueque'cêtáfazendo aqui?
-Eu?
-É.
-Nada.Evocê?
-Eu?
-É.
-Nada...querdizer,nada, não:euvimpescar.
-Vocêpesca,é?
-Pesco.
-Olhasó!Eoqueque'cêpescou?
-Nada.
Riram.Sabrinaolhouemvolta.
-Mascomoéquevocêpesca?Nãotôvendo
nadaaquiprapescar...Vocêpesca comnada?
Riramoutravez.AndreaDoria foibuscaro
materialdepesca quetinhalevadoproesconderijo
atrásdamoita.
-Ué:eraláque'cêtavapescando?
-Não, eutavaaqui, mas...-Olhouprorio.
Pareciaqueaáguaagoraestavamaisbarrenta.
Sabrina tambémficouolhandoprorio.Sem
vontadenenhuma maisderir:seráqueoAndrea
Doria tinhavistoelaeo...Ecomoelenãofalava
nada,elaacabounãosegurandoavontadedesaber:
-Vocêviuagente?
Elefezquesim.
Sabrinarespiroumaisforte.
-Lá?-efezumgestodecabeçapromatagal.
-Não,não!Eusóvivocêschegandoeentrando
lá.Edepoissaindo.
Sabrinaficouolhandopraeleedepois
perguntou:

SapatodeSa&o
J!'1fjiaBojunfja
171
170
-Evocêviuqueelequisiremborasemnem
mepagar?
AndreaDoriacontinuouolhandoprorio.
-É...euvieleindoemboraevocêvindo
sentaraqui.Eaí,seilá!-meioqueriu-derepente,
nãoseiporque,euacheiquevocêtavaindoprorio.
-Quenemaminhamãe?
Elesevirou.Eficoutãoimpressionadocom
aexpressãodoídaqueviunacaradaSabrina(ah!a
mesmaexpressãoqueeletinhavistonacarada
Palomabatendocomopunhonacamaerepetindo
semparar,porquê?porquê?porquêl),quemalteve
coragempraperguntar:
L>-Suamãe?porquê?
1\a~-Elaquisacabarcomavidadela.Sejogouno
Ú0l';rio.Amarrouumapedranopeito.Praafundarmais
\ depressa.
~l' AndreaDoria ficou~ãochoc~docoma
~ revelaçãoquenãoconseguiUnemtiraroolhoda
(')Sabrina.Elasustentouoolhardele,eosemblante
~.rdoídodeaindaagorinhasetransformounuma
.Y'~expressãodedesafio:
\J{\L -Elatambémeraputa.Assimquenemeu.
fT\j
~~;'i Eleengoliuemseco.
\;(~ -Sabiaqueeusouputa?-elainsistiu.Deude
rombros.-Senãosabiaficousabendo,nãoé?
AndreaDoriatentouserecuperardochoque.
-Quequeéisso,Sabrina,vocênãopodeser
puta!...vocêaindaémuitocriança.
-Eusou,ué!
-Masporquequevocêachaqueé?
-Porqueeusou,jádisse!Euvimaquipra
deitarcomele.Porqueeledissequeessematagalaí
éomelhorlugarpraninguémver;dissequeseele
fosseláemcasaavizinhançaiasabereialogosacar
quenãoeracomavóGracinhaqueeleiadançar.
Dissequemedavatrintareais.Masnofimsódeu
vinte,oputo.
-Masvocê...vocêvemsempre?Querdizer,
comqualquerum?
-Agoraeuvoumesmo.Comqualquerumque
pague.Agoraeusouputa.
-Agora,porquê?Foiaprimeiravez?
Elafezquesim.
-Querdizer,eu...eujáconheciahomem.Lá
nacasaondeeutrabalheidebabáodonodacasa
entrounomeuquartoumanoiteedepoisficouindo
atéodiaemqueatiaInêsapareceupramebuscar.
-Maselafoitebuscar...praisso?
-Não,não!Elafoimebuscarpragenteser
umafamília;elaficoudanadadavidacomesse
açougueiroumdiaqueelefoiládançarcomelae

172 c1'1yiaBojunya
Sapato deSalto 173
resolveuseengraçarcomigo.Acheiatéqueelaia
baternocara.Avisouqueemmimninguém tocava,
porqueelanãoiadeixar.Desde odiaqueelameviu
dançandoelaresolveuqueeuiadançar, esó.Era'..J2
assimqueeladizia:vaidançar,esó!emaisnada!
---
-Tuatiatinharazão,Sabrina. Euqueriater
metadedotalentoquevocêtempradançar.
-Eladiziaque...que...-Jinãohaviamais
desafionemrevoltanoolhardaSabrina. Nacara
todaagorasótinhatristeza.Tanta!queoolho
começou adespejarlágrimaeavozfoisaindocada
vezmaisfraquinha:-Eladiziaqueiametransformar
nadançarinaqueavóGracinhaqueria queelafosse
equeelanuncachegouaser.Elaqueriapramimo
queela...oqueela...Ah,eratãobomtododialá
comatiaInês!eugostavatantodela,eratãobom!
dançando...brincandocomavóGracinha...tãobom
queera...Nageladeirasempretinhacomida,eratão
bom...-Avoztrancou;abocaseapertoupranão
deixarsairsoluçonenhum.
AndreaDoriacomeçouaficartambém com
vontadedechorar(nãosabiaseporelaousepor
ele).Quissaber:
-Agoranãotemmais?
Elaficousacudindoacabeça atéavoz
confirmar:
-Nãotemmais.Nãotemmais.Nãotem
maisatiaInês.-Eumsoluçoescapou.
-Não, euquisdizersenãotemmaiscomida.
Edomesmo jeitoelafezquenão,quenão.
Ficaramumtemposemfalar.Elasecurvoue
enxugouacaranabeiradasainha.Fungoufundo.
Depoiscontou:
-AtiaInêsguardavadinheiroemsapato.Tá
vendoesseaqui?-pegouosapato.
-Eradela,nãoera?
Sabrina fezquesim.
-Hoje eubotei elepraficarmaisalta.Atia
Inêstinhaumpezinhoassim.Elaguardavadinheiro
aqui,ó.-Levantou apalmilha.-Elafaziaassim
comtudoqueésapatoesandáliaechineloqueela
tinha.Elatinhaumaporção.Praroupaelanãoligava
muito.Amaniadelaeracomopé.Malcompravao
sapato, descolavalogoapalmilha...depoiscolavaa
pontadenovo.Foisóquandoeuvieladançando
comumasandáliabonitamesmo,desaltodesse
tamanho,queeutomeiumsustodanadoefizpsiu!
praelaeaponteiopédela:tavasaindogranada
sandália.Elameolhoufirmeefezassim:-Olhou
firmeproAndrea Doria, levantouamãoeselouos
lábioscomoindicador.-Volteouocaraquetava
dançandocomelapraeleficardecostas,olhoupro

174 cly9iaBoju~a
SapatodeSalto
pé,seabaixou,arrancouagranadasandália,enfiou
elaaquinodecoteedesvirouocarapracontinuar
dançandocaraacara.Depoisqueelefoiemboraeu
fuisaberdelaondeéqueagentecompravasandália
comgranadentro eelamorreuderir.Eaíelame
contouquesapatoeraocofredela.Contouissosó
umdiaantesdela...-Tropeçounafala.Afisionomia,
quetinhaficadoatérisonhacomalembrançada
sandáliaderramandograna,seendureceuoutravez;
oolharfoidenovoprorio.-Foiumdiaantes
daqueleputomatarela.-Respiroufundo:-Ah!se
eupegoele.Aaaah,seeupegoele!
AndreaDoriaficouolhandopraSabrinasem
dizernada.
-Jáfezummês-elaconcluiu.
-Já?
-Já.Euseiporqueeuconto.Eucontocadadia
quenãotemmaisela.Eucontotambémcadapalmilha
queeudescolo.-Meioqueencolheuoombro.
-Agoranãoprecisamaiscontar.-Pegouosapato,
enfiouumanotadedezdebaixodapalmilhaeaoutra
escondeunodecotedablusa.Faloucomoseestivesse
sozinha:-Tenhoqueirlánosuper:avóGracinhatá
querendoleite,batataepão.-Calçouocofre.
AndreaDoriaestavaficandomaisemais
ansioso.
-MasSabrina...
-Hmm?-Pegouooutropédosapato;foi
calçando.
-Nenhumapalmilhamais...temgrana?
Elafezquenão.
-Enãotemgranaemlugarnenhum?
-Jáprocureinacasatoda.
-Assim,umapoupança,um...seilá,um
banco...
-ApoupançadatiaInêstavaaqui.-Bateu
nosapato.-Masacabourapidinho,agenteteve
quepagarummontãodecoisasnahoradeenterrar
ela.Enodiaseguintechegouadonadacasa
dizendoquepragentecontinuarmorandolátinha
quepagarummêsadiantado;avóGracinhaconvidou
elapraestenderroupanovaral,masamulhersó
falavacomigoeficoudemãoestendidadizendo
queseeunãopagavaummêsadiantadoelabotava
agenteprafora.
-Maselanãopodefazerisso!
-Seilá,fiqueicommedo,fuinoquartodatia
Inêsepegueiessesapatoaqui.Quandoéassimfeito
botinha cabemaisnotadentro.AtiaInêstinhatanta
maniadesapatoqueeuacheiqueagranaiadurar
muitotempo.-Outravezumaencolhidadeombro.
-Sóqueacabou.
175

176 J'jgiaBojunga
SapatodeSa&o
177
-Masentãonãovaidarpravocêticar
morandoassim...assimsozinha.Vocêaindaémuito
pequena,Sabrina.
Sabrinasezangou;levantounumpulo.
-Pequena??
Meioassustado,oAndreaDoriaselevantou
também.
-Pequena?-elarepetiu.-Olhasóseeusou
pequena!souquasedoteutamanho.
-Bom,masessesapato...
-Equeméquedissequeeutômorando
sozinha?Pareceatéquevocênãosabequeeutenho
família,queeutenhoumaavó.Eutômorandocoma
minhavó,elacuidademim.
-Calmaaí,Sabrina,calmaaí,quemcuidadela
évocê.
Aexpressãodedesatiotomoucontaoutravez
dacaradaSabrina:
-Edaí?edaí?eugostodetomarcontadela!eu
gostodebrincarcomela!edaí?Agoraeuvounosuper
comprarleite,batataepão,viu?Nãoticaaípensando
queelavaipassarfomeporqueelanãovai,não.
-Mas,Sabrina,quemsabeagenteencontra
umjeitodeinternarelae...-Afalamorreu;outra
vezacaradaSabrinatinhasetransformado:agoraa
expressãoeradeespantodoído.
-Vocêtambém,AndreaDoria?
-Tambémoquê?
_Essaconversadeinternar.Nãoésóna
minharuaquejávieramcomessa."conversadeque
criançanãopodeticarsozinhacomumavelha
maluca.Éassimmesmoqueelesfalam,eusei,já
ouvi.Ouvitambémlánosuper.Ouvinafarmácia.E
avizinhadoladoveiomedizerquetavaprocurando
vaganumasilopravóGracinhaenumorfanatopra
mim;eagoravemvocêemefaladissotambém??
SeráqueatiaInêsnãotecontouquemeinternaram
quandoeunasciequeeusósaídeláhápoucotempo?
FiqueidezanosnaCasadoMenorAbandonado.E
agora'cêstãoquerendoqueeuvolte,nãoé?Maseu
nãovolto,não!Pretirofazerquenemaminhamãe
fez.-Espichouoqueixoprorio.-Etemmais:
levoavóGracinhacomigo.-Levantouumdedo
ameaçador:-Etemmaisainda:nãoqueromais
ouvirfalardaminhavódojeitoquefalam.Elaéa
minhafamília.Eagoraeuvouterdinheiropra
compraroqueelaprecisa.Etemmais!nãobaixoo
preço.Trintareais.Daípracima.Etemmais!
pagamentoadiantado.Feitoadonadacasa.Pagou,
deito;nãopagou,nãodeito!Praaçougueiromais
nenhumnãopagaroquecombinoudepagar. Tchau!
-Deuascostaseseguiupelapicada.

178 of'l9ia.Bojun9a
AndreaDoriasearrancoudochão.
Arrebanhouomaterialdepescaecorreuatrásda
Sabrina.Pegouelapelobraço:
-Ondeéque'cêvai?
-Jádisse,comprarcomida,tôcomfome.
-Puxa!eutambémtômorrendodefome.
-Tásemgranatambém?
-Não,não,équeeuacordeimuitocedoe...
porquequevocênãovaialmoçarláemcasa?
Oimprevistodoconvitefezosdoispararem.
DessavezoespantodaSabrinapegououtrofeitio:a
caraseiluminou:
-Almoçarnatuacasa?-Masosorrisoque
iaseformandoesmoreceu.-Ah,masatuamãe
".nãovaigostar. Nemteupai.Elealmoçaemcasa?
,.-AndreaDoriafezquesim.-Elesnãovãogostar,
f"Andrea,elesnãovãogostar.
L.f -Masporque,ué?!
~i~ -Eusouputa.
"I-Ah,Sabrina,paracomisso.
~Ir-Maseusou,ué!
1',.-Tábom,tábom:vocêéputa.Masninguém
precisasaber,nãoé?-E,pelaprimeiravez,olhou
praelacomumjeitobrincalhão.
Osorrisovoltouaseformarnorostoda
Sabrina:
SapatodeSa&o 179
-Entãotá.
-Mesmo?
-Mesmo.
-Vamolá.
Derepente, aPalomaselevantoudobanco:
tinhacomeçadoasentirosintomaquevinha
sentindodesdequesa,~~dohospital:umapertona
garganta;umaimpressão que,pradesapertar,ela
tinhaquegritar,gritar,gritar.
-Quefoi,Paloma?
-Nada,não,Léo.Éque...équeeume
lembreiqueeutenhoqueiraosupermercadover
umascoisasprojantar.
Leonardoselevantou:
-Euvoucomvocê.
-Não,não,supermercadoéchato,ficaaqui
curtindoolargo:vocêsempregostoutantodele.
(Elaiasecontrolar!elaiasecontrolar!elanãopodia
passarproLéoaquel~angústiatoda.)
-Oassassinatodosobradãocortouobarato
dolargo.Quevazio!...Se,pelomenos,agenteainda
encontrasseumjeitodeembargaraconstrução
doespigão.

180 J'j'jiaBojun'ja Sapato deSalto 181
-Então?ficaaípensando; quem sabevocê
encontra umjeito?
-Táquerendomesmo selivrar demim, hein,
minha irmã?
-Melivrardevocê,imagina! Aímesmo é
queeu...(Atenção, atenção! nãovaiagora falarda
depressão.) ...quebomquevocêvaipoder ficar
atéamanhã.Voudormirmaiscontente sabendo que
vocêestánoquartoaolado.Quenemantigamente.
-Finge umacaracontente. -Voufazerum
jantarzinho bemgostoso pravocê.
-Peloamordedeus,Paloma! nãovaiagora
começar apensaroutra vezemcomida, oalmoço
estavatãobom!
-Masagoraeuvoutratarédojantar. Sem
jantaréqueoRodolfonãofica.-Jogouumbeijo
proLeonardo.Foisódarascostasqueseusemblante
senublou outravez.
arquitetônica dolargo, tãodanificadoporaquele
medonhotapume azuletãoameaçado pela
chegada doespigão queiadesestruturar por
completooequilíbriodaSéedascasasemvolta.
Ficoudetalmaneira absorvido, quenempercebeu
queoslampiões dolargotinham seacendido.Era
noite.Foidespertado dodevaneio pelavozdo
Andrea Doria:
-Amãedissequetinha deixado vocêaquino
largoeeuvimverseainda teencontrava.
-Elajátáquerendo servir ojantar, é?
-Não, não,ainda vaidemorar: resolveu fazer
umminestrone eumatortademaçãprasobremesa.
-Xiiii!...
Andrea Doria sentounobanco;seinclinoupra
frente.Leonardo endireitou ascostas eficouolhando
osobrinho.Durante umtempopermaneceramem
silêncio.
-Amãeandanuma deprêdanada, nãoé,tio
Léo?
Leonardoapoiouosbraçosaolongodo
encostodobanco;estendeu aspernas.Ficou
olhando otapumejáerguidonafrente deonde
eraosobradão,imaginandooquequepoderia
serconstruído aliprarestaurar aharmonia
-É.
-Táassimhámaisdeummês.Desde aquele
diahorrível. -Suspirou. -Acho quenuncamaisvou
meesquecer daquele dia.Parece quequantomenos a
gentefaladeleláemcasa,maiseuficolembrando.
Depoisdopaifazerumadaquelas cenasquevocê

I
II
111,
11,
II
182 J'19iaBojun9a
conhece econvenceramãequeelaeraaculpada da
morte daBetina,nuncamaiseleabriuabocaprafalar
emBetina, emfilha, emDr.Rui,emparto, em
cesárea,emcoisanenhuma daquilotudo.Eeutambém:
acabei inibindo: nuncamaistivecoragem defalarna
Betina. -Seinclinouaindamaisprafrente eficou
assim:braçoapoiadonaperna, mãoagarrada umana
outra, olhonocalçamentodochão.Depois concluiu:
-Nem naBetinanemnosustoqueeuleveinasala
deespera dohospitalquandodeuaquela explosãoe
agente achouqueoprédiovinha abaixo. Queterror
quefoiaquilo!stonahoradetentar salvar avida
daBetina. E,pracompletarodia,quandoeusaílá
dohospitaldenoitinhaeuquislogocontarproJoel
tudoquetinhaacontecido;fuilánacasadelee...-
Estancou afala:caramba!nãoéqueelejáestava ali
falando doJoelprotioLéo,feitocoisaque...feito
coisaqueoJoeleraconversaqueelepodia tercomo
tioLéo?Disfarçou;sevirouproLeonardo: -Amãe
contou pravocêqueeutavatendoauladedança?
Leonardo fezquesim.
-Poisé,quemtavamedando aulaeraatiada
Sabrina, aInês.ASabrina éessagarotinha que
almoçou hojecomagente.
Leonardo ficouolhando proAndrea Doria
. .
comumarmeropensatlvo:
Sapato deSalto 183
-Maselanãoéassimtãogarotinha,é?
-É,sim,elaaindavaifazer onzeanos.Hoje
elatavaparecendo maisvelhaporcausadosapato
queelatavausando. Deuumacrescida!
-Quesaltão, hein?
-Nossa!nãoseicomoéqueelaaguenta andar
emcimadaquilotudo. Eradatiadela.
-Maspareciajustonopé.
-ElascalçavamiguaL -Foiserecostandono
banco.-Nãopensei quevocêfosseprestaratenção
nopédela.
-Édifícilagente nãoprestaratençãonela
toda.
-Porquê?
-Você devesaber melhordoqueeu.
-Eu?
-Vocês nãosãoamigos?
-Não.Quer dizer, amigo-amigoagentesó
começou aficarhoje.
-Ah,é?
-Antes erasóassim...umacoisasópra
dançar.
-Umacoisa?
-Não!nãoéqueeuachava elaumacoisa,não,
maseusófuiprestaratençãonaSabrinaquando,um
dia,aInêschamouelapravirdaraulantocomigo.

184 cf'jgiaBojunga SapatodeSa&o 185
Quando euvieladançando eufiqueibobo. -Se
entusiasma: -Aquela garotinha nasceupradançar,
tioLéo!-Mas,jáesmorecendo: -Assim...feitoeu
queria ternascido...Elanãoprecisadeaula,não
precisa deninguém, sóprecisa ouviramúsicae
pronto: elatodinha saidançando, docabelo ao
dedão dopé.
-Ah,é?
-AInêsmesmo medisse: nemseipraqueque
eutôdandoaulapraela:ocorpodelasabemais
doqueeu...Puxa, tioLéo,eudavatudopratero
talentoqueelatem.
-Masvocêtambém tem.
-Atéqueeuachava também. Masnodiaque
euviaSabrinadançandoéqueeusaqueiqueeu
vouterquetrabalharmuitoomeucorpopraumdia
elefazer oqueocorpodelafaz,assim...assimsem
elafazerforça, sempensar nele,nemnada.Dáaté
raiva.-Ficouumtempoolhandoprochãodetesta
franzida. -Maseuvoutrabalh~r praisso,viu,tio
Léo?Tôresolvido.Temgente queresolvequevai
ganhar avidanocomputador, temunsqueresolvem
quevãodescolaragrana jogandofutebol, outro
resolve quevaisermédico, outro, arquiteto, todos
achando queganharummonte dedinheiroéo
máximo; maseuqueroédançar. Achoquedançar
beméacoisamaislinda quetem.Deixaomeupai
falar.DeixaoJoelfalar.Umdiadesseseunãovou
maisligarproqueelesfalam:vaientrarporaquie
sairporaqui.-Apontouproouvido.Depoisdeu
umaencolhidadeombro.-Atélá...paciência.
-OJoeltambémtemmávontadecoma
dança?
-Édiferentedomeupai,mastem.Omeu5Vi
paificadanadodavidaporque achaquequererser~~
bailarinoécoisadegay.-Lançouumolharenviesado
proLeonardo.-Vocêconhece omeupai,nãoé,
vocêconhece.OJoelédiferente: elenãotáligando
amínimapraessahistóriadesergay.Eleéum
intelectual.Vivedelivronamão.Entãoeledizque,
emvezdequererdançar, eutinhamaiséquequerer
lerprasairdessaignorânciaemqueeuvivo.-Não
conseguedisfarçarumtomdemágoa.-Eleme
disse.Elemedisseclaramente nodiaemqueeufui
ládesabafarodesesperoquetinhasidoamorte da
Betina:vocêéumignorantepelapróprianatureza.
Puxavida!entãoissoécoisaqueumapessoaque
gostadaoutravaidizernumahoradessas?-Apertoua
bocacomforça:caramba!nãoéqueelejátava
outravezfalandodoJoelprotioLéo?
-Eleachouqueeraignorânciavocêterse
desesperadocomamortedasuairmã?

186 J'1~iaBojun~a
Sapato deSaAo 187
-Achou.
-Eeleteexplicou porquê?
-Porque eledissequeeratudoumgrande
besteirol.
-Tudooquê?
-Tudo. Porqueeucontei tudopraele:a
escolha queamãetinha feitodeterpartonormal;
tudoqueelaenfrentoupraircontraavontade do
pai;tudoqueédorinsuportável queelasofreu até
resolverem abrirabarrigadela;contei daexplosão
dogásnaquela hora,dosustoqueeulevei; contei
domeupaibotando aculpa naminha mãe,contei
tudo.Edesateiachorar,tioLéo,ainda maisessa,
desateiachorarnafrentedele"feitoumbezerro
desmamado", eledisse.Ainda tivequeouvir mais
essa.Foidose.
-Maseunãotôentendendo oJoel.
-Então somos dois:eutambém nãoentendo
ele.Euachoeleomáximo. Máximo assimde...-
meio queencolheu oombro -...assim detudo;de
cabeçaentão nemsefala,ocaraéinteligente pra
caramba, dizcadatroço quemedeixaatéarrepiado;
efoicomelequeeupude conversaressascoisasque
eusinto equemedeixam assim...seilá...meio
confuso. Temtantacoisaqueeusinto equeeunão
entendo porquequeeusinto, então,foiassimque...
quecomeçou essaminha história comoJoel;eu
queria conversar comalguém quesacassemaisda
vidadoqueeu.Conversacomcolegadeescola,
assimdaminha idade,nãoiaadiantar; equandoum
diaeucomecei aconversarcomomeupaideumas
dúvidas queeutenho, eleveiologocomaquele jeito
mandão quevocêconhece, eaíeudesisti.Ecoma
minhamãeeuachei quenãodava; elaésuperlegal,
euachoqueamãetemumasupercabeça, mastem
certasconversasquetemquesermesmo dehomem
prahomem. Então,umdiaqueeutavaaquinolargo
pensando navida,derepente vemumcaraesenta
domeulado.Foinaquele banco ali.-Espichouo
queixo. -Eujáconhecia eledevista.Claro, né?
numacidadinha assimtodomundoseconhece; eeu
játinha vistoelemeseguindocomoolhoquandoa
gente secruzavanarua.Maisdeumavez.Quer
dizer,umaporçãodevezes,lugar pequeno éassim,
~gente tásempre secruzando. -Seviroudelado
praficardefrenteproLeonardo. -Sabe,tioLéo?
quandoeuficarmaisvelho euvoufazerquenem
você:voum'emboradaqui. Queidade vocêtinha
quandofoi?
-Dezoito. Fuitentarvestibular noRio.Efoi
sósaber quetinha passado queanunciei láemcasa
queiamorar noRio:cursarfaculdade lá.Tuaavó

/88 cl'HJiaBojunfja
Sapato deSaho
eraquenemaPaloma: dedicadaàcasa,àfamília.
Depois queopapaimorreu naqueleacidente, ela
procurouserecuperar daperdasededicando
ainda maisanósdois.Masquandoeuanuncieique
iam'emboraelanãofezisso-levouaunha do
polegar prapontadoindicador -pramesegurar
aqui;osofrimentocausado pelaminhadecisãose
estampou logonacaradela,maselasódisse,seé
issoquefazvocêfeliz,vocêdeveirmesmo,meu
filho.Enuncadisseumapalavraenemtampouco
fezumgestopramereteraqui.-Sevirou também
delado, encolhendoumadaspernaspraapoiarela
noassento dobanco.Agora osdoisestavamde
frente umprooutro.-Jánatuaidade eucomecei
amesentirsufocadodevivernummeiopequeno:
tododiavendoasmesmascaras,ouvindo as
mesmas fofocas;todanoiteomesmodeserto aqui
fora,todomundoenfurnado, olhopresonatevê.-
Meioqueri.-Melembroqueeuvinhamesentar
aquinestebancoe,devezemquando,davauns
gritospraverseacordava acidadedetodaessa
sonolência.
AndreaDoriatambém meioqueriu.Depois:
-Issomesmo, tioLéo,temdiasqueeutenho
vontade degritardetantoqueeuachoqueeunão
vouagüentaresperarmaiscincoanosprairmorar
noRio.Pode serSãoPaulotambém. PodeserParis,
podeserLondres, mas,grande! grande!grande! um
montãodecarasnovas,tododiaummontedecoisas
praver,prafazer,praacontecer, eagentepodendo
fazeroquequer, semninguém semeternavidada
gentenemnada.
-Nunca mearrependi detersaídodaqui,
mas...
-Você gostamesmodeSãoPaulo?
-Agora, gosto. SaídoRiocomtristeza, sou
loucopormar,vocêsabe,enoRioeuviviapertinho
dele.Masapropostadetrabalhoqueeurecebide
SãoPauloeratentadorademais, nãoresisti.Efoi
ótimoeuterido.Nãosóporque eucomeceia
crescerprofissionalmente, masporquefoiláqueeu
conheci aMarina. Sabe,Andrea, fazdiferença,faz
,umabrutadiferençaquandovocê,afinal, encontra
umapessoaqueencaixacertinhocomvocê.Aténa
profissãonósagorasomosparceiros felizes.
-=-Ah,é!amãecontouquevocêsagoratão
trabalhando porcontaprópria.
-É.Resolvemos que,mesmoabrindomãodos
saláriosaltos(elatambémestava ganhandomuito
bemlá,onde trabalhava), erahoradebotaremprática
nossasideias; entãocriamosnossapequenaempresa.
Agente agora vaitentartrabalhar deumjeitoque
/89

190 JyyiaBojunya
1tj)(;nL~ GP-(.~y
SapatodeSa&o 191
nãovainosfazerricos,masque,certamente,vai
alargaroshorizontesdanossacriatividade.Então...-
sorriuproAndreaDoria-...vamosbem,obrigado.
AndreaDoriaretribuiuosorrisoeficoumeio
esquecidodoresto,sóolhandoproLeonardo.Do
resto,não:selembroudoRodolfo;e,derepente,
quismuitoqueoRodolfofosseoLeonardo.Vaiver
foiatéporissoque,mesmosempensarnoqueia
perguntar,perguntou:
-Vocêsnãoqueremterfilho?
-Comcerteza.Sóqueaindanãoéhora.Pra
tudotemumtempo,nãoé?Aqui,dentrodagente.É
precisotentarrespeitaressetempo.Namedidado
possível,éclaro.Epranós,praMarinaepramim,
agoraétempodelevantarnossacasadetrabalho.
Vaiprecisarmuitadedicaçãopralevantarelabem.
Epraterfilhotambém:precisamuitadedicaçãopra
criarelebem.Então...
Silenciaram.OolhodoAndreaDoriaandou
pelolargo;parounobancoonde,pelaprimeira
vez,eleeoJoeltinhamconversado.Lembrouque
naqueledia,feitoagora,'eleestavasesentindo
sozinho,confuso,infeliz.OJoelseaproximoucom
ardisplicente,livronamão.Sentoumuitomaisnto
doAndreaDoriadoqueeraprecisosentar;abriu
muitomaisabertoolivrodoqueeraprecisoabrir;
ajeitoucomexageroosóculosquenãoerapreciso
ajeitar,eleuemvozalta:"Anosatrás,quandoeuera
umgaroto,disseDorianGrayamassandoumaflor
emsuamão,vocêmeconheceu,meaduloueme
induziuaservaidosodaminhabeleza:'Seviroupro
AndreaDoria:
-OscarWilde.Sabequemé?-Equandoo
AndreaDoriafezquenãocomacabeçaeletirouos
óculoseficouolhandointensamenteproAndrea,
antesdesepronunciar:-Ignorante!
AndreaDoriaespichouoqueixoprobanco:
-FoiaprimeiracoisaqueoJoelmedisse
quandoagenteconversoupelaprimeiravez.Decara
elemechamoudeignorante,tioLéo,decara.Só
porqueeununcatinhaouvidofalarnumtaldeOscar
Wilde.Bom,depoiseleriueeunemleveiasérioo
ignorante: acheimesmoqueeleestavabrincando.
Masagora,seismesesdepoisdagentetercomeçado
essahistória,nãodámaispraacharqueébrincadeira:
praeleeusoumesmoumignorante.Eutivecerteza
dissonodiaemqueeufuiláchorar~morteda
Betina.Elenãoligouamínimaproqueeutava
sofrendo;achouaquelahistóriatodaumbesteirol;
dissequeamãedeviasermuitoestúpidadequerer
sofrerpraparir,emvezdesópedirumapicadinhae
dizer,meacordemquandoaBetinachegar;equeo
•...

192 J'JfliaBojunfla
paideviaserumestúpidoaindamaiorde,sendoopai
dacriança,nãodizerlogo,levaapicadaepronto:
vamosacabarcomessanovela!;equearmazenar
botijãodegásalinopátiosóserviapramostrarque
aquelaturmadohospitaleradeumaestupidezsem
limite;equeseaBetinatinhamorrido,melhorpra
ela:nãoiaterqueaturaraestupidezdosistema.Ele
falamuitoemsistema,sabe,tioLéo,esearrepia
todo,masatéhojeeunãoentendidireitoquesistema
éessequeelefala.Ah!eaindadissequeseaBetina
logoapagou,melhorproplanetatambém:omundo
tásofrendodesuperpopulação.Saídeláarrasado.
Resolviquenuncamaisiafalarcomele.-Ficou
sacudindoacabeçadevagar.-Masnãoadianta:ele
nãomelarga.Eseelesabememagoar,elesabe
tambémmeagradar,eacabasempre...-procurouas
palavrasduranteummomento-...eacabasempre
fazendocomigooqueelequer.-Mordeuolábiocom
força.Agoranãotiravamaisoolhodobancoonde
tinhaconversadocomoJoelpelaprimeiravez.-Eo
pioréqueeuacabosemprefazendotudoqueelequer
queeufaça;epioraindaéqueseeudigoquenãovou
maisfazerissoouaquilo...feitoeudisseontemde
noite,elelogomecastiga.-Acarafoipegandouma
expressãocadavezmaisdoída.-Marcoudese
encontrarcomigoláprosladosdacurvadorio,onde
SapatodeSalto
~
agentesempreseencontrapra...ondeagente
sempreseencontra,enãoapareceu.Elejáfezisso
antes.Elesabequeeumorrodechateaçãodeficar
todaavidaesperandoporele...enada.Elefazde
propósitopramechatear.Edepois,numaoutra
hora,eleaparececomacaramaislimpadomundo,
feitocoisaqueelenuncamarcouencontronenhum,
evailogodizendonomeuouvidoquemeadora,que
eusoubonitodemais,queelenuncavaimelargar,
quemaistardeagentevaicasar,feitoagorasefazde
homemcomhomem.-Silenciou.
Leonardoficouaguardando.Nãoqueriase
precipitaremnenhumcomentário:adelicadeza
"-''''1..-:••41-
doAndreaDorianãomoravasónosgestosenos
- ---- ~---....---
.E-'açosfisi~ômicosperfeitos:moravatambémnos
sentimentosenasreaçõesqueeletinha.Qualquer
coment1nãpõuco WtzpodG:'desadar aindamais
omenino.
-Anopassadoeuandeibrigandocomu~
garotoslir.!..a ;scola.Elesmechamaramdegay.
=-Meioqueencolheuoombro.-Tuseilá;;~sou
---..-
$oysouo~ai vereusou:eununcagostei
~Eenhumamenina..:..§~nãocurtoJog~~_
sógostodedaii'çar...-EsevirandoproLeonardo:
-=-Mas-;-mãedissequevocêtambémnuncacurtiu
futebol;evocênãoégay,nãoé?
193

f94 ofljfjiaBojunfja
-Nuncaexperimentei:nãotenhoamenor
ideiaseiagostar ounão.
AndreaDoriaficouumtempopensativo.
Depois:
-Poisé,essaéaprimeiravezqueeu
experimento terumcasocomalguém.Eunãosabia
,ycomoéqueera.Calhou quefoicomo[oel.Mas,às
l~1vezes,euficopensando quepodiatercalhadocom
/"'i!umamulher,eaí?Euquerodizerassim:seuma
J'tmulhermaisvelha (oJoeléseisanosmaisvelho que
.I'bfJeu,sabia?)tivessemepegado,feitooJoelmepegou
Ytpragente...transar...aícomoéqueficava?eunão
()eramaisgay?
.r;f-Bom,Andrea,achoquetudoiadepender
~ datuareação,dosteussentimentos...Seagente
experimenta enãogosta,nãosesentefelizcoma
experiência...
-Eunãotôgostando dessemeucasocomo
Joel!nãotôgostando nada.Querdizer,temumas
coisasqueelefazcomigoqueeugostosim,massei
lá!seumamulher fizesse,vaivereutambémia
gostar...Antes doJoeleueramais...comoéqueeu
vouteexplicar? assim,mais...livre.Achoqueéisso:
livre.Ago~aeutôsemprepensandooquequeoJoel
vaiachar,oquequeoJoelvaidizer,oquequeeu
façopraelenãomeolharcomaquelacaraqueele
SapatodeSalto
meolhaquandoeudigoumtroçoqueeleacha
besteira.AndomesentindomeioescravodoJoeL
Issopranãofalardachateaçãocomomeupai.
Agoraeletásempremeespionandopraverseme
pegaoutravezcomoJoeL-Suspira.-Enomeio
dissotudoaindaaconteceessahistóriadaBetina
eadepressãodamãe.E,prapioraraindamais,
acontece atragédiacomatiadaSabrina,quetava
dando umamelhoradadanadanaminhaexpressão
corporal.Eutavaadorandoteraulacomelae,de
repente, aquilo:chegolápraaulaeaInêstinhasido
assassinada.-Enfiaosdedosnocabelo.-Puxa,tio
Léo,édose!Eutavaafundando.
Silêncio.
-Masentão...vocênãodançamais?
-Atéqueagoraeucomeceiadançardenovo.
ComaSabrina.Umdiaeufuilánacasaamarelapra
saberseaSabrinaeadonaGracinhacontinuavam
rorláeencontreiasduasdançando.AdonaGracinha
éavódaSabrina.Bemlegalzinhaqueelaé.Sóqueé
ruimdacabeça.EaSabrinacontouquedepoisque
enterraram aInêsadonaGracinhadeupraficar
triste todaavidaeque,então,elabotamúsicapra
tocar ecomeçaadançarcomela.Dissequeadona
Gracinha esqueceatristeza.Entãoeu,queando
nessa chateaçãotoda,resolvientrarnadança.Pra
f95
..

196 J'j'JialJojufL'ja SapatodeSa&o 197
verseesquecia tudotambém.-OlhouproLeonardo,
destavezcomalegria. -Enãoéquetámesmome
adandopracaramba?
Osdoisriem.
-Puxa, tioLéo,quetroçoprafazerbemque
édançar! Entãoagora,duas, trêsvezesporsemana
euvoulá.ÉsóchegarqueadonaGracinha jásai
gritando, Neta!Neta!botamúsicapradançar!E
nãotempapo,nãotemnada.Ésódançar.
-Masoquequevocêsdançam?
-Tudo. Samba, salsa, rumba,tango.Ah,tio
LéovocêprecisavaveradonaGracinhaeaSabrina
dançando tango.Eumorrodevontadederir.Mas
nãoposso:tudoqueelasdançam,elasdançamsério
todavida.Atéclássicoagente dança.
-Mesmo?
-LagodosCisnesetudo.
-MascomoéquevocêsdançamoLago?
-Dearaque; agentevaiinventando.Nãotem
maisInêspraensinar, fazeroquê?
-Atéqueeuiagostardeverumasessãodessas.
-Então? vemcomigo. Amanhãeuvoulá.
Leonardo ficou olhandoummomento pro
Andrea Doriaedepoissurpreendeu osobrinho
dizendo:
-Então tá,vamoslá.
-Jura?
-Aquehoras?
-Temqueserdetarde, demanhã eutenho
escola. Àstrêstábom?
-Táótimo:sóvouvoltarpraSãoPaulo à
tardinha;eassimeuaproveito amanhã prafalarcom
oprefeitoeumvereadorqueeuconheço.
-Prefeito, é?-eoAndrea Doriafezum
muxoxo impressionado.
-Fiqueimuitotempoaquinolargoolhando
provazioqueosobradãodeixou. Achoqueeutenho
aobrigaçãodetentarqualquercoisa antesquea
harmonia desselargosejairremediavelmente
destruída.
-Lávemopai.Evematrásdagente.
Rodolfomarchava decidido; apontava o
relógiodaSé;alisavaabarriga;indicava comamão
quequeriacomer;chamava osdoiscomuma
Jesticulação larga.
Andrea DoriaeLeonardotrocaram umolhar
significativo, selevantarameforam aoencontro
doRodolfo.

11.
Novoscaminhos?
Quando, naquela noite,oAndrea
Doriadeitoupradormir, achouque
erasóapagaraluzpraapagar também: estava
supercansado. Masfoisóoquartoescurecer queas
cenasdodiaseacenderam nalembrança: aespera
sofrida doJoel-que-não-veio; oespanto dascenasna
beiradorio,oaçougueiro, ocapinzal, osapatoda
Sabrina, aconversacomela,aconversa dehomem pra
homem queeletinhatidocomoLeonardo. Eranessa
últimaqueopensamento parava.Pradescansar e
saborear.Erapraessaconversaeprasensaçãode
alívioquefoichegando devagarinho enquantoopapo
rolavaqueopensamento doAndrea Doriaqueria
sempre voltar. Uma sensação dealívio quenão
terminou comaconversa.Aocontrário, aumentou
SapatodeSaho 199
duranteojantar, quandoouviuoLeonardoexpondo
oresultadodameditação aquesetinhaentregue láno
largo, pormenorizandooplano detentarembargar
aconstruçãodoespigãoesuavizarocrimeda
demoliçãodeumexemplar tãopreciosodamemória
históricadacidade, comoeraosobradão.Oplano
eracriaragora, novazioqueosobradãotinha
deixado, umespaçoqueseharmonizassecomo
restantedasconstruções. ParaLeonardo, oideal
seriaressuscitaroantigoprédio, massabiaqueera
impossível. Comosabiatambém queembargara
obrajáiaserumabatalhamuitodifícildevencer,
nãoadiantavasonhar comnenhumanovaconstrução
quefosseoneraraindamaisocustodoembargo.
Entãopensoufazerdoespaço umamoradaproverde,
agrupandoárvoresdepequeno porte, arbustos,
orquídeas,bromélias, plantas rasteiras, todaselas
origináriasdaregião, afimdetransformaraquele
espaçonumaexposição permanente davariedade
dafloratípicadaregião. Oespaço entãonãosóia
serumrefrigériovisual(tendotambém bancos pra
complementarosjáexistentes nolargo), como seria
umpequenoecharmoso centro decuriosidade e
educação:afinaldecontas, ninguém sabianome de
plantanenhuma;emuitomenossabiaquaiseram
asespéciescaracterísticas daregião. Àmedida

J'i9iaBojun9a Sapatodess: 201200
eaquele veadinho -secorrigiurápido -,
;~adorzinho, etodososoutrosqueaprovaram
"oprojeto doespigão lánolargonãoentraram
numa belapropina?
-Épossível. Masachoaindamaispossível
que,seacidade semobilizarpradefender seu
patrimônio,agenteconsigaembargaraquela obra.
-"Cidadesemobilizando!", "orquídeas e
bromélias emlugardeespigão!","políticolevando
promessa asério!".-Riucomgosto. -Vocême
diverte, Leonardo.
Leonardosorriueteveumencolherdeombros:
-Seeunãoconseguirnada,voutentarme
consolar de,pelomenos,terdivertidovocê.-Se
levanta. -Eagoraeuvouvoltarprolargoembusca
deinspiraçãopraminhaargumentação deamanhã.-
Deuumapiscadela deolhoproAndreaDoria,jogou
umbeijopraPalomaeseafastou.
Naquela noiteoAndrea Doriadormiu
embalado pelasensaçãogostosa deterdescoberto
umamigo.
I~IIII' que.expu~ha aideia,iaseentusiasmando com.0
I1I proJeto.Jafazendo planos pra,namanhã segulllte,
1I noencontro queiatentartercomoprefeito eo
11'1' vereador, glamorizar aomáximo oaspectoeducativo
I,I ecul~u~a~ d~empreendiment~, enfatizandooqu~~o
Iri! umarruciatrva daquelas podena aumentaroprestlglO
deumedeoutro,levando aopovoaspreocupações
!II ecológicaseculturais deambos...
II~I[II Enquanto aPaloma eoAndrea Doriaolhavam
II entusiasmados proLeonardo, Rodolfomeneava a
cabeça,esboçando umriso;equando oLeonardo
perguntou, masqualéagraça? elerespondeu:
-Verquevocêainda acreditaquenossos
políticosseinteressem poroutracoisaquenãoseja
engordar aconta bancária quetêm.
III!IIIII[,~ -Equeromorrer acreditando, Rodolfo. Até
I.~Iporque, seeuparardeacreditar neles,porqueque
I~, euvoucontinuarcobrando delesoqueelessão
pagosprafazer? istoé,melhorar onívelculturale
econômico donossopovo.Afinaldecontas, sesomos
nósquebotamos elesnopoder,cabeanósfazer
comqueelescumpram aspromessasfeitas.Cada
umquedesiste dessacobrançasetornacúmplice da
corrupçãoquevaisealastrando poraíafora.
-Acorrupção jáchegou aumpontoque
nãotemmaisvolta. Ouvocêachaqueoprefeito
Nodiaseguinte, quandoafamíliasereuniu
proalmoço, acuriosidade eragrande prasaberseo

202 c1'19ialJojunga Sapato deSa&o 203
Leonardotinhaconseguidoseentrevistarcom
oprefeitoeovereador.Tinha.
-Eaobravaiserembargada?-oRodolfo
logoperguntoucomironia.
-Calma,Rodolfo,calma.Essasentrevistasde
hojeforamsóoiníciodeumlongocaminho.Agora,
alémdospauzinhosqueeuvoucomeçaramexerlá
emSãoPaulo,nósvamosprecisardomaiornúmero
possíveldeadesõesaoprojetodosmoradoresdaqui
dacidade.Quemestádispostoacolaborar?
AndreaDoriaePalomalevantaramobraço.
-Eucomeçolánaescola.Vocênãoachauma
boaosestudantesapoiaremoprojeto,tioLéo?
-Achoumaótima.
-Eeucomeçopelavelhaguarda:aturmado
paiedamãequeaindaandaporaí.
-Isso,Paloma!teroapoiodaalatradicional
dacidadeésuperimportante.-OlhouproRodolfo.
Rodolforespondeucomumgestoresignado,
semapagaraironiadoolhar:
-Seeupuderfazerqualquercoisa...
-Todospodem.Maséprecisoquerer.
Rodolforepetiuogestoderesignação:
-Tentar,agentetenta...masachoingenuidade
demaisimaginarqueumespigãovácederlugara
umorquidário.
-Nãoésóumorquidário:étodaumaideia
culturalquevaisegerarali.
-Tá,tá,mascontinuoachandoingenuidade
demaispensarqueumespigãovácederlugara
umaideia...
-Quemsabeaindaémaisingênuonãosaber
avaliaroalcancequeumaidéiapodeter?-Esabendo
queeramelhornãomencionaravisitaàcasa
amarela,oLeonardoencurtouoalmoçoapretexto
deterqueseprepararpravoltarpraSãoPaulo.
SabrinaeadonaGracinhajáestavamdançando
quandooLeonardo,aPaIomaeoAndreaDoria
chegaramnacasaamarela. Sabrina,quesóestava
esperandooAndreaDoria,ficoumeiointimidada.
AdonaGracinha,não:foisóolharproLeonardo
quegostoudacaradele:mostrouascovinhasepegou
elepelamãopraveraabóboraquetinhanascidolá
nofundodoquintal.Depoismostroupraeleovaral
econtoudomontederoupaqueelatinhapralavar.
Dissequetavadançandopradescansar. Masque
depoistinhaquetrabalhar.PuxouoLeonardo
efezelesentarnodegraudaescadinhaondeela
sempresentava.Contoucomoestavasujadelimoe

204 ofygiaBojulUja
SapatodeSa&o
deareiaaroupaquetinhachegadopralavar.Falou
queelaeaNetaiamarrumaracasaprachegada
daInesinha.DissequeaInesinhatinharesolvido
dormirprasempre,masdepoismudoudeideiae
resolveuacordar. Jáestavavoltandopracasa.Ia
chegarprojantareelaestavaemdúvida:fazia
empadãooumacarrãoprojantar?oquequeo
Leonardoachava?
)--...Leonardoponderouqueempadãodava
maistrabalho;elaaindatinhamuitaroupapralavar,
nãotinha?Tinha!Então?porquequeelanãofazia
.omacarrão?É:eramelhor;eeleficavaprajantar
\comelas,nãoé?eleiavercomoaInesinhaera
bonita(episcouoolhopraele).Ah,quepena!ele
~nãopodiaficar?tinhaqueviajar?pralonge?..
~ E,seaSabrinanãovembuscarosdois,adona
IGracinhaiacontinuarláentretida,encantadano
~o amigo,conversandoaténãopodermais.
FoisóaSabrinacomeçaradançarpro
LeonardoeaPalomatrocaremumolharaltamente
significativo.Recuaramprocantodoquartoe,
encostadosàparedeedebraçoscruzados,ficaram
apreciandoaSabrinaeoAndreaDoriaseexercitando
nospassosqueatiaInêstinhaensinado,enquantoa
donaGracinha,nafrentedoespelho,procurava
imitarosdois.
VoltaemeiaoolhodoLeonardosedeslocava
dopardançandopraobservarmaisumpoucotudo
emvolta:oespelho,adonaGracinha(quetiroua
sandáliadededopradançartambémdepéno
chão), oarmário,acamadatiaInês.Maseralogo
atraídodenovopeladança,pelosmovimentos
impressionantementeágeisegraciososdaSabrina,
epeloquanto,dançandocomela,oAndreaDoria
sedivertia,relaxavaeria,adquirindouma
espontaneidadedeexpressõesqueoLeonardo
nuncatinhanotadoantes.
r ÀsvezesoolhardaPalomasondavao
fi~Leonardo, equandooolhardosdoisseenc~ntrava
. amensagemquetrocavameradepuraemoçao.
<:» Quandosaíramdacasaamarela,deixando
oparaindadançando(estimuladosqueestavam
pelopúblicointeressadoquetinhamtidonaquele
dia),voltarampracasasemtrocarpalavra.Ao
atravessaremoLargodaSé,numacordotácito,
buscaramobancoondecostumavamconversar,de
frenteprotapumeazulque-talvez,quemsabe?
vamos trabalharpraisso?pensamentopositivo!
-iasumirpradarlugaraumbelocenário...
Continuaramemsilênciodurantealgumtempo.
-Quecoisa,hein,Léo?Vocêchegouontem
demanhã,jávaiemboraagora,tudopassou
205

206 c1'J~ia Boiun~a
SapatodeSalto
tãodepressa!feitoumminuto.Masparece
tambémquejáfazmuitotempoquevocêchegou.
Engraçado.
-É,essanoçãodetempoéesquisita ...
-Nãoéimpressionante otalentodaSabrina
pradança?
-Incrível!-ViroupraPaloma.-Éimpressão
minhaouvocêjánãoestátãodeprimida?
-Tômelhor,sim.-PegouamãodoLeonardo
eapertou.-Foibomvocêtervindo.Muitobom.
Ficaramdemãosdadas. EaPaloma
completou:
-Quepenaquevocêjátemqueir.
-Ahlmasagoranósvamos trabalhar ntos
noprojetodolargo, nãovamos?-Elasorriu, fez
quesim.-Então?vaiserumpretexto novopra
genteseveresefalarmais.
-É:vaiserbom.
-Eporfalaremtrabalho: sealgumdiavocêe
oAndrea Doriaquiseremtrabalharconosco, tenho
certezaqueaMarinatambémvaigostar...
Palomavirouvivamente acabeça:
-Porquê?
-Oquê?
-Vocêdizisso?
Eledeudeombros:
-Ué!nadademais.Épossívelque,umdia,
vocêouoAndreaDoriatenhamvontadedetrabalhar
conosco.-Selevantou.-Tenhomuitaestrada
pelafrente, minhairmã, deixaeuirandando. De
chegadavoufazerunscontatosimportantespraten-
tarhonraramemóriadosobradãoassassinado.
-Seráquevaidar,Léo?
-Sevaidareunãosei,masqueeuvou
batalhar,euvou.-Andaramemsilêncioatéocarro.
Seabraçaram. -Tetelefonoquandochegar.
-Muitoboaviagem.
Leonardoentrounocarro, colocouocinto,
ligouomotor. Mas, derepente,feitocoisaquetinha
recémselembrado:
/' -Ah!escuta:sealgumdiavocêresolver
,adotaraSabrina, podecontarcomigopratudoque
,')fornecessárioprasduas.PraSabrinaepradona
Gracinha.Tchau. -JogouumbeijopraPalomae
partiu.
~ Palomaficouparadanacalçada.Aprincípio,
semnenhumareação.Pareciaatéquenãotinha
escutado aoferta.Entrounacasa.Foiproquarto.
Sentounapoltronadecouro.Começoulentamentea
ruminaraspalavrasdoLeonardo.Tãolentamente,
quedurantediasafioruminou.
207

1I11111I
12.
Conversademulherparamulher
~asa amarelaimpressionoua
~ Paloma.Voltaemeiasesurpreendia
pensandonaSabrinaenadonaGracinha;enão
erampoucasasvezesemqueficavaumtempão
parada,revivendonalembrançaoquadrodaSabrina
edoAndreaDoria,emprimeiroplano,dançando;
adonaGracinha,aofundo,batendopalmasaoritmo
damúsica,sedivertindocomadançadosdoise
querendoimitarosmovimentosdopar.Paloma
sedemoravadetalhandonalembrançacada
expressãovistanorostoenocorpodosdoisjovens
dançarinos.Oprazereoà-vontadecomquea
SabrinaseentregavaàdançafaziamPalomasorrir;
oempenhoqueelaviaemAndreaDoriapraimitar
alevezaeaagilidadecorporaldaSabrinafazia
SapatodeSaho 209
elasecomover.Acabouinventandoumpretextopra
iroutravezlánacasaamarela.
-FizumbolopradonaGracinha.
-Deixaqueeulevo,mãe.Eutôindoládançar
comaSabrina.
-Aindatemqueficarmaisumpoucono
forno.Daquiapoucoeudouumpulinholá...
Equandonumoutrodiacomentou...
-Gostomuitodeteverdançandocoma
Sabrina.
-Émesmo?
-Tavaatépensandoemirláoutravez...
...foiumalívioproAndreaDoriaveraPalomase
interessandodenovoporqualquercoisa;tratoulogo
deestimularointeresse:
-Tôindopralá,vemcomigo.
-Bom,eu...nãoseiseadonaGracinha...
-Elacurtiuvocê,mãe.Entãovocênãoviua
alegriaqueelaficouquandovocêfoilá?
-Elagostoufoidoboloqueeulevei.
-Não,não!Sevocêforládemãoabanando
elavaigostarigualzinho.
-Maseunãoseibrincarcomelafeitoa
Sabrinabrinca.
-Nãoprecisa,bastaconversarumbocadinho
comela.

210 cf'jyiaBojunya
Sapato deSalto
-Conversaroquê?
-Qualquercoisa.Àsvezes elaentende, às
vezes,não.Mas, entendendo ounão,elagosta de
ouvir gentefalando.
-Ah,masébomlevarumacoisinha praelas
comerem ...Eupreparorápidoedepois levolá.
-Nãodemora porque hojeeunãovouficar
muitotempo. Marquei umencontronabiblioteca.
Sópode sercomoJoel,aPaloma pensou.
AndreaDoriajogou umbeijopraelaesaiu.
-Émesmo; ficoquase daalturadasenhora,
távendo? -Desceu dapontadopéeseentortou
outra vez.
Paloma viuqueelaestavasegurando um
batom.
-Você iasair?
-É,eu...euiadarumavoltinha poraí.
-Olha, eutrouxe umaspanquecas queeufiz
pravocês.
-Bemqueeutavasentindoumcheiro gostoso.
Quebom!tôcomumafomedanada. Entra, dona
Paloma, entra, vamoscomeraspanquecas. -Levantou
oguardanapo. -Quelegal! umaporçãozona delas.
V óGracinha! V óGracinha!Panquecaquentinha!
-Masvocênãoiasair,Sabrina?
-Ah,deixapralá,melhor comerpanqueca!-
Fechouaporta, tirouosapato.-Senta, dona
Paloma. Vóóóóó! Elatemumsonodepedra,sabia?
Àsvezeseutenho quesacudir elapraacordar.
-Deixaeladormir, depoiselacome.
-Masquente émelhor.
-Ésóesquentar.
Sabrina fezquenão.
-Nãotemfogão?
Elafezquesim.
-Então?
Sabrina abriuaportaeaPaloma estranhou o
silêncio.
-Ué:nãotemdança?
-OAndrea Doriajáfoi.Disse quetinhaum
encontro.
-Ah...
-AvóGracinhaentão foidormir.
-Sei.
Eagora aPaloma estranhava ocorpo entortado
daSabrina:umpécalçado nosapato desalto,o
outrodescalço. Ficouolhando prosapato.
-Quesaltão, hein,Sabrina?
Sabrina sebotou naponta dopédescalço.
2ff

212 J'j<jiaBojun<ja
SapatodeSaAo
-Édebotijão.Távazio.
-Ah.
Sabrinapegou pratosegarfoseserviuuma
panquecapraPaloma.
-Obrigada, Sabrina,jácomiemcasa.
-Comemais.
Palomafezquenão.Sabrinasentou,puxouo
pratoedevorouapanquecacomenormeprazer.
-Ih,masquedelícia!-Seserviudeoutra.
-Senta,donaPaloma!
Palomasesentou.DonaGracinhaapareceuna
portadoquartoesfregandoosolhos:
-Cheirobom!...
-Panqueca, vó.Quentinha.Olha...-Serviu
umapanquecaeestendeuopratopradona
Gracinha.-Pravocê.
SemmesmoolharpraPaloma,adona
Gracinhasesentouelimpouoprato:
-Mais!-Emostrou trêsdedos.
Sabrinahesitou.Serviuduaspanquecase
estendeuoprato.DonaGracinhafezquenão.
Mostroudenovotrêsdedos.Sabrinabotououtra
panquecanoprato.Acovinhaapareceuemcada
bochechadadonaGracinha,eelacomeçouacomer
devagar,intercalando cadagarfadacomumestalinho
delínguaeumaexclamaçãodeprazer.
Sabrinaseserviudeoutrapanqueca.
-Comeumazinha,donaPaloma,tátãobom.
-Seeusoubessequevocêsiamgostartanto,
eutinhafeitomais.
-Puxa!asenhorafezumaporção.Issodá
trabalho. Comeumazinha.Olha,aindatemduas.
-Obrigada,Sabrina,tôsemvontade.
Eramtantasasexclamaçõesdeprazerquea
donaGracinhaintercalavaentreumagarfadae
outta,queaPaloma achoudesnecessário falar:se
contentou emolhar...EquandoadonaGracinha
acabou astrêspanquecas(aomesmotempo quea
Sabrina acabavaadela),estendeuoprato indicando
comodedo:maisduas.
DessavezaSabrinahesitoumaiscomprido.
Acabou servindoumaeestendendooprato.Jáiase
servindo daoutra,masadonaGracinhacorrigiu:
-Não,Neta:duas.
EaSabrinaserviudevagaraúltimapanqueca
pradonaGracinha.Suspirou.Achouqueerabom
puxarumaconversa:
-Asenhoraachaqueagentedançabem?o
Andrea Doriaeeu?
-Acho,sim.Masachoquevocêdançamelhor.
-Éàsvezeseutambémachoqueeleéassim
umpoucoassim...
213

2/4 J'lf}iaBojun~a Sapato deSa&o
-Ocorpomeiotenso,nãoé?
-Tenso?
-Duro.Elenãotemessejogodecinturaque
vocêtem.
-É,àsvezeseuachoqueelepodiaserassim...
maisjogado.Mastambémeuachoquenãoprecisa,
~étãobonitoqueagentesóquermesmoéficar
olhandopraele~pronto.- ---
Palomariu:
-Você achaeleassimtãobonito?
-Achosim.-Apoiouorostonamãoeficou
pensativa.-Euficocompenadenãoserassim
bonitapraelepodergostardeolharpramim.
-Maselegostatantodeficarolhandovocê
dançar ...
-Ah...maséporcausadadança, nãoépor
causademim...
-Ué:évocêquefazadança,nãoé?
-Então?elegostadoqueeufaçomasnãodo
queeusou.-Oolharpassoupelasala,sedeteve no
sapatopertodaporta.Afisionomiafoisefechando,
seendurecendo. Lápelastantaseladeudeombros:
-Também ...seeusouoqueeusou,porquequeele
vaigostardoqueeusou?
AdonaGracinhaselevantou, acariciouo
estômago esedeclarousatisfeita:
-Comibem!-Foiindoproquintal. -Agora
voubotaraminha roupa novaral.Vem,Neta.
-Daquiapoucoeuvou.
Palomatinhaficado observando amudança
deexpressão norosto daSabrina. Quando o
olhardasduasseencontrou, aPaIomasorriue
perguntou:
-Eoquequevocêé?
-Puta, ué.
Aresposta deuumsustonaPaloma.Elase
endireitounacadeira.
-Quequeéisso,Sabrina? quebrincadeira
éessa?
Sabrinaolhoupraelaressabiada.
-OAndrea Dorianãocontou prasenhora?
-Contouoquê?
-Naquele dia...queeufuialmoçar nasua
casa.Elenãocontouprasenhora quemeviucomo
açougueiro? Lánocapinzal?
Paloma fezquenão.Sabrina baixouoolho:
-Bom...então eunãoprecisavaterfalado
nada.Pensei queasenhora sabia.
Silêncio.
Semsedarconta,aPaloma baixou avoz:
-Queidade vocêtem?
ESabrina, nadefesa:
2/5

216 c1ljflia/.5ojunfla Sapato deSa&o
-Jávoufazeronze.
-Eporquequevocêdizqueéputa?
-Putanãoéquemdescolaumagranapra
fazercoisaquehomemquerqueagentefaz
quandoficapelada?
Palomadesviouoolharprochão.
-Éounãoé?
Palomameioqueencolheuoombro:
-Bom,essadefiniçãoéumpouco...-Mas,
quandolevantouoolhopraSabrina,perdeuo
rumodaspalavras.Ficaramseencarando. A
eX5essão daSabrinaeradedesafio.
-E...éissoquevocêfaz?-aPalomaacabou
perguntando.
-Ecobrotrintareais.Oaçougueirome
sacaneou,sóquismepagarvinte.Masquando
aquelecaradapadariaveioaquimeassuntareu
disselogo:trinta;eadiantado. Elepagou.
-Aquí?-Indicoucomacabeça acasa.
-Alí.-Fezumgestodecabeça emdireção ao
quartodatiaInês.
OolhodaPalomaquisdenovoseesconder:
vagoupelochãoefoipararnosapato. Oolhoda
Sabrinafoiatrás:
-Quandoeusaioeubotoosapato datiaInês
pranãoparecerqueeuaindavoufazeronzeanos.
-Ah.Eradela...
-Era.Maselatinha opépequeno. Usava
sempre essesapatopradançar. Dizia queera
melhorquesandália porque firmava bemopé,e
quasetodomundo quevinha aquidançarcomela
erabemmaisaltoqueela.Assim quenemoAndrea
Doriaépramim.
OolhodaPaloma voltourápidopraSabrina;
eaSabrina achouquetinha queexplicarmelhor:
-Eutôquerendo falarédaaltura.Quandoa
gentedança équeeuvejo:eleébemmaisaltoqueeu.
-Maseunãovivocêusando sapatopra
dançarcomele.
-Não!comele,não!Não!Agentesódança,
eeuusopénochão.Seeleémaisalto,paciência. -
Eagoraeraoolhodelaqueabandonava aPaloma
prairseencontrar comosapato. Palomapercebeu a
expressão detristeza que,rapidinho, seestampou no
rostodela.-Eusinto umasaudade danadadatia
Inês.Eunãosabia quesaudade doíaassim.-Meio
queencolheu oombro.-Saber dequejeito? eu
nuncatinha sentido saudade deninguém ...
~ -Nem dasuamãe?doseupai?
OutravezaSabrinaencolheu oombro:
-Nãoconheci eles...Eorestoqueeuconheci
nuncamedeusaudade depoisqueeunãovimais.
217

:1111111
I
218 J'IyiaBojunya SapatodeSa&o
MasatiaInêstáaqui,ó. -Bateunacabeça.-Tá
sempreaqui.Eratãobomelaviva!Elaconversava
comagente,contavacoisaengraçada,enunca!nem
umavezeuabriageladeiraenadaencontreidentro.
Atébotijãodegásdereservatinhasempreum...-
Oolhocontinuavanosapato,masagoraseenchendo
delágrimas:-Foielaquedescobriuqueeusabia
dançardenascença...-Começouafungar. -Edisse
pramim:"Vocêédastaisquejánascemfeitas
pr'aquiloquenofuturovãoser;adonaGracinha...-
fungoumaisfundoeexplicouqueatiaInêschamava
amãededona-...adonaGracinhaseestuporoude
trabalhoprafazerdatuamãeumaprofessoraede
mimumabailarina;porqueeueraquenemvocê:
tinhaadançanocorpo;oqueeunãoconseguivocê
vaiconseguir,Sabrina;você,sim,vaiserumasenhora
bailarina!"Esónodiaqueaqueleputoveioaquie
matouelaéqueeufiqueisabendoqueelanão
conseguiuporcausadele:tudoqueelaganhavaia
probolsodele;virouputapraservirele.Quandoela
veiopracáfoipracomeçarvidanova,masosafado
descobriuondeéqueelatava,veioatráseacabou
comela.Pelomenosaminhamãeninguémmatou:
foielamesmaqueacaboucomela.Elatambém
virouputa.Pranãopassarfome.-Avozsequebrou
devez:-Tôachandoqueessenegócioédefamília.
-Trancouabocapraprenderumsoluçoeocorpo
foisesacudindoenquantooolhodespejavalágrimas.
Silêncio.
VeioavozdadonaGracinhaládofundodo
quintal:
-Neta!Vemlogo!
Sabrinaengoliuumsoluçoegritou:
-Tôindo!
Paloma nãoresistiuàcuriosidade:
-AInêssabiaquevocê...também...
-Deitavacomhomem?-EoolhodaPaloma
searregalouvendoaSabrinafazerquesim.
-Eelafoitebuscarpraisso?
-Deusmelivreeguarde!não,não!Atia
Inêsfoimebuscarpraficarcomelaecomavó
Gracinha.Pragenteserumafamíliaenãofaltar
maisnadapranós.Equandoeuboteio~apatopra
nãoparecermaiscriança,nãofoisópradescolar
granadehomemquerendosacanagem.Issotambém,
né?issotambém,senão...comoéqueeuvoucomprar
comida?Maseunãoqueroparecermaiscriança
porqueficaaíessavizinhançatodadizendoqueeu
soucriançaequeavóGracinhaémaluca,eque
criançatemqueirpracasademenorabandonado,e
quemalucotemqueirpracasademaluco;eeu
seiqueaquelacoroaalidaesquinajácomeçoua
219

220 -s-Bojun'Ja Sapatodess.
tratardearrumarorfanatoecasademalucopra
gente.Aqui,ó!aquiqueeuvou.Prefirofazerque
nemaminhamãefez.Praissotemrioaquiperto.
Eontemmesmoeufuifalarlácomacoroaedisse
praelaqueelanãotemnadaquesemeterna
minhavida;equandoelaficoutodaespevitadae
dissequeeueraumacriançaabandonada,eudisse
queabandonadaeraaputaquepariu;eudisseque
tinhafamília,tinhaavó,tinhatudo,edissequecriança
eutambémnãoera:conheciahomemmelhorque
ela,eerabomelaficarentendendoqueseeu
tinhafamíliaeutinhamaiséquetomarcontada
minhafamília.
-Neeeeta!Veeem!
-Tôindo,vó!-QuandoolhoupraPaloma,
paroudefalarefranziuatesta:-Asenhoratá
achandoengraçadotudoissoqueeutôcontando?
-Engraçado??
-Asuacaraédequemtáachandograça.
Palomaseperturbou:
-Graçanenhuma,Sabrina!Seaminha
carapareceuachargraça,medesculpa,massó
podetersidoporqueteurostoéexpressivodemais,
pareceatéqueelesaidançandontocomatuafala.
OutravezochamadodadonaGracinha.
Palomaapontouproquintal:
-Elatásentindoatuafalta.Jáestánahora
d'euir.-Levantou.
-Deixaeulavaropratoprasenhoralevar.
-Nãoprecisanão,euembrulhonoguardanapo.
-Abriuabolsapraguardaroprato.Teveuma
pequenahesitação;olhoupraSabrina:assim, de
pénochão,elapareciatãocriança!-Meresponde
umacoisa,Sabrina.Mascomtodaasinceridade,
sim?
Olhonoolho,aSabrinafezquesim.
-Vocêjáperguntouavocêmesmase...se
você..."iaserputa", feitovocêdiz,casosuatianão
tivessemorrido?querdizer,casoaInêscontinuasse
tomando contadafamília?
(-Não! não!éruim!Eusoupequenaaqui
também. Dóiquandoentra,éruim,nãogosto.Ê
'-;uimquandoacabatambém,e,àsvezes,agent!.
.quertomarbanhoenãopode;éruimojeitogueeles
olham pragente,feitocoisaQ,ueagenteé...seilá,
maséruim.Eugostavadeestudar.OseuG~ves
tavameensinando, masquandoatiaInêsfoilána
escola elesdisseramqueoanojátavanomeioeque
erapraeuvoltaranoquevem.-Sacudiuacabeça.
ão.Éruim.
-Quandoeuchegueivocêtavasepreparando
prairatrásdostrintareais?
221

II11
I
1111
I
222 J'jgiaBojunga
SapatodeSa&o
Sabrina ficouummomentoemsilêncio.
Depoisfezquesim:
-Masaturmaaquiéassim,ó.-Fechoua
mãocomforça.
-Vocêtopafazerumtratocomigo,Sabrina?
Sabrinajáficouumpouquinhoemguarda:
-Queé?
-Cadavezquevocêprecisardinheiropra
comidaoupraoutracoisaimportante, emvezdeir
procurarostrintareais,ouaceitarquemteprocura,
sejaláfora,sejaaquidentro,vocêmeavisaeeute
tragoodinheiro.OutemandopeloAndrea Doria.
Feitoagora.-Tiroudabolsaodinheiro ebotou
emcimadamesa.-Você topa?
-Éumtratoprasempre?
-Nadaéprasempre, Sabrina. Tudotem
umcomeçoeumfim.Hoje vocêdesabafoucomigo,
chorounaminha frente,querdizer,hojevocê I
confiouemmim.Entãonósestamoscomeçando
umaamizade, nãoé?Evocêsabequeumaboa
amizadedepende daconfiançaqueumtemno
outro. Vocêtemvontadedeconfiaremmimpra
nossaamizade crescer? \
-Tereutenho.Oproblema vaiserseeu
confionasenhoraedepoissobrapramim.
-Como?
-Ah,seilá,ué,derepente asenhoraarranja
pramimumadessascasaspramenorqueasenhora
achalegale...
-Ora,Sabrina...
-Masatrocodequêqueasenhoravaimedar
trintareaiscadavezquebateosufoco?
-OAndrea DoriapagavaasaulasdaInês.
Agoraeledançacomvocê,então...
-Ah,issonão!dançar comoAndreaDoriaé
acoisamelhorquetemnaminhavida.-Eaíacara
delaseabriunumriso.-Euéquedeviapagarpra
eledetantoqueébomdançarcomele.AtiaInês
ensinavapraeleeeunãoensinonada, sóseiéservir
\deyar.
-Maseletambém gostamuitodessassessões
dedança,fazembempraele.
-Neeeta!
-Então? Topatocaranossaamizadeprafr-
ente?
-Puxa!achoatéqueeutôsonhando. Quer
dizer que...seumdelesvempra...
-Vocêdizqueelebateu naportaerrada, tá?
SabrinaficouolhandopraPaloma.A
desconfiança quetinha aparecido nacaradelafoi
dando lugaraumaexpressão decontentamento.
-Vamos selarnosso tratocomumabraço?
223

224 e!'1~iaBoiun~a
Sabrinaretribuiucomforçaoabraçoquea
Palomadeunelaeficouparadavendoaamigasair.
Depoiscorreuatéaportaegritou:
-Valeu,donaPaioma!Valeu!
13.
Sim:novoscaminhos
f7Jalomaseenfioudentrodela.
mesma.Assim:faziatudoquetinha
quefazer;respondia(curto) tudoqueperguntavam;
seprecisavasair,saía;senãoprecisava,erasó
acabardeprovidenciararotinadetododiae
sentavapraconversar.Comelamesma.Horasafio.
MeioqueseassustavaquandooAndreaDoriaouo
Rodolfochegavam.Prontamenteselevantavaeia
providenciaroalmoço, ojantar, olanche,pegara
toalha probanho,acamisalavada,acalçapassada.
Tudomecanicamente,umavezqueodiálogo
interiorcontinuava:umaPaIomaquestionando,
aoutraaceitando;umaseenamorandodofuturo,a
outraquerendoficarnopassado;umasesentindo
corajosa,aoutra amedrontada demais.

226 J'ii!aBojunga
MuitasvezesoAndreaDoriaeoRodolfofica-
vamolhandopraelameiocismados. Achavam
eladiferente;sabiamqueelatinha vencidoa
depressão;massentiamqueelatinha caídonuma...
numaoquê?EseoAndrea Doria seperguntava por
quequeelaagoraviviaassimtão...longe (seráque
erapensando nocasodele-e-o-Joel?), oRodolfo
concluíaqueeraremorsooqueelaagoraremoía.
Remorsoduplo) elepensava:nãosópelamorte da
Betina,comopeloAndrea Doriaandar dessejeito.
-- . -
Palomanempercebiaoquantoumeoutro
cismavamquandoolhavampraela,tãoabsortavivia
nobate-papo semfimcomelamesma.Papoque
começounodiaemquefezotratocomaSabrina;
papoqueseexacerbounodiaemqueodonoda
padaria, antigonamoradodaPaloma equesempre
abasteciaocarronopostodegasolinadoRodolfo
(emboraosdoissedetestassemcordialmente),
resolveucomentar comumamigoqueencontrou
noposto, emvozsuficientementealtapraquem
estivessepertoouvir(inclusiveoRodolfo), que2-
Je,tava morrendodep~elo Andreê:..Poria. ~
Naquele mesmodiaoRodolfochegouemcasa
possesso:tinhamvistooAndreaDoria eoJoelsaindo
ntosdabibliotecaesumindoláproslados dorio;
jáandavanabocadopovoque"omeufilhoéa
-------
SapatodeSalto 227
paixão daqueleveado!". FoisóoAndreaDoriachegar
emcasapracenacomeçar:oRodolfoacusando
ofi.Q:odeenvergonharele;acidade;aPalom=;-
querendo interceder; oRodolforesponsabilizando
asideiasdelapor"m.-:u filhoestarind~r esse
caminho"; oAndreaDoriadefendendoaPaloma;a
-discussão esquentando;o~ acabando
porseexasperar edizer:oJoeltemrazão:vocêé
!u~patriarc:.....moralista epreconceituoso.Pronto!a
Itrasepomposa doJoelfoiaúltimagota:oRodolfo
pegouochicotequeusavaquandosaíaacavaloe,
diantedosprotestoshorrorizadosdaPaloma,
aplicouduasoutrêschibatadasnoAndrea Doria,
exclamando, exaltado:
'----Pravocêdeixardeserumfresco! (primeira
chibata~a); praaprender aserhome~!(segunda); IJ.).t.()~A
naterceira, aPaloma semeteunomeio, e,senãoe
oAndrea Doriaempurrarela,tinhasobrado pra
Palomatambém. Rodolfoatirouochicotelongee
saiubatendo aporta.Quandovoltounãosetrocou
nenhumapalavradentrodecasa.Nodiaseguinte
oAndrea Doriaevitouseencontrarcomopai,e
aPaloma passouodiaentregueaopapocomela
mesma.
Depois foitudoseacomodandodenovo.
Osânimos. Asrefeições.Assessõesdedança.O
~

228 Jygia Bojunga
tratodostrintareais.Eéatépossível quetudo
continuassenamesmasenãotivesse acontecido a
visitada
donaEstefânia,
quechegounacasadaPalomadevinconatesta,
saiacinzenta,blusabrancadebolinhapreta e
guarda-chuva debiqueiracomprida, queelaespetou
nacampainha daporta.Efoisódarcomavisitante
queaPalomaselembroudaSabrina sereferindo à
donaEstefâniacomoacoroaalidaesquina.
-Bomdia,Paloma.Preciso conversar um
momentinhocomvocê.Comlicença.-E,imprimindo
aoguarda-chuva afunçãodebengala, elacapengou
casaadentro.-Possosentar?
-Claro,donaEstefânia.
AdonaEstefâniasentounumacadeirade
palhinha, fincouabiqueiranochão,apoiouasduas
mãosnocabodoguarda-chuvaesepronunciou:
-Vouserbreve.Vocênãoprivadaminha
intimidade, mas,emcidadepequena, todosconhecem
oshábitosalheios...
Paloma ficouemguarda.
-...e,portanto,devesaberqueomeutempo é
muitocurtopracuidardecoisasmundanas; minhas
Sapato deSalto
horassãodevotadas ameocupardavidafutura. -
Sevirouprajanela, ergueu oolharprocéueficou
imóveldurante ummomento. Depois:-Notei que
tanto vocêquantooAndrea Doriafrequentama
casaamarela...
Paloma seendireitou nacadeira.
-...e,sendovocêpertencente aumadas
famílias maisan-tigasdacidade,acheiquesua
assinatura tinhaquevir,ntocomasdeoutras
famílias tradicionaisdonossochão,nocorpo
principaldessapetiçãoaoiz.-Abriuabolsa
preta,penduradanoantebraço, eretiroucom
cuidado odocumentoládedentro.-Jáquevocê
conhece ameninaeavelhaquecontinuammorando
nacasaamarela, vocêdevesaber, talvezmelhor
queninguém, queavelhaédesreguladadacabeça
eameninajáfoicontaminadapeladoençadatia,I
quesepassavaporprofessora dedança,masquevocê-
-fulminou Paloma comumolhardereprovação-
devesabertãobemquanto euqueeramoutrasas
coisasqueelaensinava. QueDeusaperdoe!Afinal
decontas, agente temquetercompaixão.-Suspirou.
-Vocêhádeconcordarquetemosquetomaruma
providência. Erápido! -Pontuouorápidocom
umabatida dabiqueira nochão.-Jáseperdeu
tempo demais.Todosquequerem evitarumoutro
229

230 JygiaBojunga
SapatodeSa&o 231
episódioparaenlamearnossacidade,feitoo
ocorrido nomêspassado,quandoaqueleforasteiro
veioaquiacabarcomavidadatalInês,todosque
querem,eeuduvidomuitoquequalquerpessoade
bemnãováquerer,têmqueassinarimediatamente
essapetição,praseranexadaaoutrosdocumentos
quejáestãosendoprovidenciadosnocartórioeque
\vãopermitiraremoçãodameninapraumorfanato
,Iedavelhapraumasilode...umasiloquetratadessa
Igente.Otrabalhoquetudoissoestámedandovai
(
serrecompensado, tenhocerteza.-Olhouconfiante
procéu.-Comotenhocertezatambémdequenão
ésóàquelasduascoitadasqueeuestouprestando
ada;é,sobretudo,ànossaformosacidade.Afinal
decontas,estamossendoobrigadasaconviver,
paredeaparede,comumasituaçãomoralmente
\:inaceitável. -Abriuoutravezabolsaepegouuma
caneta;olhouodocumento;estreitouoolhomíope;
indicoucomodedo:-Vocêassinaaqui,ó-e
estendeuacanetaeodocumentopraPaloma.
Semfazernenhumgesto,aPalomaficou
olhandoprodocumento.DonaEstefâniasacudiuo
papel. Palomacontinuouimóvel.
-Paloma!vocêestádormindo?-Paloma
olhoupradonaEstefâniaefezquenão.-Poisentão
tomeaqUIacaneta.
PaIomavoltouasacudiracabeça.
-Agora,não,donaEstefânia;eupreciso
pensarmelhor.
AdonaEstefâniaseofendeu:
_Pensaroquê?nãotemnadaprapensarnessa
história!ouagenteestáafavordobemouestáa
favordomal.
-Éexat~enteissoqueeutenhoquepensar,
donaEstefânia:atéondeeupossofazerobeme
onde équeeucomeçoafazeromal.-Selevantou.
-Eagoraasenhoravaimedarlicença:estavame
preparandoprasairquandoasenhorachegou.
AofensadadonaEstefâniacresceu:
-Esperoquenãosejaparairnacasaamarela.
•'7) Palomafoiabriraporta.AdonaEstefâniafoi
).à\ \.Jatrás,masparounasoleira:. . .A •
~\~$'~ -QueoAndreaDonaguelraexpenenClas
~~~.~exóticas,-agente aindapode,talvez,desculpar:
,\\/:sata.:.se deumadolescente:.-Mas vocêcomeçar-
afrequentarumacasaassimtãomarcada,
francamente, Paloma,pormaisvontadequevocê
possaterdeadaraquelasduasinfelizes,vocêé
inteligenteobastanteprasaberqueemcasade
m~imbondo ninguémmeteamão.Esperoquenão
demore ameprocurarpraassinarestepapel. Bom
dia.RecomendaçõesaosenhorRodolfo.-E

232 J'jfjia Bojunfja Sapatodess. 233
lançandoabiqueirapradiante, feitoordenando
queelaindicasseocaminho, acertouopassocom
oguarda-chuva.
Leonardosorriaemeneavaacabeça.Enão
adiantava aPaIomainsistir,elesóqueriaorelógio,o
restoeradela:
-Acasa,maisquetudo, ésua,esósua,
Paloma; vocêsempre gostoudestacasa,sempre
morou aqui;emesmoquandooRodolfomelhorou
devida,amãenãoquisquevocêsfossemembora:
elasabia quevocê,amava estacasa.Sóissojá
bastaria pracontinuartudoigualzinhoe,sobretudo,
comvocêaquidentro.Mas, seissonãobastasse,
aindatemumoutrofatorimportantíssimo:tenho
aminha casaemSãoPaulomontadacomtudo
queeupreciso.Estoubemdevida,Paloma.
Continue sendo aboaguardiãdestamoradaede
tudoquetemaquidentro; continuepreservando
acasapracidade: nadavaimedarmaisprazer
doqueisto.
Paloma aindaquisinsistir:
-Mas,Léo,granaégrana;esevocêestá
bemdevida,oRodolfoagora tambémestá.O
negócio ládopostodegasolinadeucerto.
LeonardoolhoupraPalomacomumjeito
meiopensativo edisse:
-Tantomelhor. Masoquenãoécerto,ou
melhor, oquenuncaécerto, éporquantotempo
umcasamento vaidarcerto.
NoquartodedormirdaPaloma temumapol-
tronapequena, decouro, queeracompanheiradiária
damãedela.QuasesemprequeaPaloma lembra
damãe,apoltronavemnto. Amãelendo.Amãe
cerzindomeia. Amãetricotando. Amãerefletindo. A
mãeeapoltrona.
Nosbraçosdapoltrona, ocastanhodocouro se
amarronzouforte, detãoprocurado, alisado,afagado.
Depoisqueamãemorreu, umdiaaPalomachamou o
Leonardopraescolher oquequeele
querialevar. Elequisorelógiodepulso,queera
grande,quaseigualaoqueaPaiomausava.
-Você sempreusaorelógiodopai,nãoé?
Palomafezquesim.Paiemãegostavamde
visorgeneroso;númeroseponteiros bemvisíveis.
Palomaentregou orelógiodamãeproLeonardo.
-Mastemorestotodo, Léo:objetos, móveis,
louça, talheres. Pranãofalardacasa.A
gentetemquevercomoéquevaificaressahistória
dacasa.

234 c:lfFJia Bojunga SapatodeSa&o
Apoltronadecourocontinuoumorandono
mesmo quartoqueamãeficouocupando sozinha
depoisdamorte domarido.Quando amãemorreu,
aPalomaeoRodolfosetransferiram pralá:erao
quarto maisquieto dacasa,davaproquintaL A
janela, grande,recebia muitosol,muita luz;era
ntodelaqueapoltrona morava;eeraalique,
agora,maisdoquenunca, nessas longasconversas
quevinha mantendo comelamesma, aPalomase
aconchegava. Deolhoperdido, ouláfora,ouno
soalhodetábuacorrida; debraçoapoiado no
marromedededoalisando distraídoocouro, ela
examinava minuciosamente cadadúvida que
umaPaloma levantava ecadaresposta queaoutra
Paloma dava.Sóque,nosúltimos dias,asdúvidas
tinham crescidodemais,e,poucoapouco,aPaloma
sedavacontadeque,praresponder aelas,ia
precisar demuita coragem.
Avisitadadona Estefânia seintrometia a
todahoranopensamento daPaloma.Mas,quanto
maispresente sefazia,maisamemória daPaloma
teimava emlembrar umacenaacontecida na
véspera:
Palomachegando nacasaamarela comuma
broademilhorecém-tirada doforno.
Música tocando.
SabrinaeAndrea Doriadançando.
Dona Gracinhapensandoque,comos
movimentos quefaz,estádançandotambém.
Paloma érecebidacomumasalvadepalmas.
Sesentam aoredordamesa, deolhonabroa.
Jáfamiliarizada comoambiente, aPalomavai
nacozinha buscarumafaca.Sabrina correatrásdela
e,numcochicho:"Oaçougueiro mepegounaruae
quismelevarprocapinzal. Eudissequenãoiaeele
meofereceu mais.Eudissequenuncamaiseuiae
eledissequeeuiamearrepender senãofosse. Eeu
dissepraelenãochatearsenãoquem searrependia
eraele.Nãofoibemrespondido?"
Numsupercochicho aPalomaconcordaque
foi.Ocochicho estáprontopracontinuar,masa
donaGracinha começa abater comamãonamesa,
repetindo: querobroa, querobroa,querobroa.
Eagora,alinapoltrona decouro, aPaloma
selembra dequeficoutãoperturbadaquandoa
donaEstefâniaestendeu opapel, quenemchegou
aolharasassinaturasquejáconstavam. Seráqueo
açougueiro tinha assinadoapetição?
Alembrançavoltavapracasaamarela,
revivendo umoutromomentodavéspera quando,
debroajásaboreada ereprisada, oAndrea Doria ea
Sabrinacomeçaramadebater apróxima música
235

236 J'j'jia Bojun'ja Sapato deSalto 237
queiamdançar,umquerendouma,outroquerendo
outra,maseravisível oà-vontadeeoprazercom
queosdoisdiscordavam.Palomasedemorou
olhandoprosdoisedenoite, nummomentoasós
comAndreaDoria,perguntou:
-Você eaSabrina viraram bonsamigos,
nãoé?
-Poisé,mãe.Noprincípioeunemdavabola
praela,achavaelamuitocriançapraserminha
amiga.Masdepoisqueeuvieladançando...ah!
mãe!comoeuqueriaterojeitoqueelatem.
-Masquem sabesevocêscontinuarem
dançandoelanãovaitepassandoojeito?
-Éessaaminhaesperança.Pelomenos
porenquanto. Depoiseuvouprecisar deumcurso
pravaler.
-Eelatambém.
-Bom, maselanãovaipoder.
-Evocêvai?
-Sedependerdopai,tádifícil. Masse
dependerdeumataldedonaPaloma...
"nãosejantanestacasa?". Emseguida,aluzse
acende impondo arealidadedoquarto,dajanta,
davida.Rodolfo seaproxima:
-Oquequevocêtáfazendoaínoescuro?
-Éverdade...-Protege avistadaclaridade
dalâmpada dotetoeacende oabardamesinhaao
lado.-Nemviquejáeranoite.-Fazumgesto
pedindo queele/apaguealuzdecima.
-Vocênãotásesentindobem?
-Tôsemfome. Mastemcomida quesobrou
doalmoço.Etemasopaqueeufizontemevocê
gostou. Ésóaquecer.-Seestranhou: oROdOlbJ
n~o.tinhaamenor intim~dadee,mu~to menos, ~
afmiciade comofogão: tmhasehabituado aser
sempre servido.
Rodolfo ficaummomentodigerindo a
informação. Depois:
-OAndrea Dorianãotáemcasa?
-Nãosei.Masépossível queestejano
quarto estudando; amanhãeletemprova.
Embora vocêacheocontrário, eleéummenino
responsável.
Adigestãodessasegundarespostafoidifícil:
nasúltimas semanaseletinhadigeridoosilêncio
daPaloma comrelativafacilidade,masagora
nãoestavaaceitando numaboaotomdevozda
Paloma continuaali,napoltronadecouro. De
repente sesobressaltaouvindoavozdoRodolfo:
" J
.>

238 J'jfjialJojunfja SapatodeSalto 239
mulher.Emuitomenosanovidadedeterque
fazercompanhiaaofogão. Sentanabeiradacama
ecruzaosbraços:
-Madameestáemburrada?
-Não.
-Deprimida?
-Não.
-Estáoquê,então?
-Sozinha.
-Sozinha,como?
-Adois.
-Oquê?
-Solidãoadois:éamaispesadadetodas.
-Madamepodeseexplicarmelhor?
-Sozinhacomagente mesmaatéqueébom.
Massozinhacomoutrodói.
Elesuspira:
-Qualéaqueixadesta vez?
-Destavez,porquê?Queixanãofazpartedo
meurepertório. Oufaz?
-Senãofez,agoratáfazendo. Ouvocênão
estásequeixandodeque,mesmocasadacomigo,
vocêsesentesozinha?
-Nãoéqueixa,ésóumaresposta àtua
pergunta:mesintosozinha,sim.Natuacompanhia
euagoramesintomuitosozinha.
~ Bom,issoagoratambémjánãoestavatão
fácildedigerir.Aindamaisnahoradesentarpra
)I.verotelejornalesaberqueojantarnãoestásendo
preparado. .
~-E...podesesaberporquequemadameestá
meacusandodelhecausarsolidão?Nãofoiminha
culpa semadameperdeuameninaqueelaqueria
tanto.Muitoao~ontrário:eufiztudopratentar
salvaraminhafilha...Achoque,sealguémtemque
sesentir sozinho,essealguémsoueu.
Paloma pareceunãoperceberosalpicode
agressividade emcadamadame.
-NãoésóporcausadaperdadaBetinaque
euestoumesentindotãosozinha.Mesmoporqueeu
pretendoadotarumacriança.-Franzeatesta,
pensativa. -Talvezatéduas...
Asurpresadainformaçãotransmitidacom
tantafirmezadeixaoRodolfo,aprincípio,mudo.
Quandoretomaafala,aprimeiraperguntaquefazé:
-Assim, é?semmeconsultarnemnada?
-É:assim,sim.É,não.Vaiser...Daquipra
frente.-Ecruzaosbraçostambém.
Ficaatémeioengraçadoosdoissentados
dessejeito, frenteafrente,olhonoolho,braço
cruzadoigualzinho.Depois,oRodolfoselevantae
desmancha acena:

240 J'jgia Bojunga
Sapato deSa&o
-Sevocêtáquerendobrincarcomigo...
-Nãotô,não.
-Entãojávouteavisando: nãovaiserassim,
não.Nopassado eutedisse: nãoquerofilhodos
outros, ofilhotemquesermeu.Evocêconcordou.
-Nãoconcordei:aceitei. Feitoeusempre
acabeiaceitandoastuasdecisões. Eanovidade é
exatamenteesta:nãotômaisafimdeaceitar. Ou
melhor,nãotômaisafimdeaceitardecisões comas
quaiseunãoconcordo. Eeunãoconcordodeque
"filhotemquesermeu".Demodoqueémelhor
vocêjáirsehabituando comofatodequeeuvou
adotaressamenina.
-Essamenina?Vocêjátemamenina?!
-Já.Maselaaindanãosabequevaiser
adotadapormim.Vocêéaprimeirapessoaqueestá
sabendo.
-Ah!muitoobrigadopeladeferência.
-Tomeiadecisãohoje.Exatamente hoje.
Poucoantesdevocêentraraquinoquarto.-O
olharseperde naescuridãodoquintal.-Jávinha
pensandomuito nisso.Nissoenaminhavidacom
você.Massóhojemesenticomcoragem deenfrentar"
tudoqueagentetemqueenfrentar quando quer i
fazervalerasideiasquesetem.-Olha outravez'
praele.-Enfrentar,sobretudo, você.
( _Enfrentar! ...Essaéboa;parece atéqueeu
souummonstro.
_Monstro nenhum: eununcapoderiater
meapaixonado, casado evivido quatorze anoscom
ummonstro. Masvocêsehabituoudemais(eeuas-
sumo essaculpa,portersidosempre tãosubmissa a
você),vocêsehabituoudemais afazerprevaleceras
,
suasideias, oseujeitodeverascoisas, asuamaneira
delidarcomavida.Sóqueomeujeitoédiferente;
eojeitodoseufilhof'diferente também. --"
-_Ah!estava faltandoafamosabe;:;evolência
maternaErasnãomenosfamosas"opçõ~
----- ."
sexualS .
Pal-;ma continuatentandoignoraras"ironias":
_Evocêjáprovou muitasvezesquenãotem
amaisleveintenção detentarsercompreensivo com
ojeitoalheio.Achoqueahorrendacenadasemana
passada,comaquele abominávelchicotedoteuavô,
foiagotad'águaquetavafaltando. -Olhououtra
ezfirme praele.-Transbordou, Rodolfo.Agora,
sevocêquercontinuar vivendo comigo, vocêvaiter
querepensaroteujeito.Eujárepenseiomeu.Eeu
Inãoestoudisposta aabrirmãodaideiadeadotar
\.aSabrina.
--AgoraoRodolfoseassustamesmo.
-Adotar quem??
241

mlll
II
242 Jy9ia Bojun9a
-ASabrina.Aquela menina quevocêconheceu
almoçando aquiemcasanodiaemqueoLeonardo
veiodeSãoPaulo.
-Sei,sei!Então eunãovousaberqueo
Andrea Doriaiadançarcomatiadelaequeagora
vaidançar comela,equeatévocêjátáfrequentando
acasaamarela, levando comidinha enãoseique
maispravómalucaqueelatem?! Masvocêignora
quenumacidadedessetamanho todomundo
acaba sabendotudodetodomundo. E,pelojeito,
vocêéaúnicaquenãosabeoquejácorredeboca
embocaarespeitodaquela menina. Claroquenão
sabe!Sesoubesse nãopodia estaraífalandodessa
maluquice deadoção! Poisficasabendooque
quea"tuafilhaadotiva" é:umaprostitutazinha.
Zinha, não:putamesmo. Depegarhomemnarua
etudo. Aprendeucomatia,queagoratodomundo
jásabeoquequeelaera.P..E.,ofessora dedançapr.:..
~o táafimdemulher, feitooAndrea
Doria.Prorestoelaensinava euseimuitobemo
-quê.Adotarumacriançaquejátánessecaminho!
imaginasó!...Francamente, PaIoma,vocêdeveter
ficadomuitoperturbada deterbrincado coma
vidadaBetinadojeitoquevocêbrincou. E,mesmo
nãosabendo queessamenina vaipegarhomemna
rua,vocêtemqueestarmuitoperturbada pra
Sapato deSalto
querer perfilhar umacriança quejátemonzeanos!
Nassuasintermináveis reflexões, seráquevocê
nuncaselembroudepensar que,nessaidade, uma
criança jáfoimarcadapeloambiente emqueviveu?
Equenuncamaisvaiselibertar dessasmarcas?
Nem issovocêpensou, nãoé?Elajáéuma
prostituta! Evaisersempre!Bonitosplanosvocêar-
rumoupramim!Além deestimular meufilho
prasergal,agora~está guerendo trazerumaputa
iramorar naminha casa.
--Paloma seirrita:-
-Nãofaleassim, Rodolfo!
-Tôfalandoaverdade.
-Verdade pravocê.
-Pratodos.
-Você nãotemodireitodecontinuar se
referindoaoAndrea Doriadessejeito...
-Ah,não?
-...e!eaindanem~oquequeésergay.
-Ah,não?
-Não, não!Damesmamaneiraquenãosabe
oquequeelevaisernavida...
-Vaiserbailarino:quemaisvocêquer?
-O9ueeuqueroéguevocêentendagueele
~não te~idad.!:.pra saber oquequevaiser---
oudei~ deser..9fato~terseapalionado por
243

244 J'fgiaBojunga
umrapazmaisvelhonãoédefiniãonenhumado
quequeeeeeoquegueelevaiser.
-Ah,não?
-Não,não,não!
-Nãogritecomigo!
-Masvocêpodegritaràvontade;podeaté
usarumchicote, nãoé?
-Eoquequevocêquer?Queeufique
impassível? Queeunãopercaacabeçacomas
maluquicesqueandamacontecendo nestacasa?Que
euachemuitoengraçadovocêquererqueeu
prepareojantar?Equevocêmeparticipe,com
amaiorcaradepau,quevaitrazerpradentroda
minha casaumameninaqueacidadetodajátá
sabendoquetrepacomqualquer um?
'-./-Vocêestáoutravezenganado:euseimuito
bemcomquem queelaestevenocapinzalecom
quemqueelaestevedentrodecasa.Seimuitobemo
quequeelacobroueoquequeelafezedeixoude
fazercomumecomooutro.Vocêsabequenesse
pontomulher éfeitohomem:gostadetrocar
informação.Esevocêquersabermaisdetudoque
eujásei,euvoutecontar:nemvocê,nemeu,nem
muitomenosaSabrinasabemos oquequeelaéeo•
quequeelavaiser.Esabemosaindamenosoque
queelavai"sempreser".Maseuseideumacoisa:-
SapatodeSalto 245
seeuadar aquela meninaanãoterquedeitarcom
osoutros pra.poderviver,euvouestarpoucome
importando quevocêouacidadeinteirafiquem
contraasminhas ideias.Damesmamaneiraqueeu
vouestarpouco meincomodandose,prafazera
Sabrina maisfeliz,eutiverqueadotaraoutra
criança: avódela.
-Pramaluca bastauma:játemosvocê.E
sevocêpensa queeuvouengoliravergonhade
abrigaraquela duplaaquiemcasa,vaitirandooteu
cavalinhodachuva:atéondeeusaiba,maluquicenão
contagia, eeucontinuo muitobomdacabeça.Ese
vocêmedisseroutravezpraeuirpracozinha
prepararojantardepoisdetertrabalhado odia
todoprasustentar acasa,eutedigo:vávocê!
PorqueeuvouprobardoErnestinhocomerumbife
acavalo. Tchau-tchau. -Edáascostas.
-Rodolfo!
Eleparanaportaesevira.Elaentãofala:
-Temduascoisasimportantesqueeuainda
nãoteexpliquei.
Elecruzaosbraçosesuspiracomimpaciência.
-Aprimeira éaseguinte:arazãoprincipal
d'euquerer adotar aSabrinaéporqueeugosto
dela.Gostei daquelameninadesdeoprimeiro
momentoemqueelaentrouaquiemcasa.Cada

246 Jy9ia Bojun9a SapatodeSa&o
vezqueeuestoucomela,gostomais.Esintoque
elatambémestáseafeiçoandomuitoamim.Acho
queissojáéumagarantiamuitoboadequevamos
serótimascompanheirasedequeaadoçãopode
darmuitocerto.Confioqueeuvápoderadara
Sabrinaadesenvolvertodoumpotencialque
elatememelgopreparadapraessatarefa.-Ele
sevoltaparasair.-Espera!aindanãoacabei.Se,
trazendotambémadonaGracinha,vaiadara
Sabrina, eutragoadonaGracinhatambém.Senão,
escolhonacalmaumlugarpraelaficar. Etem
maisumarazãoimportantemotivandoaminha
decisão:concluíqueaSabrinapodeserum
elementopositivonavidadoAndreaDoria.
-Táachando queelevaitrocaroJoelporela?
-Tôachando quevaiserbompraeleteruma
irmãfeitoela.
-Ah!-Elevaisaindo.
-Porfavor,Rodolfo, umpouquinhomaisde
paciência,sim?Deixaeuteexplicarasegundacoisa.
-Depressinha,tá?afomeégrande.
-Foivocêqueescolheuoregimedeseparação
debensquandonoscasamos.Certo?
Rodolfoagoraficamaisatento.
-Vocêcontavacomumagrandeherançado
seuavô,láemPortugal, equislogocompleta
liberdade praadministrarseusbens,semamarrasde
espécie alguma, inclusivematrimoniais.Certo?Logo
concordei. Aherançaacabousendopequena,mas
mesmoassim permitiuquevocêcomprasseoposto,
estabelecesse oseunegócio...
-...fazendo comqueaminhafamílianão
passasse nenhuma necessidade.
'-Certo: nuncapassamos.Evocêsempre
meexplicouqueonossoconfortosóerapossível
cadaumfazendo asuaparte, istoé,você
administrando asfinanças(semnuncameconsultar
praabsolutamente nada) eeumanejandooresto.
Sóque,pramanejaroresto)eutivesempreque
consultar vocêpratudo.Certo?Eunãofuicriada
prametornar tãodependente.Masmeadaptei.Fui
sempretãoapaixonadaporvocêquefizdemim
gato-sapato prameadaptaràdependênciadevocê.
Eachoatéqueconsegui.Duranteváriosanos.Mas
aspaixões esfriam comotempo.Aminhanãofoi
exceção.Enãoédehojequeeucomeceiamesentir
sozinhanatuacompanhia. Ummomento!estou
chegando aofim.Vocêsempreadministrouosteus
negócios, atuavida.Eumelimiteiamanejaracasa.
Sóque,agora,euestouresolvidaaadministrar
estacasa.NãoseesqueçaqueoLeonardoabriumão
delaameufavor.Acasamepertence.Sevocêquer
247

248 J'jfJiaBojunfJa Sapato deSaho 249
continuarmorandocomigoecomoseufilho,acasa
continuaàsuadisposição.Masébomtambémque
vocêsaibaqueeunãovoumaistoleraroutradas
suascenasdeviolênciaaquidentro.
-E...sóporcuriosidade...nessanova
administraçãoquemadamequerintroduzir na~~
casa...queméquepagaascontas? J
-Sevocênãoquisermaiscolaborar nas
despesasdacasa,Rodolfo,eunãovoufazeristo-
indicacomopolegarapontinhadoindicador-
prapressionar você.Comoeununcafizistopra
pressionarvocêpranada.Ecomonãopretendofazer
istopr~tervo~êaonossolado.Nãose.esqueçaque~
meupaleaminhamãemederamomaiorlegadoque
sepodedaraumfilho:umabelíssimaeducação.Ésó
eutirarapoeiradetudoqueeucurseieaprendiantes
docasamentopraestaraptaaexercerumaprofissão.J
Esevocêquiserignorarestepormenor,lembredo
outro:oLéoestámuitobemdevida.Esemprebotou
tudoquetemàminhadisposição.Vocêsabemuito
b / .. dd I
emquenossomosassim-Juntaumeonooutro-9-
feitoeuvoufazeroimpossívelproAndreaDoria
eaSabrinaseremtambém.Obrigadapelapaciência.
Bomapetite.-Seviraemergulhaoolharna
escuridãodoquintal.OuveospassosdoRodolfose
afastando.Depoisouveaportadaruabater. Eaísó
ficaatentaàsbatidasdoprópriocoração.Aprincípio,
aceleradas. Depois,seaquietandoeseaquietandoà
medidaqueosustovaipassando.Susto, sim.Susto
comelamesma. Semprequepensavanaconversa
queumdiaiatercomoRodolfo,seviahesitando,
gaguejando, seencolhendoe,noentanto, aspalavras
tinhamsaídofeitodecoradas,claras,semtropeço
nenhum; eafirme~a dotomdevoztinha apagado
porcompletoomedoqueelasempreimaginousentir
hd H • "
naoraevtraramesa.
Masagora umnovosusto,aosertocadano
braço.Sevirarápido. AndreaDoriaestádepéjunto
dela.Tinhaentrado tãodelevinhonoquartoque
elanempercebeu.
-Oi,filho, porondevocêandava? -Pegaa
mãodele.
-Quemãogelada,mãe!
Elapuxaamão,masoAndreaDoriaprende
nadele.Edurante ummomentosóficamassim:
seolhandodemãodada.
-Vocêsaiu?
-Não, não,eutavaaínoquartoestudando.
Mas,quandoouviavozdopai,abriumafresta
naportaefiquei ouvindotodaaconversa,viu?
-Bom...então...vocêjáestápordentrode
tudo,nãoé?

250 J'jgia Bojunga SapatodeSalto 251
~
Outravezosdoissóseolhando semdizer
nada.
-E...oquequevocêachou dasnovidades?
Numimpulso, oAndrea Doria seajoelha ese
abraçanaPaloma, escondendo orostonabarriga
dela.Elaquerfazerfestanacabeçadele,mashesita,
sesenteoutravezcommedo: eseasnovidades
tornavamomeninoainda maisconfuso? Fica
aguardando.AndreaDoria esfrega acaranasaia
dela.Quandolevantaorosto, nãosevêvestígio de
lágrima.
-Vocêpodecontar comigo, mãe.Proqueder
evier.Agoraeutômesentindo maisfortetambém.
ssacoisadecoragemcontagia, né?
-Eessacoisademedotambém.
-Também.Quebomquevocêfalou comele
dojeitoquefalou. Eseelevierdenovocomessa
bancatodaevocêfraquejar euvouteadar. -
Outravezseabraçanela.-Quebom!
-Evocêvaigostar deterumairmãbailarina?
Eleselevanta numpulo:
-Euquasecaípratrásquando vocêfalou
nisso!
-Edepoisqueescutou,gostou?
-Demais!
-Mesmo?
-Mesmo!Eusemprequisterumairmã,você
sabe:játavaprontopratrocarfraldaecuidarda
Betina.
-Sóqueagoranãotemfraldapratrocar.
-Mastemumparpratodahoradançar;já
pensou queparqueissovaidar?
Riem.MaslogoorisodaPaloma viracarade
preocupação:
-Eseráqueelavaigostar?
AndreaDoria meneiaacabeça.
-Puxa,mãe!Euqueriatercertezadeoutras
coisas feitoacerteza queeutenhodequeaSabrina
vaigostar tanto,quenemvaiacreditar. Queroestar
ntopraveracaradela,hein!Comaqueleolhão
queelaolhapragente. -Arregalaoolho,imitandoa
Sabrina. Osdoisriemntosdenovo.
-EadonaGracinha?
Elecoçaacabeça.
-Bom...issoeujáacheimaiscomplicado ...
-Complicadoé...Masvamosver,primeiro, a
reaçãodeumapradepoistratardaoutra.
-EjáqueopaifoiprobardoErnestinhoeu
vouláesquentar aquela sopapranósdois.De
-Vocênãoesperava?
-Nunca-jamais-em-tempo-algum! No
princípioacheiatéquenãotavaescutando bem.

252 J'I'JiaBojunga
repentemedeuumafomedanada!Quandoestiver
tudopronto euchamo.-Sai.Masvoltaejogaum
beijopraela.-Valeu,donaPaloma!-Saicorrendo.
Paloma desligaoabaresereclinano
encostodapoltrona decouro.Fechaosolhos.
Suspira.
~ca· ,,?fé'47J.e&<,.f-
-,
~ t/uXMa~~?L
lánoquartopontuandocomumsuspiroas
resoluções tomadasebotaroAndreaDoriana
cozinha esquentandoasopaprojantar(umeoutro
entregues aumasúbitasensaçãodealívioepaz),que
medeuvontadedeaproveitaressemomentode
sossego evirpracá,proespaçoquecrieipranós,e
quechameidePravocêquemelê.
Sevocêémeuleitor,minhaleitora,jádeveter
notadoqueoPravocêquemelêéumespaço
móvel, variadelivropralivro:oraénocomeço,orano
fim;orafazpartedahistória,orasetorna
ausente, oraselimitaadarumaououtrainformação
sobreolivroquevocêtemnamão.NoSapatode

254 J'jfjia Bojunga Sapato deSaho
salto)nossoespaçosedeslocouquaseprofimdo
livro:tomou olugardoqueseriaopenúltimo
capítulo.
Porquê?
Bom...nãoseise,comrazão, acheiquenão
deviateentregar"Expressões" (nome quedeiao
últimocapítulo) semtecontar quem équeme
influenciou aterminarahistóriadoSapatodo
jeitoqueresolviterminar.
Tudoaconteceu assim: comeceiaescrever o
Sapato desaltohámuitosanos.Nãoeraumsapato,
eraumasandália.Dourada.Eospersonagensda
históriaSandália douradaeramdiferentes destes
quevierammorarnoSapato.
Depoisdealgunsmesesdetrabalho, salvei
duasoutrêscenas,cujosdiálogosmepareceram
razoáveis,edestruíorestante dolivro:melembro
quenuncasentiafinidade comaquele pessoal com
quemeuvinha convivendodiariamente. Melembro
quenuncalastimeitermelivradodeles.Aocontrário:
meesqueci detodosrapidinho.
Quandoacabei deescrever Retratosde
Carolina, em2002, comecei aalinhavar uma
históriaque,depois, passouasechamar Aulade
inglês. Opersonagemprincipal dahistória éum
professorqueambicionouserfotógrafo profissional
(retratista) enãoconseguiu. Jáidoso,sesente
altamente atraídoporumamoça, aquemdeium
atributo que,quando fizteatro, aprendi avalorizar
muito: umafisionomia expressiva.Oprofessor,
queétambém admiradordesseatributo,passa a
daraulasdeinglêspramoçaeestásemprese
encantando comasexpressõesfisionômicasdela,
tentando captá-Ias emenquadramentosmentais.
AescritadeAuladeinglêscomeçouaganhar
forçanahoraerrada:euestavarecém-criando a
minhaCasaeditorial. Aprincípiotenteiconciliar as
tarefasdeeditoraeescritora. Maslogocompreendi
que,pratocarprafrente oprojeto daCasa,eu
tinhaqueempurrar aescritoraprasegundoplanoe
fazerelasecontentarcomassobrasdotempoeda
dedicaçãoconsumidos pelaeditora.
Nunca duvideidequeprecisariadeunsbons
trêsanospraCasa"sefirmarnaspernas". Então,
aatenção quedeiàescritoranessestrêsanosfoi
esporádica.Tantoque,numadasvezesemque,
depoisdeumlongoafastamento,euvolteipromeu
professordeinglês, nemreconhecimaisele...Achei
entãomelhor buscaroutrospersonagens, outras
histórias.
Foiaíque,procurandounsdocumentos da
Casa,nessemonte depastasemissivasepapéis que
255

256 J'J'Jia l5ojun'Ja SapatodeSa&o
entulhamaminhamesadetrabalho eque,acada
princípiodeano,euroqueeuvouorganizar,
responder, arquivar,eque,acadafimdeano,me
desesperoaoverqueomonte cresceu,deicomtrês
páginasamareladasdediálogos vivosreferentes a
umameninaqueestava sendo empurradapra
prostituição. Elaerauma daspersonagensde
Sandáliadourada. Nãoconsegui melembrar do
jeitodessamenina. Nem donome queeutinha dado
aela.Seéquedei.Masmelembrei, sim(graçasàs
páginasamareladas), dealguns farraposdafamília
Gonçalves,moradoranumsubúrbiodoRio.De.
repente, sentiumabrutavontade dedescobriressa
meninadentrodemim.Juntocomavontade, veioo
nome que,ali,nahora, eubatizeiamenina: Sabrina.
FoisóaSabrinachegar dentrodemimque
chegoutambémodesejo dedesenvolverafamília
Gonçalves. Semsaber onome destenovolivroque
nascia, nãodeimaisatenção aoAuladeinglêse
desateiafazeroquemeémaisnecessário: criar
personagens.NasceuatiaInês,depoisadona
Gracinha,depoisaPaloma, oAndreaDoriae...ao
longodostrêsanoserasóconseguir umasequência
demanhãslivres(édemanhã queeugostode
escrever,mas,seeuseiquesóvoupoderterumaou
duasmanhãspraficarcomosmeuspersonagens,
jáesmoreço;ah,não!nãovaidarprabotaropapo
emdia,émelhor nemcomeçar...)queeuiacriando
maisemaispersonagensproSapato.
Mas,conforme játecontei numoutroPra
vocêquemelê,aminhaescritasemg!eresultoude
troEeços, dúvi~eempacamentos.:. OSapatonã;'
foiexceção.N:mdessesempacamentos,volteipro
Auladeinglês.h--.Daíprafrente,semprepriorizandotudoque
Qserelacionava àCasa(editora), oraeuescreviaa
Aula,oraoSapato.
Emmaiode2005,aocomemorarnaBienal
doLivro, noRio,areuniãodeTODOSosmeus
personagens naeditoraquecrieipraeles,comemorei
tambémaresolução de,apartirdaquelemomento,
voltarapriorizar omeutrabalhodeescritora.Vim
praLondres dispostaapassaralgunsmesesdedicada
aosmeuspersonagens. Énoisolamentoemqueme
habitueiaviveraqui-emperíodosanuais-queeu
consigomelhorimpulsionarminhaescrita.
Então,desta vez,venhoconversarcontigo
nesseclimadeenvolvimentoemqueeuandocom
todoessepessoal doSapatoedaAulae,nesta
conversa,tecontar,também,que,derepente, me'
bateuqueocapítulo finalqueestoudandoproSa-
patoéresultado deumapessoasó:oprofessor,
257

\
'i~
I
I
258 J'J'Jia Bojun'Ja
daAuladeinglês.Medeicontadequeestousendo
muitoinfluenciada poreleeque,damesmamaneira
queelefaziacomaTeresaCristina,comeceitambém
aquerer enquadrar meuspersonagensdoSapatoem
fotosmentais,buscando, naexpressãofisionômica
decadaum(muitomaisdoquenosdiálogos),o
desfechopraminhahistória.
Sempreacaboomeupapocontigonaesperança
deteracrescentado umacoisinhaqualquerànossa
troca. Maisdoqueisso:naesperança deque
possamosnosencontraroutravez.Então...atélá!
14.
Expressões
Nacasaamarela
rJ'7)aloma eAndrea Doriatinham
J-idontosprasessãodedança.
Quando chegaram, adonaGracinhasentiuocheiro
dabroaqueaPaloma tinhalevado.Aspiroufundoe
declarou: queroumpedaçodessecheiro!
FoisóverabroaqueSabrina;;-;entou
pracomer.OAndrea DoriaimitouaSabrina.E
enquanto abroaiaemagrecendoentreexclamações e
murmúrios deprazer, aPalomasedemorava
observando ostrês.Atéque,lápelastantas,achou
quetinha chegado omomentopropício: contoupra
Sabrina quepretendia adotarelacomofilhaeque,
sendoassim, aSabrinaiamorarcomeles.
Aprincípio, nadanorostodaSabrinase
mexeu. Depois começouummovimento lento:a
o{j~
fidJ&,!/F.o'ÚI?:> ti-;2bt?ú

260
JY'Jiaj5ojun'Ja
testasefranziu; oolhoseestreitou; aboca
(semiaberta eesquecida dabroaquetinha parado
demastigar quando anotícia foidada) sefechou
devagar. Oolhofoiprocurar oolhodoAndrea
Doria;quando encontrou elerindoeviuacabeça
doAndrea Doria fazendo quesim,quesim,queera
issomesmo, omovimento nacaradaSabrinase
acelerou: abocamastigou abroadepressa,emais
depressa ainda engoliu; atestasedesfranziu;oolho
desatou abrilhar, correu praPaloma, brilhou ainda
mais;abocaseesticou, abrindo lugarproriso;as
lágrimas foram chegando, crescendo, transbordando.
EaPaloma selembrou deumdia,hámuito
tempo, elaainda eracriança: olhou procéude
verão,eoazultinhatantobrilho queelatapou acara
praseproteger; sto quando umanuvem apressada
passou efezchover; quando destapou orosto, foi
tomada defascínio peloefeitosurpreendente da
chuvabrilhando aosol.Feitoagoraelaestá:parada;
fascinada; contemplando aemoçãomuda daSabrina.
Depois, aPaloma desviou oolharpradona
Gracinha.
Absorta, desfrutando aomáximo acompanhia
dabroa,acaradadona Gracinha temumnomesó:
contentamento. Covinha nabochecha; olhofazendo
umúnicopercurso: dabroaprotetodasala,doteto
SapatodeSa&o
261
prabroanamesa;quando cheganabroa,reluz;
caminhando proteto,pegaumaexpressãoatenta
enquanto abocamastiga;voltando proprato,reluz
denovoeilumina ocaminho damãonaescolha de
umanovafatia.
OolhodaPaloma voltou pracaradaSabrina
esesobressaltou comanovaexpressão: as
sobrancelhas selevantaram, oolhoseenviesou pra
donaGracinha, oqueixo eabocaseentortaram
emsinaldeinterrogação, enemprecisou opolegar
apontar prolado: estavanacaraqueaSabrina
queria saber odestinodadona Gracinha.
Paloma assumiuumarmeiovago.Oolho
forçouumaexpressão distraída efoisondar o
semblante doAndrea Doria. OolhodoAndrea
Dorialogopareceu interessadíssimo nacapadeum
CDqueestavaemcimadamesa.
OolhodaPaloma seesforçou pravoltarpra
caradaSabrina. Brilho echuvatinham sumido. A
expressão estavatãofechada, nublada, quemalse
viamrestos deexpectativadainterrogação quetinha
seformado. Ficaramseencarando.
AmãodaSabrina selevantou: aponta do
indicador bateu nopeito;opolegarsevirou pra
donaGracinha.Avozfezumaaparição breve:
-Agente éduas.

262 JY<jiaBojun<ja SapatodeSalto 263
oolhodaPalomaprocuroudenovooolhar
doAndreaDoria,e,quandoseencontraram,umficou
pedindoadaaooutro.AndreaDoriaacaboumeio
queencolhendooombroearmandoumaexpressão
de:paciência,né?
Palomasepronunciou:
-Vamoslevarelatambém,Sabrina;vamosver
sedácerto.Massenãoder,euteprometoque
arrumoumbomlugarpraelasetratar.
Sabrinaselevantounumpulo.Abraçoua
Paloma;abraçouoAndreaDoria;abraçouadona
Gracinha;correuprosom;botoumúsica;pé,braço,
cabelo,corpo,tudodesatouadançar,celebra;do ~
i'i"ovaestaçãodevidaqueiacomeçar.
--
Palomavairetribuiravisitadadona
Estefânia.Assimqueaportaseabre,elaavisa:
-Ésóumminutinho,donaEstefânia,nãovou
podernementrar;sóvimpratrazeralistade
assinaturas.-Estendeumpapel.
AfisionomiadadonaEstefâniasesuaviza;os
lábiossealongamnumsorrisodeaprovação,oolho
vaiconferiraassinaturanopapelqueelalgase
relacionaraodocumentoquelevoupraPaloma
assinar.Masatestasefranze.Esefranzemais.O
sorrisojáseapagou; eoslábiosvoltaramaoque
maisgostam: seapertar.Oolholêatentoocabeçalho
nopapel; desce prasassinaturas;éatraídopela
caneta quevêsurgirnafrentee,assumindouma
expressãoaltamente interrogativa,vaiprocuraro
olhodaPaloma.
Aodarcomaexpressãosorridente(eum
pouquinhozombeteira) doolharemfrente,atesta
dadonaEstefânia seencheaindamaisdepregas;e
quandoaPalomacomeçaaexplicaraimportância
doembargodoespigãoprasalvaguardaraharmonia
doLargodaSé,aexpressãodeincompreensãoque
acaradadonaEstefânia mostravasemodificapor
completo:atestasealisa,oolhosefecha,eacabeça
fazquenão,quenão,quenão.Quandooolhose
abre,épraacompanhar amão,afastaracanetae
devolveralistapraPaloma.Avozacentuaogesto:
-Notérreodoespigãovaiterum
supermercado.Émuitoútilterumperto.
Palomaassume umarresignadoeguardaa
listanabolsa.
-Vocêainda nãoassinouamínhalista.Euvou
lábuscar.-Dáascostas.
-Nãoénecessário,donaEstefânia!Nãoé
necessárioninguém maisassinarasualista.-A
Nasoleiradaporta

264 J'i'JiaBojun'Ja
donaEstefâniaseviraespantada.-Euvouadotara
Sabrina.Evoumeocupardaavódelatambém.
Tenhaumbomdia.-Sai.
DuranteumtempoadonaEstefâniafica
imóvelnasoleiradaporta,exibindoumaexpressão
deincredulidadeerevolta.Depoisoolhoinicia
umaescaladalentaprocéuazul,naesperançade
encontrarconfortoporlá.
Noaçougue
NuncamaisaPalomatinhavoltadoao
Landinho,masagora,saindodacasadadona
Estefânia,elarumouparalá.
Landinho:eraassimquechamavamo
Orlando.
Orlando:oaçougueiro.Otalládocapinzal.
Palomaseaproximoujádeolhoinvestigando
oaventalbrancodoLandinhopraverseestava
respingadodesangue.Estava.Aquiloincomodava
elatantoquantooaçougueiroroubarnopeso.E
depoisqueaSabrinacontouoquantoeleandava
atrásdelapraumnovoencontro,aaversãoda
Palomacresceuaindamais.Maspromessaé
promessa.ElanãotinhaprometidoaoLeonardo
queiaseempenharaomáximonabuscade
SapatodeSa&o
assinaturas proprojetodoLargodaSé?Então?
Respiroufundo:
-Bomdia,Landinho.
-Bomdia,donaPaloma.Chã?Alcatra?
Lagarto? Patinho? -Eapontadafacaseviroupra
cimaapontadoasvariedadespenduradas.
-Eunãovimcomprarcarne.-Tiroualista
eacaneta dabolsa.-VimpratentarcolherasuatJ
assinaturanuma petiçãoaoprefeitoreferenteao
embargodaobradoespigãolánoLargodaSé. ')Q
Deixaeuexplicar numinstantepravocê.
\
Ocabodafacadescansounobalcão(apont~
sempredeolhonascarnespenduradas),eoLandinho
ficouolhandopraPalomaenquantoelaresumiao
projetodoLeonardo. Masacontecequeacarado
Landinhoéoexemploperfeitodoqueagentechama
umacarasemexpressão.Quantomaisentusiasmoa
Palomabotavanaexposiçãodoprojeto,querendo
arrancardoLandinho umaexpressãoqualquer-
senãodeaprovação, pelomenosdeinteresse-,mais
acaradoaçougueiro sepetrificava.Resultado:a
:rivacidadefisionômica daPalomafoiseapagando
Juntocomavoz...seapagando...seapagou.
QuandooLandinho viuqueaPalomanãoia
dizermaisnada, passouafacapramãoesquerda,
pegouopapeleacaneta...
265

266 J'jgia Bojunga
-Atenção!-aPalomaavisou-caiuumpingo
desanguentodapetição!
...limpouosanguecomaponta doavental eassinou
apetição.
OolhodaPalomasearredondounuma
expressão deespanto.
-Ahlquebomquevocêtambémacha
importante salvaguardaramemóriaarquitetônica
danossacidade!
-Falaram quevaiterumamodernaseção
decarnes nosupermercado doespigão:éruimpro
meuaçougue.
Palomaguardoualista,sedespediuesaiu.
Mas,jánacalçada, hesitou;voltou. Afacalogose
posicionou praumpossívelataqueàscarnes.
,r. ~
-Vâ.lquerer. .
_Não,équesabeaquela menina quemora
nacasaamarela ...aSabrina?
NemafacanemacaradoLandinhose
mexeram.
( _Euqueria contar avocêque...euadotei ela.
Eusemprequisumamenina, sabe? Então resolvi
(ladotar aquela criança. Elaestávindomorar comigo.
,.Elaeaavódela.
/ Ficaramseencarando. NoolhardaPaIoma:
umacertaexpectativa. NoolhardoLandinho: zero.
SapatodeSaho
Paloma esboçouumgestodedespedida efoi
embora .
NoLargodaSé
PalomaiaatravessandooLargodaSéquando
viuoJoelvindo emdireçãocontrária.Estava
absortonolivroquetinhanamão.Palomasedeteve;
assumiuumarhesitante.
QuandooJoellevantou oolharprocaminho,
jáestavaaumpassodaPaloma. Parou.Adúvida
apareceunoolhardele.Maslogosumiu.Eleajeitou
osóculoscomaponta do"paidetodos" efezum
cumprimentocomacabeça:
-Boatarde,donaPaloma.
Elaretribuiu ogestodecabeça.Eleseguiuem
frente.Maselaselivroudahesitaçãoechamou:
-Joel!
Eleparoueficouummomentoassim,de
Costas,antesdesevirareperguntar:
-Sim,donaPaloma?
Elapermaneceu parada,feitocoisa quetinha
esquecidooquequeiadizer.
Oeternosorrisozombeteiro(nodizerdo
AndreaDoria) apareceu nacaradoJoel.Aponta
dodd.
eoastoudenovoosóculos.
267

268 JygiaBojunga
Derepente, aPaloma pegouumardecidido;
abriu abolsa,tirouumpapelládedentro ese
aproximou doJoel:
-Estou recolhendo assinaturasparauma
petiçãoaoprefeito.OAndreaDorianãofalou com
vocêsobreisso?-Estendeuopapel.
OJoelsacudiuacabeçadevagar,enquanto o
olhopercorriaapetição.
....-Nóstemosquetentarembargaraobra
doespigãoaquinolargo,Joel!Estelargoéuma
preciosidade,umarelíquia doséculoXVIII,
<'jnóstemosquetentarpreservaranossamemória
histórica!Foiumcrimedemoliremaquele sobradão
maravilhoso, eagora...-Sedeteve.Aexpressãono
rostodoJoeltinhasetransfigurado:denotavaum
entusiasmoqueaPalomanãotinhapodido prever.
E,conforme elaiaexpondo oprojeto doLeonardo,
maisoentusiasmosemostrava.Quandoparou defalar,
oJoelprontamente tirouacanetadobolso,firmouo
papel nolivroe,enquanto assinava, desabafava:
_Quegrandeideia!Imaginaseagente
consegueselivrardobesteirolquevaiserum
espigãoali-espichouoqueixoprotapumeazul.
_Quemsabeagenteacabaatéseconsolando do
outrobesteirol, nãoé?
-Qual? ...
Sapato deSalto
_Ademolição dosobradão, ué!-Entregou
apetição praPaloma nto comumsorriso
não-zombeteiro eseguiucaminho, semdartempo
deladizermaisnada.
Napoltronadecouro
Paloma entranoquarto eaprimeira coisa
quevêéamalaemcimadacama. Oolhoprocura
emvoltaedácomoRodolfo semiescondido pela
porta abertadoguarda-roupa. Maslogodepois
elesemostraporinteiro: carrega umapilha de
camisaspramala.Caravirada prochão;nenhuma
vezoolhoselevanta praPaloma.Voltasempressa
proguarda-roupa, aomesmo tempo queaPaloma
seencaminha prapoltrona decouro;senta efica
olhandopraele.
NorostodaPalomaaexpressãode
interrogação ébemclara, masoRodolfo não
tomaconhecimento. Interrogação quevaise
tornandocadavezmaisóbvia àmedida queele
progride naarrumação damala.Indoevoltando.
Indoproguarda-roupa evoltando pramala,
trazendomeia,cueca, pijama; indodenovo,sem
pressa, semruído,semexpressão,lenço,camiseta,
sapato,indoevoltando, trazatéumjaquetão.
269

270 J'19iaBojun9a
1('
oolhodaPaloma sóseafasta doRodolfo pra
conferir, rapidinho,seamalajáencheu.
Aindanão.
Indoevoltando.
Aexpressãodeinterrogaçãoacabacansando:
pedeadaàvoz:
-Vocêvaiviajar?
-Vou.-Fechaamala.
QuandoaPalomavêqueelejásedispõea
sair,pergunta:
-Possosaberpraonde?
Abaixado, seocupandocomozíperdamala:
-ProHoteldaEstação.Vocêacabadetrazer
"íilhd"Sb. "add"V/asuaperuaaannaeasuaaataao
Gracinha praestacasa.(Tantoproperfílhada
quantoproadotadaelefazsinaldeaspasnoar.)
Nãoestouafimdeconvivernemcomumanem
comaoutra.-Seergue e,afinal, olhapraPaloma:
-Então, minhacara,nãomerestasenãodizer:até
maisver.-Eacompanhaogestodedespedida
comumaexpresão irônica.-Nodiaquevocê
voltaraseraPalomaqueeuconheci...
-MasaPalamaquevocêconheceu é
exatamente estaquevocêestávendoagora.Aoutra,
queveiodepois, foiumaPaloma fabricadaprase
a.-j~~tar avocê...
\
SapatodeSa&o
Aexpressão deironia somerapidamente da
caradoRodolfo.
_Nunca! issoéquenão!Eununcaiamecasar
comumaPaloma assim.-Eoqueixoqueseespicha
praPaloma mostratodoodesprezoqueoassim
merece.
Ficam seolhando.
Vaiaparecendo umaexpressãodoídana
caradaPaloma: masentãoerapossível?...viverem
diaenoite ntos...seamando,rindo,comendo,
lutando, cadasemana,cadamês,cadaano,
quatorze anos!pr'agoraseolharemassim...tão
desconhecidos!... semencontrarmaisnadapra
dizerumprooutro?
<,Odesprezo vais'emboradacaradoRodolfo
eagora chegaumaexpressão deestranheza: mas
entãoerapossível?mesmovendoeleiremboraela
nãosearrependia? nãoenxergava oquantoela
estavabrincando comavidadele...dela...doAndrea
Daria?...quatorze anosntos...diaenoite ntos...
e...erapossíveL. elanãoenxergar?
Ecomooolhardosdoisnãosesepara, acara
daPaloma começa aespelhar aestranheza queo
olhovê.
Masacaba nãodandomaisprasustentar a
cena:oRodolfo quebraosilêncio:
271

J'jgiaBojunga272
-Deixabaixarapoeiradissotudopragente
vercomoéquefica,nãoé?
Elaparecequeacorda;fazquesimcoma
cabeça:
-É:otempotemsempreaúltimapalavra.
Quemsabeumdiaastuasideiasmudam?ou,quem
sabeaté,asminhas?
-~SemdizermaisnadaoRodolfopegaamala
esal.
Palomanãosemove;aexpressãonãosealtera;
sóamãoficafazendofestadevagarnobraçoda
poltronadecouro.

OBRASDAAUTORA
Oscolegas-1972
Angélica-1975
Abolsaamarela-1976
Acasadamadrinha-1978
Cordabamba-1979
Osofáestampado-1980
Tchau-1984
Omeuamigopintor-1987
Nóstrês-1987
Livro-umencontro-1988
Fazendo AnaPaz-1991
Paisagem-1992
6vezesLucas-1995
Oabraço-1995
Feitoàmão-1996
Acama-1999
ORioeeu-1999
Retratos deCarolina-2002
Auladeinglês-2006
Sapatodesalto-2006
DosvinteI-2007
Querida-2009
Estelivrofoicomp
Acapae
emiol
Impressona
~~
VintevezespremiadapelaFundação
NacionaldoLivroInfantile
]uvenil- FNLI],
alémdeváriosoutros
prêmiosnacionais,
incluindotrês]abutis,
Lygiatambémfoireconhecida
internacionalmente,recebendo,entre
outros,omaistradicionalprêmio
naáreadaliteraturainfanto-venil:
oHansChristianAndersen,
conferidopelaprimeiraveza
umautornaAméricaLatina.
Recebeutambém,em2004,
oprêmioFazDiferença,
dasOrganizaçõesGlobo,
eoprêmioALMA
(AstridLindgrenMemorialAward),
~'lf>
amaiorpremiaçãomundial jamais
instituídaemproldaliteraturapara
criançasejovens,
criadapelogovernodaSuécia.
OprêmioALMAfoio
"empurrão"definitivopara
LygiacriaraFundaçãoCultural
CasaLygiaBonga,
destinadaaapoiarprojetosquese
proponhamatrazeroLIVRO
"maisprantinhodanossagente".

Apósumaausência dequatro anos-
quando priorizou atarefa
decriarumacasaeditorial
paraseuspersonagens-,
Lygia Bonga
voltaaoseutrabalho literário
lançando doisnovostítulos:
AuladeInglês
e
Sapato deSalto
Sãohistórias quelidam
comospermanentes conflitos sexuais,
amorosos efamiliares
quedificultam e/ouiluminam atrajetória de
adolescentes eadultos.
~
SN>AT0 DESALTO
lll\"\1.\11111111III\!
978B5890201~f)