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About This Presentation

AUTOR C.M


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Nota de Autor

Para vos ser sincero não sabia muito bem como
vos escrever estas notas, não sou de todo um
profissional e admito que apesar deste ser o
segundo livro que público peço-vos para
possuírem o mínimo de compreensão com as
possíveis gralhas que possam existir ao longo
desta obra.
Depois dizer-vos que embora goste de situar a
minha escrita no realismo e tente escrever sobre
problemas que todos nós possamos enfrentar no
dia-a-dia, contudo para cumprir os desafios que
esta história me colocou tive de fugir por
momentos dessa minha dita “realidade” e
imaginar o mundo de uma forma completamente
surreal.
Dizer-vos ainda que todas as personagens
possuem uma base verídica, inspiradas pelos
meus pares, alterando as suas ações, mas
mantendo os seus principais traços psicologico-
fisicos.
Por último espero que desfrutem da leitura deste
livro tanto como eu desfrutei da sua escrita.

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THE PACK
O DESPERTAR


UM LIVRO DE:
CELSO MONTEIRO

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Prólogo
“Numa cidade plantada à beira do Mondego, dois
amigos abraçam um novo desafio.
Felipe Ferreira, um rapaz eticamente intocável,
mas com um passado cheio de fantasmas que ainda
o atormentam e Hugo Monteiro, um jovem musico,
aparentemente normal, mas com um segredo que
lhe pode mudar toda a vida.
Muitos amores vão aparecendo, mas as diferenças
sociais vão minando todas as relações.
Um velho presidente da Câmara, preso por
corrupção é solto e promete voltar aos maiores
palcos da cidade.
Um choque de valores vai fazer tremer a cidade.
Contudo, uma outra sombra faz os seus
movimentos na escuridão, o Poderoso Alfa,
promete acabar com todos os pecadores da cidade.
Começa um jogo de xadrez entre três mentes
brilhantes...apenas um poderá vencer.”
Foi esta história que vos prometi contar no
primeiro capitulo desta história e acredito que não
fugiu muito a realidade dos acontecimentos,
contudo para os mais atentos, as ações do poderoso
Alfa e dos seus pares colocaram em andamento
acontecimentos que se tornaram inevitáveis, falta
ainda decifrar a identidade do misterioso italiano,
falta perceber o que a morte do Alfa significou, e
falta acima de tudo entender quem é que o próximo
Alfa se irá tornar.
Numa cidade a beira do mondego plantada, estas
dúvidas serão esclarecidas nas breves páginas que

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se seguem, mas começo por fazer uma simples
pergunta:

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O que nos define afinal de contas? O nosso
passado, o que nós passamos, as nossas
dificuldades, as nossas derrotas, as nossas vitórias?
A nossa linhagem de sangue, se temos sangue azul
somos á partida pessoas com maior sucesso na
vida, e se nascemos entre as palhas num celeiro
numa pequena vila, somos destinados a viver
sempre nas sombras? Ou será ainda, a realidade
que nos rodeia, as pessoas com quem nos damos,
os nossos amigos e familiares, se forem pessoas
“perfeitas”, nós também o seremos, mas pelo
contrario se nos rodearmos por drogados,
assassinos e mentirosos, somo exatamente como
eles, a população até criou uma expressão para
isto, uma não, duas, “diz-me com quem andas, dir-
te-ei quem és”, “junta-te aos bons e serás como
eles, junta-te aos maus e serás pior do que eles”.
Torna-se perigoso afirmar que isto é verdade,
porque se assim for, a nossa personalidade pouco
importa, se somos sempre levados pela corrente em
que nadamos, por que razão nos tentam ensinar o
correto? Se corremos sempre o risco de ir pelas
ideias dos outros, de nada serve uma educação de
bons princípios…, mas quem sou eu para falar, um
preso, irmão do que muitos chamam, do pior
demónio do nosso seculo, o meu irmão Felipe
partiu á quinze anos e dez meses, e deixou-me a
mim a missão de continuar a sua grandiosa
missão…, mas será que o meu futuro se prende
com o mesmo futuro dele, estarei destinado e
acabar como ele? Como um monstro?
A minha casa nos últimos tem sido esta cela, com
pouca decoração e de uma cor cinzenta em toda a
sua extensão, apenas com um beliche onde durmo

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eu e o meu colega de cela, também ele um forte
apoiante da causa do Felipe, as nossas roupas,
sempre as mesmas, cor de laranja, trocamos de
roupa uma vez por mês quando temos sorte, eu
durmo sempre na parte de cima do velho beliche
que range por todos os lados quando nos deitamos
em cima dele, até já saltaram alguma molas e
alguns parafusos dele, mas nada me assusta, o pior
que me pode acontecer é cair em cima do meu
companheiro, ele sim ficaria mal tratado porque
bateria com o costado no chão. As nossas refeições
feitas no refeitório, onde parece que voltamos á
escola primária, onde temos que entrar em filinha,
todos bonitinhos e se reclamarmos somos punidos,
agora não com uma advertência que na verdade
não servia para nada, mas sim com uma belas
lambadas dadas no lombo, o comer em si não é
mau de todo, bem depende dos dias, quando as
cozinheiras realmente perdem tempo a cozinhar ele
sai bem, mas quando fazem a pressa e
simplesmente se estão a marimbar para a nossa
saúde e bem-estar, o comer parece ter sido comido
e deitado fora por cães e só depois colocado em
cima do nosso prato, uma triste realidade que
muita gente não conhece, afinal de contas, muita
gente diz, “ir para a prisão é uma coisa boa”, como
se estar preso e perder toda e qualquer liberdade
fosse algo positivo, é verdade para quem é
masoquista ou simplesmente nunca provou o sabor
da liberdade, vir parar a um estabelecimento
prisional até pode ser algo afável e doce, mas para
pessoas como eu que nunca se virão de tal forma
mal tratadas e presas é um puro inferno, mas está

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quase a acabar, faltam apenas dois meses para sair
daqui!
Os dias de Hugo eram passados entre a cela, onde
já tinha escrito e rescrito inúmeros diários, onde
falava de tudo um pouco, mas de entre todos os
temas que la apareciam retratados um era comum a
todos os dias, o seu irmão perdido dentro dos seus
próprios monstros e as suas amizades perdidas no
tempo, e o ginásio onde tentava por tudo ficar com
uma forma física apresentável e digna de um chefe
de “gang”, porque afinal de contas era isso que ele
era agora, bem ainda não o era, mas estava perto,
os dias que compuseram os últimos dois meses de
prisão pareciam indetermináveis, isto se calhar
também acontecia porque estávamos no verão, e a
hora de recolher era mais tarde, quando já se fez de
tudo, quando já se contaram todas as histórias que
se podiam contar sobre o todo-poderoso que era
admirado por grande parte dos presidiários, resta
pouca coisa a se fazer.
Fisicamente Hugo, até já tinha ultrapassado Felipe,
tinha todos os músculos bem definidos, barriga
“trincada”, braços embora não muito largos, fortes
o suficiente para levantar até o peso mais pesado
do ginásio do presidio, o longo cabelo tinha
desaparecido e dado lugar a um corte mais
atualizado, uma espécie de escada era construída
com diferentes tamanhos de cabelo na parte lateral
da cabeça, deixando o cabelo mais longo em cima,
penteado sempre ligeiramente para a direita, a cor
negra do mesmo tinha dado lugar a algumas
madeixas douradas nas pontas.

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Realmente tinha mudado bastante, quem não o
tivesse acompanhado nesta mudança, dificilmente
o reconheceria, as vezes a pergunta do que Felipe
ia achar desta mudança, surgia no ar.
Durante o tempo em que esteve dentro daquele
sitio, ao qual teve de se habituar a chamar de casa,
não só criou relações quase de feudalismo se assim
podermos dizer, todos os que possuíam a tatuagem
do lobo-negro como as redes sociais e os media lhe
começaram a chamaram, deviam-lhe vassalagem,
para todos os efeitos, ele era o Alfa por direito,
mas estas relações eram facilmente colocadas em
causa, afinal de contas sempre que olhamos para
alguém numa posição de poder desejamos colocar-
nos ao seu lado, ou mesmo no seu lugar, assim
sendo e tomando por exemplo o que se tinha
passado com Felipe, tentou criar ligações mais
fortes, ligações de amizade, sim ele era
homossexual, mas tinha deixado o amor
completamente de lado, queria amigos e não
amantes, afinal de contas o amor é o mais perigoso
e mais destrutivo dos venenos, e digamos que é
docemente fabricado, primeiro sabe-nos ao mais
doce dos sumos do mundo, deixa-nos
completamente rendidos ao seu cheiro e ao seu
sabor, cria-nos água na boca diariamente e somos
capazes de fazer tudo para beber uma vez mais
daquela fonte que parece indeterminável, e quando
damos por ela, bebemos desse sumo todos os dias,
a toda a hora e deixamos que ele nos percorra sem
qualquer obstáculo, tornando-se por vezes mais
importante do que o próprio sangue, e depois que
chega a este ponto, meus caros não há nada a fazer,
deste momento para a frente só tende a piorar, não

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tarda para sentirmos o seu real sabor, um sabor de
magoa e angustia, de lágrimas e dores
insuportáveis, de um veneno que mata tudo o que
existia antes dele e condena tudo o que vem
depois, mas não é disto que tenho que vos falar,
tenho que vos falar dos dois braços direitos de
Hugo, pessoas pela qual ele daria a vida e sabia
que eles fariam o mesmo.
Lazaro, um preso por roubo e assassinato, um
“armário”, como todos o caracterizavam, com o
seu metro e noventa centímetros, os seus músculos
não muito desenvolvidos mas proporcionais ao seu
tamanho, cor de pele escura, poucos cabelos na
cabeça, extremamente bem alinhados bem como a
sua barba, esta negra como o vestido de uma viúva
no dia a seguir a perder o seu marido, temo que
este exemplo esteja desatualizado, mas isso não
importa, vestia sempre roupa de cor oposta a sua
pele, de noite facilmente se viria a sua roupa, mas
muito dificilmente se conseguiria ver a feição ou a
emoção na cara dele, raramente mostrava o que
sentia e muito menos espelhava em palavras isso
mesmo, em muito pouco concordava com as ações
da alcateia, mas por alguma razão sentia que devia
seguir aquele jovem líder, os sentimentos são
armas perigosas, que ou nos tornam indestrutíveis
ou nos tornam drasticamente frágeis, por segurança
ele tentava esconde-los ao máximo, vá-se la saber
o que ele iria passar caso demonstra-se.
Samuel, para os conhecidos simplesmente Sam,
digo conhecidos porque ele raramente conseguia
diferenciar os dois, dava muita confiança a toda a
gente, segundo ele na sua vida tinha apenas três

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grupos de pessoas, os inimigos, os conhecidos e a
família, estranhamente ou nem por isso, os
membros ligados por sangue, encontravam-se no
grupo dos conhecidos, ele escolhia a sua família,
dava a sua vida por eles, mas era mais comum
pedir para que eles dessem a deles por ele, era uma
bomba atómica, quase todos os dias arranjava
problemas dentro da cadeia, apesar do seu pequeno
metro e sessenta, era capaz de derrubar o mais alto
dos gigantes, por vezes ficava com um olho negro,
menos um dente ou simplesmente de cama, mas
nada disso fazia com que ele parasse, cabelo
arranjado, muito parecido ao que Hugo tinha
atualmente, olho claro e barba mal semeada pela
face, uma estranha cicatriz, quase irreparável a
olho nu acima da sobrancelha esquerda, um
autentico playboy, embora que isso dentro da
cadeia não servisse de muito.
Na última terça-feira antes de Hugo ser libertado,
estavam os três prisioneiros sentados nos pequenos
bancos que existiam no recreio, entre gargalhadas e
pequenos murros nos ombros em sinal de amizade
lá se ia passando a tarde, estava um sol escaldante
no céu e pequenas sombras que se pudessem
aproveitar, Hugo escolhia sempre a mesa com
menos probabilidade de apanhar a doce e fresca
sombra, era sempre maltratado por isso, mas a
resposta dele era sempre a mesma:
- Se eu não for capaz de dar o mais doce dos
frutos aos que depositavam a sua confiança em
mim, que tipo de líder serei?
- Um líder racional, neste momento és apenas
um líder estupido e masoquista – respondia Sam,

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abrindo todos os botões do polo que trazia vestido,
usava um pequeno lenço que tinha no bolso para
limpar o suor – mas poe masoquista nisso,
condenar os teus mais próximos subordinados ao
calor devastador do verão português.
- O poder tem o seu preço, se és como tu dizes
um subordinado direto, tens de pagar pela posição
– soltando um pequeno sorriso.
Com o suor a escorrer pela sua pela negra, Lázaro
sem esboçar qualquer emoção, diz baixo, mas
suficientemente alto para que o ouvissem:
- Deixa-o falar Hugo, isto é, do calor e daquele
cabelo esquisito que ele tem, até já diz palavras
caras e tudo, qualquer dia, trata-nos por você e
cumprimenta-nos com dois beijinhos na cara, eu
vou começar a ter cuidado á noite, vá-se lá saber.
Os risos tomaram conta da mesa, apesar de tocar
num ponto complicado, como fora tocado entre
amigos, tinha sido levado na brincadeira. Sam,
com o olhar fitado na cara de Lazaro e com as
sobrancelhas curvadas em sinal de desdém,
aguentou pouco tempo esta postura, deixando sair
o seu contagiante riso que mais se parecia com a
sirene de uma ambulância do que com um riso
verdadeiramente humano, os três amigos riram e
riram, sentiam-se bem, depois de mais conversas
paralelas e mais gargalhadas e mais “bicadas”
amigáveis, Sam colocando a mão em cima do
ombro de Hugo disse:
- Vou sentir saudades disto, tu sábado vais-te
embora, este pequeno sítio vai ficar vazio sem ti,
mas espero que cumpras a promessa que nos

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fizeste no dia em que juramos amor eterno á tua
causa…
- Podem ficar descansados, não desfadigarei
enquanto não vos tirar daqui, ainda tenho alguns
conhecimentos do tempo de Felipe, talvez eles me
ajudem e caso não o façam, tomarei este sítio pela
força.
Os olhos de Sam brilhavam ao ouvir aquilo, era um
apoiante do extremismo, via as ações de Felipe
como necessárias e não como monstruosas, na sua
mente via-se a entrar pelas portas da cidade, com
armas em punho lado a lado com Hugo, para matar
todos os infiéis e espalhar a sua vontade, desejava
poder e sangue acima de tudo, mas os seus sonhos
foram bruscamente interrompidos por Lazaro,
novamente com voz calma falou:
- Aprecio que mantenhas a tua promessa, mas
não te esqueças do que nos disseste, não queres ser
uma imitação barata do Felipe, ele escolheu a força
porque assim tinha que ser, tu tens outra
capacidade, traça o teu caminho, que nós iremos
atrás, não é o passado que nos define, mas sim o
que decidimos fazer com o futuro, foste tu que me
ensinaste isso, não te esqueças.
De dentro do edifício protegido contra o frio e o
calor, modernizado e composto por grandes janelas
de vidro que permitam ver de dentro para fora sem
grande esforço, mas que impossibilitavam o
contrario de acontecer, com alicerces na antiga
prisão, mas deixando completamente o passado
para trás, possuía duas grandes arvores colocadas
ao pé da entrada que dava para o pátio, dois

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chorões que se abraçavam e formavam uma
proteção contra o sol e a chuva, pareciam dois
amantes presos eternamente um ao outro, nunca
aquelas magnificas arvores tinham sido cortadas ou
aparadas, tinham sido deixadas crescer livremente,
no seu tronco ainda estavam muitas iniciais
marcadas, ao longo dos anos todo e qualquer
prisioneiro que fosse libertado deixava lá a sua
marca, de forma a relembrar o mundo que mais
uma vitima tinha saído daquele inferno. A cidade
tinha mudado muito nos últimos anos, nalguns
pontos tinha melhorado, mas noutros nem tanto,
depois de Los Santos morrer e os seus seguidores
também, a câmara tinha sido entregue a diversos
partidos sem fundamento durante os meses
seguintes, as lutas internas entre os mesmos
tinham-se agravado ainda mais, definir a esquerda
e a direita ideologicamente tornava-se complicado,
os problemas sociais e humanos tinham também
eles agravado, a fossa entre os ricos e os pobres era
destruidora, a descoberta das catacumbas depois da
explosão que acontecera dezasseis anos atrás, em
nada tinha beneficiado o povo como Felipe
desejava, o ouro tinha sido distribuído pelos mais
ricos, e as catacumbas tinham-se tornado o local de
trabalho dos mais pobres, uns como mineiros a
explorar e a esgotar até ao ultimo minério que la
pudesse existir, outros a trabalhar como membros
do agora enorme museu Machado de Castro que
fazia visitas guiadas por toda a cidade, o numero
de mendigos aumentava a cada semana que
passava, muitos deles sem comer, outros sem
terem sequer o que vestir, não só de adultos se
tratava, crianças desde muito novas a percorrer as

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ruas da cidade a pedir por dinheiro para comer, de
facto a criminalidade tinha descido
consideravelmente desde da chegada da Alcateia,
mas a pobreza só tinha aumentado, com medo de
praticar tais atos obscenos que tinham conduzido
centenas a morte em haste publica, preferiam o
mendigismo face ao roubo ou a prostituição.
Mas quem vive na prisão, vive num inferno
diferente e as notícias que entram para dentro da
mesma são meticulosamente controladas, Hugo
não fazia a mínima ideia do que a obra de Felipe
tinha feito a sociedade atual, mas estava prestes a
conhecer.
De edifício da prisão que vos falei a pouco, saiu
um guarda prisional, com todo o seu típico
armamento e a sua sujamente reluzente farda, com
as mãos nos bolsos e com o olhar colocado no chão
por detrás dos seus redondos óculos de sol que
refletiam uma cor azul para quem os olhasse de
frente, avançando poderosamente por entre os seus
presos, olhava com desdém para cada um deles, o
olhar era retribuído, afinal de contas eram aqueles
fantoches que os acordavam diariamente, que os
castigavam quando alguma coisa acontecia, não
era lei suprema que vinha bater nos presos, não era
a lei suprema que tinha de castigar ate inocentes de
um roubo de pão, mas quem trabalha para ela,
acaba sempre por ser considerado mais culpado.
Quando chegou ao pé dos três amigos colocados
mesmo debaixo do poderoso e hostil sol,
levantando os olhos e fixando-os no céu começou a
falar com um tom de superioridade:

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- Vocês ou são totalmente doidos, ou então
desejam morrer, em qualquer um dos casos não me
interessa, trago aqui uma mensagem para este
galito rafeiro – gesticulando para Sam – a tua
namorada está lá fora e quer-te ver, diz que não se
vai embora sem tu ires lá, da última vez bateu em
três guardas e acabou internada durante uma
semana num hospital psiquiátrico, desta vez não
tolerarei isso, vai lá matar o fogo a rapariga.
Revirando os olhos e levando as duas mãos a cara,
apoiou-se nos joelhos e começou a abanar
freneticamente a cabeça:
- Outra vez ela não! Eu terminei tudo com ela
antes de vir para cá, não sinto nada por ela, aquela
sua cabeça esta completamente perdida, ela é
paranoica, devia estar ela presa no meu lugar!
- Isso é que era assunto, fazia melhor serviços do
que tu de certeza, mas deixa-te de lamurias e vai lá,
ninguém te manda ser irresistível – soltando um
fraco sorriso. Lazaro.
Os sorrisos tomaram conta de todos os que
ouviram aquelas palavras, Hugo desviou o olhar
em direção ao céu, cerrando os lábios de forma a
evitar que as gargalhadas voassem livremente, até
o cerrado olhar do polícia começou a dar sinais de
felicidade, Sam ao ver aquilo só deixou cair a
cabeça e encolhendo os ombros lá se levantou e
seguiu o polícia, quando já estava perto da saída do
pátio, Hugo desce o olhar e grita:
- Tem juízo Sam, não quero ser padrinho!

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Como resposta recebeu apenas o dedo do meio da
mão direita, a gargalhada voltou a esvoaçar por
todo pátio, enquanto todos se riam da desgraça
alheia Hugo parou o riso e começou a olhar a sua
volta, e ao contrario do espectável não viu
monstros como a sociedade via, não viu assassinos
nem ladrões, viu pessoas, boas pessoas, pessoas
com dotes únicos, uns sabiam cantar, outros
sabiam dançar e outros sabiam apenas fazer
palhaçadas, mas sabiam arrancar risadas, ele
imagina todos aqueles homens juntos á beira de um
café, a beberem uma cerveja que borbulhava e
brilhava sobre a luz do sol, via-se a perder uma
tarde e quem sabe uma noite em conversas vãs
com eles, alguns tinham cometido mesmo crimes
graves, mas outros simplesmente estavam lá por
causa de erros infantis que tinham cometido por
necessidade, ou pelas inúmeras lacunas que
existem na lei que rege o pais, uma leia que
protege os ricos e poderosos e destrui as vidas já
destruídas dos pobres. O olhar percorreu cada um
dos presentes e novamente um sorriso apareceu no
seu resto, era daquilo que Felpe falava, tinha morto
muitos ladroes é verdade, mas por cada morte que
causava era um rio que chorava, matar inocentes
era horrível, mas o que contava nos pensamentos
de Hugo não era o que o Alfa tinha feito, mas sim
o que Felipe defendia, e este sempre defendera
todos por igual, mesmo os que matavam, segundo
ele, todos merecem uma segunda oportunidade,
afinal de contas ninguém e perfeito e todos
cometem erros…A compaixão tinha conseguido
coexistir na perfeição com as sombras, apenas
Felipe tinha conseguido fazer isso, o orgulho e a

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pressão só aumentavam nas costas de Hugo, que
começava a duvidar da sua própria capacidade, não
sabia quem seguir verdadeiramente enquanto líder
da alcateia, se seguia Felipe e apagava a imagem
negra do que se tinha passado á dezasseis anos, se
se tornava um Alfa, uma fotocopia do monstro que
destruiu e tirou tantas vidas, mas tinha que se
decidir rapidamente, na segunda-feira seguinte já
estaria solto e nessa altura tinha de saber quem era,
ou quem queria ser…
Passados quase trinta minutos, retornou ao pátio
Sam, com a cara toda marcada de batom, parte do
vestuário fora do sítio e com uma cara de
desenterrado que na noite de Halloween daria uma
ótima fantasia, com uma feição de desespero,
parecia que não tinha dormido durante dias, com o
cabisbaixo e completamente desajeitado a andar,
enquanto se dirigia para o pé dos seus mais
próximos companheiros, com movimentos em
ziguezague, batia em tudo o que não se desviava
dele, a meio do pátio, uma enorme pedra que
facilmente seria ultrapassada, bastava levantar os
pés, mas naquele momento isso era pedir demais,
quando os seus pés arrastados tocaram no calhau
que teimosamente estava preso ao chão, o seu
corpo projetou-se em direção ao chão, já todos
estavam a preparar os diafragmas para soltar altas
gargalhadas, mas o seu corpo não encontrou o
chão, encontrou sim o corpo de Lazaro, que
subitamente e sem ninguém notar tinha-se
aproximado para evitar a queda do amigo, com um
olhar petrificante, fez com que Sam se recupera-se,
ajudando-o a equilibrar-se em cima das pernas,
acompanhou-o até ao banco onde estavam.

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Depois de se sentar Sam levou o seu olhar a
percorrer as feições dos seus companheiros, e
mesmo que tentasse, não conseguiu e começou a
soltar um pequeno sorriso, que pouco a pouco foi
subindo e crescendo acabando como um conjunto
de gargalhadas descontroladas, contagiantes, Hugo
seguiu-lhe o exemplo e também ele se perdeu no
meio das gargalhadas, Lázaro também, não com
gargalhadas, mas com um sorriso honesto.
Quando as gargalhadas deram lugar a respiração
profunda, e a normalidade, seja ela o que for,
tomaram novamente conta dos seus corpos, Lázaro
tentou colocar lenha na fogueira para arder mais
um pouco:
- Então, resolveram as coisas?
- Já estavam mais do que resolvidas, ela é que é
doida! – Começando a limpar as marcas de batom
que tinha na face.
- Ninguém diria, mas se o dizes eu acredito, pelo
menos levaste um abanão como já não levavas á
muito! – Parecendo procurar algo, inexistente, no
ar.
- Vê lá se quem leva um abanão não és tu –
cerrando o punho e esboçando mais um sorriso.
- Gostava de ver minorca – olhando com pena
para ele.
Os dois amigos pegaram-se em disputas verbais e
mesmo algumas disputas físicas, pouco justas estas
últimas, Lázaro conseguia facilmente colocar Sam
debaixo do seu braço, cerrando o punho em cima

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da cabeça dele, Hugo a ver aquele lembrava-se da
sua infância, aqueles gestos eram idênticos ao que
ele fazia quer com a sua irmã, que com Felipe, a
emoção transbordava, sorrisos ingénuos apareciam,
e sem controlar as suas palavras soltou:
- Vou sentir saudades vossas raparigas – estas
palavras fizeram com que a disputa parece por
momentos, olhares confusos cruzaram-se em
direção a Hugo, mas rapidamente voltaram a ação,
pareciam duas crianças a brincar.
Os últimos dias na prisão, foram passados todos
em plena alegria, todos os dias pequenos grupos
cantavam, outro pequeno dançava, até alguns
guardas se juntavam para as celebrações, todos
prestavam a última homenagem ao poderoso Alfa,
Hugo ficava incomodado com tudo aquilo, mas
fazia o máximo para não se notar, sentia que aquilo
era demasiado para ele, afinal de contas, não era
nada mais do que aqueles que lhe prestavam
vassalagem, durante dezasseis anos foram irmãos a
passar juntos pelo mesmo inferno, passaram pelas
mesmas dificuldades, pelos mesmos abusos, eram
iguais!
Na manhã de sábado, por volta das sete da manhã,
um guarda fora a cela de Hugo na esperança de o
acordar de forma abrupta, já levava na sua mente
mil e uma maneiras de o fazer saltar da cama, mas
todas essas ideias, saíram furadas, quando chegou
á frente do cubículo, onde Hugo tinha vivido nos
últimos anos, já ele estava levantado e pronto para
fazer o processo de libertação, saindo como um
Homem livre, sem algemas, sem armas apontadas,
percorreu os corredores em direção ao mundo dos

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vivos, sabia que não teria a ultima despedida que
tanto desejava, ia de cabisbaixo a olhar para as
celas, pensando que todos os presos estavam ainda
a dormir, como seria espectável, mas o mundo esta
repleto de supressas, quando passou a frente da
cela onde estavam colocados Lazaro e Sam, ouviu
a calma voz galã do mais pequeno dos amigos:
- Não te esqueças da tua promessa, se te
esqueceres quando sair daqui estás feito ao bife! –
Aparecendo ao pé das grades, com um sorriso
estampado na face.
- Não me esquecerei meu amigo – começando
também a sorrir – farei o possível e o impossível
para vos tirar daqui!
- Não te esqueças de quem queres ser, nós
podemos esperar, vai colocar as contas em dia com
o mundo exterior primeiro. – Fazendo aparecer as
suas largas mãos á luz e de seguida a sua cabeça,
Lázaro, sempre com o seu olhar fixo e cara
fechada.
Com ternos sorrisos se despediram, Hugo foi
acompanhado até a saída, quando chegou á porta
que dava para o mundo livre ao qual voltava a
pertencer travou o passo, ficando quase paralisado
a olhar para a porta, com um saco com a sua roupa
colocado as costas, começava a sentir o seu corpo a
tremer por todos os lados, o guarda que tinha sido
colocado para o a acompanhar até a saída, com um
riso estranho na cara comentou:
- Já acompanhei muita gente ao longo deste
corredor e ninguém paralisou tão perto da
liberdade, mas acho que te percebo, afinal de

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contas não fazes a mínima ideia do que vais
encontrar do outro lado da porta, o mundo muda
imenso em dezasseis minutos, quanto mais em
dezasseis anos, mas está na hora, ainda para mais
tu que tens um papel tão importante como toda a
gente diz, não podes refugiar-te para sempre na
sombra de quem tu tens que ser! – Dando-lhe um
pequeno toque nas costas, fazendo-o aproximar-se
ainda mais da porta.
Engolindo em seco, respirando fundo e alongando
os ombros, lá abriu a porta e saiu em direção á
cidade que tão bem conhecia, o sol que sentiu era
exatamente o mesmo que sentia todos os dias no
pátio, mas este parecia ser diferente, mais quente,
mais fraterno, olhava para o céu e ouvia os
pássaros a cantar, e pela primeira vez em muitos
anos era parecido com eles, não por saber voar,
nem por ser infinito, mas por ser livre, percorreu o
espaço a sua volta uma e outra vez, atirou o saco
contra o chão e colocou as mãos encostadas ao
alcatrão ainda fresco, por ter sido aquecido ainda
muito pouco pelos raios de sol noviços, olhou para
as pessoas que passavam, ainda muito poucas se
viam pelas ruas, a cidade ainda estava a acordar, e
todas as que passavam por ele, olhavam-no com
desdém, afinal de contas agora o rotulo que parecia
trazer ao pescoço era “ex-presidiário”, e as
pessoas, apesar de se terem passado dezasseis
anos, não melhoraram nada, continuavam a julgar
sem saber e a autocolocar-se em bolhas de
superioridade, mais frágeis do que uma peça de
porcelana atirada com brutalidade contra o chão,
afinal de contas, o ego torna-se sempre a coisa
mais fácil de alimentar.

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Um homem, mais ou menos com a idade do Hugo,
olhava para toda aquela cena, com um estranho
sorriso na cara, completamente calvo, cheio de
tatuagens, trazia vestida uma camisola de cavas
branca com um enorme número nove a frente
circundado por linhas amarelas, óculos de sol
pretos e algumas pulseiras no braço esquerdo,
atirava calmamente um anel em direção ao ar e
voltava a apanha-lo, o anel, esse em forma de leão,
parecia já massacrado pelo tempo, por mais do que
uma vez o anel quase fugiu das suas mãos, depois
de deixar aquela cena durar quase dez minutos
finalmente aproximou-se, com uma voz
extremamente calma e um pouco roca disse:
- A minha reação foi um pouco diferente, mas
percebo a tua, afinal de contas este sítio é mais
bonito do que aquele que eu vi quando fui
libertado – soltando um pequeno sorriso.
- E tu és? – Caindo de novo em si Hugo,
agarrando de novo no saco e colocando-se de lado
para o homem que agora estava a apenas meia
dúzia de metros dele.
- Não fui eu que mudei drasticamente, mas
percebo-te, passaram-se dezasseis anos, e da última
vez que me viste estava de farda e de boina, eu sou
o Beta do Felipe, sou o jovem comandante que
estava naquela noite da praça, fui eu que vos
mandei retirar do meio da multidão, fui eu que
substitui o Rodrigo como chefe máximo da polícia!
- Agora que falas, começo-me a lembrar, eras o
terceiro na hierarquia da alcateia, não é isso? –
Pousando o saco novamente no chão.

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- Não te acomodes, vamos conversar para outro
lado, tens muito que saber, o Felipe deixou-me
encarregue de te tornar um verdadeiro Alfa.
Virando-lhe as costas, dirigiu-se para um pequeno
carro branco, rebaixado e completamente alterado,
com jantes colocadas posteriormente, com um
barulho ensurdecedor e uma quantidade de fumo
que saía do escape fora do normal, por dentro um
carro confortável, com os acentos revestidos em
cabedal, os da frente com um padrão leopardo,
bem uma espécie, porque já estava bastante
desgastado, e os de trás cobertos por uma manta de
penas, pendurado no espelho retrovisor, uma
pequena palmeira que tinha como objetivo
aromatizar o ambiente, mas novamente falhava
miseravelmente, o volante revestido também com
uma proteção de esponja de forma a não magoar as
mãos, embora grande parte das vezes dificultasse a
condução no seu todo.
A medo e analisando cada toque e retoque do
interior do carro lá acabou por entrar, franzindo o
sobreolho tentou colocar o cinto que teimosamente
não se mexia, depois de imensos puxões alguns
deles de forma até bastante agressivos lá se
conseguiu colocar em “segurança”. Depois de
muitas voltas lá chegaram ao destino, com uma
visão sobre a cidade estacionaram o carro, estavam
no miradouro de Coimbra, dali conseguia-se ver
toda a cidade em todo o seu esplendor, a
universidade como marco da cidade, as ruas
estreitas que fazem possível lá chegar, e depois
todas as pequenas casas que cada uma com o seu
toque especial pintam o quadro da cidade de

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Coimbra de uma forma única, a visão era parecida
com a que Hugo tinha quando vinha a porta da sua
“casa” há dezasseis anos, só que alguns metros
acima, visto do alto todas aquelas majestosas
casas, o poderoso rio e até a imponente
universidade parecem reduzidos a simples objetos
de bolso, sem nunca perderem a sua beleza.
Quando chegaram estacionaram o carro mesmo
encostado aqueles bancos de pedra com dois
acentos colocados frente a frente, com o intuito das
pessoas se sentarem, falhando mediocremente
nessa intenção, as pessoas quando decidam ir lá,
faziam as ditas visitas de “medico”, estacionavam
tiravam algumas fotos e depois saiam em direção a
casa, um dos espaços mais bonitos da cidade
deixado ao abandono e sem qualquer força turística
na cidade, mais um plano falhado!
Depois de desligar o carro, saíram os dois do carro,
Hugo com o olhar sempre semicerrado colocou-se
lado a lado com o misterioso homem que embora
lhe parecesse familiar não conseguia trazer a luz da
memória de onde era essa familiaridade, este
mantinha o olhar fitado na cidade, com um
estranho sorriso na cara, parecia estar a deliciar um
quadro pintado por Van Gogh ou por Picasso,
depois de algum tempo assim dirigiu-se á mala do
carro de onde tirou duas latas de cerveja ainda
frescas, na mala trazia duas arcas congeladoras,
colocadas sobre uma manta de pelo com feitio de
leopardo, fora as caixas tinha um extintor e uma
pequena navalha muito mal tapada por um
conjunto de guardanapos cor-de-rosa, depois de
fechar a mala com força, fazendo um forte

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estrondo ecoar pela estrada vazia, atirou uma das
latas para os braços de Hugo que com muita
dificuldade lá o agarrou.
- Bebe. Faz bem. – Abrindo a sua e bebendo-a
quase toda de uma vez.
- Não quero, não sou de beber e muito menos
logo de manhã. – Colocando a bebida em cima do
carro.
- Pelos vistos não mudaste nada nestes dezasseis
anos, diz-me, não fazes a mínima ideia de quem eu
sou, pois não?
- Não, e começo a ficar preocupado com esse
suposto conhecimento que tens sobre mim e sobre
o Felipe! – Afastando-se um pouco dele.
- Vocês são muito diferentes mesmo, ele
reconheceu-me mal me viu naquele dia á dezassete
anos, mas tu tardes em reconhecer-me, talvez tenha
de te contar a história desde do inicio mas para isso
convém sentares-te – sentando-se nos bancos de
pedra, e fazendo o gesto para que Hugo fizesse o
mesmo, mas recebeu um aceno negativo com a
cabeça como resposta – bem tu é que sabes, para tu
perceberes tenho de voltar aquela noite, uma noite
típica de Coimbra, nem muito fria nem muito
quente, mas isso pouco importa, eu tinha entrado
ao serviço na “Toca” por volta das sete da tarde,
sabia que só ia terminar depois das quatro da
manhã, arrumar aquela sala depois de ela estar
cheia de bêbados e drogados era uma missão
terrivelmente nojenta para dizer o mínimo, mas
naquela noite eu e todos os empregados tínhamos
recebido uma missão especial vinda diretamente do

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chefão, era muito raro o Los Santos nos dar algum
tipo de indicação, por isso quando o fazia sabíamos
que deveria ter história por trás, naquela noite
recebemos um jovem, um jovem diferente,
aguentou muito até cair nas tentações daquele
espaço, fui eu que recebi o Felipe, o olhar dele
pareceu-me familiar mas tal como tu tardei em
reconhecer alguém que conhecia desde de
pequeno, na primeira noite falamos apenas de
cliente para empregado, ele começou a fazer
perguntas que não devia, mas ao contrário do que
acontecia com as outras pessoas que o fizessem,
nele nunca tivemos ordem nem permissão para
tocar, e aquilo durou algumas semanas, mas a
nossa relação começou logo na terceira noite em
que ele apareceu lá, sentado numa mesa encostada
ao fundo da sala, parece que ainda estou a ver o
espaço, ricamente adornado com tons sempre a
fugir para o dourado, parecia uma sala de jantar
dos reis, bastava roubar uma das cadeiras e eras
rico, mas se fosses apanhado a única riqueza que
podias esperar era um tiro no peito, nesse noite ele
chamou-me, eu pensei que fosse para pedir mais
uma garrafa de água, que era o que normalmente
ele pedia, nos primeiros dias, quando ia sozinho,
mas não era essa a sua intenção, pela primeira vez
neste fim do mundo alguém me tratou pelo nome,
Tiago ele me chamou e assim me prendeu á
cadeira, com a voz calma que sempre apresentava
questionou-me o que tinha acontecido para eu ter
ido parar a um sitio como aquele, e com a cara que
tu apresentas desde do inicio da nossa conversa
também eu fiquei, mas rapidamente percebi com
quem estava a conversar, quando ele contou a sua

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história… - levando a lata aos lábios bebendo o
resto que lá estava – ainda hoje me pergunto como
é que ele me reconheceu, principalmente se um dos
membros do meu próprio gangue não o faz – os
olhos de Hugo começaram de forma estranha a
viajar no tempo e a encontrar parecenças de um
velho e distante amigo, perdido na vida, no rosto
daquele desconhecido que começava novamente a
sorrir.
- É impossível, não pode ser, como é que tu?
Não, não pode ser… eu vi-te no chão inanimado,
eu vi-te como morto.
- Finalmente reconheceste-me meu amigo, é
verdade naquela tarde de verão tive cara a cara
com as portas do inferno, mas ainda não tinha
chegado a minha hora, eu vi-te a fugir e vi o nosso
bom amigo moribundo no chão ao meu lado, mas
eu consegui ganhar forças para sair de lá, nenhum
de nós deveria ter morrido naquele dia, ou
morríamos todos ou não morria nenhum, mas a
vida teimou em fazer a sua vontade prevalecer,
ambos mudamos muito desde daí.
- Muito mesmo – acorrendo para lhe dar um
abraço sentido, uma tímida lagrima veio até às
janelas da alma, mas aguentou-se da parte de
dentro – mas o que se passou contigo meu irmão?
- Depois daquele fatídico dia eu procurei um
esconderijo, um sitio onde ninguém ligasse para as
minhas cicatrizes, quer as visíveis, quer as
invisíveis, fugi para a cidade, onde achei que seria
bem recolhido, fosse qual fosse o caminho que
escolhesse, afinal de contas, todos os que vivem

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nas sombras vivem mais, mas a fome e a falta de
dinheiro quase me condenaram novamente, roubei
para comer e não tenho receio de o admitir, bem
dizendo até me encontrar novamente com o Felipe
só me faltava matar, mas ele fez favor de me
ensinar que o maior pecado é não ter pecado
algum, consegui viver assim durante algumas
semanas, mas não era vida estável nem saudável,
rapidamente as feridas mal curadas começaram a
dar sinal, hematomas, sangue pisado e infeções
colocaram-me no leito na morte na beira de uma
estrada desta linda cidade, mas uma vez mais a
minha hora não tinha chegado, um anjo desceu dos
céus para me recolher, uma velha senhora que
morava numa casa na praça, já deves ter ouvido
falar dela, foi a mesma que ajudou o Felipe e
Teresa, a mesma que morreu às mãos do Los
Santos, durante bastante tempo cuidou de mim,
deu-me de comer, tratou-me das feridas com uma
mestria que nunca tinha conhecido a ninguém,
tratou-me como um filho e foi a mãe que durante
muito tempo não tive, mas sabes como eu sou, ou
pelo menos sabias quem eu era, nunca gostei de
viver as custas de ninguém e então arranjei um
emprego, trabalhava de noite para conseguir juntar
algum dinheiro a mais, e numa noite de luar
belíssimo cheguei a casa e dei com a minha
senhora morte em cima da cama, era uma cena
horrorizante, muitas vezes o meu estomago andou
as voltas e muitas vezes as minhas lagrimas o
contiveram, chamei a policia e os paramédicos na
esperança de que aquele corpo mesmo
desmembrado, mesmo quase sem sangue tivesse
vida, mas não, ela estava mais do que morta, estava

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quase apagada do mapa, literalmente, quando se
procurou um testamento alguma coisa, encontrou-
se o falso testamento que o Luís Los Santos tinha
construído, eu vi a velhota a escrever o verdadeiro
testamento, ela deixava-me a mim e ao Rodrigo
toda a sua herança, muitas vezes o reneguei, mas
sabia que de nada valia, naquela noite voltei a
perder o chão, fiquei na rua novamente, ainda
muitas noites dormi de forma clandestina naquela
casa, juro-te que por vezes ainda ouvia os gritos
dela, mas isto era frutos da minha cabeça, estava
novamente sem nada para comer, sem nada onde
viver, foi então que um homem, todo-poderoso me
apareceu á frente, no intuito de me oferecer
trabalho, por isto é que eu costumo defender que
nenhum homem é cem por cento monstro nem cem
por cento santo, apenas é moldado segundo as
circunstância, naquele dia vi um monstro a dar-me
a mão, aceitei de imediato, não fazia a mínima
ideia de que tinha sido ele a colocar-me naquele
inferno novamente, se soubesse te garanto pela
alma daquela boa senhora que não tinha dado a
honra nem oportunidade ao Felipe de o fazer, mas
enganado por um lobo numa pele de cordeiro
aceitei ir trabalhar para o ninho de cobras, e bem
foi isto que me aconteceu, seja uma história boa ou
má, é a minha!
- Não fazia a mínima ideia, pensei mesmo que
tivesses ficado lá, como o Carlos ficou, se soubesse
que ainda estavas vivo nunca te tinha
abandonado…,mas ainda há muitas nuvens de
volta da minha cabeça, onde é que o Felipe entra
nessa história, ou melhor como é que tu entras para
a Alcateia?

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- Era isso que te ia contar a seguir, como te disse
naquela noite ele conseguiu prender a minha
atenção e não sei com que bruxaria fez com que
lhe contasse a mesma história que acabei de te
contar a ti, e com toda a sua frieza ele persuadiu-
me que quem tinha morto a velha senhora tinha
sido o próprio Los Santos, no momento mesmo
sem pensar o meu corpo encheu-se com uma
labareda que nem mil cascatas de água doce
poderia apagar, mas novamente a sua racionalidade
a sua capacidade de liderança prenderam a minha
raiva, e foi nesse momento que ele me contou o
seu difícil e audaz plano, no inicio ao que tu
chamas de Alcateia, era para ser chamado Raio de
Justiça, sei bem um nome um tanto o quanto
infantil mas na altura pareceu o melhor, e era um
movimento apenas político-social, nas nossas
mentes nunca passou matar inocentes, mas algo se
passou, não me perguntes se foi o dia no
aniversário da Teresa, se foi o Felipe ter
descoberto que o Los Santos teve dedo naquela
noite na casa do rio, só sei que um rapaz outrora
racional e extremamente amável tornou-se no que
muitos conseguem chamar de monstro, no fim de
ser ameaçado pelo Los Santos ele ligou-me no
caminho para casa e com um tom de voz que eu
nunca tinha ouvido disse de forma perentória,
“esquece o nome que tínhamos pensado, a partir
desde momento somos os fundadores da Alcateia e
vamos entrar para matar”, e assim foi, a partir
desse dia começamos a planear meticulosamente
todas as nossas ações, cada pessoa que matávamos,
cada inocente que sacrificávamos, ele insistiu para
que eu ficasse nas sombras a funcionar como

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agente duplo e devo-te dizer nunca pensei que
questiona-lo, não por medo, mas porque ele
ganhou o meu respeito, mas desta forma nem ele,
nem eu podíamos aparecer como carne para
canhão, então ele escolheu aqueles dois idiotas
para essa função, deixou-os acreditar que eles eram
os números dois, quando nem o três o eram, os
ómegas nas alcateias servem apenas para fazer
figura de parvos, o Márcio deve-se ter apercebido
disso e tentou trair, não era suposto ele morrer,
mas foi necessário. O Felipe sempre teve noção de
como seria o seu fim, e nunca fugiu dele, ele bem
tentou amar, mas a luta que tinha com os seus
próprios fantasmas nunca o permitiu, ele vivia
atormentado pelas mortes que causava, mas a
morte da Bea e do Pedro foi a gota de água, ele não
aguentava mais, ele tinha um bom coração, mas o
seu desejo de vingança cegou-o, aconteceu a muito
boa gente – levantando-se.
- Nunca soube desta versão da história…
- Não era suposto tu saberes, todos os dias ele
perguntava-se, se te devia contar, mas o desejo de
te proteger foi sempre maior, mas isso são águas
passadas e ele deixou-te uma missão, não apenas
seres o Alfa desta nova geração, mas também algo
maior, encontrares o verdadeiro assassino da
família dele, o italiano que ele fala nos seus
diários, tens capacidade para isso?
- Se não a tiver, terei de a arranjar, se o Felipe
acreditou em mim e me deixou o seu legado para
seguir não lhe posso virar as costas.

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- Ótimo, porque aqui tens o teu primeiro
mistério – mostrando o anel com que andava a
brincar quando chegou ao pé de Hugo – o Felipe
deixou isto para ti, juntamente com um papel que
diz, “isto é a primeira de três chaves, para a missão
encontrar”, sempre tão linear o nosso amigo, mas
toma, já tens alguma coisa por onde começar.
- Como é suposto eu começar a partir de um
anel? E a Alcateia não precisa do seu Alfa?
- Não sei, talvez ires procurar ajuda a um sítio
onde a alma do Felipe esta mais vigorosamente do
que no próprio tumulo seja um bom ponto de
partida, e quanto á alcateia, sobreviveu dezasseis
anos sem ti, poderá viver mais uns dias sobre a
alçada do Beta não achas?
- E onde seria esse sítio?
- A casa do Rodrigo vamos eu deixo-te lá –
atirando a lata em direção á cidade fazendo-a rolar
encosta abaixo.
- Tiago, tenho mais um pedido para te fazer…
- Diz-me – sentando atrás do volante.
- Consegues tirar dois presos da cadeia?
- Dá-me os nomes e mais tardar para a próxima
semana estão cá fora, e antes que me esqueça,
toma! Vais precisar de um – atirando um velho
telemóvel de teclas para o colo de Hugo.
E assim saíram do Miradouro em direção á casa de
Rodrigo, muito mais descontraído, Hugo já se
encostava por completo no banco, a aparência já

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não lhe fazia confusão, parecia que o ar que
circulava no carro estava mais leve, depois de
andarem meia dúzia de metros, uma pergunta
surgiu na mente dele, “mas afinal onde mora agora
Rodrigo?”, há dezasseis anos atrás vivia num
pequeno apartamento junto às faculdades, não
havia grande informação sobre como era a casa,
Rodrigo nunca fora propriamente um bom
anfitrião, detestava que o visitassem lá, Felipe
tinha ido lá duas vezes se fosse tanto, por que
razão agora seria diferente? Olhando pela janela e
vendo todas as casas a movimentarem-se a alta
velocidade ficando para trás, tal como acontecia
com as árvores e com as poucas pessoas que
circulavam pelas ruas, quebrando o silêncio que se
fazia sentir entre ambos, perguntou:
- O Rodrigo ainda vive no mesmo sítio?
- Não, ele mudou de casa passado pouco tempo
de irmos para prisão, deixou o pequeno e apertado
apartamento que tinha lá na velha cidade e passou
para a casa do velho comandante, mesmo depois
de morto ele deixou-lhe quase tudo o que tinha, o
Rodrigo teve imenso trabalho, teve de reconstruir
toda a infraestrutura e adapta-la as dificuldades
visuais, mas pelo que eu ouvi as coisas ainda
pioraram, os problemas de saúde só aumentaram,
por isso não te admires se quando olhares para ele,
mas agora vamos, que eu deixo-te lá e vou reunir-
me com alguns militantes, somos poucos, mas
temos de começar a juntar forças.
O resto do caminho foi feito em silencio, também a
distancia não era muita, passados uns míseros dez
minutos já estavam á frente da majestosa casa, com

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uma apresentação completamente nova, a ultima
imagem que Hugo tinha, era de uma casa em
chamas, com um velho lá dentro a gritar, e agora
estava perante uma mansão ainda maior do que
aquela que outrora conhecera, com enormes
portões de ferro com duas marcas estranhas
incrustadas neles, pareciam dois brasões mas
definitivamente era da policia, irreconhecíveis ao
olhar ignorante dos dois homens, quando o carro
parou Tiago fez sinal para que Hugo saísse do
carro e com um piscar de olho voltou a arrancar,
deixando-o ali sozinho perante mais um dos
fantasmas do passado, respirou fundo antes de
tocar á campainha como se preparasse para saltar
para uma piscina de água gelada, mas quando se
recompôs lá tocou á campainha.
Num pequeno apartamento na rua Visconde da
Luz, com dimensões bastante reduzidas, tendo
apenas um pequeno quarto e uma sala-cozinha,
completamente desarrumado, com roupa espalhada
pelo chão, com loiça por lavar na pia, já com
pedaços de comer ressequidos do tempo que já
tinham passado em contacto com o oxigénio da
casa, a televisão acesa num canal de noticias
internacionais com um gato preto preguiçoso
deitado sobre as mantas do sofá, miando e
recostando-se como se fosse dono do mesmo, em
cima da mesa, por cima das teclas do mais recente
computador do mercado, duas mãos raquíticas
percorriam freneticamente, procurando escrever o
mais brilhante dos textos a favor do cyber-trabalho
e cyber-ensino, colocando todos os argumentos
mentalmente plausíveis e outros nem tanto, mas
todos eles com o mesmo objetivo, mostrar que

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trabalhar com as nádegas coladas a uma cadeira é
melhor do que trabalhar em pé ou á frente de uma
plateia que sinta e questione o que é dito, de vez
em quando lá uma das mãos abandonava á área de
combate entre os dedos e as teclas para pegar numa
chávena de café, usada uma e outra vez, mas
rapidamente a voltava a colocar em cima da mesa,
os olhos azuis cristalinos, já tão cansados que
pequenas lágrimas saiam de forma involuntária,
colocados atrás de uns óculos com armação
extremamente fina, passando muitas vezes
despercebidos pelas mentes mais desatentas, mas
apesar desta sua camuflagem, possuíam uma das
graduações mais pesadas, de tal forma que se
alguém que não o seu portador os colocasse
sentiria de imediato uma dor de cabeça profunda.
Mas algo fez com que o barulho irritante do
teclado mecânico parasse, um som ainda mais
irritante, uma música eletrónica extremamente alta,
levando a mão ao telemóvel atendeu, com uma voz
cansada e seca:
- Tem a certeza?
- Sim, saiu á poucas horas!
- Isso é ótimo! Obrigado!
Desligando a chamada de forma abrupta, fechou o
computador, sem sequer guardar o ficheiro, um
erro cometido varias vezes por amadores, mas
dificilmente cometido por um mestre das últimas
tecnologias, correndo calçou umas sapatilhas
castanhas de couro, vestiu o seu casaco de cabedal
também ele castanho, sacudindo as manchas de pó
que estavam em toda a sua extensão, com

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movimentos rápidos arranjou como pode o cabelo,
dando-lhe uma aparência menos desleixada e saiu
aceleradamente em direção á porta de saída!
A alguns metros, não, quilómetros dali, numa casa
de telhado vermelho, vestida ainda de pijama, com
um longo robe cor-de-rosa que dava até aos pés,
Francisca abria a porta para ir buscar o correio,
com um sorriso afável cumprimentava o ainda
jovem carteiro que acabava de deixar as cartas, o
seu sorriso brilhante encantava todos os que o
viam, embora tivesse ganho algumas marcas da
idade, pouca gente lhe daria a idade que tinha, no
leque das cartas que recebera, estavam as típicas
cartas cliché, a água, a luz e o gás, juntamente com
os típicos anúncios dos supermercados que só
servem para acender as lareiras no inverno, mas
havia uma que se diferenciava, com o papel na
tonalidade do papiro e com uma selo com um
enorme leão dourado com uma cicatriz no olho
direito, ao ver esta simbologia respirou fundo,
retorceu o olhar e voltou a entrar para dentro de
casa, dirigiu-se á maquina do café e tirou um café
curto mas forte e de seguida sentou-se na enorme
mesa da sala de estar, abrindo a carta com as
enormes unhas de gel, também elas cor-de-rosa,
uns passos começaram-se a fazer ouvir no andar de
cima, vestida também com um robe, mas este
muito mais extravagante, de uma cor sangue, com
umas pequenas pantufas com uma carinha de
coelho e ainda com uma enorme cara de sono, Inês
começava a descer a enorme escadaria que tinha
aguentado o poder do tempo, dando um beijo da
testa da sua amada, sentou-se ao seu lado:

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- Tu não consegues ficar na cama até tarde, pois
não?
- Sabes bem que ainda tenho os hábitos de
quando era criada, não consigo ficar muito tempo
na cama, e para além disso preciso de ir a empresa,
olha o que chegou – mostrando a carta que tinha
acabado de abrir.
- O que é isto? - Começando a percorrer as
muitas linhas que compunham a extensa carta.
- Mais uma ameaça do Diogo, desta vez ameaça
mesmo partir para o tribunal – suspirando
profundamente.
- Mas será que ele não desiste?
- Ele nunca vai desistir da riqueza do vosso tio,
não é uma questão de necessidade, mas sim de
orgulho, ele está a tentar vencer-nos pelo cansaço,
é a sétima carta nos últimos dois meses.
- Mas se ele pensa que nos vai vencer está muito
enganado, se ele é Los Santos, nós também o
somos, não vamos desistir – encostando a cabeça
na de Francisca.
- Mãe! Mãe! – Uma voz doce ecoou pela casa
vinda do escritório.
- Sim! – Responderam em coro, começando a
sorrir no fim.
- Temos de definir melhor isto dos papéis –
disse com tom irónico Inês.
Indo em direção dos risos, entrou na sala uma
jovem, na flor da idade, acabada de fazer os

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dezassete anos, uma beleza incomparável, olhos
verdes esmeralda, um sorriso docemente alinhado
e brilhante, umas pequenas covinhas nas
bochechas que lhe atribuíam um ar ainda mais
angelical, longos cabelos castanhos até ao meio das
costas, belamente esticados, vestida ainda com o
pijama, bem com uma espécie, um top preto que
não chegava a tapar o umbigo e uns calções
extremamente curtos, atirando-se para os braços
das suas duas “mães”, perguntou com uma
meiguice contagiante:
- Posso ir dar uma volta a beira-rio? Por favor? –
Começando a fazer beicinho e tocando com os
dedos indicadores um no outro.
- Marta, tu já não tens idade para fazer essas
carinhas de anjo, já tens tudo pronto para o início
das aulas ou falta alguma coisa, não te esqueças é
um ano especial, vais para a escola em que quase
toda a nossa família andou. – A escola onde Inês
tinha estudado á dezasseis anos, tinha sofrido um
duro golpe financeiro e tinha fechado, mas agora
pela obra de um investidor anonimo tinha
recuperado funções, tinha levado uma lavagem,
tinha toda uma nova estrutura e agora era a escola
com maior oferta da cidade, o esqueleto era o
mesmo, mas a carne que o revestia era
completamente novo.
- Sim mãe, tenho tudo pronto, vá-la deixem-me
ir.
- O que dizes Inês?

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- Acho que não há mal nenhum, mas com uma
condição, tens de colocar uma roupa em condições
– percorrendo as curvas corporais da filha.
- Tá bem eu faço – soltando um pequeno sorriso
– mas então posso ir?
- Sim, vai-te lá vestir que eu deixo-te na ponte,
tenho de ir trabalhar e aproveito, a falar nisso
também não vou de robe – soltando um pequeno
sorriso.
- Pronto lá se vão as duas e deixam-me aqui
sozinha, mas já estou habituada – fazendo uma
cara triste rapidamente substituída por um sorriso
carinhoso.
Os sorrisos encheram a casa, que agora tinha mais
vida do que nunca.
Á frente do enorme portão de ferro Hugo esperava
uma resposta ao seu toque na audível e irritante
campainha que fazia tocar uma música clássica,
que era difícil de reconhecer, ao fim de alguns
minutos lá apareceu um empregado que lhe abriu o
portão:
- Eu queria falar com…
- Com o senhor Rodrigo, obviamente, não viria
cá se não fosse para isso, faça o favor de me seguir
– interrompeu de forma rígida sem dar tempo de
reação.
Aquelas palavras foram como um murro no
estomago, segundo a regra os empregados tendem
a ser amáveis com as visitas mas aquele não
demonstrava qualquer sentimento de hospitalidade,

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era pouco mais baixo do que Hugo, com um cabelo
estandardizado, igual a todos os outros, mais longo
na parte de cima da cabeça, e completamente
rapado na lateral, muito mal vestido, ignorando
completamente as normas éticas, trazia a camisa
por fora das calças, o colete desabotoado e os
sapatos todos sujos de terra, apesar do seu aspeto
pouco convincente, Hugo não teve outra opção do
que segui-lo, quanto mais entrava para dentro da
propriedade mais fascinado ficava, tinha uma
pequena ideia de quão magnifica era a casa á mais
de uma década, mas depois da recuperação levada
a cabo por Rodrigo, tinha ficado dez vezes mais
extraordinária, no pequeno percurso até a entrada
principal da casa, podiam-se ver várias estátuas
espalhadas em redor do pequeno caminho de
mosaico, imitando o mosaico romano, as estatuas
num estilo neoclássico, magnificamente
construídas mostrando cada traço humano com
uma clarividência estonteante, em redor deles um
jardim preenchido com toda a quantidade de
arvores de fruto bem como de todas as flores, de
todos os cheiros e cores possíveis, desde da mais
comum rosa-vermelha, á mais rara rosa negra
turca, o jardim era de tal forma extenso que o olhar
mortal apenas poderia deslumbrar um terço dele
sem se desviar do caminho principal, ocupando
mais de dois terços do terreno, era facilmente um
labirinto, tinha escondidas no seu interior várias
fontes de água potável, construídas por mestres
artesãos, algumas com figuras divinas, outras
apenas com figuras mais realistas, por dentro dele
corriam animais selvagens de pequeno porte,
pequenos coelhos castanhos, e os destemíeis

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esquilos que saltavam de arvore em arvore, sem
terem medo dos inúmeros jardineiros que
percorriam todos aqueles becos que tão bem
conheciam, era um paraíso para os amantes da
natureza, e colocado mesmo no meio de uma das
zonas onde a natureza tinha sido completamente
esquecida, paradoxal mas ao mesmo tempo
perfeito.
Quando chegou á porta principal, uma porta
extremamente normal, comparada com o resto da
casa, recebeu uma ordem impetuosa para se
descalçar, sem poder discutir muito assim fez, se o
exterior da casa era magnifico, o interior em nada
lhe ficava atrás, a primeira repartição da casa que
visitou foi a glamorosa sala de estar, talvez uma
das maiores repartições dentro das quatro paredes,
no teto tinha um enorme candelabro com quase
duas dezenas de lâmpadas, com tons a tocar o
dourado, com uma estrutura parecida aos inúmeros
candeeiros que compõem os tetos da mansão do rei
Sol, em Versalhes, por debaixo dele uma enorme
mesa de madeira de carvalho pura, muito bem
cortada mantendo todas as linhas naturais da
madeira, envernizada para que quando o sol lhe
tocasse, esta brilhasse, dois enormes sofás de
cabedal negro em forma de L, ocupavam o espaço
á frente do enorme LCD que ocupava toda a
parede frontal para a porta, apenas deixando
espaço para duas colunas que tinham a extensão de
toda a parede desde do chão até ao teto, as paredes
que restavam eram ocupadas por uma coleção de
livros impossíveis de contar, muitos deles em
muito mau estado, parecendo que tinham sido
resgatados de um incendio.

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O olhar de Hugo pasmou perante aquela visão
paradisíaca, de boca aberta percorria uma e outra
vez o espaço que tinha á sua frente, tinha vagas
memórias do que tinha visto anos atrás, mas aquele
espaço superava em anos-luz todas as memórias
que poderia ter, mas uma vez mais o seu momento
de transe foi bruscamente interrompido:
- Realmente o meu patrão gosta de causar essa
reação nos convidados, mas vamos seguir em
frente, não tenho o dia todo e tenho a certeza que
você também não – seguindo em frente em direção
a uma enorme escadaria.
A escadaria em nada ficava atrás do resto da casa,
enorme em extensão, contava com quase quatro
dezenas de degraus, matematicamente divididos
em duas estruturas diferentes, metade deles
enormes ripas de madeiras acompanhadas por um
corrimão com uma tonalidade a fugir para o
vermelho tinto, esta primeira fase levava para um
pequeno patamar onde a escadaria se dividiria, a
uma parte para a ala este da casa, onde ficavam os
quartos, as casas de banho e o escritório, os
quartos, três para ser mais exato eram divisões
enormes, com camas de casal construídas á imenso
tempo, guarda-roupas com capacidade para
aguentar até a mais esbanjadora das mulheres, com
o chão sempre composto por uma madeira que
brilhava ao sol. As casas de banho ainda com
mosaicos, colocados á boa maneira antiga, de
forma manual e individualizada, sempre colocadas
entre os tons esbranquiçados e cinzentos, e depois
o enorme escritório, talvez a secção mais
modernizada da casa, com dois enormes

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computadores da última geração, três impressoras,
um scanner e todos os aparelhos tecnológicos
necessários neste seculo iluminado. A outra
metade das escadas levava á maior divisão da casa,
á enorme biblioteca, o espaço onde Rodrigo
passava quase todos os seus dias, mergulhado nas
memórias do que poderia ter sido, mas preso ao
que era.
Depois de subir a majestosa escadaria, Hugo
encontrava-se de frente para a porta que dava para
a biblioteca, sentido os seus gémeos a queixarem-
se da enorme quantidade de escadas que ele os
tinha obrigado a subir, embora fizesse muito
desporto no irónico, tempo livre que tinha na
cadeira, passar das máquinas construídas para
aumentar a capacidade muscular para uma
realidade onde a carne humana tem que aguentar é
ligeiramente diferente.
Estagnou, olhou e respirou, o primeiro teste estava
prestes a começar.
Quando entrou, deparou-se com uma realidade
bastante mais cruel do que estava á espera, bem
que o Tiago o tinha avisado.
Sentado numa cadeira de rodas, virado para a
enorme parede de vidro construída virada para o
jardim que ocupava também o lado esquerdo da
casa, com o cabelo longo, mas já cinzento, com
óculos escuros que tapavam as principais entradas
da alma, com um cobertor vermelho a tapar-lhe os
joelhos, mas sem tocar nos tornozelos para não
condicionar as rodas, o outrora poderoso chefe da

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polícia de Coimbra, estava ali, sozinho, indefeso e
vencido pelo tempo.
No gira-discos tocava uma peça famosa de
Beethoven, parecia fazer o passado, uma realidade
ainda mais presente.
Vagarosamente foi-se aproximando do homem,
procurando ficar o mais próximo possível, quando
estava agachado mesmo á frente de Rodrigo, as
palavras ainda pareciam mais difíceis de proferir,
mas foi então que o agora “velho” homem quebrou
o silêncio:
- Sabes que não precisas de quase te sentar ao
meu colo para falar comigo, certo? Fiquei cego,
não surdo.
Aquilo fez com que Hugo desse alguns passos para
trás, quase caindo redondo no chão.
- Eu sabia que ias acabar por me procurar, mas
nunca pensei que fosse logo no dia em que saísses
em liberdade, pensei que quisesses aproveitar um
pouco mais antes de mergulhares outra vez no
passado, mas agora que aqui estás chega-te a mim,
para eu te ver – erguendo as mãos em direção ao
vazio, era a única forma de “ver” as pessoas agora.
Mas Hugo sentiu o seu o seu corpo a paralisar, o
suor começou a deslizar face abaixo, a pele a ficar
branca como o cale da parede, e num movimento
de puro desespero sentou-se no chão, ao ouvir o
barulho da queda, as mãos do “velho” senhor
começaram a retrair-se em direção á manta.

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Uma vez mais, tinha sido rejeitado pelo ambiente
que o rodeava, por mais que desejasse conter as
suas feições de desgosto, a vida desde da noite em
que o Felipe morrera, em nada tinha sido fácil, a
lesão ocular era muito mais grave do que ao inicio
parecera, para além de retirar permanentemente a
visão, os danos tinham -se alargado a outras partes
do corpo, a demora na administração de
tratamentos tinha criado várias outras lesões quer
na região cefálica, bem como nos membros
superiores, as feridas causadas por se andar a
arrastar pelo chão também tinham deixado algumas
cicatrizes, apesar de ter conseguido uma posição de
algum relevo dentro da policia, tinha sido
condecorado graças á sua bravura e pelo facto de
ter injustamente retirado do cargo que ocupava
com tanta capacidade, mas nada, nem ninguém
podia preencher o vazio que ele trazia no peito,
naquela noite tinha perdido duas das coisas mais
importantes na sua vida, o seu priminho, o seu
menino de quem tanto gostava, a pessoa que se
sentia na obrigação de proteger, mas de quem nem
sequer tinha sido capaz de ver a própria alma, e por
outro lado tinha perdido totalmente a capacidade
de fazer aquilo que mais gostava, impor e lutar
pelo bem, tinha perdido duas partes de si, pouco
restava do que outrora o jovem Rodrigo era, aquele
jovem de óculos de sol, poderoso, mulherengo,
cabelo sempre muito bem arranjado, preocupado
com o corpo e com a opinião dos outros, tinha
dado lugar a um velho sem motivo para continuar
neste mundo, mas por teimosia ou destino, vá-se lá
saber, continuava, cada dia mais destruído, mas
continuava. O golpe final na sua saúde tinha sido

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dado durante a grave pandemia que tinha assolado
o mundo nos anos seguintes á prisão de Hugo, um
monstruoso vírus que tinha como principal alvo o
sistema respiratório da população, começava com
pequenos ataques de tosse, culminando numa
terrível falta de ar, parecendo que todas as fontes
de ar tinham sido cortadas, milhares, quase
milhões sucumbiram perante a doença, crianças,
idosos, magros, gordos, de todas as cores e feitios,
e quando parecia que o ultimo ingrediente da caixa
de Pandora tinha sido solto, tudo voltava a estaca
zero, inúmeras vacinas apareciam para trazer a
“normalidade”, mas com elas só traziam mais
problemas, muitas apenas permitiram ao vírus
evoluir, trazer consigo novas estirpes e como
consequência mais mortes, mas o que importava é
que alguma empresa tinha enchido os bolsos á
conta das vidas de inocentes, que davam tudo
apenas para poder respirar por mais um dia, por
muito difícil que fosse, bairros inteiros no Chile
desapareceram, milhares de famílias americanas
foram erradicadas do mapa, toda a gente sofreu
com esta doença que não escolhia idades,
simplesmente matava. Infelizmente, ou felizmente,
Rodrigo também foi apanhado nesta tempestade, se
o seu estado já era complicado, então ficou trinta
vezes pior, sozinho numa cama de hospital, com
uma enorme bola de plástico de volta da sua
cabeça para permitir que respirasse, com uma
mascara vinte e quatro sobre vinte e quatro, preso á
vida por um fio, por muitas vezes os médicos o
davam como perdido, mas todas essas vezes ele
mostrou que tinha força para lutar contra as
probabilidades, ao todo foram dois anos de intensa

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luta, contra este vírus que parecia ter inteligência e
vontade própria para evoluir e adaptar perante as
vacinas, quando finalmente surgiu a vacina que
resolveu toda esta trapalhada, tudo conseguiu
voltar ao normal, bem quase tudo, as sequelas no
corpo de Rodrigo eram incorrigiveis, por algum
motivo que os médicos não conseguiam explicar as
suas pernas tinham-se tornado apenas acessórios
estéticos, de nada serviam, ficou preso a uma
cadeira de rodas, cego e a depender a cem por
cento de ajuda exterior, todo mundo em redor
olhava para ele com pena, as doações anonimas
que recebera tinham-lhe chegado para reconstruir
aquela casa e comprar quase todos os livros do
planeta, muitos em inglês, outros tantos em
francês, até tinha uma prateleira dedicada só a
livros em mandarim, mas era um pouco inútil ter
tantos livros, não os conseguia ler, mas por algum
motivo sentia que ainda iam ser uteis.
Naquele momento em que Hugo tinha caído, toda
esta conjunção de pensamentos passou na mente de
Rodrigo, mesmo que quisesse não podia chorar, até
esse ato simplista lhe tinha sido retirado, nesse
sentido até os bebés tinham mais sorte do que ele.
Quando as suas fracas mãos estavam quase a tocar
a manta, sentiu um movimento brusco á sua frente,
todos os seus sentidos tinham melhorado muito
desde que perdeu a visão, talvez o poder sensitivo
tenha sido o que melhorou mais, conseguia
facilmente notar tudo o que se passava á sua volta,
e no momento seguinte sentiu as quentes mãos de
Hugo a pousar-se sobre as dele, levando-as até a
sua face, quando começou a percorrer a

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envelhecida face, procurou de imediato a marca de
Hugo quando era mais jovem, mas com muito
desgosto não encontrou o seu longo encaracolado
cabelo, sem tentar perceber o resto da face afastou
de imediato as mãos e suspirou profundamente:
- Peço desculpa, mas penso que me enganei,
você não é quem eu pensava que fosse, tenho que
lhe pedir que se retire, não aceito estranhos dentro
do meu lar – começando a afastar-se lentamente,
rodando a cadeira em direção aos quartos.
- O tempo passou por todos nós velho amigo, eu
mudei sim, talvez até mais por dentro do que por
fora, mas o meu nome não mudou, sem grande
receio digo que o tempo foi mais ingrato para ti do
que para mim, mas sinceramente os últimos
dezasseis anos também não foram propriamente
fáceis, a prisão pode ser um sítio bastante negro
para quem tem esqueletos no armário.
A voz fez-se ecoar no silêncio da enorme
biblioteca, um estranho sorriso apareceu na face de
Rodrigo, e agora suspirava de satisfação e alegria,
como se desfizesse a sua última ação virou-se para
o homem que agora imaginava e com um tom de
voz mais audível disse:
- Da próxima vez que visitares um homem cego,
avisa pelo menos o que decidiste fazer ao cabelo –
abanando negativamente a cabeça – mas diz-me
meu amigo, o que procuras aqui? O que procuras
na casa de um velho cego e incapacitado?
- Luzes sobre um passado que nunca consegui
compreender – encostando-se numa mesa redonda
que se encontrava a sua direita.

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- De facto viver o presente sem compreender o
passado, pode de certa forma tornar-se perturbador,
aprendi isso com o Felipe, naquelas aulas grátis
que ele gostava tanto de dar, mas temo que não
possa ser grande ajuda, tens imensos livros sobre a
“Alcateia”, sobre o “Alfa”, que de certeza te
poderão ajudar mais do que eu – apontando para
uma prateleira cheia de livros e revistas, com o
nome e a cara de Felipe estampados em todas elas,
muitos títulos faziam de Felipe um herói, outros
um enorme vilão, comparando-o a Hitler, a Luís
XIV e por ai fora, todos eles escritos por apoiantes
fervorosos ou simplesmente inimigos de tudo o
que ele construiu.
- Talvez estes livros me ajudassem a entender
quem era o Alfa, ou o que foi no seu tempo a
primeira alcateia, mas o que eu procuro é entender
quem foi o Felipe – largando alguns livros que
tinha agarrado.
- Estranho que não saibas quem foi o teu melhor
amigo Hugo, acho que o que tu procuras é entender
quem foi o Felipe que deu lugar ao Alfa, para
decidires que tipo de Alfa deves ser – aquelas
palavras caíram redondas no chão ficando sem
resposta alguma, para alem da ofegante respiração
de Hugo que parecia ter perdido o controlo da
mesma – mas conversemos sobre isto lá fora, gosto
sempre de sentir o calor do sol na minha pele –
saindo em direção á enorme porta-janela que
conduzia ao jardim no terraço, a sua cadeira ao
contrario de muitas outras não necessitava de
contacto direto nas rodas, bastava comandar um
manipulo num dos assentos de braço para levar a

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cadeira na direção que desejasse, trazia sensores de
choque para o caso da cadeira se aproximar de
algum objeto colocado recentemente no caminho,
Rodrigo tinha conseguido memorizar todos os
cantos da casa, sabia onde cada móvel terminava,
onde cada livro estava colocado e até sabia onde o
seu empregado deixava a pequena garrafa de
whiskey irlandês que com tanto esforço tentava
esconder.
Rapidamente sentiu a sua pele ser abraçada pela
luz do quente sol de Agosto, os pequenos pássaros
cantavam uma doce melodia, uma suave brisa
ondulava as pequenas flores que estavam
colocadas nos canteiros, e as folhas de uma velha
cerejeira colocada exatamente ao centro do terraço,
no seu ramo mais longo tinha um baloiço virado
intencionalmente para a cidade, a vista era
simplesmente surreal, parecida com a do
miradouro, mas muito mais aconchegadora,
colocando de fora obviamente o barulho feito pelas
dezenas de carros que passavam a porta da casa,
das buzinas dos impacientes e dos acidentes
causados pelos bêbados, mas como se costuma
dizer toda a luz tem a sua escuridão e a beleza das
paisagens não pode ser diferente. Passando sem
grande dificuldade pelas torres de pedras colocadas
ao longo do terraço de forma a torna-lo mais belo,
Rodrigo colocou-se ao lado da velha cerejeira,
ainda pintada com o branco e cor-de-rosa das suas
flores, mostrava também aos poucos as pequenas
cerejas que ainda persistiam, era uma imagem
linda, como se fosse retirada de um quadro de um
pintor qualquer naturalista que tentava passar
sentimentos a partir da natureza, Hugo seguiu e

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ficou em pé ao lado dele a olhar para a linda
arvore, sem saber porquê um estranho sorriso
apareceu-lhe na face.
- Sakura.
- O quê?
- É o nome da árvore que se encontra ao nosso
lado, os japoneses conseguiram encontrar uma
palavra tão simples, mas tão bela, acho que
combina mais do que “cerejeira”.
- Sei bem que a tua masculinidade não deixará,
mas senta-te no baloiço, para ficarmos ao mesmo
nível, e também por mais que as tuas pernas sejam
vigorosas irão começar a doer.
Com o olhar colocado nas flores da cerejeira,
sentou-se e num gesto irracional começou a
balançar o corpo para a frente e para trás, aquele
movimento transportava-o de volta para a sua
infância e para o baloiço enferrujado que Felipe
tinha no seu quintal, passavam bons momentos lá,
muitas quedas deram a tentar sair do baloiço em
movimento, muito asfalto ficou marcado nos
joelhos, muitos desafios de ver quem elevava as
pernas mais alto fizeram, Hugo ganhava sempre
era mais velho e por ventura mais alto, pouco
tempo isso durou, na sua adolescência o seu amigo
tinha-o ultrapassado em largos centímetros, o
silencio entre os dois perdurava, enquanto subia e
descia também as lágrimas salgadas das
recordações o faziam por toda a sua face, até ao
momento que o seu movimento foi brutalmente
interrompido pela mão de Rodrigo:

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- Penso que não vieste até aqui para andar de
baloiço…
- Peço desculpa, simplesmente deixei-me
controlar pelas memórias do passado…
- Isso acontece muitas vezes, o passado controla-
nos, pode ser perigoso se a nossa história não for
repleta de canções alegres e pássaros a voar mas
sim se for abarrotada de muros de espinhos e
caminhos lamacentos, temos de ser nós a controlar
o nosso passado e não deixar que ele nos defina –
começando a tremer nervosamente da mão que
segurava o manipulo – não precisas de tentar
formular qualquer pergunta, bem sei quais são as
questões que te atormentam, são as mesmas que
não me deixavam dormir, noite apos noite nos anos
que se seguiram á morte do Felipe, quem é que
afinal de contas ele era? Era um herói, um salvador
ou simplesmente um monstro capaz de matar
inocentes… seria ele o que os cristãos chamam de
messias, ou simplesmente um demónio saído dos
infernos, embora muita gente tenha achado
resposta a esta questão, colocando-lhe um simples
rotulo, eu nunca consegui, e comecei a procurar os
seus motivos, os seus ideais, teria ele lido a bíblia e
seguido as suas normas a risca, duvido, teria
seguido o caminho das sete virtudes, o caminho do
Bushido, Gi;Rei;Yu;Meiyo;Jin;Makoto;Chu,
Integridade, Respeito, Coragem, Honra,
Compaixão, Honestidade e Lealdade, mas uma vez
mais cheguei a um beco sem saída, porque apesar
de demonstrar algumas delas, falhava
miseravelmente noutras, por isso li, arranjei e
adaptei livros a minha condição, fui a palestras,

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falei com psicólogos e cheguei a uma conclusão
que partilhei com o mais famoso admirador do
Felipe, diz-me Hugo, o que mais desejas na vida?
- Talvez felicidade, não sei é uma pergunta
difícil, o Felipe fez-me uma pergunta parecida
quando visitamos a nossa terra natal, perguntou-me
o que era mais importante para mim na vida… a
minha resposta na altura foi diferente…
- Diferentes palavras para o mesmo objetivo,
mas deixa-me adivinhar ele não te disse o que era
mais importante para ele, ou simplesmente deu
uma resposta vaga, estou certo?
- Sim…
- Na minha pesquisa deparei-me com a reposta
mais abrangente para esta questão, todo o Homem,
procura duas coisas, amor e imortalidade – sentido
o corpo de Hugo a recuar – não uma imortalidade
literal, mas uma imortalidade de nome, mas
normalmente as duas não são compatíveis,
vejamos grandes histórias de amor que conheças
que terminem bem? Páris e Helena de Troia, a
guerra começa por causa deles, mas o mais
conhecido herói dessa guerra é Aquiles que só a
lutou pela imortalidade, pela gloria eterna, são
raros os casos onde o amor, ou os seus atos de
tornam imortais, Felipe percebeu isso, ele deve ter
olhado para Alexandre, o Grande, para Hitler, para
Platão ou para Augusto e viu que em nenhum deles
havia amor, e quando havia eles quase morriam,
ele tentou amar mas foi-lhe retirado esse direito,
então por vingança ou simplesmente por estratégia
perseguiu a imortalidade, para este tipo de homens

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não interessa como se a alcança, só interessa que se
tenha o seu nome escrito na história, por isso todas
as tuas questões sobre quem era Felipe, o que ele
desejava, o porquê de ele ter feito tudo isto, tem as
suas respostas nisto, ele era um homem que
sonhava ser reconhecido e lembrado, não por uma
ou duas gerações mas para toda a eternidade, e
meio que conseguiu, espero que tenha sido
suficientemente esclarecedor…
- Acho que tudo isso faz muito sentido, mas
onde é que nessa teoria toda entram os amores que
ele teve já quando era o Alfa, parece-me
improvável que o Felipe tenha desistido de amar…
- Como te disse, todas essas questões também
me passaram pela cabeça, mas diz-me, ele
realmente se entregou ao amor? Com Teresa teve
pouco tempo e desistiu dela de forma facílima,
como se nunca lhe tivesse interessado realmente
estar com ela, com Bea, aconteceu a mesma coisa,
o odio e o medo de ser apanhado afastaram-na dele
e acabaram por conduzi-la mesmo a sua morte, e
por fim Ariana, ela amou-o com todas as suas
forças, mas para ele, ela nunca passou de um
divertimento físico, o único grande amor de Felipe,
morreu há muitos anos, naquela noite na casa do
lago, desde aí, outros sentimentos tomaram conta
do coração dele, e conduziram-no ao seu fim, ele
tentou amar, mas o amor só o afastava do que ele
realmente queria…viver eternamente na mente de
todos…
- Custa-me acreditar nisso… isso faria de nós,
amigos dele…simples…

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- Objetos! Sim, exatamente, mas á forma dele
ele conseguiu gostar de cada um de vocês, e
deixar-vos vivos é a maior mostra de amor que
podem pedir!
- Não! – Elevando a voz e saltando fora do
baloiço, com o olhar perdido na cidade, as veias
dos seus braços começaram a ganhar relevo e
quase saltaram fora dos braços – O Felipe que eu
conheci era gentil, isto não pode ter sido apenas
um jogo para ele, não pode ser, ele tinha razões
mais do que suficientes para fazer tudo o que fez,
tinha razões para matar o Los Santos…ele
tinha…tinha… razões – baixando a cabeça e
percorrendo a ultima noite de Felipe na sua cabeça,
o ultimo sorriso antes do suicídio, aquele sorriso
não podia ser de um lunático perdido no desejo de
imortalidade.
- Então, tens alguma justificação melhor? -
Respondeu com um tom de voz gélido Rodrigo.
-Não…simplesmente sinto que isso não é tão
linear, os seres humanos são seres complexos, não
somos simplesmente bons ou maus, e muito menos
o Felipe, temos motivações para agir
quotidianamente, o Felipe deve ter tido as suas, e
eu vou descobrir quais foram!
Neste exato momento aparece junto deles o
empregado que recebera Hugo, com uma estranha
de desdém, tal e qual como aquela que tinha
demonstrado ao primeiro convidado, fazendo uma
pequena vénia, disse com um tom hirte:
- O senhor Pasolini chegou. Devo-o mandar
subir?

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- Sim, faz-me esse favor – virando-se para Hugo
– vais conhecer uma pessoa que dedicou toda a sua
vida ao estudo das ações do Alfa.
Um calafrio tomou conta de todo o corpo de Hugo
seria aquele homem um lunático ou simplesmente
um estudioso, bem estava prestes a descobrir.
Ao longo da grande escadaria, o jovem jornalista e
escritor ainda vinha a luta com o seu cabelo para
que parecesse minimamente apresentável, afinal de
contas ia conhecer uma das personagens principais
das suas pesquisas e dos seus livros romantizados,
sonhara com aquele dia durante anos, toda a sua
vida académica tinha sido acompanhada pelo
estudo do “maior feito sociopolítico do século”,
como ele descrevera, graças a sua genialidade tinha
conseguido ter acesso a imensos documentos
confidenciais sobre a alcateia e sobre o Alfa, tinha
inclusive na sua desarrumada casa, uma copia feita
posteriormente do livro sagrado, guardava-o
emocionalmente numa arca, para quando chegasse
a altura da Alcateia renascer, aquele livro estivesse
em perfeitas condições.
Quando alcançou o patamar onde estavam Rodrigo
e Hugo, o seu olhar ganhou um brilho enorme,
igual aquele brilho quando uma criança ganha o
presente que queria no Natal, engolindo em seco
avançou com as mãos enfiadas nos bolsos,
esticando o peito em sinal de confiança, enquanto
por dentro parecia uma maria madalena a chorar de
felicidade, quando estava frente a frente com
Hugo, estendeu a mão extremamente fina e a
tremer como varas verdes, aquele nervosismo fez
com que Hugo franze-se uma das sobrancelhas,

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engolindo uma ultima vez a saliva que não tinha
disse com a sua voz extremamente roca:
- O meu nome é Romeu Pasolini, sou um
enorme fã!
- Fã? Meu?
- Sim, seu e do Alfa!
Aquelas palavras despertaram uma cólera interna
em Hugo, ele deveria ter dito “fã do Felipe”, e não
do “Alfa”, mas as coisas só iriam piorar.
- Dediquei a minha vida a estudar as suas ações,
tenho tudo documentado, e tenho a certeza que
estou bastante perto de conhecer perfeitamente a
sua personalidade, podemos dizer que sou quase o
melhor amigo do Alfa, afinal de contas sei tudo
sobre ele! – Soltando uma pequena gargalhada.
Aquilo era a gota de água, num gesto de raiva
impulsiva Hugo, deitou as mãos ao colarinho do
pomposo jornalista que se apresentava a sua frente,
se tal fosse possível, dos seus olhos emanariam
chamas capazes de reduzir a cara fina daquele
homem a cinzas, com um tom de voz tempestuoso
rasgou o silêncio:
- Tu achas-te muito inteligente? Tu não sabes
nada sobre o Felipe, nenhum de vocês sabe –
olhando por momentos para Rodrigo- ele era muito
melhor homem do que qualquer um de nós alguma
vez será, e vocês continuam a tratá-lo como se
fosse um maníaco? Ele pode ter tido algumas ações
menos corretas sim, mas bem no fundo, ele tinha
razões para o fazer. Vocês metem-me nojo, nojo! –

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Puxando o braço direito para trás com o punho
fechado, quando ia para deixar a sua raiva sair
sentiu o pequeno telemóvel a vibrar, respirando
fundo largou o fraco homem que rastejou para
detrás da cadeira de Rodrigo, se tivessem com
atenção viam que tinha perdido o controlo sobre a
bexiga, sem duvida era muito inteligente, mas
coragem não contava no seu dicionário, atendeu o
telemóvel e com uma voz mais calma disse “já
desço, mesmo a tempo”, recompondo a roupa sem
olhar para trás começou a dirigir-se para a saída.
Quando já estava mesmo á entrada da porta a voz
de Rodrigo fez-se ouvir:
- Por muito que te custe, a história mostra os
factos, e nós temos de os aceitar, tal e qual como
eles aconteceram, não podemos mudá-los.
Estagnando, baixando a cabeça e sem olhar para
trás respondeu friamente:
- Se ouvirmos só a versão do capuchinho
vermelho, o lobo mau será sempre o vilão da
história- saindo porta fora.
Saindo de detrás da cadeira ainda com o queixo a
tremer, Romeu colocou-se em pé e em tom de
lamúria disse:
- Bem não foi propriamente uma boa
apresentação…nem me deu tempo para lhe falar do
enigma deixado pelo Alfa…
- Aconselho-te a começar a tratá-lo pelo nome
verdadeiro, senão todos os encontros serão assim,
o Felipe era como um irmão para o Hugo, e a

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imagem dele deve ser preservada na sua presença,
e outra coisa, vai trocar de roupa, cheiras mal –
voltando para dentro da casa também.
Dirigiu-se ao seu quarto onde tinha uma cama
adaptada, colocou-se ao lado da mesinha de
cabeceira, e abriu a ultima gaveta, de onde tirou
uma velha caixa de madeira, com um trabalhado na
sua tampa que formava pequenas flores e os seus
caules, com uma enorme forma oval mesmo no
centro de onde surgiam duas rosas extremamente
bonitas, a caixa estava cheia de pó, com todo o
cuidado limpou o pó que ia sentido na ponta dos
dedos, e abriu a caixa, com as dobradiças já gastas,
fez um pequeno barulho estridente, la dentro uma
velha fotografia de Rodrigo com Felipe, mesmo
sem ver a fotografia um estranho sorriso apareceu
na face dele, junto com a foto estava um velho
anel, com um símbolo estranho nele, um velho
martelo da mitologia nórdica, um sinal de força
supostamente, tinha sido uma prenda de Felipe,
bem mais uma recordação, aquela fotografia tinha
sido tirada sem motivo aparente, estavam
simplesmente os dois a conversar, algumas
semanas antes da noite da praça oito de maio, e
sem razão Felipe tinha pedido para tirar aquela
fotografia, era muito raro ele tirar fotos, então ser
ele a pedi-la ainda a tornava mais especial, no fim
de tirarem a fotografia, Felipe tinha tirado aquele
anel da mão, e disse com um tom de voz
melancólico:
- Se algum dia me acontecer alguma coisa,
guarda este anel, de certa forma estarás mais perto
de mim – começando a sorrir.

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Na altura não deu muita importância aquela
conversa, mas agora percebia perfeitamente o que
ele queria dizer, se conseguisse tinha chorado, mas
a tristeza era bem visível na sua face. Os seus
pensamentos foram interrompidos pela voz do seu
empregado:
- O senhor Romeu já se foi embora, disse que
tinha que ir corrigir qualquer coisa, eu estou lá em
baixo caso necessite de mim…, mas deixe-me
fazer uma pergunta, acha que eles se vão entender?
- Espero bem que sim…, mas algo me diz que
ainda agora começou, ainda faltam muitas luas até
a verdadeira batalha começar, acho que estamos só
no aquecimento…
- Sempre tão concreto você, acho que isso é da
idade, está a ficar senil!
Já fora da casa Hugo acabara de entrar no carro de
Tiago, tinha fechado a porta com extrema força
num pleno gesto de raiva, o carro como já tinha a
sua idade, queixou-se com um pequeno ruido,
respirando fundo Tiago colocou o olhar na estrada
e arrancou a toda a velocidade, deixando uma
nuvem de fumo negro para trás, já quando estavam
a alguns metros de distância da casa é que a música
do carro vou diminuída e a voz de Tiago se fez
ouvir:
- Presumo que não tenhas ouvido o que
querias…
- Tu sabes o que eles têm feito? Têm analisado o
Felipe como um lunático, isso deixa-me doido! –
Dando um murro no tablier do carro.

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- Tenta manter-te calmo, o carro não tem culpa
alguma, mas sim a tentativa deles de tornar o Alfa
o Felipe e vice-versa é errada, mas uma coisa que
tenho a certeza é que a verdade virá ao de cima, o
Felipe ensinou-me que pode tardar, mas que ela
chega sempre, mas agora não penses mais nisso,
vou-te levar a nossa sede improvisada, tens de
estar calmo, afinal de contas todos esperam
ansiosamente pelo seu Alfa – sorrindo.
A sede era no bairro mais rico da cidade, bastante
perto da casa do telhado vermelho, tratava-se de
um velho armazém que tinha sido entregue á
Alcateia, as condições não se equiparavam em
nada á poderosa sede que um dia fora o Terreiro da
erva, mas seria impossível regressar para lá, apesar
de já se terem passado uns bons anos, o espaço
onde ocorrera uma das maiores explosões da
década continuava exposto ao sol, estava tudo em
ruinas apesar da importância turística, tinha sido
considerado um lugar amaldiçoado, todos os que
chegavam ao poder, temiam que um dia a Alcateia
recupera-se o seu total vigor, apesar de haverem
soldados infiltrados, o seu poder tinha diminuído
bastante, afinal de contas uma cobra sem a cabeça
não causa muitos estragos não é verdade?
Quando finalmente chegaram á frente do armazém,
tinham uma pequena comitiva á sua frente, cerca
de duas dezenas de pessoas, entre elas algumas
crianças, atrás delas o velho armazém, uma
estrutura retangular com umas velhas telhas
cinzentas no seu topo, com um enorme portão de
correr como entrada principal e pintado sobre ele
um enorme lobo negro, a tradição tinha sido

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mantida, todos mantinham as tatuagens e os
casacos, sem se dar conta Hugo deixou fugir um
pequeno sorriso, quando estava para sair do carro
foi puxado por Tiago que lhe atirou um velho
casaco preto para as pernas:
- Não podes sair sem vestir isso, a tatuagem já
tens, mas tens de ter algo de diferente de nós, esse
casaco pertenceu-lhe, acho que é justo que o vistas,
afinal de contas és o escolhido, ele ficaria
extremamente orgulhoso…
Colocando o casaco, sentiu-se por momentos mais
perto de Felipe, quando colocou o pé fora do carro,
viu o numero de pessoas aumentar
exponencialmente, de duas dezenas passavam para
perto de uma centena, a puxa-lo em direção ao
armazém, a deitar louvores em direção aos céus, as
crianças a pedir-lhe colo e as mulheres a tentarem-
se colocar lado a lado com ele, naquele momento
qualquer um se sentiria o rei do mundo, quando
finalmente chegou ao interior da sede, viu o
excelente trabalho que tinha sido feito, o espaço
estava habilmente organizado, subdividido em três
zonas de maior relevância, a primeira dedicada
discussão dos assuntos principais da organização,
ocupava grande parte do salão, era composta por
várias cadeiras, divididas também elas por estatuto
hierárquico, no centro, um enorme trono de
madeira negra, com pequenas estruturas de ferro a
aparecerem em toda a sua extensão, fortemente
revestida com cabedal negro e com um acento
rígido também ele de madeira, os apoios para os
braços tinham a forma de dois majestosos lobos
negros, ambos a mostrar toda a sua ferocidade, de

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seguida as outras cadeiras iam perdendo qualidade
e empoderamento consoante o estatuto que
ocupavam, passando por cadeiras de couro
reutilizado até uns simples bancos de madeira,
alguns muito mal tratados pelo tempo. A segunda
zona, prendia-se com a zona do lazer e das
refeições, uma cozinha que trabalhava vinte e
quatro horas por dia, sete dias por semana, sem
nunca parar, não só servia os membros da
organização, mas distribuía comer pelos sem-
abrigo, enquanto eles não aceitavam fazer parte da
mesma, ao seu lado tinha alguns bancos de
madeira cumpridos, onde se jogava as cartas, ao
bingo ou simplesmente ao braço de ferro, as
crianças corriam felizes por aquele espaço, e por
ultimo, a ultima fação do espaço pertencia aos
dormitórios, varias camas tinham sido colocadas
no seu interior, desde esqueletos de ferro, até
simples sacos de cama, colocados sobre o frio
cimento que revestia o chão do pavilhão.
Hugo percebera naquele momento o tamanho da
ação de Felipe, para alem de criar uma organização
que colocava inveja as melhores forças de
segurança, devido a sua organização e capacidade
de ação, tinha criado um lar, um espaço onde as
pessoas que não tinham para onde ir podiam
acorrer e eram acolhidos como uma grande família,
o sorriso das crianças, os abraços dos mais velhos e
as pequenas conversas entre as mulheres faziam-no
lembrar os pequenos bailaricos da sua terra, onde
por momentos todos eram felizes, bem pelo menos
até um bêbedo qualquer estragar a festa, mas
mesmo quando isso acontecia era por poucos

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momentos, porque rapidamente a felicidade
voltava a reinar.
Começou então a sua visita “real”, percorrendo
cada metro quadrado do espaço, sempre com um
sorriso afável olhou nos olhos de todos os que
possuíam a tatuagem amaldiçoada, como tinha sido
vulgarmente denominada, do outro lado recebia
pequenas reverencias, grandes sorrisos e claro
algumas raparigas tapavam a face quando
coravam, nos seus primeiros momentos parecia
apenas mais um membro, ajudou na cozinha por
breves momentos, jogou um jogo de sueca e até
andou a brincar com os miúdos, parte dos
membros ficaram surpreendidos, estavam á espera
de um líder um pouco diferente…um pouco mais
Alfa…
Quando já se tinha passado um bom bocado, Tiago
chegou ao pé de Hugo e disse com tom de voz
baixo para que ninguém ouvisse “está na hora da
assembleia, toma o teu lugar!”, acenando
positivamente com a cabeça dirigiu-se ao
magnífico trono, endireitou as costas e lá esperou
até que todos ocupassem as suas posições.
Pouco tempo depois já estavam todos colocados
nos seus lugares, bem quase todos, uma das
cadeiras mais bem constituídas estava vazia, mas
mesmo assim a reunião começou:
- Meu caro Alfa, a nossa sociedade próspera
desde da morte do seu antecessor, o Todo-
Poderoso, mas nos dias que correm somos
abraçados por dois grandes problemas, e por mais
que tenhamos tentado, só a sua sabedoria os pode

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resolver de vez…- começou um dos Deltas- o
nosso grupo é ameaçado por todos os lados, devido
a ausência de um líder, formaram-se vários grupos
independentistas que proclamam para si o poder
absoluto, desde do norte do país até ao sul, isto
torna-se perigoso para a sua pessoa… e o outro
prende-se obviamente com o enigma deixado pelo
nosso adorado Alfa, há mais de dezasseis anos que
o procuramos e nada encontrámos.
- Talvez eu possa ajudar nisso – disse uma voz
roca vinda do fundo do pavilhão.
Todos os olhos se acenderam ao ver a silhueta do
homem quando ele se colocou entre a assembleia,
uns por admiração, mas o brilho que os olhos de
Hugo emanavam mostravam tudo menos isso.
Enquanto isto se passava no bairro da casa de
telhado vermelho, junto ao Rio, Marta continuava
a sua calma e serena caminhada junto ao rio, com o
olhar colocado na calma corrente que levava tudo o
que estava no rio diretamente da nascente em
direção á foz, muito tinha lido sobre a bela
nascente do rio Mondego, mas nunca tinha tido a
oportunidade de a ver, adorava ver os patos a nadar
e a mergulhar no rio, as crianças em cima das
pranchas a cair e depois da pequena aflição que
qualquer queda traz, rirem-se como nunca, ver os
casais andarem de mãos dados junto ao rio,
naqueles momentos onde são realmente felizes,
bem até um deles fazer algo idiota e despontar a
raiva do outro, diga-se de passagem que os homens
são peritos nisso. Enquanto deambulava com estes
mil pensamentos e com o olhar vidrado na água,
quase, cristalina do rio, tropeçou e caiu em cima de

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um jovem que devia ter mais ou menos a sua
idade, com cabelos curtos encaracolados e olhos de
um castanho mel docemente profundos com um
estranho colar, um fio de prata com um anel
pendurado, uma ave de rabina, uma aguia de prata,
algo pouco usual de se usar num colar digamos, a
reação do rapaz foi soltar um pequeno sorriso de
forma a demonstrar o seu brilhante sorriso, levando
uma mão até á relva para se conseguir levantar
ajudou a desamparada moça que tinha-se perdido
no seu olhar:
- Não é que me possa queixar, porque levar com
uma rapariga como tu, principalmente em dias
belos como estes é uma dádiva que qualquer rapaz
daria tudo para receber, mas se te quiseres levantar
para termos uma apresentação como deve ser,
agradecia.
Ouvindo a voz do rapaz, voltou a cair em si, e num
gesto muito rápido, levantou-se e começou a
sacudir as roupas muito apressadamente:
- Peço imensa desculpa, não sei o que me
aconteceu…
- Não te preocupes, eu percebo perfeitamente,
ainda agora cheguei, mas percebo a beleza e o
poder que este sítio tem, eu próprio já me perdi
algumas vezes, mas normalmente perco-me nos
meus livros e não em cima das pessoas- soltando
um pequeno riso.
- Novamente peço imensa desculpa…não me
costuma acontecer… espero que não o tenha
incomodado demais…

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- Ficarei mais incomodado se não souber o nome
da rapariga que me caiu no colo…
- Ah, claro, o meu nome é Marta, e tu como te
chamas?
- Eu sou o Luís, foi um prazer conhecer-te –
sentido o telemóvel a vibrar – mas temo que a
nossa apresentação tenha de ficar por aqui, o dever
chama-me, foi um prazer conhecer-te Marta, a
envergonhada – piscando o olho e saindo em
direção á estrada.
Marta sentiu todo o seu corpo em chamas, não
sabia por que razão mas havia alguma coisa
naquele rapaz que a fascinava, talvez isto se
devesse a pouca convivência com pessoas do sexo
oposto, as mães sempre pintaram os homens como
seres pestilentos que não sabiam respeitar as
mulheres, e ela sabia que lá no fundo elas tinham
um desejo que ela lhes seguisse as pisadas, mas por
mais contacto que tivesse com mulheres nunca
tinha sentido nada por nenhuma delas, tentando
baixar um bocado a temperatura corporal com
alguns salpiques de água doce voltou ao caminho,
tinha de estar em casa antes da hora de almoço.
Voltando á assembleia, num gesto de pura raiva
Hugo levantou-se fechando a sua mão num
fervoroso murro pronto a voar em direção daquele
recém-chegado ser:
- O que este ser faz aqui?
Já sentando na sua cadeira, Romeu Pasolini
esperou que o apresentassem, o que não tardou a

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acontecer pela voz do mesmo que tinha colocado
os problemas em cima da mesa para discussão.
- O senhor Pasolini, é um dos mais antigos
membros desta associação, inclusive tem sido com
o seu trabalho fantástico que tem sustentado esta
casa que tanto amamos, tornou o mito do Alfa
numa história que é contada nas escolas, devemos-
lhe muito, para não dizer que era o que estava mais
bem colocado caso acontecesse alguma coisa a si
ou ao seu Beta.
Estas palavras levaram Hugo a sentar-se
novamente, tinha mesmo que levar com aquele
charlatão nas assembleias, ele apenas denegria a
imagem do Felipe…
- Meu caro senhor Alfa, bem sei que começamos
com o pé esquerdo, mas permita-me resolver o que
fiz ainda á bem pouco tempo – todos os presentes
ficaram com cara de estranheza perante aquelas
palavras – uma vez, que tal como fui apresentado,
eu sou dos mais antigos membros desta casa, eu
era uma das crianças que pertencia a primeira
Alcateia, graças a benevolência do primeiro Alfa
estou vivo, e devo-lhe isso, por essa razão dediquei
toda a minha vida a contar a história tal e qual
como eu me lembrava, das festas, das missões e da
figura que poucos conheceram presencialmente,
mas talvez tenha errado a tentar explicar apenas
quem era o Alfa, devia ter tentado saber quem era
e quem foi o Felipe, mas sempre pensei que fossem
a mesma pessoa, por isso peço desculpa, e espero
que isto possa agilizar as nossas relações –
puxando de dentro da mochila que tinha nas costas,
um enorme livro corroído pelo tempo.

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O espanto tomou conta da sala, muitos levaram as
mãos á cara, outros caíram de joelhos e todos os
que estavam sentados levantaram-se como se de
um gesto combinado se tratasse, não se tratava de
um livro qualquer, era o livro Sagrado, ainda com
todas as páginas no sítio, talvez um pouco mais
amarelas do que tinham sido no passado, com
bastante pó no seu interior, mas mantinha todo o
seu esplendor, continuava a ser a representação
máxima do que tudo o que a Alcateia significava,
colocando o livro mesmo junto aos pés do Alfa,
Romeu continuou:
- Passei cinco anos da minha vida atrás desse
livro, e quando finalmente o consegui, guardei-o
para quando o prometido chegasse, e aí está ele, tal
e qual como foi recolhido e mantido numa caixa
suja dentro da camara municipal, esse livro é a
nossa identidade e deve estar junto daquele que
melhor a pode defender.
Todos os olhos estavam agora virados para Hugo,
todos esperavam ansiosamente para ver qual seria
a sua resposta, mas não houve um agradecimento,
nem uma mudança na dureza do olhar, tudo ficou
extremamente parecido com o que era antes do
livro lhe ser colocado aos pés, sentando-se
novamente, fez sinal para que o livro fosse levado
e colocado num local onde todos o pudessem
adorar, e com uma rigidez na voz respondeu:
- Agradeço o teu gesto, e decerto que todos
ficamos deliciados com o regresso de algo tão
importante, mas é altura de nos focarmos no que é
importante, falaram-me de movimentos
independentistas, expliquem-me melhor isso.

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Tiago, pedindo permissão para falar, pegou num
enorme mapa de Portugal, desenhado numa manta
cor de creme, e estendeu-o á frente de Hugo e
então começou:
- A nossa sede encontra-se aqui – espetando uma
navalha no distrito de Coimbra – contudo desde
que ficamos sem líder, um bocadinho por todos os
lados, têm surgido vários grupos, a usar os mesmos
símbolos que nós, bem melhor falando quase os
mesmos – fazendo uma pequena pausa – estes
grupos usam casacos iguais, autodenominam-se
lobos e membros da alcateia, contudo o preto das
nossas vestes foi trocado por um branco feito de
neve. Mas não só em termos de cor do vestuário
eles são diferentes, a sua própria forma de ação
também o é, são muito mais pacíficos e procuram
muito menos a morte, atuam nos mesmos alvos
que nós, mas em vez de os executarem em praça
pública, apenas os entregam as autoridades, têm
muito mais poder politico e económico do que nós
neste momento, e talvez o ponto mais preocupante,
dizem seguir o White Alfa, que segundo os mesmos
está vivo e os guiou durante todo este tempo, já
recebemos várias ameaças, não de guerra mas de
ocupação sem uso da força, como eles dizem… -
levantando-se e colocando o seu olhar no líder.
Hugo, estava perdido nunca tivera numa posição
daquelas, tinha todos os olhos sobre ele, e começou
a pensar o que o Felipe faria naquela ocasião, mas
como que a sua consciência falasse, lembrou-se
que tinha de ser como o Alfa e não como o Felipe,
afinal de contas eram pessoas diferentes,

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respirando fundo para manter a calma, levantou-se
e disse com uma voz que roçava o imperativo:
- Meus caros, Alcateia só há uma, e somos nós,
se eles são mais pacíficos não podem ser
verdadeiros, e por isso mesmo nós iremos manter-
nos fieis aos ideais apresentados naquele livro –
apontando para o enorme livro já colocado num
altar, rodeado de imensas flores de todas as cores
possíveis e imagináveis – disto isto, espalhem a
mensagem, se eles conseguiram reunir pessoas nos
seus locais de ação, nós também iremos conseguir,
aumentem as matilhas de recrutamento, distribuam
armas e comessem a aplicar a nossa palavra, e
mandem uma carta aos responsáveis a dizer que
Alfa só há um, e eles devem-me obediência a mim,
não a um charlatão qualquer, enquanto a nossa bela
cidade de Coimbra, temos de retomar as caçadas,
temos de reconquistar o controlo da nossa cidade,
mas iremos mudar os modos, matem os mesmos
alvos do nossos antecessores sim, mas não os
empalem em praça publica, em vez disso, deitem-
nos ao rio Mondego, e deixei que os seus pecados
manchem as águas do rio e os purifiquem para a
outra vida, levem esta mensagem e vão meus
queridos irmãos. The Pack voltou, e voltou para
reinar!
O entusiasmo foi geral, todos os homens gritaram a
uma só voz, como uma alcateia uiva em direção á
luz, rapidamente pegaram nos seus casacos, em
algumas armas e partiram em direção às suas
missões, as mulheres acorreram aos altares e
começaram a rezar ao Todo-poderoso, as crianças,
mesmo sem se aperceberem do que se passava

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acorreram para os portões para se despedir dos
homens que partiam com sorrisos na face e sem
qualquer medo na alma.
O terror tomou conta da cidade uma vez mais,
muitos foram os mortos, muitas foram as crianças
deixadas órfãs, mas a lei era clara, todo e qualquer
um que fosse visto ou suspeito de praticar algo
indigno devia ser severamente castigado, não havia
atenuações no julgamento, tanto um ladrão como
um burlão teria o mesmo fim, boiar sem vida no
Mondego, ao inicio ainda houve uma tentativa
falhada da policia de conter o regresso da Alcateia,
mas não havia um Rodrigo no comando, e por isso
muitos foram os policias que também perderam a
vida, mas a situação ficou descontrolada, todos
eram suspeitos por isso matava-se sem critério, os
homens que tinham ouvido as façanhas dos
poderosos lobos que percorriam as ruas de
Coimbra e colocavam medo apenas com o olhar
tinha tornado o seu desejo de ação, em loucura,
crianças, mulheres, deficientes, todos começaram a
morrer, e quando estas informações chegavam á
sede, não eram contadas ao Alfa, segundo os
Deltas, ele não precisava de ser preocupado com
isso, uma vez que a sua mente estava focada na
guerra com os infiéis, muitas vezes mulheres e
crianças chegavam a pedir auxilio e era recusado, e
o Alfa sentando no seu enorme cadeirão com os
braços colocados sobre a mesa de reuniões, nada
fazia. O sangue e os gritos encheram a cidade de
Coimbra, as viúvas choravam alto sem consolo
possível, as escolas duplicavam a segurança e não
deixavam os estudantes sair, os políticos embora
pedissem auxílio a outras entidades eram

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rapidamente silenciados, a Alcateia estava de volta,
mas não da forma como era desejado.
Passadas duas semanas da “tomada” da cidade,
Tiago finalmente regressava a sede, com as roupas
manchadas de sangue, com olheiras enormes e um
ar abatido pelo tempo, trazia consigo duas pessoas
que ele ansiava que conseguissem trazer aquele
jovem líder á razão antes de ter de tomar medidas
extremas, grande parte dos membros, pelo menos
os mais sensatos, desejavam fervorosamente que
aquela chacina terminasse, aquela atitude não
estava a ajudar em nada a população, e estavam
mesmo dispostos a tomar uma atitude radical e
depor o líder, mas Tiago relembrando-se das
ultimas palavras de Felipe enquanto Alfa tentou
sempre evitar esse cenário.
Dezassete anos atrás na noite de luar que terminou
com a vida tanto de Felipe como de Luís Los
Santos, na despedida entre os dois Felipe tinha
colocado a mão calorosamente no ombro de Tiago
e com uma voz meiga, acompanhada pelo
profundo carinho que os olhos penetrantes dele
emanavam disse:
- Obrigado por tudo meio caro amigo, tens sido
uma ajuda e tanto, e aconteça o que acontecer hoje,
nunca te esquecerei, lembra-te da missão que te
deixo, ajuda o Hugo a ser um bom líder, e só lhe
dês o meu enigma quando ele for merecedor dele,
sei que te peço muito, mas tem que ser assim. Tem
calma com ele e protege-o dos restantes membros,
o seu inicio pode ser complicado, mas ele vai
acabar por encontrar o seu caminho, tenho a
certeza que sim.

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- E caso não encontre?
- Então terás de tomar as medidas necessárias
para a sobrevivência daquilo que criamos, eu sei
que serás capaz de tomar a melhor decisão
possível.
Antes de se afastar puxou a cabeça dele para baixo
e deu-lhe um beijo de proteção na testa, e com um
sorriso tão peculiar como belo fez-se desaparecer
nas sombras da noite.
Aquelas memórias percorriam a mente de Tiago
sempre que olhava para a cidade e no que ela se
tinha tornado nas últimas duas semanas, pessoas
tentavam fugir porque não se sentiam felizes nela,
ele poderia ter certezas de muito pouca coisa, mas
tinha a certeza de que aquilo não era o sonho nem
o desejo de Felipe.
Sem sequer trocar de roupa, apressou-se a chegar
ao pé de Hugo, mas fora abruptamente travado,
três homens de uma conjuntura física invejável
colocaram-se no seu caminho, de detrás deles
surgiu um homem já marcado pelo tempo, cabelos
longos apanhados num pequeno rabo-de-cavalo
branco, um fino bigode sobre os lábios e com um
olho de cada cor, um verde e outro castanho, a face
em toda a sua extensão apresentava rugas, umas
mais firmes do que outras, por outro lado o seu
sorriso não parecia ter sido tocado pelo tempo, era
brilhante e com um pequeno detalhe em dourado,
com as mãos metidas nos bolsos das calças pretas
que trazia vestidas, belamente enfeitadas na zona
por onde se colocaria o cinto para não as fazer cair,
coisa que era desnecessária uma vez que todas as

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suas calças eram feitas á medida, trazia uma
corrente de prata, com uma pequena cabeça de
cobra no final que lhe dava um retoque de poder
embora que só detetável aos olhos mais atentos.
Ao contrário dos restantes membros não trazia
nenhum casaco com as insígnias da Alcateia, mas
sim uma enorme capa de veludo negro com o
enorme lobo a ocupar quase todas as costas,
deixando obviamente espaço para a enorme frase
pintada a vermelho como se de sangue se tratasse
“venitenimomnissalutis” a tradição tinha sido
mantida, com um ar afável, fez sinal para que os
seus cães de guarda se afastassem e cumprimentou
com um tom de voz eloquente:
- Meu caro Tiago, já regressou da sua missão na
baixa? Só o esperávamos daqui a uma semana.
- Meu caro senhor Isaac, compreendo a sua
preocupação, mas houve forças que fizeram
regressar mais cedo – desviando o olhar para os
dois homens que se apresentavam atrás dele – e
também digamos que as medidas que foram
tomadas não me deixam muito trabalho –
gesticulando para as roupas ensanguentadas – mas
como pode ver está tudo dentro do previsível, por
isso se me dá licença tenho de falar com o Hugo.
- Meu caro, temo que tal não seja possível, o
senhor Hugo está em reunião a preparar a última
ofensiva contra os falsos fiéis a norte, não o poderá
receber – fazendo com que uma muralha humana
se formasse atras de si.
- Meu caro senhor – sentido já todo o seu corpo
a arder – temo que terá de receber, porque foi um

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pedido dele, e convém afastar os seus homens
porque detestava de os ter de deitar ao chão –
cerrando os punhos.
Um clima de tensão fez-se sentir, nenhum dos dois
parecia querer ceder, mas por fim e dando um
passo atrás, respirou fundo e fazendo um gesto
rápido com as mãos fez com que os homens
saíssem do caminho, Sir Isaac deixou o caminho
aberto.
Talvez um dos membros mais poderosos dentro de
toda a sociedade, descendente da família real
germânica, bem que um membro bem distante,
tinha uma fortuna maior do qualquer outro
membro, por um motivo desconhecido tinha
entrado e jurado fidelidade, e rapidamente graças a
todo o seu poder de retorica e persuasão tinha
atingido um lugar de destaque, estava presente no
pequeno grupo que tomava todas as decisões, não
lhe era conhecida família, nem amigos, segundo
ele vivia apenas para o bem-estar e a segurança dos
pequenos “lobos” que começavam agora a dar os
primeiros passos, nunca fora adorado por nenhum
membro mais pobre da sociedade, embora se
tentasse misturar com todos, o seu génio forte e a
sua “mania” da superioridade como a sua
autoconfiança desmedida tornavam-no facilmente
detestável. Tinha sido ele o responsável por cortar
as relações do Alfa com o exterior, por alguma
razão parecia querer isolar o seu chefe máximo,
embora pudesse argumentar que seria para afastar
algumas preocupações desnecessárias, na posição
dele, e com o seu forte conhecimento político, que
ninguém poderia negar, sabia perfeitamente que

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iria fragilizar e retirar algumas bases importantes,
mas sendo um dos membros de maior idade e
maior conhecimento ninguém se atrevia a
questionar. Haviam maiores problemas a serem
questionados.
Quando deixaram o velho fanfarrão para trás
Samuel chegou-se perto de Tiago e disse em tom
de brincadeira:
- Se fosse comigo, tinha-lhe dado uma dentadura
nova, já me estava a irritar o raio do velho, da
próxima eu trato-lhe da saúde – esfregando as
mãos.
- Nem tudo se resolve na base na violência –
respondeu abruptamente Tiago sem retirar o olhar
do caminho que ainda tinha que percorrer.
- Ninguém diria, principalmente vindo de
alguém com as roupas cheias de sangue – afirmou
friamente Lázaro.
- Não sou eu que decido tudo, acreditem se
fosse, muita coisa seria diferente. – Deixando cair
a palavra no vazio, o descontentamento era visível.
Depois de atravessar todo o salão finalmente
chegou á frente de Hugo, que estava apoiado na
mesa onde tinha o enorme mapa estendido com
alguns marcadores em toda a sua extensão
divididos, entre marcadores em forma de
majestosos lobos, e outros em formas de meros
peões, uma vez mais não tinha sido Hugo a decidir
aquilo, tinha sido aconselhado pelos mais
poderosos membros a faze-lo, para “manter a
postura de poder da Alcateia perante os infiéis”,

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jovens lideres são facilmente conduzidos por
caminhos sinuosos. Quando viu os seus amigos, os
olhos iluminaram-se e rapidamente esqueceu o que
estava a fazer, acelerando o passo para lhes
conseguir dar um sentido abraço, Sam aceitou-o
sem grandes oposições:
- Já estava a ficar preocupado, pensei que te
estivesses esquecido de nós, já estava a pensar
numa forma cruel de te castigar quando chegasse
cá fora! – Soltando um pequeno sorriso.
De seguida virou-se para Lazaro que com o olhar
flamejante lhe disse sem precisar de dizer “nem
sequer penses nisso”, um estranho sorriso foi
trocado entre os dois, e o abraço foi desnecessário,
por fim virou as suas atenções para Tiago que o
mirava com um olhar misto entre a preocupação e
o desprezo:
- Até tive medo de os trazer até ti, nos últimos
tempos sempre que tentei chegar ao contacto
contigo, fui bruscamente afastado pela tua nova
guarda pessoal – apontando com o nariz para Sir
Isaac e a sua comandita pessoal.
- Eu tive medo que te tivesse acontecido alguma
coisa, não sabia que tinhas tentado entrar em
contacto comigo, mas de certeza que o que ele fez
foi a pensar no melhor para a sociedade, não sejas
demasiado duro com ele, a idade já lhe perturba as
decisões.
- Tens aqui um belo acento – disse com tom
irónico Sam que já se tinha deitado sobre o
cadeirão que pertencia a Hugo, com as pernas
esticadas sobre um dos apoios para braços e

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deixando o corpo recostado sobre o outro – vives
que nem um rei, sim senhor, mas já sabes os
conselheiros reais também precisam de condições
desta magnitude, estas a ver, para aconselhar
melhor.
- Os conselheiros sim, agora o bobo da corte não
sei – disse com tom cortante Lázaro.
A gargalhada tomou conta dos presentes, mesmo
de Sam que terminou a gargalhada sincera com um
tom irónico:
- Que piada que tu tens, talvez o bobo sejas tu –
começando a afastar as inúmeras moscas que o
circundavam – mas que raio, nunca tinha visto
tantas moscas na minha vida, Lázaro faz alguma
coisa da vida e mata-as!
- De facto andam aqui demasiadas moscas,
tenho reparado num aumento nas últimas semanas
– comentou Hugo enquanto matava um dos
pequenos insetos que tinha pousado no seu braço,
deixando-o cair em direção ao chão.
-Isso prende-se exatamente com o que tenho de
falar contigo – puxando para longe dos restantes –
não podemos continuar a atuar desta maneira, as
pessoas estão a fugir da cidade com medo de nós,
outras estão a morrer com doenças causadas pelos
corpos que ficaram presos na ponte.
- Presos na ponte? Qual ponte?
- Na ponte da Rainha Santa, sabes perfeitamente
que o rio não é limpo á bastante tempo, então e por
causa dos paus que estão nele os corpos

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começaram a ficar presos junto dos alicerces da
ponte! As moscas começaram a aumentar, os
vendedores de fruta nas ruas tiveram de fechar! Tu
tens imensas doenças a percorrer as ruas da cidade,
para não falar dos membros desta nossa casa que
matam ao seu livre prazer sem ordem
absolutamente nenhuma! Estão a pensar fechar a
ponte Hugo! Não é agradável olhar para baixo e
ver corpos a serem comidos pelos peixes, olhos e
dedos a boiar e quando não assim não é, ver caras
enrugadas e negras sem vida a comtemplar quem
se atreve a espreitar! Hugo, isto não era o desejo
do Felipe, tens de fazer alguma coisa!
Aquelas palavras caíram como bombas dentro da
alma de Hugo, tinha estado fechado dentro daquele
armazém demasiado tempo, sempre que pedia para
sair era aconselhado a ficar lá dentro para a sua
segurança, tinha reparado que era olhado de lado
por alguns, mas sempre o fora, nunca pensou que
as suas ações tivessem tido recursões tão graves,
na sua mente procurava uma solução que tardava
em chegar, virando as costas para Tiago olhou para
a mesa onde tinha os pinos e percebeu.
A minha guerra agora é outra.
Com todo o poder que conseguiu arranjar voltou-se
novamente para o amigo e disse:
- Cancela todas as caçadas, chama todos os
membros de volta a sede, vamos organizar turnos e
grupos de caça sempre com um líder sensato,
arranja forma também de tirarem os corpos do rio,
e dá uma compensação aos vendedores, não quero
relembrado como o líder que arruinou esta linda

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cidade, agora vai, leva o Samuel contigo, pode ser
parvo, mas vai-te ajudar!
- Certo! E tu o que vais fazer?
- Vou fazer o que já devia ter feito á muito,
mandar um mensageiro ter com o White Alfa, para
marcar um encontro, e vou ver se o Romeu já
conseguiu decifrar alguma coisa do enigma do
Felipe, temos de o descobrir!
Ambos assentiram e seguiram caminhos diferentes,
Tiago levou Sam como tinha sido combinado, e
agora só faltava encontrar o mensageiro perfeito
para entregar a mensagem ao líder oposto, depois
de pensar e repensar, Hugo teve uma ideia que
talvez terminasse com vários dos seus problemas,
chamou Sir Isaac e entregou-lhe a missão, apesar
de uma revolta inicial lá assentiu e deixou o
armazém guardado pelos seus guardas de
confiança. As peças estavam lançadas, pensou
sentando-se no enorme cadeirão, esfregando
calmamente a franzida testa.
Os seus pensamentos foram interrompidos pela voz
cortante de Lazaro:
- Para não me mandares com eles, deves ter algo
que precises de mim, e de certeza que não é para
ser tua ama-seca neste velho buraco cheio de pó!
- Se achas que isto tem pó, devias ter visto como
isto estava antes de eu chegar, mas sim tens razão,
não te pedi para que ficasses aqui para ficarmos a
olhar para o nada, tenho um leve pressentimento
que depois da reunião com o Romeu, seremos
obrigados a ir um lado que pensei perdido á muito

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tempo. – Começando a olhar ao de leve para o
segundo andar do armazém.
Apesar de ser um edifício velho, e repleto com as
divisões que já vos contei, o armazém contava com
um segundo andar, cuja única ligação, era uma
velha escada vertical de madeira, sempre guardada
por dois seguranças, outrora esse segundo andar
era apenas utilizado como reservatório e arrumação
para objetos que já não eram utilizados, contudo,
com a necessidade de um espaço onde o enigma
pudesse ser estudado em segurança, fora adaptado
para uma comoda sala onde a equipa de
descodificação tinha começado a trabalhar.
Romeu Pasolini, era o líder dessa equipa, tinha
dado ordens restritas para que trouxessem para
aquele lugar todos os seus manuscritos sobre a
obra do Alfa, bem como o anel que ele tinha
deixado a Hugo, mas tinha por mais do que uma
vez chegado á mesma estrada sem fim, apesar de
ter a sala super equipada, com computadores de
ponta, todos os livros sobre profecias do mundo,
para não falar da maravilhosa equipa que tinha ao
seu dispor, quatro jovens, dois rapazes e duas
raparigas, acabados de se formar em estudos
clássicos e engenharia técnica, tinha uma equipa
capaz quer de remexer em pedaços de cimento e
descobrir que civilização tinha moldado aquela
forma, bem como agentes das sombras que
entravam em quase todos os websites do mundo
sem serem detetados.
Enquanto dos seus “colegas” procuravam enigmas
e profecias relacionadas com anéis, Romeu virava
e revirava nervosamente o pequeno anel em forma

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de leão, estava alguma a escapar-lhe no meio
daquilo tudo, o anel deveria ser uma estrada para o
resultado final e não um sinal de stop antes dum
abismo vazio.
Sentiu a velha escada a mexer-se, sabia que apenas
duas pessoas poderiam subir até ali, ou Sir Isaac,
que o tinha feito algumas vezes, a título de
curiosidade pessoal, ou Hugo que tardava em fazê-
lo, ficou surpreendido que era este último
acompanhado por outra pessoa que nunca tinha
visto.
No fim de percorrer a sala com o olhar, finalmente
dirigiu-se a Romeu com um tom de voz
apreensivo:
- Já chegaram a alguma conclusão?
- Nada, parece que andamos m círculos, tudo sai
do anel e tudo volta para ele, afinal de contas é a
única coisa que temos – elevando o objeto até
acima da sua cabeça.
Hugo franziu a testa preocupado.
Com um gesto rápido Lázaro tentou pegar no anel,
fazendo-o desaparecer dentro das suas enormes
mãos, começando a rodá-lo e a analisar cada
recanto do mesmo, chegando mesmo a cheirá-lo na
sua parte mais oculta, todos que o olharam
mostravam a mesma feição.
Mas que raio está ele a fazer?
Quando os olhos cor de avelã se levantaram do
anel, a sua voz num tom baixo, mas

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suficientemente alto para que todos ouvissem fez-
se sentir:
- Por acaso não têm uma luz negra, pois não?
Rapidamente um dos rapazes sentiu aquilo como
uma ordem, e pegou numa pequena lanterna que
normalmente era usada para encontrar manchas de
sangue em locais depois deste ter sido, inutilmente,
limpo, passando-o com o braço esticado para o
poderoso homem que se lhe apresentava á frente,
não queria correr o risco de chegar demasiado
perto.
Depois de ter a lanterna na sua posse, olhou de
relance para o interruptor que se encontrava junto a
porta e que controlava as duas únicas luzes que
estava presas no teto daquele compartimento, duas
finas e cumpridas luzes led brancas, uma jovens de
cabelos encaracolados ruivos acorreu para desligar,
quando o fez, Lazaro, colocando a lanterna presa
entre os dentes, elevou o anel na direção da luz que
dela emanava, arregalando os olhos num forte eu
tinha razão, agarrou na lanterna com a mão
esquerda e chamou Hugo para ver aquela imagem
que aparecia desenhada na parte de trás do anel.
Desenhada possivelmente com uma tinta invisível,
porque desejar algo do género com sangue seria
improvável, mas vindo do Felipe nada era
impossível, estava uma construção infantil, com
apenas nove linhas na sua constituição, e com duas
letras garrafais, tendo em atenção o tamanho do
anel, uma pequena casa com DN escrito mesmo no
meio.

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DN





Todos ficaram boquiabertos com aquela
descoberta, rapidamente todos começaram a
desenhar a estranha figura, acenderam as luzes
com tanta rapidez que os olhos de quem estava
mais descuidado foram agressivamente agredidos
por aquela luz, depois de um dos jovens
transcrever aquele estranho novo enigma para uma
folha Hugo pegou nela e começou a analisá-la
profundamente. Uma pista deixada pelo Felipe.
Sentiu por momentos a presença do velho amigo, e
um estranho sorriso apareceu-lhe na face, ainda
com a cabeça perdida a vaguear nos seus próprios
pensamentos olhou para as baratas tontas que se
tinham tornado os investigadores a procurar
ligações entre as letras e o desenho, a inventar
formulas, tudo parecia demasiado complicado,
aquilo tinha tudo menos a cara do Felipe.
Ele gostava de ser inteligente na simplicidade,
pensou.
Sentando-se numa cadeira colocou o desenho sobre
os joelhos e começou ele a tentar juntar as peças,
mordia nervosamente o dedo indicador da mão
direita, tremendo ao mesmo tempo a perna
esquerda.

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Os seus pensamentos foram brutalmente
interrompidos, pela voz serena de Romeu:
- Nós vamos descodificar isto, não te preocupes.
Quando ouviu estas palavras o cérebro de Hugo fez
um clique descodificar, exato o Felipe falava
sempre em código, principalmente em código
latim, levantou-se abruptamente da cadeira e pediu
a um dos jovens:
- Traduz-me “nossa casa” para latim!
Depois de teclar por alguns minutos, ignorando
completamente as traduções que os seus colegas
que apelavam saber falar latim, um computador é
sempre mais confiável que um ser humano, decerto
que era o seu pensamento, transmitiu a tradução
que encontrara:
- Domi Nostrae.
- DN- disseram Hugo e Romeu em coro.
Com um brilho nos olhos Hugo, colocou a mão em
cima do ombro de Romeu e com um sorriso na
face, igualmente brilhante, afirma confiante:
- Já sei onde esse anel quer que nós vamos, eu
vou lá mais o Lazaro, descansa e faz descansar os
teus “colegas”, o trabalho ainda agora começou –
dando uma última palmada amigável no ombro.
As desavenças já faziam parte do passado, bem
pelo menos parecia, Hugo ainda não confiava
totalmente naquele jornalista hiperativo, mas tinha
de lhe reconhecer grande capacidade académica e
grande empenho e amor pela Alcateia, sem falar do

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fascínio que tinha pelo Felipe, na pessoa do Alfa,
sabia que se queria decifrar o enigma tinha que o
ter por perto.
Quando estava prestes a atravessar a porta, ouviu
novamente a voz de Romeu:
- Por favor, deixa-me ir contigo, esperei toda a
minha vida por aventuras destas, não me metas á
margem.
O olhar dele demonstrava total desgosto, quase a
deixar cair algumas lágrimas por detrás dos dois
pedaços de vidro que faziam refletir alguma da luz,
respirando fundo e ignorando completamente o
facto de já do lado de fora Lazaro estar a abanar
fervorosamente a cabeça em sinal de desaprovação
apelando quase de joelhos para que tal não fosse
permitido, acenou positivamente com a cabeça, o
seu amigo enorme ia tendo um ataque de nervos,
dando um colossal murro na infraestrutura á sua
frente, fazendo-a abanar completamente, levando
mesmo as lâmpadas a tornarem-se intermitentes
por alguns segundos, recuando de imediato o
braço, olhava nervosamente ora para Hugo ora
para a infraestrutura que ainda abanava, com uma
expressão de…
Não fui eu, e se fui a culpa foi tua.
E assim os três rapazes deixaram o armazém em
direção a uma velha van que se encontrava junto
ao rio, mas deixemos que eles façam a viagem
sozinha e viremos a nossa atenção para um luxuoso
BMW preto que fazia todo o caminho em direção á
sede da Alcateia 2.0, na cidade invicta do Porto.

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No seu interior, Sir Isaac, tinha encostado ao
ouvido um telemóvel de teclas, notoriamente mais
antigo do que deveria ser usado por um membro
tão rico, e notoriamente retirado de algum
esconderijo devido á quantidade de pó que trazia,
sentando á janela do banco de trás respondia
nervosamente:
- Eu compreendo Padre – fazendo um pequeno
sotaque italiano – mas tem que perceber ele me
afastou completamente da zona de ação, mandou-
me negociar com os infiéis do Norte!
- Não quero saber! – Respondeu uma voz limpa,
num perfeito português, apesar do seu carregado
sotaque italiano – Tu tens de estar perto dele, para
quando eles descobrirem alguma coisa sobre
aquele maldito enigma, tu me avisares, aquele
infeliz do Felipe Ferreira deve ter deixado alguma
coisa para trás, não ia fazer com que o segredo se
perdesse.
- Capisco Signore…
- Não me falhes Isaac, já sabes o que acontece a
quem o faz, o Los Santos teve a decência de
planear algo antes de eu lhe por as garras em cima,
tu não terás tanta sorte! Che Dio ti protegga. Noi
siamo uno.
- Noi siamo uno…
E a chamada caiu, atirando o telemóvel para longe
sentia que a rede estava a apertar, e não tencionava
servir de jantar para ninguém.

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Voltando a bela cidade dos estudantes, os três
companheiros já estavam perante a velha e
corroída Van. Embora ainda tivesse algumas
parecenças com o que era á dezasseis anos atrás,
era mais o que a separava do passado do que a
aproximava.
A Van outrora constituída por dois andares, mal-
amanhados, estava completamente desfigurada, do
segundo andar já nem sinal tinha, estava manchada
de musgo em toda a sua extensão e parte do teto já
tinha sido arrancado, as janelas partidas, com
sinais óbvios de pedradas e a porta entreaberta com
algumas palavras escritas nela, a que melhor se via
era “monstro”.
Como já seria de esperar, aquele local trouxera
milhares de recordações, conseguia ver
perfeitamente dois jovens adolescentes a entrar e
sair pela porta a sorrir e a brincar um com o outro,
conseguiu ver com exatidão a ultima vez que viu
Felipe dentro daquelas “quatro paredes”, viu o
“funeral” feito no rio atrás de si, ainda se
conseguia lembrar da melodia que tinha tocado
naquela tarde, a imagem de Pedro começou ao de
leve a passar-lhe na cabeça, juntamente com a de
Felipe, bem como a de si próprio e do seu longo
cabelo que começava a sentir falta.
Fora acordado do seu transe por um puxão de
Romeu que apontava nervosamente para dentro da
casa, havia luz, uma luz fraca, mas estava lá,
alguém andava dentro da casa, sem retirar os olhos
de dentro da Van, fez sinal para que Lazaro se
coloca-se lado a lado com ele, puxando de um
pequeno revolver preto, com a palavra “Alfa”,

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escrita em letras cinzentas no cano, empurrando
gentilmente a porta com a ponta do pé, fez sinal
para que Lazaro entrasse, fosse quem fosse, andava
a vasculhar no que outrora fora a cozinha, com um
longo casaco negro, e um estranho colar a baloiçar
de um lado para o outro, demorou algum tempo até
que o homem desse pela presença deles, quando o
fez já Hugo e Lazaro estavam quase em cima dele.
O gesto do rapaz que agora mostrava a feições, foi
rápido e quase incompreensível aos olhos nus,
pegando numa pequena arma disparou na direção
do terceiro homem que se mantinha mais atrás,
falhando propositadamente, fazendo o disparo
passar a raspar o ombro de Romeu que soltou um
grito de dor acompanhado por um pedido de ajuda
enquanto se ajoelhava no chão, os restantes
olharam para ele e deram a fação de tempo que o
misterioso homem precisou para fugir partindo o
que restava da janela da cozinha, ainda houve um
ultimo tiro saído do revolver de Hugo mas já não
foi a tempo, franzindo a testa acorreu para o lado
de Romeu que entrara em pânico ao ver o sangue,
um aventureiro sem duvida.
Lázaro pegou no trinca-espinhas e colocou-o
encostado a uma das paredes, virando de seguida
para Hugo:
- Queres que vá atrás dele, talvez ainda o
consiga apanhar.
- Não, quem quer que fosse estava à procura do
mesmo que nós – olhando para o espaço revirado
há pouco tempo – mais alguém sabe do enigma do

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Felipe, temos de ser nós a descobri-lo, antes que
mais alguém o faça.
Depois de estabilizarem o homem ferido
começaram a procurar por toda a casa, percorreram
todas as divisões, também não eram muitas, Hugo
parecia que quanto mais remexia mais se lembrava,
conseguia ver com perfeição o sofá, a pequena
mesa onde um dia Felipe tinha colocado uma mala
cheia de dinheiro, e via a televisão encostada a
parede da sala, e ao seu lado a sua velha guitarra,
que agora devia estar nas mãos de um jovem
rebelde que a tinha comprado numa feira de
domingo de manhã, sem se aperceber deixou soltar
um audível:
- A minha velha amiga…
Do outro lado da casa, ouviu-se um enorme
estrondo, como se algo tivesse caído para o chão, e
fora seguido da voz de Lazaro:
- Espero que não te refiras a esta coisa velha e
poeirenta!
Correndo até ao barulho viu caída no chão e cheia
de pó, já sem cordas a sua velha “companheira”, o
olhar de Lazaro mostrava um profundo
desinteresse por aquele velho pedaço de pau.
Indo devagar em direção aquele objeto, começou a
deixar fugir um pequeno sorriso, talvez aquilo
fosse das poucas coisas que ainda o prendiam ao
passado, lembrava-se perfeitamente como usava a
bela guitarra para cortejar as raparigas da noite,
mesmo que terminasse sempre ou sozinho ou com
alguém que podia ser tudo menos uma rapariga,

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começou novamente a sentir falta dos seus longos
cabelos, e quando finalmente a agarrou começou a
passar os dedos pelas cordas imaginarias, mas que
na sua mente faziam uma bela musica para ser
ouvida a olhar para o por do sol a sentir o mar a
tocar ao de leve nos pés, soltando um enorme
suspiro voltou a realidade, mas com um velho
cortinado que viu á sua direita fez uma “corda”,
com a qual prendeu a guitarra as costas para a levar
de volta para a sede e quem sabe um dia conseguir
conserta-la.
Depois deste momento de união com o que foi e
não voltará a ser, retomaram as buscas, procuraram
por todo o lado, remexeram em todos os moveis
que restavam, só faltou limpar o pó e colocar tudo
na forma que outrora tinha sido, normalmente é
nos dias de arrumação que se encontram objetos
que pensamos antigamente perdidos, mas naquele
caso nem isso teria ressoltado.
Estafados, encontraram-se junto á entrada, depois
de quase hora e meia de buscas não tinham
encontrado nada, com as mãos negras do pó e os
olhos castigados pelo mesmo motivo estavam
prontos para abandonar o local, se calhar não era
tudo tão linear como parecia, talvez fosse outra
frase, ou quem sabe fosse outro local, haviam pelo
menos três locais, a que o Felipe poderia chamar
de casa, teriam de percorrer todos para encontrar o
enigma? Que fosse!
Contudo quando quase todos já tinham perdido a
esperança, Romeu reparou num pequeno pormenor
que poderia ter passado de despercebido a todos,
mas que a ele saltava e brilhava como se chama-se

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á sua atenção, mesmo por cima da porta,
encontrava-se uma pequena parte de ferro que se
encontrava em excelente condições, e que ao
contrario do restante sitio não tinha qualquer marca
da passagem do tempo, podia mesmo arriscar que
tinha sido colocada depois, brilhava quando os
raios de sol lhe batiam, começando a raciocinar o
mais rápido que conseguia, tentava lembra-se do
desenho que Lazaro tinha feito, mas não o
conseguia ver com exatidão e então antes de os
deixar sair pediu com uma voz confusa e baixa:
- Por acaso nenhum de vocês têm o desenho que
estava no anel, pois não?
- Por acaso até tenho – respondeu Hugo, tirando
do bolso das calças um pedaço de papel dobrado e
redobrado, uma e outra vez.
Desdobrando o papel o mais rápido que conseguia,
finalmente viu que a sua teoria fazia sentido, mas
agora precisava de a provar, necessitava de uma
forma de chegar aquele local brilhante, mas não
havia bancos, nem mesas em condições para
aguentar com ele, e suspeitava que se pedisse a
Lazaro ele não o iria fazer, então começou a pensar
numa maneira inteligente, perigosa, mas
inteligente, olhando para a entrada viu uma
pequena cavidade no chão e com uma voz agora
mais confiante disse:
- Lázaro podias-te ajoelhar e olhar para aquela
pequena cavidade – apontando para o chão, para o
que não passava de um buraco no soalho – penso
que nos ajudará a descobrir o mistério.

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Desconfiado, olhou para Hugo que acenou
positivamente para que ele fizesse o que lhe era
pedido, mais por curiosidade do que propriamente
por confiança que fosse algo plausível é que aquela
ordem foi dada.
Já de joelhos a olhar para o pequeno buraco que
agora estava a apenas alguns centímetros do seu
nariz, viu apenas algumas partículas de pó, um
velho botão já roído pelo tempo, e alguns fios de
uma tonalidade preta, quando já se estava a
levantar sentiu nas suas costas dois pés, embora
quisesse levantar-se para deitar quem quer que
fosse ao chão, sentiu um peso tão grande, que só
não caiu redondo no chão porque se apoiou nos
braços ficando em posição de prancha, em cima
das suas costas estava Romeu a puxar
fervorosamente a barra de ferro que estava em
cima da porta, quando começou a sentir a
gravidade a falhar, sentiu o suor frio a escorrer-lhe
pela face quente, quando já estava a cair em
direção ao chão finalmente sentiu a barra a
desprender-se e a cair juntamente com ele, bateu
com estrondo no chão e sentiu a barra a bater-lhe
no peito.
Quando se levantou viu a face furiosa de Lazaro a
fita-lo e por cima dos seus ombros o olhar atento
de Hugo que com um golpe rápido e forte afastou o
amigo que passou de uma face de revolta para uma
face de surpresa, de um momento para o outro a
barra de ferro tinha desaparecido, já estava nas
mãos de Hugo que a examinava todos os recantos
da mesma com toda a atenção do mundo, passando
a ponta do dedo indicador em todos os lados da

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enorme barra retangular que reluzia com os raios
do sol, embora nas suas pontas tivesse algum pó
acumulado, deveria ser feito de ferro ou alumínio,
mas isso pouco importava naquele momento, no
meio do objeto estava um estranho símbolo,
parecia-se com uma pequena pedra protegida por
um lobo com uma cicatriz no olho direito.
Quando Hugo levantou o olhar, já tinha os dois
amigos colocados ao seu lado, com o olhar perdido
naquela estranha peça de metal, depois de muito
percorrer todos os cantos e recantos da peça, o
resultado tinha sido exatamente igual a zero,
parecia que tinham chegado a mais uma estrada
sem saída, mas novamente um brilho de fez de
uma das mentes, Romeu que tinha conseguido
decifrar aquele pequeno mistério parecia estar
agora a entrar no clímax da sua inteligência,
retirando abruptamente a peça da mão de Hugo,
começou a procurar uma pequena cavidade, como
se procura-se um botão ou algo do género, a sua
mente estava a trabalhar a mil, procurava por uma
solução as hipóteses passavam de mil a zero num
ápice, quando acabou de dar a quarta volta a peça,
olhou para aquele pequeno símbolo que se
encontrava no meio, agora mesmo á frente dos
olhos, parecia ser de um material diferente, como
se tivesse sido colocado depois, como se pedisse
para que clicassem nela, e foi isso que fez, quando
clicou ouviu-se um pequeno click, e a peça abriu-
se ao meio, lá dentro estava um pequeno
pergaminho, e outra caixa mais pequena, com três
orifícios em cima, todos em forma de anel, o
pergaminho por sua vez estava já corroído pelo

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tempo, o amarelo que deveria ser a sua cor natural
já estava a passar para o castanho.
O olhar de surpresa tinha tomado conta de todos,
mas nenhum teve a coragem de abrir aquilo antes
de chegarem a um local sagrado.
Fizeram o caminho da forma mais rápida que
conseguiram de volta para a sede.
Mais a norte, na cidade Invicta, junto ao rio Douro,
numa das mesas junto a zona ribeirinha, com o sol
a bater docemente por toda a cidade, as ruas cheias
de turistas, principalmente de franceses e ingleses,
melhor dizendo “avecs” e “cmones”, como o povo
português gosta de chamar aos imigrantes que
devido a permanecerem grande parte do ano no
pais onde a sua língua oficial não é português,
quando regressam a Portugal misturam as duas,
mas isso não é visto com compreensão, mas sim
com um ataque ao ego enorme, que vê um
complexo de superioridade, ou em termos mais
impessoais, de mania que o povo português não
consegue ultrapassar.
Sentada numa dessas mesas redondas, relacionadas
a um restaurante que tem como prato principal a
francesinha, mas que em que cinquenta por cento,
nem sabem a receita original, onde os empregados
sabem falar inglês, francês, italiano e com um
bocado de sorte mandarim, mas que quando se
pede para falar português raramente conseguem
faze-lo sem dar um “pontapé na gramatica”, estava
uma senhora a rondar os trinta anos, cabelos loiros
cortados á altura do ombros, olhar de um azul
cristalino e os lábios pintados com um vermelho

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espampanante, a mexer no telemóvel, quando
recebeu uma chamada que tinha o numero
guardado como “Ómega dois”, fazendo sinal para
que a sua companheira de mesa fizesse silencio,
atendeu:
- Minha senhora, tivemos informações que um
dos membros mais poderosos dos infiéis de
Coimbra acabou de chegar ao Porto, e quer falar
consigo….
- Ótimo já não era sem tempo, tragam-no até
mim, junto a zona ribeirinha, naquela zona com
pouca gente que usamos para as execuções, não
tragam muita gente, quero negociar, não quero
sangue infiel nas águas do Douro.
- Entendido Senhora, com a sua licença.
Quando a chamada foi desligada, com o olhar
repleto de felicidade e um toque de loucura disse
para toda a gente que quis ouvir:
- Marie, o cachorrinho veio para a boca do lobo!
Não é preciso referir que todos os que percebem a
língua lusa ficaram com caras de surpresa e
também alguns a roçar a pena, afinal de contas
sempre que nos vemos face a face com a loucura
tende-mos a ter uma de duas reações, ou medo,
afinal de contas sempre que ultrapassamos os
limites que balizam o que nos chama-mos de
realidade e normalidade, sentimo-nos ameaçados,
com medo porque sabemos que são esses limites
de noção e ética que nos afastam dos nos instintos
animalescos, ou então sentimos pena, pena por
aquela pessoa ter pedido por completo o controlo

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sobre si própria, sentimos pena porque achamos
que aquela pessoa vale menos do que nós,
simplesmente porque mentalmente está mais
desgastada do que nós, sem duvida que as doenças
mentais são um problema na nossa sociedade, e só
loucos é que o poderiam negar contudo mesmo que
toda a gente o veja, continua-se a varrer para
debaixo do tapete esta dura realidade, continuam-
se a ignorar os milhares de jovens que sofrem com
problemas psicológicos, colocando-lhes um rotulo
de “chama atenção”, mesmo quando esse chamar,
que na realidade é um grito de revolta e de alerta
conduz a uma morte precoce, continuam-se a
ignorar os milhares se não milhões de
trabalhadores que no fim de um dia de duro
trabalho ainda têm de chegar a casa e contar os
míseros centímetros que têm na conta, para
tentarem prever se vão conseguir terminar o mês
com dinheiro suficiente para pagar as contas, este é
o mundo em que todos vivemos mas que apenas
alguns aceitam ver. Não consigo dizer com
precisão que leitura as pessoas a volta daquela
mesa tiveram daquela mulher com o olhar cheio de
alegria, mas consigo afirmar com quase toda a
certeza, não foi de todo uma leitura positiva.
Passados cerca de três quartos de hora, a majestosa
viatura de Sir Isaac tinha chegado ao local
combinado, na famosa zona ribeirinha, mas não
onde a mulher feliz (ou louca), se encontrava, uma
zona mais reservada, com a rua a ser feita toda de
calçada portuguesa, o poderoso carro sentiu-se a
tremer desde que iniciou a descida, descida essa
que levava mesmo ao lado do poderoso rio Douro,
conhecido historicamente por ser uma poderosa

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arma na construção do outrora reino de Portugal,
embora hoje em dia não tivesse tanta importância
estratégica, continuava a apresentar um forte papel
na economia e como tudo nesta vida, continuava a
guardar os seus mais profundos segredos, no fim
da rua, bem melhor dizendo a meio da mesma, mas
o local ate onde Sir Isaac pode avançar estavam
três carros, três Mercedes-Benz brancos, de la de
dentro saltaram dez membros da autointitulada
Shinning Pack, mantendo os símbolos originais
tinham trocado radicalmente as cores, não havia
preto as roupas, os acessórios, até as armas que
traziam metidas nas calças eram de um branco
celestial, a corrente do rio corria desenfreadamente
sem ligar aquele acontecimento, estava a típica
temperatura de verão, docemente refrescada pela
brisa fluvial, a majestosa ponte de D. Luís como
fundo, toda ela construída em aço, muito parecida
em termos tanto de material, como de processos
com o símbolo máximo de França, a Torre Eiffel,
não tivessem sido as duas projetadas pela mão do
mesmo engenheiro.
Quando finalmente saiu do carro, apoiado na sua
fiel companheira bengala, Sir Isaac sentiu um
pequeno calafrio subir-lhe pela espinha acima,
tinha trazido apenas a sua guarda pessoal, por mais
fortes que fossem, nunca teriam qualquer chance
contra dez homens e para mais, armados!
Limpando o suor com um velho lenço de pano,
marcado com duas longas linhas castanhas
meticulosamente bordadas em toda a sua extensão,
sentiu os seus músculos a contraírem-se e o seu
estomago a começar a andar as voltas, cada passo

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que dava em direção aqueles homens de branco
parecia aumentar esta sensação doentia, seria
possível que estivesse a sentir medo?
Quando finalmente se encontrava frente a frente
com os soldados do outro lado da trincheira,
engolindo em seco, apoiando fervorosamente as
duas mãos em cima da bengala disse com um tom
de voz, ainda cortado pelo pavor:
- Desejo…falar…com o vosso líder!
- Com a vossa líder, no caso!
Uma voz feminina, a mesma voz que tinha
atendido o telefone na mesa da ribeira, saiu de
detrás de um dos carros, também ela toda vestida
de branco, com uma minissaia que marcava as
curvas de uma jovialidade que parece nunca a ter
abandonado, com um pequeno top feito neve e
uma enorme cicatriz na barriga, uma pequena
mascara tipicamente usada no carnaval de Veneza
para esconder parte da sua face, embora o seu olhar
ainda conseguisse colocar em sentido todos os que
olhassem para ela, avançou destemida e com um
estranho sorriso colocou-se a frente do seu
convidado de honra.
Voltando a engolir em seco uma e outra vez, Isaac
procurou forças para responder aquele ser quase
divino que lhe aparecera á frente, a vida tinha-lhe
retirado muitas coisas, inclusive a companhia
feminina, há muito que ansiava por ela, mas nunca
a poderá ter, e agora estava ali á sua frente, água
começou a crescer-lhe na boca, o seu olhar
percorria todos os recantos do corpo que se lhe
apresentava á frente, e a sua mente começara a

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imaginar coisas que não me atrevo a colocar em
palavras, contudo algo quebrou estes pensamentos
nefastos, uma memória, uma memória de há muito
tempo atrás.
Cerca de quinze anos antes deste dia ao qual
voltaremos já de seguida, o poderoso Sir Isaac, não
passava de outro membro de uma família real
esquecido numa fotografia no fundo de uma gaveta
cheia de pó, estava perdido e tinha batido no fundo
do poço, tinha dividas relacionadas com o vicio do
jogo, andava com a mesma roupa durante semanas
e mesmo os empregados que lhe tinham sido fieis,
tanto a ele como aos seus pais, esses sim um
senhor e uma senhora de honra, respeitáveis,
cumpridos e fieis á sua palavra, o tinham
abandonado. Uma noite, sozinho em casa, uma
enorme mansão a cair aos bocados situada no
estado de Baden-Wurttemberg, rodeada de denso
matagal a volta, com apenas uma entrada e apenas
uma saída, encontrava-se perto da famosa Floresta
Negra Alemã, por imensas gerações a sua família
morava ali, mas agora faltava-lhe inclusive
dinheiro para pagar os impostos sobre a casa e
poderia perde-la, era uma casa de sonho de
princesa, com dez quartos divididos em dois pisos,
três casas-de-banho, uma sala de jogos, duas
cozinhas, duas salas de estar e uma enorme
biblioteca, era toda construída entre a madeira e a
pedra, no caso o granito para lhe dar uma
tonalidade mais negra, no exterior outrora corriam
livremente pastores alemães, sempre muito bem
treinados para proteger a sua casa, o seu lar, mas
até esses tinham sido vendidos ou trocados para
pagar dividas, era uma casa fantasma, sentado,

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melhor quase deitado com uma garrafa de Vodka
colocada ao seu lado vazia, Isaac naquela altura já
com cinquenta anos tinha na mão já encharcada
com as suas lágrimas uma velha fotografia da sua
família, num natal passado, os seus pais, ele com
um roupa novinha em folha e uma jovem, deveria
ser pelo menos dez anos mais nova que ele, dos
seus olhos já não saiam lágrimas isoladas, mas sim
rios delas, sentia-se perdido, abandonado e de facto
isso não estava muito longe da realidade. De
repente ouviu dois carros a parar á sua porta, mas
simplesmente aceitou o facto de serem assaltantes,
para ele nada mais importava, mas foi aí que tudo
mudou, viu um anjo verdadeiro, um anjo caído que
tinha ido salvá-lo, e foi neste preciso momento em
que a vida de Sir Isaac mudou, recebera uma
missão que tencionava cumprir, fosse qual fosse o
preço a pagar, e assim afastou todos os
pensamentos pecadores da sua mente e disse com
tom imperial:
- Suponho que seja você?
- Meu caro, já estava a pensar atirá-lo ao rio se
não parasse de olhar para as partes sinuosas do
meu corpo, isso deve-lhe ter feito mal á mente, não
sou a líder que procura, ela encontra-se atrás de si.
Todos os olhares s viraram e prenderam as suas
pupilas numa figura jovem, não deveria ter entrado
nos trinta sequer, com uma enorme capa branca
rente até as calcanhares, um vestido também ele
branco a dar até abaixo um pouco dos joelhos,
longos cabelos negros soltos sobre as costas e uma
belíssima e ornamentada mascara de lobo colocada
na face, esta a mesclar-se entre os tons de branco e

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dourado, devido ao facto de pedras de ouço puro
incrustadas nele, o olhar poderoso da líder fitava o
calmo rio, respirando fundo e enchendo o peito não
só de ar, mas também de confiança virou-se
mantendo um tom frio e cauteloso:
- É a mim que procura Sir Isaac, eu sou a White
Alfa, e estes lobos respondem-me a mim e só a
mim!
- Minha cara senhora trago uma mensagem do
único e verdadeiro Alfa, ele quer-se encontrar
consigo e ter uma reunião para esclarecer e
terminar com uma vez por todas com esta patetice
de existirem duas Alcateias!
Esta resposta criou um tumulto atrás de si, todos os
lobos brancos estavam agora a levantar as suas
armas contra o corpo daquele velho homem, ele
próprio não sabia onde tinha ido buscar coragem
para dizer aquilo daquela maneira, mas isso não
importava, estava dito e agora só podia lidar com
as consequências.
A agitação foi acalmada pela mão da sua líder,
como o dono que manda dos seus cães estarem
quietos e calados, com um tom de voz mais
descontraído respondeu:
- As nossas ações foram sempre numa tentativa
de demonstrar que a nossa é a única e verdadeira
alcateia, vocês é que parecem não perceber isso,
por isso com todo o gosto irei ter com esse falso
profeta que continua a pregar em nome do Todo-
Poderoso, e já de agora admiro a vossa coragem
forasteiros, e devo admitir que são homens de
sorte, se eu tivesse de mau humor, já estariam a

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servir de comida para os peixinhos, mas isso seria
uma péssima forma de começar as negociações,
por isso se fazem o favor vão na frente a mostrar o
caminho, nós iremos a seguir, as cartas estão
lançadas!
De facto as cartas estavam lançadas, mas não
apenas dois jogadores que estavam in, nas sombras
outra sombra se juntava á festa, numa pequena ilha
mediterrânea, numa casa ainda mais pequena, onde
as ondas furiosas do Mare Nostrum como era
chamado por um dos maiores impérios da nossa
história batiam contras as falésias, estavam
reunidos dois homens, com longas vestes brancas,
com um estranho símbolo nas costas, uma enorme
mão dourada com uma pequena cobra enrolada
dentro dela, na sala onde eles se encontravam, uma
sala constituída quase na sua totalidade de
mármore com dois níveis, um primeiro nível com
um piso construído em mosaico brilhante,
colocado meticulosamente de forma ordenada, com
uma zona central, parecida com um púlpito onde se
encontrava um enorme cadeirão também ele feito
com a pedra que abundava no restante da sala,
sentada nele, um dos homens com rugas na mão
que já lhe apresentavam alguma idade, mas uma
força e jovialidade na voz que pareciam contrariar
o que todos os olhos pareciam ver com clareza,
sentado numa pose imperial, com uma perna
colocada, dobrada sobre a outra, os braços
apoiados no apoio do cadeirão e um enorme sorriso
brilhante nos lábios, tentava acalmar o que parecia
ser uma formiga com medo de ser pisada que
deambulava á sua frente:

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- Calmati, amico mio – o sotaque italiano era
óbvio, mas por razões óbvias deixem-me traduzir-
vos a conversa – o nosso querido parasita está bem
colocado, não há como ele falhar.
- Mio Signore, já se passaram dezasseis anos
desde da morte, do que nós achamos ser o último
sabedor da verdade que procuramos, porque
continuamos a virar as nossas atenções para aquele
bando de miúdos?
- Porque esse tal que morreu deixou um enigma,
e tenho a sensação que esse enigma nos vai levar
exatamente onde queremos ir, e mesmo que não o
faça, aposto a minha mão em como vai conduzir o
grupinho dele até nós, afinal de conta, o sangue
dos Ferreira procura sempre vingança, por isso não
te preocupes – levantando-se e bebendo um pouco
do vinho que tinha num cálice de ouro colocado no
chão ao lado do enorme cadeirão, mesmo antes da
escadaria que separava o acento divino do resto da
sala, quase como se dividisse um deus dos mortais,
eram exatamente doze degraus, construídos num
material diferente de todo o resto, uma pedra negra
fazia-os brilhar quando eram atingidos pela luz
artificial que vinha do teto, e por uma pequena
brecha de luz natural que vinha de um dos lados do
enorme edifício, essa luz só se conseguia ver por
alguns minutos durante o dia, mas ainda fazia com
que os degraus brilhassem mais, já colocado ao
lado do seu compatriota, colocou a mão no ombro
dele, encostando-a mesmo ao pescoço, baixando o
tom de voz, mas endurecendo-o continuou – e
mesmo que este nosso plano não funcione, penso
que ninguém vai levantar a voz para apontar o meu

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erro pois não? – Exercendo uma força sobre-
humana num dos pontos mais sensíveis do corpo
humano, fazendo com que aquele homem que
sentia agora todo o seu corpo a ficar sem forças
quase caísse de joelhos, a dor era incontrolável, e
num ato de desespero na tentativa de se libertar só
conseguiu dizer uma simples frase:
- Claro…que…não…Signore mio – sentido a
dor a aumentar ainda mais, e de repente a passar de
forma abrupta, sem conseguir controlar o seu
corpo, caiu de joelhos no chão, enquanto o outro
homem desaparecia nas sombras.
Permitam me agora fazer uma pequena interrupção
da nossa narrativa, iremos retoma-la na bela cidade
de Coimbra, mas antes disso, deixem-me falar-vos
de um dos sentimentos mais primitivos do ser
humano, o medo, desde dos primórdios que o este
sentimento, por mais banal que pareça, condiciona
a nossa vida a todos os níveis, e depois talvez seja
o sentimento mais camaleónico da nossa vida,
porque todos nós temos medos diferentes, desde do
medo do escuro com medo que o bicho papão nos
venha comer, ao medo de ser atacado por um cão
raivoso, todos eles podem ter diferentes
fundamentos, desde de traumas de infância, ao
simples instinto de sobrevivência, e mesmo
havendo mil e um tratamentos para tratar destes
pequenos obstáculos, só existe um que o resolve de
facto, pode ser considerado um tratamento de
choque, mas sem duvida que é eficaz, prende-se
com lutar cara a cara com o que nos domina, bem
sei que as vezes isso torna-se quase impossível,
não estou a sentir nem o Sr. Isaac, nem este

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homem que se apresenta de joelhos a enfrentar cara
a cara aquele velho “Signore”, mas será que isso é
necessariamente bom? Afinal de contas quanto
mais tempo se vergarem, devido ao medo que têm,
mais medo vão ganhar e mais poder e controlo
aquele ser misterioso guarda para si, por isso deixo
um pequeno conselho para quem o quiser seguir,
nunca se verguem ao vosso medo, porque uma vez
no chão torna-se extremamente difícil voltar a ficar
de pé, somos nós que controlamos os nossos
medos, nunca poderá ser ao contrário.
Voltemos agora á nossa narrativa, com os nossos
três amigos, cheios de pó com um estranho enigma
nas mãos e um deles com uma velha guitarra às
costas, acabavam de entrar na sede da alcateia, as
paredes de cimento pareciam brilhar, ou se calhar
eram as lagrimas nos olhos de Hugo que faziam
com que isso parecesse realidade, afinal a realidade
torna-se naquilo que queremos acreditar e nada
mais do que isso.
Dirigindo-se á mesa de reuniões colocaram a
estranha caixa em cima da mesma, as sensações
transbordavam, todos eles sentiam algo diferente,
Hugo sentia que estava mais próximo do passado,
mas ao mesmo tempo que a alegria aumentava,
aumentava com ela o medo, o medo de encontrar
um passado ainda mais sombrio do que já tinha
conhecimento, Lázaro talvez o mais tranquilo com
toda a situação sentia um enorme orgulho em si
próprio afinal de contas se não fosse ele não
tinham chegado sequer ali, e por ultimo Romeu
sentia que toda a sua vida finalmente estava a fazer
sentido, tinha estudado, tinha trabalhado todo

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tempo que tinha vivido para conseguir chegar perto
da verdade, e agora estava ali apenas a uma caixa
de distancia.
Aguardaram que Tiago e Sam regressassem, afinal
de contas, apenas Tiago tinha conhecimento á
priori do enigma do Felipe, merecia estar presente
quando este fosse decifrado.
Tiveram de esperar pouco tempo, tempo suficiente
para limparem a cara do pó acumulado e trocarem
de roupa, uma vez mais esta última ação mais fácil
para Hugo e Romeu que tinham roupa disponível
no armazém da sede.
Falemos agora um pouco desse armazém, na parte
detrás da sede, para onde tinha sido renegado
depois do seu espaço por natureza ter sido usado
para um centro de estudos para o Romeu, uma
pequena casa de madeira, mas não daquelas estacas
fracas que esvoaçam com o vendaval, não madeira
segura, daquela que só sai do sitio ou pela força da
água ou pela força do fogo, lá dentro o espaço
estava meticulosamente bem organizado, com
prateleiras e mais prateleiras, dividias e
subdivididas por ordem alfabética, a roupa estava
junta com a roupa e os mantimentos estavam com
os mantimentos, no centro da “cabana” no chão
estava um velho alçapão, ninguém sabia onde
levava nem quem o tinha colocado lá, apenas se
sabia que ninguém o podia abrir sem ordem
especifica do Alfa, Como devem imaginar apesar
de existirem algumas centenas de camisolas e
casacos com a marca da Alcateia, contudo e apesar
de existirem membros de todas as formas e feitios,
nenhum membro chegava perto do porte físico de

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Lázaro, aquelas prateleiras extremamente bem
pintadas de preto, como se de madeira queimada se
tratasse, podiam carregar imenso peso, mas
arrisco-me a dizer que não aguentariam com ele.
Mas facilmente e rapidamente este problema foi
resolvido. Deixemos agora o armazém com os seus
segredos, lá voltaremos mais á frente.
Como estava a referir o problema da roupa de
Lázaro foi, embora de forma um pouco forçado,
resolvido as mulheres que tinham capacidades com
as máquinas de coser, rapidamente fizeram a partir
de algumas mantas negras enormes, uma camisola,
uns calções e uma enorme capa, faltava cabedal
para fazer o casaco, mas isso também não se
mostrou prioritário, de um momento para o outro
passava de uma roupa rota e cheia de pó para um
traje digno de um Beta da Alcateia.
Depois de algum tempo Tiago e Sam lá entraram
pela sede adentro, penso que também já seja tempo
de tratar a sede por outro nome, um nome mais
digno, começaremos a tratar a sede por Viribus.
Quando entraram na Viribus, vinham sorridentes,
bastaram aquelas horas para fazerem um laço, ao
qual não podemos chamar de amizade, mas
podemos roçar a tolerância, afinal de contas isso
era um dos pontos forte de Samuel, ou bem que se
gostava dele de imediato ou se odiava, era difícil
ter um meio-termo em relação a ele, sou se amava
ou se odiava, e era quase sempre reciproco, com
ele também era raro haver meio-termo.

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Quando chegaram ao pé de Hugo e dos restantes, o
olhar de Sam encheu-se de raiva, com a voz
endurecida, dirigiu-se a Hugo:
- Então ele tem direito a uma vestimenta toda
janota da Alcateia e eu não? Que pouca vergonha
vem a ser esta?
Do outro lado, ao contrário se encontrar um olhar
surpreso ou preocupado, encontrou um olhar
fraterno e carinhoso, com um enorme sorriso a
acompanhá-lo:
- Já sabia que ias dizer qualquer coisa do género,
tens ali um para ti, e ainda tiveste sorte, porque no
barracão estava um casaco de cabedal suplente, é
capaz de te servir, apesar desse teu pneu – batendo-
lhe na barriga e apontando para cima de uma
cadeira que se encontrava ao lado da mesa de
reuniões. – Assim já são quase membros da nossa
sociedade, só vos falta uma coisa, se quiserem
mesmo pertencer têm de a fazer.
Ambos acenaram positivamente, já que ali estavam
e não tinham para onde ir, pareceu-lhes a melhor
opção afinal de contas não teriam de trabalhar,
simplesmente iria ajudar um bom amigo, o que se
pode pedir mais?
Assim dirigiram-se a um dos tatuadores de serviço
e passado algumas horas já tinham as suas marcas,
Sam tinha feito a tatuagem na parte de trás do
pescoço, por muito que tivesse tentado tinha
soltado alguns gritos de dor e agonia, por sua vez
Lazaro, hirte como uma montanha tinha feito a
tatuagem no seu braço direito, durante todo o
processo tinha mantido o silencio e assim

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continuava, por fim para finalizar a sua iniciação,
fizeram um pequeno corte na mão direita, e
proferiram “a força da alcateia é o lobo, e a força
do lobo é a alcateia”, colocando a mão em cima do
livro sagrado deixando lá o seu sangue, eram
finalmente membros da alcateia, no fim receberam
um caloroso abraço de Hugo e de Tiago,
finalmente pertenciam á família.
Apesar do código não o permitir, Hugo tinha
intenções de os colocar ao mesmo nível de Tiago,
bem sabia que teria de enfrentar o concelho, mas
afinal de contas era o Alfa, tinha de ter poder para
decidir este tipo de coisas.
Mas como sempre o destino gosta de nos pregar
partidas quando menos esperamos, no exato
momento em que iam iniciar a tentar descodificar o
enigma deixado pelo Felipe, um dos batedores da
Alcateia entra de forma desenfreada pela Viribus,
com o suor frio a escorrer-lhe pela face e com as
pernas a tremer, colocando-se de joelhos e pedindo
permissão para falar perante o Alfa, as roupas
estavam cheias de terra, tinha um odor nojento que
misturava os cheiros de terra, de ervas e de suor,
precisava urgentemente de um bom banho, quando
finalmente ganhou a permissão disse com a voz a
soluçar:
- Meu senhor…tive…tivemos notícias do Sir
Isaac… já vem a caminho e traz consigo as chefes
dos infiéis do Norte.
Todos foram apanhados de surpresa, os olhares
esbugalhados tomaram conta da face de todos os
presentes, Sam e Lazaro foram apanhados no meio

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daquilo, não estavam a perceber nada daquilo, mas
uma vez mais a voz de Sam fez-se ouvir e como
uma âncora fez todos descerem á realidade:
- Mas alguém me consegue explicar quem são os
infiéis do Norte?
O olhar de todos voltou ao normal, e com toda a
calma do mundo Hugo respondeu:
- Resumindo muito a história, é um bando de
malucos que dizem seguir o verdadeiro Alfa e nos
acusam de sermos falsos profetas, que deturpamos
a mensagem do Felipe, andamos em combate com
eles há imenso tempo, e parece que finalmente
vamos resolver esta situação, mas não os podemos
receber aqui, isso seria colocar em perigo tudo e
todos, temos de arranjar um espaço fora daqui.
- Talvez eu possa ajudar nisso, acho
inacreditável como é que um Alfa não conhece
todo o terreno que tem sobre o seu poder, tens
muito que aprender – a voz vinha da entrada,
embora fosse roca era facilmente audível.
O barulho das rodas a bater no cimento começou a
ecoar pelo espaço envolvente, as vezes pequenas
pedras apareciam no caminho o que fazia com que
o barulho se torna-se mais agudo, enquanto o velho
homem atravessava o enorme corredor que se tinha
criado á sua frente todos os presentes, desde das
mais pequenas crianças aos mais velhos membros,
todos inclinaram o corpo em sinal de respeito,
alguns colocaram-se mesmo com um joelho no
chão, com uma mão a tapar o olho direito, como se
tivessem na presença de uma divindade, embora
não os conseguisse ver sentia este poder e esta

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admiração como se de uma energia se tratasse.
Trazia vestido um enorme casaco negro, com o
símbolo da Alcateia nas costas, uma manta
também ela da cor da noite nas pernas, umas botas
até a zona do tornozelo, com atilhos em toda a sua
extensão, e por vim trazia um estranho anel no
dedo indicador da mão esquerda. Quando chegou
mesmo á frente de Hugo, também Tiago se
ajoelhou, os únicos que ficaram de pé foram Hugo,
Sam e Lázaro, o olhar do jovem Alfa encheu-se
novamente de raiva, e com um trovão na voz
perguntou:
- O que fazes aqui, Rodrigo?
- Vim-te ajudar, como membro da Alcateia.
O pensamento de Hugo começou a percorrer todo
o mundo, aquele não parecia o mesmo homem com
quem se tinha cruzado quando saiu da cadeia,
havia algo de diferente, não só as roupas eram
diferentes, a própria aura que emanava parecia ter
mudado e havia uma coisa que não fazia sentido,
bem até mais do que uma, primeiro como é que
alguém que criticava tanto o Felipe podia ser um
membro da Alcateia, afinal de contas todos faziam
culto ao líder passado, segundo por que carga de
água Tiago estava-se a ajoelhar perante aquele
velho, e por ultimo mas talvez o mais intrigante,
por que razão todos pareciam adora-lo como se de
um Alfa se tratasse?
A mente começou a andar em círculos e mais
círculos, quanto mais pensava mais raiva lhe
crescia no olhar, as mãos começaram lentamente a
fechar-se em punhos, com as unhas cravadas na

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própria pele, quando estava mesmo quase a
rebentar sentiu como que uma ancora a puxa-lo á
realidade, a mão de Lázaro tinha caído suavemente
sobre o seu ombro, com o olhar colocado no velho,
aquele gesto era ao mesmo tempo um “tem calma”,
e um “se for preciso nós estamos aqui”, o calor
começou a diminuir e a calma retomou as veias
dele, que com toda a calma respondeu:
- Desde quando é que tu pertences ao The Pack?
Tiago ao ouvir esta questão levantou-se da sua
pose, e afastando a pequena manta que protegia as
pernas de Rodrigo, levantando-lhe a perna das
calças do lado esquerdo, quando a levantou até a
zona do joelho deixou a vista uma enorme
tatuagem do Lobo negro colocada em cima da
canela, já precisava de um retoque, porque havia
partes que já se estavam a perder na pele, por
debaixo dos tímidos pelos que se atreviam a
romper pela pele todos ficaram embasbacados,
quer pela ação de Tiago como se soubesse o que
tinha de fazer, como pela presença daquela
tatuagem, e logo naquele sitio.
Quando sentiu os olhares a percorrem a sua pele,
Rodrigo com um pequeno sorriso nos lábios disse
elevando um pouco a sua voz:
- Se calhar há mais tempo do que tu!
As vozes começaram-se a elevar mal esta frase foi
dita, todos os presentes se exaltaram, contudo, a
voz de Hugo não se fez ouvir, nem a voz, nem
nenhuma parte do corpo, simplesmente saiu de
fininho da confusão, com o olhar colocado no
velho homem que aos seus olhos já tinha mudado

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duas vezes num espaço muito curto de tempo, nem
sentiu que por sua vez estava a ser seguido, mas no
seu caso por um olhar carinhoso. Rapidamente
tinha saído de dentro da sede, encheu o peito de ar
quando o fez, como se tirasse um peso de cima dos
ombros, esfregava ansiosamente as mãos uma na
outra, enquanto elevava o olhar para o céu e
rapidamente o colocava nas pedras que tinha
debaixo dos seus pés, aparecia mais uma pessoa
que parecia conhecer melhor o ambiente onde ele
supostamente devia reinar do que ele próprio, isso
deixava as suas veias a saltar da pele, sentia a sua
alma a ser puxada para um abismo, e normalmente
quando se olha muito tempo para o abismo ele
tende a olhar de volta e estica os seus braços para
nos puxar para si, cabemos a nós dizer que não,
quando estava quase a sucumbir sentiu uma mão
amiga a pousar no seu ombro, o seu olhar que tinha
ficado embaciado com o tempo começou pouco a
pouco a retomar a clareza. Era Tiago que estava ao
seu lado com olhar fraterno e antes que ele
conseguisse dizer alguma coisa, a sua voz fez-se
sentir pelo ar:
- Antes que digas alguma coisa, eu sei
perfeitamente que a presença tanto do Romeu
como do Rodrigo nesta casa te incomodam porque
pensas que te afastam mais do Felipe, mas deixa-
me contar-te a história deste sitio logo a seguir a
morte do Felipe, este sitio não tinha um terço do
espaço que tem agora, melhor dizendo nem cabiam
duas pessoas esticadas lá dentro, foi o Rodrigo que
nos arranjou este sitio, é verdade que ele sofreu nas
mãos do Felipe mas também foi o que sofreu mais
com a morte dele, ele chorou e chorou noites a fio,

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os seus sonhos tornaram-se pesadelos, passava
noites inteiras sem pregar olho, acordava aos gritos
agarrado aos lençóis da cama porque lhe pareciam
a camisola do Felipe, sentia o suor como se fosse
sangue, estava sempre a limpar a cara com medo
que estivesse sangrar, e depois por muito que
odeies uma pessoas, quando ouves alguém a falar
mal dela, tu ficas possesso com raiva, ele por
muito que tivesse odiado o Felipe pelo que ele fez,
amava-o pelo aquilo que ele era, e não consentia
ouvir criticas ao seu amado primo, e quando o seu
estado de saúde piorou, decidiu ajudar o
movimento do seu primo, porque apesar de não
perdoar as mortes dos inocentes, também não
conseguia esquecer os inocentes que foram
ajudados pela nossa associação, e por isso doou-
nos este espaço que pertencia a Inês Los Santos,
deu-nos uma casa, ele e o Felipe são o equilíbrio, o
Felipe deu-nos um lar, uma força que onde quer
que estivéssemos nos protegerá, o Rodrigo deu-nos
quatro paredes para podermos viver com o mínimo
de qualidade possível. Já sobre o Romeu a história
é outra, conheci-o na mesma altura que tu,
contaram-me que apareceu aqui a cerca de quatro,
cinco anos, que demonstrou logo uma enorme
paixão para com a causa e que trazia na sua mala,
não só todo o conhecimento necessário, mas
também toda a inteligência que se pede a um
génio, foi aceite por todos e não seria eu que o ia
renegar, pode-te parecer estranho mas eles nunca te
afastarão do Felipe, simplesmente são pessoas que
te ajudarão a contruir o caminho até á verdade –
esboçando um enorme sorriso no fim de dizer estas
palavras.

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Uma vez mais a mente de Hugo começou a
deambular entre pensamentos, muitos deles do que
fora, do que era e do que seria a sua vida enquanto
líder, alguém conseguirá ser um líder se não
conseguir conviver com pessoas com opinião
contrária? Com pessoas que magoem aquilo em
que acredita? A resposta parece ser muito concreta,
um enorme não, mas se assim fosse ele não poderia
ser o Alfa, não tinha capacidades para ser um líder,
não era de todo parecido com o Felipe, a imagem
do seu eterno amigo passou uma e outra vez a
frente dos seus olhos, mas uma vez mais a sua
mente foi interrompida:
- Hugo, não penses tanto, acho que a única coisa
que tens de te lembrar e manter em pensamento é
que o Felipe confiou em ti até ao último momento,
e esteja ele onde estiver continuará a fazê-lo.
Eram as palavras que Hugo necessitava de ouvir,
com uma chama no olhar ajeitou o casaco
puxando-o pelo colarinho, franziu o olhar, expeliu
o ar dos pulmões e virou-se para a porta da
Viribus, e com uma voz, agora confiante, disse:
- Tens toda a razão, se ele confiou em mim, eu
tenho de provar que mereço essa confiança, mesmo
que tenha de aturar aqueles dois.
A alguns quilómetros dali já na autoestrada de
ligação entre Porto e Coimbra seguiam em fila
“indiana”, cinco carros, um pertencente ao Sir
Isaac que ainda tremia com a imagem da primeira
mulher na sua mente, já tinha levado a pequena
garrafa de água a boca pelo menos umas vinte
vezes desde que tinham saído do Porto, por mais

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que se tentasse lembrar da sua missão e do seu
objetivo a sua mente insistia em virar-se para outro
lado, chegara mesmo ao extremo de colocar água
numa mão e lavar a cara, sabia que tinha mantido o
disfarce apesar de tudo, só esperava que quando
chegasse a Coimbra, também tudo estivesse
preparado, não poderia perder mais tempo com
estas lutas entre dois grupos mimados que lutavam
entre si por poder sem sequer terem noção do que
realmente poder é.
Entretanto já Hugo tinha regressado á reunião que
continuava com uma gritaria onde ninguém
conseguia realmente falar, enchendo o peito de ar,
soltou um grito que fez com que todos os outros se
silenciassem, a voz grave ecoou pelas paredes e fez
todos, por momentos respeitá-lo e alguns até
sentiram o tipo arrepio normal quando se sente
medo, depois de conseguir a atenção de todos falou
já de forma mais pausada e calma:
- Embora não tolera a presença deste individuo,
terei de a respeitar, porque querendo admitir ou
não, ele pertence a esta família tal e qual como eu,
por isso e como vamos ter um desafio deveras
complicado pela frente, aceito ouvir a tua opinião,
mostra-me onde podemos fazer a reunião com os
infiéis do Norte.
O murmurinho começou-se a espalhar novamente
pelo espaço, a cabeça de Rodrigo abanou
positivamente e começou-se a dirigir para fora do
espaço da Viribus, Hugo seguiu-o, juntamente com
Tiago, Lázaro e Sam, mais ninguém mexeu um
pelo que fosse, o sítio para onde eles se dirigiam

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tinha sido proibido para os restantes membros, nem
mesmo Romeu podia lá entrar.
Para a supressa de todos, o corpo de Rodrigo não
se moveu para nenhum compartimento secreto
dentro do enorme pavilhão de cimento, mas sim
para dentro da pequena arrecadação. Decerto que
se devem lembrar do pequeno alçapão de que vos
falei, voltemos a ele então, apenas com a força de
três homens ele se abriria, neste caso com a força
de Lázaro bastou, quando o pó se afastou dos olhos
dos presentes, e as pequenas ratazanas finalmente
encontraram o caminho de volta para a superfície,
ficaram a nu umas imensas escadas de mármore,
uma escadaria que apesar de reluzir quando algum
tipo de luz incidia sobre ela, começava a
demonstrar marcas do tempo, sem necessitar de
pedir, Rodrigo sentiu o seu corpo a ser elevado da
cadeira por Tiago que o segurava nos seus braços,
a sua cadeira fora deixada ao pé do alçapão, todos
avançaram a medo em direção á escuridão, passado
algum tempo os seus olhos habituaram-se as
sombras que o circundavam, com as mãos
encostadas às paredes que serviam de apoio e guia,
lá seguiram as quase cinquenta escadas, Sam para
demonstrar a sua coragem seguiu em primeiro logo
a seguir a Tiago, embora até pudesse ser o mais
corajoso, a sua vontade de demonstrar coragem e
força muitas vezes retirava-lhe a capacidade de
raciocinar direito, quanto mais avançava mais
confiante se sentia, que nem reparou que o terreno
ao qual de agarrava estava a mudar de forma e que
possivelmente estava a chegar ao seu fim, assim
quando chegou ao ultimo degrau e o apoio lateral
desapareceu, caiu redondo no chão frio, batera com

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a cara com toda a força no chão, sentido de seguida
todo o corpo a fazer o mesmo, quando se levantou
viu já algumas tochas acesas nos quatro cantos da
sala onde se encontravam agora e viu as faces
sorridentes dos seus companheiros a tentarem
controlar o desejo de rir, passando a língua pela
frente dos dentes, levantou-se enjeitou as roupas e
quando ia para falar sentiu a voz de Lázaro:
- Da próxima vez que te tentares armar em
alguma coisa, tenta-te armar em inteligente,
mesmo que não sejas ou menos não passas tanta
vergonha.
Todos os presentes abanaram a cabeça como se
dissessem “este não tem mesmo emenda”, Hugo
foi o único que se atreveu a soltar um sorriso, mas
que rapidamente desapareceu, estava mais
preocupado em saber onde estava e como é que
alguém tinha conseguido construir aquilo.
O espaço á sua volta era constituído por uma
enorme mesa redonda de pedra, com sete
candelabros colocados em cima dela, agora acesos,
estes eram constituídos do mais puro ouro, e
tinham pequenos lobos pintados na sua base, a
mesa por sua vez, tinha sete cadeiras também elas
de pedra, sem apoios de braços, apenas o local para
apoiar as costas, no centro, colocada entre os
candelabros estava a caixa onde Rodrigo tinha
guardado o anel.
O espaço envolvente era também ele todo
construído em pedra trabalhada com engenho e
cuidado, as terras que se encontrava, sobre eles
eram sustidas por um teto que para além da pedra

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crua, era embelezado por frescos pintados por um
anonimo que contavam a história da Alcateia,
desde da primeira atividade do Alfa até a sua
morte, mantinham uma linha reta de história que
apesar de ter a sua ordem se fosse lida do meio
para o fim faria sentido na mesma, a suster este
memorial estavam quatro enormes colunas de
pedra, docemente decoradas com pequenos lobos e
a frase de ordem da Alcateia, na base das mesmas,
estavam os nomes daqueles que tinham perdido o
nome na explosão do Terreiro da Erva, e por
ultimo, o chão que eles pisavam era composto por
terra e por pequenas pedras que faziam carreiros
por onde todos podiam caminhar sem sujar os pés,
felizmente Sam tinha batido com a cara numa
dessas pedras, bem feliz ou infelizmente…
Quando o olhar de Hugo acabou de percorrer este
espaço, o seu olhar estava húmido com lagrimas a
bater para sair, conteve-as, não estava com essa
vontade por dor, nem sequer por raiva, mas sim
por alegria, sabia que Felipe ia aprovar aquele
espaço com todas as suas forças, aquele espaço
tinha a sua marca em todos os pormenores, desde
dos pequenos lobos que escalavam as colunas,
como nos frescos do teto, tudo ali era Felipe e tudo
ali era para o Felipe.
Depois de dar tempo para que todos rejubilassem
com aquela paisagem, Rodrigo finalmente falou:
- Este espaço foi uma encomenda minha, fiz isto
logo apos comprar o espaço, estava a guardá-lo
para quando decifrássemos o enigma do Felipe,
mas o meu sexto sentido diz-me que esta reunião
será essencial para tal, este espaço pertence ao Alfa

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como tudo o resto, nestas colunas está a imagem
do Felipe, e acredito que esteja um pouco da sua
alma também.
- Sim, de certeza que ele estará connosco aqui
durante a reunião, vamos aguardar a chegada deles
aqui, Sam e Lázaro tenho um pedido para vos
fazer, fiquem lá em cima e não deixem entrar
ninguém a não ser o falso Alfa, esta reunião é
privada, e mais uma coisa, chamem o Romeu,
quero que ele esteja presente, ele que traga o
enigma e o anel temos de ter provas que somos os
verdadeiros.
Ambos acenaram afirmativamente e saíram,
passados alguns momentos Romeu já tinha descido
a enorme escadaria e encontrava-se junto a eles,
era só aguardar.
Enquanto isto acontecia na sede da Alcateia, numa
casa não muito longe, Marta tinha chegado á pouco
tempo, ainda tinha na sua mente o jovem que tinha
encontrado á beira-rio, por mais que tentasse
esquecer, a profundidade no seu olhar era
impossível de eliminar na mente, tinha-se sentado
no sofá a olhar para o teto, não tinha dito nada a
ninguém, inclusive Inês nem sabia que ela tinha
chegado a casa se não tivesse ido buscar um copo
de água á cozinha, quando passou em direção á
cozinha não tinha reparado na sua filha que se
encontrava totalmente parada como uma estatua,
apenas quando regressava para o escritório é que o
fez, tinha quase deixado cair o copo no meio do
chão, segurando-o apenas com a ponta dos dedos,
deixando cair no seu lugar apenas algumas gotas,
respirando fundo olhou para a cara da sua

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“criancinha grande”, como costumava chamar e
viu tanta incerteza mas ao mesmo tempo tanto
carinho que decifrou e pensou “só pode ser amor”,
e pé ante pé lá regressou para o escritório.
Anoiteceu na cidade, as estrelas ocuparam o que
outrora fora o espaço das nuvens, estava uma noite
de verão belíssima, temperatura amena, nem uma
única nuvem, conseguiam-se contar todas as
estrelas do céu, a lua brilhava na sua forma cheia
no centro do céu, e emanava a sua beleza
incomparável, os carros circulavam pelas ruas da
cidade com as luzes ligas, voltavam todos para
casa no final de um dia de trabalho cansativo, bem
quase todos, as gerações mais novas regressavam
da praia ou do cinema, ainda demarcados dos
escaldões que tinham apanhado por falta de uso de
protetor solar, uns apenas andavam de noite, outros
sabiam admirar o luar, afinal de contas nem todas
as pessoas são iguais.
Estavam sentadas à mesa as três donas da casa do
telhado vermelho, no topo da mesa Francisca, ao
seu lado direito Inês e ao seu lado esquerdo Marta,
já se encontravam todas de pijama, e todas com um
pijama igual, eram pijamas de verão de tecido fino,
de uma cor azul-marinho, com alguns pontos
brancos ao longo de todo o tecido, eram
constituídos por uma camisola de manga curta e
uns calções, apesar das diferenças de idade vestiam
todas o mesmo número. Depois da conversa típica
de fim de dia de semana, “como correu o
trabalho?”, “muito trabalho?”, “como está a
empresa?”, “o que andaste a fazer?”, ouve uma
conversa que destilou do que era a normalidade:

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- Então e tu Marta? Como correu o passeio? – A
voz de Inês estava clara e calma.
Ao contrário do que poderia ser expectável a
resposta que veio da boca de Marta foi no mesmo
nível de calma:
- Por acaso correu bem, a cidade nesta altura do
ano fica sempre imensamente bonita, e conheci
uma pessoa nova, meio que ao acaso – soltando um
pequeno sorriso.
- E podemos saber quem é essa pessoa? –
Interrompeu Francisca, levando o copo de vidro
cheio com água aos lábios.
- Um rapaz que possivelmente nunca mais verei
na vida, chama-se Luís, e até que era girito, mas
não tenho tempo para isso, a escola vai começar,
não posso perder tempo com homens, acho que
eles nem valem a pena – começando a comer mais
rápido.
As duas progenitoras trocaram olhares, sorrisos e
continuaram a comer, de facto não haveria muito
que pudessem dizer, Marta parecia estar tão
decidida que mesmo que dissessem algo contra não
serviria de nada, podia não ser sangue do seu
sangue, mas tinha herdado a teimosia dos Los
Santos, agora teriam de deixar o tempo decidir o
rumo daquela história, afinal de contas a única
coisa que nos pertence é o agora, nem o depois,
nem o antes, apenas o agora.
Voltemos agora para a cripta onde Hugo, Romeu,
Rodrigo e Tiago aguardavam ansiosamente pela
chegada de Sir Isaac, tal só aconteceu por volta das

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nove e meia da noite, embora por dentro estivesse
confuso e até tentando a deixar o disfarce para trás,
por fora mantinha a força e a serenidade sua
característica, quando estacionaram o carro, saiu de
forma imperial de dentro da porta de trás, e
avançava firmemente, consoante as suas pernas
permitiam, em direção ao enorme pavilhão, mas
quando já estava bastante perto, uma corrente
formada por vários membros de campo da Alcateia
colocaram-se á sua frente e apontaram para a
cabana nas traseiras, embora não concordasse com
aquilo que lhe era imposto não podia fazer grande
coisa, uma reunião na sede daria mais vantagem
em caso de confronto, a cripta era facilmente
destruída e podiam ficar subterrados, embora fosse
mais discreta era mais perigosa, avançou até a
escadaria que dava acesso a cripta, agora com a
Shinning Alfa, e a sua subordinada atrás dela,
juntamente com quase vinte capangas, quando se
encontraram com a resistência de Sam e Lázaro,
Isaac embora não gostasse da presença daqueles
dois, percebia que afinal de contas Hugo, não era
estupido o suficiente para se colocar num sitio
perigoso como aquele sem ter vantagem, quando
tentou irromper pelo meio deles para começar a
descer sentiu uma barreira que não se mexeu, os
cães de guarda não tinham arredado um centímetro
que fosse, com a voz cheia de raiva por ter sido
colocado como um inimigo, quase que gritou:
- Deixem-me passar, ainda sou vosso superior!
- Até podias ser o papa, tenho ordens para deixar
passar apenas a líder dos infiéis do Norte. –
Respondeu, fazendo peito Sam.

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- Temo que tal não aconteça, se ela for eu
também vou – respondeu a mulher misteriosa atrás
da Alfa que mantinha o olhar preso na escuridão
que advinha da escadaria e que mesmo a pequena
lâmpada presa no teto de madeira não conseguia
eliminar por completo.
- Minha senhora eu… - sendo interrompido por
Lazaro.
- Deixa passar as duas, acho que seja o melhor,
mas se alguém mais tentar passar…vai ter
problemas – lançando um olhar ameaçador a todos
os restantes.
Mais ninguém discutiu, e as mulheres começaram
a descer as escadas, o coração da jovem líder batia
aceleradamente, o suor frio começara-lhe a descer
pela face por detrás da máscara, a respiração
tornou-se instável e ofegante, perdera por
momentos o próprio controlo nas pernas e caso não
se tivesse agarrado á parede tinha caído e rebolado
escadas a baixo, precisou de alguns momentos para
se recompor, a sua cabeça era um autentico campo
de batalha, pensamentos cruzados, o que devia
contra o que queria fazer, começando a respirar
nervosamente pela boca, sentia-se a afundar num
deserto de areias movediças, mas a luz apareceu,
sentido um doce beijo na parte de trás da cabeça,
olhou e viu a sua amiga, sem máscara, com um
olhar amigo e uma feição de fraternidade, e tudo
culminou na suave voz:
- Ele queria assim, vai tudo correr bem –
sorrindo de tal forma que fechara os olhos, era o

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último impulso que a jovem necessitava,
avançaram até ao fundo das escadas.
Finalmente o encontro os dois polos estava prestes
a acontecer, o nervosismo era reciproco, nenhum
dos dois lados estava seguro do que iria acontecer,
poderia começar um descalabre bélico, poderiam
morrer inocentes, ou então poder-se-ia resolver
tudo de forma pacifica, nenhum dos lados
ambicionava sangue nas ruas, mas ambos sabiam
que se tal fosse necessário seria feito, porque afinal
de contas estavam apenas a fazer cumprir a
vontade do primeiro Alfa, mas a questão que
nenhum dos lados colocou foi…será que o Felipe
desejava toda esta confusão?
Passados alguns minutos as duas mulheres
chegaram ao final da escadaria, a mulher mais
jovem tinha ficado para trás, tinha deixado a sua
tutora seguir em primeiro lugar, assim foi, a
acompanhante foi a primeira a colocar os pés na
cripta, o seu olhar percorreu toda a cripta, todos os
presentes e quando viu o Alfa a retribuir o olhar
ameaçador, pelo menos a tentativa de tal, um
enorme sorriso apareceu-lhe na face, passando a
língua nos dentes e nos lábios, elevou um pouco a
cabeça e tomou uma posição de poder, mãos nas
ancas, pernas cruzadas e o sorriso desafiador na
face.
Rapidamente Hugo apercebeu-se que aquela não
era a líder dos infiéis, mas havia algo nela que lhe
era familiar, parecia conhecer aquele olhar, aqueles
gestos, o cabelo, era tudo como se fosse uma
sombra do passado, mas conseguia perceber
exatamente de onde, mas a sua atenção mudou

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apressadamente para as escadas, a sua adversaria
em poder estava a acabar de descer as escadas, mas
tal como tinha acontecido com Sam, o apoio
faltou-lhe e o seu corpo ia em direção ao chão com
toda a força, já tinha fechado os olhos para o
embate parecer ser menos doloroso, mas não sentiu
impacto nenhum, pelo menos nenhum impacto
brusco como seria de esperar, pelo contrário sentiu
como se tivesse caído contra algo fofo e
confortável, de tal forma tranquilo que embora
quisesse saber o que era, ainda demorara algum
tempo a levantar-se, sendo verdadeiro foi o seu
apoio que a fez levantar, quando abriu os olhos,
cruzou-os de imediato com os de Hugo, ele tinha
sido rápido o suficiente para se colocar no local
onde ela iria cair, os seus olhares cruzaram-se de
forma normal, mas o que pelo menos a jovem
sentiu foi tudo menos normal, uma estranha
sensação de segurança e conforto, o olhar era
profundo e causou-lhe um arrepio na espinha, a
respiração voltou a ficar instável e por detrás da
mascara ela corou, ao fim de alguns momentos de
cumplicidade que para eles fora uma eternidade
para os outros presentes foram apenas alguns
segundos, Hugo com um enorme sorriso na face
disse:
- Não ia deixar que o chão magoasse a minha
rival, se tal tiver de acontecer terei de ser eu –
colocando-a em pé e soltando uma piscadela de
olho e um sorriso ainda mais fraterno.
Lentamente tomou o seu local na mesa, e fez sinal
para que todos se sentassem, ele no topo da mesa
deixou o seu lado esquerdo para as visitas, com

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toda a simpatia que os nervos lhe permitiam fez-
lhes sinal para se sentarem, a Shinning Alfa tomou
o local mesmo ao seu lado, desde da troca de
olhares que se sentia desconfortável sempre que
por algum motivo eles se tocavam mesmo sem o
fazer.
Quem deu início á reunião fora a acompanhante da
líder do Norte, quebrando todas as regras de
respeito para com o anfitrião:
- Meus caros, presumo que ninguém aqui
presente deseja perder tempo, por isso vamos ser
diretos, vocês reconhecem-nos como os
verdadeiros herdeiros da vontade do primeiro Alfa
e fica tudo resolvido – colocando os braços
apoiados na mesa.
- Como tu dizes de facto não estamos aqui para
perder tempo, mas também não viemos aqui para
ouvir coisas estupidas vindas da boca de uma
mulherzinha que se acha dona no mundo, a
Alcateia é nossa, foi deixada nesta cidade pelo
próprio Alfa, mostrem respeito! – Entoou Romeu.
- E o que é que tu sabes sobre o Alfa miúdo? Tu
ainda não eras nascido já eu conhecia as pontas
desta organização! Quem tem de demonstrar
respeito és tu, juntamente com aquele emproado
que está ali sentado no lugar que não merece
ocupar – apontando para Hugo.
Ao contrário do que seria espectável Hugo
manteve-se sereno e quando ia para responder
ouviu-se a voz de Rodrigo que se tinha mantido
nas sombras de propósito para não ser visto, mas
que agora se demonstrava confiante:

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- Podem-se ter passado muitos anos, mas
conheço muito bem essa voz e esses jeitos, e não
sou o único não é Hugo – como resposta apenas
recebeu um sorriso – pensei que tivesses morrido,
mas aqui estás tu, viva como a Fénix, como estás
Ariana?
Ninguém percebeu nada do que se estava a passar,
a mulher soltou uma pequena gargalhada e disse
com uma voz irónica:
- Continuas a ter um bom olho Rodrigo –
retirando a máscara.
Era de facto Ariana Los Santos, com mais alguns
anos em cima, mas com a mesma beleza de
sempre, o olhar continuava a ser profundamente
azul, o sorriso brilhante e os cabelos loiros como
raios de sol, quando acabou de colocar o cabelo no
sítio continuou:
- Não era suposto descobrirem a minha
identidade, mas vocês são perspicazes, admito isso,
mas isso não altera a minha causa, nem o meu
desejo.
- Antes de defendermos os nossos desejos, exijo
saber quem é este fantoche que tu apresentas como
tua superior – disse elevando a voz pela primeira
vez Hugo.
- A questão é que não é fantoche nenhum, ela é a
verdadeira herdeira, ela é a irmã do Felipe!
Neste momento a jovem retira a sua máscara, fica a
nu a sua cara jovem de dezanove aninhos, o seu
olhar belo como o luar numa noite de verão, os

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longos cabelos negros faziam com que a forma da
sua cara ainda se evidencia-se mais, tinha uma
pequena cicatriz ao pé do olho esquerdo, uma
pequena marca que nunca ninguém soubera do que
era, lábios perfeitos que escondiam um sorriso
brilhante, finalmente estava a nu a sua identidade,
e todos ficaram estupefactos com a luz angelical
que ela parecia emanar, depois de pousar
lentamente a máscara em cima da mesa, disse com
uma voz calma e com um estranho sotaque:
- O meu nome é Marie, Marie Ferreira, sou irmã
do primeiro Alfa e pretendo colocar-me no local
que eu mereço!
Colocando as mãos em cima da mesa, utilizando-as
como alavanca para se levantar Hugo colocou o
olhar mais sério que conseguia e disse:
- Por hoje a reunião está terminada, é demasiada
informação para se conseguir gerir, mas digo-vos
uma coisa, quando nos reunirmos amanhã, vou-vos
provar que o Felipe escolheu-me a mim, se assim
não fosse não me tinha deixado o seu enigma, que
nós estamos quase a decifrar, e pouco me importa
que esta criança mimada seja irmã dele, vou
defender a memória do meu amigo para sempre,
ficas avisada Ariana, se tiver de ir á guerra por ele,
irei, e não vou perder!
Respirando fundo Ariana e Marie levantaram-se,
quando já estavam de costas voltadas Ariana disse
agora com um tom mais calmo:
- Hugo, tu precisas de nós, porque ao contrario
do que tu pensas, o enigma do Felipe não foi só
deixado a ti, e isso só mostra que ainda estas longe

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da verdade, ele pode ter-te amado como amigo,
mas a mim amou-me como mulher, por muito que
queiras isso será sempre mais forte, e quanto á
Marie vais ter de aprender a viver com ela, viemos
para ficar, quer tu gostes ou não, amanhã
decidiremos isto, e espero que percebas que não
tens qualquer hipótese de ganhar isto.
E saíram da cripta, seguiram-na todos os restantes,
a noite é boa conselheira e naquela ninguém
conseguiu dormir.
Hugo dirigiu-se ao telhado da sede, sentia que
estando mais perto das estrelas estava mais perto
do seu guia, passou toda a noite a olhar para o seu
limpo, mas nem sempre sozinho, por volta das
duas da manhã quando ainda tinha o seu olhar
preso na imensidão da noite, Romeu aproximou-se
e sentou-se ao seu lado, apenas algum tempo
depois a sua presença foi notada e apenas porque
quebrou o silencio:
- A noite é mesmo a melhor conselheira, afinal
de contas, só quando nos encontramos rodeados do
inevitável nada é que conseguimos ver tudo – do
outro lado veio um olhar preocupado, mas
nenhuma palavra – eu sei que deves estar numa
posição complicada, afinal de contas foi-te deixado
uma posição que tu não escolheste, e agora vem
alguém para te retirar isso, ainda por cima, sangue
do mesmo sangue, mas sabes o que eu acho?
Deviam trabalhar juntos, mas isto é só a opinião de
alguém que não percebe nada de liderança, e para
além disso, tu e aquela miúda têm química, toda a
gente viu isso.

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- Tu estás doido? Eu tenho quase idade para ser
pai dela, e só a vi ontem!
- Hugo eu nunca tive uma relação amorosa, mas
já assisti a muitas, a idade é apenas um numero, tal
como uma doença não escolhe uma idade própria
para atacar, assim é o amor, e o tempo também
conta muito pouco, a intensidade dos sentimentos
isso sim é importante, mas como te digo eu não
percebo nada disto, mas penso que amanhã vá ser
um dia decisivo na nossa história, mas sou
apologista que sofrer por antecipação é negativo,
não canses muito a tua mente, os problemas virão,
e se tiveres cansado não vai ser melhor.
E ali ficaram os dois a olhar para o céu, pela
primeira vez as palavras de Romeu tinham sido
aceites por Hugo sem qualquer tipo de defesa
levantada, tinha conseguido pela primeira vez
olhar para ele de igual para igual, afinal de contas
aquele rapaz talvez merecesse mesmo uma chance.
Do outro lado da cidade, á porta de um hotel
situado perto do parque verde, um hotel de poucas
estrelas que tinha servido para ficarem aquela
noite, Ariana fumava um cigarro descansada
também ela a olhar para a imensidão da noite, não
era a reunião do dia seguinte que lhe prendia os
pensamentos, mas sim o passado, o que tinha feito
naquela cidade, como tinha chegado lá e como
tinha mudado completamente a sua personalidade
lá, um sorriso sincero apareceu-lhe na face, quando
acabou de fumar atirou a beata para o chão, pisou-a
e quando estava pronta para entrar no hotel ouviu
uma voz familiar vinda de uma ruela adjacente ao
hotel:

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- Então mana, vens a cidade e já não dizes nada
á família?
- Diogo, há quanto tempo… - todo o sangue que
tinha no corpo gelou.
- Alguns anos, sempre esperei que quando
regressasses me procurasses em busca de vingança
– aparecendo totalmente á luz.
Diogo que outrora fora um dos rapazes mais
desejados da sua facha etária, tinha-se tornado um
adulto ao qual a beleza não tocava muito, tinha
desleixado o cabelo, outrora dourado como o ouro
agora era amarelo seco e sem brilho, o corpo
trabalhado tinha dado lugar a uma barriga de
cerveja, bem como a pele sempre sedosa tinha
dado a uma pele seca e toda rachada de falta de
cuidados, a cara agora era preenchida por uma
barba longa e pouco orientada, muito pouco
cuidada também, sinceramente se não fossem as
roupas que ostentava e o ouro nos anéis, poderia
facilmente passar por um mendigo, o que tinha
mantido da sua juventude eram apenas os belos
olhos azuis e o sorriso brilhante. Não era de todo o
mesmo homem
- Nunca te desejei mal, meu irmão, apesar de
tudo, és sangue do meu sangue.
- Por isso é que tu não és uma Los Santos, o
sangue pouco importa, mas diz-me como está o teu
filho, já deve estar um homem.
- Afasta-te dele, senão aí sim poderás ter a
certeza que acabo com a tua raça!

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- Achas que tenho medo de ti, eu vou
reconquistar todo o império dos Los Santos e vou
ajudar a acabar com a tua amada Alcateia, agora
tenho aliados realmente poderosos – mostrando um
alfinete com uma mão dourado e uma cobra
enrolada no seu centro.
- Então juntaste-te a eles? Agora sim não há
volta a dar, estamos em lados opostos da trincheira
Diogo, só te peço não te metas diretamente no meu
caminho senão vais acabar como o nosso tio –
lançando um olhar de odio profundo, prendendo o
olhar no alfinete.
- Minha cara e doce irmã, quem vai acabar mal
és tu, e podes esperar, desta vez eu não falho –
soltando um pequeno sorriso e desaparecendo nas
sombras.
Esta conversa pode parecer estranha mas vou
tentar clarear o caminho, cerca de dezasseis anos
atrás estes dois irmãos tinham tido várias
desavenças num curto espaço de tempo, desde logo
tinham escolhido lados da barricada diferentes,
Diogo tinha-se mantido fiel ao seu tio e ao plano
que deveria seguir, enquanto Ariana tinha trocado
a família por amor e tinha seguido Felipe, logo
aqui haviam motivos suficientes para se cortarem
relações, mas houve ainda mais lenha para ser
colocada na fogueira, Ariana depois da morte de
Felipe tinha desaparecido misteriosamente, afinal
de contas trazia no seu ventre uma descendência do
poderoso e agora odiado Alfa, seria fácil
procurarem-na, escondeu-se na cidade invicta com
outro nome, outra aparência e assim conseguiu
passar uma gravidez sem grandes peripécias, tinha

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tido alguns problemas de saúde mas nada demais,
os nove meses foram passados em plena solidão
apenas com a criança que desde muito cedo se
tinha começado a mexer, contudo tinha tomado a
decisão de não ter o bebé e casa, por muito que
tivesse procurado uma parteira não tinha
conseguido era uma profissão quase extinta, tinha
então decidido ter num hospital colocado mesmo a
beira-rio, o seu quarto tinha o grande e magnifico
rio douro a estender-se pelo horizonte, as águas
rebentaram na véspera do dia seis de janeiro, o
aclamado dia dos reis, no calendário gregoriano, o
trabalho de parto foi tudo menos fácil, longas horas
de sofrimento, dores horríveis, imensos
medicamentos e drogas colocas para dentro das
veias, gritos e lágrimas a sair sem controlo,
médicos e enfermeiras a fazer o melhor que
podem, neste caso ninguém para apoiar, nem mãe,
nem pai, nem marido, nem amigos, Ariana estava
sozinha a ter aquela criança, isso não a entristecia,
pelo contrário dava-lhe ainda mais forçar, afinal de
contas o homem que amava tinha morrido, aquela
criança era o ela de ligação entre eles, não podia
desistir, contudo o parto ainda se complicou mais
quando o bebé não rodou, foi impossível vir ao
mundo de forma normal, foi necessário fazer uma
cesariana, as dores só aumentaram, por mais
calmantes e anestesias que lhe dessem, cortar carne
humana dói sempre, mas ao fim de dezanove
longas horas, o bebé finalmente estava no mundo,
uma rapaz, forte e belo, embora todos os bebes
quando nascem não sejam o cumulo da beleza, aos
olhos da mãe são sempre os mais belos que
existem.

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As semanas que se seguiram foram de imensa luta,
Ariana queria recuperar o mais rapidamente
possível, e nunca largava o seu menino, mesmo
quando ele estava a dormir não saia da sua beira,
todos os que se aproximavam da criança levavam
com um olhar reprovador da mãe que parecia uma
leoa a proteger a sua cria indefesa.
Passada apenas uma semana do parto, Ariana
andava com o seu príncipe nos braços enquanto
olhava para o rio que se colocava mesmo debaixo
da sua janela, começava a imaginar o seu futuro
com aquela criança, onde iriam viver, como, apesar
das dificuldades que começava a imaginar um
estranho sorriso começou a aparecer no seu rosto,
juntamente com um pequeno fio de água salgada
que lhe começara a sair do olhar.
Ao fundo do corredor começaram-se a ouvir
pesados passos que avançavam furiosamente,
passados alguns segundos pareceu-se ouvir corpos
a cair, o corpo de Ariana começou a tremer, tentou
acalmar a alma, mas começou a proteger o bebé
contra o corpo, virou as costas para a janela, e
ficou a olhar fervorosamente para a maçaneta da
porta, mas quando os passos chegaram mesmo a
frente da porta, pararam…o silencio tomou conta
do espaço, o suor começou a escorrer pela face de
Ariana, o medo começou a fazer os músculos
tremer, mal se aguentava em pé, o silencio foi
interrompido de forma abrupta pelo estrondo da
porta que caiu devido ao pontapé do homem que a
acabara de arrombar, entrando de forma majestosa,
Diogo trazia numa mão uma pequena revolver, e
noutra uma soqueira cheia de sangue, ainda com o

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seu corpo e face bem constituídos, olhou para a
irmã e com um estranho sorriso na face disse entre
gargalhadas:
- Tu escondeste-te muito bem Ariana, mas já
devias saber que um parto não é uma coisa
facilmente ocultável, desde que saíste do hospital
de Coimbra que te tenho perseguido como se
perseguisse uma presa, não poderei deixar uma
pessoa tua, que não ama nada mais do que a si
própria viver sobre a estandarte Los Santos, a
primeira da lista és tu, e depois as nossas querias
primas, serei o único Los Santos e renovarei a
nossa família a partir dos ideias corretos, mas
obviamente essa criança também não poderá
sobreviver – apontando a arma ao recém-nascido –
por isso, diz-me tens ultimas palavras?
- Tenho vários nomes a passar-me pela cabeça,
mas não vou dizer nenhum, e prefiro morrer pelas
mãos do Douro do que pelas tuas – atirando-se
contra a janela fazendo a partir em mil pedaços.
O corpo caiu em direção ao rio, durante a queda a
ultima coisa que passou pela cabeça daquela mãe
foi se sobreviveria, enquanto o seu corpo não tocou
a água só conseguia olhar para o seu bebé e
perceber que todos os planos que tinha feito eram
fúteis e vazios, a vida arranja sempre maneira de
nos trocar as voltas, o seu corpo caiu com estrondo
na água, o corpo foi ao fundo, durante alguns
segundos não viu nada, a pressão da água tinha
sido imensa, depois de algum tempo voltou ao de
cima e deixou-se levar pela corrente, tinha-se
entregue á morte, agora era só deixar acontecer, o
bebé nos seus braços tinha começado a chorar sem

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parar, por um lado aquilo era ótimo, seria péssimo
sinal quando ele se calasse, aqueles dois só podiam
ter um fim, ou talvez não…
Ao fim de quinze minutos a andar ao sabor da
corrente, já com o corpo quase congelado, sentiu
dois fortes braços a retirá-la das águas, quando
abriu os olhos viu um rosto familiar, durante as
duas semanas que se seguiram ele cuidou dela e do
filho, deu-lhes comer, teto e proteção contra o
caçador furtivo que tinha virado a cidade do avesso
a procura deles, quando finalmente estavam
recuperados, o “amigo” deu-lhe uma missão,
juntamente com um anel:
- Toma este anel, era dele, precisaras dele para
decifrar o enigma que ele deixou, procura a irmã
dele, esta nas mãos do inimigo, explica-lhe as
coisas e luta contra a repugnância que a alcateia se
tornará, tens de manter o sonho dele vivo, só tu
podes fazer isto, não falhes – dando-lhe um beijo
na testa.
Durante aquele tempo, eles tinham-se tornado mais
do que amigos, talvez pela carência dela, e pelo
sentimento dele, ambos sabiam que aquilo era
errado, mas quando dois corações se juntam
mesmo que seja por motivos opostos, estas coisas
tendem a acontecer, mas ambos pensaram que
aquela aventura fora a última coisa que fariam
juntos, mas uma vez mais o destino gosta de
brincar connosco.
Voltemos aos nossos dias, por volta das quatro da
tarde do dia seguinte estavam todos reunidos na
cripta uma vez mais, agora sem mascaras e com

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nomes, já não eram sombras, eram pessoas, a
juntar as pessoas que estiveram na véspera,
acrescentaram-se Sam, Lázaro e um jovem rapaz
que devia ter os seus dezasseis anos, Hugo tinha
reparado logo algo familiar nele, mas deixou as
conversações correrem o seu caminho de forma
natural sem fazer muitas perguntas, o inicio parecia
uma discussão de recreio entre alunos da primária,
todos a falar e ninguém a ter razão, todos a
apresentar os seus motivos pessoais e egoístas sem
se lembrar do que estavam a colocar em cima da
mesa, passaram-se duas longas horas deste tipo de
embate, onde muitos já se tinham sentado e
desistido de falar, outros continuavam a defender
com unhas e dentes o que queriam, fazendo mesmo
um fio de suor correr pelas suas faces, Rodrigo
entrevem, e com uma voz dura e poderosa
interrompe a discussão:
- Vocês são capazes de colocar os vossos
desejos infantis de lado e pensar em algo maior? –
Todos prestaram atenção – nós sabemos que esta
organização foi fundada com base nos desejos do
Felipe, ele queria que ela espalhasse a paz e a
ordem e não que fosse motivo de discussões
infantis, para alem disso ele deixou-nos uma
missão lembram-se? O enigma dele não se vai
resolver sozinho, e nós temos de vingar o que ele
queria, a organização ficará em boas mãos tenho a
certeza, mas tenho a certeza de que ele preparou
esta mensagem oculta para a decifrarmos juntos e
não para nos dividirmos – todos acenaram
afirmativamente, Ariana e Hugo foram os que
tinham ficado mais reticentes em relação a isto –

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Romeu faz o favor e traz o enigma para a luz da
razão por favor.
Assim aconteceu, Romeu pegou na pequena caixa
onde estava o que todos esperavam ser a resposta
final para o enigma e no pequeno papel que tinha
sido colocado ao seu lado, passou calmamente os
dedos na ranhura e começou a explicar:
- O que eu consegui perceber deste mistério e
que esta caixa esta protegida com um sistema anti
esforço, ou seja se nos tentássemos abrir esta caixa
a força, ela iria rodar uma pequena pedra no seu
interior que ia pegar fogo á pólvora que existe em
toda a sua extensão e queimaria a mensagem, ou
seja esta caixa tem de ser aberta por quem tiver a
chave, bem neste caso as chaves, pelo que eu em
conjunto com o Lazaro ontem a noite conseguimos
detetar, tratam-se de três anéis com formas muito
distintas e por uma ordem muito restrita, a questão
é, só sabemos a localização de um – neste
momento Hugo coloca o anel que possuía em cima
da mesa – e este papel digamos que não é
propriamente explicito.
- Estás enganado minorca, sabemos a
localização de dois, Luís apresenta o teu – o filho
retira o seu colar e mostra um anel em forma de
aguia, com uma enorme cauda que parecia ser feita
de chamas, uma representação máxima da Fénix,
era todo trabalhado a prata e tinha uma beleza
enorme.
- Assim sendo só nos falta descobrir um.

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- Não te falta nenhum, olha para dentro da caixa
entre os candelabros que por causa da vossa
idiotice vos passou despercebida – disse Rodrigo.
Romeu acenou e assim fez, lá dentro esta o terceiro
anel, tinham todas as peças só faltava saber a
ordem para as colocar, e assim ele começou a ler o
enigma:
“A forma de um deus eu já tive, e das cinzas
sempre me reergui, em primeiro lugar me devem
inserir, eu de pele dura já fui feito, temido por
muitos e respeitado por outros tanto, conhecido
como rei sou, em segundo me devem colocar, a
mim se me perceberem, perceberam o primeiro e
parte do segundo, convosco ficarei até ao fim, o
terceiro lugar é meu e só meu”
De facto, embora parecesse muito simples, podia
ter várias interpretações, afinal de contas, parecia
que todos davam para os três sítios, porque as
frases tanto podiam ser tidas de forma literal ou
figurativas, todos deram imensas voltas a cabeça,
muitos tentaram arriscar, mas todos foram parados
por Hugo, não queria arriscar perder a mensagem
por isso deu ordem para se tentar apenas quando
tivessem a certeza.
Do meio de tantas opiniões que não fazem sentido,
uma fez-se ouvir mais alto de as outras quer pelo
tom da voz que a proferiu que pela qualidade:
- Hugo, diz-me uma coisa, o Felipe gostava de
mitologia?
- Sim, digamos que sim, era uma das suas
paixões mesmo.

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- Então acho que sei o terceiro lugar, por essa
logica, o único anel que tem mesmo a ver com esse
assunto é o anel que pertencia ao Rodrigo, apesar
da minha pouca cultura sobre o assunto, o anel tem
uma imagem do Mjolnir, o famoso martelo do deus
Thor, ou seja, a única linhagem direta de
mitologia, agora os outros dois, por logica o
primeiro seria o da Ariana, pois é uma Fénix,
renasce das cinzas…
- Sim, mas a forma de deus? Vêm da onde? –
Perguntou Marie.
- Ele tem razão, Zeus tomava a forma de uma
águia bem como outras, mas a águia era a sua
imagem de marca. – Complementou Rodrigo
- Então por essa linha de pensamento, o segundo
seria o de leão, certo? - Perguntou Hugo
- Sim, pelo meu raciocínio sim.
- Então vamos tentar.
Os momentos que se seguiram foram de pura
tensão, o responsável por colocar os anéis e tentar
abrir a caixa foi Romeu, as mãos tremiam-lhe, o
suor escorria-lhe pela face, a saliva dentro da boca
já tinha enchido e vazado várias vezes, colocou os
anéis nos sítios e abriu a tampa, devagarinho o
espaço entre os dois lados começou-se a abrir,
fazendo um pequeno barulho que assustou todos os
presentes, mas fora só a falta de óleo e o tempo,
nada mais, mas para surpresa de todos, a caixa no
interior não tinha nenhum mapa, o interior da caixa
era revestido de veludo vermelho, com mais um
enigma escrito no papiro, enrolado e preso com

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uma linha vermelha, ao seu lado, mais dois anéis,
um na forma de andorinha e outro em forma de
lobo, um dourado e outro de prata, aparentemente
não tinham importância para o enigma, mas tinham
destinatários predefinidos, tinham iniciais escritas
na sua extensão “MF”, “HM”, Marie Ferreira e
Hugo Monteiro, os dois alfas estariam agora
unidos pela vontade do Felipe. Todos respiraram
de alívio quando viram que o pequeno pergaminho
estava intacto, com muito cuidado o responsável
colocou o pergaminho em cima da enorme mesa de
pedra e começou a desenrolá-lo, lá dentro escrito
com tinta preta, muito simétrica, estava mais uma
charada, agora a referir-se não a uma ordem de
objetos, mas sim ao que pareciam ser lugares á
volta do globo, Tiago aproximando-se das letras
começou a ler em voz alta:
“A terra de nostros hermanos terão de ir, á cidade
do conhecimento de pedra, sobre a ponte bovina,
os dois leões rugem em direção ao céu. Se mágoa
aqui encontrarem ao país dos gigantes de gelo
terão de ir, refúgio no passado encontrarão. Mas o
final da vossa missão, numa praia mediterrânea
encontraram, na terra da máfia, na casa do
dragão terão de entrar e deixar que o destino
comandar.”
Uma vez mais um texto que parecia ao mesmo
tempo, muito fácil e muito difícil, a primeira parte
do enigma referia-se obrigatoriamente a uma
cidade espanhola, agora qual? A segunda parte
poder-se-ia referir a qualquer país nórdico, e por
último uma praia mediterrânea com máfia podia se
referir a qualquer país na orla do mediterrâneo,

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mais recentemente ou não, todos os países tinham
tido organizações mafiosas.
Hugo sentou-se e começou a coçar a cabeça, o
Felipe tinha deixado várias pistas, mas nenhuma
delas parecia conduzir a algo concreto, pareciam
todas muito vagas, pareciam andar as voltas,
suspirou uma e outra vez, percorreu todo o mapa
espanhol na sua mente, mas geografia nunca fora o
seu forte, afinal de contas ele tinha sido sempre o
musico, nunca o inteligente nem o forte, percorreu
as faces dos presentes, todos pareciam pedir-lhe
uma reação, ansiavam por uma indicação, uma
ajuda do que fazer, quando se apoiou na mesa e
estava pronto para começar a falar, sentiu-se a ser
ultrapassado, por uma voz doce e poderosa,
naquele momento:
- A primeira parte do enigma refere-se a
Salamanca, as indicações que são dadas, fazem
referência ao brasão da cidade, e a sua poderosa e
conhecida universidade, faz sentido que seja a
primeira parte do puzzle, afinal de contas há lá
uma casa segura da Mano de Dios.
O nome daquela organização apanhou todos de
surpresa, nunca tinham ouvido falar de tal coisa, as
expressões misturaram-se entre o espanto e a
descompreensão, afinal de contas o que raio era a
Mano de Dios? Todos estavam a cogitar para si o
que era, mas sem receio algum, Sam elevou a voz e
perguntou:
- Mão de que?
- A Mano de Dios é uma organização secreta, ao
qual pertencia Luís Los Santos, e que

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supostamente está interligada a morte da minha
família, se o Felipe procurava vingança é muito
provável que tenha descoberto algo sobre eles, uma
das suas sedes principais é aqui no país vizinho, a
base de operações, ninguém sabe onde é.
- Bem, acho que temos um sitio por onde
começar, agora só temos de ver quem é que vai –
neste momento formou-se uma enorme algazarra,
todos queriam ir, ninguém queria ser deixado para
trás, por muito que Hugo tenta-se impor ordem não
o conseguia fazer, ninguém o ouvia, uma vez mais
o uivar do Alfa estava a ser ignorado, ele sentou-se
e só abanava em forma de descontentamento,
quando todos se cansaram de gritar, a voz da razão
voltou a falar:
- Bem, já que as criancinhas já se calaram, agora
falo eu – levantando a voz Rodrigo – como devem
imaginar, por muito que quisesse eu não posso ir,
por isso ficarei, e assim sendo parece-me que o
grupo mais capacitado para ir são, os dois Alfas,
receberam ambos um anel, o Felipe queriam que
trabalhassem juntos, terão de aprender a viver com
isso, a Ariana e o Tiago, porque foram os
mensageiros e os protetores dos nossos salvadores,
e depois por muito que me custe, pessoas como o
Sam, Lázaro e Romeu, também são necessários,
graças as suas particularidades únicas, por isso
penso que esta deveria ser a equipa para concluir
esta missão, não será fácil, e sinceramente não sei
o que vos espera, mas terão de ser fortes para a
concluir.
- Eu também vou! - Gritou Luís com um olhar
fervoroso contra Rodrigo.

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- Meu caro rapaz, tu até podes ter a garra do teu
pai, mas não acredito que tenhas nem o corpo nem
a mente do mesmo, por isso se a tua mãe o permitir
gostaria que ficasses por cá para eu te poder dar
um treino para te aproximares mais do que foi o
teu pai.
- Acho que é uma ótima ideia, ficas com o
Rodrigo até nós voltarmos- disse Ariana com um
sorriso na face – o teu pai diria o mesmo.
Neste momento, Marie sai disparada da cripta, sem
motivo aparente, sobe as escadas de duas em duas,
deixando atrás de si uma sensação de dor, Hugo
sem dizer nada correu atrás dela, quando chegou a
superfície, ainda viu o seu carro a desaparecer no
horizonte, olhou a sua volta a procura de
possibilidades que o permitissem alcançá-la, e viu
um membro da Alcateia, com uma enorme mota
negra, recém-lavada ainda a brilhar, correndo até a
sua beira disse com tom imperial:
- Empresta-me a tua mota!
- Mas o senhor sabe conduzir isto?
- Melhor do que tu! – Colocando o capacete
arrancou a toda a velocidade, após alguns segundos
colocou novamente o carro no seu campo de visão,
o carro acelerou e ultrapassou uns quantos
veículos, parecia ser puxado pela força da luz, ou
das trevas, finalmente virou e começou a seguir em
direção a uma das mais belas vistas da cidade de
Coimbra, a Universidade.
Marie deixou o carro estacionado numa das ruelas
que conduzem toda ao pátio da Universidade.

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Deixem-me agora mostrar-vos como é que é esta
bela instituição, a Universidade de Coimbra, é
muito mais do que os edifícios presentes no alto da
cidade, vai até aos arredores da cidade, com os
polos de economia e enfermagem, milhares de
alunos de todo o mundo, procuram o ensino nesta
magnifica casa, mas olhando apenas para os traços
físicos, é composta por três grandes polos, as
faculdades, edifícios majestosamente construídos
em pedra, com estatuas na sua entrada, estatuas a
demonstrar as virtudes e as capacidades de
necessárias para cada uma delas, á frente da
faculdade de letras, pegando nela apenas como o
exemplo, estão três estátuas feitas de pedram com
livros e penas naos mãos. As ruas adjacentes á
universidade também elas são carregadas de
magia, de calçada portuguesa, colocadas entre
edifícios de centenas de anos, todas unidas em
algum ponto, muitas delas com ligação a Sé Velha,
também ela uma enorme igreja de pedra, com
portas vermelhas enormes, no interior composta
por belíssimos jardins, belas salas de adoração,
com belíssimos santos e pinturas. E por último as
cantinas, onde a maior parte dos alunos
universitários passam as suas tardes, a comer umas
simples sandes de fiambre que sabem como o
maior manjar do mundo, as mesas tornam-se salas
de estar onde se criam amizades e se trocam
risadas. Esta era a universidade que toda a cidade
adorava, esta era a casa que todos os estudantes de
todo o mundo desejavam fazer parte, e depois
quando conseguiam fazer, nunca mais largavam.
Mas não foi nas partes principais da universidade
onde Marie se escondeu, ela fugiu para um

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pequeno miradouro escondido atrás da faculdade
de Letras, para lá chegar tinha-se de passar pela
porta férrea, uma enorme porta de ferro, que dava
acesso ao mais famoso pátio da Universidade, o
pátio da “cabra”, o pátio da torre da universidade,
o relógio que dava as horas para toda a cidade, esse
caminho era construído em pedras castanhas e
conduzia a um pequeno jardim com duas portas de
ferro, que na sua composição tinham rosas e
pombas, por detrás desta porta estava um pequeno
pátio com pequenos banquinhos encostados ao
limite, a vista era simplesmente incrível,
conseguiam-se ver todas as pequenas ruas, via-se o
rio e bem lá ao fundo um sitio onde o sol se
colocava todos os dias, foi num desses pequenos
bancos que Marie encontrou descanso.
Ainda conseguiu estar no silencio envolvente
alguns segundos, mas por pouco tempo saído do
meio do nada, um homem forte e com aparência
desgastada colocou-se ao lado dela:
- O que faz uma menina tão bonita como tu aqui
sozinha?
- Quem é você?
- Sou um bom amigo da Ariana, bem agora
estamos meio afastados, mas damo-nos muito bem.
- Amigo? Eu diria mais irmão, o que fazes aqui
Diogo? – Surgindo das sombras Hugo, ainda a
retirar o capacete.
- Oh, Hugo há quanto tempo, estás diferente,
mas o teu olhar é o mesmo.

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- Não me respondeste á pergunta, o que fazes
aqui?
- Quis conhecer a irmã do homem que me
arruinou a vida, afinal de contas se não fosse ele eu
não teria renascido das cinzas do homem fraco que
era… A Mano deu-me uma nova vida -
demonstrando a mão dourada.
Marie tremeu por todos os lados quando viu a
pequena mão, inconscientemente aproximou-se de
Hugo, este apercebeu-se e colocou-se entre ambos.
- Bem, já a conheceste, agora desaparece, antes
que eu te faça voar.
- Por agora vou, mas voltarei, porque o Padre
não desistiu dela, ainda nos vamos ver muita vez,
cuidem-se, afinal de contas o prazer de vos matar
tem de ser meu. - Desaparecendo novamente.
Quando ficaram sozinhos, voltaram-se a afastar e
sem cruzarem olhares, Hugo deu o mote:
- Porque saíste a correr da reunião?
- É demasiado para mim, demasiada informação,
demasiada pressão, eu não conheci o meu irmão,
mas a sua sombra continua a atormentar-me.
- Eu conheci bem o teu irmão, ele era um
homem exemplar, bom coração apesar de tudo,
mas acho que o mais importante não é quem ele
foi, mas sim quem tu escolhes ser, ele só quereria
que tu forjasses o teu caminho, ele não tem de ser
uma sombra, ele apenas têm se ser alguém que te
deixou uma missão, ele iria querer isso…mas

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deixa-me fazer uma pergunta, porque ficas tão
nervosa quando se fala da Mano de Dios?
- Porque eu pertenci-lhe durante muitos anos, eu
nunca soube quem era, até a uns anos atrás, antes
da Ariana, eu era mais uma criança da Mano, vivi
anos a fio lá dentro, eu fui criada junto ao chefe
máximo da organização, ele tomou conta de mim
como sua filha, sem nunca me contar quem eu era,
por isso é que tenho medo do que ele faça agora
que fugi, ele deu-me tudo, tratou-me como sua
filha, mas eu decidi fugir, a Ariana disse-me quem
eu realmente era, e eu tomei a minha decisão,
agora questionou-me se fiz a correta…parece que
tudo me leva de volta a eles…
- Tens de seguir o que o teu coração disser,
tenho a certeza que tomaste a decisão que era a
mais acertada, o teu irmão ensinou-me o que
sentimos apesar de as vezes ser o que nos vai
magoar mais, é sempre o mais correto a ser feito,
ele adorava vir a sítios como estes, mesmo sabendo
que lhe fazia muito mal aos pulmões, seguir o
coração é sempre o mais correto, e sim os nossos
caminhos levam-nos a Salamanca e á tua antiga
casa, mas agora tens uma casa nova – agarrando-
lhe na mão – e nós vamos enfrentar isto juntos – os
olhares trocaram-se e ali ficaram os dois sozinhos.
Mais a baixo, á porta da sede da Alcateia, enquanto
Ariana andava em círculos desenfreadamente,
afinal de contas Marie nunca tinha andado sozinha
na cidade, estava preocupada, mesmo que Hugo a
alcançasse, nada garantia que corresse bem, apesar
da sua mente andar a mil, sentiu o seu braço a ser
puxado para um ponto onde estivessem longe de

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todos os olhares, quando viu, já estava a ser
beijada, era Tiago que a tinha puxado para as
sombras, quando se apercebeu soltou-se o mais
rapidamente que conseguiu:
- Nós tínhamos combinado que isto não se
voltaria a repetir!
- Sim, mas ambos queremos isto não é verdade?
- Até podemos querer, mas o que fomos durante
aquele período no porto, não passou de carência
mútua, nós não respeitamos a memória do Felipe,
agora temos de nos focar na missão que ele nos
deu, nós não podemos estar juntos, e tens de
aceitar isso – ouvindo o seu filho a chamá-lo ao
longe – Tiago esquece-me, por mais que goste de
ti, nunca ficaremos juntos.
Deixando-o sozinho e dirigindo-se para ao pé do
filho, quando chegou ao pé dele, mesmo antes de
conseguir perguntar alguma coisa ouviu:
- Quero falar sobre o meu pai.
- Que surpresa, mas de acordo, vamos para um
sítio onde possamos falar descansados, vem
comigo.
Saindo juntos, dirigindo-se para o local mais verde
e um dos mais calmos da cidade, durante todo o
caminho nem uma única palavra foi trocada entre
os dois, a única coisa que se fez ouvir foi a típica
música pop cliché que ia a tocar no radio, torna-se
difícil identificar qual era, uma vez que são todas
muito parecidas. O sítio escolhido, foi talvez um
dos sítios mais conhecidos da cidade, o belo

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choupal, talvez o sítio onde melhor a natureza se
aguentou na cidade, repleto que caminhos que
passam por meio de uma densa e acolhedora
floresta de árvores de todos os tipos possíveis, os
caminhos durante quase todo o ano cheios de
folhas que vão caindo tocadas pelo vento que se
faz sentir quase diariamente, os trilhos que o
compõem são muitas vezes escolhidos como
campo de treino de muitos dos habitantes.
Estacionando o carro num pequeno parque de
estacionamento á porta de uma das entradas para o
denso choupal, ambos se dirigiram ainda em
silencio para uma zona onde existiam alguns
bancos, tentarei colocar em palavras a beleza do
local mesmo que seja de todo impossível retrata-lo
exatamente como ele merece ser retratado, o
caminho aberto para os peões estava estranhamente
limpo, apenas com algumas folhas colocadas em
cima do tapete verde que acompanhava toda a
extensão dos vários caminhos, fazendo uma
enorme sombra, as majestosas arvores
acompanhavam também elas todo o caminho,
arvores enormes, com a folhagem no seu máximo,
o sol que se fazia sentir tornava a temperatura por
vezes insuportável, depois de muito andarem e do
olhar de Ariana ter percorrido todas as flores que
lhe apareciam no caminho, muitas delas fazendo-a
relembrar de um passado agora distante, um
estranho sorriso começou a aparecer-lhe na face,
quando olhou para o seu filho encontrou na sua
face uma enorme mistura de sentimentos, talvez os
mais patentes fossem a confusão e a magoa,
decidiu então parar, junto a um dos bancos de
madeira que se encontram em toda a extensão do

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denso parque, encostando-se para trás, cruzando as
pernas esperou que o rapaz lhe seguisse o exemplo
e apesar de ele se sentar a pose que tomou foi
deveras diferente, com as costas dobradas para a
frente, com as mãos colocadas sobre as pernas
deixando-as soltas em direção ao chão, o seu olhar
acompanhava o trabalho das atarefadas formigas
embora a sua mente estivesse bem longe dali.
Durante alguns minutos os únicos sons que se
ouviam eram as doces canções que os pássaros
decidiam entoar, as conversas paralelas de quem
passava junto a ele, e barulho da água do rio que se
encontrava ali tão junto a eles, era um sítio de
perfeita calma, por mais que as almas e os corações
estejam atribulados, um bom bocado passado junto
a natureza consegue sempre acalmar as nossas
feridas e as nossas preocupações.
O silêncio fora finalmente quebrado por uma
pergunta seca e feita a unissom:
- Quem era o meu pai?
- O teu pai era o Felipe Ferreira, ou Alfa como
preferires chamar.
- O seu nome eu sei! Eu quero saber quem ele é
realmente, qual das suas versões era a verdadeira
estou cansado de ouvir falar tanto e de tanta forma
dele parece um fantasma que muda de forma
consoante quem fala dele.
- O teu pai tinha esse poder, ele tinha uma
personalidade que adotava consoante a pessoa que
estava a sua frente, por exemplo comigo adotou

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sempre duas diferentes, consoante estarmos
acompanhados ou sozinhos.
- Não respondeste a minha pergunta…
- Serei totalmente sincera contigo, o teu pai por
muito mal que tivesse feito, foi um herói, pelo
menos para mim foi, ele descobriu antes de toda a
gente qual era o plano do meu tio e mesmo assim
decidiu-me amar, eramos jovens era certo, mas o
que eu senti por ele foi arrebatador, o profundo
olhar que ele tinha e que tu herdaste era a arma
mais poderosa que ele tinha quando queria
conquistar alguém, talvez não fosse a pessoa mais
aberta em relação a sentimentos, mas que sentia
mais do que qualquer outra pessoa sentia, no dia
em que tu foste feito, ele mentiu a todos a dizer
que ia continuar a trabalhar na sua investigação, e
fugiu para estarmos os dois sozinhos, viemos para
este mesmo local passamos o dia juntos e falamos
de tudo e mais alguma coisa, ele não me largou a
mão durante todo o dia, foi aqui que trocamos as
nossas juras e o nosso primeiro beijo, o que
sentíamos foi tão forte que nos conduziu a outras
coisas, não fora a minha primeira vez mas acredita
que valeu muito mais a pena. O teu pai era visto
como um monstro, pelas decisões que tomou, pela
forma e pelas pessoas que incluiu no seu plano,
mas ao mesmo tempo ele foi um herói, era
bondoso, extremamente inteligente e de uma
beleza sem par, este foi o Felipe Ferreira que eu
conheci, tenho a certeza de que se o conseguisses
conhecer terias uma visão ainda mais positiva do
que eu…, mas diz-me porque quiseste falar sobre
isto agora?

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- Porque estou cansado madre…estou cansado
de ouvir relatos do enorme líder, do poderoso Alfa,
do herói que criou uma organização que protege
tudo e todos, do monstro que mudou a cidade,
estou cansado de ouvir falar de uma pessoa que
abdicou de mim, abdicou de nós por um sonho
fútil…eu nunca falei porque senti que de nada
servia, mas desde pequeno que desejava ter um pai
normal, um pai que tivesse escolhido ficar
connosco, doía-me tanto ir aos parques jogar a bola
com os meus amigos e quando anoitecia ver os
pais a ir busca-los, custava-me tanto quando eu
tinha qualquer conquista não estar lá ninguém se
não tu – começando a deixar as lágrimas fugirem
dos olhos – custou-me não ter ninguém que me
dissesse “então as namoradas, deixa que o pai
ajuda-te”, eu nunca tive um exemplo para seguir,
eu só desejava que ele tivesse sido um homem
normal, um livreiro ou um carteiro, não precisava
ser filho de um herói ou de um monstro já nem sei
bem…
Neste momento, de forma repentina a sua mãe
abraça-o com todas as suas forças, e com um
enorme sorriso na face, retira-lhe as lágrimas da
cara com os polegares:
- Meu anjo, eu sei isso tudo, mas deixa-me
dizer-te que o teu pai esteja onde estiver está
orgulhoso do homem que te tornaste, e agora tens
de continuar os teus estudos para lhe seguires as
passadas, Luís, tu carregas no sangue a honra e o
poder de um herói, mas o teu caminho não tem de
ser igual ao dele, tens de ser tu a escolher o teu
caminho, e eu estarei cá para te ajudar seja ele qual

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for…mas diz-me anda-me uma pulga atrás da
orelha há algum tempo, anda pássaro novo no
ninho ou alguma coisa, andas muito sorridente
ultimamente, fora obviamente este momento
depressivo que tiveste.
- Por acaso conheci uma rapariga muito gira no
outro dia – começando a sorrir e a limpar o resto
das lágrimas – mas se calhar não a volto a ver, ou
talvez veja na nova escola, não sei – encolhendo os
ombros.
- Será que finalmente vou ter alguém para poder
chamar de nora?
- Ei… calma aí, sabes perfeitamente que não sou
de me apegar, sinceramente não acredito que vá
sentir nada de especial por ela.
- Sabes, as palavras podem enganar os cegos ou
os desatentos, mas o brilho que os teus olhos
emanam quando falas dela, a mim não me passa
despercebido, talvez esteja aí um pequeno
sentimento a formar-se finalmente.
- Sabes o que te digo mãe? Davas uma ótima
realizadora de filmes, porque tens cá uma
imaginação que te vou contar.
E ali ficaram os dois a rir e a falar de temas mais
calmos e que exigissem menos viagens ao
subconsciente.
A alguns quilómetros dali, dentro de um pequeno
carro estacionado a beira-rio, Diogo começara a
fazer uma chamada de máxima importância, a voz

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rouca do outro lado respondeu ao fim de alguns
segundos:
- Diogo, tende notícias para me dar?
- Mio Signore, o parasita que colocamos dentro
das fileiras da Alcateia, acabou de me dar a
informação que eles estão de partida para
Salamanca, possivelmente para a zona da nossa
casa segura, quer que eu os siga?
- Não. Preciso de ti em Portugal para tratares do
resto, mantem-te contactável, e não percas o miúdo
de vista. Che Dio ti protegga. Noi siamo uno.
- Noi siamo uno.
E a chamada caiu, na outra ponta do mediterrâneo
o homem da voz rouca mal o telemóvel foi
desligado, fez sinal para que chamassem o seu
mais direto subordinado:
- Meu caro, o lobo começa a dirigir-se em
direção a toca do leão, manda o miúdo para
Salamanca, quero que seja ele a recebê-los na
nossa casa segura.
- Mas mio Signore, sabe perfeitamente que eles
tiveram uma relação, não seria mais sensato enviar
outra pessoa?
- Não, por essa razão é que tem de ser ele, e sem
mais demoras, faz o que te mando. Che Dio ti
protegga.
E assim fazendo uma vénia o homem saiu do
enorme salão.

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Nos dias que se seguiram começaram-se a fazer os
preparativos para a grande viagem, numa tarde
onde até o calor do verão parecia estar com medo
de aparecer, umas tímidas nuvens tapavam o
brilhante sol, o grupo que tinha sido destinado para
a missão encontrava-se a porta da sede para tomar
as estradas que os levariam até a bela cidade de
Salamanca, não se iam arriscar a andar de avião,
com os avisos de Marie nunca poderiam saber o
que esperar desta bem dita e misteriosa
organização.
A viagem foi feita sem grandes paragens, as
paisagens alteraram-se varias e varias vezes,
enquanto ao inicio se viam o interior das mais
maravilhosas cidades, depois passaram para prados
amarelados, erva curta, arvores isoladas, e
pequenos rebanhos de ovelhas e vacas que
pareciam mais desesperadas do que os pastores que
secavam o suor com as costas da mão, foram dias e
noites a conduzir, ao fim de pouco tempo tinham
entrado em terreno espanhol, o sinal que isso tinha
acontecido foi os telemóveis deixarem de dar,
mesmo que isto só tenha acontecido passados
vários quilómetros, a estrada que conduzia ao
destino estava deserta, apenas uma paisagem
austera e seca, Espanha sempre fora mais afetada
pela proximidade com o continente africano do que
Portugal, as suas paisagens pelo menos do sul era
muito mais quentes e desprovidas do verde do que
as nossas.
Contudo antes de chegarem á cidade destinada
pelo enigma decidiram fazer uma pequena pausa
numa cidade mais pequena, uma cidade fortaleza,

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mais pequena do que Coimbra, mas que para quem
gostar da época medieval é um oásis dentro do
mundo das cidades modernas e que em nada
relembram o glorioso passado, estacionaram os
carros á entrada da belíssima e poderosa Cidade
Rodrigo, uma cidade com pouco mais de treze mil
habitantes, toda rodeada por muralhas que faziam
com o que o seu acesso fosse mais complicado.
Depois de olharem com atenção, saíram em grupo,
por momentos esqueceram-se do que iam fazer, o
plano era simples, comer alguma coisa, esticar as
pernas e colocar os sentidos em alerta máxima,
afinal por algum motivo aquela cidade tinha sido
escolhida. Contudo depois de várias horas de
viagem a concentração torna-se impossível de
manter, agora pareciam um grupo de adolescentes
que iam numa visita de estudo, bem quase todos,
Hugo e Marie pareciam manter a preocupação e o
foco, mas todos os outros pareciam demasiado
felizes para se lembrarem do quer que fosse.
Ariana ao fim de algumas horas tinha feito uma
“amizade” com Sam e com Lázaro, obviamente
falava mais com o mais baixo dos dois, também
não era de todo difícil, ele não se tinha calado um
minuto, Tiago tinha vindo todo o caminho a falar
com Romeu, sobre tudo e mais alguma coisa, tinha
finalmente percebido que tinham pontos em
comum, embora o seu olhar teimosamente caísse
algumas vezes para a face de Ariana mesmo sem
ela se aperceber. Como todos estavam tão
entretidos nos seus pensamentos e vontades os dois
líderes acabaram por ficar muitas vezes sozinhos,
as conversas iam-se desenrolado, e mesmo sem se

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aperceberem também as suas conversas tinham
tocado temas menos importantes.
As ruas pelas quais eles andavam eram feitas de
pedra, tinham pequenas casas antigas de um lado e
do outro, todas elas levavam á praça central onde
estava a sede do poder e um dos marcos mais belos
da cidade, a majestosa catedral, as ruas eram
estreitas, davam um toque misterioso e sombrio a
cidade, haviam pessoas a cruzar as ruas, ombro a
ombro, maior parte deles era turistas, os nativos
estavam a trabalhar nas lojas onde vendiam o
típico presunto, os queijos e as garrafas de vinho
com a marca de la Ciudad Rodrigo, contudo não
foi numa destas pequenas lojas de quina de rua que
eles pararam, a sua decisão prendeu-se em parar
num café central, onde todos se sentaram numa
mesa redonda, ali ficaram durante tanto tempo que
a tarde acolhedora tinha dado lugar a noite,
cansado de perder tanto tempo Hugo levantou-se
com o seu terceiro café em mão e veio para a rua a
olhar para o céu pintado com milhares de estrelas,
que agora faziam com que a cidade ainda parecesse
mais bonita, respirou fundo várias vezes, olhando
para o horizonte com uma mistura de medo e
desejo pensava no que ia encontrar em Salamanca
que estava ali tão perto, talvez uma sombra do
passado ou o único caminho para o melhor futuro
possível. Levando a chávena á boca sentiu uma
presença forte aproximar-se dele, sem abrir os
olhos passou a língua nos lábios para retirar o café
e com uma voz calma disse:
- Lázaro, não estavas bem lá dentro com o
grupo?

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- Por acaso estava a ser agradável não fosse a
tensão entre o Tiago e Ariana e as parvoíces do
Samuel, e para além disso preciso de falar contigo.
- Ui…isso é perigoso, vamos dar uma volta, eles
não se perdem e para tu quereres falar comigo deve
ser algo mesmo importante
E assim saíram em direção á praça, os passos
dados por eles eram ligeiramente diferentes, o
passo de Lázaro era muito maior, com dificuldade
Hugo tentava acompanhar, quem deu o “pontapé
de saída” na conversa foi exatamente quem a
queria ter, com voz calma e olhar colocado no chão
Lázaro começou:
- Se alguém perguntar nós não tivemos esta
conversa – Hugo soltou um pequeno sorriso – estás
preparado para o que vais encontrar amanhã?
- Não sei sinceramente, sinto que pode não ser
nada como eu estou a espera…
- Tens de estar pronto para tudo, sem criar
expectativas porque pode ser um mundo diferente
do que estás à espera, mas uma coisa eu tenho a
certeza seja o que for que encontres vai-te
aproximar um pouco mais do teu amigo.
- Gostava que vocês se tivessem conhecido, mas
não aconteceu, acho que se iam dar bem…, mas a
vida não quis.
- O destino é complicado as vezes, comigo
nunca foi muito bom – olhando para a sede de
poder que agora estava a sua frente, um edifício
lindo, com inúmeros pormenores que a vista

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desprevina passam entre os pingos da chuva, á sua
frente grande jardins de erva verde, sempre muito
bem regada e tratada, em cima de uma delas um
antigo canhão de guerra, há muito tempo fora de
utilização, mas que não deixava de dar um
ambiente de poder ao que deveria ser o sítio mais
importante da cidade.
- Tu nunca falas muito sobre ti, acho que afinal
de contas só conheço o teu nome…
- É sempre mais fácil ignorar o que nos magoa,
dai nunca falar de mim ou do meu passado, as
sombras são mais fáceis de ignorar se nos
mantivermos num quarto escuro…, mas acho que
te posso contar não sei porquê, mas sinto que pode
ser a última oportunidade de te contar isto… Eu
desde de muito novo que sempre foi olhado um
pouco de lado, não pelo meu feitio mas porque era
ligeiramente diferente, sou e sempre fui mais alto e
mais forte do que os outros, e tu já sabes como são
as crianças em ambientes propícios para tal, são
cruéis e raramente olham ao que dizem, as palavras
são como navalhas que saem disparadas em
direção á nossa mente, e por muito rápidos que
sejamos nunca conseguimos despistá-las a todas,
mas isso foi o mínimo, o minha mãe quando eu
tinha apenas dez anos fugiu de casa com um
amante, levou consigo toda a alegria da nossa casa,
eu fiquei com o meu pai só que ele ainda demorou
a superar mais do que eu… os primeiros tempos
ainda nos aguentamos, ele conheceu várias
mulheres depois da minha mãe, tentou afogar as
magoas nos corpos femininos, mas isso não foi
suficiente, meteu-se na bebida e na droga, eu servia

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de moço de recados, ia buscar a bebida, ia aos
becos escuros buscar o resto também, rapidamente
entrei numa espiral negativa, as aulas não
interessavam e não demorou para que eu
começasse também a seguir as pisadas dele,
ficamos sem luz nem gás por causa daquele
homem que roubou a minha mãe do nosso
lar…mas isso foi o menos, eu sempre fumei e bebi
às escondidas, mas um dia ele descobriu e a partir
daí começou me a agredir diariamente…chegou a
partir-me um braço uma das vezes…eu aguentei
aquilo durante algum tempo…mas um dia foi
demais…cheguei ao meu limite e decidi fugir de
casa, vivi nas ruas durante algum tempo, mas fui
acolhido por um gangue… era a sua mascote, era
alto e forte e servia só para intimidar, mas houve
um dia em que eles decidiram fazer um assalto e eu
fui com eles, eles tinham-me dito que ia levar uma
arma falsa, que servia só para assustar e eu confiei
neles, entramos num café e começamos a roubar
tudo, apareceu o dono com caçadeira em punho, o
meu instinto fez-me puxar o gatilho…mesmo
sabendo que não tinha balas, pelo menos era o que
eu pensava, mas eles tinham-me mentido e era uma
arma verdadeira, o homem caiu redondo no chão
sem vida, um fio de sangue começou a correr-lhe
pelo meio da testa, eu paralisei, todos eles fugiram
o mais rápido que podiam, mas eu fiquei estático,
da sala ao lado apareceu o pequeno neto do homem
que eu tinha acabado de matar, não consegui
sair…não tardou para que a policia chegasse e me
prendesse, foi condenado a dez anos de prisão, a
minha mãe tentou-me tirar de lá e contou-me que o
meu pai tinha cometido suicídio pouco tempo

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Depois de eu ter fugido de casa, apesar da situação
onde eu estava não a consegui perdoar e recusei a
ajuda, para mim ela era a culpada de tudo aquilo –
começando aos pontapés às pedras que apareciam
no caminho – e por mais que soubesse que merecia
estar preso, a solidão da cela e o tempo que estava
a perder colocaram-me doido, tentei fugir por mais
do que uma vez, e por isso a minha pena foi
aumentada e fui transferido para Coimbra, onde
num dia de chuva me deram um novo colega de
cela, eu já me tinha fechado ao mundo, raramente
falava e não queria que ninguém falasse comigo, e
tinham de colocar logo um anão que parecia ter
uma bateria a pilhas que nunca mais terminava,
bateu contra as grades todo o dia e noite a pedir
que o tratassem melhor, por momentos apeteceu-
me atira-lo contra a parede para ver se ele se calava
mas com o tempo acabei por me habituar a ele e
digamos que até o tolero e depois passados alguns
anos apareceste tu, que mesmo assim continuas a
ser uma incógnita para mim, mas até és
suportável….Bem esta é a minha história, agora
tens de me contar uma também…como estão as
cenas com a Marie?
- Por que raio me estás a perguntar isso? –
Começando a acelerar o passo e a ficar com a
respiração descontrolada.
- Pelo simples motivo de vocês só terem falado
um com o outro desde que saímos de Coimbra, por
mais nada…por que haveria de ser?
- Temos falado apenas da missão mais nada, não
tenho tempo para isso e lembras-te que jogo no
campeonato oposto?

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- Isso quer dizer muito pouco, já conheci
pessoas que trocaram mais do que uma vez de lado
do campo, e isso quer dizer muito pouco, afinal de
contas, o que importa é o amor, seja ele de que
forma for, mas nem sei porque estamos a falar
disto, eu estava apenas a referir-me ao facto de
vocês falarem, tu é que já estas a levar para outro
lado – olhando de lado para o seu companheiro.
Encontravam-se agora á frente da majestosa
catedral da cidade, uma catedral do estilo românico
toda construída em pedra cor de mel, na sua frente
uma poderosa porta rodeada de uma proteção oval,
mesmo por cima tinham sido construídos santos
que pareciam sair da parede, ficando estes mesmo
por debaixo de uma belíssima janela redonda, toda
a estrutura era de um poder e de uma aura de
invencibilidade tremenda, todos os que iam a
cidade mesmo que fossem a procura apenas de
algo para comer sentiam-se atraídos para aquele
lugar, fossem crentes ou não, tivessem fé ou não,
aquele era um dos lugares que transmitem paz, e
vista de noite, apenas com o luar sobre a sua
enorme copula, todas as suas linhas pareciam
ganhar vida, parecia como se ela quisesse entrar na
conversa também, parecia ter uma opinião para
dar, e os olhos mesmo que fossem de pedra dos
santos pareciam acompanhar todos os movimentos
que aquelas estatuas de carne e osso faziam.
- Mas nem amigos somos, somos apenas
companheiros de missão, somos dois escolhidos
para o mesmo…
- E achas mesmo que ele vos escolheu aos dois
por acaso? – Isto apanhou completamente de

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surpresa Hugo – Posso não saber muito, mas ele
não me parece que fosse uma pessoa que fizesse
nada por acaso, por isso só tenho um conselho para
te dar, sintas o que sentires deixa-te ir, ele sabia o
que estava a fazer, seja o que for que isso seja.
Neste momento ouviu-se a voz estridente de Sam
no outro ponto da praça, ignorando completamente
o facto de estarem outras quantas pessoas
exteriores ao grupo e já ser de noite, não teme o
mínimo cuidado com o tom de voz, sem qualquer
preocupação em manter a identidade deles em
segredo. Quando se reuniram todos, Hugo quando
se chegou ao pé dele disse-lhe baixinho junto ao
ouvido “o que vale é que combinamos que os
nossos nomes ficariam em segredo”, a gargalhada
tomou conta de todos, mesmo os mais distantes
não conseguiram não sorrir um bocadinho.
Passaram as horas que sobraram da noite no carro,
uns deitados nos bancos, outros em cima do capo,
e outros simplesmente em pé, quando os primeiros
raios de sol apareceram no horizonte voltaram a
colocar os pneus a caminho, faltava pouco para
chegarem ao seu objetivo.
Sítio Desconhecido algures em Itália
- Mio Signore…eles acabaram de sair de Ciudad
Rodrigo, devemos intercetá-los antes de chegarem
a Salamanca?
- Não – levando a chávena de chá á boca – vão
buscar o Isaac, preciso dele ao pé de mim, deixem-
nos procurar á vontade, deixemos os ratos caírem
na ratoeira… quero olhar para mi hija uma última
vez.

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- Claro mio Signore… Che Dio ti protegga.
Salamanca
Ainda não passava das sete da manhã, quando
finalmente entraram na bela cidade de Salamanca,
um cidade que se mostra um oásis dentro do
deserto das cidades atuais, uma cidade que
consegue misturar o melhor de dois mundos,
devido á forte presença marroquina do passado, as
cores que constituem a cidade são o castanho-
escuro e, por muito curioso que pareça o verde, a
cidade dividida em duas partes, a cidade histórica
dentro das muralhas centenárias, e a cidade fora
das muralhas, fora destas majestosas estruturas, a
cidade apresentava uma beleza que conquistava
todos os seres, desde da ribeira que passava fora da
cidade e que definia os seus limites com água
límpida e fresca, na qual algumas pessoas tendem a
refrescar-se, já dentro a cidade apresenta belas
igrejas, fontes gigantes que no verão refrescam
toda a cidade, e depois os enormes jardins
afrodisíacos, com enormes palmeiras, bancos
colocados á sombra, turistas por todo o lado,
aquelas horas os centros de comercio ainda se
estavam a preparar para o duro dia que tinham pela
frente, quis o destino que eles chegassem a cidade
num sábado, o dia mais movimento da semana, os
únicos pontos que já estavam prontos para servir
eram os mercados que serviam alimentos, que
serviam de base para tudo o resto. Mas não é neste
ponto que eles se focaram, por linha de
pensamento logica, dirigiram-se desde logo para a
zona histórica da cidade, onde estavam as
universidades, se Felipe tinha escondido alguma

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coisa naquele fim do mundo teria de ser naquela
parte. Tiveram de deixar o carro estacionado a
alguns metros da entrada, num estacionamento
colocado lá de propósito para turistas. Todos com
óculos de sol e agora sim com a máxima atenção
avançaram, decidiram dividir-se em grupos três
grupos, dois de duas pessoas e um de três, Marie
ficou com Ariana, Sam com Lázaro, e Hugo com
Tiago e Romeu. Cada grupo para um ponto
diferente, o primeiro dirigiu-se para a zona das
lojas de souvenirs, todas as paredes tinham história
por isso nunca se sabe, o segundo para a zona das
ruas transversais nas costas das universidades e o
terceiro diretamente para o recinto onde se
encontravam as universidades.
Ariana e Marie, passaram a pente fino todas as
lojas, a maior parte delas fechadas, e mesmo com
as precianas fechadas conseguiam-se ver os
elementos que eram vendidos, o mais comum eram
camisolas e uma quantidade incontável de sapos,
todos os tipos de sapos, eram os amuletos da sorte
da cidade, por algum motivo algumas pessoas
matavam mesmo os animais e os colocavam a
entrada das casas, ao contrário da tradição lusa que
considera a cabeça da víbora como amuleto, os
espanhóis, pelo menos os da cidade de Salamanca
usavam um animal muito menos perigoso, mas
segundo eles muito mais poderoso. Embora
tivessem procurado por todo o lado o sinal da
Mano, nada encontraram, havia alguns sinais que
lhes passaram completamente ao lado, porque
pareciam desenhos infantis. A busca delas foi
praticamente em vão.

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O segundo grupo percorreu como pode as ruas
estreitas construídas em pedra, ruas onde Lázaro
mal conseguia passar sem tocar com os ombros nas
paredes, Sam por ainda ser muito cedo andava aos
caídos, já tinha dito por mais do que uma vez que
precisava de um café ou algo ainda mais forte, se
as mulheres os sinais passaram despercebidos por
parecerem infantis a estes dois seres iluminados
passaram de uma forma total, nem sequer o seu
pensamento se lembrou de olharem para as
paredes, era necessário ser algo muito grande ou
brilhante para eles olharem, Lázaro ainda tentou
por uma e outra vez, mas com uma gralha a falar
de minuto a minuto e a reclamar da vida não se
tornava de facto uma missão nada fácil, quando já
tinham andado por cerca de meia hora, o olhar de
Sam ganhou um brilho diferente, um café estava a
abrir as portas finalmente, e quem estava a colocar
a esplanada era um ser de sexo feminino,
rapidamente aquela mente deixou de funcionar,
com paleio e com argumentos como “estamos
perto”, “podemos descansar um pouco”, lá
conseguiu demover o seu compatriota, e
rapidamente estavam sentados na esplanada a
tentar falar espanhol mas a falhar mediocremente,
talvez fosse esse o seu objetivo, porque esta língua
que ele tinha acabado de inventar tinha conseguido
arrancar umas gargalhadas á moçinha que estava a
servir, embora fosse bastante mais nova do que
eles, em nada demoveu o ímpeto daquele gala
incorrigível, e por ali ficaram.
O terceiro grupo, já percorria a enorme praça das
universidades, no seu centro estava talvez o mais
belo jardim da cidade, erva verde cortada curtinha

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rente ao chão, colocadas no seu meio, estavam
todos os tipos de flores que se possam imaginar,
talvez a que saltasse mais á vista fosse a lavanda, o
cheiro que aquela parte da cidade emanava era
diferente do que qualquer outro, o doce ar das
flores, misturado com o cheiro a pão quente das
pastelarias, as doces pipocas que começavam agora
a ser vendidas na entrada da muralhas, nem nunca
esquecer o cheiro a suor que os turistas deitavam
para a atmosfera, bem como os cigarros que já
eram fumados mesmo sendo tão cedo, de facto
consoante o sitio onde se encontrassem o cheiro
podia passar da mais maravilhosa fragância ao
mais negro dos odores, em termos de som, os
pássaros enchiam os telhados, os cães as ruas, bem
como as pessoas que pareciam falar todas línguas
diferentes, se em tal acreditassem aquele espaço
era a mais perfeita representação da Torre de
Babel, para melhorar ainda mais a melodia que se
fazia ouvir existiam vários cantores de rua, que
tendencialmente tocavam as musicas mais
conhecidas para que todos ficassem atentos às suas
belas melodias. Embora fosse apenas o início do
dia já se sentia uma temperatura bastante elevada,
colocava todos com vontade de tirar a camisola,
fosse isso uma boa ou má imagem. Foi com este
plano de fundo que os três rapazes começaram a
sua busca, ao contrario dos restantes grupos, estes
estavam comprometidos com a missão, dividiram-
se e começaram a procurar nas entradas da
faculdade, Romeu tinha ficado com a faculdade de
Geografia, Tiago com a de psicologia e Hugo com
a de História, quando olhou para aquele edifício
em pedra, com as letras em ferro a identificar o

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objetivo, e depois todos os pormenores que faziam
com que qualquer pessoa, mesmo que não
soubessem ler conseguiam identificar, desde
brasões a pequenas estatuas. Contudo havia algo
que chamou a atenção dos três, um estranho
símbolo que estava espalhado por toda a cidade,
em todas as ruas, com pequenas variâncias. Romeu
descodificou rapidamente o que era, com toda a
rapidez que conseguiu desenhou o símbolo num
pequeno papel e avançou em direção a Hugo,
quando lá chegou já estava Tiago a descrever um
símbolo que em muito se assemelhava ao que ele
tinha conseguido desenhar, pareciam todos ser
símbolos alquímicos, quando se juntou finalmente
a eles começaram a discutir o que tinham visto, e
as declarações começaram a bater certo, em todas
as quinas, em todos os lugares onde passava pouca
gente, e nos outros onde ate passavam mais gente
eles estavam, embora neste ultimo caso tivessem
mais escondidos, começaram a tentar arranjar um
ponto ligação entre eles, os que apareciam mais
eram os seguintes:




Com um clique, Romeu acedeu rapidamente a um
site onde apareciam todos os tipos de símbolos
esotéricos, rapidamente decifrou que o primeiro
símbolo era o Selo de Salomão, o segundo o
símbolo do Ouro e o terceiro o símbolo alquímico
do Fogo.

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- O primeiro é o símbolo da união dos elementos
e normalmente é utilizado nos processos
alquímicos para eles correrem bem, o segundo é o
símbolo do ouro que simboliza a perfeição, todo o
processo alquímico se baseia em tentar tornar tudo
em ouro por isso é o símbolo mais desejado de
todos e o ultimo é o Símbolo do Fogo, remete-nos
para a ultima fase da transformação dos elementos
por isso a mais poderosa e importante… são todos
símbolos bastante poderosos para quem acredita
nisto…mas terão alguma ligação?
- Não são os únicos, existem outros, como o da
água e o do vento, em lembro-me do Felipe falar
destas coisas, procurem pistas, como um símbolo
de Fogo perto do da Água, ou pequenas alavancas
onde estiverem os selos de Salomão, mas tentem
não chamar muito á atenção – concluiu baixinho
Hugo.
Voltaram a separar-se, apesar da praça ser na sua
estrutura tudo menos um triangulo, rapidamente
Hugo apercebeu-se que haviam alguns edifícios
que poderiam facilmente constituir alguma coisa
do género, podia ser só um tiro no escuro, mas
decidiu arriscar, com o jardim como centro
começou a ir aos sítios que poderiam ser
indicadores, e pela primeira vez em muito tempo
acertou, em três pontos distintos da praça três
edifícios que formavam um triangulo perfeito
encontravam-se ao que parecia exatamente as
mesmas distancias, agora só faltava saber onde é
que eles conduziam, começou a procura de
entradas secretas, de portas escondidas, de
alçapões, de tudo e mais alguma coisa, logo ele

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que tinha dito para ser cuidadoso parecia um
maluquinho que tinha perdido alguma coisa e
andava a bater nas paredes com esperança que lhe
caísse de forma mágica aos pés, chegou mesmo a
deitar-se no chão depois de deixar passar um grupo
de turistas porque parecia ter sentido algo a mexer-
se debaixo dele, algo que não era de todo mentira,
porque naquele caso uma das pedras da calçada
estava fora do sitio e ele tinha por sorte ou azar
esperado em cima dela. Os espanhóis presentes nas
proximidades começavam a comentar “Ese
hombre no es normal”, mas o facto é que ele nem
sequer os ouvia, só queria encontrar alguma pista.
Enquanto Hugo procurava pistas, Tiago tinha
começado a reparar nalgumas silhuetas estranhas
que tinham começado a entrar na praça, homens
que por muito que tentassem disfarçar traziam as
mesmas insígnias na roupa, o mesmo símbolo que
Diogo tinha, a mesma mão prateada com a cobra
enrolada no centro, todos eles pareciam ocupar
posições estratégicas, mas se alguma coisa Tiago
tinha aprendido com os anos é que demonstrar
fraqueza poderia levar o adversário a tomar uma
decisão apressada e ainda menos proveitosa do que
a do primeiro plano, porque normalmente quando a
presa se começa a mexer rapidamente demais ou a
fazer barulho demais tende-se a cala-la o mais
rapidamente possível, por isso tentou por tudo
regressar para o pé dos seus amigos mas
rapidamente se apercebeu que não estava a lidar
com amadores, consoante os passos que ele dava,
um certo e determinado grupo de homens fazia
exatamente o mesmo, pareciam o seu espelho, se
ele se aproxima-se um passo de Hugo, eles iriam-

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se colocar um passo entre eles, quando se
apercebeu que não tinha muito que pudesse fazer
sem causar dano, tentou manter contacto visual
com os companheiros, com Hugo foi relativamente
fácil, ele andava como uma barata tonta de um lado
para o outro já com Romeu foi praticamente
impossível, percorreu toda a praça a procura dele
mas ele simplesmente tinha desaparecido, o seu
coração começou a bater mais depressa, seria
possível que ele tivesse sido capturado? Se fosse
essa a situação teria de agir rápido, estava entre a
espada e a parede mas tinha que conseguir fazer
alguma coisa, tentou de forma discreta ligar para
Sam e para Lázaro, mas nenhum deles atendeu,
possivelmente estavam demasiado ocupados, e de
facto estavam mas não com o que deviam,
lembrou-se de ligar a Marie, mas se ela fosse um
alvo seria bom mante-la distante dali, e nem sequer
colocou a hipótese de chamar Ariana, era a ultima
pessoa que desejava perder, o suor frio começou a
escorrer-lhe pela face, e desta vez o calor não era o
seu motivo, mas tudo ficou pior ao reparar que
todo o perigo não se encontrava na praça em si,
mas sim por cima dela, passados mais ou menos
dez minutos deste jogo mental do que poderia ser
ou não feito, todos os “membros presentes”,
olharam para o cimo de um edifício, para ser mais
especifico o edifício da faculdade de Letras da
Universidade, sitio onde Tiago estava encostado,
andando o mais rapidamente que podia para olhar
para o telhado quando teve a visão completa, o seu
sangue congelou totalmente, um homem todo
vestido de negro, com uma mascara que lhe tapava
quase toda a face, onde a única coisa que se fazia

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ver era o verde dos seus olhos, nas suas mãos uma
Dragunov SVU, uma arma toda negra, com uma
precisão nas mãos certas de quase cem por cento,
com a arma encostada contra o limite do telhado, o
olhar para a mira, e com a ponta diretamente
direcionada contra Hugo, parecia estar só a alinhar
os últimos centímetros para disparar, neste
momento Tiago perdeu totalmente a calma,
começou a correr em direção de Hugo, ignorou o
facto dos restantes membros se irem colocar no seu
caminho, o tempo parecia passar em camara lenta,
quando estava a mais ou menos vinte metros de
Hugo, já com três guardas a sua frente, fez-se ouvir
o disparo, a bala saiu a rodar do cano da rifle de
precisão, Tiago olhou e viu a bala a percorrer o
céu, num ultimo esforço gritou por Hugo que ao
ouvir o disparo tinha-se virado em direção da
Faculdade, não havia forma de fugir daquilo,
quando a bala encontrou o corpo uma pequena
mancha de sangue sobrevoou o espaço ao lado e
caiu no chão. Com a visão ainda confusa, Tiago
puxa da sua pequena nove milímetros e dispara por
três vezes em direções não fatais contra os três
homens que tinha a sua frente, os restantes homens
apercebendo-se que a missão tinha sido falhada
bateram em retirada, escusado será dizer que os
turistas presentes quando ouviram os disparos
começaram a correr como o gado assustado, os três
homens feridos aproveitaram um segundo de
desatenção para fazerem o mesmo, Tiago
conformado com o seu desaparecimento, virou-se
para o telhado, onde o homem ainda o encarava,
com um olhar frio e distante, os seus olhos verdes
como esmeraldas, com um ar de indiferença deixou

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que ele lhe apontasse a arma para desaparecer,
quando se virava o movimento fez com que o
pequeno capuz que lhe tinha tapado o cabelo cai-se
e se visse o cabelo negro com algumas madeixas
loiras na ponta, relativamente cumprido até aos
ombros, a bala ainda saiu da arma de Tiago mas
sem efeito.
Rapidamente acorreu onde Hugo e uma estranha
presença feminina se encontravam, com a confusão
criada os restantes membros do grupo tinham-se
apercebido que algo tinha passado, as mulheres
foram as primeiras a chegar, Sam e Lazaro
seguiram-lhe, embora tivessem mais perto, o galã
de serviço tinha acabado de empurrar uma
empregada toda bonita espanhola do seu colo,
enquanto corria ainda se queixava da beleza que
tinha perdido, quando lá chegaram, viram ainda a
“estranha” a mexer no ombro que tinha sido
atingida e a cara de surpresa estampada na face de
Hugo, que parecia ter visto um fantasma, o ultimo
a chegar pelo meio dos pingos da chuva foi Romeu
que muito silenciosamente se colocou ao lado de
Tiago e admirou a cara de espanto do seu líder
como todos os outros, Hugo estava paralisado.
Todo o sangue do seu corpo congelou, o seu olhar
percorreu uma e outra vez os longos cabelos ruivos
a fugir para o avermelhado, o profundo dos olhos
cor de avela que parecia perder-se na dor do ombro
e da alegria de encontrar aquela face que ela tao
bem conhecia. Lentamente os dois colocaram-se de
pé, os seus olhares cruzaram-se uma vez mais e
como num gesto de impulso abraçaram-se
ignorando completamente as dores do impacto,

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depois de alguns segundos juntos, Hugo passou
gentilmente a mão pela face da sua conhecida
“desconhecida”, com um sorriso enorme
perguntou:
- O que fazes por estas bandas?
- Pelos vistos a salvar-te a vida – disse com um
português tocado por um belo sotaque espanhol – o
que fazes tu por estes lados?
- Hugo não querendo incomodar quem é esta
senhora? – Questionou Marie já visivelmente
desconcertada com a situação.
- Desculpem malta, esta é a minha irmã, Rubi
estes são os meus colegas – apresentado um a um –
não estávamos juntos já algum tempo, temos muito
para conversar.
- Concordo descabelado, temos mesmo -
apontando para o ombro – tenho o sítio perfeito
para isso, sigam-me.
- Como podemos saber que é confiança? –
Perguntou Sam tomando uma posição defensiva.
- Não tens muita hipótese não é querido? Sou eu
ou aqueles homens que tentaram matar o meu
irmão, por isso escolhe com sensatez, eu por ti não
me meto á frente de nenhum tiro – virando-lhe as
costas.
Sam fez uma cara feia e assentiu, desde do
primeiro momento que as curvas daquela mulher
lhe tinham chamado a atenção, mas isso não era de
todo uma novidade, mas desta vez esse interesse
tinha desaparecido mal tinha ouvido a sua voz, isso

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sim era de estranhar, agora que a via a afastar-se
com a mão no ombro, disse mentalmente “nunca
na vida”, estava tão certo daquilo que avançou
seguro e sempre com o olhar colocado num ponto
mais distante dela possível.
Após andarem alguns metros, terem trocado de rua
principal para adjacente para principal novamente
e para secundaria novamente, encontravam-se á
frente de uma casa toda construída em pedra, o
telhado danificado pelo tempo apresentava telhas
vermelhas, algumas delas já com remendos
posteriores á sua criação, por cima da pequena
porta de madeira, que já apresentava falhas na sua
parte inferior, por onde podia passar um gato de
meia-idade sem grandes problemas, estava um
enorme brasão, um brasão que Hugo não tardou
em reconhecer era o brasão da sua família, uma
enorme pedra com duas linhas a dividi-lo em
quatros partes iguais, no seu topo esquerdo, uma
serie de livros com o símbolo do infinito sobre
eles, ao seu lado, um enorme dragão deitado sobre
o que parecia um monte de ouro, por baixo deste,
duas espadas cruzadas sobre um fundo solto,
espadas de batalha de baixa nobreza sem grandes
ornamentos, e por fim ao seu lado, dois animais
majestosamente colocados, um enorme lobo e uma
cobra com a cabeça levantada, como se tivessem
lado a lado como irmãos, pelo menos era assim que
ele se lembrava dele, aquele que tinha á sua frente
estava já com partes partidas e peças em falta, a
única peça que parecia não ter sido tocada pelo
tempo era mesmo o imponente lobo que mantinha
todos os seus detalhes com todo o fulgor, bem
como a matreira cobra que mantinha toda a sua

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inteligência, sem se aperceber um sorriso apareceu
na sua face, estava em casa podia senti-lo.
Se o exterior da casa tinha as marcas do tempo, o
interior tinha marcas de descuido e dificuldades,
depois de percorrer um pequeno corredor com o
chão em madeira, também esta já com alguns
buracos e muito pouca firmeza, entraram na única
divisão que conseguia albergar vida, a enorme sala
de estar, mantinha as suas linhas rusticas, uma
enorme lareira colocada no topo da mesma, com
tijolos vermelhos a demarcar os seus limites, sobre
ela uma jarra totalmente tapada pelo pó, ao seu
lado duas fotografias, duas fotografias de família
mas nas quais não se reconhecia ninguém, tinha
sido desgastadas por algum evento passado, no
meio da sala, uma enorme mesa de madeira,
deveria ter os seus cinco metros de cumprimento e
pelo menos dois de largura, sobre ela uma
quantidade imaginável de loiça por lavar, livros
abertos, e papeis espalhados sem ordem aparente,
ao seu lado um saco-cama aberto, bem como
algumas roupas femininas e algumas infantis, as
teias de aranha ocupavam todos os recantos da
sala.
Rubi apontou para umas velhas cadeiras que se
encontravam ao lado da mesa, muito a medo o
grupo lá aceitou, ela por sua vez, saiu em direção
ao corredor e começou a chamar em pleno
castelhano:
- Juan! Juan! Proviene! Camino Seguro!
Depois de alguns segundos apareceu á sua frente
uma pequena criança, não devia passar dos seus

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doze anos, com um olhar cerrado e uma face
dorida dos tempos que tinha passado, tinha pele
tipicamente latina, curtos cabelos castanhos e o
mesmo brilho no olhar que Rubi, a medo colocou-
se lado a lado com a irmã de Hugo, que
rapidamente lhe agarrou a mão. O pequeno rapaz
trazia vestido uma camisola de manga curta muito
mais larga do que devia, uns calções negros e rotos
na zona dos joelhos, ao longo de todo o corpo que
mostrava tinha marcas, talvez de perigos que
tinham falhado muito pouco os pontos vitais, o
medo era transmitido por todo o seu corpo.
A primeira a tentar comunicar com o menino foi
Marie, de certa forma encontrava parecenças
consigo, colocada muito próxima ao chão, com um
olhar meigo e com as mãos a vista, disse num
castelhano exímio, como se fosse a sua língua
nativa:
- Hola estas bien? Soy una amiga, puedes venir,
juguemos un poco. - Soltando um enorme e
caloroso sorriso.
O jovem rapaz a medo olhou para a mãe que
assentiu e cuidadosamente soltou-lhe a mão, e
incentivou-o a avançar, pé ante pé lá o menino
avançou e quando deu por si, estava a brincar com
os poucos brinquedos de madeira que tinha com
uma estranha que lhe parecia bastante familiar.
Os restantes membros sentaram-se á volta da mesa
e enquanto Rubi fazia um curativo no ombro, onde
tentava estagnar o sangue, tinha colocado um
garfo, ou espécie disso, na boca para não gritar,
Ariana tinha-a a ajudado, não parecia nada de

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grave, mas bastava ter sido uns centímetros ao lado
e podia ter sido extremamente complicado, depois
de vestir uma t-shirt cor de mel endireitou-se, e
enquanto ia buscar um copo de água questionou:
- O que fazes aqui irmão? Suponho que não
tenhas vindo visitar a família – levando a água
fresca á boca.
- Não de todo…ando a seguir o enigma do
Felipe…
- O nosso primo deixou-te um enigma porquê?
- O nosso que? – Apoiando-se na mesa - é uma
longa história…
- Bem, temos imenso tempo, conta-me a tua
história, que eu depois conto-te o que tenho vindo
a descobrir nos últimos meses, não sei qual de nós
ficará mais surpreendido.
Hugo mesmo contrariado começou a contar tudo
que se tinha passado á quinze anos, bem como o
que tinham sido os últimos tempos, durante todo o
tempo que ele falava, Ariana tentava dar a sua
versão da história, Rubi ouviu ambos e durante
todo o período bebeu uns inacreditáveis vinte e
sete copos de água, quando acabaram, ela suspirou
fundo e com um tom irónico disse:
- Essa história dava um ótimo filme, mas deixem
ver se eu percebi, vocês vieram em direção ao
nada, baseados num enigma de um assassino que
sempre escondeu o seu verdadeiro “eu” atrás de
uma máscara de menino perfeito? Vocês só podem
ser doidos, ainda para mais sem saberem com

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quem se estão a meter, mas aquela menina deve
saber, afinal de contas a cicatriz que tem na perna
mostra que já foi uma deles – o sangue no corpo de
Hugo começou a ferver e as suas veias pareciam
querer romper a pele, Rubi rapidamente se
apercebeu disso, e com toda a calma do mundo,
levantou-se pegou em dois papeis e colocou á
frente do seu irmão – mas acalma-te meu irmão, o
que eu sei talvez venha trazer uma nova luz a tua
missão, porque afinal de contas não é só a missão
do Felipe, é a missão da nossa família.
A surpresa tomou conta de todos os presentes.
Apoiando a perna num dos apoios da cadeira e
colocando o braço apoiado no seu braço Rubi
começou a falar:
- Tu conheces isto certo? – Apontando para o
primeiro papel, onde estava desenhado o brasão da
família Monteiro – Este é o nosso brasão de
família, pouco tempo depois da mãe, do pai e eu
chegarmos a Sevilha, recebemos uma estranha
visita, um homem que me parecia familiar, mas
que na altura não soube muito bem quem era,
visitou-nos, da sua conversa com o nosso pai ouvi
muito pouco, mas ouvi o suficiente “eles andam
atrás daquilo, pensam que sou que a tenho,
rapidamente irão atras dos miúdos temos de puxar
a sua atenção para aqui!”, a cara que o nosso pai
fez foi de medo – começava agora a lembrar-se do
seu velho pai, um homem com uma postura
intocável, erudito, cabelos já brancos e uns
profundos olhos negros, a barba cobria-lhe a face
de forma subtil, naquele dia as suas mãos ásperas e
marcadas do trabalho não paravam quietas – mas

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depois de algum tempo em silencio disse “ se for
para manter o segredo darei a minha vida”,
abraçou o homem com fraternidade e nunca mais
vi aquela silhueta, na altura aquilo pareceu-me
pouco importante, mas ao fim de alguns meses
lembrei-me amargamente daquelas palavras,
começa-mos a fugir por toda a Espanha, não
estávamos seguros em lado nenhum, as casas onde
tínhamos dormido era queimadas mal nos saia-
mos, fomos de Sevilha para Barcelona, para
Madrid e terminamos aqui em Salamanca, e uma
vez mais ficamos num hotel, mas naquela noite á
mais ou menos dezasseis anos não houve
escapatória, os homens da cobra sagrada tinham
chegado antes, o meu pai quando se apercebeu do
que se ia passar mandou-me correr o mais
rapidamente possível, eu estava cheia de medo,
nem pensei, apenas cumpri, quando já tinha saído
do hotel e virado a esquina ainda consegui ouvir os
gritos da nossa querida madre, e depois os tiros,
vagueei nas sombras durante muito tempo, todas as
pessoas pareciam carregar armas, sentia-me
sozinha, foi ai que o anjo da guarda apareceu, um
homem muito mais velho do que eu de longos
cabelos loiros e olhos de um azul profundo agarrou
em mim e me trouxe para aqui, tomou conta de
mim nos primeiros dias, tinha uma cobra igual a
dos homens que nos perseguiam, mas ao seu lado
tinha também um poderoso leão dourado, não era
de falar muito, ao fim de algum tempo, pegou nuns
enormes livros de capa dura e colocou-os á minha
frente, todos eles tinham este brasão na capa, sem
olhar para mim disse “puedes leer?”, a medo
acenei positivamente e então ele saiu e nunca mais

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o vi, a partir desse dia foquei-me em ler toda a
coleção que está aqui presente, escondida por todo
o lado, e acredita descobre-se muita coisa numa
casa segura…
- Casa Segura de quem?
- Da Mano de Dios, da original…
A surpresa tomou o olhar de todos os presentes, até
Marie que estava a brincar com um pequeno carro
de madeira levantou a cabeça num movimento
instintivo.
- Desculpa, não sei se estou a perceber…
- Deixa-me tornar as coisas ainda mais claras, a
Mano de Dios foi criada pelo mestre da Alquimia,
Nicolas Flamel, em França, supostamente para
proteger um enorme segredo, que sinceramente
ainda não consegui decifrar qual é, ainda faltam
muitos livros para ler, e pelo que me apercebi há
segredos guardados restritivamente para os Grão-
Mestres, esta associação teve grandes pensadores e
lideres na sua composição, nem vou perder o meu
tempo a enumerar nenhum, e o seu símbolo
original era este – apontando para o grande brasão
que aparecia sobre os livros – durante séculos toda
a organização funcionou as mil maravilhas, só que
no século passado aconteceu uma rutura, uma
fação revolucionaria ganhou de tal forma poder
dentro da associação que conseguiu tomar o poder,
um pequeno grupo de fieis ao plano original, onde
estava incluído o nosso avô, o ultimo grão-mestre
conhecido, conseguiu fugir, juntamente com os
seus dois filhos, e guardar o tesouro da
organização, aqui deu-se uma quebra, os fugitivos

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começaram a usar o majestoso lobo como seu
símbolo oficial e os revoltosos acolheram a
traiçoeira cobra, e assim a Mano de Dios mostrou-
se mais violenta sobre o estandarte da cobra
dourada.
- Isso até pode ser verdade, mas o nosso avô só
teve um filho, o nosso pai! – Afirmou sem grandes
certezas Hugo.
- Isso era o que eu pensava também, mas isso é
mentira, ele teve três crianças, dois rapazes e uma
rapariga, esta morreu logo a nascença pelo que
dizem os registos e os dois homens foram criados
para se tornarem grão-mestres quando chegasse o
momento, o nosso pai era o segundo na linhagem,
o primeiro era o pai do Felipe, que foi morto no dia
da revolta, o homem que ocupou a vaga dentro do
seio familiar era um dos grandes membros dos
fugitivos, tinha como principal função proteger o
herdeiro por direito e proteger o segredo, uma vez
que tanto o Felipe, como o seu padrasto, como o
nosso pai estão mortos, isso faz de ti o Grão-mestre
por direito, por isso é que o Felipe te escolheu para
ser o seu sucessor.
Toda aquela informação fez ricochete dentro da
mente de Hugo, líder da Mano de Dios, mais um
segredo do Felipe, um segredo da sua própria
família? Era primo do seu melhor amigo? Na sua
mente tudo isto parecia uma brincadeira de muito
mau gosto, e com um grito vindo das profundezas
da alma elevou-se e disse:
- Isso é impossível, o Felipe nunca me ia mentir
tanto!

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- De facto, o que ela diz é verdade…- disse uma
voz a medo.
Marie tinha-se levantado com o olhar cheio de
medo, tinha prendido o olhar naqueles enormes
livros em cima da mesa e com os lábios a tremer
continuou:
- Quando os miúdos da Mano atingem os nove
anos é lhes contada a história da “Noite da
Purificação”, uma noite onde os hereges e os
impuros foram corridos da organização pela mão
salvadora de Deus, e que com medo se infiltraram
nos esgotos da sociedade, diz-se que eram ladroes
e que um dia o combate final entre o líder dos
hereges e dos puros iria acontecer para fechar o
capitulo de vez, mas é nos contado duma forma
que todos ganham medo destes fugitivos, agora
que vejo uma sede e um membro assumido, só
posso sentir vergonha pelo que sentia quando o
meu Padre me contou a história.
- Esta história é toda muito bonita, mas a
questão prende-se como que era esse segredo tão
poderoso que a associação guardava – interrompeu
Romeu.
- Sinceramente acho difícil que consigamos
descobrir essa informação, apenas o mestre
máximo da atual organização deve ter essa
informação e duvido que nos dê de mão beijada…
e para além disso ninguém sabe onde é a sua sede
máxima, nem os primogénitos sabem…- quando
Marie ouviu esta palavra sentiu todo o seu corpo a
tremer.

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- Nas casas seguras, não haverá informação? -
questionou Ariana.
- Em todas não… a organização adotou uma
hierarquia muito rígida desde do incidente da
rutura, pelo que percebi de informações cruzadas
que obtive, eles têm as casas seguras divididas da
seguinte forma: Maximum Domum, que apenas a
elite da associação sabe a localização, as
Cisternam Veterem, que supostamente são as
segundas mais importantes, apesar da sua
denominação de “fossas”, e por ultimo as Domibus
Angeli, que na teoria são as mais comuns e as
menos importantes, onde pelo que percebi se
fazem as iniciações e os registos mais monetários e
pouco comprometedores, por isso sem termos a
certeza ou uma lista das casas seguras nunca
conseguiremos tal informação…
- Acho que estamos com sorte…eu lembro-me
vagamente, mas com certezas de que eles têm uma
“fossa” aqui em Salamanca, infelizmente não faço
a mínima ideia onde é que ela se encontra… - disse
Marie com o olhar colado ao chão.
- Isso pode ser a explicação para isto – abrindo
um dos enormes livros que tinha a sua frente,
começando a desfolhar nervosamente as páginas
até parar abruptamente numa delas que parecia
apresentar uma espécie de mapa – nunca percebi o
que isto mostrava talvez consigam ajudar-me.
Na pagina que se encontrava perante os seus olhos,
uma pagina já amarelada, estava uma planta
perfeita do largo das universidades, com todos os
edifícios presentes, a priori seria só um belo mapa

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para um turista não se perder dentro daquele
enorme espaço, ou simplesmente para encontrar a
melhor loja de souvenirs, contudo desenhados a
lápis estavam vários pequenos símbolos
alquímicos, desde do símbolo do fogo ao símbolo
da perfeição, totalmente desordenados pareciam ter
sido colocados sem qualquer objetivo.
Rapidamente Romeu apercebeu-se que alguns
deles não era originais da página e que tinham sido
colocados posteriormente e com um olhar de lince
identificou-os a todos:
- Menina Rubi, colocou alguns símbolos a
relativamente pouco tempo não é verdade?
- Sim, fui fazer uma revisão ao espaço e havia
alguns novos e por isso decidi colocá-los aqui, só
para o caso de serem importantes…
- Fez muito bem, Hugo. Tiago. Quais foram os
símbolos que vocês mais viram?
Em coro responderam “estrela de Salomão, fogo e
ouro”, sem perceberem muito bem o porquê
daquela pergunta.
Romeu num gesto rápido pediu um lápis a anfitriã,
sabia perfeitamente que tinha no máximo duas
hipóteses de decifrar qualquer código que estivesse
lá escondido, apagar qualquer desenho que fizesse
seria praticamente impossível, isto é, sem danificar
o livro, por isso com o sangue a gelar procurou
desenhos na sua cabeça que fizessem sentido.
Muitas vezes levou o lápis quase a tocar a folha e
muitas vezes recuou, todos os restantes tentavam
acompanhar a mente do pequeno génio que parecia
viajar a uma velocidade que eles não conseguiriam

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acontecer. Quando finalmente se decidiu, deixou
cair o lápis sobre a página, desenhou um triângulo
que unia três símbolos iguais, naquele momento a
grande praça apresentava-se como um quadrado
perfeito, os três símbolos, no caso três triângulos
invertidos, o símbolo alquímico da água,
encontravam-se colocados a uma distância
meticulosamente colocada, assim a primeira parte
do puzzle aparecia a sua frente, um quadrado com
um triângulo no seu interior, onde raio isto ia
levar? Pensou muitas vezes Romeu antes de deixar
cair uma vez mais o pequeno instrumento em cima
da folha, agora ainda parecia mais difícil encontrar
a próxima peça, milhares de símbolos poderiam
fazer sentido naquele momento, recostando-se para
trás, respirou fundo durante três longas vezes, mas
de uma forma quase repentina um símbolo
apareceu-lhe na mente, poderia ser assim tão
óbvio? Não…eles não fariam algo tão lógico, seria
extremamente fácil bem pelo menos para quem
tivesse o mínimo de conhecimento de simbologia e
alquimia, engolindo em seco desenhou
rapidamente outro triangulo no quadro, agora um
triangulo invertido, que unia três símbolos
alquímicos do fogo, este novo triangulo perfeito
encaixava perfeitamente no anterior, criando o
símbolo alquímico da perfeição, com os olhos a
arder de orgulho e felicidade Romeu tinha
completado um desafio alquímico com apenas
algumas bases, á sua frente aparecia uma estrela de
Salomão perfeita, e desenhada de forma secreta
pela água e fogo, com um enorme sorriso disse:
- O puzzle está decifrado, a casa segura está
algures dentro desta estrela.

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Todos acorreram á sua volta, mas nenhum
percebeu como é que aquele símbolo tinha
aparecido em cima de uma planta de uma cidade
tão antiga como Salamanca, ainda para mais numa
zona tão reduzida e sempre cheia de gente, seriam
eles capazes de esconder uma casa segura mesmo á
frente dos olhos de todos?
- Mas como é que podes ter tanta certeza de que
isto está certo? Baseaste-te em que? – Questionou
com os braços cruzados Ariana.
- Até para mim, que tenho muito poucas bases
alquímicas, este mistério torna-se relativamente
fácil se estivermos com atenção… bem eu, o Tiago
e o Hugo, quando investigamos a praça das
faculdades, avistamos vários símbolos alquímicos
repetidos, três no caso, mas na altura passamos ao
lado de um quarto símbolo tão importante ou mais
do aqueles primeiros, o símbolo alquímico da
água- desenhando um triangulo invertido na mesa
– uma das metades do símbolo da perfeição, a
Estrela de Salomão, não é de todo apenas um
símbolo alquímico, simboliza a perfeição, a união
do masculino com o feminino e muito mais, por
isso ambos os triângulos são de igual importância.
Por este motivo decidi procurar no mapa, em
primeiro lugar o símbolo da água, e como podem
ver, eles estão colocados de forma a criar o
símbolo oposto, bem como o contrário, os três
principais símbolos do fogo constroem o símbolo
oposto e juntos criam a perfeição, parece-me
suficientemente lógico, uma vez que estamos a
falar de uma associação que se escondia com base
em processos milenares, e o seu fundador segundo

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as informações da menina Rubi era um dos pais da
alquimia.
Por muito surreal e mágica que aquela justificação
parece-se, estranhamente fazia muito sentido,
todos acenaram positivamente, Romeu embora se
sentisse muito orgulhoso, sabia perfeitamente que
só tinha andado meio caminho, porque tinha
conseguido reduzir a área de busca, mas ainda não
sabia a localização exata da casa segura, e o que o
preocupava ainda mais, era a inexistência de
qualquer símbolo ou marca no espaço central da
estrela, por momentos pensou que poderia estar
errado, mas tentou afastar esses pensamentos para
o lugar distante que conseguia.
- Apesar do excelente trabalho do Romeu ainda
estamos longe da localização exata da “fossa”,
sabemos onde é que ela possivelmente se encontra
-colocando o dedo indicador sobre o desenho ainda
fresco – mas precisamos de descobrir a entrada,
alguma ideia de como é que ela poderá estar
marcada?
- Segundo a tradição, deve estar marcada com
alguma simbologia ou marca, algo muito próprio –
disse Rubi.
- Então amanhã iremos procurar essa marca,
caso a consigamos, decidimos o que fazer depois,
descansem por hoje, precisamos de estar
recuperados para amanhã
- Hugo, desculpa-me interferir, mas tu amanhã
tens de ficar escondido – disse calmamente Ariana.
- E posso saber porquê?

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- Porque tu és um alvo, viu-se hoje, se a tua irmã
não tivesse dado o corpo às balas, tu estavas morto,
eles sabem quem tu és, têm de ser pessoas que não
chamem tanto a atenção, na minha opinião, devia ir
eu, a Rubi e o Romeu, não falo daqueles dois
porque se iam perder nos rabos de saias, mas
seriam uma boa ajuda caso desse para o torto –
apontando para Sam e Lázaro que a olharam de
lado após aquele comentário.
- Mas…- tentou falar Hugo.
- Concordo, eu vou com eles, conheço bem a
cidade, tu ficas aqui, a melhor hora para ir já
passou, de manhã a praça está sempre cheia
podemos ir nessa altura, tu e Marie ficam aqui com
o Juan, o teu amigo serve de guarda também, de
certeza que as vossas faces são reconhecidas, nós
vamos conseguir passar despercebidos, o
importante é que não te aconteça nada. Mas
falando doutra coisa, vocês não têm fome? Ser
heroína dá cá uma volta ao estomago – soltando
uma pequena gargalhada que tomou conta de todos
os presentes.
Algures na Praça das Universidades-
Salamanca
- Mio Signore… falhei.
- Mio Figlio, terás mais uma oportunidade, mas
não me falhes novamente, eles têm de ser
eliminados o mais rapidamente possível, para a
segurança da nossa organização… e não te
esqueças eles têm a Marie prisioneira, não sabemos
o que já lhe fizeram aquele corpo puro e singelo,
não podemos perder tempo.

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A raiva tomou conta do homem, o verde do seu
olhar por muito pouco que não se tornou um
vermelho sangue, fechando o punho, deu um
murro na parede e disse veemente:
- Não falharei, eles vão arder nas chamas do
inferno!
- Eu sei meu filho, eu sei. Che Dio ti protegga.
Noi siamo uno.
- Noi siamo uno.
A chamada é desligada.
Na manhã seguinte nasceu um dia belíssimo, um
sol radiante, nenhuma nuvem no céu, mas ao
mesmo tempo uma brisa refrescante tocava o corpo
de todos os que saiam á rua, fora um dia bem mais
calmo, mas mesmo assim as ruas da cidade ficaram
rapidamente cheias de turistas, das suas camaras
com flash e as várias línguas voltaram a percorrer
os sete ventos que percorriam a cidade.
Dentro da casa segura onde ainda todos
descansavam, Rubi e Hugo já estavam de pé a
preparar a operação para que nada falhasse, o
plano que eles tinham em mente era de certa forma
genial, havia uma ligação direta entre aquela casa e
a praça central, sairiam em grupos de dois e um
membro sozinho, a Ariana iria com o Romeu,
iriam ser um casal de recém-casados nerd que
teriam vir passar a lua-de-mel a uma das cidades
com mais história na Europa, teriam roupas
tipicamente inglesas, e o seu tom de pele iria
ajudar no disfarce, ela própria iria sair com Sam e
seriam também eles um casal de namorados de

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férias que só andavam a procura de prendas para os
familiares, assim podiam analisar em maior
pormenor a zona das lojas sem levantarem
suspeitas, e por ultimo Lázaro sairia sozinho e iria
beber um café na cafetaria mais próxima possível
para caso corresse mal poder intervir ou poder
reportar, não sabiam muito bem como é que a
Mano iria atuar, possivelmente andavam a procura
deles, se não conseguissem descobrir a localização
da “fossa” naquela manhã teriam de sair da cidade
de mãos a abanar, durante muitos tempos aquele
sitio tinha sido encoberto, mas é mais fácil quando
é só uma pessoa e uma criança, com aquele
numero seria impossível manter segredo, as vozes,
a luz e os movimentos iriam chamar a atenção.
Todos cumpriram o plano com exatidão, os
primeiros a chegar á praça foram Ariana e Romeu,
o caminho que os levou até lá era um sinuoso túnel
centenário, só seu interior a única luz que era
possível ver, era a das velas que eles levavam
consigo, o ar era muito rarefeito, conseguia-se
sentir que estavam muito abaixo da terra, antes de
chegarem a superfície, tinham três caminhos
possíveis, como indicado por Rubi seguiram pelo
caminho, a saída conduzia ao lado da faculdade de
História e Geografia, por muito estranho que
parecesse a quantidade de turistas em vez de os
denunciar tornou a sua inclusão muito mais fácil,
Romeu estava vestido com uma camisa ao xadrez
branco e azul claro, trocou os seus típicos óculos
pelos seus suplentes com uma armação muito mais
grossa e negra, com um pequeno livro de história
de arte espanhola avançava a falar um inglês quase
perfeito, por sua vez Ariana seguia com os seus

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longos cabelos loiros espalhados ao vento, um par
de óculos sem lentes, um livro fechado em cima do
braço esquerdo enquanto tentava acompanhar o
ritmo de Romeu que mostrava plenos sinais de
desconforto pelas proximidades, teve de adotar um
papel de quase loucura, olhava para todo o lado
mas parecia não ver nada, eles decidiram colocar-
se junto às universidades e ao jardim central.
Os segundos foram Rubi e Sam, estes, eram o
típico casal latino de férias apenas para aproveitar
o sol e as prendas, ele mesmo contra vontade lá
vestiu uns calções de ganga semirrotos nas coxas,
uma camisa branca com palmeiras azuis como
marca de água, e um enorme chapéu de palha, sem
falar dos óculos refletores com um tom de azul, ela
por sua vez levou uma t-shirt, para esconder as
feridas, uma daquelas camisolas da moda com o
nome de uma banda que toda a gente usava mas
que ninguém sabia que raio de musica era tocada
por ela, na parte de baixo ia de chinelos de enfiar o
dedo e uns shorts, bastante curtos diga-se de
passagem, quando eles saíram junto á faculdade de
psicologia, tinham uma multidão de turistas á sua
frente, quando os contornaram, Rubi sentiu de
forma bem obvia os olhares a percorrerem todo o
seu corpo, afinal de contas era uma jovem de vinte
e oito anos, estava na flor da idade, este grupo teve
de trabalhar muito mais para parecer convincente,
todo o toque era um martírio para ambos,
raramente trocaram olhares, e quando o faziam era
de puro desdém o seu olhar, sinceramente era
impossível terem um relacionamento e se o
tivessem não seria de todo saudável.

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O último e terceiro a sair foi Lázaro, vestido com
uma camisa preta, calças de um cinzento sujo e
com um estranho chapéu mafioso sobre a cabeça, o
seu olhar estava tapado com óculos de sol escuros,
saiu na última saída, a porta dava diretamente para
o café mais próximo da praça das faculdades, com
toda a calma colocou-se na esplanada a olhar para
os turistas que saiam e entravam na praça, dentro
do bolso das calças tinha uma pequena revolver só
para o caso de necessidade.
Todos estavam colocados a postos, durante uma
longa meia hora, todos cumpriram a sua missão o
melhor que conseguiam, mas o resultado foi
incrivelmente nulo, a busca por símbolos foi como
procurar uma agulha num palheiro, ou neste caso,
procurar um berlinde branco num saco de seis
quilos de berlindes cinzentos, em todos os cantos
da praça estavam símbolos desenhados, mas
nenhum levava a lado algum, Romeu e Ariana
foram os primeiros a cair de cansaço, sentaram-se
no jardim central, os turistas costumavam usar
aquele fundo para as belas e irresistíveis
fotografias do Instagram, que agora era a rede mais
utilizada, o Facebook tinha sido renegada para uma
rede de segunda categoria, as típicas de fotos com
um jardim de flores bonitas atrás com um sorriso
falso na cara do modelo rendiam muitas fotos. Os
dois estavam sentados ao lado de um grupo de
turistas japoneses que já tinham tirado mais fotos
naqueles minutos do que a Ariana em toda a sua
vida, sem querer Romeu tinha-se sentado em cima
de uma bela flor amarela, mesmo sem dar por isso
tinha acabado de retirar a vida a um dos seres mais
bonitos daquela praça.

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- Não encontramos nada…temos de regressar e
sair daqui…falhamos redondamente…
- Não podemos desistir tão facilmente, tenho a
certeza que estamos no sítio certo… - retirando um
pequeno papel com uma cópia do desenho que
tinha feito no livro – não pode ser outra solução só
pode ser esta.
Ao proferir estas palavras levantou-se e viu
debaixo da pequena flor que tinha morto um
estranho símbolo, um triângulo com uma linha reta
a atravessar quase no topo, a sua mente fez um
click instantâneo, era o símbolo alquímico do
vento, por debaixo desse símbolo estava uma
pequena rajada de vento desenhada por baixo, mas
de uma forma tão minúscula que passaria
facilmente aos olhos mais desatentos. Com ordens
curtas e claras disse a sua “companheira” para ir
para a esquerda e procurar os restantes três
elementos base da natureza, deveria haver um
quinto que deveria demonstrar a entrada, mas
tinham de entrar os base primeiro, e então
dividiram-se, sem chamarem a atenção, um
estranho vulto na multidão seguia-os ao longe, ao
fim de alguns metros Ariana encontrou o
conhecido símbolo do fogo, assinalou-o numa
folha que trazia no livro que supostamente estava a
ler pelo caminho, do outro lado Romeu encontrou
o símbolo da água e fez exatamente o mesmo que
Ariana, ao fim de alguns passos encontraram-se
lado a lado e viram a ultima base, um triangulo
invertido com uma linha que cruzava junto ao topo
também, aquele era o símbolo da terra, a base
invertida do nosso mundo. As quatro bases do

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mundo estavam desenhadas ao longo da pedra que
circundava o jardim, o quinto símbolo deveria estar
algures por ali, mas onde, o cérebro do jovem
génio percorreu uma e outra vez todo o espaço
onde as flores estavam, e ao fim de alguns minutos
a resposta pareceu-lhe bastante obvia, tinha de
estar no centro, num sitio onde ninguém o
conseguisse ver, teve de controlar o impulso de
saltar para o meio das ervas e começar a procurar,
mas rapidamente lhe veio a mente uma solução
muito mais plausível e muito menos denunciadora,
novamente num inglês perfeito pediu a um grupo
de espanhóis que se encontravam por perto can you
take us a photo? Podem-nos tirar uma fotografia?
Recebendo um aceno positivo, fez a sua próxima
jogada, pegando na mão da sua recente esposa
saltou para o meio das flores, tinha a esperança de
não ter de se mexer muito e foi exatamente isso o
que aconteceu, exatamente no centro do jardim
sentiu debaixo dos pés tudo menos terra, sentiu
madeira, sem demonstrar olhou para debaixo dos
seus pés e viu o símbolo que faltava “o desejo
final”, o símbolo alquímico do ouro, sentiu o seu
corpo a entrar em êxtase, tinha descoberto uma
entrada secreta de uma das organizações mais
poderosas, o que podia querer mais, queria baixar-
se e abrir aquele alçapão mas sabia que não podia,
com um olhar indicou a Ariana que era hora de
voltar para a casa segura e preparar o passo da
noite. Tocando ao de leve no telemóvel que tinha
no bolso deu o sinal para os restantes membros
espalhados pela praça que era hora de regressar, só
havia um senão, os tuneis por onde tinham vindo
eram de apenas um sentido, não poderiam voltar

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por eles, ao olhar de novo agora com olhos de ver
para a praça viu pelo menos uma dúzia de homens
com as insígnias da Mano, sentiu a cerca a fechar-
se, mas a coragem que muita vez lhe tinha faltado
enchia-lhe o peito agora, não se ia deixar capturar,
não no fim de decifrar um código tão importante,
respirando fundo apertou a mão de Ariana e
conduziu-a ao longo da multidão, falando em pleno
português mas extremamente baixo disse:
- Vamo-nos dividir, vai imediatamente para a
casa segura, conta tudo ao Hugo, eu já te apanho,
eles vão-me perseguir a mim, mas vou despistá-
los.
Acenaram positivamente e seguiram caminhos
diferentes.
Rubi e Sam seguiram a mesma estratégia, dentro
da multidão seguiram caminhos diferentes, desta
forma os quatro seguiram estradas distintas, a caça
começou, os membros no ativo começaram a
correr atrás das suas presas, com toda a destreza
que conseguiram todos os membros saíram ilesos,
uns escondidos atrás de caixotes do lixo, outros
mesmo dentro deles, ou simplesmente como
Romeu executou mudaram completamente o seu
estilo, uma vez que ele já contando com esta
possível situação tinha uma muda de roupa por
baixo, sendo poliglota a situação tornou-se ainda
mais fácil, passou de um inglês perfeito para um
italiano fluido numa questão de minutos. Todos
chegaram a casa segura com diferenças de
segundos, todos menos Lázaro que se debateu com
um problema maior, quando estava a sair do café,
entrou numa rua secundaria que supostamente

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devia estar deserta mas isso não aconteceu, mesmo
a sua frente um homem virado de costas, com um
enorme casaco preto que lhe dava até aos
tornozelos, com uma enorme cobra prateada
desenhada nas costas parecia esperar por ele,
quando sentiu a sua presença virou-se e focou nele
o seu olhar profundo do verde dos seus olhos, com
o cabelo a abanar com a brisa que se fazia sentir,
disse num português com um forte sotaque
espanhol:
- Onde é a vossa casa segura? Não me faças
perder tempo, porque não tenho muito para gastar.
O homem era relativamente mais baixo do que
Lazaro, não era gordo nem magro, era bem
constituído fisicamente por debaixo da roupa
conseguiam-se ver alguns dos seus músculos, nas
mãos trazia três anéis, três cobras enroladas aos
seus dedos e na sua face quase perfeita, marcada
por uma fina barba que a cobria quase toda, estava
uma estranha cicatriz que lhe marcava a face
esquerda, mas que de maneira nenhuma o tornava
menos padrão de galã partidor de corações, Lázaro
sabia que só tinha duas opções, ou conseguia fugir
ou teria de dar uso a pequena arma que tinha no
bolso, esta ultima parecia ser a menos sensata,
afinal de contas ele podia ser mais baixo para não
parecia de todo um adversário fácil.
- Casa segura? Do que está a falar?
- Eu disse para não me fazeres perder tempo,
não queria chegar a isto – sacando de uma pequena
arma negra e disparando sem pré-aviso nem muita
pontaria.

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O tiro acertou em cheio na coxa direita de Lázaro
que sentiu a pele a rasgar e uma dor exorbitante a
tomar conta da sua perna, sem controlar teve de se
ajoelhar, tinha um plano, mas precisava de
aguentar a dor.
Como qualquer predador pomposo o jovem
homem aproximou-se da presa ferida e num gesto
de superioridade, arrumou a arma no bolso,
agachou-se á frente do seu alvo ferido e com um
sorriso brilhante na face voltou a questionar:
- Onde é que vocês estão escondidos?
- Nunca saberás, e da próxima vez acerta
diretamente no coração – puxando de debaixo da
camisola a sua própria arma, Lázaro dispara á
queima-roupa contra o ombro do seu predador,
fazendo-o cair para trás, pegando nas forças que
lhe restavam fugiu em direção ao seu porto seguro
e desapareceu nas sombras.
O homem por sorte não morreu, felizmente ou
infelizmente já ia preparado para poder ser
alvejado, tinha proteção anti bala em todo o corpo,
os ombros não era exceção, sem perder tempo a
perseguir a sua presa simplesmente se levantou,
sacudiu a capa e dirigiu-se para a sede, afinal de
contas o capuchinho viria ter a casa do lobo mau
de qualquer forma. Também ele desaparecera nas
sombras.
Passados alguns minutos Lázaro entrou na casa
segura ainda a cambalear, podia ter chegado muito
mais cedo mas teve a preocupação de esconder o
seu rasto, como ainda tinha a perna a sangrar,
tentou passar duas vezes no mesmo sitio, cruzou

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ruas e voltou a cruzar, quando finalmente
encontrou uma cadeira onde se pode sentar sentiu
todos os músculos a descontrair-se, a pequena
ligadura que tinha feito na zona do disparo estava
encharcada em sangue, foi socorrido o mais
rapidamente possível, Ariana e Rubi não tiveram
mãos a medir, de forma a recuperar deitaram-no no
chão, o frio na perna sabia extremamente bem.
Sentados á volta da mesa, Romeu contava tudo o
que tinham descoberto, como de forma
maravilhosamente engenhosa a entrada estava
escondida a frente dos olhos de toda a gente, agora
que sabiam onde ela estava, agora era só pensar
como é que iam conseguir entrar e onde iam
procurar a informação que necessitavam, todos
deram opiniões, todos queriam ir, todos queriam
sentir a adrenalina nas veias, mas foi uma voz doce
que fez com que todos caíssem na real:
- Vocês pensam que vai ser fácil? Não vamos
conseguir entrar e sair assim do nada, no máximo
só podemos ir três, na melhor das hipóteses só
deveríamos ir dois, as casas seguras têm um
sistema de segurança completamente
intransponível, só quem souber códigos específicos
é que consegue entrar nalguns pontos, eu sei que
talvez alguns ainda não confiam em mim, mas eu
tenho que ir! Ainda me lembro de alguns códigos e
talvez chegue mais longe do que alguns de vocês! -
disse Marie
- Mas nem penses que vais sozinha, eu vou
contigo! – Levantou-se Hugo.

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- Deixa de ser idiota pode ser? És um alvo
conhecido lembraste? Tu não podes ir…, mas
tenho que concordar com ela, dentro de nós ela é
que a pode melhor, mas também não gosto da ideia
de ela ir sozinha…- afirmou calmamente Ariana.
- Eu vou com ela – fazendo ouvir a sua voz
Romeu – talvez não seja o mais forte, mas tenho
algumas destrezas que muito de vós não possuem,
vou tentar protegê-la com a minha vida, acho que
não temos muitas hipóteses a este nível…
Todos concordaram, mesmo que contrariados.
Quando caiu a noite, Romeu e Marie estavam
preparados para a missão, que de certa forma até
poderia ser considerada suicida, saindo pela porta
principal tentaram esconder-se numa primeira
instância nas sombras da noite.
Estava uma noite calma, uma pequena brisa fazia
com a temperatura se tornasse amena, o céu repleto
de estrelas. Apesar da lua nova que não emanava
quase nenhuma luz, dava á escuridão um brilho
magnifico, as ruas quase desertas, apenas com
alguns homens que tinham perdido a noção de
quantos copos de álcool tinham bebido, alguns
encostados as paredes, deixando a saliva descer-
lhes pela face, e nalguns pontos mesmo pela sua
roupa, naquele ponto nenhum deles parecia
importar-se com aquelas duas silhuetas que tinham
aparecido do nada e que pareciam ter o mesmo
destino, pelo menos assim parecia.
Depois de alguns metros já estavam sobre a
entrada para a “fossa”, a medo Romeu lá se baixou
e levantou a pesada porta de madeira, os seus

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músculos ressentiram-se rapidamente do peso
enorme que estava a tentar levantar, por duas vezes
que deixou o braço cair mas voltando a utilizar
toda a força, alguma que nem sabia que tinha num
movimento rápido conseguiu fazer com que a
madeira bate-se com estrondo com as relvas,
abrindo a sua frente uma enorme escadaria, quando
elevou o olhar em direção a face de Marie
encontrou-a com os braços cruzados e com um
olhar como que se dissesse “silenciosamente
portanto”, de forma a redimir-se encolheu os
ombros e soltou um pequeno sorriso.
A medo e engolindo varias vezes em seco lá se
precipitaram em direção á escadaria sombria, para
sua surpresa quando começaram a descer, não
encontraram tochas centenárias, nem candeeiros a
óleo, no seu lugar estavam luzes que detetavam o
movimento, ao fim de descerem apenas três
degraus já tinham todo o caminho iluminado, no
fundo das escadas via-se uma enorme porta de
ferro negro com uma cobra desenhada no centro,
Romeu estava pronto para continuar quando sentiu
o seu corpo a ser empurrado pela mão fechada de
Marie, que com um olhar de arrependimento
profundo, rodou e mostrou o que tinha dentro da
mão, dois pequenos alfinetes, pertences típicos dos
membros da Mano de Dios, sem ser necessário
qualquer palavra, ele pegou num deles e colocou-o
na camisola, se queriam entrar e sair dali na mesma
forma, vivos, precisavam de se fazer passar por
membros da casa, cada passo que davam em
direção a porta fazia com que Marie se sentisse
menos segura, parecia caminhar em direção á

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escuridão e a um passado que queria por todas as
forças esquecer.
Quando acabaram de descer os trinta e sete
degraus, repararam que a porta estava fechada, sem
qualquer fechadura visível, apenas um pequeno
botão ao lado da mesma e o que parecia ser um
pequeno microfone, Marie respirou fundo
novamente e avançou, com um sorriso na face
pensou “só espero que não tenham mudado a
senha de acesso”.
- Che Dio ti protegga – disse num italiano
perfeito.
Ouviu-se um estranho ranger, a enorme porta de
ferro começara-se a mover, apesar do seu enorme
tamanho e visível peso movia-se extremamente
rápido, quando esta já ia a metade do caminho
começou-se a ver uma silhueta do outro lado da
porta, um homem, na casa dos quarenta anos, com
uma arma em punho e um olhar cinzento e
intocável, o sangue de Romeu começou a gelar e o
seu coração a bater de forma incontrolável, Marie
ao reparar, fixou o olhar nele e com um sorriso
caloroso pegou-lhe na mão e baixinho disse “deixa
comigo”.
Quando a porta se abriu por completo o homem
avançou e com um tom imperativo disse:
- Noi siamo uno!
- Noi siamo uno. Che Dio ti protegga!-
respondeu rapidamente Marie.

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O homem fitou rapidamente Romeu que se
manteve em silencio, avançou sobre ele com a
arma em punho e um olhar a roçar a raiva e a
desconfiança, Marie interpôs-se a sua frente e com
uma cara de frieza levantou a manga esquerda até a
zona do cotovelo, uma pequena tatuagem apareceu
a luz, um anjo com uma cobra na mão, vendado,
emanando uma luz em todas as direções, era esta a
tatuagem que ela tinha recebido quando era mais
nova, ainda se conseguia lembrar das palavras do
homem que cuidou dela desde do primeiro
momento “estás reservada para grandes feitos”,
nos últimos tempos começara-se a questionar que
grandes feitos seriam esses, mas naquele momento
a tatuagem salvou a vida ao seu amigo.
O guarda ao ver a tatuagem, caiu de joelhos,
atirando a arma para longe e pedindo perdão
elevou a voz o mais alto que conseguiu e gritou:
- Perdonami, Beata Vergine Maria!
- Sei perdonato! Leva-me ao responsável
máximo desta casa segura, já!
O homem rodou sobre os joelhos e começou a
acelerar o passo, Marie e Romeu seguiram-no, por
onde passavam todos faziam uma vénia, alguns
chegavam mesmo a ajoelhar-se, Romeu quanto
mais andava mais confuso ficava, não tinha
percebido nada a partir do momento da tatuagem,
mas uma coisa ele tinha certeza, Marie era muito
mais do que aquilo que parecia ser.
Foram conduzidos por longos corredores de pedra,
com luzes embutidas tanto por cima das suas
cabeças como ao seu lado, todas elas emanavam

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luz branca, algumas delas já de forma intermitente,
o cheiro que se fazia sentir no ar, era uma mistura
de mofo com produtos químicos, os barulhos que
se faziam ouvir davam a entender que tanto
existiam salas de treinamento como laboratórios de
pesquisa, ao longo caminho passaram por alguns
compartimentos com as portas abertas, Romeu
sempre com o olho aberto conseguia ver portáteis
de ultima geração, uma enorme quantidade de
livros docemente preservados do tempo, todo
aquele espaço parecia ser uma biblioteca, em todas
as salas, fossem elas mais direcionadas a pesquisa,
ou ao treinamento tinha livros, laptops ou algum
meio de pesquisa, parecia que a prática era sempre
antecedida pela teórica.
Ao fim de andarem ao longo de quatro corredores
distintos, terem descido três lances de escadas e
conseguirem passar pelo olhar atento de mais de
duas centenas de homens e mulheres colocados a
muitos quilómetros abaixo do chão, finalmente
estavam colocados á frente do cérebro de toda a
“fossa”, a entrada era idêntica a de um cofre, uma
enorme porta de ferro giratória, com quatro barras
de ferro ligadas entre si que faziam com que todo o
mecanismo funcionasse, colocados a sua frente três
soldados, armados até aos dentes, possuíam duas
espingardas semiautomáticas e duas armas mais
pequenas, sem contas com as navalhas com cerca
de dez centímetros de lamina cada, colocadas na
manga da camisola, Marie tremeu quando os viu,
reconhecia perfeitamente a Guarda Imperial,
soldados treinados para as missões mais
complicadas e digamos menos humanas, nunca na
história que ela tinha conhecido um soldado

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daqueles tinha falhado uma missão, os seus
equipamentos negros como a noite, e as suas
tatuagens em forma de cobra a volta do pescoço
eram as suas imagens de marca, eram homens
treinados apenas para servir a Mano, custasse o
que custasse.
Ao ver aquelas cores a sua mente fugiu para um
passado que lhe parecia muito distante, para uns
olhos verdes perdidos na sua história e num adeus
que nunca tinha sido bem explicado, como que se
obrigando a voltar a realidade pensou no irmão que
nunca conheceu, colocou a sua posição de poder,
endireitou as costas e mandou abrir a porta, um dos
homens aproximou-se dela, fez uma vénia e com
um tom distante:
- Minha senhora, só a posso deixar passar a si, o
seu acompanhante vai ter de ficar cá fora, neste
espaço são apenas permitidos membros dos
quadrantes mais elevados, peço imensa desculpa.
- Meu caro, de certeza que não sabe quem eu
sou, este homem veio comigo até aqui e vai até
onde eu for!
O soldado fitou-a com um olhar de raiva, as veias
que ficavam por baixo da sua tatuagem pareciam
querer saltar da pele para fora, na sua testa privada
de cabelo, as veias faziam exatamente a mesma
coisa, colocando os ombros para trás, respirando e
colocando a mão numa das pequenas armas
colocadas no seu cinto, colocou a sua testa mesmo
encostada a testa de Marie, que embora por dentro
estivesse a tremer como varas verdes, por fora
mantinha uma estrutura impávida e serena:

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- Minha cara senhora, sei perfeitamente quem
você é, inclusive quando entrei para esta casa,
ainda você usava fraldas e eu já tinha de lhe fazer
continência, contudo, e vai-me desculpar a
indisciplina, só o grande Padre, me pode obrigar a
desrespeitar a lei, e como você embora seja a
escolhida ainda não está no trono, temo que o seu
companheiro de viagem não passe daqui, pelo
menos não em pé – mexendo na arma e cerrando
ainda mais o olhar.
Quando Marie ia para responder, sentiu Romeu a
puxar-lhe o braço, com o olhar colocado no chão,
parecia que queria dizer alguma coisa:
- Não se preocupe minha senhora – sem nunca
levantar os olhos do chão – eu próprio sempre
desejei ver com os meus olhos esta casa forte, vá a
vontade, quando sair estarei aqui á sua espera –
fazendo uma pequena vénia.
Marie acenou positivamente e passou ombro a
ombro, com o soldado que lhe tinha feito frente,
sem sequer olhar para ele, colocando-se a frente da
enorme porta rotativa, o soldado que obviamente
estava acima de todos os outros, colocando-se
bastante perto de um dos seus subordinados, disse-
lhe ao ouvido “ segue este homem, não sei porque,
não me parece ser dos nossos”, o soldado acenou
assertivamente, e colou-se a sombra de Romeu,
sem nunca fazer contacto visual, todos os seus
movimentos estavam a ser gravados na sua mente,
lado a lado desapareceram nas curvas do corredor a
sua frente.

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O soldado, com um estranho sorriso na face colou-
se a Marie e com um tom irónico perguntou:
-Há quanto tempo não vêm a Espanha, minha
senhora?
- Há mais do que desejava.
Com um olhar de desdém, o homem pensou então
vais gostar disto catraia, deu sinal e todo o
mecanismo começou a funcionar, as enormes
barras de ferro começaram a rodar sobre si, a
enorme porta parecia que iria rachar-se ao meio, o
barulho era ensursedor, apenas uma pequena
brecha se abriu, nem um braço musculado
conseguia lá passar, contudo lá de dentro saiu um
pequeno Cálice com uma adaga dentro de si, uma
adaga docemente embelezada com ouro, com uma
cobra enrolada sobre ela, um dos soldados pegou
no cálice com todo o cuidado do mundo e
colocando-se de joelhos, ergueu-o até a direção do
peito de Marie, esta agarrou nos dois objetos e
elevou o olhar até ao homem que parecia já esperar
a sua confusão e com um sorriso brilhante
facilmente respondeu a todas as duvidas que ela
tinha, mesmo sem ela as colocar por palavras:
- Minha senhora, nós em Espanha temos um
ritual muito antigo, El sacrifício, para entrar no
cérebro das ações temos de dar um contributo
muito pessoal – agarrando na adaga e fazendo-a a
deslizar rapidamente pela palma da mão, fazendo
aparecer um fio de sangue, e como se gostasse da
sensação colocou a mão em cima do cálice de
forma ao sangue cair para o seu interior, depois de
alguns segundos a deixar cair o seu sangue, levou a

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mão á boca, lambeu a palma, e com um olhar
negro esticou a adaga a Marie, pegando-lhe no
cálice- é a sua vez.
Ela sabia que cada país tinha as suas tradições,
algumas delas bastantes peculiares, por exemplo,
em Itália onde supostamente se encontrava a cave
mãe, nenhum membro poderia sequer entrar numa
casa segura sem cravar um ferro a ferver na mão,
isto supostamente serviria para purificar pelo
menos uma parte do corpo antes de entrarem em
terreno sagrado, por sua vez a tradição espanhola é
muito mais antiga, remonta a reconquista cristã,
onde os soldados deveriam provar a sua lealdade
pelo preço do sangue, verter um bocado de sangue
era considerado um sacrifício menor perante a
vontade do senhor, esta tradição foi absorvida pela
Mano uma vez que o principio que a rege é quase a
mesma.
Marie olhava para a adaga com a mão a tremer,
sempre fora protegida daqueles rituais, o homem
que a educou fazia-os sempre por ela, o seu olhar
estava habituado a ver o sangue escorrer mas a sua
pele não estava habituada a abrir-se para fazer o
mesmo fluir, começou a transpirar e a sentir o chão
a rodar debaixo dos seus pés, desviando o olhar
para o cálice via o sangue, aquilo começou a dar-
lhe a volta ao estomago, sentia que ia deitar tudo o
que estava dentro de si para fora do corpo, com o
olhar sínico do soldado sobre ela, sabia que não
podia voltar para trás agora, desejava agora que
Ariana só lhe tivesse contado a verdade dois dias
depois, exatamente no dia em que fugiu, era o dia
em que ia fazer o seu primeiro ritual, não o

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espanhol mas o italiano, mas decerto que cravar
um ferro a ferver na mão deve doer mais do que
fazer um pequeno corte, voltando a engolir em
seco, respirou fundo uma e outra vez, lembrava-se
dos braços daquele homem que sempre a protegeu,
e dos olhos verdes que muita vez lhe serviam de
refugio, e como que num movimento de puro
instinto fez a adaga deslizar sobre a palma da sua
mão esquerda, soltou um pequeno gemido de dor e
com os olhos fechados deixou o sangue cair no
recipiente por alguns segundos, depois puxou de
um pequeno pano e enrolou-o volta da mão sem
olhar muito para ela.
O soldado olhou para o Cálice que nem meio
estava e com um sorriso malicioso comentou:
- Vejamos se chega, seria péssimo ter que fazer
outro corte – virando-se para a enorme porta de
ferro, olhou para uma pequena ranhura que se abria
debaixo da porta, inclinando a cabeça, verteu todo
o sangue pro pequeno caminho que tinha ligação
direta ao centro da porta, enquanto o sangue subia
na direção do coração da maquina sem qualquer
justificação física possível, deixava atras de si um
rasto vermelho, quanto mais subia, mais peças da
grande máquina se mexiam e abriam, quando
entrou no circulo principal da porta, as enormes
barras de ferro começaram a afastar-se do centro e
a pesada porta finalmente abriu-se.
Do outro lado estava a sala mais bem equipa de
toda a Espanha, decerto nem a coroa espanhola
tinha tanta tecnologia ao seu serviço, eram pelo
menos vinte e seis computadores espalhados por
toda a sala, o chão era tapado por milhares de fios

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que pareciam ligar todos os “pequenos”
computadores a um vigésimo oitavo que parecia
saído de um filme de ficção cientifica, não possuía
um ecrã físico como os restantes, tinha um enorme
globo terrestre em forma de holograma que parecia
transpor todas as informações do mundo, ligações
a outras casas seguras marcadas no mesmo como
cobras, a controlar este mecanismo estava uma
mesa com aproximadamente sete metros de
cumprimento e mais de dez homens especializados
na tecnologia de ponta, pareciam todos trabalhar de
forma pré-programada, os seus dedos passavam
sobre as centenas de teclas e botões sem tirar os
olhos sobre o grande holograma. A sala era
mantida quase com temperaturas negativas para
que os computadores não sobreaquecessem, por
este motivo todos os presentes estavam vestidos
com roupas preparadas para estas condições.
Marie mal cruzou a porta sentiu toda a sua pele a
tornar-se rapidamente em pele de galinha, mas a
surpresa que sentiu facilmente superou o frio, o seu
queixo só não caiu porque estava fortemente preso
ao resto da face, tentou por todas as artimanhas do
inferno manter a face serena como se nada daquilo
fosse novidade, mas o seu olhar era demasiado
explicito, parecia uma criança numa loja de doces,
o soldado tossiu de forma propositava de forma a
mante-la em movimento, quando estavam a cinco
metros do enorme holograma que agora ainda
parecia mais majestoso, o homem fez-lhe sinal
para que esperasse ali, acelerando o passo curvou-
se perante um jovem de cabelos longos que mal
ouviu o que ele lhe tinha dito parecia ter sido
atacado por uma alegria que quase lhe provocou

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lagrimas, Marie ao inicio não o reconheceu, o
corpo era-lhe completamente estranho, o cabelo
parecia-lhe familiar mas não podia ser, o rapaz que
lhe vinha a cabeça deveria estar a quilómetros de
distancia, de forma alguma podia estar ali…mas
por ironia do destino podia mesmo.
Quando cruzou o seu olhar com aqueles profundos
olhos verdes, voltou por momentos a sua infância.
Há cerca de doze anos, nos prados verdes de uma
França rural, duas crianças corriam livremente de
mãos dadas, eram felizes, tinham-se conhecido
eram ainda bebes, ele salvo de um incendio numa
cidade da beira espanhola e ela com o passado
nunca revelado, embora fossem de pontos do
mundo relativamente diferentes, rapidamente uma
ligação forte entre os dois aconteceu. Ela protegida
pelo chefe máximo ou pelo menos por alguma
coisa parecida, todos lhe faziam uma vénia quando
ele passava. O seu olhar conseguia ir do mais
fraterno, ao mais frio e distante possível, parecia
amar e odiar aquela criança, mas isso nunca fez
com que não a protegesse, embora que de uma
forma relativamente…digamos… esquisita. Ele
protegido pelo chefe máximo da Guarda Imperial,
que ao fim de alguns anos se tornaria seu
subordinado, esse não deixava espaços para
duvidas, sempre odiou aquela criança e se não
odiava conseguia transparecer um sentimento que
não existia muito bem.
Ao contrário do que uma infância guarda para as
crianças, pelo menos na teoria, estes dois nunca
tiveram risos, nem brincadeiras, nem um simples
escorrega do qual poderia cair e esmurrar os

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joelhos, tiveram uma infância que os fez crescer á
força, e que os transformou em “mini-adultos”.
Marie foi educada desde dos seus três anos em
toda a história da associação que ela sem saber
bem porquê pertencia, obviamente a história
contada pelos vencedores, para juntar aos quase
cinquenta livros que fora obrigada a ler e quase
decorar, teve que estudar as duas línguas “mães”, o
Latim e o Grego, para além de ser fortemente
instruída no espanhol, italiano, inglês, português e
francês, com apenas quinze anos já era um
poliglota fluente, uma historiadora eximia e com
um poder genético de argumentação temível,
embora muito pouco permitido nestas
circunstancias.
Ele por sua vez fora educado deste muito novo, nas
artes que supostamente deviam ser de defesa
pessoal, mas que rapidamente se tornaram técnicas
de ataque também, era sujeito a treino físico
bastante duro todos os dias, “os soldados foram
feitos para matar não para pensar” ouviu muita
vez, fazendo cem flexões por dia, mais cento e
cinquenta abdominais, sem contar com o treino de
ginásio, não restava muito tempo, nem energia
para ler, mas ele não precisava, afinal de contas
tinha que lesse para ele.
Com os mesmos quinze anos tinha quase todos os
músculos do corpo definidos quase ao limite, o seu
porte físico e talento para o combate tinham-no
colocado como chefe de operações na casa forte de
Paris, eram o par perfeito, a mente e o corpo, a
inteligência e a força bruta, “mente sã em corpo
são”.

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Desde muito novos aproveitavam todas as pausas
para estarem juntos, eles que se tinham conhecido
por um acaso, quando ambos tinham cinco anos,
estavam a correr, como qualquer criança o faria, a
fugir das suas responsabilidades, ao longo de um
dos muitos longos corredores das casas fortes,
quando o corredor fez uma pequena curva, onde as
luzes desgastadas pelo tempo já estavam
intermitentes, a pequena Marie ao dar a curva
olhou para trás e sem dar por ela, chocou de frente
com um rapaz que já naquela altura usava um
longo cabelo pelos ombros, embora menos bem
cuidado, o pequeno rapaz tinha a cara toda
arranhada, os braços ensanguentados e alguns
hematomas visíveis, mas mesmo estando um trapo,
os olhos verdes como safiras rapidamente
conquistaram a atenção de Marie que não
conseguiu proferir nada para alem de um enorme
bocejo de surpresa, quando começou a ouvir os
passos pegou na mão dele, que não tinha ficado
menos espantado do que ela, afinal de contas tinha
batido de frente com uma princesinha, com os
cabelos negros docemente penteados, um vestido
cor de céu a dar-lhe até aos joelhos, as feições
doces de um anjo e um sorriso que rapidamente
conquistou alguma coisa dentro dele, juntos
correram para uma pequena arrecadação que se
apresentava mesmo a sua frente, ali, sentados
contra um cabo de vassoura e uma esfregona, com
o cheiro a mofo misturado com o aroma a lavanda
que os detergentes para o chão costumam emanar,
com uma humidade esquisita apesar de estarem em
pleno Junho, durante quase duas horas aquele foi o
seu pequeno paraíso, falaram, riram e conheceram-

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se naquele ambiente tudo menos romântico, mas
porquê a vida não é um filme todos os bons
momentos chegam ao fim, quando foram
descobertos, ele foi severamente castigado e ela
saiu quase impune, mas aquele não foi o ultimo dia
em que estiveram juntos, para se ser fiel, foi o
primeiro, a partir daí começaram a ver-se
diariamente, foram dez anos em que todos os dias
eles arranjavam uma desculpa para se ver, que
chegou ao ponto que a única desculpa que
conseguiam arranjar era a própria vontade de
estarem juntos. Como em qualquer romance cliché,
a amizade rapidamente se transformou em algo
mais, as mãos dadas foram o primeiro passo,
depois os abraços prolongados e por fim o primeiro
beijo, o sitio que muitos consideram o mais
romântico do mundo, no fim de um jantar á luz das
velas, mesmo na base da Torre Eiffel, subiram para
onde a vista alcança, e perante o luar de uma noite
de lua cheia trocaram o que para muitos hoje em
dia se torna banal, para eles foi o selar de uma
vontade á muito enunciada, foi uma cena que
qualquer pintor gostaria de ter apanhado e feito
perdurar numa tela, ela naquela noite trazia um
comprido vestido de um azul clarinho que
esvoaçava ao toque do vento que se fazia sentir, ele
com umas calças de ganga esfarrapadas e uma t-
shirt branca simples, por ironia pareciam-se muito
com as roupas do seu primeiro “encontro.
Este romance rapidamente se tornou publico aos
olhos de todos, e embora fosse apenas um romance
de adolescentes, o “pai” de Marie viu nele uma
oportunidade de fazer cumprir uma velha profecia
deixada ainda por Flamel “num momento onde as

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chamas do inferno parecerem dominar, dois
jovens, reencarnando Maria e o seu anjo da guarda
Gabriel, mostraram a todos o poder do amar”, era o
momento perfeito para fazer despoletar toda uma
fé surreal a volta daquele romance, e assim foi
dada a cada um deles uma tatuagem exatamente
igual, que segundo as ordens do chefe máximo
serviria de marca de respeito porque aqueles dois
eram os enamorados da profecia, no fim da sua
queria filha receber a tatuagem, com uma voz
baixinha e doce o grande e poderoso Padre disse:
- De dentro de todos os primogénitos vocês
foram os escolhidos, vocês foram talhados para
grandes coisas, tu minha filha, estás reservada para
grandes feitos.
Dando-lhe um doce beijinho na testa. Naquele dia
ela foi apontada como a descendente divina do
grande patrono, iria ter o domínio máximo de toda
a organização…
Antes de voltarmos ao tempo presente deixem-me
apenas explicar o que é o grupo dos primogénitos,
sumariamente é um pequeno grupo de crianças e
jovens que são recolhidos ou acolhidos devido às
suas trágicas histórias, mortes de familiares, perdas
de lar, ou simplesmente vinganças levadas a cabo
por membros internos da Mano, estas crianças são
divididas consoante as suas capacidades, ao
contrario do que seria espectável, nem todas as
raparigas são estudiosas, como nem todos os
rapazes são guerreiros, é feita uma analise para
saber a área para qual cada criança vai, desde da
revolução que é esta recolha que rejuvenesce toda

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a organização, sendo muita vez preenchida pela lei
do aço.
Voltemos á “fossa”.
O agora jovem adulto correu com toda a
velocidade que tinha e deu um forte abraço na sua
“amada” e com um profundo som de alegria disse:
- Estava preocupado contigo Marie…
- Eu estou bem Alejandro…- respondeu ela de
forma quase inaudível.
O passado tinha voltado uma vez mais a
atormentar, aqueles braços foram durante muitos
anos o seu porto seguro, para onde corria sempre
que se sentia mais frágil, onde a sua alma e corpo
encontravam sempre o descanso…,mas agora
estava do outro lado da barricada, do lado errado,
ou do certo? Naquele momento todas as certezas
que tinha ganho nos últimos tempos começavam a
ficar novamente baças e distantes, sentiu o corpo a
cair, aa cabeça a andar a roda e todo o seu sangue a
gelar, sem conseguir controlar nada simplesmente
se deixou cair nos braços de Alejandro…
Enquanto isto se passava na Fossa, no seu
esconderijo Hugo não conseguia parar quieto,
andava de um lado para o outro, olhava para o
relógio, levava um copo de água a boca, tendo-o
feito varias vezes com ele vazio, estalava os dedos
da mão, penteava o cabelo para trás embora ele
agora já não se mantivesse seguro como quando,
ele saíra da prisão, o crescimento capilar era
estranhamente mais rápido, em menos de um ano
iria ter novamente o cabelo do tamanho que tivera

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quase a duas décadas atras, ele próprio ansiava por
isso, quando se olhava ao espelho mal se
reconhecia…mas decerto que não era o cabelo o
culpado disso.
Ariana, quando ele finalmente se sentou
aproximou-se dele, encheu-lhe o copo com água e
ficou simplesmente a olhar para o vazio ombro a
ombro com ele, respirando fundo disse numa
tentativa de quebrar o gelo:
- Ou menos assim já não bebes apenas ar… -
nem um movimento recebeu como resposta,
sentado arqueado com aos mãos estendidas em
direção ao chão, com a cabeça quase colocada
entre os joelhos Hugo estava, e assim ficou.
Quando ela já estava decidida a levantar-se foi
quando ele decidiu falar:
- Como superaste a morte dele?
- Nunca se supera a morte de alguém que é
especial para ti…apenas aprendes a viver com a
sua ausência…
- Ele faz tanta falta a este mundo…será que ele
sabia disto tudo? Que nós éramos família…que a
irmã estava viva? Da existência da Mano?
- Conhecendo o Felipe como conheci, tenho a
certeza que sim, tal como tenho a certeza que todos
estes enigmas, todos estes jogos, esta missão que te
deixou, o cargo em que te deixou, faz parte de um
grande plano que ele tinha…que só tu podes
concretizar…

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- Se achas isso por que razão criaste a tua
própria organização?
- Porque ele assim queria… ele nunca foi um
homem de ter apenas uma visão, nunca desejou ver
o mundo apenas de preto ou apenas de branco, por
este motivo criou a Pack para trazer a escuridão
que o mundo precisava e deixou-me incumbida de
trazer a luz que a Pack precisava… - começando a
mexer no anel que tinha no dedo indicador – ele
escolheu-nos para criarmos o mundo que ele
queria, temos de ter as forças necessárias para o
fazer, custe o que custar… - levantando-se e saindo
em direção á casa de banho.
Encostado a uma janela com o olhar perdido na
escuridão da noite, atento a todas as
movimentações que circundavam a casa, Tiago
mantinha junto a si uma pequena adaga
ornamentada em ouro, com um enorme leão
desenhado no seu topo, sendo totalmente apanhado
de surpresa soltou um enorme salto quando sentiu
duas mãos de volta da sua cintura:
- Ah…és tu…
- Estavas à espera de outra pessoa – disse Rubi-
começando a aproximar-se rapidamente dele,
encostando-o contra a parede…
- Não estava à espera de ninguém, de todo! –
Tentando soltar-se dos seus movimentos, mas não
conseguindo evitar que ela lhe roubasse um beijo,
que repudio ou alguma coisa parecida afastou-a
bruscamente.

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- Da última vez que estiveste aqui não foste tão
bruto!
- Pois, mas da última vez não tinhas mais
pessoas em casa, só estava o Juan, e estava a
dormir, por isso foi diferente…
- Mas não te preocupes eu sei não fazer barulho
– voltando a aproximar o corpo do dele e sendo
afastada novamente.
- Rubi, não! Estamos numa situação delicada e
tu só pensas nisso? O plano do Alfa pode cair todo
por terra se eles forem descobertos, não podemos
baixar a guarda.
- Se eles forem descobertos é a melhor
oportunidade para tu reclamares a posição que é
tua por direito.
- Estás-te a ouvir? A posição de um Alfa não se
conquista, merece-se, não vou terminar como os
meus antecessores, e tenho muito respeito ao Alfa
em poder, e esta conversa termina aqui. Prepara o
Juan, quando estivermos terminados aqui ele vai
para a sede.
- Sim, meu senhor… - deixando o sair em
direção da escuridão – mas a conversa ainda agora
começou…
Voltemos para alguns metros debaixo de terra,
onde deitada numa maca Marie começava a medo
a abrir os olhos e a senti-los a ser feridos pela luz
branca que se encontrava sobre ela, as costas
doíam-lhe, parecia estar deitada sobre uma pedra
fria, mas eram apenas os ferros que constituíam

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aquela “cama”, estava com a cabeça apoiada sobre
duas almofadas já semicomidas pelo tempo, com
alguns cortes e pequenas aberturas pelas quais se
conseguia ver o material macio que estava dentro
delas, decerto que já tinham sido a cama de muitos
ratos e de outros animais das profundezas, mas
naquele momento estavam a servir uma causa
muito mais nobre.
Depois de recuperar em parte dos sentidos, tentou
levantar-se o mais rapidamente que conseguiu, mas
quando o fez sentiu uma picada avassaladora na
cabeça, que quase a fez desmaiar novamente, tudo
a sua frente ficou baço, umas pequenas luzes pretas
e brancas apareceram-lhe á frente, o seu estomago
deu duas voltas e parecia querer deitar alguma
coisa cá para fora, neste momento o chão começou
a aproximar-se ou o contrario, na altura pareceu
difícil de diferenciar, sentiu o seu corpo a ser
aparado por algo muito mais macio que a cama
onde ainda tinha a parte inferior do corpo apoiada,
pouco a pouco a calma voltou ao seu corpo,
conseguia levantar a cabeça sem esta querer saltar,
conseguiu acalmar fosse o que fosse que andava as
voltas no seu estomago, conseguia sentir as pernas
sem o formigueiro e as pequenas bolas de luz
tinham desaparecido, deixando perante os seus
olhos apenas aquela conhecida face que ela tinha
esperança que tivesse aparecido num sonho, com
todo o cuidado o rapaz de cabelos longos e olhos
verdes, colocou-a deitada direita na cama e com
um sorriso tímido sentou-se ao lado dela:
- Eu sei que perdi muita da minha beleza ao
longo dos anos, mas não era preciso desmaiares de

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medo – soltando uma pequena gargalhada, levando
a sua mão de encontro a perna de Marie – tive
tantas saudades tuas…
Por muito que quisesse responder “eu também”, já
não tinha certezas disso, na noite em que decidiu
partir em direção ao desconhecido não parou de
pensar nele, se lhe tivesse contado talvez ele
tivesse deixado tudo para trás por ela, mas ele não
estava na casa forte, estava em missão e só
chegava no dia seguinte, ela não podia esperar e
agora também não, rapidamente forçou a sua
mente a sair dos campos escuros pelos quais
começou a correr lado a lado com Ariana para
voltar aquela sala austera, aquela cama
desconfortável e aquela mão quente que lhe
aquecia a perna, sem querer parecer rude, agarrou
na mão com todo o carinho que ainda conseguia
dar e tirou-a da sua perna.
- Não tenho muito tempo Alejandro, preciso da
tua ajuda – levantando-se e começando a dirigir-se
em direção á porta.
- Então é assim? – Endurecendo a voz –
desapareces durante anos, todos nós ficamos
extremamente preocupados com o teu rapto, e
quando voltas não explicas nada do que se passou?
Simplesmente um “não tenho tempo”? Eu percorri
metade da europa á tua procura, durante dia e noite
e tu não dás valor a isso? És mesmo a minha
minorca?
Aquele apelido carinhoso, fez com que o vento
francês entrasse na sala e fizesse por momentos, os
cabelos dela abanarem, “o meu gigante”, “a minha

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minorca” era assim que se tratavam um ao outro na
infância, embora ao longo dos anos a sua diferença
de altura fosse diminuindo os apelidos
permaneceram, dar alcunhas ou apelidos fofinhos a
quem está ao nosso lado, fortalece a relação, mas
quando esta acaba também se tornam gatilhos
destrutivos e causadores de magoa sempre que
ouvidos…e infelizmente nenhuma relação está
salva disto.
- Tens razão…não sou a mesma, e devo-te
muitas explicações…os últimos anos mostraram-
me o mundo de uma forma muito diferente, de uma
forma que tu talvez nunca entendas, mas eu
prometo que quando isto tudo terminar, eu explico-
te e respondo a todas as tuas perguntas!
- Tu não podes simplesmente entrar aqui e
esperar que te ajude assim do nada, tu tiveste
desaparecida imenso tempo! Tiveste nas mãos do
inimigo durante três anos, como deves imaginar
não posso ignorar todos os protocolos que gerem
esta instituição – levantando-se, sacudindo a roupa,
e colocando uma face fechada.
- Mas é exatamente isso que te estou a pedir, se
aquilo que sentias por mim se mantem aí, nem que
seja um pouco, peço-te que confies em mim e me
ajudes… - abrindo a porta.
- Sabes o quão angustiante foi estar na minha
cerimónia de promoção e olhar para todas as faces
presentes e não ver a tua, procurar o teu olhar para
me dar força, ver a tua felicidade por mim e não
encontrar e descobrir no mesmo dia que tinhas sido
raptada, procurar o teu sorriso por todos os

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recantos da Europa desde dos Champs Elysées até
á Hagia Sophia? E quando finalmente te encontro
tu desmaias e quando acordas pedes apenas que
confie em ti? Acho que vou precisar de um pouco
mais!
- Ale…preciso que confies em mim, como
confiaste na primeira vez que estivemos juntos, tu
vais entender tudo um dia, prometo-te isso, mas
neste momento não te posso contar mais nada, e
peço desculpa não ter lá estado quando mais
precisaste…se quiseres odiar-me por isso, eu
aceito…,mas com ou sem a tua ajuda em não posso
continuar aqui, estou numa luta contra o tempo –
saindo porta fora.
Mentalmente só desejava que Romeu estivesse a
ter mais sorte do que ela…
Romeu tinha aproveitado o centro de atenções que
Marie se tinha tornado para poder vaguear, todos
os soldados, que pareciam pequena formigas a
trabalhar numa colonia, falavam do regresso da
“Santa”, da “Imaculada”, da “Salvadora”, como se
Marie fosse uma espécie de divindade e aquela
tatuagem a chave para perceber o porquê, mas
aquelas perguntas que teimavam e aparecer-lhe na
mente teriam que esperar pelas respostas, estava ali
a procura de algo muito mais importante e o
principal objetivo daquela infiltração, a casa mãe,
mas decerto que não seria algo fácil de saber, seria
impossível uma organização de tal forma bem
preparada deixar a informação assim a mão de
semear, percorreu os finos corredores sempre de
olhos bem abertos.

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O soldado que tinha recebido a missão de o seguir
não o tinha perdido de vista por um segundo, até a
data tudo estava a correr calmamente.
Romeu embora fosse um rato de laboratório, mas
habituado a mexer em meia dúzia de teclas a sua
frente do que em missões no terreno, guardava
muitos talentos escondidos… quando chegou a um
cruzamento de quatro corredores diferentes olhou
para um lado, para o outro e novamente para o
outro, como se estivesse a espera de alguma coisa,
ao fundo do corredor que se encontrava a sua
esquerda começou-se a ouvir um ruido, pareciam
pequenos tambores a serem tocados violentamente
a distancia, mas quanto mais se aproximavam,
mais se percebia que não eram tambores nenhuns,
eram sim alguns soldados que vinham dos
dormitórios, e vinham a marchar com toda a força
que as suas pernas lhe conseguiam dar, as fortes
pisadas em direção ao chão faziam as paredes
estremecer, Romeu esperou pelo exato momento
em que aquelas duas dezenas de soldados passaram
ao seu lado para desaparecer…
O soldado que deveria ter mantido o seu olhar fixo
nele, começou desesperadamente a suar, sabia
perfeitamente qual seria a consequência de falhar
uma ordem recebida diretamente do capitano
Lorenzo Sarevo.
O soldado que tinha feito frente a Marie, não era
de todo um raso soldado ou apenas mais um
comandante de uma secção da Guarda Imperial, ele
era o subchefe da Guarda Imperial internacional da
Mano de Dios, estando apenas abaixo de
Alejandro, para além de terem linhas orientadoras

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bastante distintas a relação deles nunca passara do
formalmente exigido, tratavam com cordialidade e
respeito e nada mais.
Sarevo tinha estado presente na revolução, ainda
muito novo na altura, lutou lado a lado com o
chefe da revolução que se aproveitou dos sonhos
ingénuos de um jovem soldado para o seu próprio
proveito.
Desde muito novo que ambicionava chegar ao topo
da hierarquia militar, poder vestir o mais pesado
dos casacos e ter o mais importante dos cargos e
foi isso que lhe foi prometido pelo atual Padre,
nessa batalha sangrenta que foi a revolução, da
arma deste jovem saíram as balas que mataram os
seus progenitores bem como o seu irmão mais
novo, não houve tempo para chorar a morte deles,
mas todas as noites as suas faces ensanguentadas
lhe aparecem nos sonhos, pedindo para que ele não
dispare, mas ele sem conseguir controlar o gatilho
da sua arma dispara uma e outra vez sobre eles,
matando-os todas as noites, acordando com o peso
na consciência e sangue imaginário nas mãos, nos
primeiros anos tinha mesmo que se levantar para
passar as mãos por água, porque a angustia era tal
que não conseguia olhar para as suas mãos
vermelhas, mas pouco a pouco aprendeu a viver
com isso, a idade só o tornou mais distante e frio,
calculista e sem escrúpulos, todas as missões
tinham de ser cumpridas com o máximo rigor,
falhas não eram toleradas e todos os soldados que
falhavam tinham um final que ninguém conhecia,
mas uma coisa era certa, nunca um soldado que
falhou voltou a ser visto ao serviço, nem mesmo

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como rapaz das limpezas, a sua postura era a sua
imagem de marca, nunca mostrara medo nem outro
qualquer sentimento. Há alguns anos fora
incumbido de treinar um primogénito especial,
uma criança que demonstrava todos os sinais de
um grande soldado, ficou como tutor de uma
criança, sempre a tinha odiado e tinha-lhe imposto
um treino demasiado rigoroso que pensou que ela
nunca iria aguentar, mas ela aguentou como se
fosse erguida por uma força sobrenatural, e de
facto era. A criança que falo é Alejandro. Não
precisava de dizer, mas nestas coisas é sempre
melhor dar a certeza.
No dia em que Alejandro foi indicado como o
chefe máximo da Guarda Imperial, todos os sonhos
que ainda restavam na mente de Lorenzo foram
deitados por terra, tudo por aquilo que tinha lutado,
tinha sido roubado por um miúdo, que mal sabia o
que era vida, que não tinha dado provas nenhumas,
só porque supostamente pertencia a uma profecia
tinha-lhe roubado o lugar que era dele por direito,
num ataque de fúria dirigiu-se ao patrono máximo
e embora muito terror que tivesse tentado impor,
foi ele que saiu de lá reduzido, depois de uma
longa conversa só ouviu “ o que tu fazes aos
soldados que te falham eu posso fazer contigo,
agora respeita o teu superior e desaparece”, por
muito que quisesse lutar contra aquilo não poderia
fazer nada. A partir neste momento começara a
trabalhar apenas para si, cumpria as ordens que lhe
eram dadas, mas tinha sempre a sua própria linha
de ação, mantendo sempre soldados fiéis a si. Era
de facto um soldado da Mano, mas nunca mais
respeitara o seu chefe máximo, trabalhava de si

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para si, e era um homem que já não tinha nada a
perder, e esses são os mais perigosos.
O soldado sabia perfeitamente o seu fim caso
falhasse, ou melhor imaginava todas as formas que
poderia ser “afastado”, desde, de uma forma
misericordiosa como um tiro na cabeça a ser
atirado para um tanque cheio de cobras venenosas
que até parecia ser mais a face do seu capitano.
Sem pensar muito bem nas hipóteses começou a
correr de forma desenfreada na direção da qual
tinham saído dos soldados e de um momento para
o outro apenas sentiu o seu corpo a levar uma
pancada forte e certeira na zona do pescoço e
depois apenas escuridão.
Marie tinha saído em direção ao caminho estreito e
frio, sem nunca olhar para trás, tinha de completar
a missão custasse o que custasse, as lágrimas por
muitas vezes tinham vindo bater a porta dos olhos
com vontade de sair, mas ela tinha-as empurrado
sempre para dentro, demonstrar fosse o que fosse
não iria servir de nada naquele momento, quando
estava prestes a cruzar a esquina do longo corredor
sentiu algo a prender-lhe o braço, sem sequer olhar
para trás pensou ficar presa nalgum ferro saliente
da parede, existiam uns quantos ao longo das
instalações, ou simplesmente que o corpo estivesse
a ficar pesado novamente, mas não era nada disso.
Um forte braço tinha-a sustido, impedido o seu
movimento, com o peito extremamente perto do
seu pescoço Alejandro com uma voz rouca e
regada a lágrimas que tinham saído há não muito
tempo apenas perguntou:

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- O que precisas de mim?
- Preciso de acesso aos livros da tua biblioteca,
de um computador com base de dados, de tudo o
que tu disponibilizares para eu conseguir encontrar
a nossa sede principal, preciso de ir lá o mais
rapidamente possível…
- Estás a brincar certo? – Soltando uma pequena
gargalhada – sabes perfeitamente que apenas nove
membros internos sabem a localização da sede, os
“Nove Magníficos” e nem eu, nem tu estamos
nesse grupo, a sede é invisível para quem a
procura, tu devias saber isso melhor do que
ninguém!
- E sei – virando-se para ele – mas também sei
que tens um holograma gigante com todas as casas
seguras, decerto que deve haver alguma ligação á
casa Mãe!
- E há, mas é apenas um telefone, não temos
acesso a mais nada, nem nos livros temos nada,
eles guardam muito bem a sua posição, sabes
perfeitamente que aqueles que te raptaram querem
destruir a nossa casa, não podemos deixar
informação assim espalhada, qualquer espião
poderia consegui-la se assim fosse.
E esse espião sou eu…pensou Marie.
- Mas eu preciso de tentar, mesmo que não
consiga.
- Se queres tanto voltar, eu ligo neste momento
ao teu Padre e ele envia uma equipa que te escolte
até lá.

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- Não! Ele não pode saber que eu estou aqui, eu
não quero que ele saiba… - começando a sentir o
seu cerco de mentiras a apertar.
- Ma douce Marie… tu estás muito
estranha…,mas eu sinto que te devo ajudar, devo-
te isso…vou-te levar a nossa biblioteca, mas não
tenhas muitas esperanças, nada do que lá está será
diferente do que tu já sabes…
O caminho para a biblioteca, ainda foi mais
sinuoso do que seria de esperar, ela não se
encontrava no mesmo piso que a enfermaria, nem
no da central de comandos, estava dois pisos a
baixo, o ar até lá chegar tornava-se cada vez mais
rarefeito, a luminosidade cada vez menor, e os
caminhos que conduziam lá cada vez mais
estreitos, entre o piso da enfermaria e a biblioteca,
ficava um piso inteiro de arquivos, caixas e caixas
de papeis, prateleiras e prateleiras de informações,
gerações e gerações de vidas ali descritas, todas as
informações possíveis e imagináveis, desde do
motivo que entraram para a Mano, a razão que os
levou a desaparecer, o pó parecia não ser limpo há
décadas, e para um possível incendio aquilo era
combustível fácil, embora o oxigénio não fosse
muito, arderia tudo bastante rapidamente, Marie e
Alejandro não perderam muito tempo a olhar para
aquele aglomerado de papeis, não eram aqueles
que importavam.
Uma estranha sombra fardada tinha-os seguido
desde da enfermaria, mas tinha estagnado naquele
piso, parecia ter mais interesse no passado que no
futuro…

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As escadas que levavam ao piso da biblioteca,
eram extremamente ingremes, quase como se de
uma rampa se tratassem, por mais que uma vez que
a escuridão quase enganava os olhos de Marie, o
caminho que ela tinha á sua frente parecia um
buraco negro a puxa-la em direção ao vazio,
apoiava as fracas mãos na parede que começava a
ficar cada vez mais distante, quanto mais se
aproximavam no fim da escadaria mais distante
ficavam as paredes, só quando ela colocou o pé
fora da escadaria percebeu o porquê…
Depois da vertiginosa escadaria, encontrava-se um
enorme pátio arredondado, Alejandro tomou a
dianteira e com um pequeno isqueiro começou a
acender os archotes que estavam lá colocados, cada
um agarrado pela mão hirta de uma estátua de
pedra, no total eram cinco estátuas, quatro
colocadas ao longo do cemi-circulo que o pátio
desenhava e ultima no centro, por alguma razão
macabra apenas a do meio mantinha a cabeça
intacta, todas as outras tinham sido decapitadas, os
seus corpos, cada um com as suas peculiaridades,
desde uma armadura muito bem ornamentada, até a
um poderoso livro com o nome tapado pelo pó,
mas sem cabeça, fossem quem fossem, tinham sido
apagados da história, ou pelo menos assim foi
tentado.
- Quem são estas estátuas?
- Os cinco patronos mais fortes da nossa
história…infelizmente só sabemos o nome de um
deles com certeza…os restantes ficaram presos na
escuridão e assim nos foi indicado que
permanecessem…

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- Aquele no centro é Flamel?
- Sim, o nosso fundador, pelos vistos não
perdeste totalmente as tuas capacidades…,mas não
viemos aqui ver estatuas ou viemos?
Com um aceno negativo Marie continuou a segui-
lo, circundaram a estátua do seu primeiro patrono e
o que encontraram atrás dela, era simplesmente
indescritível.
Duas gigantes portas de madeira, belamente
embelezadas com iluminuras renascentistas, o
marco da porta, parecia ser outrora feito de ouro,
agora escondido pela quantidade de poeira que
tinham acumulado, ao longo do mesmo estavam
desenhadas doces coroas de louro, bem como
pequenos animais, desde coelhos até aos poderosos
leões. Não possuíam qualquer maçaneta, apenas o
local para colocar uma única chave e mais
nenhuma. Nas partes que nas portas normais
estariam apenas ripas de madeira, as belas
iluminuras ocupavam todo e qualquer espaço,
nestas belas peças de arte, eram retratados feitos da
Mano desde da sua criação, desde da Revolução
Francesa, onde a Mano apoiou incondicionalmente
os revolucionários, até a queda do Muro de Berlim,
mas algo faltava naquelas pinturas, na figura
central, onde supostamente Flamel segurava o que
parecia ser uma estrela pelos raios que emanava,
estava apenas um grande buraco negro, a iluminura
tinha sido arrancada ou pelo menos uma parte dela.
Mas antes que Marie conseguisse questionar o
porquê daquilo estar assim, já um click se tinha
feito ouvir, Alejandro já tinha colocado uma chave

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de ouro na fechadura e tinha rodado, fazendo todas
as molas da porta estalarem e começarem a rodar, a
pesada estrutura demorou quase um minuto a rodar
por completo, o cheiro e a temperatura que
emanava da extensa sala que se abria sobre eles
eram extremamente pesadas, cheiro a mofo e a
humidade, quase insuportável, aquelas portas não
deviam ser abertas á imenso tempo, se é que
alguma vez o foram, já a temperatura, não muito
quente mas também não muito fria, fazia com que
o ar se tornasse difícil de respirar.
Marie teve de encher o peito várias vezes para não
deixar o seu corpo desligar por completo, tudo a
sua volta parecia turvo, e os seus olhos ainda não
se tinham habituado a escuridão que estava a
enfrentar naquele momento.
Com um sorriso nos lábios Alejandro disse-lhe
baixinho, junto ao ouvido:
- Se bem te conheço vais adorar isto.
Com um movimento cuidadoso, levou o archote
até ao chão onde encontrou um canal preenchido
de azeite, o canal percorria toda a sala, como
material incandescente, rapidamente o fogo
atravessou toda a sala, a luz feriu por momentos os
olhos da jovem, que quando finalmente os
conseguiu abrir ficou boquiaberta.
Diante dos seus olhos, abriu-se a mais majestosa
biblioteca, toda a superfície subterrânea da praça
das universidades de Salamanca era uma
biblioteca, milhares, se não milhões de livros ali
estavam, todos organizados em prateleiras que se
elevavam até ao teto, toda a estrutura era suportada

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por cinco enormes colunas de mármore, belamente
embelezadas com relevos que pareciam contar
histórias que só elas sabiam, desde de lutas entre
espadachins até romances que, de forma
surrealista, acabaram bem, todas elas tinham sido
feitas por mãos de artista, só podiam, embora
tivessem de estar ali á milhares de anos, pareciam
ser demasiado novas para isso também…eram um
mistério lindo para se resolver. As prateleiras onde
os livros se encontravam por suas vez, eram o mais
austero possível, madeira simples, sem
ornamentação, mas com uma durabilidade incrível,
em cima delas apareciam todo o tipo de livros,
desde de prateleiras cheias de romances, desde de
Bronte até Austen, passando por Shakespeare e até
os contemporâneos Sparks e Roberts, prateleiras
clássicas, Homero, Virgílio, e mesmo uma coleção
incontável de exemplares da Divina Comédia de
Dante Alighieri, prateleiras só de livros
académicos que contavam a história de todos os
países, bem como todas as grandes teorias de todos
os grandes pensadores, de Aristóteles até Kant,
eram livros que eram incapazes de contar.
Entre os dois rios de fogo que lhe iluminavam o
caminho estava colocada uma enorme mesa de
madeira, com cerca de vinte e cinco livros, todos
eles com o brasão da família de Felipe e Hugo
colocado sobre a capa, ainda atordoada Marie
seguiu os passos apressados de Alejandro que se
dirigiu de imediato até aquele local central, a mesa
não era normal, contrariamente às mesas
tradicionais, sempre com tonalidades claras, aquela
era totalmente negra como a noite, antes de se
sentarem, Alej, pegou numa pequena vela que

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estava colocada sobre a mesa e levou-a ao canal de
azeite que passava mesmo junto a eles,
rapidamente a vela ganhou chama própria, depois
ele pousou-a sobre a mesa e empurrou um monte
de livros para a frente da já sentada Marie, e com
uma cara totalmente fechada apenas disse:
- Tu já lestes estes livros todos que eu sei, mas
se tu queres insistir nisto não há nada que eu possa
fazer…
Alguns metros acima deles, nos arquivos, a sombra
fardada continuava a vasculhar todos os papeis da
forma mais silenciosa que conseguia, embora
bastante mais pequeno do que a biblioteca, os
arquivos ainda tinham uma extensão considerável,
organizados por ordem alfabética, todos os
arquivos continham informações suficientes para
realizar uma bibliografia de cada pobre alma que
tivesse as suas informações ali guardadas, embora
tivesse descoberto facilmente o alvo que
procurava, algo chamou a atenção da sombra, já
com uma pasta colocada dentro da farda, notou que
existiam exatamente dezoito documentos
diferentes, não só na sua estrutura, bem como no
tipo de papel que tinha sido utilizado para os
realizar, enquanto todos os outros documentos,
tinham uma tipologia de informação baseada em
tópicos, aqueles dezoito tinham a informação
estruturada em formato de texto de prosa, e tinham
fotos a acompanhar toda a informação, algo que só
se verificava nalguns dos mais importantes
restantes. Fora isto o tipo de papel que era
utilizado, parecia um papiro, um papel desgastado
e consumido pelo tempo, com uma estranha marca

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de água, um leão de ouro. Com a chama tímida do
isqueiro que tinha tirado do bolso mal entrara na
escuridão daquela sala, que apesar de ter luzes que
poderiam ser facilmente ligadas, ele tinha optado
por não o fazer para não correr o risco de ser
descoberto, percorreu todos os ficheiros e com
muita facilidade reconheceu grande parte deles,
muitos deles eram nomes de livros que todos nós já
ouvimos falar, outros eram conhecidos seus, e
outros pareciam demasiado perigosos para serem
deixados de lado, com todo o cuidado para não
perder nenhuma das frágeis folhas colocou as
pastas junto a que tinha já escondida, e por mera
curiosidade começou a analisar a restante sala,
dentro de toda aquela sala, algo lhe saltou á vista,
encostadas ao canto direito da sala, depois de todas
as prateleiras, das mesas com computadores que
não deveriam funcionar á décadas e a um pequeno
armário onde estavam dezenas de uniformes
vermelhos, que ainda uniam a cobra e o lobo sobre
o mesmo sol, estavam escondidas duas enormes
estátuas, docemente decoradas, mostravam dois
homens da igreja, embora o seu conhecimento de
iconologia ainda se pudesse considerar generoso,
naquele momento sentiu-se completamente idiota,
não conseguia decifrar quem eram aquelas duas
figuras, mas o espanto não terminou ai, ao lado das
majestosas estatuas, arrumadas em caixotes de
cartão, estavam 4 enormes cabeças feitas de
mármore, cada uma com feições perfeitamente
delineadas, algumas delas já com as narinas
entupidas de tanto pó que tinham aguentado ao
longo dos anos, o corte no pescoço tinha sido feito
de forma perfeita, como se tivesse feito de forma

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propositada, o que seria no mínimo estranho, uma
vez que aquelas obras de arte parecem ter saído de
um estúdio renascentista devido a sua perfeição e
pormenorização, todos os cabelos davam a
sensação de movimento, bem como os músculos
faciais, tinham conseguido captar exatamente todas
as feições e sentimentos dos retratados fossem eles
quem fossem.
A sua admiração fora interrompida por um brusco
alarme que tinha sido disparado, toda a “fossa” foi
inundada por uma luz vermelha, centenas de
passos começaram a fazer-se sentir, todos os
homens tinham sido mobilizados para a missão
mais importante dos últimos anos.
No centro de ações o comandante Sarevo, dava
ordens com tom imperativo, todos estavam a ser
comandados pela força do chicote verbal de
Lorenzo.
Nem os técnicos de computador tinham a sua sorte
garantida, ele queria todos de pé e pegarem em
armas, apenas o chefe de departamento tecnológico
pode ficar sentado na sua cadeira, embora tivesse
argumentado que precisava de uma equipa de pelo
menos cinco membros para garantir os serviços
mínimos, a única resposta que recebeu foi um frio
e distante olhar que lhe fez tremer todos os ossos.
Segundo Sarevo, falhar esta missão era falhar o
objetivo de toda uma vida, mas algo parecia retirar
a pouca calma que ele normalmente mantinha
nestas situações, travando o movimento de um
soldado formiga que passara mesmo á sua frente
perguntou:

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- Onde raio está o Alejandro?
- O senhor comandante, foi visto a ir em direção
á biblioteca, lá o alarme não se ouve, por isso é
normal que ainda não esteja cá em cima…
- Aquele pirralho, vê um rabo de saias e
esquece-se logo do seu lugar, enfim…, ou menos
dotamos todo o nosso espaço de rede – pegando no
telemóvel e começando a ouvir o telemóvel a
chamar do outro lado.
Nas profundezas da biblioteca, Marie já tinha
revirado todos os livros que tinha á sua frente, já os
tinha lido a todos, conseguindo mesmo recitar
passagens de alguns deles, começava a desesperar,
Alej, sempre com o olhar colado nela, quebrou o
silêncio finalmente:
- Mas por raio, queres tanto encontrar a sede por
conta própria?
- Recebi uma charada, tenho a certeza que a
parte final da profecia fala da sede, há respostas
que eu preciso de encontrar…
- E como é que é essa dita charada?
- “A terra de nostros hermanos terão de ir, á
cidade do conhecimento de pedra, sobre a ponte
bovina, os dois leões rugem em direção ao céu. Se
mágoa aqui encontrarem ao país dos gigantes de
gelo terão de ir, refúgio no passado encontrarão.
Mas o final da vossa missão, numa praia
mediterrânea encontrarão, na terra da máfia, na
casa do dragão terão de entrar e deixar que o
destino comandar.”

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- Quem te deu este enigma Marie…?
- O meu irmão…porquê?
- Nós recebemos esse enigma, para o decifrar
também, supostamente foi deixado pelo maior
inimigo desta casa para os seus descendentes, o
poderoso Alfa como gostava de ser tratado…diz-
me por favor que não tens nada a ver com ele…
- Alej – levantando-se da mesa – o Alfa era o
meu irmão, eu sou a sua direta sucessora…
- Então, tu não foste raptada por eles? Tu estavas
a trabalhar para eles!
- Sim, eu saí pela minha própria decisão, tive de
conhecer as minhas raízes e acredita não é nada
como nos contaram, esta casa tem uma máscara
colocada á anos!
- Cala-te! Afasta-te de mim! Eles tiveram de te
fazer alguma coisa, tu não era assim, vou-te
mandar novamente para a sede, eles lá cuidaram de
ti, a verdadeira Marie ainda deve estar algures por
aí!
- Alej…esta sou a verdadeira eu…ajuda-me a
decifrar isto, juntos podemos tudo, como quando
éramos miúdos.
- Tu abdicaste de tudo isso quando fugiste, mas
realmente tu perdeste muitas das tuas capacidades,
se não o tivesses perdido saberias perfeitamente
que a ultima parte do enigma se refere á cidade de-
neste momento o telemóvel começa a vibrar,
levando-o até junto do ouvido, apenas acena com a
cabeça e termina dizendo – entendido, ótimo

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trabalho estou já a ir para aí – virando novamente o
olhar para Marie – encontramos a casa segura dos
teus amigos, estamos a ir em força para lá, quando
terminar com eles, volto e trato de ti, ou que
sobrou de ti.
Correndo em direção á porta, embora Marie
quisesse nunca o conseguiu alcançar, as suas
pernas não tinham o mesmo vigor nem massa
muscular do que as dele, quando chegou, já a porta
estava fechada, começou a bater com os punhos
fechados contra a porta, mas sem resultado, ao fim
de alguns segundos desistiu e colocou a sua testa
encostada contra a porta.
Do outro lado ouviram-se duas vozes masculinas a
discutir, seguidas de um enorme estrondo e o que
parecia um corpo a rolar pelas escadas a baixo,
rapidamente Marie levantou-se e limpou os olhos
que começavam a transbordar, passado pouco
tempo, a pesada porta começou a mover-se
novamente, do outro lado, ainda escondido pela
escuridão, surgiu um corpo vestido com uma farda
a estender-lhe a mão, ao inicio ela recuou com
medo, não poderia ser aliado com aquelas cores,
mas de repente a sua voz acalmou-a:
- Vamos Marie, não temos muito tempo…
Com uma força quase sobre-humana, o rapaz
levantou-a do chão e começou a conduzi-la em
direção das escadas.
Encostado á estátua de Flamel, jazia inanimado
Alejandro, com uma enorme marca na cabeça, o
corpo mole começa a escorrer ao longo da pedra
fria.

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Com os olhos repletos de preocupação Marie
afastou-se do local, quando chegaram á frente da
porta dos arquivos, a luz do alarme começou a
aumentar a sua força e os sons de sirenes
começaram a crescer, para além do tumulto que já
se fazia sentir o chão começou a tremer, algumas
dezenas de soldados vinham na sua direção.
Com reflexos de lince, o homem empurrou
bruscamente Marie para dentro dos arquivos e com
toda a sua força fechou a porta, encostando-se
contra a mesma, analisando toda a sala, a procura
de algo para prender a mesma.
- Romeu, porque estás assim vestido? –
Interrompeu Marie.
- Longa história, agora preciso de algo para
prender esta maldita porta…
- Prender? Vamos ficar aqui fechados dentro?
- Não, enquanto tu andavas a brincar às
máquinas do tempo, eu andei a investigar e a tentar
descobrir informações realmente importantes, e
descobri que todas as salas desta “fossa” têm
ligação direta á superfície, inclusive encontrei este
mapa – atirando-lhe para o colo um pequeno
papiro com a planta do edifício- mas para sairmos
daqui precisamos de bloquear o caminho mais
rápido que eles tenham para vir atrás de nós.
- O problema não é eles chegarem até nós…eles
descobriram onde estão os outros…
Romeu fitou-a com um olhar de repulsa e
preocupação, aquela informação só lhes retirava

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ainda mais tempo, tinham de chegar á superfície, a
sua mente embora entorpecida pela falta de ar que
se começava a fazer sentir, raciocinou o que
parecia ser obvio, para uma solução temporária
pegou sozinho numa das mesas que tinham
arquivos em cima, atirando-os violentamente
contra o chão, e colocou-a contra a porta, fazendo
de seguida sinal a Marie para o acompanhar, as
pesadas estatuas que estavam encostadas às
sombras eram a solução que precisavam, com
muito custo lá arrastaram as duas pesadas
estruturas até ao local desejado, com a primeira
não houve qualquer problema, apenas algumas
dores musculares mas nada demais, com a segunda
a história foi ligeiramente diferente, porque
embora a primeira estatua tivesse as mãos
colocadas em forma de concha o que já por si
dificultou a sua movimentação esta segunda
possuía um livro enorme aberto mesmo na direção
do peito, bastou um pequeno descuido e a estatua
embateu com toda a força, contra um das muitas
prateleiras que estavam no seu caminho,
desencadeou-se um efeito domino, toda as
prateleiras embateram umas contra as outras, o
barulho que se fez ouvir foi ensursedor, se o
objetivo era passar despercebidos, falharam
mediocremente, rapidamente a porta começou a ser
empurrada com todas as forças, só restava uma
opção.
Fugir.
Precipitaram rapidamente para a passagem secreta,
escondida dentro da parede, a porta secreta estava
mesmo ao lado dos caixotes onde estavam

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guardadas as cabeças de mármore, com uma
destreza indescritível, Romeu colocou os braços
contra a parede e rodou a porta, fazendo aparecer
uma escadaria que se perdia no meio da escuridão.
- Como sabias onde estava a entrada?
- Tive bastante tempo para analisar o mapa,
vamos não temos tempo.
Começaram os dois a correr apenas com a luz de
um pequeno isqueiro para os guiar, embora não
conhecessem o caminho avançavam sem medo,
por ser em formato caracol, muitas vezes as suas
mãos foram até ao chão para evitar quedas
vertiginosas.
Depois de muito subirem, depararam-se com uma
porta redonda, mesmo encostada às escadas,
embora Romeu tenha passado reto, sem sequer
olhar para ela Marie deteve-se e respirou fundo
para recuperar o seu folego, toda a vida tinha sido
treinada atrás de uma mesa a ler e memorizar
dezenas de palavras, apenas a alguns meses tinha
começado a treinar o físico, e mesmo assim estava
longe de estar no ritmo que deveria.
Romeu ao reparar que tinha avançado pelo menos
uma dezena de degraus sozinho, regressou e
deparou-se com a sua companheira apoiada sobre
os joelhos a olhar para a porta.
- Marie, não é essa a porta, essa vai dar ao
centro de controlo, a nossa é mais acima!

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- Mas não podemos sair assim, falhamos na
missão, não sabemos nada! Temos de descobrir
onde é a Casa Mãe!
- Não temos tempo, se somos descobertos somos
mortos, e se não avisarmos os outros eles terão o
mesmo fim.
- Mas vamos estar a falhar o nosso propósito,
temos de tentar! - saltando em direção á porta.
- Oh, mulher teimosa! - Correndo atrás dela.
A porta apesar de bastante velha, abriu-se sem
grande oposição, fazendo com que Marie cai-se
redonda dentro da sala de controlo, novamente o
ambiente frio daquela sala, fez com que alguns
pelos do seu corpo se arrepiassem.
A sala já se encontrava vazia, todos os
computadores mantinham informação nos seus
ecrãs, mas ao contrário do que tinha sido a
primeira impressão, o clicar irritante e constante
nas teclas tinha sido substituído por um silêncio
constrangedor, principalmente depois da queda de
um corpo feminino que tinha aberto como por
magia um buraco na parede.
Os caminhos secretos eram um mistério para quase
todos os membros, apenas as grandes patentes
tinham acesso a uma pequena percentagem do que
era o submundo das instalações. Nem Alejandro
conhecia todas as passagens secretas.
O único membro da equipa informática ficou
completamente congelado a olhar para a presença
de Marie, tinha ouvido várias histórias sobre a

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criança da profecia, mas nenhuma dela incluía o
atravessar de paredes.
Naqueles casos o protocolo era bastante claro,
tinha de fazer suar o alarme, o cérebro de
operações tinha sido violado sem o sacrifício, e
tudo piorou quando o fiel “escudeiro” da sagrada
criança entrou de rompante pelo mesmo buraco na
parede, agora já não parecia nada um milagre, mas
sim, algo de bastante suspeito.
Romeu acorreu para ajudar Marie a levantar-se,
todos os músculos estavam preparados para puxar
da pequena arma que tinha escondida nas calças, se
aquele operador decidisse fazer soar mais um
alarme as suas hipóteses de fuga desciam de cinco
por cento para uns incríveis zero, tinha de ser
rápido e poupar o máximo de tempo possível.
O homem franzino que se encontrava atrás do
computador, que não deveria ter mais do que trinta
e poucos anos, tremia a mão de uma forma
descontrolada, apenas via a sua família
mentalmente, saberia perfeitamente que
desrespeitar uma presença tão importante poder-
lhe-ia custar o emprego, mas sabia ainda melhor
que se desrespeitasse o protocolo debaixo do nariz
de Lorenzo Sarevo iria-lhe custar muito mais, e
sem perder mais tempo a pensar levou o dedo
indicador ao botão que iria fazer soar o alarme
interno e fechar todas as saídas possíveis, ele não
tinha a certeza até que ponto aquele buraco na
parede iria ser fechado também mas tinha que
tentar.

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De forma repentina fez-se ouvir um disparo, um
enorme clarão momentâneo invadiu a sala, o
homem ficou com o dedo mesmo sobre o botão
sem conseguir clicar, no meio da sua testa, mesmo
por baixo do seu cabelo castanho cor de mel,
apareceu um buraco de sangue, que fez escorrer
um pequeno fio que começou a descer por toda a
sua face, passando mesmo rente ao seu olho direito
parecendo uma lágrima vermelha, a ultima imagem
que ele viu, foi a sua pequena filha a correr no seu
jardim, a correr e a saltar, com apenas um ano
tinha sido diagnosticada com cancro, os primeiros
anos de vida tinham sido um autentico inferno,
sem dinheiro para pagar os tratamentos, tinha-se já
habituado a ideia de perder a sua pequena princesa
pela qual tinha esperado a vida toda, mas foi nesta
altura complicada que tinha aparecido um anjo
parecido com Lucifer, o capitão Lorenzo Sarevo
tinha-lhe prometido a salvação da sua filha através
de uma cura milagrosa, desde que ele colocasse o
seu cérebro ao serviço de uma instituição que lhe
apresentaram como milagrosa, nos últimos dois
anos tinha sido tratado como um génio e fora
colocado nas mais altas patentes informáticas de
forma quase exponencial, sem fazer a mínima ideia
como o cancro da sua filha tinha sido
milagrosamente curado, estava completamente
curada e agora todos os dias corria pelos jardins da
sua casa com um sorriso na face, a imagem de
transformação era simplesmente incrível, todos os
dias lembrava-se como tinha visto o seu pequeno
tesouro naquela cama de hospital, sem cabelo,
unindo o peito com os joelhos e com os olhos
vermelhos de tanto chorar, os tratamentos quase a

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tinham morto e a cura não aparecia, depois de
entrar para a Mano, tinha conseguido ver a sua
pequena, com longos cabelos cor de mel tal e qual
como os seus, mas muito melhor penteados, tinha
visto a sua mulher sorrir novamente, antes da
ultima respiração viu estas imagens, se tivesse tido
tempo teria chorado, mas acho que o fio de sangue
que lhe passou pela face teve o mesmo efeito.
Romeu e Marie estavam encolhidos no chão depois
de ouvirem o disparo, ele ainda tinha a arma
agarrada, queria ter sido mais rápido decerto que
não teria morto o homem, teria apenas afastado a
mão do botão, mas isso agora era a menor das suas
preocupações, quem tinha disparado?
Sem largar a arma, apoiando-se no joelho, Romeu
virou-se a todo o custo, sem nunca deixar de ter em
atenção a posição de Marie, que continuava a
tremer ao ver agora o corpo do homem ao cair da
cadeira sem vida, sempre fora treinada em
ambientes onde a morte era assunto quotidiano
mas nunca tinha visto uma vida humana
desaparecer assim á sua frente, ao contrario do que
estava a espera a morte não envolvia gritos nem
sofrimento, mas nem por isso era menos
assustadora, muito pelo contrario o silencio depois
do disparo fora o que lhe causara mais tremores, o
corpo inanimado, os olhos sem vida, toda uma vida
tirada sem motivo, era este o mundo que ela
sempre fora protegida, mas que agora era obrigada
a atravessar, ainda para mais numa posição onde
ela podia ser a própria capataz condenando todo e
qualquer um á morte, as suas mãos encheram-se de
um sangue que não existia, de repente estava

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sentada numa poça de sangue, com dezenas de
corpos mortos á sua volta, alguns com fraturas nos
ossos, outros com buracos de bala, inclusive o
homem que tinha acabado de morrer a sua frente,
todos lhe tocavam, todos tentavam puxa-la para
baixo, afoga-la na poça que só crescia, já não
existia Romeu, nem Hugo, nem Felipe, apenas a
morte e a escuridão que parecia fazer parte dela. A
mente é a mais traiçoeira de todas as inimigas,
porque usa os nossos maiores medos contra nós,
afinal de contas é de dentro dela que eles surgem.
Romeu tinha sentido todos os seus músculos a
ficarem extremamente presos quando viu de onde
tinha saído o disparo.
Uma pequena revolver, ainda estava a deitar fumo,
quando foi levada até a farda para limpar, o porte
físico era incomparável, o capitão Sarevo, estava
com um estranho sorriso na face. Com uma voz
irónica disse:
- É uma pena, tinha acabado de começar a
aproveitar a vida com a sua filha recém-curada.
Mas por outro lado é bom…não vai ter de passar
pelos efeitos secundários.
- Do que raio estás a falar?
- Do homem que acabou de morrer, era um
génio na sua área, mas infelizmente na sociedade
os génios duram muito pouco, são as feras que
sobrevivem.
- E eu presumo que tu te consideres uma fera?

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- Isto não demonstra isso? – Apontando para
uma pequena cicatriz que tinha na zona do pescoço
que lhe alcançava metade da bochecha direita – há
muitos anos que aprendi que ser um génio de nada
serve, se não formos rijos e frios com tudo a nossa
volta, a bem ou a mal esta menina ensinou-me isso.
Mesmo após a revolta, o capitão Sarevo fora
enviado para controlar um dos muitos pontos de
“reconquista” que se tinham formado, neste caso
especifico para uma “fossa” numa pequena cidade
na Ucrânia, em termos de tamanho era bastante
mais reduzida do que aquela onde aqueles três
corpos se encontravam, tinha apenas dois pisos,
um reservado ao controlo das operações e aos
dormitórios e um segundo reservado para os
arquivos e para os centros de treino, contudo era
um bunker muito mais bem preparado para
qualquer invasão do que qualquer outro, tinha
explosivos colocados em todas as paredes, para
caso fosse necessário deitar tudo a baixo
enterrando inimigos como amigos. Nesse dia a
vitória estava perto, um dos pisos tinha sido
completamente controlado, não havia forma dos
revoltosos fugirem, todos se refugiaram no ultimo
piso, estavam no centro de treinos, fechados, com a
porta trancada e protegida com tudo o que tinham
conseguido colocar, desde de bancos de madeira,
até sacos de boxe, colocado mesmo de frente para
a porta o recém-promovido capitão, com as mãos
agarradas atrás das costas, com as costas
extremamente direitas e com todas as balas do seu
pequeno revolver gastas, tinha algumas de recurso
dentro do bolso do enorme casaco que tinha
vestido, mas tinha a certeza que não ia precisar de

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as usar, afinal de contas os ratos estavam
encurralados entre a parede e a ratoeira, ninguém
ia conseguir sair dali vivo, e mesmo que tivessem
essas aspirações, com o aproximar do marchar do
exercito contrario, dos gritos dos seus
companheiros caídos ao seu lado, toda a esperança
ia desaparecer, tudo o que ia restar era o medo e a
morte, ninguém é tão forte nas suas crenças ao
ponto de suportar estes dois inimigos…pelo menos
era isto que ele pensava na altura. Depois de todo o
exercito se ter alinhado atrás dele, olhando por
cima do ombro, avançou convencido da vitoria,
mas mal encostou a mão na porta, ouviu um
barulho ensursedor, uma enorme explosão tinha
sido ativada de forma remota a partir do interior, os
explosivos que estavam colocados foram ativados,
as paredes caíram com estrondo e a enorme porta
do centro de treinos desapareceu em chamas, os
corpos de todos os presentes foram jogados contra
o chão com tremenda violência, mas o que sofreu
mais nesse dia fora aquele que estava mais seguro
na vitória, no momento da explosão sentiu por todo
o seu corpo um ardor inexplicável, sentiu como se
o tivessem regado com gasolina e deitassem um
isqueiro aceso em cima e em seguida o tivessem
atirado contra um autocarro numa descida, sentiu a
morte mesmo a sua beira, sentiu que tudo o que
tinha feito nos meses antes daquele dia tinha sido
em vão, sentiu que se talvez tivesse sido uma
pessoa diferente algum dos seus soldados fosse
arriscar a sua vida para salvar a dele, mas não sabia
que ia morrer sozinho, ali ou mais tarde, tinha
afastado toda a gente, o sangue que lhe escorria por
vários sítios no corpo lembravam-no que afinal de

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contas era um ser humano e que sentir era normal,
como ninguém o estava a ver, supostamente,
deixou cair lágrimas, não de dor mas de saudade,
do pai, da mãe, da irmã mais nova, de todos
aqueles que ele tinha morto em prol de algo que
nem ele sabia muito bem o que era agora, sabia
perfeitamente que se existisse vida após a morte
nunca iria para o mesmo local que eles, porque eles
mereciam sem duvida o céu, e ele já devia ter o seu
lugar reservado no inferno. Quando as lágrimas
acabaram, também os seus olhos se fecharam e a
escuridão tomou conta dele, estava preparado para
se deixar ir, afinal de contas, o seu sonho era algo
que já lhe estava a ficar demasiado caro. Mas a sua
vida não terminou ali, passadas algumas horas
acordou numa cama de hospital, cheio de
ligaduras, uma que lhe ligava todo o braço direito e
grande parte da face direita, tinha inclusive o seu
olho tapado, por momentos pensou que tinha
ficado cego do mesmo, mas não, com todo o custo
do mundo, sentido que poderia rasgar qualquer
musculo que se mexesse, sentou-se na cama,
respirou fundo mais do que uma vez a pensar nas
perdas que tinha de contar, nos relatórios que tinha
que fazer e possivelmente em todas as balas que
tinha desperdiçado para nada, quando uma voz
familiar apareceu no quarto:
- Devias descansar mi amigo.
- Dante? Que faz aqui senhor?
- Vim visitar um amigo que sofreu um grave
acidente não posso?
- Claro que pode…,mas pensei que.

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- Que depois da nossa grande conquista me iria
esquecer de ti? Não…não mordo na mão que me
deu de comer, como espero que não o façam
comigo… sobre a casa seguro, ficou todo
resolvido, os rebeldes fizeram-se explodir lá
dentro, não era uma imagem muito bonita quando
cheguei lá… não te preocupes com nada agora, tira
umas merecidas férias – dirigindo-se para a porta –
preciso do me braço direito recuperado o mais
rapidamente possível.
Aquelas palavras serviram como gatilho de
confiança, mas como se veio a reparar eram ocas,
mas não é de estranhar, afinal de contas a forma
mais fácil de manipular qualquer pessoa e dizendo
palavras bonitas nos momentos certos, afinal de
contas, todos gostamos de ouvir aquilo que
queremos ouvir, fomos nós que tornámos as
palavras na forma mais doce de manipulação…
Voltando a sala de comando onde aqueles três
corpos não se tinham mexido um centímetro,
Lorenzo continuava a limpar o revólver a farda,
com um estranho sorriso voltou a reafirmar:
- Há muitos anos que sou uma fera…,mas diz-
me Romeu, tu és o que? Um génio ou uma fera?
- Consigo ser os dois, mas deixemo-nos de
rodeios, o que pretende fazer connosco?
- Tenho de seguir o protocolo, não achas? -
levantando a pequena arma e mirando ao corpo de
Marie.
- Tenho as minhas dúvidas que consiga seguir
um protocolo até ao fim – puxando lentamente da

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arma que tinha no bolso, colocando-a lateralmente
ao lado do corpo.
- Sim, o que vais fazer com essa arma? Tentar
matar-me? Por favor ambos sabemos que o teu
sangue ainda não está no chão porque eu não
quero, por isso não te armes em herói…
- Sei perfeitamente, mas também aprendi ao
longo dos anos que o descuido do inimigo tem de
ser o nosso acerto – puxando rapidamente da arma,
e disparando sem grande mira.
Três balas saíram do cano da pequena arma, todas
elas com um simples objetivo, acertar nem que
fosse na cabeça calva do capitão Sarevo, contudo
duas delas acertaram exatamente ao lado do alvo,
deixando dois pequenos buracos na parede ao lado
do corpo imóvel de Lorenzo, já a terceira acertou
no local onde poderia ter causado enorme estrago,
foi direitinha ao ombro esquerdo do comandante,
que ao sentir a bala não soltou nenhum som de dor
ou pânico, apenas engoliu em seco, e levou a mão
juntamente com o revolver ao sitio de onde agora
saia bastante sangue, como se nada se passasse
encostou-se a parede e com um estranho sorriso
disse:
- Tens melhor pontaria que o teu pai, ele nunca
teria pegado na arma em primeiro lugar, mas isso
não faz de ti uma fera, apenas um cachorrinho
assustado que fez o que o instinto lhe mandou…
- O cachorrinho pode morder outra vez –
apontando a pequena arma ao peito do capitão, as
mãos estavam completamente suadas, quase ao
ponto de deixarem a arma cair, o mesmo suor fazia

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a sua testa franzida brilhar, o ar frio da sala, ainda
fazia com que os seus pelos se irisassem mais, a
engolir em seco uma e outra vez, levantou-se e
colocou-se mesmo á frente da sua presa que o
olhava com um olhar calmo e sereno – queres que
ele morda outra vez, Traidor?
Este adjetivo provocou no comandante um ataque
de riso, que se parecia a de um demente, as altas
gargalhadas encheram a sala, fazendo com que
Marie acordasse do transe onde se encontrava, o
cadáver que se encontrava na sala com o olhar
preso no teto dava um ar ainda mais macabro a
sala, quando finalmente voltou a si, o comandante
tirou a mão da ferida, agarrou no cano da arma que
tinha apontada a si e encostou-o mesmo no centro
do peito, trocando o olhar perdido por um olhar
frio e quase tenebroso disse com um tom de voz
que encheu novamente a sala:
- Traidor? Eu? Tu achas que por me teres uma
arma apontada eu vou aceitar todas as ofensas? Eu
posso ser muita coisa, mas não sou nenhum traidor,
mas como é que tu podes perceber isso? Tu que
foste criado nas sombras de um fantoche que
sempre se vendeu por pouco, mal coloquei os
olhos em ti percebi que não eras quem querias
transparecer, o teu jeito de ser, esse teu olho falso,
conheço perfeitamente a tua forma de ser, vi-te a
dar os primeiros passos, filho do rene…
Antes que ele conseguisse terminar a frase, Romeu
puxa a pequena arma até ao seu pescoço e com um
movimento único e forte, aplica um golpe com o
cabo da mesma na cara do capitão, fazendo-o cair
redondo no chão, abriu-se no lábio de Sarevo um

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pequeno corte que fez correr um pequeno fio de
sangue, não conquistou muito tempo, mas para
Romeu foi o tempo suficiente, rapidamente
levantou Marie, colocando os seus braços a volta
do corpo dela, levantando-a em peso, e correndo
para a saída.
Os alarmes tinham começado a tocar novamente,
quando chegou a porta o seu corpo travou, teve a
tentação de voltar a olhar para aquele corpo vivo
deitado junto a parede, quando o fez viu-o a sentar-
se novamente, com um sorriso na cara, os dentes
que outrora eram brancos agora estavam
manchados de vermelho, o seu olhar negro
prendia-se no chão e no exato momento em que
Romeu se preparava para virar costas a voz fria
retomou a sala:
- Cresceste muito Pasolini, mas continuas a ser o
filho do renegado.
Sem dar resposta Romeu, olhou para Marie, agora
de olhos fechados e desapareceu na escuridão, só
desejava ainda chegar a tempo.
Junto a casa segura onde o resto do grupo de
encontrava todos aguardavam ansiosamente, Hugo
já tinha feito vários quilómetros só a andar dentro
da sala, todos os outros tinham tentado descansar,
mas ele por mais que quisesse não conseguia,
quando estivera na prisão tivera a possibilidade de
ler todos os diários deixados pelo Felipe e quanto
mais lia, mais admirado ficava com a capacidade
que ele tinha de planear tudo de forma tão
pormenorizada que nada lhe escapava, todos os
planos têm buracos, mas os dele parecia ser

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perfeitos, e quando começou a falhar arranjou uma
forma de terminar com a história de uma vez, de
limpar o seu fracasso, desde que tinha descoberto o
seu enigma, nenhum plano tinha saído da cabeça
de Hugo, ele sabia perfeitamente que não era um
génio, mas aquela noite batia todos os limites,
tinha mandado duas pessoas para a cova do lobo,
sem ter certezas que eles voltem, caso algum deles
acabasse magoado nunca se iria conseguir perdoar,
durante toda a noite tinha rodado um e outra vez o
anel que tinha recebido no mistério, a sua
respiração era audível e o medo crescia, ele tentava
pensar numa solução para o caso de eles não
voltarem até ao amanhecer, mas todas as que lhe
ocorriam só iriam colocar os restantes membros
em perigo, sentia-se perdido, uma vez mais.
Voltou-se a sentar ao pé da mesa central, com a
cabeça a abanar de um lado para o outro, só
conseguia imaginar Romeu com um tiro no peito a
sangrar até a morte, ou Marie a ser abusada pelos
soldados da Mano, por alguma razão esta ultima
imagem causou-lhe náuseas e uma raiva
incontrolável, os gritos mesmo que falsos de Marie
encheram-lhe a mente, cerrando os dentes, fechou
a mão e quando deu um murro na mesa…não fez
barulho algum, sentiu o impacto a ser parado por
algo bastante mais macio que o tampo de madeira,
quando levou o seu olhar a mesa viu uma mão bem
maior que parar o impacto, ao seu lado Lazaro,
com a cara fechada olhava para o teto, quando
soltou todo o ar que tinha nos seus pulmões…
- O que se passa franganote?

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- Nada, simplesmente ainda tenho dúvidas se a
solução de eles irem sozinhos foi a melhor…
- Não foi a melhor de certeza…,mas foi a única
possível, e tu sabes disso, mandaste as pessoas com
melhores capacidades para esta missão, ninguém
no grupo é tao inteligente como o Romeu, e
ninguém conhece melhor a Mano que a Marie, era
a única solução…
- Aprendi que nunca há apenas uma solução…
- Certo…,mas também já devias ter aprendido
que as vezes as melhores soluções exigem
sacrifícios e tenho a certeza quando digo que
qualquer um neste grupo daria a vida por ti, porque
tu farias o mesmo por nós!
- Mas a função de um líder não é evitar mortes?
- Talvez numa utopia fosse, mas nenhuma
missão se consegue sem perdas, a função de um
líder e manter o grupo unido e faze-lo perceber que
a morte é um preço extremamente razoável a pagar
pelo motivo final, que a nossa morte pode ser
fulcral para a mudança, o líder é aquele que não
desiste quando vê um companheiro morrer mas
sim usa a morte dele como combustível para
continuar, o Felipe era um líder nato e percebia que
a morte era apenas um meio para atingir um fim, tu
também serás um grande líder, mas tens de
aprender que todas as tuas ações daqui para a
frente podem e vão causar mortes, tu não iras para
o inferno por causa disso, tu só vais para o inferno
se te esqueceres de quem és e pelo que estas a
lutar, o Felipe acreditou em ti, nós acreditamos em
ti, está na hora de começares a fazer o mesmo.

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Levantando-se, colocou as mãos na zona final das
costas e alongando-se fez com que se fizesse ouvir
um grande estalo, tinha os ossos agora colocados
no sitio, começou também a estalar os dedos e o
pescoço, as camas onde eles estavam deitados
eram tudo menos confortáveis, o seu olhar passou
por momentos por uma janela tapada com paletes,
embora não se conseguisse ver nada de fora para
dentro de dentro para fora conseguisse ver uma
quantidade de luzes fora do normal, cerrando os
olhos aproximou-se da janela para conseguir ver
melhor, mas decerto que não esperava encontrar
uma visão tão perigosa, a ferida na perna ainda lhe
doía, talvez por força psicológica a dor começou a
aumentar, sentiu o sangue a correr mais depressa,
os peles a ficarem em pé e sentiu algo que já não
sentia á muito tempo…medo…sentiu as suas mãos
a tremer, tentou falar, mas as palavras ficaram
presas na garganta, tentou virar-se mas os seus
músculos não lhe respondiam.
Á porta da casa segura, estavam colocados,
dispostos em duas filas, duas dezenas de soldados
da Mano, os da frente colocados com um dos
joelhos apoiados no chão e os restantes de pé,
todos equipados com metralhadoras
semiautomáticas, para alem das armas de
recarregamento rápido, possuíam ainda duas armas
de mão, nove milímetros e duas navalhas, vestidos
com as roupas negras, erguendo bem alto uma
bandeira com o símbolo da Mano, a cobra prateada
enchia a rua naquela noite.
Todos colocados em posição aguardavam
simplesmente a chegada de um dos seus

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superiores, o terceiro homem na hierarquia
desesperava para poder dar a ordem e começar a
chacina, olhava para as janelas a espera de
qualquer movimento que lhe desse uma razão
plausível para passar por cima dos seus superiores,
mas o que via ainda o irritava mais, porque via
exatamente …nada, as janelas estavam de tal
forma bem protegidas que não se conseguia ver
nada…bem quase nada, quando Lázaro se virou
para avisar os seus companheiros a sua
“descoberta”, o seu enorme corpo não passou
despercebido, com um movimento rápido, o jovem
comandante puxou da sua pequena revolver, muito
parecida com a do seu superior Sarevo, e disparou
a matar, aquela ação fez com que todos os soldados
presentes tremessem de surpresa, aquilo era contra
todos os regulamentos, algumas vozes corajosas
começaram a falar entre si, mas baixinho para não
correrem o risco de sofrer nenhuma reprimenda.
A noite estava fria, um doce vento fazia abanar as
pequenas ervas que se elevavam do chão, as
nuvens tapavam belamente as estrelas, algumas
pessoas arriscavam a dizer que iria chover, os
cheiros do dia tinham desaparecido, no seu lugar
não apareciam cheiros melhores, cheiro a urina e
suor enchiam agora as ruas, até o mais pomposo
dos homens teria a tentação de soltar uma palavra
menos bonita a cerca daquelas ruas…
Foi com este plano de fundo que o comandante das
forças de ataque da Mano deu a ordem mais
corajosa que alguma vez podia ter dado:
- Homens, apontar e disparar uma salva contra a
casa dos infiéis, eles já sabem que nós estamos

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aqui, não os podemos deixar escapar, assumo toda
a responsabilidade de qualquer consequência
negativa que possa surgir desta vossa ação.
Olhares foram trocados entre todos, as emoções
estavam ao rubro, muitos tremiam de medo do que
poderia acontecer, outros queriam saltar de alegria,
tinham sido treinados toda a vida para aquele
momento, a vida de um soldado da base da
pirâmide não tinha nada de emocionante,
principalmente depois da grande revolta, tinham
pequenas missões de patrulha junto às suas sedes,
mas a maior parte do tempo era passado dentro das
mesmas, a organizar livros, a limpar as divisões e a
falar e a jogar entre si, missões de alto nível não
eram atribuídas, até porque não existiam para ser
atribuídas. Aquele era o momento de gloria que
todos desejavam, entre aquelas fileiras estavam
ainda algumas crianças que não tinham visto nada
da vida, jovens de dezassete e dezoito anos, que
nunca tinham conhecido nenhum outro país, não
tinham conhecido a sensação de um beijo, e já mal
se lembravam do que era um abraço, não sabiam o
que era a neve, nem o que era o mar, eram pessoas
transformadas em robôs que apenas sabiam o que
era cumprir ordens, e o terror do que acontecia
caso não o fizessem.
Com sorrisos a encher as suas faces começaram a
disparar, uma enorme quantidade de tiros saiu em
direção da velha casa segura, o céu negro da noite
foi iluminado durante vários minutos.
Dentro da casa, após o primeiro disparo feito pelo
revólver do encarregado, jaziam dois corpos caídos
no chão, Lázaro por baixo e Tiago em cima dele,

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pequenos pingos de sangue pintavam o chão ao
lado deles. Não chegavam para fazer uma poça,
mas pareciam vir de algum ferimento de gravidade
média-alta. Ainda a recuperar da queda Lázaro,
abrindo os olhos, vê a cabeça de Tiago rodada para
a porta, mal os seus olhos se cruzara, Tiago
levanta-se rapidamente, ignorando o ferimento que
tinha na zona abdominal, dá um empurrão a Hugo
que ainda estava a processar o que tinha acabado
de acontecer, fazendo-o cair do banco onde estava
sentado, e com toda a força que lhe restava vira a
mesa de madeira maciça, fazendo os livros caírem
todos para o meio do chão, com uma voz
imperativa expõe um grito que se fez ouvir em
toda a casa:
- Todos para detrás da mesa, ou procurem outro
esconderijo, a chuva vai começar!
Mal a sua voz se extinguiu, o inferno desabou
sobre eles, uma chuva de tiros começou a
atravessar a casa, as ripas de madeira que
protegiam as janelas ainda aguentaram muitos
deles, mas rapidamente a sua resistência foi
quebrada, os tiros perfuravam tudo o que
apanhavam pelo seu caminho, e enorme mesa que
agora servia de proteção para três dos presentes,
parou todas as balas que nela embateram, Tiago
tentava a todo o custo fazer o sangue estagnar,
Lázaro tentava para olhar para perceber em que
estado estavam os restantes, mas sempre que
tentava olhar a sua cabeça sentia uma bala a fazer
vento junto a ao seu curto cabelo. As balas
continuavam a atravessar tudo o que encontravam,
vários copos foram estilhaçados, o som de vidro a

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partir-se era acompanhado pelo som dos disparos
que pareciam não cessar, os que não encontraram
proteção na mesa tentaram-se proteger da melhor
forma possível, Ariana de forma inteligente
encostou-se a uma das fundições da casa, mesmo
ao lado das janelas, várias balas passaram a raspar
no braço esquerdo, duas delas ainda deixaram o ar
da sua graça na sua pele fina, controlando os gritos
para não dar ainda mais força aos atiradores, só se
questionou se aquilo significava que a missão de
Marie e Romeu tinha falhado…se o sangue deles já
estava a pintar o chão da “fossa” da Mano, tentou
afastar estes pensamentos negros da sua mente
nublada, afinal de contas podiam estar apenas a ser
feitos prisioneiros e ainda não mortos, ainda havia
tempo para os salvar, enquanto Ariana tentava
manter a racionalidade e a calma, Sam tinha
perdido completamente a postura de engatatão e
homem poderoso, parecendo apenas uma criança
abandonada pelos pais, chorou e gritou mais alto
do que alguns tiros, pedindo para que aquilo
parasse, brandando a todos os deuses o porquê de
ter aceitado aquele maldito convite e profanando a
sala com inúmeros palavrões, Ariana por mais do
que uma vez olhou em seu redor para ver se os
tiros não tinham soltado nenhuma pedra que ela lhe
pudesse atirar a cabeça para o calar, quanto mais se
grita e medo se mostra em situações destas mais
força os atiradores ganham, o medo é o maior
combustível para os predadores, costuma-se
ensinar aos mais novos que têm medo de cães para
quando estão face a face com um para não mostrar
medo, isto acontece porque quanto mais indefeso
alguém se mostra mais vontade o predador tem de

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atacar porque não vai encontrar qualquer desafio,
quando temos medo temos de mostrar coragem
senão estamos vinte mil passos mais perto da
morte do que deveríamos.
Uma sexta entidade fez-se sentir na sala, Rubi,
encostada a estrutura onde devia estar a porta que
daria para o corredor, rapidamente procurou o
olhar de Tiago que naquele momento tinha outras
preocupações, estavam totalmente encurralados,
não tinham como sair, e ninguém que pudesse
ajudar tinha como entrar, estavam numa total
embalagem de sardinhas, e tudo piorou quando a
voz de uma criança se fez ouvir. Juan tinha
acordado com os disparos e estava a movimentar-
se rapidamente pelo corredor, antes que
conseguisse sequer pensar nas possíveis
consequências atirou-se para a frente da pequena
criança que entrava na sala, usando o seu corpo
para proteger o pequeno ser, sentiu duas balas
atravessarem o seu corpo, uma rasgou-lhe
completamente o gémeo da perna direita e outra
entrou no seu ombro direito mesmo por cima da
omoplata, sabia perfeitamente que dificilmente iria
se salvar de uma situação daquelas, mas quando
olhou para baixo e encontrou os olhos perdidos
daquela criança que tinha prometido proteger, e
pela qual mesmo sem querer tinha desenvolvido
um estranho laço, sentiu que se morresse, tinha
dado a sua vida por algo realmente importante,
começou a sentir os seus músculos a desfalecer e a
sua vista a ficar turva, quando sentiu um terceiro
corpo a empurra-lo para fora do campo de tiro,
Rubi tinha-se jogado contra ele para o tirar de
cena, o seu olhar mostrava profunda preocupação,

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as suas doces mãos percorreram a face dele, que
começava a ficar fria e a perder a sua cor. Ariana
do outro lado da sala tinha visto toda aquela cena e
num gesto irracional também ele jogou-se por
entre os tiros, protegendo-se numa fase
intermediaria na mesa, juntamente com o
preocupado Lázaro e o perdido Hugo, quando
estava a ganhar coragem para atravessar o rio de
tiros novamente, um dos tiros acertou em cheio no
candeeiro que estava pendurado no teto fazendo-o
quebrar-se por completo, fazendo os vidros caírem
em cima deles, deixando apenas um pedaço de fio
a baloiçar agarrado ao teto que já tinha manchas
pretas da humidade e sujidade.
Os vidros fizeram com que todos se protegessem
por instinto, quando levantaram a cabeça…os tiros
tinham parado abruptamente.
O silêncio que se seguiu foi ainda mais assustador
do que o barulho dos tiros que o tinham
antecedido, sentia-se que algo ainda pior se estava
a aproximar, o barulho antes do susto num filme de
terror é sempre um longo e profundo silêncio.
Mas Ariana não estava preocupada com isso,
avançou sem medo para o lado de Tiago,
ajoelhando-se ao seu lado, deixando o seu longo
cabelo loiro cair-lhe para a frente da face, usando
as costas da mão esquerda para o afastar todo para
um lado, deixando a sua face lateral direita
completamente a mostra, Tiago num gesto de dor,
agarrou-lhe a mão e trocaram um sorriso
carinhoso, quando estamos no inferno o amor é a
única coisa que nos pode salvar, ou será ele

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também parte do inferno, ainda hoje e difícil para
mim decidir isso…
Mas por que motivo pararam os tiros? Vamos
voltar para fora da casa para perceber.
Um homem colocara-se a frente do pelotão de
soldados, os que se tinham apercebido da sua
presença tinham parado no preciso momento em
que ele tinha entrado na rua, os que se
encontravam em transe de fogo, os que sentiam os
tiros a sair das suas espingardas como sentiram o
próprio batimento do coração, só pararam quando
ele se colocou diretamente na linha de fogo, muitas
balas ainda fizeram o seu cabelo esvoaçar, quando
todos tinham parado, ele olhou por cima do ombro
para a casa, agora completa de buracos, as janelas
eram completamente transparentes, ainda viu o
corpo a tremer de Sam a fugir para detrás da mesa,
viu o caos que aqueles disparos sem alvo tinham
causado, respirando fundo, endireitou a farda
recém-vestida e sacudiu um bocadinho de cotão
que estava presente nos seus ombros e com uma
voz uníssona e ausente de sentimento questionou:
- Quem foi o inergume que deu a ordem para se
começar a disparar sem ordem?
O capitão de serviço chegou-se á frente orgulhoso
do seu feito, tinha a certeza que ia ser
recompensado, colocou-se mesmo a frente do seu
líder e fazendo sinal de continência, com um
enorme sorriso na face.
Alejandro respondeu-lhe com um sorriso de igual
tamanho, colocando-lhe a mão no ombro e

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aproximando a sua face da dele, disse-lhe num tom
baixinho:
- Da próxima vez que tomares uma decisão na
qual eu não participe, terás o teu nome gravado
numa lápide antes do amanhecer do dia seguinte.
Afastando-se rapidamente, mudou o sorriso para
uma cara fechada, fechou o punho e num
movimento único acertou no maxilar do seu
subordinado, fazendo-o cair redondo no chão a
sangrar por causa do lábio rebentado, fazendo
estalar o punho e os dedos, afastou-se e de costas
viradas para os restantes soldados que começaram
a tremer com medo do que lhes poderia acontecer
disse, agora em voz alta:
- Quem segue um gatinho dura meia dúzia de
dias numa cidade, mas nem uma hora na selva,
quem segue um leão sobrevive em qualquer lugar,
e meus caros, já há poucas cidades, mas cada vez
há mais selvas, este pobre coitado é um gatinho
que se vê ao espelho como um poderoso leão, mas
quando abre a boca sai um pequenino “miau”, eu
sou o líder do bando, eu sou o leão líder, vocês
seguiram o miar, está na hora de seguirem o
verdadeiro rugido, vão buscar gasolina e placas de
madeira, está na hora de um churrasco.
Os soldados começaram a movimentar-se como
pequenas formigas, uns foram a “fossa” buscar os
depósitos de gasolina, outros foram procurar tudo o
que era de madeira, por ordens diretas do líder em
comando, começaram a colocar a madeira junto as
janelas e a porta, regaram-nas com gasolina e
aguardavam.

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Alejandro acendeu um cigarro, inspirou, travou e
deixou sair o fumo, uma doce morninha começou a
pingar-lhe a pele, começando a aumentar de
intensidade, quando deu por si tinha já o cabelo a
pingar, vários relâmpagos iluminavam o céu, os
trovões faziam estremecer o pequeno Juan que não
percebia quase nada do que se passava, que apesar
dos seus doze anos, parecia ter passado agora os
seis, nunca conhecera nada senão aquelas paredes,
Rubi sempre o protegera de tudo e de todos, e
quando costumava trovejar cantava-lhe uma
canção para o acalmar, mas naquele momento
estava demasiado irritada e preocupada para sequer
olhar para ele, tinha os seus olhos colados em
Ariana e Tiago, se o odio criasse fogo, decerto que
naquele momento os olhos dela ter-se-iam tornado
lança-chamas.
Quando o cigarro chegou ao fim, Alejandro,
respirou fundo, olhou para o céu e deixou que as
gotas da chuva lhe refrescassem a face, por uma
última vez viu a face de Marie, as lágrimas que lhe
escorreram naquele momento passaram
despercebidas, chorar a chuva é a melhor forma de
chorar, principalmente para aqueles que não
gostam de demonstrar o seu lado humano.
Olhando de volta para o seu pelotão disse:
- Peguem fogo a casa, preparem-se para
possíveis tentativas de fuga pela porta, tudo o que
se mexer… matem!
Os soldados apenas cumpriram as ordens que
tinham recebido, pegando em pequenos isqueiros
começaram a acender toda a madeira que tinha

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sido colocada em volta da casa, apesar da chuva
torrencial o fogo pegou facilmente, as labaredas
foram tomando forma vagarosamente, mas em
menos de dez minutos as chamas já se
encontravam ao nível das janelas, e já as
começavam a consumir.
Dentro da casa, o perigo das chamas colocava
todos entre a espada e a parede, Tiago fora de
combate não conseguiria pensar em nada, Ariana
podia ser extremamente estratégica, mas naquele
momento só desejava que Felipe ali estivesse, ele
teria algum plano para os salvar, Lázaro procurava
saídas em todo o lado, mas não havia nenhuma, a
não ser a porta, mas que ele tinha a certeza que
teria uma comitiva de boas-vindas nada simpática,
o seu olhar passou de relance por uma quantidade
de garrafões de água colocados ao lado da mesa,
totalmente ilesos como por milagre, com uma
indicação rápida disse a Sam para o ajudar, usaram
toda a água para manter as chamas fora de casa,
sem dar a entender aos soldados que as chamas não
estavam a avançar, talvez assim ganhassem tempo
para pensar noutra coisa.
Duas dezenas de minutos se passaram, sem
quaisquer gritos, e a paciência de Alejandro
esfumou-se, chegando ao pé do seu segundo
imediato que ainda tinha um enorme corte no lábio
deu-lhe ordem para que pegassem em madeira a
arder e a lançassem para o telhado, bem como para
dentro de casa, queria ouvir gritos e sentir o cheiro
a pele queimada o mais rapidamente possível.
Novamente as ordens foram rapidamente
atendidas, todos os soldados começaram a juntar

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pequenos conjuntos de madeira e atirá-los com
toda a violência possível para dentro da casa e para
o telhado, a última jogada estava feita, não havia
forma deles fugirem dali.
Um dos pequenos conjuntos de madeira, bateu na
parede mesmo á frente de Lázaro e dos restantes,
agora sim, o inferno estava a cair sobre eles.
Rapidamente o telhado começou a ceder perante as
chamas, pequenas fagulhas começaram a pintar o
ar, esvoaçavam para as roupas dos soldados que
olhavam para as chamas com terror, mas mesmo
assim soltando pequenos sorrisos, a morte pode ser
bela e tenebrosa ao mesmo tempo. O céu que se
apresentava negro e fechada agora era pintado de
vermelho das chamas e de cinzento do fumo que se
fazia elevar a vários metros de altura, toda a cidade
de levantou para assistir aquele circo de horrores,
várias senhoras já de alguma idade juntaram-se ao
longe e com uma voz baixinha diziam “Es un
monstruo”, o olhar frio de Alej cruzou-se com o
delas algumas vez, sempre que o fez, as á pequenas
senhoras tapavam-se com os seus xailes, quase
sempre negros, mas sem nunca esquecer as cores
da sua amada pátria, os bombeiros chegaram e
foram mandados embora algumas vezes, ninguém
entrava no perímetro, os homens comentavam, as
crianças choravam e Alej esperava, o ódio corria-
lhe nas veias em maior quantidade do que o
próprio sangue, aqueles malditos tinham-lhe tirado
uma das razões do seu viver, ele tinha de lhes tirar
a vida, estava certo que isso era o correto a fazer.
Num último ato de puro odio, vestiu uma capa
negra sobre a sua farda e mandou um dos seus

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soldados partir uma das janelas, utilizando uma
frase simples e concreta.
- Eu quero vê-los a arder.
A chuva não parecia querer dar tréguas, algumas
dezenas de chapéus-de-chuva abriram-se atrás do
jovem comandante, que os ignorou
completamente, colocou-se mesmo a frente da
janele de onde emanavam algumas labaredas, estas
bastante perto da sua cara, mas nem calor, nem frio
o fariam sair dali, cruzando os braços esperou que
os gritos de agonia começassem.
O fumo dentro da casa tinha-se tornado
insuportável, todos os presentes tinham começado
a tossir de forma descontrolada, Lázaro tinha
começado a sentira poeira a forçar os seus olhos a
estar fechados, conseguia ouvir o pequeno Juan,
com a sua voz cada vez mais fraca a pedir ajuda a
Rubi, que por sua vez mantinha-se em total
silêncio, apenas com os seus braços á volta do seu
pescoço, todos estavam preparados para morrer.
Embora Lázaro não tencionasse morrer ali, quanto
mais pensava, apenas encontrava formas diferentes
de morrer, se não morresse pelas chamas,
certamente que morreria pelos tiros dos soldados
que se encontravam á porta, se não morresse pelos
tiros, morreria sem oxigénio, mesmo que pudesse
escolher não sabia muito bem qual delas seria a
forma menos horrível de morrer. Tinha chegado ao
fim da linha, dentro de poucos minutos saberia se
tinha feito o suficiente para remediar os seus
pecados, olhou para o indefeso Hugo e sentiu-se
ainda mais pequeno do que ele, afinal de contas

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que tipo de amigo era ele que não conseguia ajudar
os seus amigos quando eles mais precisavam…
Naquele momento as mentes de todos os que
estavam dentro da casa, encontraram-se num ponto
comum, numa pessoa, em alguém que iriam
encontrar dentro em breve, alguém que tinham
deixado mal, Felipe…ele saberia como sair dali,
ele saberia como lidar com todo aquele medo que
se fazia sentir no ar…ele saberia…
A estrutura começou a ceder, as vigas começaram
a ranger, alguns pedaços do telhado começaram a
cair, um deles caiu mesmo em cima da poderosa
mesa de madeira, tornando-a em milhares de
pequenos pedaços de madeira, o poderoso brasão
que estava a entrada já estava consumido pelas
chamas, a pedra iria ficar de pé, mas aquela
imagem ficaria com as marcas daquele dia.
Alej começava a virar costas, tinha cumprido a sua
missão, os infiéis iriam arder nos fogos terrenos
antes de enfrentarem os fogos do inferno, um
estranho sorriso encheu-lhe a face, agora só tinha
de encontrar Marie e restitui-lhe a saúde mental, e
tudo estaria ótimo, iriam governar a Mano, da
melhor forma possível, era um sonho que estava
prestes a tornar-se realidade.
Mas como todos sabemos apenas os tolos ainda
sonham…porque no final de contas, apenas os
pesadelos se tornam reais.
De dentro da casa ouviu-se um barulho parecido
com uma porta bastante velha a abrir, pareciam
sistemas de molas desgastados pelo tempo, numa
das paredes da base interior da casa, mesmo ao

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lado de Tiago e de Ariana, abriu-se uma porta, de
lá de dentro saíram duas silhuetas, Marie e Romeu
tinham chegado mesmo em cima da hora, com os
rostos cheios de pó, as roupas completamente
rasgadas e a respiração ofegante, entraram na casa
como puderam.
Os olhos daquelas três almas que ainda
conseguiam olhar para eles encheram-se de
felicidade, Ariana se conseguisse tinha saltado para
o colo de Marie, mas não tinha nem força nem
tempo para isso.
Romeu começou de imediato a dar ordens, indicou
a Ariana e a Rubi que entrassem para o túnel e que
o seguissem até ao fim, não fazia a mínima ideia
onde ele iria terminar, porque pelo caminho tinham
perdido os mapas, mas decerto que era melhor do
aquele inferno terreno, de seguida pegou em Tiago
e colocou as costas, sem sequer esperar pelos
restantes seguiu-as, o pequeno Juan seguia de mão
dada com a sua protetora, o caminho do túnel era
escuro e quanto mais se afastavam do fogo menos
viam, mas dentro de poucos minutos os seus olhos
habituaram-se á escuridão e fizeram com que eles
conseguissem avançar mais depressa.
Marie, avançou pelas chamas que se faziam
atravessar no seu caminho, gritando contra o
barulho que o próprio incendio provocava, acordou
todos do seu transe de aceitação da morte, o
primeiro a fugir pelo meio das chamas foi Sam,
sem sequer olhar, correu e atirou-se para dentro do
túnel, ele sabia que todos os restantes se iriam
salvar também, pelo menos queria acreditar nisso.

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Hugo e Marie seguiram-no, sem se aperceberem
seguiam de mãos dadas, correram pelas chamas,
estavam prestes a atravessar quando por ironia,
conseguiram tropeçar um no outro, caíram
redondos no chão apenas a alguns metros da
entrada, a casa estava a dar as ultimas, a ripa que
fazia a estrutura da suposta porta presente a separar
o corredor e a sala, tinha-se desprendido e ia cair
mesmo em cima deles, o grande pedaço de madeira
a arder ia a viajar pelo ar, Hugo num ato de
cavalheirismo inútil colocou-se por cima da Marie
para sentir o impacto primeiro, a grande ripa,
chocou com brutalidade contra o chão, quebrando
completamente a madeira que ainda se tinha
aguentado sem ser consumida pelo fogo, abrindo
um buraco que agora sim separava o corredor da
sala, do lado do corredor Marie e Hugo estavam a
olhar para a sala, mesmo antes do embate da ripa,
tinham sentido um forte empurrão dado por
alguma coisa que os tinha afastado, os seus olhos
encontraram Lázaro ainda com os joelhos apoiados
no chão, com os olhos cerrados e com as palmas da
mãos viradas para eles, abrindo os olhos ele soltou
um grande sorriso, e fez sinal para que eles se
afastassem, ia tentar saltar por cima do buraco, iam
todos conseguir salvar-se.
Bem, este era o plano, mas Alej não tencionava
deixar isso acontecer, tinha assistido a toda aquela
cena, e o ódio estava a fervelhar novamente, já
tinha perdido mais de metade das suas presas,
aquelas não ia deixar escapar, ordenou a três
homens que entrassem dentro da casa, sem olhar
ao perigo que os estava a sujeitar não quis saber
das suas lamurias, ameaçando mesmo que se o

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fogo da casa não os matasse, as balas da sua arma
o fariam, colocando a sua vida em risco, os três
rapazes avançaram a tremer contra a janela, usando
o ombro e as pernas como armas de arremesso para
partir o que restava das janelas, lá dentro, um foi
de imediato abatido por um pedaço da casa que lhe
caiu em cima, ficando completamente subterrado,
os restantes avançaram contra a sua vitima, de
armas em punhos começaram a disparar, feliz ou
infelizmente a sua visão estava turva pela
quantidade de fumo que estava dentro da casa,
todos os tiros falharam o alvo, mas sem querer iam
acertando noutro, Marie e Hugo ainda viram
algumas balas ficaram na parede ao lado deles.
Hugo ainda teve o impulso de tentar passar pelo
buraco, mas as mãos de Marie detiveram-no.
Lázaro, naquele momento teve a noção que não
poderiam sair dali todos vivos, ou se podiam a
probabilidade de acontecer era extremamente
reduzida, aqueles dois tinham de sobreviver, disso
ele tinha a certeza, por isso respirou fundo e
entendeu aquela situação como a derradeira
oportunidade de fazer algo bom na vida.
Os seus olhos já se tinham habituado ao fumo, pelo
menos mais do que os olhos dos soldados, e ainda
conhecia melhor a casa do que eles, avançando em
direção aos predadores, aproveitou as altas
labaredas e o fumo denso para se colocar atrás
deles, num movimento rápido rodou o pescoço a
um, fazendo-o estalar, colocando o jovem soldado
inanimado no chão, o outro soldado que também
não deveria passar dos vinte anos, curto cabelo
loiro, olhos verdes, um sorriso totalmente alinhado,

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nunca tinha saído de Salamanca, adorava sentar-se
a olhar para o canal que circundava a cidade,
assustado ao ver um corpo cair-lhe aos pés,
disparou fechando os olhos, sem fazer pontaria
para lado absolutamente nenhum, a morte causou-
lhe náuseas e naquele momento só desejava voltar
para os braços da sua mãe, de onde tinha sido
arrancado com apenas cinco anos, ainda lembrava
o calor dos abraços da sua mãe, e as brincadeiras
com o seu pai, lembrava-se das musicas que ouvia
antes de dormir, tudo isso era memorias distantes,
agora só conseguia ouvir os estalidos das chamas,
o eclodir dos disparos e a madeira a cair a sua
volta, mas mesmo sem fazer pontaria acertou em
cheio na coxa ferida de Lázaro, que controlando a
dor, fechou a mão em punho fechado e acertou no
maxilar do rapaz.
Os batedores estavam fora de combate, Alejandro
tinha visto tudo aquilo de longe, estando fora da
casa a sua visão era clara, pegando na sua pequena
arma de bolso, mirou diretamente para a cabeça de
Hugo, tinha confiança na sua pontaria, tantos anos
de treino tinham dado os seus frutos, não falhava
um tiro desde dos quinze anos de idade, quando
ainda estava no treinamento, por cada tiro falhado
levava uma punição e não eram propriamente
meigas… olhando para o lado, premiu o gatilho,
quando voltou a desviar o olhar esperava ver uma
mancha vermelha contra a parede, mas a ausência
de gritos confundiu-o, quando confirmou se
realmente poderia ter falhado, viu sim sangue, mas
não na parede, em vez disso, sangue escorria pelo
largo peito de Lázaro, tinha-se colocado á frente da

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bala, no peitoral direito escorria um fino fio de
sangue.
Respirando fundo, uma e outra vez, Lázaro, olhou
para o seu amigo uma última vez, com um olhar
fraterno de puro companheirismo e deixem-me
arriscar a palavra amor, soltou uma enorme
gargalhada antes de retomar a sua cara fechada e
séria, na sua mente correram todas as memórias
desde que tinha conhecido aquele traste, lembrou-
se de Sam também, de todas as barbaridades que
ele dizia, das macacadas que propositadamente ou
não tanta vez quase lhe arrancaram um sorriso,
depois lembrou-se um bocadinho de todo o grupo,
tinham estado pouco tempo juntos, mas já
conseguia tolerar minimamente todos, desejou com
todas as suas forças que conseguissem terminar a
missão sem mais ninguém perder a vida, com as
forças que lhe restavam disse a Hugo e Marie
“vão! Eu vou atrasá-los o máximo que conseguir!”.
Hugo lutou e lutou contra os braços de Marie,
gritando pelo eu amigo que antes de se virar
totalmente ainda teve tempo de gritar por cima das
labaredas que naquele momento pareciam começar
a abrandar e a perder a luta contra a chuva
torrencial:
- Meu irmão… deste-me a oportunidade de
morrer com honra e de limpar o meu passado,
devo-te isso, sê feliz e lembra-te do que te disse,
tens de ser um líder aconteça o que acontecer, não
gosto nadinha de ti! Ah e uma última coisa, não
esperes a vida toda pelo amor quando o tens
mesmo á frente dos teus olhos! Agora vai!

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A ultima imagem que tem o seu amigo é de ele ser
arrastado por Marie dali para fora, avançando a
passos largos em direção a janela, deixou que o
fogo o começasse a consumir também, por cada
passo que dava lembrava-se de um capitulo da sua
vida, lembrava-se do seu pai, da sua mãe, do
sangue que tinha nas mãos, mas nada disso
interessava agora, o seu sacrifício ia permitir que
os heróis da história que se estava a escrever
sobrevivessem, sonhava vê-los juntos, num altar a
fazer juras de amor que poderiam durar para
sempre como poderiam acabar ao fim de dois
meses, ver os seus filhos a crescer a contar-lhes
como conseguiram derrotar os maus da fita…bem
isto se calhar era demais…uma pequena lágrima
começou a correr pela face, seria mesmo possível
ele estar a chorar, mas não era de dor, apesar das
chamas que se lhe agarravam as pernas, mas sim
de alegria, finalmente sentia-se completo, sentia-se
realizado.
Novamente sentiu o corpo a ser perfurado por
várias balas, o seu olhar encontrou o cano da arma
de Alejandro, todas as balas tinham acertado o
corpo dele, mas nem isso o fez parar, continuava a
avançar como se nada se tivesse passado, as
chamas já lhe chegavam aos joelhos, e embora
sentisse os seus músculos a fracassar estava quase
a chegar á janela.
Alej, de forma a terminar com o seu sofrimento fez
um ultimo golpe, pegando numa bilha de gasolina,
atirou-a na direção de Lázaro, alguns centímetros
acima da cabeça dele, quando esta estava mesmo
por cima dele, com um disparo fez com que a

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gasolina caísse em cima dele, rapidamente o fogo
tomou todo o corpo de Lázaro, que agora que não
tinha ninguém perto dele, gritou, gritou com dor,
os seus gritos eram agonizantes, e fizeram-se ouvir
por toda a redondeza, primeiramente um grito
grave como a sua voz e depois um grito fino
quando a vida estava a abandonar o seu corpo, as
chamas consumiram tudo no seu corpo, primeiro as
roupas, depois a pele e depois começando a
queimar a carne, os órgãos começaram a fracassar
um a um, o corpo caiu como um tijolo e as chamas
mesmo depois dele morto continuaram a consumi-
lo, depois de algum tempo, o que restava da casa
caiu em cima do cadáver já sem vida, estava feita a
sua sepultura.
Quando as chamas se apagaram, Alejandro, para
confirmar a sua morte da sua presa, fez com que os
seus homens retirassem todo o entulho, o corpo
que encontrou estava irreconhecível, o outrora
forte e musculado Lázaro, jazia ali sem força nem
vigor algum, apenas um corpo, sem vida, sem
nada. Nem uma lápide recebeu, morreu da mesma
forma como nasceu, um desconhecido.
As ordens que se seguiram por parte de Alejandro
não podiam ter sido mais objetivas, procurar todos
os esgotos e possíveis saídas secretas, os restantes
não poderiam sair com vida de Salamanca. Já com
o capitão Sarejo ao seu lado procurou fechar o
cerco às suas presas, só tinha uma coisa em
mente…sangue.
Entregando a arma já sem balas a um mero
soldado, olhou para Sarejo e comentou com um
tom irónico:

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- Parece que não foi só a mim que eles deixaram
marcas – soltando um pequeno sorriso.
- Tem razão meu comandante, mas eles a mim
imobilizaram-se com poder de fogo, não chegou
umas palmadinhas para me deitar ao chão –
fazendo uma pequena vénia e afastando-se.
Quando já estava longe o suficiente para não ser
ouvido disse para si mesmo “raios partissem o
cachopo, um dia vai-me pagar esta insolência, ou
eu que não me chame Sarejo”.
Usando alguma da sua autoridade pediu com a
máxima urgência um mapa com toda a linha de
esgotos e todas as possíveis saídas de emergência
da cidade, aquele túnel não podia ser muito longo,
e tinha que sair ainda dentro da cidade, o cerco
tinha que ser apertado o mais rapidamente
possível…
Hugo continuava a avançar pelo túnel, com os
olhos cheios de lágrimas, ainda tinha a imagem de
Lázaro a caminhar em direção a morte certa para o
salvar, contendo um grito de dor que parecia
querer rebentar-lhe a garganta, apenas conseguia
ver a espaços o longo cabelo de Marie, o túnel
onde eles corriam, mesmo sem saberem onde ia
dar, era uma velha passagem secreta, construída
aquando a fundação da Mano de Dios original, o
tempo tinha corroído por completo o caminho, que
por passar grande parte dele por debaixo da terra,
era completamente húmido, criando mesmo alguns
pontos de musgo escorregadio ao longo da sua
extensão, mesmo estando longe dos restantes ainda
conseguiram ouvir a voz de Sam quando ele

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mesmo colocou um pé nestes pontos mais
escorregadios e levou o corpo de encontro ao
revestimento frio do chão, a única iluminação que
existia, extinguia-se no momento em que o túnel se
enterrava por debaixo da cidade, e mesmo antes
disso era quase nula, dada apenas por alguns
buracos na estrutura que permitiam entrar quer luz,
quer oxigénio.
Já quando o túnel descia para debaixo da estrutura
da cidade, o ar tornava-se rarefeito e a única luz
que se conseguia criar, era caso se acende-se um
dos muito archotes que estavam presos a parede,
mas ai entrava-se numa corrida contra o tempo, o
fogo alimenta-se de oxigénio e num local fechado
a entrada e fechado a saída, acender um lume é
colocar a vida num contrarrelógio frenético, por
este motivo, o grupo que neste momento procurava
sair daquela escuridão imensa, acendeu apenas um
pequeno isqueiro a cada dois membros.
E assim seguiam em direção ao desconhecido,
pareceu que tinham andado durante várias horas,
mas na realidade ao fim de apenas quarenta e cinco
minutos estavam no fim da linha.
O primeiro a encontrar o fim do túnel foi Sam,
quando chegou ao que pensava ser uma porta que
dava para uma praça ou uma rua escura, tentou
empurrar com todas as forças que tinha, mas não
foram suficientes.
Á sua frente erguia-se uma enorme porta de ferro
maciço, já com apontamentos de ferrugem, com o
enorme brasão da organização cravado e apesar de
tudo completamente percetível, de forma um

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bocadinho obvia aquela porta tinha sido lá
colocada de forma posterior a construção do túnel,
mas com uma precisão apenas ao nível dos
melhores artesãos, não seria deitada abaixo por
qualquer brutamontes, afinal de contas o objetivo
era que apenas os membros mais confiáveis
percorressem aqueles caminhos.
Com o passar dos minutos, todo o grupo se juntou
atrás da passagem bloqueada, rapidamente
tentaram abri-la com tudo o que ainda lhes restava,
pontapés, empurrões, murros, nada funcionou,
todos os homens do grupo tentaram juntar forças
para obrigar a porta a ceder, mas nem com toda a
sua força muscular a porta se mexeu, estavam
dispostos a voltar para trás e ou enfrentar a morte
ou tentar providenciar algum milagre, mas como
em tudo, a inteligência leva batida a força, Ariana
com a sua perspicácia notou que parecia existir um
anel de ferro em volta do brasão encrostado na
porta, com os seus finos braços tentou fazer com
que aquilo rodasse e para o espanto de todos o
enorme anel mexeu-se e conseguiu-se sentir um
bocadinho de ar pela mínima aresta que se abriu.
Agora sim, com a força colocada no sitio certo,
todos os homens conseguiram encontrar a saída
certa no meio daquela escuridão, por medo ou
apenas por fanfarronice, Sam colocou-se a frente
das operações, empurrando para o lado Tiago,
Romeu e mesmo Hugo, fazendo transparecer que
estava a ter imensa dificuldade, por algum motivo
as coisas que exigem mais força física são vistas
como mais heroicas que as restantes, ao fim de
quase dois minutos a fazer rodar o enorme anel de

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ferro, ouviu-se o barulho de desbloqueio total, com
uma aparência cansada (verdadeira ou não volto a
ressalvar), virou-se para trás e disse:
- Só espero que isto vá dar a algum sítio com
água, estou cheio de se. – Abrindo a porta e
sentindo o seu corpo a ser puxado por toda a força
da gravidade.
Aquela porta ia dar realmente a um sitio com
imensa água, ia dar ao canal que circunda a cidade,
de forma muito escondida estavam umas escadas
encrostadas na parede, mas devido ao ego enorme
Sam não as viu e caiu redondo dentro do canal,
enquanto caia ouviam-se uns gritos um tanto ou
quanto femininos, o enorme “splash” que se ouviu
quando o corpo chocou com a água foi seguido por
um silencio preocupante, todos tentaram ver se ele
estava bem ou mal, foi uma questão de segundos
que puxou novamente o corpo á superfície, que
uma vez mais reagiu de uma forma bastante
particular, ofegante e completamente despercebido
de onde estava, parecia que estava no meio do mar
perdido a imenso tempo, quando estava apenas
num pequeno canal a ligeiros segundos, Tiago não
conseguiu controlar a sua ironia e disse baixinho
mas suficientemente alto para que se conseguisse
ouvir:
- Já mataste a sede Sam? Ou ainda é preciso
mais água?
O riso tomou conta de todos, sorrisos amarelos
apareceram nas faces, mas com a velocidade que
apareceram também seguiram o caminho contrário.

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- Que engraçadinho que tu és, só estou
preocupado se o meu telemóvel funciona, estas
roupas já iam para o lixo e já, e já agora deixa-me
que te diga que as águas espanholas são bastante
quentinhas.
- Não queria dizer nada, mas acho que este canal
é cheio com as águas que vêm das casas de
banho…não sei se estas dentro só de água… -
disse ajeitando os óculos Romeu.
Sam mal ouviu estas palavras começou a nadar
rapidamente para a margem, para subir para a
estrada estavam colocadas umas pequenas pedras
no dique se sustentamento de terras, perfeitamente
alinhadas para colocar as mãos e os pés de forma a
ajudar a subida, como se tivessem sido lá
colocadas com esse exato propósito, quando Sam
alcançou o primeiro nível, fez-se ouvir a voz de
Ariana:
- Sam, tenta não chamar muito a atenção,
mantem-te com uma postura calma e serena.
- Sim porque um homem completamente
molhado e com pequenos cortes num braço é
completamente normal a esta hora da manhã –
comentou entredentes Rubi.
Ao fundo do túnel ouviu-se um enorme estrondo
causado pela corrente de ar que estava a entrar pela
porta aberta, mas o medo deturpa sempre os nossos
pensamentos, o que inicialmente pode ser apenas
uma folha a cair de uma arvore no inicio do
outono, conjugado com o medo pode-se tornar um
dos sete demónios regentes do inferno ou o centro
de uma doença incurável que vai causar uma morte

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dolorosa e inevitável, aquele barulho bastante
longe causou em todos uma sensação de vida ou de
morte, e um a um começaram a saltar em direção
ao canal, Rubi foi a única que saltou acompanhada,
levava agarrado a si Juan, de seguida um a um
saltaram em direção ao desconhecido e por esta
mesma ordem um a um iam saindo da água, Sam
ajudara o jovem Juan a sair, Rubi não tinha essa
capacidade, o ultimo a sair do corredor foi Romeu,
que numa tentativa de apagar o rasto, e com uma
agilidade bastante estranha conseguiu no mesmo
movimento em que saltou agarrar-se a enorme
porta de ferro fundido com pedra de forma a
conseguir fecha-la exatamente como ela estava,
deixando-se de seguida cair de costas em direção á
água.
Quando já estavam todos fora de água, Tiago falou
direcionado para Hugo:
- Vou ligar a um apoiante da nossa causa, para
ele nos enviar dois carros que nos levem até ao
aeroporto e um jato privado para nos levar para
onde nós quisermos ir…
- Sim e isso é exatamente onde?
- No enigma do Felipe, fala da “terra dos
gigantes de gelo”.
- Isso pode ser qualquer país nórdico, é uma dica
muito vasta….
- Eu e o Felipe temos amigos na Islândia, pode
ser que eles nos consigam ajudar…

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- Que seja, mas com uma condição não quero
nenhum jato privado, vamos num voou comercial.
- Porquê?
- Porque uma coisa que aprendi que o Felipe que
a forma mais eficaz de não ser visto é fazer tudo á
frente de toda a gente.
- Como quiseres, vou fazer a chamada e já volto.
- Antes de ires, tenho de vos pedir uma coisa –
uma terceira voz tinha entrado na conversa –
peçam um terceiro carro para mim, não consigo
continuar.
- Sam, o que se passa?
- Hugo, sabes bem que te adoro e iria contigo até
ao fim do mundo, mas isto é demais para mim, o
Lázaro morreu, nós salvamo-nos por um triz, eu
estive vários anos na prisão, demasiado tempo
fechado e quando saiu deparo-me logo com
organização secretas que atiram para matar,
enigmas para resolver de pessoas que eu nem
conheço, perdi um amigo e acredito que vou perder
muitos mais, eu tenho amor a minha vida e não
quero continuar a arriscar, quero assentar, arranjar
uma cachopa e ter filhos, fazer alguma coisa que
deixe marca e que não me custe a vida, desculpa
mas eu tenho de voltar para Portugal…
- Seu cobar,- Tiago foi interrompido por Hugo
com um gesto para ele se calar.
- Eu compreendo Sam, eu se pudesse faria a
mesma coisa, mas não vou permitir que as mortes
de dois dos meus melhores amigos sejam em vão,

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enquanto tiver sangue nas veias e oxigénio nos
pulmões vou lutar por aquilo que eles defendiam –
pousando a sua mão no ombro do amigo – mas eu
entendo-te, sê muito feliz meu irmão.
E despediram-se com um sentido abraço, quando já
estavam de costas voltadas, Hugo com um sorriso
na face disse:
- Sam, tenho um favor a pedir-te, leva a Rubi e o
menino para Portugal também, isto foi perigoso e
não acredito que se torne mais fácil daqui para a
frente, e não quero uma criança a correr estes
riscos.
- Mas o menino pode ir e eu ir com vocês! –
Intercalou Rubi.
- E correr o risco que o menino cresça sem mãe
e sem pai? Nunca na vida, vais com ele e não há
discussão.
Pela primeira vez Tiago viu em Hugo um líder,
algo que ambicionava desde o início e do qual já
tinha dúvidas se algum dia ia ver, via uma chama a
acender-se, que bem trabalhada podia muito bem
igualar a de Felipe, irónico que foi necessário
acontecer uma morte para se conseguir ter
esperança…
Passados poucos minutos os carros lá chegaram,
dois carros pretos, carros visivelmente em segunda
mão, nada parecidos aos carros políticos ou de
classe alta, eram apenas dois renault’s Clio pretos,
já com pinturas desgastadas, bancos sem forra e
com imensos barulhos de funcionamento.

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Rapidamente a divisão foi feita, no primeiro carro
seguiam, Tiago, Hugo, Marie, Ariana e Romeu e
no outro, Sam, Rubi e o pequeno Juan.
Não houve mais despedidas entre os dois amigos,
um olhar solitário levou-os a entrar nos carros sem
um “até um dia” final, afinal de contas dizer adeus
a um amigo dói mais do que arranjar um espinho
espetado na mão, a incerteza de voltar a ver um
ente querido e toda a responsabilidade de dizer em
meia dúzia de palavras o que algumas vezes,
demora uma vida inteira a demonstrar aterroriza
qualquer ser humano, pensar que é o ultimo toque,
que é o ultimo olhar, que é a ultima vez que se vai
ouvir aquela voz tão familiar, causa a todos
calafrios imensos, por isso fugimos sempre desta
“ultima” despedida mesmo quando sabemos que é
inevitável.
Rapidamente os dois carros seguiram caminhos
diferentes, o guiado por Tiago avançou em direção
ao Aeroporto de Albacete, apesar de desejarem
passar no meio da multidão, irem em direção á
capital espanhola podia ser abusar demasiado da
sorte, felizmente o contacto de Tiago em Portugal
tinha conseguido um voo para o final desse mesmo
dia, tinham que se despachar, não podiam perder o
voo.
Já dentro do carro, a divisão entre os bancos foi
feita da seguinte forma, Tiago a conduzir, Ariana
colocada ao seu lado no banco da frente, no meio
nos bancos de trás Marie, ao seu lado direito Hugo,
e á sua esquerda Romeu.

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Hugo ainda teve o instinto de olhar para trás
enquanto Sam afastava o carro e se perdia no
horizonte, soltou um suspiro normal nas situações
em que se percebe que não há volta a dar, o seu
olhar tinha-se tornado distante e apesar de na sua
mente estarem imensas coisas, fazia transparecer
que apenas se preocupava com terminar a missão
que tinha recebido custasse, o que custasse.
Marie com enorme carinho no olhar e na sua doce
voz, tentou agarrar na mão dele, as mãos dela
ainda tinha marcas do que tinha sido a noite
anterior, o falhanço também ainda lhe fazia o
sangue gelar, mas o importante para ela naquele
momento, por alguma razão era tentar confortar o
rapaz que tinha ao seu lado, apesar de ter o dobro
da sua idade parecia tão perto e igual a si como um
jovem de vinte anos, os cabelos começavam a
crescer-lhe, a barba a preencher o rosto, apenas o
azul dos seus olhos se mantinha igual ao primeiro
dia que o tinha visto.
Apesar da sua tentativa de contacto, pela primeira
vez viu repulsa no olhar dele que afastou por
completo as suas mãos da dela, e á pergunta
carinhosa “como estás?”, apenas respondeu com
frieza, “melhor que muitos, estou vivo”
O caminho até ao aeroporto foi silencioso, apenas
se ouvia uma música espanhola que passava na
rádio e os barulhos do motor, mas vozes humanas
nenhuma se fez ouvir até chegarem ao destino.
O jovem Alejandro neste meio-tempo tinha
alargado as buscas para toda a cidade de
Salamanca, se tivesse homens tinha alargado para

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toda a província, passadas algumas horas, tinha
recebido finalmente noticias, alguns dos seus
homens tinham encontrado pegadas e marcas de
pneus numa zona não muito longe de onde tinha
acontecido o incendio, eles tinham descoberto
também o túnel por onde os fugitivos tinham
escapado, aquela noticia encheu o seu olhar de
brilho, a caça recomeçara, eles não tinham como ir
muito longe sem serem encontrados, nenhum carro
tinha capacidade para levar tanta gente sem chamar
a atenção, mas quando chegou ao local todos os
cenários que ele tinha imaginado desapareceram
como pó colocado ao vento, haviam dois caminhos
diferentes para seguir, um que continuava para
Espanha e outro que parecia voltar para trás, qual
deles seguir, nenhum tolo tentaria chegar a capital
de Madrid, mas eles já tinham demonstrado que a
noção de perigo que tinham era bastante reduzida,
de pé a olhar para o canal, começou a coçar o
queixo, deixando as suas vestes negras começarem
a esvoaçar quando a doce brisa se fez sentir,
quando os seus subordinados, inclusive o
comandante Sarevo, começaram a pressionar para
receberem ordens, foi quando o seu cérebro fez um
“click”, lembrou-se do enigma que Marie lhe tinha
dado, “ao país dos gigantes de gelo terão de ir”, só
podia ser para um dos países escandinavos, e se
eles se estavam a guiar tão fielmente pelo enigma
deixado, não iam abandonar a missão assim as
primeiras, com fogo no olhar e diversão no
coração, virou-se para os informáticos de elite que
possuía, e ordenou que verificassem em todos os
aeroportos secundários as viagens que tinham sido
compradas nas ultimas vinte e quatro horas para os

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países do norte da europa, e para os restantes que
lhe fizessem uma chamada para a fronteira e para
Sarevo tentar chegar a conversação com o chefe
máximo da organização, não iria tomar nenhuma
decisão sem falar com ele.
Depois de distribuir as tarefas, sentou-se na mala
de uma carrinha negra que tinha sido levada até ao
local, puxara de um recipiente onde trazia um
whiskey-velho, com olhar nostálgico para aquela
espécie de garrafa de bolso feita de metal deixou
escapar um audível “não te preocupes, eu vou-te
salvar”, levando o líquido á boca e bebendo vários
goles do mesmo.
Ao fim de alguns minutos, já tinha toda a
informação que procurava, tinha a lista de voos,
que não era muito extensa, com as horas da reserva
e o preço que tinha sido pago, e existiu logo um
que lhe saltou a vista, um voo reservado para a
Islândia, reservado naquela mesma manhã, a preço
de desconto, saindo quase de graça, não podia ser
outra viagem só podia ser aquela, também já tinha
uma equipa preparada na fronteira e tinha o chefe
máximo em linha, era só receber a ordem e ia
apanhar os peixes na sua rede, tudo estava a correr
como planejado.
- Mio Signore, falhei mais uma vez…,mas tenho
forma de remediar isso…
A voz rouca fez-se ouvir do outro lado, com uma
voz irónica que dava a entender que tinha um
sorriso colocado na face:
- Meu caro Alejandro, nunca na tua vida me
falhaste e agora em meia dúzia de dias falhaste-me

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duas vezes, será que estás a perder o jeito? Sabes o
que acontece a quem perde o jeito não sabes?
- Garanto-lhe que não é isso senhor, mas não se
esqueça que estou a lidar com os descendentes do
Alfa – começando a suar nervosamente.
- Com o teu treino nem o Alfa devia ser um
adversário temível.
- E estes também não o são, simplesmente estão
a ter sorte, mas eu consegui encontrar o seu rasto,
eles vão apanhar um voo comercial para a Islândia,
e eu tive acesso ao enigma que ele deixou,
podemos intercetá-los rapidamente, se me der a
ordem eles não saem de Espanha!
- Disseste Islândia?
- Sim senhor meu.
- Deixa embarcar, eles vêm ter diretamente as
minhas mãos, vou mandar um avião ir-te buscar
também, a partir de agora eu assumo a caça, e tu
vens e aproveitas para treinar um bocadinho, estás
enferrujado. Che Dio ti protegga. Noi siamo uno.
E a chamada foi desligada abruptamente.
Alejandro foi completamente apanhado de surpresa
por aquela ordem, mas nem tempo para responder
teve, ele acreditava que a inteligência daquele ser
supremo a quem chamava chefe era intocável, mas
aquela decisão parecia tudo menos sensata, tinha a
presa ali a mão e ia deixá-la escapar assim, sem
mais nem menos? Sem grande emoção na voz,
cancelou todas as ordens, inclusive a de
fiscalização na fronteira e disse a Sarevo para se

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preparar que iam para a Maxinum Domum. Com
uma vénia Sarevo e afastou-se.
Já sentado no banco da frente da carrinha a mente
de Alejandro continuava à procura de respostas.
Sítio Desconhecido algures em Itália
- Mio Signore, tem a certeza que deixá-los fugir
para fora de Espanha é a melhor opção?
- Tenho. - Levando o copo de vinho a boca –
afinal de contas, na Islândia estão aqueles dois
idiotas que acreditam que eu sou amicíssimo deles,
facilmente ao lerem o enigma vão trazer os
cordeirinhos diretamente para a boca do lobo,
agora é só esperar, mas o Isaac ainda não chegou?
- Não Signore, o nosso mensageiro também já
não nos dá notícias há algum tempo…
- Espero que o miúdo ainda se lembre do
código… principalmente quando se é feito
prisioneiro… preciso do Isaac ao pé de mim, mas
preciso de enviar alguém que não vá ser apanhado
como o último infeliz quase de certeza foi…
- Se me permitir Signore, eu poderei ir sem
grandes problemas.
- Até pode ser uma boa ideia, mas se fores,
preciso de mais um favor teu…quero que acabes
com a confusão com os Los Santos, aquelas
intrometidas já me estão a complicar demasiado a
vida.

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- Mas Signore isso irá demorar imenso tempo,
possivelmente só poderei regressar no início do
próximo ano…
- Demora o tempo que precisares, és dos poucos
que eu consigo contactar via telefónica, mas espero
que não me faças repetir o que vou dizer agora,
falhas não são permitidas! Agora vai!
- Claro mio Signore. Che Dio te protegga, noi
siamo uno.
E afastou-se em direção á escuridão.
Albacete – Espanha
O aeroporto de Albacete, é localizado na base
aérea de Los Llanos, que fica situada a
sensivelmente seis quilómetros da cidade de
Albacete, começou a ser construído em 1913, mas
ao longo da sua história serviu durante mais
interesses do que propriamente o trafego comercial
de pessoas, durante a guerra civil espanhola foi
usado inclusive por rebeldes e por republicanos em
momentos distintos, a história tardou a sua atual
utilização que apenas em 2003 começou a ser
colocada em prática, teve o seu apogeu entre os
anos de 2007 e 2009, realidade bastante distante do
tempo desta nossa história, depois da grande crise
social na qual Rodrigo perdeu a capacidade de
andar, todos pensavam que este pequeno aeroporto
iria cessar funções, chegando mesmo a ter apenas
quinhentos passageiros num ano, todos os políticos
espanhóis eram a favor do seu encerramento, se
não fosse a forte posição do primeiro-ministro
apoiado na vontade régia aquele aeroporto que

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servia de ponto de partida para Hugo já estaria
fechado á muito.
Contruído com linhas modernas, apresenta a sua
frente com enormes mosaicos cinzentos, que
começavam a ficar sujos face ao descuido, apesar
de ter sido deixado aberto, abandonou-se
completamente o seu cuidado, dividido em dois
andares, sendo o rés-de-chão o local de embarque,
o check-in e todas as burocracias que são feitas
para embarcar num voo, e o primeiro andar o local
de controlo dos aviões, sendo normalmente
chamada de “torre de comando” ali era só um
andar um bocadinho mais acima do nível do chão,
colocadas na parede principal mesmo por cima da
porta de entrada estavam colocadas oito letras que
formavam a palavra ALBACETE, pelo menos
deveria ser assim, porque na verdade estavam
colocadas apenas cinco das oito letras, o
vandalismo e roubo já tinham chegado a este nível,
nem letras num aeroporto quase deserto se
encontravam em segurança, enormes janelas de
vidro enfeitavam o resto da parede principal. Ao
contrário de outros aeroportos onde o som dos
aviões a chegar e as lindas fotografias que esses
momentos permitem tirar e que levam centenas de
curiosos até aos limites destes locais, neste isso era
muito raro, apenas meia dúzia de voos e todos eles
com enormes intervalos que não eram nada
convidativos para as pessoas se exporem ao sol
abrasador espanhol.
Podia perfeitamente perder algum espaço a
descrever-vos o interior do aeroporto de Albacete,
mas não querendo aproximar-me de dois monstros

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literários como Victor Hugo ou Eça de Queirós,
que têm como imagem de marca as suas
minuciosas descrições, e não estando a criticar de
todo a sua forma de escrever, acredito que seja
mais proveitoso fazer a narrativa avançar, do que
perder tempo e espaço em detalhes
imobiliarquicos.
Apesar disto vejamos um exemplo como a imagem
tem um enorme peso na análise que fazemos das
pessoas ao nosso lado.
Hugo e os seus companheiros chegaram á porta do
aeroporto num carro a cair aos bocados, com
roupas ainda semi-encharcadas e ainda combalidos
da noite passada, Hugo cambaleava, Tiago tinha
cicatrizes na cara e os restantes tinham todos
marcas de guerra, o segurança, um homem que
devia ter aproximadamente dois metros de altura,
com os músculos bem definidos e com um
pequeno auricular enfiado na orelha esquerda,
fitou-os de cima a baixo e quando eles se
aproximaram da porto colocou-se á sua frente e
com uma voz de trovão disse num espanhol
fluente:
- Lo siento, pero no puedes pasar!
- Pero tenemos boletos y un vuelo en poco
tiempo!- respondeu Tiago no mesmo nível de
fluência.
- Eso no me parece verdad, ni parece que
tengan dinero para comprar boletos, este no es
lugar para mendigos.

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Aquela insinuação tirou Tiago completamente da
calma que ele costuma apresentar, perdendo as
estribeiras, pegou no telemóvel, abriu uma pequena
aplicação onde se conseguia ver o saldo da conta
corrente da Mano de Dios, e encostando o
telemóvel quase a cara do segurança disse subindo
o tom de voz:
- Basta un millón de euros? O quieres màs?
Todavia te compraré la cabeza se tengo que
hacerlo, hijo da puta! - e empurrando o segurança
que ficou sem reação a ver todo aquele dinheiro
nem respondeu a ofensa.
Passados alguns minutos todos estavam dentro do
avião que seguia para a Islândia, embora não o
dissessem só desejavam que os momentos que
fossem passar lá fossem mais pacíficos que os
tempos que passaram em Espanha, todos iam
combalidos, uns mais fisicamente, outros mais
psicologicamente, mas uma coisa era certa,
nenhum deles era o mesmo que tinha entrado em
Espanha, e ainda estava apenas a começar.
Coimbra – Portugal
Enquanto todo o grupo ia enfrentando a morte em
Espanha e as sombras faziam os seus movimentos
junto ao mar mediterrâneo, na sede da The Pack, o
treino intensivo de Luís Ferreira continuava, para
vos dar um bocadinho de descanso de tanta
tristeza, vamos só dar uma olhadela a como eram
os dias do menino, quase homem, afinal de contas
ele carregava o futuro de toda a organização às
suas costas.

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O treino do menino, quase todo, dado por Rodrigo,
baseava-se na máxima da mente sã em corpo são,
fora da escola onde aprendia o básico, quando
chegava a casa ainda tinha pelo menos mais duas
horas de leitura dos clássicos mais importantes da
literatura internacional, bem como dos diários que
Felipe Ferreira tinha deixado, de certa forma
Rodrigo esperava que isso aproximasse pai e filho,
uma vez que o destino tinha sido bastante cruel
com ambos.
A parte do treino físico era deixada com os mais
fortes membros da Alcateia, um treino de cerca de
hora e meia, focando não só no crescimento
muscular, mas no fortalecimento dos músculos
também, quando chegou a altura de entrar para a
escola, ele já tinha o corpo completamente
estruturado, muito melhor do que mais de metade
da sua geração, era decerto um exemplo a seguir.
Embora a sua mente e corpo crescessem, o seu
sorriso mantinha-se inalterado, desde que toda a
gente que conhecia se tinha ido embora, numa
missão que ele continuava a achar que também era
dele, que tinha perdido completamente o seu
sorriso.
Convém também dizer que a escola que foi
escolhida para ele fazer o seu secundário, foi a
mesma escola na qual o seu pai deu entrada
dezassete anos antes, a famosa escola da subida da
praça, muito diferente daquilo que Felipe e Hugo
encontraram quase duas décadas mais cedo.
Quando eles entraram, apesar da direção chique e
elegante que a direção possuía, a fama que ele

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tinha era completamente o seu oposto, uma escola
domada pelos cursos profissionais, principalmente
desporto, turmas constituídas por rejeitados doutras
escolas, que sem melhor opção acabavam naquela
mesma escola, se fosse feito um inquérito naquele
tempo, seriam raros os alunos que afirmavam que
aquela era a sua primeira escola. Contudo como
todos os espaços e pessoas o tempo exerceu o seu
poder, durante a grande crise pandémica a escola
voltou ao seu objetivo inicial, foi um hospital de
campanha, por ironia do destino, foi naquele
mesmo espaço que Rodrigo foi atendido, os alunos
remetidos para aulas em casa e deixados muitas
vezes ao deus de Ará, e com isto tudo e depois da
polémica a que as diretoras tiveram sujeitas depois
de serem expostos todos os negócios que tinham
com a Câmara municipal, principalmente os
ilícitos, a escola teve de passar por uma
reformulação, desde do topo até á base, sabemos
perfeitamente que normalmente é ao contrário que
se deve fazer, mas nalguns casos a normalidade
não encaixa. Devemos saudar o trabalho do
poderoso Alfa que apesar de morto deixou um
caminho de pedras para todos os pecadores que
permaneceram vivos depois da sua partida.
Pouco depois do termino da pandemia a escola foi
comprada por um investidor secreto, ainda nos dias
de hoje não se sabe quem comprou a maldita
escola, mas uma coisa toda a gente achava que
tinha certeza, que ele deveria fazer uma revolução
drástica no edifício para eliminar todo o passado
sombrio que percorria aqueles corredores, mas o
misterioso investidor decidiu não fazer nada disso,
tinha uma lema de “inovar, honrando o passado”, o

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edifício foi todo recuperado sem nunca perder
nenhuma das linhas da sua génese, os corredores
com o piso de madeira, os arcos sobre os mesmos,
as escadas de pedra para acesso ao Wall de entrada
e as escadas de madeira para aceder a secretaria,
lavou a cara a escola, pintando as paredes externas
e internas de branco e tapou os buracos nas telhas
do piso superior, substituindo os bancos de pedra
antigos e deformados por novos e com pinturas
novas pintou as paredes dos pisos superiores,
podíamos dizer que a escola era exatamente a
mesma, mas mais limpa e apetecível.
A escola para os miúdos da idade de Luís começa
sensivelmente na segunda quinzena de Setembro,
quando não é mais tarde, num final de tarde de
Setembro, enquanto Rodrigo treinava no imenso
jardim da casa de Rodrigo, não sentiu a
aproximação do seu anfitrião, desde que a missão
tinha começado tinha-se mudado para aquela casa
que Rodrigo afirmava que também lhe pertencia,
embora nunca se tivesse colocado completamente a
vontade, embora tivesse o a vontade para editar o
quarto dele como bem lhe apetece-se, a única coisa
que alterou foi colocar uma fotografia sua com a
sua mãe onde outrora estava um retrato de Felipe,
as primeiras noites que passou lá foram
tumultuosas, não conseguia dormir com um vulto
que o perseguia nos sonhos, um vulto de longos
cabelos negros e um semblante pesado, nunca
comentara nada com ninguém, mas sabia que
aquele ser distante e frio era uma representação do
seu distante pai.

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As conversas com Rodrigo também não eram
muito vastas, normalmente só conversavam
durante as aulas de análise dos clássicos, e durante
dois minutos ao longo do jantar, embora Rodrigo
tentasse ver para além da escuridão que rodeava
Luís, nunca teve grande sucesso, diz-se que
quando se perde a visão os outros sentidos
aumentam, mas nem assim Rodrigo conseguia
compreender Luís.
Mas neste final de tarde arriscou novamente a sua
sorte, quando ouviu os pés do seu jovem
companheiro chocarem contra o chão ao largar o
ramo da magnífica “Sakura”, aproximou-se e
disse num tom afável:
- Preparado para a grande aventura que começa
segunda-feira?
- Se estás a tentar fazer o papel de papá perdido
podes já parar – disse limpando o suor da face com
uma toalha que tinha no chão.
- É uma oportunidade de fazeres novos amigos,
de criares ligações e quem sabe cresceres como
pessoa- ignorando por completo o tom irónico de
Luís.
- Mas não era o senhor meu pai que dizia que as
pessoas eram dispensáveis e que os laços só nos
tornavam frágeis? Se vocês querem que eu me
pareça tanto com ele, tenho que fazer o que ele
faria.
- Não sei onde foste buscar essa ideia, mas o
Felipe era um dos homens para humanos que
conheci…

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- Desculpa Rodrigo, mas se ser humano é
ordenar a morte de crianças inocentes eu prefiro
ser um monstro – levantando-se e dirigindo-se em
direção á casa de banho para tomar um duche.
Quase chocando com o empregado que vinha a sair
com uma garrafa de água que Rodrigo tinha pedido
para Luís beber no final do treino.
Ao ver o jovem andar de tal forma apressado, o
empregado avança e coloca-se lado a lado com
Rodrigo e estende-lhe a garrafa:
- Deseja água?
- Ele consegue ser parecido com os dois, tem o
fogo de Felipe e a rigidez dos Los Santos, nunca vi
combinação mais perigosa…
- Acha que ele vai conseguir completar o treino
e tornar-se o próximo Alfa?
- Espero que a parte do Felipe leve a melhor,
porque se não, isso nem sequer vai ser uma
hipótese, mas ele também ainda é novo, o Felipe
com a idade dele perdeu a família, mas antes disso
era um adolescente como outro qualquer, se calhar
ainda mais problemático do que a maioria, por isso
pode ser que ainda haja tempo, espero que onde
quer que ele esteja, olhe pelo filho… mudando de
assunto, já temos notícias deles?
- Nada…
Do outro lado da cidade, a preparação para o
primeiro dia de aulas de Marta era ligeiramente
diferente…

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- Mãe!!! – Gritou do seu quarto.
- Dizz!
- Dizz!
Responderam quer Inês, quer Francisca.
- Francisca querida já te disse que temos de
definir melhor esta situação- provocando uma
situação de risos entre as duas.
- Vocês bem podiam resolver esses problemas
de hierarquia familiar depois de me ajudarem não
acham? – Gritou em resposta Marta.
- Já estamos a ir querida, esta tua filha está a
ficar muito melodramática – respondeu Francisca,
começando a subir de mãos dadas com Inês.
- Então pois, quando é algo dramático é sempre
minha filha, quando é organizada e estudiosa é tua
– revirando os olhos em provocação.
- Cada uma nasce pro que nasce – soltando uma
gargalhada no exato momento em que abrem a
porta do quarto.
Lá dentro estava uma enorme confusão, roupa
espalhada por todo o lado, a cama mal se via com a
quantidade de camisolas que estavam
esparralhadas, no chão todos os sapatos, meias e
calças uns em cima dos outros, a única coisa que se
mantinha minimamente organizada era a mochila
preta de marca em cima do guarda-vestidos, tinha
sido lá colocada para não se perder no meio da
confusão que Marta já pressentia que poderia
aparecer.

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- Que confusão! Que se passou Marta? -
perguntou Francisca
- Não faço a mínima ideia do que levar segunda-
feira vestido! Não tenho nada para vestir,
literalmente – agarrando num top preto e numas
calças de ganga – nada combina!
Esta frase levou as duas adultas na sala a entrar
num ataque de riso descontrolado, Inês teve
mesmo que se sentar para não cair, o olhar perdido
de Marta acompanhava os sorrisos brilhantes de
ambas, com um semblante de dúvida e a começar a
passar para o de raiva:
- Mas vocês estão-se a rir de que? Isto é assunto
sério!
- Claro que é meu amor, eu só me estou a rir
porque agora fizeste-me muito lembrar a Inês,
todos os anos quando começava a escola ela dizia
algo muito parecido ao que tu disseste agora,
mesmo tempo a mesma quantidade ou ainda mais
roupa, deve mesmo ser defeito feminino – soltando
uma enorme gargalhada.
- Sim, eu ainda era capaz de ter mais, e sabes
como é que eu resolvia essa enorme problema –
sentando-se ao lado de Marta que se encontrava em
cima dos joelhos no meio do quarto – a tua mãe
vinha sempre com o seu olho de aguia e voz
meiga, encontrar-me uma combinação perfeita e
dizer-me que devia ser descendente de Afrodite
porque até se eu vestisse trapos ficaria linda, na
altura fiz exatamente a mesma cara que tu fizeste
agora, mas hoje em dia percebo que por vezes não
são as roupas que fazem as pessoas ficarem bonitas

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mas sim o inverso, algumas pessoas emitem luz
própria, e tu sem dúvida, meu pequeno rebento, és
uma dessas pessoas – sorrindo e encostando a sua
testa a da filha.
- Ei! Eu também quero estar envolvida nesse
momento carinhoso – disse Francisca saltando para
cima de ambas.
No chão ficaram as três a sorrir e o “grave”
problema foi rapidamente esquecido.
No dia em que a escola ia começar, Marta optou
por um outfit completamente banal, as
temperaturas quentes de Setembro ainda se faziam
sentir, por isso optou por um top cor-de-rosa
docemente tapado por um casaco de renda branco,
e uns calções de ganga rasgados, saiu cedo de casa
porque ao contrário do que as “mães” desejavam,
ela quis chegar á escola de autocarro e não num
Jaguar do ano presente, queria ser normal, como
nos passeios que dava a beira-rio, a única coisa que
fazia com que ela pode-se ser encarada de forma
ligeiramente diferente era um colar de ouro pouco
com a cabeça de um leão a rugir e um anel com
uma pequena joia que usava religiosamente desde
do dia que Inês lho tinha dado.
O destino normalmente gosta de pregar partidas a
todos nós e nesta nossa história não podia ser
diferente, quer Luís, quer Marta tinham pensado,
mas não muito se alguma vez se iriam voltar a ver,
saíram á mesma hora de casa, embora as distâncias
fossem ligeiramente diferentes chegaram
exatamente ao mesmo tempo, por força de um
toque de despertador Luís conseguiu entrar no

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enorme corredor um bocadinho antes dela,
respirando fundo preparava-se para caminhar com
toda a velocidade para a sala de apresentação, uma
das muitas salas que figuravam dos lados do
corredor.
Mas o nome que trazia consigo não era facilmente
esquecido, ainda para mais, sendo o Rodrigo uma
visita comum na escola, para falar da sua enorme
experiência, sobre as grandes crises e como
conseguiu ultrapassar todas elas, desde da crise do
“Alfa”, como tinha sido apelidado o incidente no
terreiro da Erva, bem como a crise pandémica.
Mal deu o primeiro passo em direção ao seu futuro,
ouviu o seu nome ser chamado atrás de si:
- Menino Ferreira, por favor venha ajudar a
senhorita Marta a encontrar a sua sala, ela é nova
por estas bandas.
Também eu raio! Pensou Luís, sem nunca associar
o nome, afinal de contas qual era a probabilidade,
deviam existir imensas Martas naquela escola.
Caminhou de olhar colado no chão, e quando
encontrou as duas sapatilhas brancas que
brilhavam, antes de levantar os olhos perguntou:
- Qual é que é o teu curso mesmo?
A resposta demorou um bocadinho, e quando veio,
veio a medo...
- Línguas e Humanidades…

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A voz era familiar e quando finalmente os olhos
dele encontraram os dela, o improvável tinha
acontecido.
- Parece que vamos ser colegas de curso, mas ou
menos desta vez não me caíste em cima para
chamar a atenção – provocando um estranho
sorriso em ambos.
E lá seguiram os dois, ei, esperem um bocadinho já
estamos a entrar numa história secundário, eu sei
agora ficaram curiosos com o que vai acontecer
com os dois pombinhos não é verdade? Um dos
grandes perigos da humanidade a curiosidade
desmedida, bem voltaremos a estes dois mais a
frente, afinal de contas o que é uma boa história
sem um pouco de amor, não é? Mas aviso já, isto
não é nenhum romance de Nicholas Sparks, mas
vocês irão perceber isso, acho eu. Voltemos a
Espanha, pode ser?
Posto Fronteiriço de Vilar Formoso – Portugal/
Espanha
Sam, Rubi e o pequeno Juan tinham demorado
certa de uma hora e meia entre Salamanca e a
fronteira, num carro com mais potência
possivelmente tinham demorado muito mais,
porque raramente se encontra transito nas vias
rápidas espanholas, o que torna a condução de
certa forma um pouco monótona, apenas se veem
ovelhas e plantações de ambos os lados, nas mãos
de Sam, o carro tinha fugido duas ou três vezes por
desatenção durante o caminho, o que tinha levado
Rubi a segurar o seu pequeno rebento com toda a

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força que poderia, a cabeça no ar de Sam ainda
poderia causar males maiores.
Quando chegaram ao posto fronteiriço, Sam
olhando pelo retrovisor, com um sorriso afável e
perdendo totalmente o ar de garanhão com o qual
se tinha apresentado a Rubi, disse:
- Temos de meter gasóleo para conseguirmos
chegar a Coimbra sem mais paragens, e vou
aproveitar e colocar ainda deste lado da fronteira, é
mais barato.
- Sim, fazes bem, vai lá nós ficamos no carro,
não é preciso sair com o menino, pois não? – Juan
depois de se sentir seguro tinha acabado por
adormecer.
- Não, não te preocupes, eu não demoro nada –
saindo porta fora, fechando-a com todo o cuidado
do mundo.
Mal ele virou costas, Rubi começou logo a olhar a
sua volta, roendo as unhas e falando baixinho para
o que Juan não a ouvisse:
- Raios partissem… não posso seguir com este
paspalho para Coimbra, vai-me entregar a proteção
daqueles velhos e o meu plano desaparece como
pó… tenho de arranjar uma solução e rápido, só
terei cerca de quinze minutos, aquele idiota não vai
resistir a ver as lembranças que vendem na
loja…não tenho muito tempo.
A fronteira era supostamente um local de controlo
da passagem entre os dois países, mas isso era no
papel, porque na prática não era de todo assim,

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ainda estavam de pé os edifícios que deveriam
fazer a diferenciação entre os dois mundos, uma
estrutura erguida sobre a autoestrada que une os
dois países, no que outrora eram as portagens para
controlo, agora era apenas uma estrutura alta o
suficiente para passarem os camiões e fazer um
bocadinho de sombra, com luzes encrostadas dos
dois lados para ajudar os passageiros que se
aventuravam a percorrer aquelas estradas a noite.
Mal se passava este enorme marco via-se uma
placa azul com o símbolo da união europeia, com
um nome escrito em caps lock branco
“ESPANHA”, e apenas alguns metros a frente uma
loja e um café com bomba de gasolina era
exatamente neste ponto que estavam aquelas três
pessoas.
Colocar gasolina foi relativamente rápido, havia
pouca gente na estrada naquela altura, Sam nunca
na vida tinha colocado gasolina num carro, o que
deu a Rubi mais tempo para pensar numa solução,
após ser ajudado por um camionista espanhol, Sam
fez sinal que ia pagar, beber um café e que ia dar
uma volta para esticar as pernas, insistiu bastante
para que Rubi o acompanhasse e acordasse o
menino argumentado que depois ele teria muito
tempo para dormir, mas por mais que insistisse foi
sempre sem resultado. Conformado com a resposta
e com a estranha sensação positiva de privacidade
lá avançou.
Subiu as pequenas escadas que davam entrada para
o café e respetivo pagamento das bombas, o café
era um típico ponto de passagem mas não de
paragem, com mesas redondas, e cadeiras

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desconfortáveis, com papeis colados nas janelas
com os pratos do dia e os respetivos preços, mais
ou menos a meio da sala, abria-se um corredor que
seguia em direção a umas velhas máquinas de
jogos, ainda de manípulos que ainda tinham
algumas luzes ligadas, embora o pó já mal deixasse
ver, um ataque de nostalgia invadiu Sam, toda a
sua infância tinha jogado em máquinas daquelas,
quando saía da loja de sapatos do pai, mesmo a
frente tinha um café pequeno que tinha uma
maquina daquelas, nas horas de almoço do pai ia
sempre para lá, perdia sempre e muitas das vezes
até jogava sem sequer ter inserido uma moeda, o
pai deixava-o fazer isso, ele era feliz e nem sabia.
Voltemos um bocadinho no tempo, acho que se
conheceram a história do Lázaro, também deviam
conhecer a do Samuel Geada, nome de família
relativamente incomum, filho de um sapateiro e de
uma professora universitária, a vida parecia, á sua
nascença que seria apenas mais um playboy semi-
rico de Coimbra que nunca na vida iria enfrentar
problemas graves, ou até mesmo problemas, e bem
grande parte da sua infância foi assim, o irmão
mais velho de três, todos rapazes, como já adiantei
em cima, sempre fora mais colado ao pai do que
propriamente á mãe, acompanhava sempre o pai no
que conseguia, tinham uma enorme paixão em
comum, motas, grandes ou pequenas, de grande ou
baixa cilindrada, todos os dias iam para a sapataria
de mota, a loja embora colocada num beco tinha
clientes fixos e dava perfeitamente para pagar a
renda do apartamento na periferia onde toda a
família vivia, sendo o dinheiro da mãe destinado a

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pagar as restantes contas e dar aos filhos a vida de
sonhos.
Quando iam ao café, o pequeno Sam, era tratado
como o dono do sítio, ia para detrás do balcão
como se pudesse tudo, começou cedo a ajudar lá,
com uma pequena bandeja de madeira fingia
ajudar o idoso dono do local, ganhou um apelido aí
que dificilmente se iria esquecer, o pequeno Sam
Gelado, todos o tratavam por esse nome e ele
realmente adorava, sentia-se como um super-herói
de um filme famoso.
A sua infância como eu disse não tem muito que se
possa contar, afinal de contas foi na sua
adolescência que os problemas começaram a
aumentar, embora não se saiba os sapateiros
colocam as suas vidas em risco todos os dias
quando vão trabalhar, as toxinas e vapores que os
produtos emitem são terrivelmente prejudiciais
para a saúde, o pai do agora jovem Sam Gelado
sentiu isso de uma forma desastrosa na pele, com
os seus quinze anos, e já a trabalhar aos fins-de-
semana no café onde tinha brincado tantas vezes
como um super-herói a servir as mesas, recebeu o
seu sorridente pai na sua típica hora de almoço, já
tinha o seu prego no prato preparado com a sua
garrafinha de água fresca também já tirada para o
lado, mas algo de errado não estava certo, o seu pai
com um ar muito fraco, branco como o cal da
parede e com um sorriso afável mas bastante
forçado, quando chegou em vez de dar o forte
abraço que era costume, sentou-se de imediato na
mesa, Sam preocupado aproximou-se o mais
rapidamente possível:

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- Pai, estás bem?
- Sim filho estou apenas cansa… - não
conseguiu completar a frase.
Caiu redondo no chão, cada vez a ficar mais
branco, com uma falta de ar crescente, todos os
que estavam no café eram conhecidos, todos
ajudaram e passados uns dez minutos, o que é
bastante pouco em Coimbra, já tinham chegado os
enfermeiros do INEM e uma ambulância, deu de
imediato entrada no hospital da Universidade de
Coimbra e ao fim de alguns exames, o relatório foi
perentório na causa do desmaio, sem grandes
rodeios, um dos melhores médicos na área,
chamou Sam, que a olho nu era o mais consciente,
as hipóteses também não eram muitas, era entre
ele, uma mulher marcada por um ataque de
ansiedade ao chegar ao hospital e dois rapazes com
menos de catorze anos, mesmo que ele não
estivesse bem, não havia hipótese melhor…
Recebeu-o numa sala pequena, com três cadeiras
almofadadas de azul, uma pequena maca e uma
carrada de papeis espalhados pela parede e pelo
armário que estava atrás do médico, com
informações desde da violência no namoro até ao
que se deve fazer em caso de Gripe, como se toda a
gente já não soubesse que se deve tossir e espirrar
para o braço para que a ranhoca fica na roupa e não
na mão, desculpem não é o ranho mas sim as
bactérias, mas é sempre mais fácil lembrar daquilo
que se vê, do que uma coisa abstrata, com um
semblante completamente indiferente o médico
com uma voz rouca disse:

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- Não vou estar aqui com falinhas mansas senhor
Samuel, o seu pai tem um tumor maligno nos
pulmões que já se está a espalhar por todo o corpo,
tem no máximo dos máximos dois a três meses de
vida, não podemos fazer nada, aproveite cada dia
como se fosse o último porque pode ser
efetivamente o último.
Recebeu a notícia assim, sem preparação, nem um
bocadinho de sentimento recebeu do outro lado, a
notícia caiu como uma bomba, o pai, o seu herói, o
seu melhor amigo, morto daqui a uns meses?
Como é que era suposto tratar aquela informação,
seria o correto sair a chorar, não isso não, tinha de
contar a mãe, claro que tinha, mas como raio ia
fazer isso, não podia fazer como o médico, isso
seria desumano, e os irmãos como iriam viver sem
o pai, para jogar com eles futebol ao domingo de
manhã e passear com eles de bicicleta de tarde? O
mundo entrou numa espiral negativa que parecia
não ter fim, a respiração começou a ficar
descontrolada, a visão turva e o mundo parecia
rodar sobre si, tudo isto foi parado quando o
médico simpático falou:
- Vai ter um ataque aqui? Tenho centenas de
pacientes para tratar, vá para a rua e absorva a
notícia lá, e meu rapaz a morte faz parte da vida, se
compreender a morte irá entender como deve viver
a sua vida, agora desapareça! – Colocando-o fora
da sala.
Podia-vos contar como é que ele deu a notícia á
mãe e aos irmãos, mas isso é de tal forma pessoal
que nem eu me atrevo a fazê-lo.

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Os meses que se seguiram foram duríssimos para o
jovem Sam, embora não fosse estritamente
necessário como o pai tinha dito, a mãe demitiu-se
do serviço para melhor cuidar dele, e Sam teve de
começar a trabalhar doze, treze, catorze horas por
dia para sustentar toda a família, e muitas vezes o
dinheiro ficava curto, o modo de vida que eles
levavam tinha desaparecido, os passeios, os risos,
tudo tinha desaparecido, o pai aguentou mais do
que os médicos tinham dito, durou mais cinco
meses desde do dia no café, começando dia após
dia a definhar e a ficar pior e pior, o cancro
alastrou-se para todo o corpo, atacando o cérebro, a
bexiga, os intestinos, tudo o que podia atacar ele
atacou, o pai partiu em pele e osso, morreu num
dia cinzento de junho, morreu no dia do
aniversário do seu filho predileto, morreu no dia
em que Sam fazia dezasseis anos, não houve
celebrações nesse dia, nem risos, apenas gritos e
lágrimas e uma sensação de que o pior ainda estava
para chegar.
A cerimónia contou com quase uma centena de
pessoas, desde colegas de bicicleta a todos os
clientes da sapataria e companheiros de café, no
centro daquela concentração de pessoas estava
Sam, com um smoking negro, óculos escuros e
uma lágrima envergonhada que corria atrás deles,
tinha os irmãos dentro dos seus braços e a mãe
encostada no seu ombro, começara ali a sua nova
vida.
Os dois anos que se seguiram colmataram o que
ele já tinha começado a fazer quando o pai
adoeceu, a mãe nunca mais voltou a trabalhar

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alegando problemas mentais, ficando sempre em
casa, renovando baixa atras de baixa, até ao
momento em que foi despedida por faltar ao
trabalho durante demasiado tempo, e embora se
possa pensar que estando em casa iria cuidar dos
seus filhos mais novos, isso não foi de todo assim,
muitas vezes nem as refeições fazia, obrigando os
miúdos a aprender muito cedo a desenrascarem-se
sozinhos, agora já tinham doze e catorze anos
respetivamente.
Já se sabe que numa casa onde não há mão nem
materna nem paterna, podem-se seguir dois
caminhos, um onde as pessoas encontram o
caminho correto quase por milagre ou por exemplo
negativo que não se deseja seguir, ou o mais
comum, caem em desgraça e entram numa espiral
negra da qual nunca vão conseguir sair,
infelizmente os irmãos de Sam escolheram o
segundo caminho.
Num dia de sol de inverno, Sam estava a trabalhar
no café como era comum, naquele dia tinham-lhe
trocado o turno e em vez de abrir tinha ficado a
fechar o café, estava no piso subterrâneo a arrumar
um resto de stock que de manhã iria colocar no
piso central para que todos pudessem escolher,
completamente colocado entre as sombras apenas
interrompidas por uma pequena lâmpada
intermitente branca, ouviu um enorme barulho
vindo do piso de cima, mas sem se preocupar
muito continuou, era normal que a força tivesse
escapado ao dono do café, o qual já tinha
alcançado quase noventa anos e ele tivesse deixado
a porta bater com mais estrondo no fim de limpar o

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chão, mas quando se começaram a ouvir vozes
desconhecidas, algumas num tom bastante
ameaçador, o assunto mudou de figura, pegando
numa velhas vassoura que até já tinha teias de
aranha no cabo, subiu as escadas em caracol que
davam para o café bem dito e sem anunciar a sua
presença viu uma cena que nunca esperara ver.
Três miúdos de armas em punho tinham
encurralado do dono do café contra a parede,
mantendo sempre uma distancia de segurança
tremiam como varas verdes, era notório que nunca
tinham pegado numa arma na vida, o que parecia
ser o comandante da operação, era bastante
familiar a Sam, sem ele perceber porquê, estava de
costas e o cabelo curto, na mesma cor do cabelo de
Sam e a estrutura física, tudo era familiar, traziam
todos vestidos camisolas pretas com um enorme
lobo nas costas, com uma estranha frase em latim
escrita por cima da cabeça do animal, devia ser
aquele grupo “terrorista” que toda a gente andava a
falar.
Sam sabia que se ficasse parado possivelmente eles
iriam roubar tudo o que encontrassem e talvez para
não deixar testemunhas matassem o velho senhor,
ficou em dúvida, ser considerado cúmplice moral
ou correr o risco de ser morto também, o que seria
dos seus irmãos? Essa resposta apareceu no
momento em que decidiu enfrentar os bandidos.
Mal entrou dentro da sala, com passos fortes
mesmo para anunciar a sua chegada, deparou-se
com uma visão que o fez largar de imediato a
vassoura:

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- Miguel? Afonso? O que raio estão vocês a
fazer?
Dois dos presentes ficaram brancos como o cal da
parede, o comandante era o irmão do meio da
família de Sam, tal como foi dito, situações
extremas conduzem as pessoas para um de dois
caminhos, aqueles jovens escolheram juntar-se a
Alcateia, eles tinham recebido uma denuncia
anonima e ordem direta do Alfa para eliminar
aquele pecador, segundo a denuncia ele tinha
fugido ao fisco durante toda a vida e roubava
descaradamente todos os clientes quando fazia o
troco, usando a confiança que eles tinham nele
para isso, a missão era clara, não tocar no dinheiro
mas eliminar o homem.
- Mano? Tu não devias estar em casa? Era o dia
de tu abrires e não fechares!
- Isso não responde a minha questão! O que
estão aqui a fazer?
- Mantém-te fora disto e tudo vai correr bem-
disse Miguel apontando a arma ao velho senhor –
pecador! A tua gora chegou!
- Miguel para imediatamente! O que o pai ia
pensar disto? – Brandiu Sam.
- Ele não pode pensar nada agora, e mesmo que
pudesse eu só estou a garantir o meu futuro e o do
Afonso, tentar-te ajudar um bocadinho – e antes
que Sam pudesse dizer mais alguma coisa disparou
a matar.

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O homem caiu inanimado no chão, mal o disparo
se ouviu, começaram-se a ouvir passos apressados
do lado de fora do café, estava perto da polícia, era
impossível eles fugirem dali, foi neste momento
que Sam tomou uma atitude questionável…
Aproximou-se de Miguel e deu-lhe uma enorme
chapada, aproximando depois a sua testa a dele:
- Mantenham-se vivos e se conseguirem saiam
desta merda – pegando na arma que estava na mão
do irmão – agora fugam por onde eu vim, têm lá
uma saída para a rua da Sofia, corram e não olhem
para trás, agora vão.
- Mas mano…
- Nem mas, nem meio mas, vocês tomaram a
vossa decisão, eu tenho de tomar a minha, daqui a
pouco a polícia está aí, vão.
Este último vão já trazia lágrimas nos olhos, sem
olhar para trás, colocou-se em posição frontal para
o corpo já moribundo e disse entre dentes
“desculpa velhote”, e disparou mais dois tiros, foi
apanhado no momento do crime e condenado a
dezasseis anos de prisão.
Foi dentro da mesma que recebeu a noticia que a
sua mãe não tinha aguentado e tinha tentado o
suicídio, bem…tinha tentado com sucesso, os
tempos dentro da prisão não foram nada fáceis,
teve de criar uma personagem que com o tempo foi
substituindo o verdadeiro Samuel, um playboy rico
que não tinha nada a perder e que adorava uma boa
adrenalina…o ultimo golpe na esperança de voltar
a ser ele próprio foi quando em direto na televisão

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da prisão, tudo o que se estava a passar na praça
oito de maio e no terreiro da erva, viu em direto á
explosão que matou imensos homens e rapazes, viu
desaparecer o homem que tinha espalhado todo o
terror na cidade, e por algumas fotos na internet,
tiradas ainda antes da policia e dos paramédicos
chegarem ao local, viu os corpos subterrados dos
seus dois irmãozinhos, e em vez de culpar toda
aquela organização, aquele homem que
desaparecera perante os seus olhos, culpou-se a si,
o medo de falhar tomou conta de si e fechou-se
num ciclo de mentira e disfarce que durou até ao
momento em que viu Lázaro a morrer, alguém que
ele tinha considerado seu amigo durante todo o
tempo que estivera na prisão, mas da forma que
eles se conheceram já vos contou Lázaro, voltemos
á fronteira de Espanha…
Todo o seu passado passou a frente dos olhos de
Sam, antes de ele se afastar das máquinas e se
dirigir ao balcão para pagar a conta do combustível
e pediu um café, mas ele também não sabia que
tinha de pedir um café “curto”, quando lhe chegou
a chávena á frente era quase necessário trazer um
pratinho com bolachas para acompanhar, vinha
extremamente cheio, mas quando levantou a
cabeça para reclamar, reparou que quem o tinha
servido era uma empregada, mais nova do que ele,
isso era óbvio, com cabelo encaracolado, olhos de
um verde azulado e com um tom de pele bem
latino, com um sorriso doce e um olhar malicioso.
Sam pensou para si mesmo “porque não?” e
começou a meter conversa, iria ali perder imenso
tempo, mas pensando bem não tinha prometido o

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dia a mais ninguém e esqueceu-se completamente
de Rubi e Juan…
O que por sinal ela agradecia completamente,
enquanto ele estivera fora, tinha encontrado uma
solução não perfeita…,mas funcional.
Olhou a sua volta e encontrou um camião que tinha
escrito em letras enormes na sua lateral “Viagens
Espanha- Portugal”, e por muito errados que
estejam os estereótipos a volta dos camionistas,
todos sabemos a fama que eles possuem, e Rubi
sabia perfeitamente o que podia fazer com os dotes
que tinha recebido, afinal de contas não era a
primeira vez que teria de os usar para conseguir o
necessário para sobreviver.
Tendo muita atenção para não chamar a atenção
dos mais curiosos, acordou o seu menino e fez
sinal para que ele a seguisse, muito rapidamente
chegaram ao pé do camião, com uma voz doce e
afastando o cabelo da testa do menino disse-lhe:
- Bebe, quedate aqui solo hablare con un amigo
a ver si nos lleva a casa. – Dando-lhe um beijo ao
de leve na testa.
A criança ainda atordoada com o sono acenou de
forma muita lenta ao que tinha acabado de ouvir,
mesmo sem processar a informação.
Rubi apoiou-se nas escadas que conduziam a porta
da cabine e mesmo antes de bater, a porta abriu-se
de forma pausada e sem grande barulho.
Do outro lado, estava um homem que não deveria
passar dos seus quarenta anos, longa barba ruiva,

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olhos azuis e um corpo marcado pelo trabalho, em
cima da sua cabeça já calva estava um boné que
assinalava um jogo entre Portugal e Espanha que já
tinha acontecido há algum tempo, encostado á
extremidade dos lábios estava um cigarro já com
mais de meio queimado e com a cinza espalhada
pelo banco, definitivamente aquele camião era de
um homem só.
Atrás da cabine estava o que servia de quarto ao
homem, com uma pequena casa de banho, um
sofá-cama e um velho frigorifico onde ele
costumava guardar as garrafas de cerveja, sem ter
muita atenção onde as deixava depois de as beber,
prova disso é que se encontravam várias
esparralhadas pela cabine e pela pequena “casa”
que ele tinha.
Com um forte sotaque espanhol, mas que mesmo
assim não tinha apagado por completo o português
fluente que ainda conseguia falar, começou a
negociação:
- O que uma menina tão bonita como tu faz aqui
sozinha? – Lançando um bafo de fumo em direção
de Rubi.
- A menina só está procura de uma forma de ir
para casa…- começando a fazer um beicinho
insinuador e começando a subir mais as escadas –
será que me podias ajudar?
- És de onde meu anjo? – Começando a mexer-
lhe no cabelo.
- Sou de Coimbra – sorrindo e subindo mais um
degrau.

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- Isso é bem longe, não sei se consigo ir, e para
além disso como tencionavas pagar?
- Acho que iriamos encontrar uma maneira
bastante fácil e proveitosa de eu te pagar – estando
neste momento sentada literalmente no colo do
homem.
- E o miúdo?
- Não te preocupes, eu sei fazer as coisas muito
bem, sem fazer muito barulho – tendo dito isto
baixinho ao ouvido dele.
- Acho que nos começamos a entender, manda o
miúdo entrar e vão lá para trás, saímos daqui a
nada – dando-lhe uma palmada nas nádegas.
E assim foi, Rubi tinha conseguido a sua boleia
para Portugal, o plano começava a concretizar-se
exatamente como ela tinha imaginado, pequenos
sacrifícios são necessários para alcançar o que se
deseja.
Sam no fim de ter levado mais uma tampa, de mais
uma empregada, que mais uma vez lhe tinha
respondido apenas para gozar um bocadinho com a
cara dele, ainda com a mão a coçar o cabelo
pensou “bem, agora é só chegar a Portugal e
recomeçar a minha vida, não deve ser assim tão
complicado”, começou a andar com o olhar preso
no chão, embatendo contra algumas pessoas nos
poucos metros que o afastavam do carro, abrindo a
porta do carro, sentou-se e tentando recuperar o
sorriso que ele precisava manter disse, sem nunca
olhar para trás:

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- Prontos para mais umas horitas de viagem,
agora com o tanque cheio não paramos antes de
chegarmos á nossa bela terra natal!
Mas a única resposta que obteve foi um silêncio
total, ainda pensou por momentos que tivessem
adormecido os dois, mas quando se virou para trás
rapidamente percebeu que o que tinha acontecido
era totalmente diferente, o banco de trás estava
completamente vazio, apenas com a pequena
manta que Rubi tinha utilizado para tapar o
menino.
Escusado será dizer que entrou em pânico total,
desligou imediatamente o carro, saindo porta fora,
começando a gritar para todo mundo ouvir os
nomes dos dois desaparecidos, perguntou a todas
as pessoas que estavam a volta, todos os
camionistas, todas as empregadas e a resposta que
obteve foi sempre a mesma, absolutamente nada,
ninguém tinha visto nada, a descrição da mulher
era um desenho abstrato para todos os hispânicos
que estavam nas redondezas.
Num ato de puro desespero pegou no telemóvel e
tentou ligar para Hugo, sem sucesso, tentou ligar
para Tiago e o sucesso foi exatamente o mesmo.
Depois de tentar todos os contactos do grupo é que
na sua mente brilhante se fez luz, tendencialmente
os telemóveis são colocados em modo voo durante
as viagens e possivelmente eles estariam neste
momento a sobrevoar algum país europeu em
direção à Islândia, seria escusado ligar para
qualquer um deles, e também não podia ficar a
espera que eles chegassem ao destino, porque ele

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não fazia a mínima ideia de quando é que isso ia
acontecer.
Só restava uma opção, voltar para Portugal mesmo
que sozinho e depois pedir ajuda ao eremita cego,
assim ele tinha chamado ao Rodrigo, uma vez que
nunca se dera ao trabalho de memorizar o seu
nome.
A decisão estava tomada, voltou a entrar no carro e
começou a dirigir em direção a Portugal, e por
incrível que pareça a sua preocupação não estava
com Rubi, mas sim com o pequeno Juan, tinha-se
afeiçoado a criança, sem sequer ter motivos para
tal, afinal de contas era apenas mais uma criança
chata e sem valor, mas por alguma razão aquela fez
com que ele se lembrasse dos seus pequenos
irmãos e já todos sabemos quando o sentimento
entra em campo, a racionalidade sai.
E assim o carro avançou pelas ruas poucas
iluminadas do país luso, Sam só queria terminar
este capítulo da sua vida, mas este estava apenas a
começar.
Algures a sobrevoar a Europa
Já os ânimos acalmados por causa da situação com
o segurança no aeroporto, e sentados nos seus
lugares próprios, os companheiros começavam
agora a sentir as consequências da sua aventura por
terras espanholas, as feridas que a quente não se
faziam sentir, começavam a doer de forma
descontrolada, a falta de descanso levou Ariana e
Romeu a adormecerem no exato momento em que
o avião comercial levantou voo, estavam a viajar
em primeira classe, de forma a que o descanso

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fosse pelo menos na teoria o mais assegurado
possível, já chegava tudo o que tinham passado nos
últimos dias.
Enquanto dois dos amigos tiravam um cochilo,
Hugo prendeu o seu olhar no horizonte, na sua
mente passou uma e outra vez o último olhar que
Lázaro lhe tinha direcionado, as suas feridas não
eram fisicamente visíveis, mas eram tão ou mais
dolorosas do que as dos seus colegas, tentou por
vastos minutos não deixar a sua dor ser
transformada em lágrimas, mas não conseguiu
durante muito tempo, deitado sobre si próprio
deixou que a mágoa falasse mais alto. Mas não
saíram nem gritos, nem convulsões, nada que fosse
alarmante, mas apenas um choro silencioso, que
quanto a mim, são os mais preocupantes.
Ao seu lado ia Marie, com o cabelo apanhado num
rabo de cabelo mal feito, com o olhar cinzento, e
com a imagem de um morto também, mas não de
Lázaro, porque afinal de contar para ela, ele não
passava de um estranho com o qual tinha feito uma
viagem longa e perigosa, e toda a gente sabe que
isso não é suficiente para criar laços com ninguém.
A sua mente estava com um morto bastante vivo,
seria Alejandro capaz de ordenar a morte em massa
de quem estava naquela casa? Por muito que ela
soubesse a resposta ela tentava manter-se presa a
criança que Alejandro tinha sido, tentando não ver
o homem em que ele se tinha tornado.
O seu deambular psicológico foi interrompido por
um barulho que não parecia nada mais do que um
cachorrinho a ganir por não saber onde está a mãe,
á sua volta estava tudo calmo, bem quase tudo, os

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ombros de Hugo mexiam-se de forma involuntária,
a medo ela lá colocou a mão junto ao pescoço dele
e com todo o carinho do mundo perguntou “estás
bem Hugo?”.
Foi a palavra gatilho para despoletar todo o
sentimento que estava lá dentro, sem se conseguir
controlar, Hugo colocou a sua cabeça no ombro
daquela sua “companheira”, e deixou sair tudo,
parecia que as idades tinham sido trocadas, que
Marie era a adulta de quase quarenta anos e ele era
um adolescente que ainda nem tinha chegado aos
vinte, ele que já tinha assistido a toda a ação
negativa que a Alcateia que tinha produzido em
Coimbra dezasseis anos antes, já deveria estar
calejado para este tipo de situações mas não estava
de todo, e durante os minutos que chorou baixinho
saíram palavras como “amigo”,
“responsabilidade”, “inútil” e apesar de não se
perceber nada do que ele dizia, percebeu-se muito
bem o que ele estava a tentar transmitir.
Foi ouvindo esta choradeira toda, que a voz de
Tiago se fez sentir vinda do banco de trás:
- Olha para ti, um bebé chorão com quase
quarenta anos! Achas que o Lázaro queria que
estivesses assim? Achas que este é o tipo de líder
que tu deves ser? Dás-me vontade de voltar para
casa e deixar-te sozinho, mariquinhas!
- Dá-lhe um desconto Tiago…- tentou
interromper Marie.
- Não te metas miúda! Tu também não sabes
nada da vida! Ele sabe o que nós passamos nos
últimos anos, eu preso e de luto por um amigo que

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me mostrou como se deve lutar pelo que se
acredita, um amigo que deixou uma missão para
nós cumprirmos, a Ariana teve de andar a fugir da
própria família pelo amor que tinha pelo Felipe, o
Romeu deu quase toda a sua vida pela Alcateia!
Acham que nós também não sofremos com a
morte do Lázaro? Claro que sofremos, mas se nos
agarrarmos a mágoa e a deixarmos deitar-nos
abaixo não saímos do lugar, a mágoa é boa para
nos levar até ao nosso destino e não o contrário!
Hugo lembraste do Pedro? Do teu grande amor?
Neste momento todo o corpo de Hugo ficou hirto,
e com uma voz pesada disse:
- Não chames para cá quem não tem culpa
alguma!
- Escusas de fazer voz grossa comigo, porque
isso não me mete medo nenhum. Mas pronto
lembraste dele certo? Lembraste do que o Felipe te
disse quando ele morreu? O Felipe sempre se
culpou pela morte dele, mas se pensares bem não é
só a morte do Pedro que ele carregava nos ombros,
era de toda a sua família, da mãe, do padrasto, dos
avós, da sua primeira namorada e depois que
montou a Alcateia, tinha a morte da Teresa e da
Bea nos ombros também, e ele chorava, chorava
muito mas nunca deixou que as suas lágrimas o
impedissem de fazer nada, e quando sentiu que
tinha feito tudo, então sim deixou-se sucumbir
perante a dor que era demasiado forte para
carregar! O que sabes tu Hugo da dor? Perdeste um
amigo? E se tivesses de nos perder a todos para
completar a missão, terias capacidade ou irias
desistir, e se a tua resposta for que ias desistir ou

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ias-te sentir mais fraco por cada morte que
acontecesse, deixa-me dar-te um conselho quando
aterrarmos, pega no dinheiro e compra o primeiro
bilhete para casa, porque um líder, um ALFA, tem
de estar disposto a tudo, inclusive a deixar morrer
os seus amigos pelo bem maior, e se tu não sabes
disso, não mereceste ser amigo do Felipe!
O silencio reinou em todo o avião, aquelas
palavras atravessaram o peito de Hugo como
adagas enferrujadas, e por muito que ele quisesse
debater o que tinha sido dito, ele tinha completa
noção, que por muito mau que fosse, o Tiago
estava cheio de razão…ele se calhar não merecia
ser o Alfa, muito provavelmente Felipe tinha
escolhido de forma errada o seu sucessor…
Normalmente uma viagem de avião entre Espanha
e a Islândia demora cerca de três horas e doze
minutos, no caso da viagem dos nossos amigos,
demorou exatamente três horas e treze minutos,
bem sei que esta informação era totalmente
desnecessária, mas achei por bem dá-la da mesma
forma.
O fuso horário que vigora neste maravilhoso país
nórdico retira uma hora ao horário Português e
duas ao horário de nostros hermanos, sendo que o
voo que saiu da Albacete por volta da hora do
almoço iria chegar ao meio da tarde, chegou ao
início da mesma.
Falemos um bocadinho do país no qual os nossos
amigos vão procurar refúgio.
A “Terra do Gelo”, como todos nós pensamos
quando falamos da Islândia, embora se pense que a

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sua origem remeta para os tempos áureos dos
grandes guerreiros nórdicos, esta terra de paisagens
lindíssimas, tem a sua descoberta muitos anos
antes, por aventureiros gregos, ao que tudo indica.
Embora seja um país com poucos habitantes,
mantém-se sempre na dianteira do que são indicies
de felicidade e riqueza, como é o caso do PIB per
capita que durante vários anos ficou nos primeiros
dez lugares mundiais, e no IDH, que conseguiu
atingir em certos momentos o primeiro lugar em
comparação com o resto do mundo.
Mas não creio que estejam à procura de uma
análise económica e social do país, mas sim uma
descrição das suas belas paisagens e gentes, mas
isso deixarei para que os nossos amigos vos
contem.
Hugo e os seus colegas desembarcaram no
aeroporto de Keflavik, um dos mais, para não dizer
o mais importante aeroporto do país, situado na
área metropolitana de Reykjanesbær, constituída
pelas cidades de Keflavík, Njarðvík e Hafnir, mas
a sua viagem não ficaria por ali, o seu destino era a
cidade de Vik, conhecida pela bela praia de
Reynisfjara, a praia de areias negras, um dos sítios
mais bonitos do país, mas já la iremos, as duas
cidades ainda ficavam a algumas horas de viagem,
e como era um país totalmente desconhecido para
todos eles, nunca se iriam arriscar a conduzir uma
distancia tão grande e durante tanto tempo, a
solução arranjada foi rápida e fácil, alugar uma
espécie de táxi, ou Uber, agora andam os dois na
moda, nem que seja pela taxa fixa que ambos
cobram, nem que seja para andar cinquenta metros,

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realmente uma ótima ajuda ao consumidor, e de
forma a correrem menos perigo, dividiram-se em
duas equipas, cada equipa iria sair com meia hora
de diferença, ideia dada por Ariana que temia que a
Mano de Dios tivesse algum tentáculo também
naquele país remoto.
Na primeira equipa iriam Ariana e Marie, duas
investigadoras francesas a procura de fazer um
estudo sobre a areia de Vik, e na segunda equipa
Romeu, Hugo e Tiago, três solteirões que vinham
numa viagem de amigos para curtir a vida e
procurar quem sabe uma aventura de uma noite só.
Os disfarces, apesar das roupas rebentadas,
estavam entregues e o plano foi seguido à risca,
primeiro saíram as meninas, depois os meninos,
cavalheirismo sempre em primeiro lugar.
Passado meia hora das meninas saírem, lá chegou a
vez dos rapazes, Romeu por causa do enjoo foi
sentado a frente, e o ambiente dentro do carro ia de
cortar a faca, desde da “discussão”, no avião que
Tiago e Hugo não se falavam, apenas uma coisa
tinha a capacidade de cortar este ambiente, a
completa falta de noção do condutor, um jovem
imigrante no país, francês e com os seus vinte e
poucos anos, cabelo longo loiro enrolado em rastas
que chegavam a meio das costas, piercings e
tatuagens a encher o seu braço esquerdo todo,
durante toda a viagem tentou meter conversa num
inglês completamente rudimentar e que mal se
compreendia, as piadas que fazia sobre o ambiente
que os rodeava eram totalmente descabidas, lá pelo
meio disse o seu nome que ninguém conseguiu

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compreender, ou simplesmente não quiseram
saber.
O ambiente gélido do carro, foi interrompido pela
voz baixa de Hugo:
- Perdoa a minha fraqueza, se calhar tens razão e
eu não consigo ser o sucessor do Felipe…
Romeu por muito que quisesse decidiu que não iria
interromper esta conversa, acontecesse o que
acontecesse.
- Não tens de pedir desculpa, eu sabia que não
serias um Felipe, mas tens de ser definitivamente
mais forte, eu talvez tenha exagerado no avião,
mas uma coisa é certa quando sairmos desta terra
de gelo, vamos caminhar para o capítulo final de
muitos de nós e tu tens de estar pronto para isso,
porque acredita no que o meu sexto sentido me diz,
muito gente ainda vai jorrar sangue antes desta
história terminar.
O resto da viagem foi passada em silêncio, apenas
com a música de uma radio nacional a tocar,
ninguém conseguia compreender o que era dito,
mas de uma certa forma, era a melhor coisa para se
ouvir.
Ao fim de algumas horas de viagem lá chegaram
ao destino, pediram para ser deixados a porta da
cidade, uma vez que tinha comunicado com os
seus anfitriões para que estes os recebessem nesse
mesmo sítio.
Quando os rapazes chegaram, encontraram Ariana
e Marie já a falar com os donos da casa onde iriam

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ficar, eram desconhecidos que em meia hora já
tinham falado de tudo e mais alguma coisa.
Hugo quando percebeu quem era a “ajuda” sentiu
que tinha recuado no tempo cerca de dezasseis
anos.
Ali no meio do nada, surgiam duas caras,
envelhecidas, mas tão familiares.
Eram Marius Svenson e o senhor Manuel, os
anfitriões da passagem de ano, que em grupo todos
tinham passado nas Penhas Douradas, anos atrás.
Sem dúvida que a idade tinha passado por eles, os
longos cabelos outrora ruivos de Marius,
pintavam-se de branco com todo o orgulho e a
grande barriga de Manuel ainda crescera mais,
eram definitivamente amigos para a vida, ou talvez
ainda mais.
O abraço mais sentido foi dado a Hugo, que
durante a sua estadia na prisão perdera
completamente o contacto com aqueles dois
amigos a última vez que estivera com eles fora
exatamente na praça oito de maio, a dezasseis anos
atrás.
- Meu caro amigo, como é que está?
- Menino Hugo, vossemecê cresceu muito, e a
idade também já passou por você – soltando uma
pequena gargalhada – tenho pena que tenha
cortado o pelo, gostava muito de ver os piolhos a
dançar na sua cabeça – dando uma enorme
palmada no ombro de Hugo.

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- O tempo não foi totalmente amigo deste rapaz,
e o cabelo é apenas a mudança mais visível, mas
vamos para dentro, daqui a nada isto começa a
arrefecer, e nenhum de vocês parece ter uma muda
de roupa, mas isso também já se arranja!
- Escuse me…- disse a medo uma voz ao longe.
- Yes? – Respondeu com um inglês meio
fanhoso Marius.
- Eu poderia ficar com vocês também? Eu não
conheço muito bem estas bandas, nem sei onde
ficar e vocês parecem ser pessoas top top, seria
possível? – era o condutor do carro de Hugo, que
se tinha mantido a margem da conversa, mas sem
nunca ter-se afastado realmente.
- Claro meu amigo, como se chama?
A conversa entre estes dois daria um enfarte a
qualquer professora de inglês, o inglês de ambos
era de tal forma rudimentar que se misturava com
o próprio dialeto local, fazendo todos questionar
em que língua estariam a falar.
- Je m’apelle Pierre- o nervosismo lá fez com
que a sua boca fugisse para a sua língua materna.
- Poderias ter dito que eras fluente em francês,
sinto bastante mais a vontade, mas agora já está,
faz o favor de entrar – virando-se para todos –
meus caros amigos, a nossa casa não tem nada de
luxuosa, mas penso que vos protegerá do frio.
A casa em questão, não era nada mais do que uma
casota velha feita em madeira, pelo menos assim a
primeira vista indicava, nada de majestoso de

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levantava a vista, uma casa de campo, com umas
pequenas escadas em madeira negra, que neste
momento possuíam neve quase na sua totalidade,
que conduziam até um pequeno alpendre com
proteções também elas em madeira, uma madeira
velha que parecia querer desenhar animais ao
longo de si, mas o vento e a chuva já os tinham
deteriorado de tal forma que alguns já mal se
conseguiam reconhecer. O telhado da casa era o
único que não era madeira, sendo todo contruído
com telha vermelha, com a normal estrutura em V
invertido, de forma a que a neve escorregasse e não
acumulasse de forma a partir as telhas, mesmo no
topo do telhado, junto a uma chaminé negra, estava
um símbolo bem português, um galo de Barcelos
que indicava o caminho, com o chegar do fim da
tarde o vento fazia com que o pobre galo ficasse
com a cabeça a roda de tanto mudar de direção,
aquela zona junto a orla costeira podia ser bastante
ventosa, a crista do coitado galo já tinha sido
arrancada durante uma tempestade, fazendo-o
parecer não um galo crescido normal, mas talvez
um frango jovem e careca, a casa possuía ainda
duas janelas na sua parte frontal e mais duas de
cada lado da casa, nas traseiras tinha uma pequena
porta que levava até a cozinha de lume onde
normalmente estavam sentados os empregados que
confecionavam os alimentos, era deste espaço que
se erguia a enorme chaminé, na sua base estava um
velho forno de lenha, que fazia com que todos os
pratos ganhassem um gosto bastante familiar, mas
já voltaremos a este espaço, os amigos seguiram os
seus anfitriões até a entrada da casa, em cima da
porta principal estava uma enorme placa em

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madeira com uma inscrição, no que todos
acreditavam ser islandês, “Megi gæfa Þórs vernda
alla blessaða“, Ariana parou a tentar que a sua
intuição lhe dissesse o que estava escrito naquela
simples frase, mas quanto mais olhava, mais
baralhada a sua mente ficava, ao seu lado apareceu
a colocar os oculos no sitio Romeu que com
imensa rapidez traduziu a frase ali para que todos
pudessem ouvir «Que a Fortuna de Thor proteja
todos os bem-aventurados», disse afirmando que
apesar do seu inslandes estar um bocadinho
enferrujado ainda conseguiria ler o basico.

- O vosso amigo traduziu na perfeição, isso é
uma frase comum, para desejar sorte aos turistas
que nos visitam, mas venham para dentro acredito
que a temperatura ainda vá descer mais!- disse
Marius.

A sala que estava por detràs da porta de madeira,
com vidros em forma de arco de volta perfeira
romano e belamente efeitada com heras
desenhadas na madeira, era uma sala de estar
completamente rudimentar, dois sofàs no centro da
sala colocados de frente para uma enorme lareira,
uma porta que dava para a cozinha e várias peles
de animais espalhadas pelo chão a servir de
tapetes, e inumeras cabeças de animais também
colocadas nas paredes para servir de enfeite e
algumas vezes de porta-casacos, um enorme piano
apenas de decoração ficava encostado a um canto
com um enome Menorá em cima dele com as velas

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todas acesas, por cima da lareira ficava um enorme
crucifixo catolico, com um terço pendurado nele,
naquele espaço todas as principais religiões
coexistiam de forma pacifica.

Os amigos quando viram os sofàs nao pensaram
duas vezes e atiraram-se para cima deles, mas não
encontraram o conforto desejado, muito pelo
contrário, encontraram duas pedras que fizeram
com que as suas costas estalassem de uma forma
horripilante, Tiago e Pierre que tinham conseguido
conter a sua vontade de fazer o mesmo, não
tiveram o mesmo poder para conter os sorrisos que
apareceram nas suas faces depois de ver a
figurinha que todos tinham feitos, pareciam
realmente velhos acabados de levantar de uma
cama da qual nao se levantavam a meses a fio.

- Meus caros amigos, eu entendo a vossa
vontade, mas não ficaremos por aqui, isto é só a
receção do conjunto de alojamento local, apenas a
nossa empregada dorme aqui, bem, pelo menos
aqui em cima.

Chegando ao pé da cabeça de um alce, puxou uma
das hastes e de repente, toda a lareira começou a
rodar e por detrás dela apareceu um lance de
escadas que conduzia a uma divisão inferior.

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Espantados, todos levantaram-se o mais
rapidamente possível, e um a um começaram a
seguir Manel que já tinha começado o caminho em
direção a escuridão.

Era um lance de escadas, com exatamente trinta e
três escadas, embora fossem ligeiramente
inclinadas, não impossibilitavam a fácil locomoção
de quem as tentasse descer.

A divisão á qual elas levavam era de um luxo
extremamente diferente do que fora encontrado no
andar de cima.

Era uma sala de estar gigante, com dois quartos
interligados e uma cozinha em forma de ilha no
meio da sala. Nesta existia sim uma lareira que
conduzia o seu fumo para o mesmo cano que
levaria também o da cozinha do andar de cima,
afinal de contas estavam colocadas na mesma
direção. A sala possuía duas enormes áreas
principais, a dita cozinha equipada com tudo em
tons de preto e cinzento, com a melhor tecnologia
para que tudo fosse servido da forma mais rápido
possível, e a área do lazer, onde estava um enorme
sofá do comprimento de toda a parede da sala, com
visão para um plasma 4K, onde dariam para ver
todos os filmes, com sistema de som implementado
ao longo de toda a sala, havia ainda na parede uma
prateleira incrustada, onde estavam cerca de cento
e cinquenta livros diferentes, no chão já não se

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encontravam peles de animais, mas sim tapetes
feitos também de pelo, mas sem origem animal,
pelo menos de forma tão direta, resumindo era o
refugio perfeito para todo o adolescente
antissocial, neste caso para dois velhos
antissociais. Os quartos, ricamente equipados com
duas camas de madeira de carvalho, com
cobertores de pelo para resistir as noites frias da
Islândia, onde durante certas alturas do ano
conseguem chegar aos oito graus celsius negativos,
nos quartos estavam colocadas ainda na parede
duas pequenas televisões, mas estas apenas com
ligação a rede nacional de canais, que para quem
não conseguia entender islandês era quase igual a
zero, embora por vezes uma imagem valha mais do
que mil palavras.

Rapidamente a ação dos mais cansados foi igual a
primeira, atiraram-se sem pensar duas vezes para
cima do sofá, para cima do que eles pensavam ser
duas mantas quentes, mas mal os seus corpos
chocaram com essas “mantas” rapidamente se
ouviu um alto ganir que passou de imediato para
um rosnar feroz que se multiplicou.

O que estava em cima do sofá, não eram nada
senão duas crias de lobo, uma totalmente castanha
com uma pequena bola de pelo branco a volta do
olho esquerdo e um segundo totalmente cinzento,
com pequenas manchas de pelo negro, os dois
tinham olhos azuis cristalinos, o lobo castanho
colocou-se de imediato atras do cinzento, apesar de

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serem da mesma idade a diferença física entre
ambos era gritante.

Antes que Marius ou Manuel pudessem fazer algo,
apareceram em cena dois velhos conhecidos de
parte dos membros daquela sala, dois enormes
canídeos, um totalmente negro e outro totalmente
branco, colocaram-se a frente dos jovens lobos que
tinham sofrido o “ataque”, com os dentes bem de
fora, colocaram-se em posição de ataque, mas
rapidamente a voz de Marius os tranquilizou:

- Fenrir! Hela! Não é assim que se tratam
amigos de longa data! Estejam quietos! –
Assobiando, fazendo os quatro animais sentarem-
se quietos.

Pierre, Marie, Romeu e Ariana ainda tremiam
como varas verdes, era a primeira vez que se
deparavam com aqueles animais, e logo num
momento de tensão.

- Marius será possível que nos encontremos
sempre com estes majestosos animais em situações
em que eles quase nos arrancam a cabeça? – Disse
Hugo aproximando-se para fazer uma festa na
cabeça de Fenrir e Hela que rapidamente
reconheceram o seu cheiro retribuíram com
lambidelas energéticas na face.

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- Realmente vocês têm queda para atiçar os
bichos! - soltando uma enorme gargalhada.

- Como se chamam estes pequenotes? – Olhando
e tentando fazer uma aproximação aos canídeos
mais pequenos que rapidamente tomaram posições
diferenciadas, o mais pequeno, ainda que a medo
rapidamente se rendeu ao carinho que recebera, o
maior, rosnou e afastou qualquer carinho que
pudesse chegar sequer perto.

- Esses pequenotes arrancam-te a cabeça se não
tiveres cuidado, pelo menos o Tyr, saiu totalmente
rebelde, até contra mim se vira às vezes, o único
que respeita é mesmo o seu pai, já a Eir é dócil de
mais, até esquilos as vezes metem-lhe medo, são
completamente o oposto um do outro.

- Dá-lhes tempo, certamente darão gerações e
gerações de poderosos lobos para vos protegerem,
mas digam-me uma coisa que me tem feito
questionar muito a minha memória, vocês não
tinham ido para a Suécia? – Sentando-se ao lado,
quase colado a Marie, que continuava sem
conseguir controlar os nervos

- Era esse o plano menino Hugo, mas a vida tem
dessas coisas – sentando-se também ele no sofá

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mas na ponta mais distante – por favor não tenham
problemas, vocês os dois são demasiado sérios –
apontando para Tiago e Pierre – bem, onde é que
eu ia, ah já sei, o nosso plano era mesmo ir para a
suécia, um país mais desenvolvido financeiramente
e bastante mais estável, mas decidimos fazer uma
tour pelo mundo antes disso, e numa das nossas
viagens conhecemos um poderoso e rico homem
italiano, com o qual rapidamente fizemos amizade
e numa conversa que tivemos junto ao Tibre, ele
disse que tinha um terreno nesta terra de gelo e que
precisava de o colocar a render, mas que não
queria coloca-lo em mãos desconhecidas, e nós
sem pensar duas vezes dissemos que poderíamos
ficar com ele, porque apesar de contas, este belo
país ate se torna o local certo para criarmos os
nossos bichinhos e vivermos em paz até ao fim dos
nossos dias.

- Como é que se chama mesmo esse poderoso
homem italiano? – Perguntou Romeu

- Penso que seja Donatello, mas não sei o seu
sobrenome, mas porquê meu jovem?

- Por nada, por nada, apenas curiosidade!

- E com vocês o que se passou? O Tiago não
quis abrir muito o jogo, mas vocês estão de rastos a

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todos os níveis, e não se preocupem que o Manel
foi buscar roupas quentes para vocês.

Neste momento, Manel entra com as roupas que
divide e indica onde fica a única casa de banho do
andar de baixo, que ficava dentro de um dos
quartos, era uma lacuna deles, mas normalmente
aquele espaço é apenas para eles, e para mais
ninguém.

Todos a vez começaram a ir-se vestir, ficando
apenas Hugo para contar tudo o que se tinha
passado, Pierre, sem entender nada também ficara
na sala durante todo o tempo, depois de alguns
minutos e de muitas paragens para respirar a
história tinha finalmente chegado ao fim.

Marius recostou-se para trás e respirou fundo e
com uma voz baixinha disse:

- Aquele miúdo sempre foi mais do que
aparentava, mas nunca pensei que estivesse num
mundo tão perigoso, e ainda por cima arrastou-vos
a todos para o mesmo mundo, aquela miúda que
tremia como varas verdes é mesmo irmã dele?

- Sim, todas as provas que temos indicam isso…

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- Esquece esta pergunta idiota, ela tem os
mesmos olhos que ele tinha, mas felizmente com
muito menos escuridão e dor…

- Agora entendo todo o poder que o padrasto
dele tinha, eu sempre pensei que fosse devido as
ligações políticas…,mas afinal ia muito além
disso… - comentou Manel.

- Por agora estão a salvo, tentem descansar,
porque algo me que daqui não vão voltar
descansados para casa, pois não?

- Eu não o posso fazer, tenho de terminar o que
seja que for que o Felipe começou…

- Eu entendo isso, mas por agora descansa –
neste momento chega a ultima pessoa que faltava-
neste caso descansem todos, dividam-se pelos
quartos e tentem descansar, nós estaremos numa
casa mesmo aqui ao lado se precisarem, façam de
conta que esta casa é vossa, se quiserem comer
alguma coisa, nos armários estão bolachas e coisas
do género, aqueçam leite se quiserem, estou a falar
a sério façam de conta que a casa é vossa.

Saíram os dois e antes de se deitarem para tentar
descansar da montanha russa que tinha sido a sua
vida, ainda prepararam uma refeição quente para

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aquecer os estômagos, ali a noite chegava mais
cedo, nada que eles se importassem muito, todos
queriam descansar.

A noite mostrou-se mesmo fria, apesar de estarem
num patamar subterrâneo ainda se conseguia ouvir
o vento a ouvir, os lobos a responder-lhe numa
linguagem apenas deles, a lenha a crepitar na
lareira com o cheiro a lenha queimada, e a
temperatura ótima para estarmos debaixo do nosso
cobertor e descansarmos, todos caíram no sono
bastante cedo, todos menos Hugo.
Ele tentara dormir, mas sempre que caíra no sono
pesadelos assolavam o seu descanso, via Lázaro a
arder no fogo, via Felipe totalmente desfigurado,
com cicatrizes na cara, com um olho branco e com
carne podre na zona do peito, com uma adaga lá
espetada a dizer enquanto se dirigia para ele
moribundo “tu falhaste”, “condenaste todos”, “não
te devia ter escolhido como meu substituto”, de
seguida via todos caídos mortos a sua volta, com
disparos a vir de todos os lados e ele sem conseguir
fazer nada senão ver os seus amigos morrer, a
desaparecerem em cinzas enquanto ele fica
sozinho, isto uma e outra vez seguidos, os seus pés
molhados em poças de sangue, a sua carne a
apodrecer!

Acordara em agonia por volta das quatro da
manhã, totalmente encharcado em suor, com a
respiração totalmente alterada e ainda confuso com
o que seria a realidade e o que seria o sonho, olhou

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a sua volta e estava tudo calmo nos quartos tinham
ficado Marie e Ariana, e no outro Tiago e Romeu,
Pierre tinha-se voluntariado para ficar na sala, para
deixar todos descansar como devia ser.

Vestindo o casaco e colocando um gorro que
encontrara na sala dirigiu-se para as escadas que
levavam ao piso superior, para isso passara mesmo
a frente dos quartos, quando passou á frente do
quarto onde estava Ariana, sentiu a porta a abrir-se,
uma voz doce, por muito que ele quisesse evitar
saíra lá de dentro:

- Onde é que vais? – Era Marie envolvida num
robe de pelo macio.

- Vou só apanhar um bocado de ar, não estou a
conseguir descansar muito bem, mas tu volta para
dentro, está frio e amanhã é um dia importante,
temos de decidir o que fazer…

- Também tenho tido pesadelos…Salamanca foi
mesmo um pesadelo para todos nós, mal saímos de
lá vivos…será que estamos prontos para o que aí
vem?

- Tenho a certeza que sim, afinal de contas tens
o sangue de um Alfa a correr-te nas veias, mas não
te preocupes com isso agora, vai descansar!

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Seguindo o seu caminho sem sequer olhar para
trás, respirando fundo dirigiu-se para a pequena
cozinha de lume e encontrou exatamente o que
queria, ainda algumas cinzas acesas no forno de
lenha e um velho banco de madeira, bem como
uma mesa também ela corroída pelo tempo. Nem
dera pelo facto de não estar sozinho naquele
espaço.

- Acreditas mesmo naquilo que disseste a
miúda?

- Sinceramente não sei, há quanto tempo estás aí
Marius?

Marius tinha ficado no piso de cima para o caso de
alguma coisa acontecer, tinha ouvido a passagem a
abrir e rapidamente tinha acompanhado Hugo.

- Eu fiquei por cá, mas diz-me o que andas a
fazer a estas horas em pé e ainda por cima neste
andar?

- Vim buscar água…

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- Tu não disseste isso, tu sabes perfeitamente
que tens água lá em baixo, podias ser um
bocadinho mais inteligente a inventar desculpas –
batendo-lhe no ombro e dirigindo-se para a porta
de saída – calça estas – atirando um par de botas
preparadas para a neve.

- Onde vamos?

- Vamos dar um passeio, acredito que precises
de conversar, anda, que o espetáculo deve estar
quase a começar!

E assim saíram em direção a escuridão.

A noite estava linda, tremendamente fria, mas
linda, a tempestade tinha abrandado, mas
continuava a pintar a noite com flocos brancos de
neve, o que outrora era um chão com talvez um ou
dois centímetros de neve, possuía agora talvez uns
dez, para se moverem até ao trenó, tiveram de
derrotar a densa neve.
Marius muito mais bem preparado para o frio do
que Hugo, este tinha a roupa que era suposto
protegê-lo do frio dentro de casa, por sua vez
Marius para além da roupa de pelo que já era
normal, trazia ainda um casaco com um capuz de
pelo, umas luvas para o gelo e uns óculos para
conseguir conduzir.

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Decerto que estão a pensar que eles se moveram
num trenó puxado pelos maravilhosos lobos, mas
isso de facto não aconteceu, era um trenó elétrico,
apesar de manterem uma religião bastante antiga,
no que toca ao frio, a tradição acaba sempre
derrotada pela inovação.

Rapidamente chegaram ao seu destino que não era
muito longe dali o trenó cavalgou sobre a neve
como se estivesse a andar sobre uma planície de
verdes ervas, o frio ainda se tinha tornado mais
cortante, parecia que a tempestade desejava
aumentar a sua voz perante o audível barulho que o
trenó fazia, mas rapidamente perdeu esse ímpeto.

O seu destino era a maravilhosa praia de
Reynisfjara, do cimo da colina, Hugo pensara
genuinamente que tinha chegado a uma ravina
porque devido as ilusões criadas pela penumbra da
noite, a areia facilmente parecia uma continuação
do mar.

A praia em questão era das maravilhas mais
maravilhosas que a natureza alguma vez pintou
para os nossos olhos admirarem, uma praia
colocada sobre ravinas, mas a sua areia era negra
como um puro-sangue lusitano, tocava um mar
com uma suavidade brilhante nas medidas que a
escuridão assim o permite, uma das suas colinas

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parecia ter sido construída pela mão do homem,
constituída por uma ravina composta por pequenos
blocos verticais de pedra que construíam uma
escada que uma pessoa com o mínimo de agilidade
podia trepar, parecia uma plena escadaria para o
céu, terminando em planícies que durante a
primavera era verdejantes e davam vontade de
sentar e fazer um piquenique com a família ou com
a pessoa amada (sendo que ambas as coisas são
quase iguais), e de inverno pintava-se de um
branco, tão branco que dava vontade de se atirar
para o meio da neve e fazer os famosos anjos de
neve, fazer guerras de bolas de neve e quem sabe
até esquiar e cair com prazer, era um paraíso a
beira-mar plantado.
Marius e Hugo, deixaram o pequeno trenó
estacionado por cima da ravina de blocos de
mármore, a tempestade naquela zona parecia
bastante mais calma face a fúria que o mar
demonstrava, este embatia com toda força e fúria
contra a areia e contra algumas pedras que se
faziam ver dentro da maré, lá longe onde a vista
ainda alcança caiam raios em pleno mar, era um
espetáculo lindo que causava arrepios, a natureza
tem este poder, por vezes a sua tremenda beleza
causa-nos um terror inexplicável.
Todo encolhido Hugo chegara-se a berma da
ravina e olhara para o precipício que olhava para
ele de volta, e sentido um corpo a passar ao seu
lado, viu Marius começar a descer as placas de
pedra, com toda a voz que tinha dentro da
garganta, gritou para se fazer ouvir:

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- Você é doido? Isso é perigoso, não podemos
descer por aí!
- Se parares sempre que tiveres medo, nunca
vais sair do lugar, eu vou por aqui, se quiseres vir
ótimo, senão ficas aí sozinho. – E continuou.
Hugo num gesto de coragem ou loucura seguiu o
companheiro, neste momento a chuva voltou a
aumentar, as pedras estavam tremendamente
escorregadias, por mais do que uma vez que o pé
lhe ia fugindo em direção ao vazio, ele adotara
uma estratégia desde do primeiro momento, seguir
os passos de Marius, as pedras onde ele se apoiasse
seriam as mesmas onde ele iria colocar os seus pés,
mas chegou a um momento em que isso não seria
mais possível.

Com toda a agilidade que conseguia colocar,
Marius saltou de uma pedra para outra que ficava à
vontade quase a dois metros de distância, algo que
para alguém que tinha vindo a pedir a uma perna
permissão para mexer a outra, seria praticamente
impossível. Hugo estagnou, não se conseguia
mexer, apenas olhava para a distância que o
separava do seu amigo, o coração procurava
respostas que os olhos não eram capazes de dar.

- Então? Vais ficar aí parado e esperar que a
tempestade te congele?

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- Eu não consigo fazer o mesmo que você, não o
consigo acompanhar…

- Nem tens que o fazer! Tu não és obrigado a
seguir o mesmo caminho do que eu, tens de
encontrar o teu próprio caminho, senão nunca
passarás de uma sombra de outra pessoa! – Gritou
Marius e continuou a descer.

Por momentos Hugo desejou nem sequer ter
começado a descida, sentou-se e agarrou os
joelhos, os seus olhos procuraram soluções, mas
parecia que só encontrava formas de cair em
direção ao mar, fosse para a esquerda ou direita,
não havia forma segura de chegar ao chão, para
quem acredita nestas coisas naquele momento, ele
viu um enorme lobo negro em cima da pedra onde
Marius estivera momentos antes, o lobo fitava-o
com um olhar reprovador, e abanava a cabeça de
um lado para o outro em sinal de desilusão, e tal
como apareceu do nada, também assim
desapareceu, sem deixar resposta, nem ajudar a
encontrar uma solução, estava sozinho na noite
uma vez mais.

- Se estiveres à espera da ajuda de alguém, vais
morrer aí, sozinho! – Gritou Marius alguns metros
mais abaixo. – Depois não te admires que os teus
amigos pensem em deixar-te para trás!

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- O que quer dizer com isso?

- Queres descobrir? Vem ter comigo que eu
explico-te.

E o exato sentimento que fez com que Hugo se
sentasse e pensasse em desistir, fez com que ele se
levantasse e corresse atrás de respostas.

Com todo o cuidado do mundo, começou a descer
de pedra em pedra, começou a trilhar o seu próprio
caminho entre as pedras, este é o poder da dúvida,
a mesma duvida que nos dilacera e nos coloca na
cama a chorar a pensar se realmente somos capazes
de fazer aquilo, ou de falar com tal pessoa, a
duvida que nos coloca no fundo do poço, a duvida
que nós colocamos em nós mesmos por mera
idiotice ou por pressão de pessoas externas, essa
mesma duvida que nos impede de alcançar os
nossos maiores sonhos, essa duvida que nos torna
meros mortais quando poderíamos estar a
conquistar a nossa imortalidade e da lei da morte
nos poderíamos estar a afastar, essa duvida que nos
afasta da pessoa que amamos, da família que
queremos junto a nós, essa mesma maldita dúvida
que torna o sol mais brilhante no mais profundo
buraco negro, essa hiena que se ri do nosso
fracasso e se alimenta do nosso medo e do nosso
desgosto, é exatamente essa mesma necrófaga que
nos dá o poder para conquistarmos tudo o que mais
desejamos, é a doce dúvida que nos faz caminhar

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em direção as soluções, é a prazerosa dúvida que
nos faz superar a nós mesmos, é a duvida, é o “ e
se” que nos faz chegar a pessoa de quem gostamos
e dizer “eu sinto isto…”, é essa duvida colocada
pelos outros que nos faz querer mostrar a essas
mesmas pessoas que estamos a altura, não, que
estamos acima do que eles alguma vez acreditaram
que nós seriamos capazes de estar, é a duvida que
nos lembra das pessoas que acreditam em nós, que
nos traz á memória “ será que eles estiveram
errados em acreditar em nós?”. A agridoce dúvida
é o que nos faz caminhar em direção ao nosso
verdadeiro destino, a questão que se coloca é,
estaremos nós dispostos a duvidar?

Hugo duvidou, e com todas as forçar que isso lhe
trouxe ele chegou ao seu objetivo, muitas vezes
escorregou, muitas cicatrizes com certeza iriam
aparecer nas pernas e braços no dia seguinte, o que
lhe corria na face e nos braços já não se conseguia
distinguir entre a água da chuva e o suor causado,
ao fim do que para ele parecia ter sido uma hora,
mas que na realidade tinham sido pouco mais de
vinte minutos, estava no fim da ravina, com o
mundo de pedra atrás de si, que visto daquele
prisma nem parecia tão tenebroso.
- Normalmente é assim, quando ultrapassamos o
desafio ele parece bastante mais fácil, até nos
sentimos idiotas pela dificuldade que tivemos em
ultrapassá-lo pela primeira vez – disse Marius
sentado numa pedra já rodeada de areia negra,
enquanto acendia um charuto, o fumo começou
imediatamente a sair-lhe pelas narinas e pela boca.

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- O que queria dizer com aquilo dos meus
amigos?

- Absolutamente nada… e tu foste só idiota se
pensaste que eu queria dizer alguma coisa.

- Mas…

- Mas nada, foi essa dúvida infantil que te fez
chegar aqui, o medo de perderes aqueles que mais
amavas deu-te força para ultrapassares um
obstáculo e não te deixou murcho e sem forçar,
agora só tens de conseguir fazer isso em todas as
vezes que a dúvida te atacar.

- É fácil falar…

- Sabes…há quem diga que os membros da
maçonaria tinham uma ideologia, denominada
como o “caminho das pedras”!

- O que raio isso tem a ver?
- Não sejas apressado que eu já te explico, neste
dogma maçónico, eles defendem que cada um de
nós tem de trilhar o seu próprio caminho, feito de

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dificuldades, de perdas, de conquistas, de amores e
desilusões, em termos de metáfora é como se todos
nós caminhássemos num percurso feito de pedras,
umas mais afiadas e perigosas e outras mais lisas e
plenas, e cada um tem o seu e nunca poderá copiar
o do amigo ou do vizinho.

- Porquê? Existem pessoas que fazem isso a vida
toda…

- Porque isso coloca em causa o objetivo final da
ideologia, que se baseia na ideia que todos nós
somos pedras imperfeitas, que durante esse
caminho de dificuldades nos dirigimos para a
perfeição, o objetivo é que com o caminho que foi
preparado para nós, através das pedras afiadas
sobre o nosso caminho nós nos vamos limando e
procurando a perfeição, poucos conseguem, mas
aqueles que aceitam o seu caminho e não recuam
perante as primeiras dificuldades estarão sempre
mais perto de o conseguir.

- Se calhar alguns de nós estão destinados a ficar
como uma pedra imperfeita…

- Talvez, mas diz-me já alguma vez viste o
trabalho que dá moldar a pedra, de forma manual?
A escultura de David de Michelangelo demorou
cerca de quatro anos para ser produzida, e sabes
porquê? Porque quando tu limas o lado de uma

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pedra ela não fica totalmente lisa, ela fica com
pequenos altinhos, e isso de todos os lados, o que a
torna imperfeita, talvez fique mais bonita ou mais
resistente, mas fica longe da perfeição, apenas ao
fim de muitas tentativas e de muitos anos, de
muitas falhas e tentativas é que se consegue
alcançar a perfeição imperfeita, se transformares
isto numa metáfora para a vida do ser humano,
talvez a consigas compreender melhor do que
ninguém.

- Eu não sou como ele…

- Tens razão, não és nem de perto nem de longe
como o menino Felipe, ele era um líder nato, desde
do primeiro momento que percebi que ele era um
Alfa, uma pessoa que todos seguiriam até ao fim
do mundo se ele assim lhes pedisse, e vocês
estarem aqui é a prova provada disso, mas também
não tens que ser, se ele confiou em ti é porque
encontrou em ti todas as capacidades, algumas que
se calhar nem ele tinha para terminar a sua missão.
O teu erro desde que saíste da cidade dos
estudantes foi pensares que tinhas de ser um novo
Felipe, quando todos te pediam apenas para seres o
Hugo.

- Mas o Hugo não tem capacidade para liderar
pessoas…

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- Por vezes um grupo não precisa de ser
liderado, apenas precisa de ser guiado, e às vezes a
melhor forma de guiar um grupo é unir todos com
laços de amizade e amor e nisso o Felipe era
péssimo, ele apenas amava a si mesmo, e isso fez
com que ele tivesse o final trágico que teve, tu não
és igual a ele, e às vezes penso que ainda bem. O
amor e a amizade podem ser bastante mais
poderosos do que o ódio ou a vingança, mas ele
nunca entendeu isso, ele contruiu uma corrente de
ódio que todos vocês ainda carregam hoje em dia.
Como é que é o filho dele?

- Não sei bem, tive pouquíssimo tempo com ele,
mas carregando o mesmo sangue dele deve ser
bastante parecido…

- Não vás de todo por aí, aquela miúda que está
lá em casa também tem o mesmo sangue nas veias
e não tem nada a ver com o Felipe, se a Ariana não
me contasse que era ela irmã dele nunca teria lá
chegado…

- Ela passou por muito, está a descobrir todo este
novo mundo, um irmão que nunca conheceu…

- Tal como todos os restantes, mas eu percebo
que sejas complacente com ela, os sentimentos
falam mais alto…

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- Quais sentimentos?! – Colocando-se hirto a
olhar de lado para Marius.

- Vou-te dizer a mesma coisa que disse ao Felipe
há cerca de dezassete anos, até um cego
conseguiria ver que tu gostas da rapariga, e duvido
que não seja recíproco. – Puxando de um cigarro
para fumar, a chuva começava a diminuir a
intensidade, passando a ser apenas chuviscos que
mal molhavam quem se colocava debaixo deles.

- Eu jogo no outro campeonato, e para além
disso ela tem idade para ser minha filha.

- O amor é amor, seja ele de homem para
homem, de homem para mulher ou de mulher para
mulher, e a idade se o sentimento for genuíno
também é algo secundário, parece-me que uma vez
mais o medo te está a impedir de fazer o que é o
mais correto, mas deixa-me estar calado, da última
vez que dei um conselho amoroso a alguém ele
morreu a pessoa que amava também…

Naquele momento começou um dos espetáculos
mais bonitos do mundo, difícil de ver, mas
delicioso para os olhos que o conseguem saborear,
a aurora boreal pintou os céus, os céus que outrora
eram negros e fechados, abriram-se em

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maravilhosas cores fluorescentes, um verde, um
azul e a mistura dos dois pintou o céu, como se um
enorme pano fosse estendido ao vento e colocado
sobre o céu que agora se mostrava azul-escuro,
trocando o pesado negro da chuva que passara, as
cores ondulavam e faziam sentir como se todos
estivessem mais perto dos deuses, como se
Valhalla estivesse mais perto, como se o
Armageddon não fosse algo tão temível, perante
aquela beleza a nossa existência torna-se quase
supérflua, no mar a imagem era refletida, Hugo
ainda teve a tentação de mexer nas águas para
tentar tocar o intocável, era de facto um espetáculo
bonito, com um significado muito especial, a
aurora boreal aparece várias vezes ao longo dos
meses, mas ganha a sua fase mais bonita na altura
dos solstícios e equinócios, marcando a mudança
de estações, mostrando a transformação do mundo.

- A aurora boreal simboliza a mudança, não sei
qual é o caminho que irás seguir Hugo, mas espero
que sigas o caminho que deixará o Felipe
orgulhoso esteja ele onde estiver, tal como a aurora
boreal aparece no fim das tempestades, agora que
passaste pelo tormento de Salamanca tens de
conseguir iluminar o resto do teu caminho, a falar
nisso, lembraste de cor do enigma que o Felipe te
deixou?

- Acho que sei qual caminho
tomar…sinceramente já me lembrei, mas neste
momento o sono já me começa a trair.

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- Não faz mal, daqui a pouco também já é dia, e
tu tens de ir descansar, vamos para casa.

- Só de pensar que temos de escalar aquilo tudo
outra vez – apontando para o mundo de blocos que
se erguia a frente deles.

- Não temos – empurrando uma ervas
trepadeiras que apareciam junto a base da ravina
que eles tinham descido durante a tempestade,
abria-se um caminho construído pelo homem, com
escadas de pedra, mas muito mais seguras – às
vezes o único caminho visível, não é de todo o
único caminho possível – soltando uma enorme
gargalhada.

- Você é mesmo do piorio, da próxima vez não
me engana.

- Claro que engano, conheço estas terras muito
melhor do que tu.

- Verdade… obrigado Marius.

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- Não tens de agradecer, simplesmente não
quero ver um Alfa perdido entre cordeiros-
piscando o olho.

Os nossos amigos ficaram nas terras dos gigantes
de gelo durante cerca de três meses, por muito que
a sua vontade de voltar a missão tivesse sido
recuperada gradualmente, o bem-estar que Marius
e Manel lhes davam era dez vezes superior.

Durante o tempo que lá permaneceram, várias
histórias entre eles se desenvolveram, vamos ver
algumas delas; Ariana e Tiago por muito que
desejassem manter em segredo o seu pequeno
romance, os seus corpos por mais do que uma vez
se uniram dentro daquelas quatro paredes, eles
assumiram a liderança do grupo, distribuindo
tarefas e deliberando se alguém estava a fazer bem
ou mal as suas funções, tentaram por mais do que
uma vez saber qual era o último país, poderia ser
qualquer país do mediterrâneo uma vez que todos
eles tinham ligações a máfia, uns de forma mais
organizada outros nem tanto, neste trabalho, muitas
vezes as folhas que estavam a ser usadas para
decifrar o mistério ganharam outra funcionalidade.

Romeu e Pierre, tornaram-se extraordinários
amigos, como se já se conhecessem há anos,
tinham gostos muito parecidos e capacidades
similares bastante similares também, juntos
conseguiram programar todos os telemóveis para

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que não fossem detetáveis, passavam as suas tardes
a jogar xadrez temporizado, e tenho bastante
duvidas que não tenham partilhados ambições e
desejos pessoais, havia algo que os unia, ambos
apareceram do nada e conseguiram a confiança de
quase todos, uma pessoa com capacidade é sempre
útil, afinal o segredo das relações interpessoais é
mesmo esse, não é? Enquanto formos uteis
permanecemos num pedestal, quando surge uma
pessoa mais útil do que nós, somos facilmente
substituíveis, por isso se quiserem um conselho de
um mero narrador, arranjem forma de serem
sempre uteis ou insubstituíveis naquilo que fazem,
senão temo que tenham relações extremamente
curtas.

E por ultimo, Marie e Hugo, por coincidência ou
desejo de ambos, faziam tudo juntos, desde de
lavar a loiça, a colocar a mesa, a ir apanhar lenha, a
levar a passear os lobos, bem de certa forma eram
os lobos que os levavam a passear e não o
contrário, os animais tinham uma forma sobre-
humana, nos bosques por onde passeavam, muitas
vezes faziam bonecos de neve, atiravam bolas de
neve e faziam anjos de neve, nunca ficavam até
muito tarde com medo do escurecer, parece que
vos estou a contar a história de dois adolescentes,
mas isto foi o que um homem de quase quarenta
anos fez acompanhado por uma miúda de dezoito,
tudo dava para brincarem, mas se querem saber
detalhes mais pesados, não nunca saiu um beijo, o
máximo de afeto que existia eram pequenos
abraços que aqui e ali apareciam, e os olhares,

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esses sim, falavam mais do que qualquer toque,
não me atrevo a dizer que era a linguagem do
amor, mas certamente era a linguagem de algo
muito mais forte do que uma mera amizade.

Vamos avançar mais um bocadinho? Eles tinham
estipulado que só ficariam até ao início de
dezembro, mas subsistia um problema, não sabiam
para onde ir, a possibilidade de voltar para
Portugal e tentar descobrir o destino final junto do
resto da Alcateia era algo que cada vez ganhava
mais força, mas numa última tentativa de
decifrarem o enigma, colocaram-no numa folha no
meio da sala e todas as cabeças começaram a
pensar em volta daquelas palavras:

“A terra de nostros hermanos terão de ir, á cidade
do conhecimento de pedra, sobre a ponte bovina,
os dois leões rugem em direção ao céu. Se mágoa
aqui encontrarem ao país dos gigantes de gelo
terão de ir, refúgio no passado encontrarão. Mas o
final da vossa missão, numa praia mediterrânea
encontrarão, na terra da máfia, na casa do dragão
terão de entrar e deixar que o destino comandar.”

Ninguém parecia estar mais perto de decifrar o
enigma, pareciam literalmente burros a olhar para
um palácio, mas o silêncio foi interrompido por
Romeu:

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- Se calhar o mais sensato é voltarmos a
Portugal e junto dos anciãos tentar decifrar o que
resta do enigma, é que literalmente pode ser
qualquer país que tenha fronteira com o mar
mediterrâneo, porque todos eles possuíram ou
possuem famílias mafiosas…

- Mas nós já estivemos em dois deles, não
acredito que o enigma nos leve novamente a
Espanha, e muito menos que o líder estivesse
debaixo dos nossos narizes todos estes anos – disse
Tiago – Nem o Felipe era capaz disso, de fazer um
enigma que conduz duas vezes ao mesmo sítio.

- Até parece que não conheces o Felipe esse é
realmente o objetivo dele, baralhar quem
encontrasse o objetivo, era bem homenzinho para
nos levar duas vezes a Espanha, não haverá outra
casa segura, por exemplo em Madrid ou em
Barcelona? – Disse Ariana

- Tenho as minhas dúvidas, posso não saber a
localização de todas as casas seguras, mas
analisando a localização das que eu conheço, as
casas seguras mais poderosas nunca estão nas
cidades mais importantes, devido ao tráfego de
pessoas e poder mediático que lá existe,
normalmente eles mantêm-se a margem para poder
controlar sem deixar rasto – completou Marie.

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- Mesmo não sabendo qual é o país, mantermo-
nos aqui não vai adiantar nada, temos de ser
resilientes e se tivermos de percorrer todos os
países que já tiveram ou têm mafia assim faremos,
não vou deixar que o objetivo do Felipe caia por
terra! – Afirmou com a voz a tremer Hugo,
tentando marcar posição, mas deixando o
nervosismo falar mais alto.

- Poderia eu falar? – Pediu Pierre, no inglês que
todos já se tinham habituado e que com a ajuda de
Romeu até tinha melhorado consideravelmente.

- Força Pierre, de certeza que terás uma ideia no
mínimo tão inútil como as nossas – disse Tiago.

- Vocês já percorreram dois países que podem
ser solução para esse “enigma” que eu ouço tanto
falar, certo? – Recebeu um aceno positivo da
cabeça de toda a gente – Bem, então para sermos
minimamente lógicos, por ventura poderíamos
começar por outro país que fosse hipótese, e esta
casa dá uma enorme pista, o dono deste terreno é
italiano, por isso poderiam começar por ai, eu sei
que pode parecer idiota visto que eu não conheço
de todo a vossa história, mas todos nós já vimos o
filme do “The Godfather”, que é todo ambientado
na Sicília que pertence a Itália, por isso talvez
fosse bom começar por aí, mas é só uma ideia.

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- Acho que até pode ser uma ideia interessante –
concluiu Romeu – E visto que não temos nenhuma
ideia melhor, podemos aproveitar esta.

Hugo encostado a ombreira da porta, estava a
mexer no cabelo que já começava a ficar grande,
questionou-se internamente várias vezes, não tanto
pela resposta dada, que no meio de tanto “nada”
até poderia fazer algum sentido, mas sim da parte
de quem vinha e do apoio quase imediato que tinha
recebido por parte de Romeu, a pergunta quase que
lhe saiu pela boca, mas acabou por a controlar e
fazer outra:

- Marius, Manel, onde vive o vosso amigo
italiano?

- Penso que seja exatamente na Sicília. -
Respondeu Marius, começando-se a levantar do
sofá

- Por favor, liguem-lhe e digam-lhe que vamos a
caminho, temos de começar por algum lado. -
Todos se levantaram, Tiago pegou de imediato no
telemóvel para comprar os bilhetes e telefonar para
Portugal para indicar o seu próximo passo. – E
mais uma coisa, Pierre, tu vens connosco, gostei da
tua ideia e a tua “personagem” pode-nos dar jeito.

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- Espero que estejam a contar connosco também
– disse Marius.

- Não vos posso pedir isso, isto certamente que
será ainda mais perigoso do que foi em Salamanca,
não posso correr o risco que vos condenar a morte.

- Então considera isto uma eutanásia, nós vamos
convosco e tu não podes fazer nada para impedir
isso. – Disse piscando o olho Marius – compra
mais dois bilhetes Tiago.

- Já tinha comprado!

- Alguém neste grupo que seja inteligente.

- O nosso voo parte amanhã de manhã, por isso
convém irmos fazendo as malas, para estarmos a
horas no aeroporto.

- Quanto tempo vamos ter de estar dentro do
passaroco de metal? – Perguntou Manel.

- Vamos estar lá cerca de sete horas, mas
porquê?

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- Para saber quantos Sudokus é que levo.

A gargalhada tomou conta da sala, estavam todos
prontos para ir para a última parte do enigma, mas
estariam eles prontos para o que se esconde atrás
dela?

Mas antes de irmos para a etapa final, vamos voltar
a Portugal pode ser?

Portugal, Casa do Telhado Vermelho
Francisca, acabara de abrir mais uma carta do
gabinete de advogados que continuava a defender a
causa de Diogo Los Santos, por alguma razão as já
três derrotas por vias legais não afastavam as
malditas sanguessugas que não iriam descansar
enquanto não conseguissem parte da empresa,
desta vez apelavam que o grau de parentesco entre
Diogo e Inês não era de “primos”, mas sim de
meios-irmãos, o que na lógica até era verdade, mas
que legalmente não era possível provar uma vez
que ela nunca iria aceitar fazer um teste de ADN,
primeiro porque seria de loucos continuar a
arrastar esta situação e segundo porque isso iria
colocar em risco o mínimo controlo que ainda
mantinham nas empresas, que elas próprias tinham
fundado e do poderio que ainda conseguiam
manter na cidade.
- Este teu primo é do piorio…- recostando-se no
sofá atirando a carta para longe.

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- O que é que ele quer agora?
- Mais do mesmo, quer parte da empresa, mas
agora vem com um argumento extremamente
válido, e isso assusta-me.
- O meu grau de parentesco…não é?
- Exatamente, não podemos continuar com esta
luta, temos de lhe dar um jeito, de uma vez por
todas.
- Agora pareceste muito o meu tio…
- Pode parecer aterrorizador, mas acredito que se
ele fosse vivo, este sujeito já nos teria largado a
virilha há muito tempo…
- Talvez, mas se ele fosse vivo tu ainda serias
uma empregada e possivelmente a Marta nem
estaria connosco, por isso foi bom ele ter morrido.
- Sim tens…- fazendo-se ouvir a campainha.
- Esta malta tem mesmo pontaria.
Inês levantou-se e foi abrir a porta, quando puxou a
enorme porta de madeira nem sequer se dignou a
olhar para quem estava a sua frente, apenas disse
com uma voz poderosa:
- Será que o assunto que o trouxe até nossa casa
não poderia esperar até amanhã, o horário de
trabalho está quase no fim.
- Então é assim que tu tratas o teu meio-irmão,
maninha?

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Diogo entrara sala adentro sem dar tempo para Inês
conseguir fazer nada, Francisca levantara-se e
colocara-se de imediato numa posição defensiva,
olhando de forma nervosa para a sua companheira.
- Que raio fazes aqui? Queres que chame a
polícia para te acompanhar a saída ou vais
sozinho?
- Eia tem calma cunhadita, eu vim cá para
negociar, para podermos acabar com estas malditas
guerras familiares, isto dá-me cabo da tensão.
- Primeiro não sou tua cunhada nem nada que se
pareça, e segundo o que ganharia tu com o término
deste conflito, tu já perdeste imensas batalhas e
parece que o simples sentimento de guerra e falta
de paz é o que te faz continuar, por isso não vejo
motivo para continuares na nossa casam, sai antes
que eu tenha de chamar alguém para te tirar a
força!
- Disseste tudo agora Francisca, esta é a nossa
casa – atirando-se para cima do sofá colocando os
pés em cima da pequena mesa que aparecia mesmo
a sua frente quase atirando com a pequena planta
suculenta que servia de enfeite- esta casa é tão
minha como vossa, e se quiseres que eu vá mais
longe até digo, esta casa é mais minha do que tua,
uma vez que pertenceu sempre ao meu pai, e só
apos a morte dele, causada pelo teu pai, e que
passou para o senhor Luís Los Santos, por isso se
alguém está aqui a mais és só tu minha querida!
- Estas redondamente enganado meu degenerado
parente, aqui quem está a mais és tu, o teu pai caso
não saibas, deixou-me tudo a mim, por isso quando

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me casei com a Francisca ela passou a herdar
metade de tudo o que é meu, por isso aqui quem
não tem nada para além do nome Los Santos, e
sendo isso uma vergonha para a família és tu!
- Vocês é que são umas aberrações e eu é que
envergonho a família? Vocês que não conseguiram
arranjar um homem que vos mostrasse o que é
bom, é que são normais? Mas pronto, mesmo já
estando a educar a vossa filha para o mesmo, eu
até sou capaz de vos perdoar isso, como disse eu
não vim para discutir, eu vim apresentar uma
proposta para acabarmos com toda esta confusão e
pudermos ser uma grande e feliz família!
- Sai desta casa imediatamente! Ou juro que só
sais daqui dentro de quatro tábuas – gritou
Francisca.
- Eia estás agressiva, mas uma regra básica para
sobreviver é que quem não pode morder não deve
rosnar, principalmente adversários mais fortes.
- E tu és mais forte desde quando? – Correndo
para junto da mesa de jantar, Francisca estica a
mesa e de um compartimento secreto retira e lá um
pequeno revólver com o emblema da família
cravado ao longo do cano, tremendo como varas
verdes faz pontaria ao peito de Diogo que
rapidamente muda de feições e bem devagar se
começa a levantar do sofá e a dirigir-se para o lado
da porta onde se encontrava Inês. – Eu não faço
ameaças, eu dou avisos!
- Uau, parecias mesmo uma Los Santos a falar, é
bom saber que não sou o único que mantém o
ADN de leão nas veias, mas tu ainda tens muito

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que aprender priminha – colocando-se atrás de
Inês, e sacando de uma pequena arma descartável
que trazia no bolso do casaco, da um pequeno beijo
da face da meia-irmã, e cheirando o seu cabelo, no
fim um sorriso macabro na face disse – Vocês
cuidam-se mesmo bem, como eu estava a dizer,
tens muito que aprender, porque para poderes
ameaçar alguém tens que ter a certeza que és a
mais forte na sala e que não tens nada a perder, eu
por exemplo neste momento podia arrancar-te tudo
o que quisesse, mas como prova da minha boa
vontade só te peço para baixares a tua arma e eu
puder fazer a minha proposta como uma pessoa
civilizada, achas que pode ser?
Francisca ficara branca como o cal da parede, ela
por momentos achara que podia terminar com
aquele maldito parasita que a atormentava a ela e a
sua amada família, que as horas de treino de tiro ao
alvo finalmente iriam dar certo, que não podia
falhar nada, que ia ser a leoa que ia rugir mais alto,
mas no final de contas não tinha passado de uma
gatinha com medo do escuro, tinha definitivamente
muito para aprender, mas quanto mais olhava para
aquele traste, maior era a vontade de puxar o
gatilho, mas o risco de acertar em Inês era muito
grande e de não o matar era ainda maior, ela que
no início poderia negociar com todo o poder
intocado, agora estaria a mercê das condições de
um lunático mas não poderia fazer muito mais,
calmamente começou a baixar a arma em direção
ao chão, teria sido suficiente colocá-la em cima da
mesa, mas ela não queria arriscar nem um
bocadinho.

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Em resposta Diogo largou e empurrou Inês para o
lado contrário é apoiando-se no corrimão das
escadas, recolocou a arma no bolso de dentro do
casaco, afinal de contas ele sabia perfeitamente que
tinha uma velocidade de reação muito mais alta do
que elas as duas juntas, por isso ele possuía o
“higher-ground”, agora era só começar a negociar
e esperar que elas fossem sensatas, com uma voz
trocista retomou a palavra:
- Agora que todos estamos mais calmos, posso
apresentar-vos a proposta que gostaria que vocês
aceitassem, e como podem ver eu não venho cá
exigir-vos nada, apenas propor-vos algo sensato
para todos. Bem, a minha a minha proposta, tem
duas partes, na primeira eu abdico totalmente dos
meus direitos a empresa do nosso tio barra pai, isso
não interessa, e deixo-vos comandar este império
em falência sozinhas. O que vos parece?
- Parece-me que vais pedir algo em troca, não
ias desistir assim tão facilmente – disse Francisca,
já com Inês nos seus braços.
- Mas isso é óbvio, afinal de contas sou um Los
Santos, em troca quero a vossa ajuda legal e
monetária para acabar com uma praga que o nosso
tio também queria ver extinta, ajudam-me a acabar
com a The Pack, e voltamos a ser uma família
unida e feliz, afinal de contas está-nos no sangue
acabar com aqueles cachorrinhos, o que me dizem,
não estou a pedir muito, apenas a pedir a vossa
colaboração.
- Não contes com a nossa ajuda para nada –
disse friamente Inês.

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- Não querem nem pensar? Devíamos seguir as
pisadas do último verdadeiro leão.
- Um leão maníaco e completamente
desequilibrado, que matou inocentes, nessa direção
desenfreada de busca por vingança, que se
envolveu numa luta que o conduziu a morte, e com
muita justiça, um homem que matou parte da
família para poder ganhar poder, para ser o
verdadeiro e único Leão Dourado, não tenciono
que esse sentimento volte a entrar nesta casa,
nunca mais!
- És mesmo filha da tua mãe, fracas e sem noção
da família em que estão, nem sei por que razão
ainda pensei que pudesse encontrar alguma
racionalidade da tua parte, e a tua resposta
Francisca, é igual?
- Igualzinha, se não tens mais nada a dizer podes
retirar-te de nossa casa, encontramo-nos nos
tribunais, e não penses que vais vencer! Afinal de
contas, como tu gostas tanto de lembrar, somos
Los Santos!
- Tomem atenção á vossa filha, a partir de hoje
eu não vou avisar mais, e não há mais negociações,
vocês vão vergar, nem que seja a força, se
mudarem de ideias, está aqui a morada onde me
podem encontrar- deixando um pequeno cartão
com o símbolo da Mano de Dios.
- Diogo, deixa a Marta fora disto, se não vamos
ter problemas sérios! - ameaçou Francisca.
- Problemas como os dessa arma – apontando
para a arma que estava em cima da mesa – não me

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parece que tenhas poder para fazer ameaças, eu
tenho a faca e o queijo na mão, agora é só deixar as
peças mexerem-se- dirigindo-se para a porta.
No momento em que ia abrir a porta, a mesma
empurrada pelo lado de fora, quase lhe bate na
cara.
Recuou e mesmo quando estava para abrir a boca
para “amaldiçoar”, quem teria feito aquilo, vê que
a responsável é Marta.
A jovem vinha com um brilho diferenciado nos
olhos, vinha ainda a cantarolar uma música que
tinha ouvido na rádio no caminho para casa,
parecia que vinha a voar, nem reparou que tinha
um corpo estranho no seu caminho, entrou, fechou
a porta e seguiu em frente enquanto tirava o
telemóvel do bolso, chocando diretamente com
Diogo.
- Tens de ter cuidado rapariga, o capuchinho
vermelho será sempre uma presa para o lobo mau –
disse Diogo segurando-lhe os ombros, com um
sorriso de malicia na boca.
- Se o cachorro mau não quer partir as patinhas,
é bom que me largue – respondeu sem sequer olhar
para ele nos olhos.
- Tens energia, isso é bom, mete mais piada, vá
boa noite a todas, e tu menininha, tem cuidado, a
noite é extremamente perigosa.
E saiu.
Francisca deixou-se cair numa cadeira, o suor fazia
com que a sua testa brilhasse, Inês apoiada na mesa

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tinha uma cara de preocupação que até um cego
conseguiria ver, todo este sentimento era
contraposto pela enorme alegria que emanava de
Marta.
- O que se passa com vocês? Parece que viram
um fantasma, ou então que alguém morreu! Quem
era este sujeito armado em bom?
- Infelizmente aquele traste ainda é do nosso
sangue… - disse Inês
- A nossa família e completamente louca,
gostava que me contassem mais coisas sobre ela…
afinal de contas só vos conheço a vocês e sei que
ainda existem leões solitários por aí…
- A seu tempo saberás, para já não é necessário,
ainda és muito nova.
- Sou muito nova, mas sou a futura herdeira de
tudo o que a família possui, acho que mereço saber
- sentando-se no sofá com as pernas cruzadas e um
olhar felino.
- E saberás, quando nós decidirmos que é o
momento certo para tal, até lá preocupa-te com os
teus estudos, a falar nisso, como correu o primeiro
dia? Vens particularmente feliz e respondona.
- Correu maravilhosamente, adorei os
professores, adorei os colegas, e reencontrei aquele
rapaz com o qual me tinha cruzado no meu passeio
a beira-rio há uns meses, somos da mesma turma, e
digamos que ele é minimamente simpático –
começando a remexer no cabelo e deixando a sua
mente flutuar até ao início daquele dia.

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Depois de entrarem na sala de aula juntos, todo o
dia que se seguiu fugiu completamente do Marta
tinha planeado para o seu primeiro dia, tinha
pensado em apresentar-se ao maior numero de
pessoas possível, fazer o máximo de contactos,
chamar a atenção dos professores pela positiva,
mas definitivamente foi exatamente o contrário que
aconteceu, desde do primeiro momento que a sua
atenção tinha ficado presa apenas em Luís, tinham
entrado juntos e passaram o dia todo de igual
forma, ele com uma postura que as suas mães
teriam julgado de forma negativa com toda a
veemência possível, um típico bad-boy, que
mesmo sendo conhecido por toda a gente não se
importava minimamente em fazer asneiras, em
todas as suas aulas tinha irritado ou discutido
diretamente com os professores, fazendo piadas
com a sua forma de vestir ou simplesmente pela
forma como apresentavam os seus cabelos, com
uma pastilha de menta na boca, recostado sobre a
cadeira e com a perna traçada como se estivesse
num café a aproveitar um sun-set, fez da sala o seu
pequeno parque de diversões. Rapidamente esta
atitude conquistou grande parte dos presentes,
apenas os nerds o odiavam e internamente de
forma secreta desejavam ser como ele, todos os
restantes sentiam fortes sentimentos por ele de
forma explicita, os rapazes encontraram nele
alguém que poderiam seguir, que apesar de ser
extremamente inteligente não se preocupava
minimamente em aplica-lo naquelas aulas inúteis,
mas que sempre o faria para se livrar a si próprio e
quem o acompanhasse das suas burridades, e as
raparigas, algumas delas que nunca tinham vindo

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para a cidade prenderam o seu olhar naquele
sorriso branco e naquela forma de ser que mostrava
importar-se apenas consigo próprio.
Marta por algum motivo sentia que precisava
mostrar que o conhecia e que até era minimamente
importante para ele, por esse motivo
acompanhava-o sempre, tentando controlar um
bocadinho aquele ar de mandão rebelde.
O dia passou a voar, se perguntassem a Marta o
nome dos professores que conheceu hoje, ela
certamente iria inventar, contudo se lhe
perguntassem as piadas que o jovem Luís fez
durante as mesmas aulas, ela conseguiria conta-las
com um sorriso no canto da boca, quando se
despediram no fundo das escadas da escola, por
algum motivo o seu corpo começou a arder e a sua
mente a ficar confusa, parecia não conseguir
responder a si própria, e no caminho para casa,
uma alegria estupidamente alta invadiu-a de tal
forma que até a colocou a cantar uma melodia de
uma música que odiava a imenso tempo, mas que
naquele dia até parecia ser bonita.
- Terra chama Marta, Terra chama Marta – disse
Francisca enquanto lhe tocava no ombro.
- Sim mãe desculpa, estava perdida…
- Perdida ou com esse tal rapaz? – Disse
sorrindo.
- Estás doida? Somos apenas bons amigos –
começando a corar.

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- Obviamente, e eu sou o pai natal, mas isso não
é mau, desde que não te desvie dos teus estudos, tu
és inteligente e extremamente bonita e normal que
os rapazes olhem para ti com segundas intenções,
mas tem cuidado para não te magoares.
- Nenhum homem me conseguirá magoar, mais
rápido parto eu alguns corações – soltando uma
pequena gargalhada.
- Nem uma coisa nem outra, aprende a amar e a
ser amada na medida certa, pois alguém que ama
demais poderá facilmente ser magoada e deixada
ao abandono, mas alguém que não saiba amar
estará mais perto da solidão do que qualquer outro,
para tudo é preciso um meio-termo, a lei do Ying e
Yan.
- Sou demasiado nova para saber a história da
nossa família, mas tenho que entender o equilíbrio
do nosso mundo, vocês têm a noção da dificuldade
dos desafios um bocadinho trocadas – sorrindo e
cruzando os braços.
- Ao contrário minha querida – disse Inês
sentando-se ao seu lado e dando-lhe um beijo na
testa – no momento em que conseguires entender o
equilíbrio de tudo que nos rodeia, nesse momento
estarás preparada para ouvir a nossa história e
aceitares que não há apenas um lobo mau e um
capuchinho vermelho, mas sim dois lados para a
mesma história e que nenhum deles esta
completamente certo, mas isso não é para agora,
para agora é o nosso jantar que a minha barriga já
está a dar horas!

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- A minha também, mas não me apetece ir
cozinhar…. Que tal pedirmos uma pizza? - disse
Francisca
- Parece-me uma ótima hipótese, era a cereja no
topo do bolo que foi o meu dia! – Afirmou Marta.
Certamente estarão a espera que vos conte como
evoluiu o romance destes dois pequenos rebentos,
mas não entrarei em pormenores, até porque foi
como qualquer outro romance juvenil, começaram
devagarinho, foram acelerando e quando deram
por si já não eram apenas amigos, mas também
ainda não eram namorados, estavam naquela fase
confuso que todos os adolescentes ficam, que
adoram denominar de “curte”, eles andavam a
“ficar” um com o outro, havia exclusividade, havia
sentimento, mas ainda não tinha existido um
pedido oficial de namoro, que para uma geração
que quebra tantos dogmas e tradições, tal como
eles quebraram num dia em que nenhuma das mães
dela estava em casa no sofá da sala, era totalmente
impensável, uma vez que possuir uma relação
baseada em sentimentos verdadeiros e em ações
que demonstram puro interesse não é suficiente,
mas a afirmação por palavras com uma frase que
foi mais vezes ditas por pessoas bêbadas do que
por pessoas que realmente amavam torna-se o
motivo mais seguro e completo para se iniciar um
relacionamento. Os relacionamentos interpessoais
são o espelho da sociedade em que estão inseridos
e os de hoje em dia e das futuras gerações são a
representação perfeita da sociedade, extremamente
burocráticos, ocos, falsos e temporários, porque

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afinal de contas prendermo-nos a uma só pessoa
torna-se secante não é verdade?
Mas vamos avançar um bocadinho até um final de
tarde passado a beira-rio, como já se tinha tornado
uma tradição deles, sempre que conseguiam iam
para lá e se desligavam do mundo, neste final de
dia estava uma brisa que fazia todas as ervas
abanarem suavemente, a maré do rio mondego
mantinha-se calma e serena, junto às margens
mantinha-se o lixo que acumulava la todos os anos,
o musgo e alguns peixitos mortos, a ponte Pedro e
Inês servia de moldura para todos os que visitavam
a cidade, afinal de contas uma fotografia numa
ponte com as cores do arco-íris era algo totalmente
original, eles tinham-se colocado debaixo das
fundições dessa mesma ponte, com uma mantinha
para não sujar as roupas, uns sumos, ainda era cedo
para beber álcool, e alguma coisa para ir forrando o
estomago, e ali estavam eles a comer, comida e
não só, a beber e a falar de tudo e mais alguma
coisa.
- Podíamos ficar assim para sempre- disse
suspirando Marta.
- Para sempre não digo, mas pelo menos até
amanhã talvez, porque sem dúvida que as tuas
mães viriam atras de mim com toda a polícia da
cidade, e levavam-me preso por te raptar.
- Não sejas idiota, elas sabem que eu estou aqui
porque quero, e elas só podem aceitar.
- Mesmo sem saberem quem eu sou?

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- Claro, bem, acho que sim, mas agora que falas
nisso, eu própria não sei muito sobre ti, nem sobre
a tua família, acho que já está na hora de me
contares não achas?
- Esperava que nunca fosse necessário, não é
algo que me orgulhe muito ou sequer que seja
grande cartão-de-visita.
- Não interessa, seja o que for não vai mudar o
que sinto por ti. – Dando-lhe um beijo na
bochecha.
- Não deve ser assim tão linear, mas acho que
ias acabar por descobrir de qualquer maneira…
Marta senta-se impaciente, queria saber tudo sobre
aquele rapaz que lhe tinha virado a vida de pernas
para o ar nos últimos meses.
- Antes de te contar acerca da minha família, tu
sabes quem foi o poderoso Alfa, certo?
- O chefe daquela organização, The Pack, não é?
- Sim, para ti ele é um monstro ou um herói?
- Pelo que eu vi na exposição no Machado de
Castro, e pelo que nos contaram acredito que
consoante o ponto da sua ação possa ser
considerado um bocadinho dos dois, não acredito
que existisse apenas maldade nas suas ações, mas
obviamente que também não consigo considerar
um assassino um herói, acho que depende do que
em que nós quisermos acreditar, mas porquê?
- Porque ele era o meu pai, sou filho de um
monstro…

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- É como te disse, ele fez muitas coisas boas
também, talvez o nome Alfa cause algum terror
ainda, mas sem dúvidas que o nome Felipe Ferreira
ainda causa admiração, não te esqueças na nossa
escola temos um concurso de escrita com o seu
nome, nunca iam homenagear um monstro, mas
conseguem homenagear um grande homem.
- Tenho um bocadinho de dificuldade em
separar os dois, mas espero que se consiga separar
mesmo e que eu tenha herdado apenas o lado do
Felipe.
- Sabes uma coisa? Acho que não te devias
preocupar com isso, não deve ter sido fácil teres
nascido sem pai, mas mesmo assim teres sido
obrigado a lidar com a sombra de um, mas isso já
passou e não é por seres filho dele que eu vou
deixar de gostar por ti, na pior das hipóteses matas-
me e empalas-me no meio da praça. – Sorrindo.
A intenção era aliviar um bocadinho o ambiente
mas só conseguiu piorar, o olhar de Luís tornou-se
distante e frio, levantou-se e começou a olhar
fixamente para as águas do rio, aquela piada trazia
a tona o que realmente as pessoas pensavam sobre
o que ele poderia vir a tornar-se, que a maldição do
ódio do pai estivesse presa nas suas veias, que
pudesse ser um assassino, e de certa forma o seu
treino com Rodrigo parecia prepara-lo para isso,
fisicamente ninguém era páreo para ele, e em
termos de inteligência estava bastante acima da
quase maioria dos jovens da sua idade, parte era
treino, outra parte era genes, ele sabia que tinha
sangue de um génio, mas queria usa-lo para o bem,
por este motivo ainda não tinha feito a tatuagem,

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nem se tinha tornado um membro oficial da
Alcateia, por muito que Rodrigo o tentasse a isso.
Quanto mais tarde entrasse nessa realidade, queria
acreditar que poderia fugir disso a vida toda, que
no fim dos estudos poderia ir para outro país, e
deixar para a sua tia, que afinal de contas era
pouco mais velha que ele a missão de comandar o
legado do seu pai, e Marta entrava neste prisma na
perfeição, afinal de contas alguém como ela nunca
o acompanharia a liderar um grupo de lunáticos,
mesmo que lunáticos mais controlados.
Era a cereja no topo do bolo, agora só precisava de
arranjar a forma perfeita de lhe contar que ele tinha
mais sangue Los Santos do que ela própria, isso
sim era o real medo dele, afinal de contas, eles
eram primos, bem quase primos, e já dera para
perceber que ela tinha um conhecimento muito
superficial da sua família, quando se virou para
tentar reatar a conversa, ouviu o telemóvel da sua
amada tocar, era sem duvida uma das suas mães a
dizer que estava a ficar tarde e que ela teria de
voltar para casa, nem precisou que Marta lhe
confirmasse, esta tinha começado logo a caminhar
em direção á pequena mota que ele conduzia,
afinal de contas ele precisava de um meio de
locomoção, e não era propriamente fã dos
autocarros á pinha e com cheiro a suor e por vezes
a urina, tinha sido uma prenda de Rodrigo, uma
das muitas.
Cortaram caminho para chegar o mais depressa
possível, mas mesmo à saída do que é conhecido
como o parque verde, na antiga estação de
comboios, há muito abandonada, onde ele tinha

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deixado a mota estacionada para não pagar pelo
parque de estacionamento, foram abordados por
Diogo Los Santos que se tinha encostado
propositadamente a mota, com uma pequena adaga
com a cabeça de um leão em ouro no cume,
esperava-os com um sorriso malicioso nos lábios.
- O que andam, um lobo e uma leoazita, a
fazerem aqui sozinhos?
- O que queres Diogo? – Perguntou Luís
- Espera tu conheces este anormal? - começando
a trocar olhares com ambos com uma plena
surpresa estampada na sua face.
- Este anormal, é meu tio...
- Espera, teu tio? A minha mãe disse que ele
ainda pertencia a nossa família, mas isso não faz
sentido algum!
- Oh contraire minha querida, faz todo o sentido,
mas espera as tuas queridas mães não te contaram
que andas a sair com o teu pseudo-primo e como é
que eu de dizer, arqui-inimigo letal da tua família?
- O que queres dizer com isso? – Dando alguns
passos para trás.
- Bem, como teu querido tio, vou apresentar-me
assim para tornar as coisas mais fáceis, vou-te
contar a história que irá sempre unir os Ferreira e
os Los Santos, o poderoso Alfa foi um inimigo da
nossa família que á cerca de dezassete anos,
perseguiu e matou o teu avô, e mesmo assim a
minha querida irmã, a doce Ariana decidiu
envolver-se com ele e ter este pirralho, ou seja em

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termos práticos, tu és namorada de um Los Santos
mais verdadeiro do que tu própria e o filho do
assassino do teu avô, uma relação que tem tudo
para correr bem – soltando uma pequena
gargalhada.
- Cala-te desgraçado! - gritou Luís.
- Tu sabias disto Luís? – Era a primeira vez em
vários meses que Marta o tratava pelo nome.
- Bem sim, quer dizer eu estava para te contar,
mas não tinha achado o momento oportuno, não
queria que pensasses coisas erradas…
- Preferes que eu pense que tu és um mentiroso?
Eu merecia saber isto! Tu devias-me ter contado,
como posso confiar em ti agora?
- Não podes minha querida- interrompeu Diogo.
- Já te disse para estares calado – dirigindo-se
para ele.
- Ele não é o problema Luís, neste caso tu foste
o problema.
- Mentir está-lhe nos genes, não podes pedir
nada diferente.
- Tu como um Los Santos também podes falar
muito – Luís arrependeu-se no exato momento em
que disse isto, mas já ia tarde, o dano já estava
feito.
As lágrimas tinham enchido os olhos de Marta que
começava a afastar-se em direção a paragem de
autocarros mais próxima, Diogo tinha conseguido
algo ainda mais tenebroso do que o seu plano

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original, inicialmente queria ferir fisicamente a
menina Los Santos, mas tinha conseguido deixar
feridas muito mais profundas, feridas na alma só
podem ser curadas com o tempo, não existe
nenhum remedio que la se possa aplicar, tinha
funcionado na perfeição.
- Marta, espera eu não queria, não era suposto
dizer aquilo, foi a raiva a falar – agarrando-a pelo
braço.
- Larga-me Luís, o que tu disseste foi pensado,
tens razão os Los Santos são peritos em mentir e tu
és a prova viva disso, chega eu não posso continuar
com alguém que tenha segredos para comigo!
- A sério que vais deixar isto acabar com aquilo
que nós temos, pareces uma criança a fazer uma
birra!
Neste momento Marta vira-se rapidamente e dá
uma chapada com toda a força na cara a Luís, tinha
os olhos vermelhos e as lágrimas salgadas corriam-
lhe pela face.
- Se isto para ti é uma birra, não conheces o
valor da sinceridade e retiro o que disse á beira-rio,
és extremamente parecido ao teu pai se isso for
verdade!
Aquelas palavras foram como adagas espetadas no
coração do jovem que ficara sem reação, a chapada
não tinha causado qualquer dor em comparação ao
que tinha acabado de ouvir.
Tinha-se tornado uma estátua humana, enquanto
via a sua cara-metade dirigir-se para os autocarros,

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algo lhe dizia que devia correr atrás dela e tentar
resolver as coisas, mas o orgulho e o medo não o
permitiram, e ali ficaram duas almas que deviam
estar juntas, mas que agora mais do que nunca
estavam distantes.
Tinham começado como estranhos, naquele
primeiro encontro, depois tornaram-se amigos e
evoluíram para enamorados, e agora eram
estranhos novamente, mas uma espécie de estranho
que magoa muito quem passa por ela, porque agora
eram estranhos como memorias, e sempre que elas
vierem a mente de algum deles, não vinham como
algo doce, mas sim como um traço de azedo que
apenas causará mágoa, porque afinal de contas
ninguém sofre por um estranho que não conhece,
mas todos sofremos por estranhos que conhecemos
demasiado bem, esse é o poder agridoce do amor,
tornar estranhos em conhecidos demasiado
distantes.
Os meses que se seguiram trilharam caminhos
totalmente diferentes para ambos, Marta fez o luto
durante as primeiras semanas, só saia do quarto
para a escola, chorava todas as noites e por mais do
que uma vez tinha uma mensagem pronta para
enviar a pedir desculpas a tentar resolver o que
tinha sido destruído naquele dia, mas a mágoa e o
orgulho impediram isso, ao fim de um mês já
estava revigorada, mentiria se lhe perguntassem se
ainda sentia algo por ele, mas tinha uma postura
social para manter.
Ele por sua vez, tinha-se focado ainda mais no
treino e tinha tomado uma decisão, deixaria de
fugir do futuro, por isso no final do mês de

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novembro tatuou um poderoso lobo negro com
letras em vermelho no braço direito e começou a
liderar algumas patrulhas noturnas, tinha lido
alguns manuscritos do seu pai, e tinha uma certeza,
se todos queriam que ele fosse filho de um monstro
ele teria de ser ainda pior do que ele, tornara-se
impetuoso nas patrulhas e tencionava chegar
rapidamente ao concelho dos anciãos, Rodrigo
tinha adorado esta mudança de postura face a
Alcateia, mas tinha medo onde este novo Luís
poderia levar os princípios da organização afinal
de contas, ao fim de muitos anos tinha aparecido
alguém semelhante ao Felipe, em tudo. E isso para
os mais radicais da organização era mel.
Numa noite, a beira da Sakura, Luís terminava
mais um dos livros indicados pelos anciãos para
ele ler, acabara de chegar de uma das patrulhas
intermédias, e tinha-se colocado de imediato a
estudar, afinal de contas segundo a filosofia que
ele próprio tinha adotado treinar para se tornar o
melhor líder no menor espaço de tempo era agora o
seu principal objetivo.
Rodrigo aproximou-se o mais sorrateiramente que
lhe foi permitido, a relação deles tinha ficado mais
extensa, mas não mais pessoal, Luís procurava-o
para conselhos, mas mantinha a sua vida pessoal a
margem, tinham relações estritamente profissionais
digamos. Quando se encontrava mesmo ao lado
dele tentou iniciar conversa:
- Então como correu a patrulha?
- Não vais tentar ter uma conversa de xaxa até
teres feito tempo suficiente para perguntares o que

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realmente querias pois não, podes saltar a parte do
politicamente correto e pergunta o que tens a
perguntar porque eu tenho de terminar este livro o
mais rapidamente possível – sem nunca levantar os
olhos do livro.
- Curto e grosso como sempre… como vão as
coisas com a menina Los Santos?
- Se essa é a única pergunta que tens podes
voltar já para trás, não tenciono falar dessa
cachopa, nem dessa parte da minha família, por
isso podes deixar-me em paz.
- Luís, tu gostavas demasiado dela para a
deixares ir assim, não achas que devias lutar um
bocadinho?
- Eu gostava demasiado de uma imagem que eu
criei, uma imagem de uma Marta adulta e
compreensível, que me ia entender e apoiar nas
decisões que eu tivesse de tomar, e que não tivesse
medo nenhum do nosso passado e muito menos do
nosso futuro, mas a verdadeira Marta não é de todo
assim, é apenas mais uma miúda mimada que não
sabe nada da vida e que assim só vai perder quem
gosta dela, contente Rodrigo, agora se já acabaste a
tua missão de Sherlock Holmes podes-te retirar?
Tenho que terminar isto.
- Vocês são miúdos, devias ser mais
compreensivo tu, estás a cometer exatamente o
mesmo erro do que o teu pai, e olha que ele não era
nenhum expert em relações interpessoais…-
começando a dirigir-se para dentro de casa.

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- O meu pai cometeu demasiados erros, mas
começo a achar que ser impetuoso não foi de todo
um deles.
Rodrigo apenas suspirou.
Enquanto esta conversa acontecia lá bem em cima,
cá em baixo junto a beira-rio, um desamparado
homem percorria aquele espaço verde sozinho,
apenas com uma garrafa de Coca-Cola na mão.
Sam mal tinha chegado a Portugal tinha ido logo
ter com os anciãos da Alcateia para relatar o que se
tinha passado, tim-tim por tim-tim, mas desde lá
que trazia um peso no peito, na sua mente tinha
feito o correto, mas parecia que o seu corpo não
concordava.
Desde que tinha chegado muito tinham sido as
companhias que tinha arranjado para passar uma
noite, mas nenhuma tinha vindo para ficar como
ele tanto ambicionava, as noites eram prazerosas e
raramente passadas sozinhas, mas as manhãs não
podiam ser mais solitárias, sem que desse conta os
seus pés naquela noite fria de inverno tinham-no
levado até a frente da casa de Hugo e Felipe, sem
querer tinha ficado parado a olhar para aquele van
abandonado, a sua mente não estava com o corpo,
ainda andava a vaguear e a perguntar-se onde é que
eles estariam e se estariam bem, sentia saudades de
Lázaro e de Hugo, o medo atacava-o sempre que se
lembrava de Salamanca, eram suores frios, as
lágrimas às vezes lá apareciam e ele deixava que
elas corressem, mas o que ele poderia fazer para
ajudar, nem tomar conta de uma mulher e de uma

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criança era capaz, se estivesse com eles só iria
atrapalhar.
Quando estava disposto a voltar para trás, um vulto
negro saiu do meio da escuridão, com os seus
longos cabelos pretos, um corpo poderoso e uma
voz já meio rouca começou uma conversa do meio
do nada:
- Acho que deviam tirar isto daqui, só dá mau
aspeto a este lindo parque não acha?
Por momentos Sam ainda duvidou que fosse para
si, olhou em volta, mas quando não viu mais
ninguém ainda teve a audácia de fazer uma
estupida questão:
- Está a falar para mim?
- Por acaso o jovem está a ver aqui mais
alguém? Porque se estiver por favor diga-me,
porque ou é assombração ou é a confirmação que
você fumou uma droga extremamente forte. –
Começando-se a aproximar.
- Só perguntei porque não me parece que nós
tenhamos tido o prazer de nos conhecermos.
- Certamente que não Samuel, mas eu conheci
demasiado bem o teu pai, mas não respondeste á
minha questão, não achas que esta coisa devia ser
retirada daqui?
- Conheceu o meu pai? Quando? Como?
- Respondes-me a uma questão com três isso não
parece justo, mas olha vamos entrando, as minhas
pernas já não são o que eram.

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- Entrando para onde?
- Para aqui – abrindo a porta da Van e dirigindo-
se ao velho sofá.
- Acho que não é de todo seguro entrarmos aí.
- Se fores a fazer tudo o que for apenas seguro,
não faze nada! A vida não é segura, acho que é isso
que a torna única.
Sam a medo lá entrou, afinal de contas tinha
perdido todos os que pertenciam ao seu passado,
até poderia ser uma mentira, mas tinha de saber se
aquele sujeito realmente conhecia o seu falecido
pai ou não.
- Acho que já podes responder a minha questão,
não achas Sam? Isto não devia já ter sido retirado
daqui pela Câmara?
- Não percebo nada de urbanismo, mas acho que
isto deve ter um significado para aqueles que
apoiam ou apoiavam a Alcateia.
- Como o Hugo?
- Também conhece o Hugo? Mas que raio se
passa aqui, acho que me deve uma explicação de
quem raio é o senhor!
- Digamos que sou um amigo antigo do teu pai,
do Hugo e do Felipe, conheci-os todos em
circunstâncias nada positivas diga-se de passagem.
- Impossível, o meu pai ter-me-ia falado de si e
o Hugo também e se é assim tão amigo dele,
porque é que não nos ajudou na nossa missão ou
pertence a Alcateia?

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- Ajudá-lo na missão como tu estás a ajudar
agora?
Aquelas palavras caíram como uma pedra num
charco, com muito estrondo e com um silêncio
profundo a seguir.
- Não coisas diferentes, eu passei por muito.
- Talvez, a morte de Lázaro custou a todos, mas
acho que quem sofreu mais, foi mesmo ao Hugo, e
lá anda ele, neste momento perdido em Itália.
Quem sabe a enfrentar a morte, mas o importante é
que tu estás aqui a viver a vida que sempre
desejaste não é verdade Samuel?
- Como é que?
- Tu tens o péssimo vício de me responder as
minhas questões com outras questões, responde-me
a minha pergunta, no meio disto tudo o que
importa é que tu estás bem, e os teus amigos que tu
tantas noites juraste proteger estão sozinhos, não é?
O teu pai ficaria orgulhoso disto?
- Ele sempre foi um sobrevivente, ele iria-me
entender!
- Achas mesmo que um homem que lutou até ao
último minuto pela sua família ia perceber que o
seu filho se tinha tornado um covarde que não
consegue sequer permanecer ao lado dos seus
amigos? Tu tiveste tanta coragem em Salamanca,
como os teus irmãos tiveram quando se renderam a
vida fácil!
- Você não sabe nada sobre mim ou sobre a
minha família!

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- Sei até demais! E isso enerva-te, sentes-te
culpado pelos teus irmãos terem morrido, sei disso
melhor do que ninguém! Sentes-te culpado pela
morte do Lázaro mesmo sem teres culpa nenhuma,
és um frustrado que se sente culpado por tudo e
que não consegue entender que a vida é injusta
com toda a gente! Samuel tens que crescer e
perceber que o passado não volta e que o futuro é
incerto, por isso arrependimento e medo são
sentimentos fúteis, uma vez que se prendem com
coisas que não controlas, apenas o presente te
pertence e estás a desperdiçá-lo com uma pessoa
que já não és e com medo de te tornares na pessoa
que deves ser! Pareces uma criança que por ter
caído uma vez nunca mais sobre para cima de uma
bicicleta, são as quedas que nos fazem crescer e
melhorar, então faz-me um favor a mim e ao teu
pai e sobe para cima do raio da bicicleta ou então
desiste de uma vez por todas e passa a andar de
cadeira de rodas, porque as tuas pernas deixam de
ter qualquer utilidade, uma vez que ao andar
também poderás cair!
- Como é que sabe tanta coisa sobre mim?
Responda-me porra!
- Porque um dia conheci um rapaz exatamente
igual a ti, um jovem que temia tudo na vida, mas
que quando teve o seu filho mais velho ganhou um
motivo para lutar, o teu pai era igualzinho a ti, mas
aprendeu contigo que tinha de ser forte. Quando
era novo ele até das folhas a cair das arvores tinha
medo, teve de ser empurrado pelos amigos para
falar com a tua mãe, e a primeira vez que te pegou
ao colo? Ele tremia que nem varas verdes, porque

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tinha medo de deixar cair o menino, alguma vez
sentiste essa fraqueza da parte dele? Obviamente
que não, porque os fortes não são aqueles que
nunca têm medo, mas sim aqueles que tornam o
medo a sua força, e tu neste momento és fraco,
fraco como o teu pai nunca foi, o perigo é real o
medo é opcional, e tu estás a escolher ter medo
porque te é mais cômodo, porque te deixa ficar na
tua cama enquanto outros lutam para mudar o que
está errado! O teu pai teria vergonha de ti!
Neste momento Sam levanta-se do sofá e começa a
andar em direção a porta, o seu corpo tremia por
todo lado, estava em choque, porque tudo o que
tinha ouvido era uma terrível verdade, por muito
que lhe custasse admitir.
- Foge Samuel, e dá-me razão uma vez mais!
- O que quer que eu faça? Que corra em direção
a não sei onde, fazer não sei bem o que?
Certamente que as pessoas que estão lá podem
ajudar muito mais o Hugo do que eu, afinal de
contas eu seria apenas mais um empecilho na
missão! Eu não posso fazer nada!
- Foi isso que disseste acerca da Juliana não foi?
Que não podias fazer nada, que ir atrás dela
também seria idiota, não é?
- Também sabe da Juliana?
- Sei, sei que se conheceram antes de ires preso
e que ela era a única que te ia visitar todos os
meses, que tiveram uma relação mais verdadeira
do que muitas que andam para aí, mas que uma vez
mais quando tiveste a oportunidade de ter algo

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sério, fugiste! Que na última visita que ela te fez,
as coisas não ficaram bem como disseste ao Lázaro
e ao Hugo, mas que ficaram chateados porque ela
te pediu certezas e tudo o que tu tinhas eram
incertezas, e sabes o que aconteceu? Perdeste-a, sei
que a tua mente passa pela casa dela todas as noites
quando colocas a cabeça na almofada, mas que as
tuas pernas e braços têm medo de fazer alguma
coisa, mas tenho mais uma informação que tu não
tens, ela não tinha pressa nenhuma para um
relacionamento em situações normais, ela estava
com cancro Samuel, um cancro em fase terminal, e
por isso não te quis contar nada, ela só queria
passar os últimos dias contigo, ela ia-te sempre
visitar com uma peruca posta, ela morreu a semana
passada Samuel, sem nunca ter estado
verdadeiramente contigo, o amor da tua vida não
existe mais, e por tua culpa e apenas tua, vocês não
estiveram juntos!
Samuel neste momento cai de joelhos não de forma
literal, mas emocionalmente, ficou completamente
destroçado, Juliana tinha sido a única rapariga que
ele alguma vez tinha amado, ele era um playboy,
sem dúvida, mas até o pior dos playboys têm o seu
coração entregue a alguém, na sua cabeça todas as
recordações que tinha com ela passaram em loop, a
respiração tornou-se ofegante e os batimentos
cardíacos descontrolaram-se completamente.
- Isso é verdade? – Com o lugar fitado no chão.
- Infelizmente é – levantando-se e entregando-
lhe um papel com a fotografia de Juliana como
horário e local do funeral.

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- Eu não sabia, não poderia saber…
- No caso podias, mas o medo não te permitiu,
também vais querer perder os últimos dias dos teus
amigos? Ou se calhar até vais conseguir impedir
que sejam os últimos dias deles, podes prolongar a
sua vida. – Saindo em direção ao rio.
- Acha que eu poderia ter essa preponderância
toda?
- Até a mais pequena abelha têm um papel
fundamental na vida da colmeia, por isso sim,
todos os que puderam ajudar seriam importantes.
- Então diga-me por favor como é que eu vou ter
com eles, eu estou completamente perdido.
- Não podes ir sozinho, tens de arranjar
companhia, e companhia importante e poderosa.
- Você não vem comigo?
- Eu tenho outras missões, mas vou-te dizer com
quem é que vais ter e a quem é que vais pedir
ajuda, tu vais-te dirigir a casa do Telhado
Vermelho.
- Isso não é a casa da Família Los Santos?
- Exatamente, neste momento elas vão ser as
tuas melhores aliadas.
- Mas “elas” não eram “anti-pack”, ou alguma
coisa do género?
- Mas ainda são mais anti Diogo Los Santos e
para além disso tenho aqui um trunfo que pode ser
decisivo – dando-lhe uma fotografia.

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- Quem é que é?
- Não tens que saber isso, só tens que lhes dizer
que se nos ajudarem as levamos a essa pessoa, elas
terão de ir contigo a Itália e no fim de ajudarem os
nossos caros amigos, vão até esta morada –
entregando outro papel – mas lembra-te só
entregas este papel quando estiverem em Itália e
quando estiveres com o Hugo.
- Porquê?
- Tu não tocas muito á inteligência mesmo,
porque se gastares os trunfos todos, ficas na mão
delas e isso é a última coisa que queremos.
Acenando com a cabeça positivamente.
Cumprimentando-se com toda a cordialidade
possível seguiram caminhos diferentes, o vulto
negro desapareceu tal e qual como apareceu, do
nada e pelas sombras.
Sam com toda a coragem que o seu fraco coração
poderia entregar carregou aqueles trunfos e toda a
vontade em direção a casa do Telhado Vermelho,
tinha ouvido falar muito daquela família, nem
sempre positivamente, mas sempre como um
sinónimo de poder e de honra, tinha ouvido falar
do poderoso Leão Dourado, mas nada demais, ia
completamente às escuras em direção a uma
miragem que tinha criado a partir dos outros, nem
sabia quem eram as líderes atuais.
Enquanto Sam lutava com estas dúvidas internas,
Diogo esperava por companhia com uma cerveja
na mão sentado numa das escadas das

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Monumentais, ainda via os estudantes bêbados a
subir as escadas a custo, alguns já a deitar o seu
jantar fora e outros a tentar meter mais para dentro,
mesmo sabendo que seria por pouco tempo.
O seu convidado, ou melhor, o seu superior, estava
ligeiramente atrasado, mas nada que ele já não
estivesse á espera, afinal de contas neste tipo de
organizações, cumprir horários não é de todo uma
prática comum.
- O que faz um leão sozinho a estas horas no
meio de tantas ovelhas?
Uma voz feminina calma e serena apareceu atrás
de si.
- Um leão nunca tem medo de estar sozinho,
afinal de contas, ninguém nos consegue magoar.
- Isso não é de todo assim, até o mais poderoso
dos animais pode sofrer danos, por isso é que até
os leões vivem em grupos.
- Mas quem raio é a menina que sabe tanto sobre
leões? – Olhando face a face já com a jovem
rapariga de cabelos vermelhos.
- Uma aliada, que neste momento só te quer
ajudar.
- Ajudar em que?
- Ajudar a acabar com as tuas primas e com a
Alcateia, afinal de contas, conheço bem os dois.
- E por alma de quem é que devo confiar na irmã
do Hugo, afinal é isso que tu és, não é? Minha
doce Rubi.

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- Afinal de contas, não és tão burro como eu
pensava.
- Mas responde-me lá por que razão devo
confiar em ti? Se estás a falar comigo dessa forma,
também deves ter a capacidade de falar com eles
no fim de eu te dar as informações que queres
retirar de mim, não seria mais fácil dar-te já um
tiro e acabar contigo?
- Podes ter razão, mas isso seria apenas idiota,
porque perdes a possibilidade de prender e torturar
alguém que sabe os planos todos do Hugo, quando
eu te posso dá-los de graça, na troca do conteúdo
certo.
- E que conteúdo seria esse?
- A cabeça da tua irmã.
- Bastante objetiva mesmo, mas é algo que
possamos arranjar, mas afinal de contas por que
raio queres isso?
- Vingança, simples assim.
- Então diz-me lá que informações tens assim
tão importante que eu possa usar contra os teus
amigos?
- Chega-te cá, porque a informação que eu tenho
não pode ser dita assim aos sete ventos.
Os dois aproximaram-se e a informação passou,
Diogo quase caiu das escadas abaixo e ficou
branco como o cal da parede.
- Tens a certeza?

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- Completamente, afinal de contas mais ninguém
seria capaz de controlar toda esta situação.
- Vou já ligar ao meu superior!
- Não faças isso! Sê inteligente, trespassa esta
informação apenas pessoalmente senão alguém a
pode intercetar e mudar todos os planos que
possam ter.
- És capaz de ter razão, ainda bem que um dos
Magníficos está em Portugal, vou-lhe dar a notícia
pessoalmente, sabendo isto vamos recuperar o que
é nosso num instante.
- Faz isso, mas não te esqueças de mim –
levantando-se e começando a subir as escadas.
- Onde vais?
- Não sei, mas não te preocupes, eu vou
regressar para reclamar o que é meu!
Desaparecendo ao fim das escadas enormes de
pedra que se elevam em direção á enorme estátua
de D.Dinis.
O sangue de Diogo começou a ferver, se estava
ansioso para a reunião com o seu superior, aquela
informação ainda tinha atiçado mais essa vontade.
Mas ainda teve de esperar quase uma hora para
conseguir avistar o seu Magnifico, que surgiu do
meio da multidão com um manto negro colocado
sobre as costas e um pequeno pendente com o
símbolo da Mano de Dios, com um olhar superior e
uma postura reta fez sinal para que ele o seguisse,

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pararam á frente da estátua de D.Dinis, e com uma
voz rouca e serena mandou Diogo falar.
- Meu senhor, primeiramente é uma honra
receber um dos Magníficos a meu cuidado em
Portugal, e de seguida recebi informações de uma
fonte extremamente segura que podem mudar
completamente o rumo deste embate com os
hereges da Alcateia!
- Não devias ter tanta honra, se não tivesses
demonstrando incapacidade durante imenso tempo
eu não seria necessário presencialmente aqui, mas
avança com essas informações milagrosas.
Diogo transmite exatamente o que tinha acabado
de ouvir de Rubi, transmitindo também a fonte da
sua informação, afirmando que confiava
completamente na informação uma vez que a
família dela podia ser muita coisa, mas não eram
conhecidos como mentirosos (argumento
extremamente frágil e inocente, mas que foi
mandado para o ar para ver se colava).
- Então tu estás-me a dizer que ele está vivo? E
que por alma do espírito santo conseguiu esconder-
se todos estes anos, e por acaso quem te deu essa
informação, só mesmo por acaso, é uma dos
membros mais elevada e com mais conhecimento
dentro do grupo deles apenas por vingança? Acho
que devias ter mais noção do que dizes antes de
transmitires aos teus superiores, porque essa
informação sem dúvida nenhuma é uma mentira
pregada para nos desviar do grupo atual, atirando-
nos para uma caça aos fantasmas que porventura
nos iria retirar imenso tempo, e daria ao Hugo e ao

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Tiago o tempo necessário para atacar com força.
Mas para não achares que estou completamente
desacreditado nessa informação e até para tu
comprovares com os teus próprios olhos, vai à
Conchada, abre o tumulo dele e verifica se está lá o
corpo ou não, se estiver apenas tu perdeste o teu
tempo, se não estiver afinal és capaz de ter razão e
para o bem de todos nós, teremos de mobilizar
todos os esforços para o encontrar! Agora vai. Che
Dio te protegga. Noi siamo uno!
- Noi siamo uno! -fazendo uma vénia e
afastando-se a toda a velocidade.
Diogo tomou o caminho mais rápido para o
cemitério da Conchada, que obviamente que estava
fechado, sendo quase perto das duas da manhã
quando ele apareceu perante o portão, seria um
terrível sinal caso o portão estivesse sequer
entreaberto, quanto mais totalmente aberto, mas
isso não apresentou qualquer problema para o
jovem leão, com toda a força e agilidade
conseguiu, utilizando o portão como alavanca,
entrar no cemitério, a noite estava fria, um pequeno
orvalho caia em cima dos corajosos que se
aventuravam a andar ainda pela rua, um estranha
brisa fazia o cabelo de Diogo cair-lhe ligeiramente
para os olhos e fazia com que as árvores que
pareciam moribundas face a pouca luz noturna que
se apresentava abanarem, fazendo com que todos
os ramos despidos de folhas ainda parecessem
mais esqueléticos e sombrios face ao ambiente.
Viam-se todas as imagens dos santos e das
entidades protetoras em cima das campas e das
lápides, as fotos dos mortos pareciam seguir com o

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olhar o corpo de Diogo que com passo acelerado se
dirigiu sem olhar para mais nada para o túmulo
daquele que tinha regressado dos mortos, ou pelo
menos na teoria. Aquando a chegada do corajoso
investigador ao cemitério um rasteiro nevoeiro
começou-se a levantar, dava pelos joelhos, tapando
grande parte das campas mais baixas, e dando até
as portas dos jazigos mais poderosos, era o
esconderijo perfeito para os mortos que se
quisessem levantar sem serem vistos, ou alguma
coisa parecida com essas que os filmes de terror
tanto gostam de mostrar para retirar o sono aos
mais medricas.
O vento começou a assobiar ainda mais, as portas
dos jazigos mais velhos começaram a ranger,
parecendo gritos ou suspiros de pessoas que
sentiam a dor da morte naquele exato momento,
todo o sangue de Diogo congelou, afinal de contas
entrar num cemitério àquela hora, sozinho, era de
loucos, começava a questionar-se o porquê de não
ter procurado Rubi ou até ter pedido ao seu
superior para vir consigo, talvez por parecer
fraqueza ou algo parecido, bem o motivo não
importava, o facto era que estava sozinho e que
caso estivesse a usar fralda ela estaria pesadinha já.
A morte e o desconhecimento do que vem depois
dela pode ter este efeito sobre nós, afinal de contas
nenhum de nós quer acreditar que morremos e
pronto acabou-se uma eterna escuridão da qual
nunca mais vamos acordar, e por isso criamos
mitos e religiões para nos proteger do nosso medo
irracional, afinal de contas se tivermos algo bom
ou mau do outro lado a nossa espera somos

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obrigados a viver daquela ou da outra maneira, e
depois temos quem acredita na reencarnação e do
loop eterno até atingir o estado de perfeição da
alma, porque o ser humano não caminha para a
perdição e deterioramento eterno mais sim para o
aperfeiçoamento e salvação! Seja qual for a nossa
crença ou religião, uma coisa é certa, peçam a um
católico ou a um ateu para ir sozinho a um
cemitério á noite e irão ver nos seus olhos um
medo crescente, um medo que apareça um
fantasma, porque afinal de contas enfrentar a nossa
morte pode ser assustador, mas enfrentar a morte
na representação de outra pessoa ou coisa ainda é
mais aterrorizador, por isso é que muita gente
ainda corre quando apaga a luz da casa de banho e
vai para o quarto, ou quando está sozinha em casa
e ouve um barulho esquisito! Porque afinal de
contas, tudo o que não conseguimos explicar nos
dá medo, não temos medo de pessoas vivas que
nos podem matar a qualquer momento, mas temos
medo de pessoas mortas que podem voltar só para
nos assombrar, o ser humano definitivamente tem a
sua noção de perigo totalmente trocada!
Ao fim de alguns minutos a percorrer o cemitério,
lá alcançou a campa pretendida, uma campa
simples, sem grandes adornos ou santos protetores,
apenas com uma Virgem Maria com Jesus sobre os
seus braços, uma autentica Piéta, que alguém tinha
achado bem colocar lá, ah e obviamente ao seu
lado um enorme lobo feito de pedra, o nevoeiro
intensificava-se e já dava pela barriga daquele
assaltante de túmulos como muitos o chamariam,
Diogo tinha feito uma pequena paragem para ir
procurar uma pá, porque afinal de contas teria de

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tirar ainda muita terra para alcançar o caixão, se ele
ainda estivesse lá, com toda a força que conseguia
aplicar, retirou a placa de pedra mármore que
estava por cima, acabando por partir a pequena
imagem religiosa e o vaso que tinha flores
artificiais a imitar girassóis, e quando a afastou por
completo deparou-se com algo que não estava a
espera, o caixão estava colocado logo a superfície,
talvez a um braço de distancia, com apenas um
bocadinho de terra colocado em cima dele que
seria facilmente retirado com as mãos, sem ser
necessário qualquer pá, colocando-se com os pés
apoiados nas paredes de lado da campa, desviou a
tampa do caixão, esta sim belamente decorada,
feita numa madeira que parecia ser extremamente
cara, com pequenos desenhos feitos na própria
madeira em forma de flores de Liz e meias-luas, a
tampa fechada na perfeição no caixão, mas apesar
disto não foi necessária grande força para a retirar,
bastou um toque para que uma imagem
tremendamente macabra surgisse á sua frente.
Dentro do caixão estava realmente um corpo, um
esqueleto, ainda com um fato vestido mas já com
partes comidas pelos insetos, com os braços
colocados em cima do peito, bem um dos braços,
porque do outro já só estava a mão com um dos
anéis do morto, a cabeça dividida em dois, partida
pelo maxilar, dando um sorriso totalmente sombrio
ao esqueleto, e dentro do espaço onde outrora
estavam os olhos, ainda andavam lagartas a
passear, a entrar e a sair, entrelaçados nos dedos da
mão esquerda estavam escaravelhos a procriar, o
cheiro era tremendamente nauseabundo, Diogo ao
assistir a toda aquela cena teve de segurar o vómito

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pelo menos duas vezes, mas tinha confirmado que
a informação que recebera era mentira e isso era o
mais importante!
Ou talvez não, quando se estava a preparar para
fechar o caixão, já com insetos a fugir para o
mundo superior, sem ouvir qualquer barulho ou
sentir qualquer presença levou uma enorme
pancada na nuca que o levou a embater contra o
esqueleto e contra a parte de baixo do caixão,
caindo inanimado por alguns momentos.
Uma lua nova lindíssima levantava-se no topo do
céu por esta hora, duas sombras movimentavam-se
na escuridão para completar o seu magnífico plano.
Diogo acordou passado alguns minutos, colocado
dentro do caixão, preso com correntes
extremamente fortes e com um cadeado colocado
debaixo das suas costas para evitar toda e qualquer
surpresa, com um enorme hematoma na cabeça a
sua visão não era nítida, tudo parecia embaçado
nos primeiros instantes, mas quando recuperou a
sua visão, parecia que tinha visto um fantasma,
com um pano colocado na boca para não poder
falar, soltou inúmeros guinchos que deveriam
querer significar alguma coisa.
Uma das vozes acendendo um cigarro, carregando
um dos anéis que o esqueleto há momentos tinha,
disse calmamente:
- Ele não pode morrer sem ser enterrado!
- Não deveria ser ao contrário?
- Mas quem faz as regras sou eu!

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E pegando numa pá começaram a atirar terra para
cima do corpo de Diogo, que lutava como podia
enquanto olhava para a morte nos olhos, ao fim de
algumas pazadas já tinha o corpo totalmente
tapado por terra, deixado apenas o pescoço de fora,
respirar tornava-se bastante complicado, para
culminar a maldade pura, o vulto mais tenebroso
atirou o cigarro ainda aceso para o meio da testa de
Diogo, os gritos de dor fizeram-se ouvir em todo o
cemitério, a queimadura de um cigarro deixa
sempre marcas e aquele teria de se apagar por si.
- Boa noite Cinderela, espero que tenhas tempo
suficiente para pensares em tudo o que fizeste,
porque alguém como tu nem merece sem lembrado
– disse aquele que tinha atirado o cigarro.
E junto com a segunda sombra fecharam a tampa
do caixão e da campa, deixando o corpo de Diogo
na eterna escuridão, ele lutou com todas as forças
que conseguiu colocar, conseguindo ainda tirar o
cigarro na sua cabeça, mas o esforço foi de tal
forma elevado que os seus pulmões sucumbiram
começaram a sucumbir, a morte foi lenta e
dolorosa, com o olhar perdido na escuridão
começou lentamente a ver toda a sua vida passar-
lhe a frente dos olhos e ali morreu, um Los Santos,
sem direito a um funeral, não que fosse ter muita
gente caso ele fosse feito mas ou menos teria um
padre a expiar-lhe todos os pecados, mas não,
morrera como nascera, um desconhecido, um zé-
ninguém, alguém que só queria usar o nome Los
Santos com orgulho, mas que no final nem no
jazigo da família conseguiu ser enterrado! A morte
coloca todos num plano de igualdade absurda,

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podemos ser Los Santos, Ferreira ou Godfish, no
final de contas todos terminamos em pó ou
simplesmente num buraco a sermos comidos pelos
bichos! Ninguém escapa a morte, afinal de contas,
ela é a única coisa certa na vida, um paradoxo
interessante, não é?
Está na hora de viajarmos para um dos mais belos
países do mediterrâneo, e não, não vamos ficar por
Portugal nem viajar até a terra dos helenísticos,
vamos viajar até ao país da expressão “Mamma
Mia”, e da típica mão em forma de bico, da ótima
gastronomia e das pessoas mais bonitas de toda a
europa do Sul, terra dos Papas e também de
pessoas como Maquiavel, terra da Praça de São
Pedro, mas também dos canais de Veneza, terra
das pizzas originais e das mil e uma formas de
fazer massa, ou “Pasta” como eles dizem, terra de
Leonardo da Vinci e de Donatello, de Pavarroti e
dos Maneskin, terra das lendas de Befana, que
entrega prendas as pobres criancinhas italianas
antes da Epifania ou de Thyrus, o dragão de Terni,
um poderoso dragão que agora está presente no
brasão de Terni.
Sim, para quem ainda não percebeu estamos a falar
de Itália, mas neste caso específico da bela ilha da
Sicília, que se encontra perto da ponta da “Bota”
de Itália, dentro desta maravilha da natureza,
podemos encontrar cidades mágicas como
Palermo, e pontos turísticos tremendamente
perigosos como o vulcão Etna e lugares mais
calmos e menos perigosos como a maravilhosa
Capella Palatina.

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Esta belíssima capela contruída por volta do século
XII, pertencente ao estilo bizantino, entra pelos
olhos de quem a observa graças a sua construção
cativante, enquanto que por fora a única coisa que
possa chamar a atenção sejam os seus jardins
envolventes, uma vez que por ser também uma
fortaleza não demonstra uma beldade exterior
estonteante, por dentro a realidade muda
completamente, pintada toda a ouro, com um altar
colocado entre duas colunas das quais nascem dois
círculos de volta perfeita, bem ao estilo Arábico, o
seu chão docemente desenhado com azulejos e
talvez o mais belo de tudo as inúmeras gravuras
pintadas no teto dos vários santos e milagreiros que
recebem ovação naquelas paredes, com especial
atenção a São Pedro, o padroeiro máximo daquela
Capella, que se apresenta como um dos pontos
turísticos mais belos da velha ilha da Sicília.
Mas perdoem-me este devaneio turístico, porque a
nossa atenção vai-se focar no outro ponto da ilha,
os nossos amigos viajaram até ao aeroporto de
Catânia, perto do vulcão Etna, tinham escolhido
esse aeroporto uma vez que o amigo de Marius e
Manel vivia na zona de Siracusa, que ficava mais
perto do aeroporto da Catânia e assim evitavam
andar perdidos noutro país desconhecido onde nem
sequer sabiam se haviam mais amigos ou inimigos.
Marius tinha telefonado ao amigo para ele está a
contar, foi com enorme entusiasmo que esta notícia
foi recebida, afinal de contas pelo que eles sabiam,
o velho homem era viúvo á uma serie de anos e
tinha encontrado nas praias da Sicília e nos seus
inúmeros livros a sua paz eterna, tinha trabalhado

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diretamente com o Vaticano e mantinha uma fé
intocável, chegando mesmo a dizer que o mundo
necessitava de outro messias, porque senão todos
iriamos cair no pecado eterno. Tinha assumido um
celibato eterno, mesmo que segundo Manel, ele
não aparentasse ter mais do que quarenta anos.
Do aeroporto a Siracusa foi um saltinho, todos
tinham roupas novas e adaptadas ao tempo de
Itália, porque apesar de ser inverno e também por
vezes bastante rigoroso, em nada tinha a ver com o
frio da Islândia, talvez Hugo fosse o que estivesse
mais á vontade com aquelas temperaturas, uma vez
que após a conversa com Marius na praia de areia
negra, ele tinha ido lá quase todos os dias, e não,
não desceu pelo caminho mais fácil, mas sim
tentou encontrar um caminho diferente pela
descida das pedras, louco? Talvez, mas se calhar
apenas alguém que finalmente aprendeu a viver.
Embora pudessem ir de carro até a casa do amigo
de Marius, eles decidiram sair perto do centro da
cidade e fazer o resto do caminho a pé, afinal de
contas, não era por poderem levar com um tiro nas
costas, que iriam perder a oportunidade de
percorrer aquelas ruas envolventes, apesar de ser
alto inverno, ao contrário do que acontecia na
maioria dos países, não era o branco e azul que
pintavam o ambiente, mas sim o castanho e laranja,
as casas em pedra, as pequenas flores que
continuavam a enfeitar as varandas, a cor da
roupas das pessoas, as tasquinhas que apesar do
frio não se deixavam afugentar e continuavam a
receber e a encantar todos os que tal como os
nossos amigos, e tu meu caro leitor caso tenhas a

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oportunidade de ir lá, ficavam envolvidos naquele
ambiente e se davam muitas vezes por parados e
olhar em sua volta e a sentir o calor que não tinha
sitio especifico por onde aparecer, mas que
aparecia a mesma, os nossos amigos tinha chegado
a saída de uma dessas muitas ruas estreitas de
pedra, mesmo na altura do por-do-sol, sentiram de
imediato do cheiro á maresia, ouviram o rebentar
das ondas e as gaivotas a cantar, o sol estava
mesmo na direção deles e se eles olhassem para
trás iriam ver o quão bonito fica a luz a entrar a
mesma altura que as ruas, dando-lhe um ambiente
ainda mais quente, o cheiro das refeições a serem
confecionadas, o cheiro ao queijo e a cerveja, o
riso das famílias, pequenas crianças a correr, tudo
era fantástico.
Lembram-se das gaivotas que vos falei, uma delas
até quis deixar uma prenda ao Romeu, fazendo as
suas necessidades em cima do ombro dele, a risada
invadiu todos, até do injuriado, que começou a
andar debaixo dos varandins para não sofrer outro
ataque pessoal.
A casa do seu misterioso amigo, ficava tanto
dentro da civilização como fora dela, explicando
melhor, a principal entrada para a casa dele, estava
inserida ao lado da entrada do porto de Siracusa,
um enorme portão de ferro, com duas colunas de
mármore que o suportavam, no seu centro, a típica
imagem da fundação de Roma e da consequente
Itália, a mãe loba a alimentar Rómulo e Remo, mas
com uma pequena diferença para o restante portão,
esta pequena medalha que ficava mesmo por cima
dos puxadores do portão, era totalmente feita em

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ouro, mas não um ouro fraco ou que tivesse
escurecido com o tempo, um ouro reluzente que
com apenas a luz de um telemóvel, fazia cegar,
todos que a olharam ficaram tão estupefactos com
a sua beleza que se esqueceram de analisar todos
os detalhes.
Quando tocaram a campainha, bem ao fundo do
passadiço de azulejos amarelos surgiram dois
enormes cães negros, dois dobermanns corriam
como se a sua vida dependesse disso, com os
dentes para fora e a ladrar com toda a força do seu
pulmão cavalgavam em direção ao portão, que para
o pânico de todos os que viam aquela cena se
começava a abrir, apesar da sua aparência
antiquada estava equipado com a mais recente
tecnologia de controlo remoto, Hugo e Tiago
assumiram a dianteira para protegerem todos os
que para trás deles ficaram, pela primeira vez
Hugo tinha dado o primeiro passo antes de toda a
gente, talvez se devesse ao facto de Tiago, tal
como acontecia com Felipe, tinha pavor de
canídeos, mas mesmo tremendo como varas verdes
colocou-se lado a lado com Hugo que disse
baixinho “vai para trás, eu trato disto”, mas neste
momento o orgulho de Tiago falou mais alto e
ainda mais direito ficou, quando os cães estavam a
talvez a dois, três metros surgiu uma voz vinda
detrás de uma das muitas arvores que se
apresentavam atrás do passeio:
- Scaloni! Guiseppe! Fermato!
Os cães como se de robôs se tratassem pararam
imediatamente, e voltaram calmamente para o seu

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canil, sem sequer olhar para quem tinha dado a
ordem.
De detrás da arvore, saiu um homem da faixa etária
dos trinta, quarenta anos, extremamente bem
vestido, com um blazer negro, uma camisa branca
a fugir para o azul claro, uma gravata preta e uns
sapatos de ponta bicuda que reluziam á última luz
daquele dia, com uns olhos verdes penetrantes, um
cabelo penteado para trás e bem mais alto do que
qualquer um dos nossos amigos, fisicamente frágil,
mas movimentando-se com todo o orgulho que
uma página de papel poderia apresentar.
Quando chegou ao pé dos nossos amigos disse
num português invejável até por muitos
portugueses:
- Senhores, peço-vos imensa desculpa, eles estão
treinados a dirigirem-se ao portão sempre que ele
se abre, uma vez que não somos os anfitriões com
mais visitas por minuto e o nosso portão por mais
do que uma vez apresentou anomalias, não foi
nada de pessoal, até porque o senhor Donna, tem-
vos no maior dos apreços e iria ser bastante
rigoroso com todos os empregados, caso vos
acontecesse alguma coisa antes de chegarem ao pé
dele, ele aguarda-vos dentro da sua humilde casa,
façam o favor de me acompanhar.- Fazendo uma
pequena vénia.
- Acho que não fomos devidamente
apresentados – disse Romeu.
- Que erro o meu, chamo-me Guiseppe, e sou
dos empregados mais antigos desta casa, quanto
aos vossos nomes, menino Romeu, não precisa de

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se preocupar, eu sei tudo sobre vocês, vamos para
dentro? As noites podem-se tornar agrestes.
E assim dirigiram-se para a “humilde” casa, esta
casa encostada mesmo a beira-mar, com escadas
secundarias, que quando nós colocamos o pé fora
das escadas molhamo-nos imediatamente, estas
escadas secundárias construídas em forma de
caracol, obviamente que eram utilizadas uma vez
da vida e outra na morte, até porque não eram de
todo a atração mais bela do edifício, a parte central
da casa era quase toda construída em vidro, com
enormes portas e uma vista absolutamente
imperdível, uma sala de estar com enormes moveis
de madeira velha que reluziam quando a luz
natural lhes batia, quando nos sentávamos no
enorme sofá de couro que se colocava mesmo a
entrada da casa, tínhamos uma vista perfeita sobre
o mar mediterrâneo, ver o por-do-sol naquele
espaço com a companhia certa devia ser algo
divinal, mas como devem imaginar não era de todo
algo que acontecesse diariamente, a casa era ainda
dividida em três pisos, o piso central onde estava
esta enorme sala, da qual me esqueci de mencionar
a belíssima tapeçaria chinesa que contava a história
da fundação do mundo segundo o Xintoísmo
talhada manualmente e com todos os pormenores
feitos de forma minuciosamente maravilhosa, e
para além disto, tinha uma cozinha e os quartos dos
criados que seriam colocados num hotel cinco
estrelas sem grande problema. No piso de baixo
ficavam os escritórios e as saídas rápidas para a
praia que se colocava ao lado de toda a casa, e por
fim no piso de cima, estava a maravilhosa
biblioteca que ocupava cerca de setenta por cento

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do maior piso da casa, uma biblioteca belamente
adornada com todos os tipos de livros, mas o ponto
mais forte eram os livros de capa dura, que o dono
fazia questão de os manter abertos em páginas
especificas, eram livros de colecionador com
gravuras pintadas á mão e muitas vezes livros
centenários, mas já cá voltaremos, neste mesmo
piso está o quarto do dono da casa e uma pequena
casa de banho, podem pensar que é uma casa que
possuiu poucas divisões, mas acreditem, cada
divisão desta casa custaria valores absurdos se
fossem alugados ao mês, porque têm dimensões
enormes mesmo.
Os nossos amigos mal entraram foram colocados
de imediato em “sala de espera”, o delgado
Giuseppe subiu as escadas de madeira fazendo
com que todas rangessem horrivelmente, enquanto
esperavam os olhos percorreram todos os pontos
daquela sala, haviam inúmeras estátuas em toda a
sala, por muito tentados que estivessem, a boa
educação não permitiu que se sentassem no sofá,
Pierre aproximou-se da enorme janela e com toda a
calma do mundo assistiu as ondas explodirem
contra as fundações da casa, Tiago percorreu
algumas prateleiras que estavam na sala olhando
para todos os livros que lá estavam, e tinham todos
algo em comum, eram todos de autores italianos,
em especial de Dante Alighieri, quando o tempo já
se fazia sentir nas pernas finalmente o jovem
empregado aparece novamente na sala:
- Meus caros visitantes, o nosso anfitrião está
apenas a terminar uma pequena reunião no seu
quarto, ele pediu para vocês aguardarem na

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biblioteca, ele acredita que seja mais confortável e
sempre podem pegar nos livros, sem os
danificarem, não é verdade menino Tiago?
Neste exato momento Tiago deixa cair o livro que
tinha nas mãos, quando o exemplar tocou no chão,
desfez-se em mil páginas, e antes que pudesse
sequer se baixar, o empregado faz-lhe sinal:
- Deixe estar, eu já apanho isso, sigam-me por
favor.
E todos seguiram em filinha indiana até a porta da
biblioteca.
A sua entrada era feita através de duas enormes
portas de madeira, com puxadores de metal e com
dois símbolos no mínimo intrigantes, do lado
esquerdo o símbolo máximo do nazismo e do
império romano e do lado direito as chaves do
vaticano, as chaves de São Pedro, o símbolo
máximo da cidade de Deus, as portas eram pesadas
ao ponto de ser necessário instalar um sistema de
abertura automática após apresentação de uma
chave, neste caso um pequeno colar em formato de
lobo, por ironia do destino este pequeno animal
seguia-os para todo o lado.
Quando as portas se abriram, abriu-se um mundo
para aqueles que gostam de ler, cerca de vinte
corredores com prateleiras colocadas quase até ao
teto, livros organizados por tamanho e por
categoria, no centro da divisão estava colocada
uma vitrine de vidro onde estava colocado o livro
mais valioso de toda aquela coleção, um livro de
capa dura negra, com os capitulares pintados a mão
e com o resto do livro docemente decorado com

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várias gravuras que faziam aquele livro ser de um
valor decorativo incalculável, era um livro
conhecido entre todos os eruditos, a Divina
Comédia, de Dante Alighieri, e como todos os
livrofomaniacos, o anfitrião também tinha uma
passagem do livro preferida e decidia que o livro
deveria estar aberto apenas naquela página, mas já
cá voltaremos.
Os nossos caros amigos começaram a percorrer a
biblioteca a procura dos livros que mais se
encaixariam nos seus gostos e desejos.
A área da filosofia lógica e retorica foi invadida
imediatamente por Romeu e Pierre, Tiago
acompanhou Ariana na busca do maior policial de
todos, Manel e Marius caíram na tentação de
procurar livros sobre destinos turísticos e
gastronomia, perdoem-me mas coisas de terceira
idade mesmo, e por fim Hugo e Marie procuram na
zona dos romances e das biografias, Marie a
procura de algo que a fizesse encontrar novamente
o seu caminho e Hugo esperava inutilmente que
houvesse um livro sobre Felipe, muitos minutos
passaram e sem noticia do anfitrião continuaram.
Deu tempo suficiente para Tiago sair da sua zona
de conforto e começar a explorar a biblioteca na
sua total extensão e rapidamente encontrou um
padrão, em todas as prateleiras de todas as
categorias existentes, havia um livro que se repetia,
um livro de capa vermelha e sempre escrito em
italiano, mesmo quando colocado nas prateleiras
de escrita franco-espanhola, o lado de investigador
começou a fervelhar nas suas veias e o seu sexto-
sentido perante o perigo também, deste modo sem

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fazer muito barulho chamou todos para junto da
vitrine de vidro.
Com cara apreensiva questionou todos sobre a
existência daquele livro, se eles o tinham visto em
todas as prateleiras tal e qual como ele tinha, ou se
era apenas algo da sua cabeça:
- Não, eu também já reparei, em todas as
prateleiras há uma cópia, e todas elas escritas em
italiano.
- Mas o que é que isso tem de mal? Pode ser
apenas um grande fã da Divina Comédia. –
Comentou Marie.
- Para isso bastava ter esta cópia – disse Hugo,
apoiando a mão em cima da vitrine.
- Exatamente, e há mais, alguém reconhece a
passagem que está aberta no livro?
- Ele não caiu no óbvio?
- “Os lugares mais tenebrosos do Inferno estão
reservados àqueles que mantêm a neutralidade em
tempos de crise moral”, também pensei que fosse
essa a passagem, mas não, leiam e digam-me se
vos parece Dante…
Na página em questão, estava um texto em prosa,
sem rimas, mas com um tema central, o inferno, lá
estava escrito:
“Acreditar em visões como a do paraíso ou o
inferno, torna-se em qualquer momento algo
completamente supérfluo, uma vez que apenas
pessoas nascidas em berço de ouro conseguem

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pensar em algo pior do que a existência mundana
que todos vivemos, afinal de contas quem
experiência a mentira, a traição, a desilusão, o
roubo e o amor poderá esperar algo ainda pior? E o
contrário de igual forma, quem experiência a
riqueza, a amizade verdadeira e prazer poderá
ambicionar algo mais? Acreditar num Deus e num
lugar onde os nossos pecados ou atos positivos
sejam julgados ou parabenizados, respetivamente,
e retirar-nos toda e qualquer culpa dos mesmos,
uma vez que afinal de contas a vontade de um ser
superior será sempre decisiva, meus caros
compatriotas aqueles que vivem os nossos tempos,
não podem acreditar no inferno pós morte, porque
vivem um atualmente e não há nada pior, e
acreditar num paraíso torna-se ridículo, assumam
os vossos erros e esqueçam a eternidade, o hoje
importa, o amanha torna-se longe e insignificante”
O espanto tomou conta de todos e rapidamente o
mais intelectual de todos comentou:
- Obviamente que isso não é Dante, torna-se
completamente anacrónico e distinto do que o resto
da Divina Comédia, que serve de base para a ideia
do Inferno católico, retrata, isso é uma cópia
barata.
- Ou não, talvez seja uma Divina Comédia, mas
não escrita pelo Dante Alighieri – comentou Hugo.
- Isso é impossível, apenas o Dante escreveu
esse livro – afirmou irritado Romeu.
- E como é que ele assinava o seu livro? No final
de cada capítulo?

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- Não, assinava-o na primeira página como
todos os escritores da época, e com o nome
completo.
- Acabaste de me dar razão, olha como foi
assinado este texto.
No final do texto, estava uma assinatura escrita á
mão “ Dante”.
- Agora tenho a certeza que isso não é original!-
quase gritou Romeu.
- Não me digas Sherlock, agora fala baixo e vai
mais o Tiago procurar uma saída, tenho a certeza
que estamos metidos exatamente onde a Mano
queria que estivéssemos.
- Hugo, o que vamos fazer? – Questionou Marie.
- Tentar sair daqui vivos.
Neste exato momento a porta da biblioteca abre-se
com estrondo e Giuseppe aparece, sereno, mas já
sem o terno, com uma camisa negra atada até cima
e com um casaco negro até aos tornozelos, com um
estranho sorriso na face anuncia:
- O meu senhor já vos poderá receber, façam o
favor de me acompanhar.
- Não acha que já nos movemos demasiado de
um lado para o outro, senhor Guiseppe? –
Questionou Hugo, dando um passo em frente – E
para além disso ainda nem nos disse como o seu
amo se chama?

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- Tenho a certeza que ele preferia apresentar-se
a si próprio menino Hugo – respondendo com um
passo em frente também.
- Mas meu caro eu insisto, como é que ele se
chama, para poder tratá-lo pelo nome, mostra
respeito entende?
- Tem a certeza que ainda não sabe o seu nome,
Hugo?- mudando completamente a postura e o tom
de voz.
- Tenho um palpite, mas vou-lhe pedir que mo
confirme, pode ser?
- Terei todo o gosto!
- Aposto que o seu amo se chama Dante Donna,
e é o líder da organização internacional e
completamente monstruosa chamada de Mano de
Dios, estou enganado meu caro anfitrião?
- Afinal de contas ele tinha razão, ele bem me
disse que bastariam alguns minutos para se
aperceberem onde estavam, bem isso é totalmente
verdade e vocês vieram ter a cova do lobo!
Neste momento, entram cerca de dez homens com
longos casacos cinzentos e com os pendentes da
Mano de Dios colocados ao peito, rapidamente
cercaram os nossos amigos e aguardavam ordens.
- Meus caros convidados, vamos descer sem
grande turbulência, até porque não têm forma de
escapar daqui pela via da força, para além destes
homens, temos várias outras dezenas, por isso acho
que não seria sensato.

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- Talvez, mas sensatez nunca foi o nosso forte –
e fazendo sinal partiram em direção a porta.
Poupar-vos-ei os pormenores do embate, porque
ele foi bastante breve, em pouco mais de cinco
minutos estavam todos imobilizados e
inconscientes no chão, uma escuridão sem
comparação tomou conta deles todos, um profundo
vazio foi o que eles sentiram durante quase meia
hora.
Os corpos foram transportados por arrasto pelas
escadas, criando ainda mais hematomas e marcas
no corpo dos nossos amigos, que um por um foram
acordando, sendo o último Hugo e visão que
encontraram era tenebrosa.
O olhar de Hugo estava turvo, conseguia decifrar
alguns vultos com diferentes alturas e fisionomias,
sentia uma dor aguda no lado esquerdo da cabeça e
tentou levar a mão lá mas rapidamente percebeu
que por algum motivo não o conseguia fazer,
sentiu o seu corpo a ser puxado pela gravidade
contra o chão, e embateu com força contra o
mesmo, o choque quase que não causou dor,
parecia ter o corpo anestesiado, sentiu-se a ser
levantado e respirando fundo tentou clarear a sua
mente e os seus olhos, passados alguns minutos
conseguiu reconhecer duas formas já por si
conhecidas, Marius e Manel estavam colocados
sobre joelhos com guardas da Mano ao seu lado,
estavam juntos a um cadeirão onde aparecia uma
silhueta completamente nova ao olhar, mas que por
algum motivo transmitia um ambiente pesado e
dava calafrios pelas costas a baixo a Hugo.

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Um homem, de meia-idade, cabelo curto grisalho,
com uma barba fina espalhada por toda a face,
também num tom a fugir para o cinzento, ombros
largos, peito aberto e braços como troncos por
detrás de uma camisa branca, acompanhada por um
colete e uma gravata pretos, tinha um pequeno
pendente no peito, com uma cobra cinzenta.
Apresentava uma pose de poder, recostado no
cadeirão com as pernas cruzadas em L, numa mão
possuía un pequeno terço que mexia como se
tivesse a rezá-lo e no outro uma bengala onde
deixava a mão direita apoiada, a bengala toda preta
e com o manípulo em cinzento prata em forma de
cabeça de serpente.
Ao seu lado, quietos estavam os dois dobermanns
sentados como se tentassem imitar a pose do seu
dono, e talvez o elemento mais macabro nesta
situação toda seja a serpente negra que saía da
manga do seu braço direito e se enrolava na
bengala, escamas finas, uma língua que
constantemente se fazia ver e ouvir como se
marcasse compasso e olhos vermelhos que tudo
observavam.
Este era o dono da casa, este era Dante Donna!
Quando se apercebeu que Hugo já tinha a sua visão
totalmente recuperada e já tinha noção de tudo o
que se passava a sua volta, num tom calmo, irónico
e impactante disse:
- Bom dia bela adormecida, parece que viste um
fantasma. – A sua voz era grave e fazia-se sentir
como um trovão.

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E definitivamente o olhar de Hugo fazia
transparecer isso, enquanto o seu olhar não
acompanhava a sua mente ele pensou que estaria
perante Luís Los Santos, uma vez que a fisionomia
era extremamente parecida e a pose também,
podia-se dizer que eram uma fotocópia um do
outro, pelo menos pensou isso enquanto não
recuperou as suas capacidades, porque quando isso
aconteceu, percebeu que este homem que estava
perante si era muito mais forte fisicamente.
A primeira preocupação de Hugo não passou por
responder a provocação, mas sim verificar se todos
os seus amigos ainda estavam vivos, e para sua
felicidade ainda se encontravam todos com vida,
todos eles extremamente mal tratados com mazelas
que faziam arrepiar os mais sensíveis, com sangue
pisado e cortes na cara e nos braços, apenas duas
pessoas não tinham quaisquer marcas, Pierre e
Marie estavam ilesos, apesar de estarem perante a
morte Hugo conseguiu respirar fundo.
- Sim, como podes ver estão todos vivos, peço-
vos desculpa pela forma como foram tratados pelos
meus meninos, mas eles são um bocadinho
agressivos as vezes – disse Dante, pousando o
terço em cima da perna e esticando-se para pegar
no copo de vinho que estava ao lado do seu
cadeirão – mas digamos que eles só responderam
na mesma moeda, afinal de contas vocês ainda
foram capazes de imobilizar três dos seus colegas.
– Bebendo mais um gole.
- Estou surpreendido que ainda nos tenha
mantido vivos até aqui. – Disse Hugo com
respiração ofegante, neste momento já tinha

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reparado na linha de sangue pisado que tinha ao
longo da cara.
- Não existe nada de glorioso em matar presas
adormecidas, e também não ia perder a
oportunidade de falar com o sucessor do famoso
Alfa e com a minha querida e traidora filha.
- Solte-os, fique comigo e deixe-os ir!- gritou
Marie.
- Oh, ma douçe Marie, não sejas ingénua,
sempre foste apenas um peão no meio disto tudo,
ganhei por ti um carinho especial, mas isso não te
salvará, sempre pensei que o teu falecido irmão
viesse atrás de ti, mas no final de contas mandou
os seus cachorrinhos fazer o trabalho sujo.
- Se lhe ganhou esse carinho especial deixe-a
viver, mate-nos a nós mais deixe que a sua “filha”
viva – disse Ariana.
- Mas eu tenho cara de comerciante ou de padre
para estarmos a negociar? Todos vocês terão o
mesmo fim, mas não será aqui, aqui em casa
morrerão apenas dois infiéis que nem sei como é
que andam com vocês, uma vez que a Alcateia
condenava totalmente a apaneleiragem.
- Mas nós não possuímos ninguém homossexual
no nosso grupo- comentou Romeu.
- Não me digam que eles não vos contaram a
verdade? Pensam mesmo que dois velhos no final
das suas vidas iam viver juntos para a Islândia só
por serem amigos? Meus caros, estes dois amigos
tão queridos por vós, são um casal! São duas

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bichas nojentas que vos conseguiram enganar
durante todo este tempo.
O olhar de Hugo procurou o olhar de Marius e
quando o encontrou recebeu a confirmação que
procurava. Manel por sua vez apenas baixou a
cabeça em sinal de vergonha, o espanto tomou
conta de todos, apenas Hugo parecia compreender
o que eles poderiam estar a sentir.
- Meu caro Hugo, ou devo tratá-lo por Alfa?
Não interessa, de líder para líder, eu vou deixá-lo
decidir, como prefere que eles morram, com um
tiro na cabeça ou degolados? Estou a ser bastante
simpático eu deixá-lo decidir a forma como eles
vão morrer, poderia ser eu a escolher e eu escolho
sempre a pior. E ainda vou mais longe – fazendo
sinal para o colocarem de pé – vou deixar que seja
você a matá-los, escolha a forma e se é você ou um
dos meus homens. Não digam que eu não sou
simpático.
- Dante, escolha bem, porque a forma como os
matar, vai ser exatamente a forma como vai
morrer!
- Uhh, o lobo está a aparecer, mas meu caro
cãozinho, não estás em posição de fazer ameaças e
se tu não queres decidir eu decido. Alejandro,
chega cá meu filho.
Alejandro entra na sala com passo firme e procura
inconscientemente o olhar de Marie, mesmo que
por breves momentos os seus olhares cruzaram-se.

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Ajoelhando-se ao lado de Dante e beijando-lhe a
mão direita, encostando a face a cobra negra eu
ainda lá descansava.
- Signore mio, em que posso ser útil?
- Escolhi-te para seres o executor da pena capital
que eu decidi que estes hereges merecem receber.
- E qual é essa pena?
- Morte por degolação. Aceitas esta honra?
- Claro que sim.
Alejandro, colocou-se atrás de Manel depois de ter
recebido uma navalha de Guiseppe, uma navalha
de tal forma afiada que quase cortava de olhar para
ela. Com um olhar vazio e distante quando se
preparava para agarrar o cabelo da primeira vítima
para aplicar a sentença, fez-se ouvir a voz de
Marie:
- Alej, tu não precisas de fazer isso! Tu não és
um monstro, tu és uma boa pessoa, mostra isso!
Os olhos dela transbordavam, por muito que
tentasse não conseguia aguentar as lágrimas, por
sua vez o olhar de Alejandro parecia ainda mais
perdido, estava dividido entre o dever e quem sabe
a vida e o amor e a morte, normalmente estas duas
realidades andam sempre de mãos dadas.
- Ela tem toda a razão Alejandro – interrompeu
Dante – mas vê onde as boas pessoas estão –
apontando para Marie – por vezes temos de ser
orgulhosamente maus, a vida não foi feita para os
bonzinhos, até porque esses normalmente acabam

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sempre mal, a vida foi feita para aqueles que fazem
o que é preciso fazer, nem que por vezes rompam
todos os limites da bondade e da ética, por isso diz-
me Alejandro vais sempre apenas mais um
bonzinho ou vais continuar a sobreviver como
deve ser?
- Jurei lealdade á Mano, e vou cumpri-la.
No momento seguinte estava a pegar na cabeça de
Manel a puxá-la para trás e dar um golpe certeiro
na garganta do mesmo, um rio de sangue saiu pelo
buraco que se abriu na garganta, ele ainda tentou
lutar pela vida, mas nada podia fazer, os olhos
reviraram-se, o sangue saiu pela boca e pela
ranhura, o corpo caiu inanimado no chão enquanto
uma poça de sangue se criava e ensopava toda a
cara no mesmo sangue vermelho e espesso.
A seguir era Marius que já se tinha conformado
com o seu destino, antes da sua última respiração
disse:
- Desculpem meus amigos, mas isto tinha que
ser assim! Hugo! Ele está vivo, não percas a
esperança!
- Ele quem?- ainda questionou Hugo.
Mas a resposta já não surgiu, a garganta de Marius
já tinha sido cortada, os seus olhos já estavam
moribundos e o seu corpo colado ao chão.
Marie não aguentou e desatou aos gritos, Tiago
baixou a cabeça e as lágrimas encheram os olhos
de Ariana.
Dante terminando o copo de vinho, sorriu e disse:

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- últimas palavras interessantes, mas é verdade,
a esperança é a última a morrer.
- O que vai fazer connosco? – Questionou Hugo.
- Dar-vos um final condigno, mas antes tenho
algumas perguntas que gostava que me
respondessem.
- Acho justo, mas tal como disse de líder para
líder, também tenho algumas questões que gostava
que me respondesse, temos acordo?
- Agora falaste como o Alfa que eu esperei tanto
tempo por encontrar, temos acordo, mas vamos
para um sitio mais fresco, e com menos cheiro de
morto, o meu estomago pode não parecer mas não
é propriamente forte e ainda para mais estar a olhar
para cor do sangue e beber vinho não é muito
agradável, se eu quisesse sangue bastava fazer isto
– levantando-se, e molhando o dedo na poça de
sangue e levando-o a boca, parecendo saborear
como se fosse uma das sete maravilhas da
gastronomia – sangue de idoso para um arroz de
cabidela, talvez ainda o aproveite – sorrindo.
Os nossos amigos foram vendados para não
saberem o caminho de regresso, caso numa
hipótese muito remota eles conseguirem-se libertar
não terem a mínima noção de onde estariam.
O local escolhido por Dante era um precipício num
dos limites da ilha…
O tempo tinha mudado desde da tarde, o tempo
ameno que se mostrava tinha sido substituído por
uma aragem gélida, nuvens que ameaçavam chorar

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a qualquer momento, as arvores baloiçavam
furiosamente as suas folhas, as pessoas tinham-se
escondido em casa ou nos típicos bares que
acolhem todos os tipos de gente, os tetos dos bares
e nessa noite tinham ficado impregnados de fumo,
um cheiro a cinza misturava-se com o vento que o
levava para bem longe, não só tabaco simples era
fumado naqueles sítios, o cheiro mais poderoso de
algo mais forte era reconhecido por aqueles que
mesmo sem nunca lhe terem tocado eram tanta vez
bombardeados com ele que já o conheciam a uma
longa distância.
O local onde os nossos amigos se encontravam era
um terreno em pousio, que tinha no fundo da
encosta, várias pedras pontiagudas que eram um
convite a distancia para aqueles que sofram de
vertigens, nas proximidades apenas existia um
bosque com vários tipos de arvores e uma estrada
secundaria onde quase nunca aparecia um carro, se
passasse lá um carro por dia era o muito, mas
naquela noite não só passou um, mas como
passaram três e dois deles de sete lugares.
Duas carrinhas pretas completamente fumadas
onde nem um raio de sol era capaz de entrar, com
portas laterais de correr e no seu interior cheias
com os nossos queridos “prisioneiros” e com
vários membros da Mano para garantir que não
haveria gracinhas.
Ao fim de quase uma hora de viagem lá chegaram
ao local decidido, um a um foram retirados da
carrinha e colocados de joelhos virados de frente
para Dante e aqueles que se colocavam a seu lado.

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As vendas foram retiradas e visão turva pouco a
pouco foi-se habituando a luz que os faróis das
carrinhas e do carro imitiam em direção a eles.
- Espero que as luzes não danifiquem muito os
vossos tão sensíveis olhos, mas a noite decidiu
pregar-nos uma pequena partida e a luz do luar não
será suficiente para eu ver essas belas faces. Acho
que escolhi um sítio apropriado para a vossa última
cena, eu se tivesse de escolher um sítio para morrer
seria igual a este, não nas mesmas circunstâncias
que vocês como é obvio, mas como um grande
herói do antigamente, numa pira de fogo, com dois
dracmas nos olhos e com cânticos sobre a minha
bravura, era isso que eu desejava, como devem
imaginar não planei uma morte dessas para vocês o
que é uma pena, mas não temos orçamento para a
executar, peço-vos desculpa.
- Durante quanto tempo mais nos vai manter
vivos neste impasse? – Questionou Hugo olhando
nos olhos de Dante
- O tempo necessário para vocês me
responderem a todas as questões que vos vou fazer.
- Então comece, estou a começar a ficar com
frio, esta brisa é demasiada fria para o meu gosto.
- Não te preocupes, tenho a certeza que a nossa
conversa vos vai aquecer, e para além disso queres
o meu casaco - Dante tinha um casaco longo negro
até aos tornozelos e chegou mesmo a fingir o gesto
de o despir.
- Não se incomode, não visto pele de cobra.

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- Podes não ser o Felipe mas es definitivamente
parecido com ele, e só por isso até vos vou deixar
colocar uma questão primeiro, estejam a vontade,
mas escolham com sabedoria.
- Qual é o verdadeiro objetivo da Mano?-
questionou sem dar tempo de reação Ariana.
- Pensei que durante os teus anos isolada
tivesses encontrado a resposta a essa questão, ou
então que a Rubi a vos tivesse dado quando
tiveram em Salamanca, mas irei responder com
todo o gosto.
- Como é que conhece a Rubi? – Perguntou
nervosamente Hugo.
- Ah, ah, ah – abanando o indicador de um lado
para o outro – apenas uma questão de cada vez, são
essas as regras do jogo.
A labareda da raiva pintou os olhos de Hugo, mas
não havia nada que ele pudesse fazer.
- Respondendo à pergunta da doce Ariana, a
nossa querida organização foi fundada por
Nicolas…
- Flamel! Sim, nós já sabemos disso, a Rubi
contou-nos tudo até a noite da Purificação,
principalmente de vocês terem sido a fação
rebelde, não precisa de repetir! – Disse Hugo.
- Fação rebelde? Como filho primogénito do
grão-mestre a herança era minha, mas eles tinham
outros planos, colocaram-me inclusivamente como
empregado da família! A fação que eu liderei era a
dos verdadeiros herdeiros da vontade da Mano, não

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os hereges que apoiaram os meus irmãos, mas se
sabem tanto sobre a minha organização, o que
precisam que eu vos conte?
- Qual é o segredo máximo da organização? O
que é que vocês guardam?
- Isso a Rubi não sabe, como é óbvio, nunca
poderia saber, nós destruímos todos os livros sobre
ela, para mal dos nossos pecados. Como vocês
devem saber Flamel foi chamado de Louco porque
ele disse ter inventado um artefacto que poderia
curar os feridos, criar ouro e dar a imortalidade a
quem a possuísse certo?
- Está a falar da Pedra Filosofal? – Questionou
Romeu.
- Exatamente, era esse o nosso segredo, durante
vários séculos os grão-mestres guardaram-na,
sempre apologistas de a usar para o bem comum,
sem nunca perceber a verdadeira e máxima
funcionalidade dela. Atingir a Imortalidade! Esse é
o objetivo da minha Mano, atingir a Imortalidade,
afinal de contas, todos os homens procuram duas
coisas, ou amor ou imortalidade, já desisti da
primeira, mas não vou desistir da segunda! Mas
isto leva-me á questão que tenho para vocês. Onde
é que ela está?
- Como é que suposto nós sabermos disso? Ou
como é que podemos acreditar sequer que isso é
verdade?
- Respondendo á segunda questão, Romeu,
quando enfrentaste o capitão Sarevo, ele falou-te

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do soldado que tinha acabado de recuperar a sua
filha certo?
- Sim, mas falou em danos colaterais, não sei se
foi a expressão real, mas andou por aí.
- Exatamente, desde que a minha irmã fugiu
com a pedra filosofal original, a mando do meu
pai, nós baseados nos manuscritos que sobraram de
Flamel, tentámos por todas as vias reconstruir a
pedra, mas sempre obtivemos resultados
insuficientes, no nosso caso, as pedras que
criamos, até conseguem curar doenças, de forma
cientifica, mas aceleram rapidamente o
envelhecimento, o que faz com que se surgirem
outras doenças ou simplesmente pela idade, as
pessoas acabam por morrer ainda mais depressa, é
o que vai acontecer a essa criança, vai acabar por
morrer, não pela doença, mas sim pela cura.
Respondendo agora á primeira questão, apenas
vocês podem saber onde é que ela está, uma vez
que o último a saber da localização dela foi o Luís
Los Santos, que trabalhou até ao momento da sua
morte em equipa com o Alfa, para a esconderem de
mim.
Neste momento enquanto todos arregalaram os
olhos, Hugo desata a rir como um maníaco:
- O Luís Los Santos e o Felipe a trabalharem
juntos? Isso é de loucos, eles odiavam-se, nunca
poderiam formar uma equipa!
- Parece que não conheces mesmo o teu melhor
amigo, pensei que vocês soubessem, mas vou ficar
feliz por vos contar a história verdadeira do que se
passou. Há alguns anos, conheci o candidato a

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poderoso sucessor da família Los Santos, o Luís
era uma pessoa com muitos desejos e uma forte
ambição e digamos que não com muita noção do
que era certo ou errado, nisso a idade fez-lhe mal,
mas rapidamente nos demos bem, ele entrou para a
Mano e atingiu cargos importantes, foi durante
muito tempo o meu braço direito, e á cerca de
dezoito, dezanove, vinte anos, já não tenho muita
certeza, apresentou-me a um individuo que
precisava urgentemente de ajuda e que dizia ter
informações do possível paradeiro da Pedra
Filosofal, mas que por não ser da nossa
organização não poderia chegar lá, afinal de contas
há segredos que nem a Maçonaria contem, ele só
precisava de ajuda a encontrar um tratamento para
a sua companheira e dinheiro para ajudar a criar os
seus dois filhos, tu Marie e o Felipe, que não era
filho, mas era como se fosse, e eu como tinha
objetivos ajudei-o mas dei-lhe um prazo, que ele
não cumpriu, eu ajudei-o, ele conseguiu tudo o que
quis, e eu fiquei a ver navios, como tinha sido o
Luís a apresentar-mo, tinha de ser ele a tratar do
assunto, e eu não gosto de pontas soltas e ao
aperceber-me que ele sabia demais, tinha que o
eliminar e a quem o rodeasse, e por isso dei ordem
de morte a todos os que estavam na casa, mas o
Luís era um coração mole, e poupou os dois filhos,
uma com o meu conhecimento que eu acolhi
porque tinha perdido o meu filho alguns anos antes
e outro sem eu saber, mas em vez de o acolher
dentro do seu seio familiar colocou-o numa
posição social inferior durante dois anos, e ao fim
desse tempo puxou-o novamente para a cidade,
mesmo sem o miúdo nunca saber, para dizer a

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verdade o Luís foi um génio, fez com que o miúdo
o odiasse durante imenso tempo, para quando
sentiu que ele estava preparado contar-lhe toda a
verdade, no bem dito aniversário da Teresa
Godfish, foi ai que ele lhe contou toda a verdade, e
foi nesse dia que o Felipe se tornou líder dos
rebeldes, mas ele sabia que precisava de desviar a
atenção dele e por isso criou aquela imagem todo-
poderosa, a organização, a sede, os peões, tudo
com a ajuda do Luís, eles trabalharam em
conjunto, mas algo correu de forma que eles não
esperavam, eu descobri que o Luís pertencia aos
rebeldes, e tencionava mata-lo, bem como ao
Felipe e a todos os que ele amava, naquele
momento era por desporto e para me divertir um
bocadinho, mas após uma visita á cidade, descobri
que havia um motivo ainda mais forte, eles os dois
nas minhas costas tinham escondido a pedra
filosofal, e nesse momento eu tinha de os caçar,
mas na noite em que eu pretendia fazer isso, eles
mataram-se, mutuamente era o objetivo, mas para
manter as aparências, a mente do Felipe, que sem
duvida foi o filho que eu nunca tive e desejava ter,
orquestrou toda aquela magnifica encenação, para
mostrar o odio que eles tinham entre eles, até a
Ariana e o Diogo foram peões no meio disto tudo,
colocados nas posições certas, para causar o
impacto certo, tudo pensado pelo Felipe. Mas
agora poderão estar a pensar que se ele era tão
inteligente podia facilmente enfrentar-me, ainda
para mais com o exercito que tinha na altura, mas
ele foi emocional em vez de racional, ele não vos
queria colocar em perigo, nem a sua pequena irmã,
que ele sabia que estava á minha guarda, por isso

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para vos proteger, matou-se e levou o segredo da
localização com ele, bem assim eu pensava, até ao
dia em que ouvi sobre o enigma, que ele tinha
deixado aos seus amigos, que só poderia ser aberto
com anéis específicos, eu poderia facilmente caçar-
vos individualmente, mas sabia que o enigma vos
ia unir todos, e que vos ia trazer a mim, afinal de
contas, se até a minha filha traidora era necessário,
a Mano e a Alcateia iam acabar por se encontrar,
esta é a verdade sobre o Felipe e sobre o Luís,
foram dois mentirosos, que trabalharam juntos, e
que morreram para vos deixar vivos durante mais
tempo. Aceitem, tal como eu aceitei.
A mente de Hugo entrou em curto-circuito, era
demasiada informação, ele já se tinha apercebido
que o seu amigo era um perito em mentiras, mas
nunca pensou que fosse tanto, ele demonstrava
tanto ódio pela família Los Santos, seria ele capaz
de mentir tanto a cerca de uma pessoa? Sobre
sentimentos? Hugo esquecia-se que essa é a
capacidade mais maravilhosa que o ser humano
possuiu, mentir é um dote que pode ser usado para
uma imensidão de fins, não é que mentir seja em
circunstancia alguma positivo, mas quando é usado
para o bem, mesmo que seja um bem temporário,
pode ter efeitos a curto prazos maravilhosos,
começar uma relação, manter uma amizade, evitar
uma discussão e muitas outras coisas similares,
mas por outro lado, quando é usado com o intuito
de causar dano torna-se maquiavélica, destrói
relações de anos, causa insegurança, coloca mães
contra filhos e filhos contra mães, e por vezes nem
é preciso ser dita com esse intuito, basta terminar o
seu prazo de validade, e quando descoberta, destrói

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tudo o que anos de verdade construiu. Acho que é
um dote único do ser humano consegue criar
“armas” que o podem autodestruir com imensa
facilidade, o que se torna uma idiotice, se nenhum
ser humano alguma vez tivesse mentido,
problemas de confiança não iam existir, mas pedir
ao Homem para não mentir é como pedir ao
Homem para não necessitar de oxigénio para
sobreviver, torna-se impossível.
- Isso é impossível… - comentou Ariana.
- Minha querida, tu que foste usada pelo Felipe,
mesmo antes de o conhecer achas isto impossível?
Eu acho uma ação de génio, afinal de contas, ele
controlou todas as vossas vidas, sem sequer se
preocupar com elas.
- Contrariaste-te agora, ainda a pouco disseste
que ele se tinha sacrificado por nós, e agora dizes
que ele não se preocupa connosco? Ele pode ter
brincado connosco, mas bem no fundo apenas nos
queria proteger e disso tenho a certeza, porque
estamos a falar do Felipe e não da personagem
maldosa do Alfa que todos vocês amam criticar e
falar mal sobre. – Comentou com voz forte Hugo.
- Tu vais defendê-lo, diga eu o que disser por
isso não vamos continuar a tentar atribuir juízos de
valor a um moribundo, até porque cada um de nós
terá uma opinião, mas vejo que não têm a resposta
que procurava, por isso não me servem para mais
nada.
- Acho que também tenho direito a fazer uma
pergunta! – Interveio Marie.

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- Com certeza minha querida filha, mas é a
última que deixo que vocês coloquem.
- Quem são os nove magníficos e qual a sua
função?
- Pergunta interessante – neste momento mais
um carro chega ao local, trazendo dentro de si, o
homem que se tinha encontrado com Diogo em
Coimbra, Sir Isaac e o capitão Sarevo, todos
vestidos a vigor como as leis da Mano assim o
exigem – e parece que chegaram alguns deles,
como tu aprendeste, os nove magníficos sempre
existiram na nossa organização, com a função de
serem os representantes máximos da mesma, com
informações privilegiadas e com missões mais
perigosas, assim sendo, neste momento cada um
dos nove tem uma característica muito própria que
lhes da o cognome, tu por exemplo es a Magnifica
da beleza, eu sou o da inteligência, mas eu como
sou bondoso até criei um sistema de exceções para
parabenizar até inimigos nossos, o vosso amigo
Felipe, ficou conhecido entre nós como o
Magnifico do sacrifício, o meu outrora braço
direito Luís Los Santos era o Magnifico do Poder,
o meu pai era o Magnifico da Força, e todos eles já
se encontram mortos, bem como o pai de um dos
vossos amigos que fugiu de forma inteligente, o
pai do Samuel era o Magnifico da Lealdade, ainda
escolhido no tempo do meu pai, ele gostava muito
daquele rapaz, mas resumindo, vivos continuam
apenas cinco. Eu, tu e agora aqueles que eu vou
apresentar, o teu ex-pseudo-namorado Alejandro é
o Magnifico da Coragem, o Sir Isaac, é o
Magnifico da Eloquência, que com toda a sua

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capacidade vos enganou durante todo o tempo, mas
o prémio Óscar vai para o Magnifico da Mentira, o
meu querido Pierre – apontando para o Pierre que
neste momento se levanta e começa a sorrir – que
foi até á Islândia para garantir que vocês vinham
ter comigo, e que com toda a capacidade
conseguiu, muitos parabéns meu caro amigo.
Hugo assiste a toda aquela cena com uma cara de
nojo, Isaac tinha sido um dos primeiros a dar a cara
em Coimbra, Pierre tinha-os ajudado durante todo
aquele tempo, fazia-se passar por um mero
empregado, o nojo foi lentamente substituído pela
raiva, uma raiva incontrolável, que fez com que ele
se levanta-se e se atira-se mesmo com as mãos
atadas para cima de Isaac, aplicando-lhe uma
enorme cabeçada na zona do nariz, e antes que
pudesse fazer o mesmo a Pierre, Dante aplica-lhe
um murro em cheio da cara que o deita ao chão, de
imediato quer o nariz de Isaac quer o de Hugo
começaram a sangrar, rapidamente foi levantado
pelos homens de Dante e colocado ao lado dos
seus amigos.
- Como é que foi capaz Isaac? Todas aquelas
pessoas confiavam em si! Porquê? Por que raio fez
isto?
- Tu não sabes nada miúdo! Achas que pelo
simples motivo do Felipe te ter escolhido, sabes
como este mundo funciona? Não sabes o que nós
arriscamos, o que perdemos e o perigo constante
em que vivemos! Por isso não me julgues, fiz o
que tinha que fazer para me manter vivo, neste
mundo ou matas ou és morto, e desculpa tenho
muitas razões para ficar vivo!

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- Também não exageres Isaac, até parece que ias
morrer se falhasses aos teus superiores, também
não somos nenhuns animais! – Disse Dante
aproximando-se do seu subordinado – acho que
chegou a minha vez de perguntar, não é verdade?
Hugo apenas acenou com a cabeça.
- Muito bem, Tiago porque é que não cumpriste
as ordens que o Felipe te deixou?
- As vezes o melhor para o grupo é desobedecer
as ordens, e acho que a conversa pode terminar por
aqui!
- Que ordens? – Interrogou Ariana.
- Então não tiveste sequer coragem para lhe
contar? Bem eu conto.
- Cale-se!
- Minha cara Ariana, as ordens que ele tinha era
para te encontrar, fazer com que tu te apaixonasses
por ele e depois matar-te, num dos manuscritos
deixados pelo Felipe, está escrito que a tua
participação tinha de chegar ao fim, mas parece
que ele gostou de andar a brincar contigo, e
precisava de alguém que lhe aquecesse os pés de
vez em quando.
- Não acredites no que ele diz, sabes que ele só
nos quer destabilizar – disse nervosamente Tiago.
- Ele tem toda a razão não acredites em mim,
acredita nos papeis do Felipe – atirando uma folha
para o meio do chão que confirmava tudo o que ele
tinha dito, e dificilmente seria forjada, tinha a

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assinatura do Felipe feita pela sua letra bastante
particular – tu foste apenas parte do jogo Ariana, tu
e o teu irmão foram mandados buscar pelo Felipe,
ele só queria uma mãe para o filho, e como sabes
que tu és uma romântica incurável, mandou-te
mesmo depois de morto o seu braço direito para
continuar a brincar contigo e para garantir que a
Marie e que o pequeno Luís chegavam com vida
até este momento, é triste uma representante tão
real de uma família tão poderosa ser usada como
brinquedo durante tantos anos, mas é a vida.
- Isto tem mesmo a cara do Felipe, mas nunca
pensei que tu fosses capaz Tiago, ainda bem que
vamos morrer, porque o meu coração não aguenta
mais enfrentar esta realidade e ter de olhar para a
tua cara!
- Ao início até pode ter sido, mas depois tudo
mudou, eu realmente quero estar contigo!
- E vão estar, ou no céu ou nos sete infernos, se
conseguirem mandem-me um postal, quero ver
como é a vida depois da morte!
- Dante, eu vou-te perseguir nesta vida e na
outra e quando morreres estarei a tua espera a porta
do Inferno para te dar as boas-vindas e começar o
teu castigo eterno, não descansarei nesta vida, nem
na próxima sem te matar, escreve o que eu te digo!
– Gritou Hugo.
- Meu caro Hugo, quando eu morrer eu vou
reinar sobre os nove círculos do Inferno, onde
todos os demónios que trataram por senhor e
beijaram os pés sujos que terei, todas as vítimas da
minha mente me iram servir durante toda a

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eternidade, inclusive tu, eu estou sempre um passo
a frente, e tu serás sempre uma imitação barata e
sem valor do Felipe, afinal de contas, ele próprio
acabou por ser uma imitação barata do que
desejava, foi um covarde que teve de morrer
porque não conseguia proteger aqueles que amava,
não me surpreende que vocês sejam iguais, acaba
aqui o reinado dos lobos uivantes, que nunca
passaram de cachorrinhos assustados.
Virou costas e acendeu um enorme charuto
cubano, abrindo uma pequena caixa que tinha
dentro do carro de onde tirou a cobra negra que o
tinha acompanhado em casa, colocando o doce
animal em volta do braço esquerdo virou-se
novamente para o grupo de amigos, com um
sorriso na face e um olhar assustadoramente afável
elevou a voz:
- Acho que já chega de perguntas, já tivemos
muita informação para um dia, e como já vi que
vocês não têm nenhuma utilidade, o vosso fim
apenas pode ser um, mas vou ser gentil com vocês,
não vos vou dar uma morte muito dolorosa,
morreram a tiro, um tiro na testa e sem dor,
Alejandro escolho-te novamente para executares
este serviço.
O sangue do jovem comandante congelou, ele
esperava que fosse o capitão Sarevo a executar a
sentença, era sempre ele que era o escolhido, por
ser mais impetuoso ou apenas por ser o mais velho,
ele nunca percebera, mas também não era isso o
mais importante, cumprir aquela ordem implicava
matar aquela que possuía o seu coração, o olhar
dele decaiu de imediato sobre Marie, ele sabia que

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ela estava condenada, mas não queria ser ele a ditar
o seu fim.
- Se não te sentires capaz, eu escolherei outro,
bem sei o que custa ter de matar aquela que foi a
dona do nosso coração durante tanto tempo, mas
começo-me a questionar se serás realmente o líder
apropriado para os meus homens, uma vez que não
consegues controlar os teus sentimentos, e não
gosto que me falhem.
Alejandro sabia perfeitamente o que lhe ia
acontecer se recusasse aquela missão, seria
acusado de alta traição e morte seria a sua única
saída, pela primeira vez temeu pela própria vida,
de certeza que ninguém naquele grupo o ia
defender, metade deles não gostavam dele e outra
metade queria-o ver morto, não iam perder esta
oportunidade e para além disso valeria mesmo a
pena arriscar a vida por alguém que o tinha
abandonado sem razões aparentes? Não seria
colocar todas as apostas num cavalo muito
perigoso? Respirado fundo respondeu enquanto se
virava para o seu superior:
- Pode contar comigo senhor, irei cumprir a
vontade da Mano, seja ela qual for, o meu amor
está apenas nesta casa e em todos que nela
habitam.
- Assim gosto, adoro e recompenso aqueles que
nunca me falham, a falar nisso bem caro Isaac
aproxima-te.
Isaac confiante e a velocidade que as suas pernas
lhe permitiram lá se foi aproximando,
completamente seguro que iria ser recompensado.

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- Meu caro amigo, achas que valeria a pena
manter algum destes jovens vivos? – Colocando a
mão sobre o ombro de Isaac.
- Acho que alguns deles poderiam dar jeito sim,
alguns demonstraram capacidades muito boas para
a nossa organização e podiam ser uma mais-valia.
- Esse é o teu problema Isaac, achas sempre que
haverá uma segunda hipótese, eu não gosto de
cobras rateiras no meu ninho de víboras, e tu
falhaste-me demasiadas vezes, por isso o teu fim,
será as minhas mãos – afastando-se esticando o seu
braço direito fazendo com que a pequena cobra
cravasse os dentes no pescoço do seu até a bem
pouco tempo compatriota- que sirvas de exemplo
para todos aqueles que pensam que podem fazer
jogo duplo sem eu descobrir.
Isaac caiu redondo no chão, rapidamente o veneno
espalhou-se pelas veias e começou a surtir o seu
efeito, os músculos começaram a tremer
provocando espasmos, os olhos começaram a
revirar perdendo toda a sua cor, da sua boca
começou a sair espuma branca, contorcendo-se
com dor, gritos agudos e abafados saíram pela sua
garganta, todos viraram a cara menos Dante que
assistia aquele espetáculo com prazer, era uma
morte dolorosa que durou pouco mas que
certamente custou muito, nem mais uma palavra
saiu da boca daquele moribundo, ao fim de alguns
minutos ele já não estava entre os presentes, Dante
fazendo sinal mandou que o corpo fosse atirado
contra os rochedos, o corpo ao chocar contra as
pedras partiu-se como se de legos se tratasse, com
um sorriso na face Dante ainda apagou o seu

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charuto num bocado da espuma que tinha saído
pela boca do seu subordinado.
- Tu és mesmo um monstro – comentou Hugo.
- Sou um sobrevivente, se o meu pai tivesse feito
o mesmo comigo quando descobriu a minha
traição ainda estava vivo e vocês também ficariam,
mas aqueles que não têm a coragem de fazer aquilo
que tem de ser feito, acabam sempre por sofrer as
consequências daquilo que não fizeram. Não
tenciono morrer, e para isso tenho que matar todos
aqueles que colocam a minha imortalidade em
risco, se tu e o Felipe tivessem percebido isso,
talvez tivessem vencido, mas agora terminou e eu
ganhei!
Neste momento mais um carro chegou negro
chegou ao local, de dentro dele saiu o homem que
tinha estado em missão em Portugal, com os
longos cabelos soltos a doce brisa, olhos verdes e
um sorriso branco, não artificial, mas branco o
suficiente para todos prenderem o seu olhar nele.
Um logo casaco quase igual a todos os outros mas
com uma pequena diferença, para além do símbolo
da cobra prateada, um enorme coração trespassado
por três laminas de prata, sem sequer olhar para a
espuma que estava no chão, nem para o grupo de
prisioneiros faz uma vénia em sinal de respeito a
Dante e com uma voz rouca começa:
- A minha viagem a Coimbra foi satisfatória,
mas infelizmente não trago apenas noticias
positivas.
- Nada me poderá tirar o bom humor, fala a
vontade.

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- A família dos traidores ficou demasiado
ocupada para ser um problema, contudo perdemos
o nosso fantoche, Diogo Los Santos está
desaparecido e acreditamos que a última ação de
Isaac possa ter sido eliminá-lo para evitar
problemas maiores para a Alcateia ou as próprias
Los Santos para terminarem o que tinham
prometido.
Neste momento, foi a vez de Ariana cair num
pânico incontrolável, sem ela saber muito bem
porque as lágrimas começaram a escorrer-lhe pela
face abaixo, e um rio de memorias começaram a
passar em revista na sua mente.
Uma em especial, quando eram crianças e ainda
estavam escondidas de todo o mundo a viver como
exilados que tinham cometido uma atrocidade
atroz contra a humanidade, num dia que por acaso
tinha encontrado um grupo de crianças da mesma
idade e que tinham tentado brincar, mas que
rapidamente se aperceberam que não seria tão
fácil, e num escalar muito rápido estavam a ser
alvo de ofensas e o pequeno Diogo ate de injurias
físicas, mas esta situação podia não significar nada,
até porque é uma situação extremamente normal
nos dias que correm, mas naquela situação e já
depois de ter apanhado com vários golpes, o
pequeno leão dourado ainda se levantou para
defender a irmã, a sangrar de uma das narinas
colocou-se a frente dela mesmo quando ela estava
prestes a levar uma chapada de um dos bullys, e
depois mesmo sem energia carregou-a as costas
com um sorriso na cara e prometendo-lhe que ia
criar um mundo em que ela nunca mais teria de

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chorar por nenhum motivo, e quando chegaram a
casa ainda lhe fez um chocolate quente com as
próprias mãos e só no fim é que curou das suas
feridas, naquele momento a pequena irmã era o
centro do seu mundo, e agora que ela pensava
durante muitos anos tinha sido assim, apenas
quando foram chamados para cumprir a missão
que o seu tio tinha em especial para eles é que ele
tinha mudado, talvez para a proteger naquele
momento o arrependimento começou a percorrer a
sua mente, teria sido diferente se ela tivesse
tentado ou simplesmente pessoas escolhem
caminhos diferentes? Não importa, as lágrimas
escorriam sem parar e até soluços começaram a
aparecer.
- É uma pena, até gostava do miúdo, mas se ele
morreu era porque não era forte o suficiente para
viver – olhando para a angústia de Ariana começa-
se a rir – este é o motivo pelo qual vocês são
medíocres, depois de tudo o que ele te fez? Depois
de te querer matar, mesmo que tenha sido seguindo
ordens minhas, tu ainda choras por ele? Vocês são
patéticos e eu perco QI sempre que estou perto de
pessoas assim, nem vou assistir a vossa execução,
realmente Deus tem os seus preferidos e
certamente que eu sou um deles. Não posso dizer
que tenha sido um prazer, mas foi quase, ah e
Hugo espero por ti no inferno pode ser que lá
consigas ser mais parecido com o Felipe- piscando
o olho.
Fazendo festas no reptil negro que continuava com
o seu olhar preso no Hugo e nos amigos, começou

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lentamente a afastar-se, quando já estava junto a
carrinha negra, virou-se para trás e gritou:
- Alejandro, não me falhes meu filho, sempre
foste o meu preferido, tenho imensa fé em ti,
espero por ti em minha casa para planearmos os
nossos próximos passos não demores muito.
Mas antes de entrar sussurrou algo ao ouvido de
Sarevo e suspirou, olhando com pena para trás
deixou todos aqueles que se podiam opor a ele ali,
perante a morte.
Todas as carrinhas avançaram, deixando apenas
Alejandro e três homens da sua confiança ali, um
carro de cinco lugares estava estacionado para o
levar para o seu destino mal terminasse a sua
missão.
Na sua mão estava uma pequena arma de calibre
nove e meio, vestia o casaco comprido com as
mangas cortadas na zona dos ombros, um colar
com uma meia-lua e um terror nos olhos como se
fosse uma criança que se tinha perdido dos pais no
meio de uma cidade desconhecida, andava de um
lado para o outro, pontapeando todas as pedras que
apareciam no seu caminho, colocou-se durante
alguns minutos a olhar para o mar furioso que
continuava a embater com força nas pedras e que
já tinha levado o corpo de Isaac para longe, com
uma voz baixa mas a tremer perguntou:
- Porquê Marie? Não podias deixar tudo como
estava? Tínhamos um futuro brilhante a nossa
espera, tu ias ser a líder e eu ia estar ao teu lado
para te proteger de tudo e de todos, por que raio
decidiste abandonar essa possibilidade e juntar-te a

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um grupo de hereges que nem conheces? Tudo por
causa de um irmão que nunca conheceste? Por
alguém que mesmo estando vivo nunca te
procurou? Alguém que não te viu crescer, que não
sabe de que cor são as tuas lágrimas, nem como
choras ou ris? Que não sabe que tens o sorriso mais
bonito do mundo e a gargalhada mais contagiante a
face da terra? Trocaste o tudo por um incrível
nada! Diz-me porquê!
- Sinceramente quando aceitei fugir com a
Ariana não saberia responder-te a isso, mas agora
sei! Troquei tudo isso, pelo sonho de alguém que
via além do que nos víamos, pelo sonho de alguém
que mesmo longe sempre se preocupou com o
futuro de todos! Alguém que morreu pelos seus
amigos e que faria tudo outra vez tenho a certeza
disso! Tu hoje viste o que o meu “pai” consegue
fazer! Queres mesmo compactuar com isso? Ser
um assassino?
- O teu irmão também era um assassino!
- Talvez! Mas quero acreditar que não é um
assassino a sangue frio que matou a sua própria
família! O Dante acabou de matar três pessoas a
tua frente, isso não te faz mudar de opinião a cerca
dele?
- Se não fosse ele ambos estaríamos mortos! Ele
salvou-nos e viu em nós a esperança e o futuro
desta organização, não merece uma segunda
chance por isso?
- E quantas pessoas morreram para nós
vivermos? A nossa vida não vale todas as mortes
que causamos, ele escolheu-nos ao acaso, ele mais

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cedo ou mais tarde vai acabar por nos eliminar do
caminho dele, começando por mim se tu cumprires
a ordem que ele te deu.
- Mas achas mesmo que eu te vou matar? (vou-
me arrepender tanto disto) – apontando a arma aos
homens que estavam com ele disparando sem dar
tempo de eles reagirem, três tiros certeiros, três
corpos deitados no chão – tu vais-nos condenar a
morte, isso é o que tu vais.
Rapidamente soltou todos, com especial atenção
para não magoar as senhoras, prendendo o seu
cabelo num rabo-de-cavalo curto, olhou seriamente
para o céu e depois procurou o olhar de Marie, e
tentou aproximar-se, mas foi rapidamente afastado.
- Os teus sentimentos por mim mudaram não é
verdade?
- Não é altura para isto, temos de parar o Dante
antes que ele cause mais mortes – respondeu
virando as costas.
- Como é que sabemos que podemos confiar em
ti? Afinal de contas és o escolhido do Dante –
questionou Tiago.
- Eu não estou a fazer isto por vocês, por mim
podiam morrer todos, estou a fazer isto pela Marie
e se acham que a vou trair estão totalmente
enganados, mas não vou perder o meu tempo a
tentar provar-vos nada, até porque não tenho que o
fazer, mas aviso se a colocarem em perigo com
todo o gosto que vos enfio uma bala no peito.

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- Gostava de te ver tentar – fazendo peito e
aproximando-se dele Tiago.
- Já podem acabar com a guerra no galinheiro?-
comentou Hugo – neste momento estamos todos
do mesmo lado, e assim é que tem de ser, por isso
controlem-se os dois, a Marie não é um argumento
suficientemente válido para confiarmos em ti,
principalmente depois do que o Pierre nos fez, mas
deixo-te já um aviso, se pensares sequer em trair-
nos o teu corpo vai direitinho as pedras que se
encontram lá em baixo.
- Mas achas que eu tenho medo de ameaças
vindas de ti?
- Devias. O tempo de brincadeira acabou, e
tenho de tirar esta história a limpo, por isso toda a
gente que se atravesse no meu caminho ou sai ou
eu passo por cima, tens de escolher
A presença de Hugo tinha mudado, costas direitas
e um olhar muito mais distante, o cabelo já lhe
chegava quase aos ombros, a barba ocupava quase
toda a sua face, não era o homem que tinha saído
da prisão, e também não era o rapaz que tinha visto
o seu amigo morrer, era toda uma nova versão de
si mesmo.
- Como é que vamos perseguir o Dante? Não
podemos avançar sem ter um plano. – Comentou
Romeu
- Mas também não podemos ficar aqui num
espaço aberto, seriamos facilmente detetados e o
Alejandro seria condenado rapidamente. –
Respondeu Ariana.

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- Sim, neste momento temos de pensar em algo,
mas não aqui, Alejandro vais ter que fazer teatro,
terás de ir até o Dante e dizer que completaste a
missão, nós iremos ficar escondidos a planear o
próximo movimento, mas precisamos de encontrar
um sítio para isso.
- Eu conheço uma pensão aqui perto, eles não
farão questões, mas não podem ficar muito tempo,
eles podem facilmente falar com o Dante –
respondeu Alej.
- Precisamos no máximo de dois dias, não mais
do que isso, e já será tempo a mais, não podemos
deixar o Dante ficar confortável durante muito
tempo. – Terminou Hugo.
- Eu vou buscar o carro, não se aproximem para
já, ele pode ter deixado camaras para vigiar e eu
tenho que as descobrir e eliminar, eu volto já –
piscando o olho a Marie.
Rapidamente avançou em direção ao carro,
procurou atentamente nas portas, nos bancos de
trás e nos bancos da frente, mas nada encontrou,
baixou as duas proteções contra o sol a procura de
microfones e percorreu todas as portas do carro a
procura do mesmo, mas pelos vistos o carro estava
limpo, depois de verificar tudo começou a procurar
a chave, normalmente estava sempre guardada uma
cópia no porta-luvas e quando ele o abriu lá
encontrou o objeto, o carro estava extremamente
arrumado, com todas as peças no sítio, era mesmo
um carro empresarial.
Ele respirou fundo antes de meter a chave na
ignição, ele sabia que tinha contraído um contrato

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sem termo com a morte, mais cedo ou mais tarde ia
pagar esse preço, mas por uma última vez olhou
para Marie e pensou: “Vale a pena”.
Ao fim deste pequeno período de afirmação de
certezas, lá meteu a chave na ranhura e rodou,
rapidamente se fez ouvir um barulho vindo do
motor do carro, ele entendeu de imediato o que
tinha acontecido, no final das contas, Dante
conhecia-o melhor do que ninguém, o carro tinha
sido armadilhado com uma bomba com ligação ao
motor, quando ele rodou a chave ativou o
mecanismo e colocou em marcha uma explosão
que não podia ser parada, ao fim de meros
segundos uma explosão enorme pintou a noite
sombria, uma nuvem de fumo negro elevou-se nos
céus com labaredas a acompanha-la, a explosão
tinha sido de tal forma poderosa que tinha obrigado
os sobreviventes a baixarem-se para não serem
jogados ao chão, mal a explosão eclodiu as
lágrimas apareceram nos olhos de Marie, e o
espanto na face dos restantes.
Ariana agarrou logo a jovem contra o seu peito
para ela não assistir ao fogo que pouco a pouco
eliminava o que restava do carro, o choro era
bastante audível e os soluços também, ela gritava
como se tivesse perdido o amor da sua vida, que
verdade seja dita, Alej ocupou esse lugar durante
muito tempo, o último adeus deles não tinha sido
nada de digno e ambos sentiram isso.
Hugo aproximou-se também dela para a confortar,
enquanto isso Tiago e Romeu tentavam perceber o
que tinha acontecido, tentando ao máximo
aproximar-se da explosão, mas não havia nada para

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ver, o carro estava completamente incinerado, não
restava nada, talvez quando o fumo acalmasse
conseguissem encontrar os ossos espalhados no
meio da erva queimada, mas nada que se parecesse
ao Alejandro iria aparecer, rapidamente a atenção
deles teve de se voltar para os gritos que saiam
daquela criança ajoelhada, nem os braços de Hugo
nem os beijos de Ariana a conseguiram acalmar,
tinha entrado numa crise de ansiedade desmedida,
como se fosse morrer sufocada, tentava falar, mas
apenas saiam palavras soltas e cortadas, apenas o
nome do moribundo se percebia perfeitamente, o
olhar preso nas chamas parecia não ver mais nada,
no meio daquela confusão toda, onde até Ariana já
tinha sucumbido a dor apareceu a voz de Hugo:
- O Dante sabia perfeitamente que ele não seria
capaz de nos matar por causa dela, e planeou a
nossa morte de qualquer maneira, sem remorsos de
matar os seus dois preferidos, ele é extremamente
inteligente, mas um monstro ao mesmo tempo.
- É muito parecido ao Alfa – comentou Romeu.
- Sim, é muito parecido com o Felipe, mas nós
também temos que ser, se ele planeou isto desta
forma certamente terá um plano C para a nossa
morte e não podemos ficar aqui a espera que nos
venham dar um tiro nas costas, temos de procurar
refúgio nos bosques que se elevam para estes
lados, Tiago pega na Ariana, eu levo a Marie,
Romeu vai na frente e abre caminho.
- Mas Hugo, eles podem estar à espera disso –
afirmou Tiago.

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- O Dante é um ótimo estratega, mas também
gosta de brincar com as presas, a explosão deve ter
sido o sinal que ele esperava para mandar os seus
homens confirmar, ainda devemos ter alguns
minutos, mas não podemos esperar, e mesmo que
ele já tenha plantado ali um grupo de homens não
podemos ficar aqui, temos de arriscar, não me
apetece morrer espetado numa pedra lá em baixo –
apontando para o precipício.
Romeu rapidamente seguiu as ordens do seu amigo
e abriu caminho, de um momento para o outro
estavam a beira de uma estrada secundaria ladeada
por arvores de um lado e do outro, o caminho entre
as arvores era demasiado sinuoso para
conseguirem caminhar com as raparigas ao colo
por isso arriscaram caminhar entre as sombras,
sabendo que caso vissem um carro teriam de se
esconder o mais rapidamente possível, andaram
durante uma eternidade que na realidade não
passou de uma meia hora e de meia dúzia de
metros quando uns faróis brancos incidiram sobre
eles, numa zona onde não tinham por onde se
esconder, Hugo teve a mesma reação que teve
perante os cães, colocou-se a frente de todos e
disse baixinho:
- Eu vou-vos ganhar tempo, corram o mais
possível, escondam-se onde tiverem de esconder,
mas sobrevivam e levem esta missão até ao fim,
vinguem aqueles que morreram de forma gloriosa.
O carro travou apenas a alguns metros deles, de la
dentro saíram três pessoas, com casacos de pele,
botas de cabedal e gorros espessos contra a neve,
duas delas mantiveram-se encostadas contra o

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carro, apenas observando e a terceira, passo ante
passo lá se foi aproximando deles, a luz do carro
não permitia ver a sua face, apenas a sua silhueta,
quando se encontrava a alguns centímetros de
Hugo estendeu a mão, mas o medo fez com que os
olhos de Hugo vissem uma arma onde não se via
nada na realidade, fazendo-o respirar fundo e
fechar os olhos, sorrindo enquanto encarava o que
pensava ser a morte certa.
- Vais demorar muito para agarrar a minha mão?
– Disse uma voz familiar.
Apesar da dificuldade que todos tiveram em
reconhecer aquela voz, Hugo mudou
imediatamente de feições, o que era a aceitação da
morte inevitável, mudou para a esperança de uma
viragem no jogo, mas apenas quando os olhos
chocaram com os do seu amigo é que esta sensação
foi uma plenitude no seu espírito.
Do outro lado estava um sorriso que espelhava um
pedido de desculpas, um olhar sincero e um abraço
caloroso a espera, com a força de braços Hugo foi
levantado e levado em direção a algo que nem ele
sabia que precisava, um forte e sentido abraço.
- Pensei que tivesses voltado para Portugal,
podem voltar malta, afinal é um porto seguro,
penso eu.
- E voltei, mas digamos que tens amigos muito
convincentes, mas podemos falar disto noutro sítio,
as noites são agrestes e parece que vocês precisam
de descansar.

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- Samuel? O que raio fazes aqui? – Questionou
Ariana.
- É sempre um prazer rever-te Ariana, neste caso
estamos aqui para vos ajudar.
- Estamos? – Frisou Tiago
- Sim, nós também estamos por ca – comentou
Francisca.
Encostadas ao carro estavam as líderes da casa Los
Santos, Francisca e Inês, com olhares ameaçadores
e posições de poder, olhavam com desprezo para
quase toda a gente, apenas uma suscitava um tipo
de olhar diferente.
- Olá prima – provocou Inês.
- Posso dizer o prazer é todo teu Inês –
respondeu Ariana.
- Vá Vá meninas, estamos todos do mesmo lado
agora!- tentou acalmar Romeu.
- Não sei se estamos, estamos aqui em busca do
nosso próprio mistério, de nada nos interessa a
vossa brincadeira estupida, nem se morrem ou
deixam de morrer, para nós isso é indiferente, mas
uma coisa é certa, Leões não gostam do frio, por
isso vamos para um sítio mais quente, poderão
falar das vossas coisas medíocres lá – comentou
Inês.
- Sim quanto mais cedo tirarmos a limpo o que
nos trouxe cá, mais cedo iremos voltar para casa,
não gostei da ideia de deixar a Marta sozinha por

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Coimbra, principalmente com o idiota do Diogo a
passear por lá.
- Não acredito que o Diogo seja uma
preocupação para a vossa filha… - comentou
Ariana a meio tom.
- E porque não?
- Ele está desaparecido e o mais provável é que
esteja morto.
Por muito que quisessem esconder a alegria tomou
conta da face das duas enamoradas que a sorrir se
abraçaram num abraço de puro amor, comentaram
muitas coisas sobre o moribundo que não acredito
que sejam uma mais valia dizer agora, quanto mais
elas saltavam de alegria, mais a dor e a angustia
tomavam conta do corpo de Ariana, que sabendo
que não podia comentar nada de negativo porque
poderia colocar a salvação de todo o grupo em
questão, aguentava as suas lágrimas e os gritos de
ajuda na garganta para que ninguém os ouvisse, o
seu lábio tremia, as palmas das mãos estavam com
marcas das unhas, as pernas cruzadas e o olhar
perdido no chão, apetecia gritar, chorar e responder
a tudo o que ouvia, mas a imagem de Felipe,
sempre insensível ao que lhe diziam apareceu na
sua cabeça, tinha de ser como ele naquele
momento, uma rocha, que nem o mais forte dos
ventos conseguisse toldar.
- Não acho que estejam a agir em conformidade
com a magnitude da vossa família – comentou
Hugo, colocando-se a frente de Ariana – até posso
acreditar que o Diogo possa ter sido uma pedra no
sapato durante todos estes anos, e uma ameaça ao

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vosso poder, mas também era um familiar e
membro do vosso sangue, era irmão da Ariana que
apesar de ter sofrido mais do que vocês, tem a
maturidade para perceber que na morte todos
merecem respeito e a algum tipo de honras, por
isso tenham o mínimo de respeito, aquando a
morte do vosso tio certamente que muitos teriam a
mesma vontade que vocês tiveram, mas certamente
que apenas o fizeram em privado, por isso tenham
respeito, se não for por vocês próprias, que seja
pelo respeito que devem manter a história da vossa
família, agora vamos embora daqui, que isto só vai
arrefecer ainda mais.
Estas palavras caíram como pedras num charco, o
olhar de desprezo das leoas douradas percorreu
todo o corpo de Hugo, muitas respostas passaram
pelas mentes de ambas, mas o silencio foi a
resposta escolhida, e assim ficou até chegarem a
pousada onde iam pernoitar, dois quartos tinham
sido alugados, um para o casal e outro para todos
os restantes, ambos com varanda, só para o caso de
alguma coisa fugir para fora do controlo que elas
desejavam, afinal de contas tinha de haver um
plano de fuga, podiam não ser tão inteligentes
como o tio, mas certamente que tinham sangue de
leão dentro delas.
Foi exatamente numa destas varandas, curtas e
com os ferros que protegiam as quedas pintados de
dourado, gasto pelo tempo, mas dourado, que
Hugo tencionava passar o resto da sua noite, a sua
mente estava colocada em Dante e ele sabia que
não ia descansar enquanto não o alcançasse, tinha
pedido um cigarro a um dos empregados da

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pousada que por simpatia ou simplesmente para
não o ver a frente tinha-lhe dado o resto do maço
que tinha, eram só cinco, mas para quem fumo,
cinco cigarros ainda são alguns.
Com os braços encostados ao gradeamento da
varanda que desenhava pequenas flores de Liz,
fumava o último dos cigarros, deveriam ser umas
cinco da manhã, quando Sam apareceu de fininho e
colocou-se ao seu lado:
- Tu devias ter mais cuidado com a tua saúde, se
tu adoeces a equipa perde o seu líder, isso seria
bastante prejudicial neste momento.
- Não sei o que se passou enquanto foste a
Coimbra, mas até a tua forma de falar está
diferente, afinal de contas quem é que te
convenceu a voltar? Foi o Rodrigo?
- Se queres que te diga, não sei o nome dele, era
um homem mais velho do que nós e que parecia
saber tudo sobre tudo e todos, ele simplesmente me
disse que era um amigo, e depois do que ele me fez
ver, acho que sinceramente não preciso de saber
mais nada, sinto que posso confiar nele.
- Não devias, eu senti que podia confiar no
Felipe toda a minha vida e ele só me andava a
enganar, e já não tenho tenta certeza que fosse para
me proteger.
- Começas a duvidar da missão que ele te
deixou?
- Isso duvido desde do primeiro momento, mas
começo a duvidar que ele mereça todo o risco que

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estamos a correr, porque sinto que o estamos a
correr porque ele quis que nós o corrêssemos, não
gosto de sentir que sou apenas uma peça no xadrez.
- Quando começaste não te importavas assim
tanto.
- Talvez tenhamos mudado os dois, mas diz-me,
nesta história onde entraram aquelas duas?
- Elas foram a solução que o nosso “amigo” que
indicou, ele até me disse como é que as haveria de
convencer.
- Presumo que tenha sido uma argumentação
infalível, para elas estarem aqui.
- Volto a ser sincero, não sei como, no dia
seguinte a encontrar-me com ele, fui até casa delas,
coloquei no GPS, porque nem sequer sabia onde é
que elas moravam, e bati á porta, tremia como
varas verdes, foi a Francisca que me abriu a porta,
perguntou-me o que é que eu desejava, e eu
expliquei-lhe tudo o que pretendia, inicialmente
chamou-me alguns nomes, sempre de forma
politicamente correta, mas ai usei o meu primeiro
trunfo, uma fotografia tirada em milão de uma
pessoa que eu nunca vi na vida, os olhos dela
brilharam de forma estranha e rapidamente chamou
pela Inês, a resposta delas mudou de imediato, não
sei porquê, mas senti que eles tinham visto um
fantasma, arranjaram logo imensas soluções,
exigindo apenas que mal nos encontrássemos com
vocês, lhes desse a morada onde aquela foto tinha
sido tirada, e foi o que fiz, mas exigi também que
fossemos com elas.

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- Sam, agradeço a ajuda, mas não posso perder
tempo a caça de fantasmas, tenho de pensar no
Dante, tu podes ir, eu não vou.
- Quem me procurou pediu para eu não gastar os
trunfos todos que tinha e por alguma razão acredito
que isto até possa ser importante para toda esta
história afinal de contas os Los Santos sempre
tiveram envolvidos nestas coisas, e para além
disso, vocês precisam de descansar, não vos faria
mal nenhum descansar um bocadinho. Pensa nisso
pelo menos.
- Pensarei, amanhã tomo uma decisão, mas não
tenhas muitas esperanças, não tenho perfil para
perseguir seja o que for que esteja nessa foto, ficas
já avisado.
A noite passou rapidamente, afinal de contas já era
quase madrugada, todos se levantaram
extremamente cedo, passava pouco das sete da
manhã e já todos estavam a olhar para as caras uns
dos outros com desdém, podia-se ver que estavam
a contar os minutos para desaparecerem da frente
uns dos outros, mas então a voz de Samuel fez-se
ouvir:
- Hugo, como é que vai ser, vens connosco a
Milão ou nem por isso?
- Já te disse que não sou bom para caças ao
tesouro, principalmente porque nem sei quem
estou a caçar.
- Ótimo, também não precisamos uma carrada
de cachorrinhos molhados atrás de nós! –
Comentou rapidamente Inês.

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- Não me irrites Inês, não tenho disposição para
aturar meninas ricas que não sabem nada da vida. –
Atirou Hugo.
- Mas afinal quem é que está nessa foto tão
importante? – Perguntou Tiago.
- Não vos diz respeito! – Respondeu Francisca.
- No caso até faz, e só por causa dessa reação até
fiquei mais interessado, mostra-me a foto Samuel –
ordenou Hugo.
Antes que alguma das leoas conseguisse evitar a
foto já estava nas mãos de Hugo que parecia estar a
olhar para uma imagem abstrata da qual não
conseguia retirar qualquer informação relevante,
após um suspiro comentou:
- O que é que esta mulher tem de especial? Por
que raio queriam tanto escondê-la de nós? É
apenas uma italiana qualquer.
- Mostra mais respeito perante a minha ma... –
Levando uma cacetada de Francisca.
- Espera…esta senhora é a tua mãe? A amante
do Luís Los Santos, isto de um momento para o
outro tornou-se bastante interessante, se alguém
souber alguma coisa sobre a possível aliança entre
esse traste e o Felipe é esta senhora, acho que
ganhei uma vontade incrível de ir a Milão, mas não
vamos todos, alguns de vocês vão voltar para
Portugal.
- Espero que nesses “alguns”, não estejas a
contar de me incluir – disse ironicamente Marie.

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- Por acaso estava mesmo, tu és um alvo a abater
e não te consegues defender sozinha e eu não
posso estar preocupado em proteger-te e em
derrotar o Dante e para além disso caso nos
aconteça alguma coisa alguém tem de proteger o
filho do Felipe e o filho delas – apontando para
Francisca e Inês.
- E quem disse que nós nos íamos envolver nesta
história? – Perguntou Francisca.
- Algo me diz que se o amigo do Samuel lhe deu
a foto da vossa tia, barra, mãe, ou seja, o que for é
porque ela tem participação nesta confusão toda e
de certeza que agora que vocês a encontraram
também terão, mas deixemos isto para quando
chegarmos a Milão. Mas pronto Marie por favor
volta para Portugal com o Samuel, preciso que
fiquem seguros.
- Primeiro não gosto que me deem rodas de
fracote e segundo não tenho perfil para ama-seca,
por isso vou continuar aqui até ao fim, começamos
isto todos juntos e vamos terminá-lo da mesma
forma, se não gostares podes voltar tu para
Portugal, daqui ninguém sai, e para além disso isto
tem a ver com o sangue do meu sangue, não vou
para casa ser ter respostas.
- Tu és parecida com ele, nem que seja na
teimosia.
- Obrigado pelo elogio.
- Não era um elogio.

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- Eu sei, por isso é que gostei, bem quando é que
partimos?
Todos fizeram o mesmo olhar… AGORA.
O caminho para Milão fez-se o mais rápido que
conseguiam, dois carros separados, um com
matricula espanhola e outro com matricula italiana
para despistar possíveis perseguições, quando o dia
estava a chegar ao seu fim, finalmente chegaram
ao destino, a morada que Samuel tinha no papel
estava perante os seus olhos, uma serie de
apartamentos no centro de Milão, ao longe do topo
destes edifícios conseguisse ver a majestosa
catedral de Milão, que nesta altura do ano estava
pintada de branco, a praça a sua frente iluminada
pelos velhos candeeiros era o cenário perfeito para
contar a história de um romance proibido que tinha
um final feliz, mas como devem imaginar essa não
é de todo a nossa história, por isso voltaremos para
a frente do prédio que parecia gigante perante os
nossos amigos.
As duas jovens leoas não passavam de duas
pequenas gatinhas perante o medo de reencontrar o
passado que estavam a sentir agora, principalmente
Inês, toda a vida tinha crescido a pensar que a sua
mãe estava morta e agora atrás daquela porta podia
estar uma realidade completamente diferente, tinha
tantas perguntas para lhe fazer, por que razão se
tinha mantido a distancia durante todos aqueles
anos, se o romance com o seu tio era verdadeiro, o
que tinha acontecido ao pai, as perguntas rodavam
na sua mente sem conseguir parar, suores frios
começaram a aparecer-lhe no corpo e as pernas a
tremer, voltou as costas a porta e deixou que o

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medo aparecesse na sua face, uma respiração
ofegante tomou conta dela, estava a sentir que ia
cair, o estomago a dar um nó e o jantar que não
tinha tomado queria sair, devagar começou a sentir
a sua volta um forte abraço, quando olhou
encontrou os olhos de Francisca que naquele
momento eram tudo o que ela precisava.
- Eu sei que estás com medo, mas eu estou aqui,
vai tudo correr bem.
- Tenho tanto medo das respostas que vou
encontrar, mas ainda tenho mais medo de ser tudo
mentira, de ser apenas um jogo, de ela estar
realmente morta e nós termos vindo a senhora da
asneira, de ter recuperado a esperança em algo que
já morreu há mais de vinte anos.
- Se isso acontecer, estaremos juntas, esteja o
que estiver atrás daquela porta, vamos descobri-lo
e enfrentá-lo juntas como sempre fizemos –
encostado a sua testa a testa da sua amada e dando-
lhe um beijo suave que conseguiu acalmar
minimamente os nervos, como resposta apenas
recebeu um aceno tímido, mas que naquele
momento tinha de ser mais do que suficiente.
- Estão prontas? – Questionou Ariana.
- Temos de estar… - respondeu Inês.
Ao ouvir esta resposta Hugo bate com estrondo na
porta do apartamento, duas batidas foram
suficientes, a porta abriu-se de forma tão rápida
que parecia que quem estava na casa estava à
espera deles, e realmente isso não estava muito
longe da realidade.

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Por detrás da porta apareceu um fantasma, uma
mulher que aparentava estar na meia-idade, curtos
cabelos castanhos já com algumas madeixas
naturais em branco, olhos verdes como esmeraldas,
um longo vestido preto, um colar com a cabeça de
um leão dourado e um pequeno anel em formato de
cabeça de lobo, as suas feições mostravam um
misto de felicidade e preocupação, com um sorriso
afável comentou baixinho:
- Ele disse-me que vocês viriam, fico feliz que
estejam todos bem, entrem temos muito que falar...
- Virando as costas.
- Mãe? – Perguntou Inês com as lágrimas nos
olhos.
- Sim Inês, sei que te devo muitas explicações,
mas já vou explicar tudo, venham para dentro, não
estão seguros em lado nenhum.
Surpresos todos entraram.
O apartamento não era tão espaçoso como seria
desejável para toda aquela gente, mas ao mesmo
tempo tinha espaço mais do que suficiente para que
todos se pudessem sentar, tinha uma janela que de
onde dava para ver a catedral que há pouco vos
falei, uma pequena mesa redonda no centro, onde
ainda estava um prato por lavar e a sua frente um
enorme sofá vermelho com uma manta preta
dobrada sobre um dos seus braços, em volta da
mesa estavam cinco cadeiras de madeira de
carvalho, docemente cobridas com mantas com
padrão de xadrez.

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Quando chegaram a este comodo, a anfitriã fez
sinal para que todos se sentassem e começou a
preparar um chá, um silencio absurdo instalou-se
na sala, durante vários minutos ninguém se atreveu
a quebrá-lo, até que a voz aguda de Inês se fez
ouvir:
- Acho que depois de todos estes anos, mereço
mais uma explicação do que um maldito chá!
- Tens toda a razão – pousando a cafeteira onde
estava a aquecer a água – acho que só estava a
ganhar coragem de olhar para ti como mereces,
tornaste-te uma bela mulher.
- Uma bela mulher que pensou que tinha perdido
a mãe e que agora descobre que sempre esteve
viva, mãe porquê? Explica-me por favor!
- Por egoísmo Inês…por um amor impossível, e
porque eu e o teu pai achamos que seria melhor
assim…
- O meu pai? Ele escolheu a morte?
- O teu pai não é o Carlos… o teu pai é o
Luís…tu e a Francisca são irmãs…
O choque tomou conta da sala, e estava apenas
para começar, as lágrimas tomaram conta dos
olhos de Inês que não conseguia entender o que
tinha acabado de ouvir…
- Isso é impossível, o meu tio sempre me disse
que o meu pai tinha morrido naquele dia…

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- Eu vou explicar tudo, mas acho que devo
começar pelo início, porque infelizmente isto tudo
tem a ver com o meu irmão.
- Irmão? Mas que irmão, eu não sabia que tinha
outro tio!
- O Dante, ele é o teu tio.
- Como assim? Isso nem sequer faz sentido.
- Deixem-me contar a história da nossa família,
a família secundária. Tudo começou há alguns
anos atrás quando dois irmãos receberam a herança
pesada de gerir uma organização centenária, esses
irmãos eram o nosso tio, o famoso Homem de
Negro, o primeiro Los Santos, pai da senhora da
praça que o Felipe e a Teresa encontraram naquela
noite, e o meu pai, o meu pai era o herdeiro
principal e o seu irmão o seu braço direito nas
sombras, eu tive dois irmãos, o Dante que era o
irmão mais novo e destinado a ficar nas sombras e
o vosso pai Hugo, que sendo o filho mais velho
estava destinado a ser o líder da Mano, a nossa
família sempre zelou que os segredos ficassem
dentro de um circulo restrito por isso o meu pai
decidiu que o Dante haveria de casar com a sua
prima, a bela Isabella Los Santos, a senhora da
praça, e eu haveria de esperar que o meu primo
tivesse algum filho para eu me poder casar com
ele, o único que teve liberdade para escolher a sua
companheira foi o vosso pai Hugo, que escolheu
uma mulher maravilhosa, sempre adorei a minha
cunhadinha.
- Espere aí que isto é muita informação, quer
dizer que os Los Santos nunca foram a família

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mais influente de Coimbra, mas sim apenas as
sombras de outros? E que você é minha tia? Mas
ainda em Salamanca eu soube que o Felipe era
meu primo como é que isso é possível?
- Eu sei que tudo se torna complicado se for
explicado rapidamente, mas tu não és burro
nenhum e se o Felipe não é meu filho, só pode ser
filho do irmão que resta, sim o Felipe não era filho
daquela senhora encantadora de cabelos vermelhos
que vocês conheceram, o Felipe é filho do Dante, o
Felipe é um Los Santos! Eu fui obrigada a casar
com o filho mais velho do meu primo, mas nunca o
amei, sempre estive apaixonada pelo Luís e a nossa
paixão tomou proporções que nenhum de nós
esperava, e envolvíamo-nos sempre que estávamos
juntos, e por muito que eu quisesse impedir isso,
era impossível, a nossa paixão era demasiado forte,
em sempre menti ao Carlos acerca do nascimento
da Inês, mas a verdade é que as minhas duas filhas
são filhas do Luís e não do Carlos, nós estávamos
preparados para contar tudo, mas então deu-se o
que a Rubi já vos deve ter contado, o meu irmão
decidiu que não poderia ser apenas uma sombra do
seu irmão velho e começou a preparar um motim, o
meu pai há muito que se tinha apercebido que a
escuridão e a ambição no coração do Dante estava
a crescer de forma descontrolada e por isso
simulou várias coisas, simulou a morte do filho do
Dante, bem como a morte da Isabella, o Dante
sempre acreditou que tinha perdido todos aquele
que amava naquele dia, nós protegemos o Felipe
com todas as armas que tínhamos, fizemos com
que ele “nascesse” em Coimbra dois meses depois
do verdadeiro nascimento, numa família de

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subordinados nossos, fizemos o Luís ganhar a
confiança do Dante, e tornar-se o seu braço direito,
para poder manter aqueles que amávamos
protegidos, o meu pai teve de simular a morte e o
meu irmão, o teu pai Hugo teve de fugir, deixando-
te apenas a ti para trás. O Dante começou a
perseguir todos aqueles que tinham sido contra ele,
e vinha atras de mim, eu era a ultima na lista dele,
ele sabia exatamente onde eu estava graças as
informações dadas pelo Carlos, apesar de não saber
que as filhas não eram dele, ele sabia que eu e o
Luís andávamos juntos, e por isso decidiu que eu
era um alvo a abater, quando soubemos disso, eu e
o Luís, decidimos que teríamos de matar o Carlos e
simular a minha morte, para que duas coisas
acontecessem, o Luís não perdesse a confiança do
Dante e que eu conseguisse sobreviver nas
sombras. Mas havia um problema as nossas
meninas, foi neste momento que se arranjou a
solução de colocar a Francisca como uma órfã e a
Inês como uma inocente que tinha perdido ambos
os progenitores. O Luís tentaria cuidar de todos a
distância, ele sabia a localização da pedra filosofal,
mas nós sabíamos que não íamos conseguir
enganar a Dante por muito tempo, só precisávamos
de o fazer até o Felipe estar preparado, e acho que
o resto já vocês sabem, o Luís e o Felipe
trabalharam juntos, e quando o momento chegou
sacrificaram-se e deixaram tudo a vocês. Isto é a
história da nossa família, uma família complicada e
que opta sempre pelos sacrifícios pelo bem maior.
- Então deixe ver se eu percebi, eu sou primo do
Felipe, primo das Los Santos e sobrinho do Dante?
– Inquiriu Hugo.

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- Exatamente, a nossa família aquando o motim,
dividiu-se, naqueles que apoiavam o Dante e
aqueles que apoiavam o meu pai, o filho do
homem de negro, ou seja, o pai do Luís e do Carlos
preferiu apoiar o Dante de forma a garantir mais
poder, mas acabou morrer na luta, o teu pai, a
senhora da praça e eu decidimos ficar do lado do
meu pai e acabamos por simular quase todos a
morte para que o real segredo da Mano perdurasse.
- Tudo isto para proteger a maldita pedra
filosofal? – Perguntou Ariana.
- A pedra filosofal? Isso é apenas uma parte da
missão da Mano.
- O que? O Dante disse que isso era o mais
importante – comentou Romeu.
- A nossa história começa muito antes do
Flamel, estou admirado como é que a Rubi não vos
disse isso.
- Como é que conhece a Rubi sequer?
- Eu trabalhei em cooperação com a Rubi, desde
do momento em que o Felipe tomou a liderança, e
depois da morte dele controlamos tudo para que o
plano dele não falhasse.
- Espere… a Rubi sabe disto tudo?
- Sabe, ela tomou a liderança das ações fora de
Portugal, a pedido do Felipe, mas continuando, se
ela não vos disse, eu digo-vos, o nosso primeiro
líder, não foi o Flamel, mas sim Francisco de
Assis, quando ele começou a sua missão de ajudar
os pobres e criou a sua ordem medicante, entendeu

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rapidamente que não conseguiria ajudar todos
aqueles que precisavam apenas pela via religiosa,
por isso criou-nos como a sua “mano” politica,
rapidamente entrou dentro dos círculos de poder, o
que não o tornou muito bem visto, mas foi algo
que com toda a sua destreza ele soube gerir, segui-
o o líder que Dante mais venera, o próprio Dante
Alighieri, que o seguiu e que reformou
completamente o mundo da sua altura, mas eles
entenderam que para suprir todas as necessidades
do ser humano, tinham de vencer a morte, algo que
pode parecer completamente estupido, mas que já
Francisco de Assis defendia, e como estudiosos
que eram começaram a pesquisar e encontraram
tudo o que deu de base para que Flamel
conseguisse criar algo cientifico para fazer as
pessoas aproximarem-se da tão desejada
imortalidade, e foi neste ambiente que apareceu a
pedra filosofal, definitivamente existiu uma
organização antes e depois de Flamel, mas ele não
foi o seu fundador, quando Flamel entendeu que o
seu legado devia ser passado a outro, deixou de
usar a pedra filosofal e deu-a ao seu sucessor, que
ficou conhecido pelos seus poderes paranormais,
Vlad Drakul, ou Vlad Tepes ou ainda Conde
Drácula, como vocês o quiserem chamar, ele foi o
líder a seguir a Flamel, mas não era um homem da
ciência, era um homem da Guerra e que usou a
pedra filosofal para o que não devia, por isso é que
apesar da sua força extraordinária foi deposto do
cargo, e novamente apareceu um italiano no seu
lugar, Michelangelo coordenou a organização
durante alguns anos, mas ela já estava demasiado
grande para apenas um homem, e com duas

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correntes dentro dela que se estavam a tornar
demasiado dispares e demasiado poderosas, por
este motivo ele decidiu encontrar dois lideres e
separar a organização de Assis em duas, uma que
seria a organizadora das ações e outra mais prática,
dividiu a Mano, em Mano de Dios que adotou o
símbolo do primeiro anjo caído, a Cobra prateada
de Lilith e a Alcateia que tomou o símbolo do
protetor de Roma, o poderoso lobo, negro porque
se mexia nas sombras, o primeiro líder da Mano de
Dios foi William Shakespeare e o primeiro líder da
Alcateia foi Nostradamus, neste momento nasceu a
cisão que iria levar ao fim da Mano, diz-se que a
partir deste momento os dois lideres teriam de estar
ligados a partir do Sangue e Nostradamus previu o
fim da nossa organização, mas também deixou
uma profecia em que dizia que o lobo e a cobra
iriam-se unir novamente por laços mais fortes do
que o sangue, que os escolhidos iriam reerguer a
organização apos a sua queda, o meu irmão pensou
que a Marie e o Alejandro seriam esses dois
prometidos por isso é que cuidou deles, lhes
chamou, os primogénitos e fez com que toda a
gente acreditasse que eles tinham uma origem
quase divina, isto ajudou a que ele tivesse todos os
membros da organização debaixo da sua capa,
afinal de contas, criar algo imaginário que promete
um final feliz é a forma mais rápida e fácil de
controlar mentes frágeis, a nossa organização tem
por base ensinamentos católicos, disto nós
percebemos tudo.
- Mas espere um pouco, porque há aqui uma
coisa que não bate certo, nos diários do Felipe, ele
conta que a velhota da praça lhe diz que o seu

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marido morreu, isso faria com que o Dante tivesse
morrido e não ela. Certo?
- Eu vou ser o mais frontal possível, o Felipe
construiu a história que quis que vocês
acreditassem, não lhe convinha, nem era seguro ele
contar-vos toda a verdade, ele queria proteger-vos
até conseguir resolver parte dos problemas e
deixar-vos preparados, por isso deixou uma
narrativa que em pouquíssimos pontos toca a
realidade, ele criou uma realidade, a melhor
realidade possível para vocês acreditarem.
Neste momento todos se recostaram nos acentos
que estavam, os olhares perderam-se entre si, as
lágrimas apareceram nos olhos de alguns, outros
queriam explodir de raiva e outros ficaram apenas
sem reação, Hugo apoiado sobre a mesa, cerrou os
punhos, tentou estabilizar a respiração que estava
completamente descontrolada, na sua mente apenas
passavam memorias de quando ele e Felipe eram
miúdos, a brincar pelos pinhais de Pereira, a correr,
a cair e a sorrir, com promessas de eterna amizade
que ambos faziam debaixo de um castanheiro que
se encontrava junto ao rio, jogavam a bola,
lutavam, mas no final do dia voltavam para casa e
dormiam como duas crianças, agora isso era uma
memoria distante, a infância estava perdida entre
mentiras e as sombras da duvida enfuscavam a
imagem que ele tinha de Felipe, agora era só um
estranho que já mal lembrava o sorriso.
Endireitando as costas, com os olhos vermelhos,
acalmou a voz e perguntou:
- Então qual é a nossa missão?

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- O que? – Perguntou surpreendida Ariana.
- Eu sei que é demasiada informação, mas se
chagámos até aqui é porque assim teve de ser, o
líder da Mano deixou-nos uma missão, temos de a
cumprir. Dona Marta, qual é a nossa missão?
- Recuperar a Mano e unir novamente as duas
organizações.
- Resumindo, matar o Dante e repor a ordem
certo?
- Em termos simplistas, sim é isso.
- Certo, agora só temos de pensar como é que o
vamos fazer, ele não é burro nenhum e neste
momento já saberá que nós estamos vivos, por isso
estará a nossa espera, temos de ser inteligentes.
- Eu vou atrai-lo. – Disse Marta.
- É capaz de funcionar. – Concordou Hugo.
- Com certeza que vai funcionar, ele pensa que
eu morri há mais de trinta anos, vai ficar
surpreendido, vou-lhe deixar uma carta e vou
mandá-lo ir ter a um precipício qualquer, há vários
na nossa zona.
- Pode ser para o mesmo onde ele nos tentou
matar, vai dar um ar de nostalgia e ele vai-se sentir
em casa.
- Combinado, vamos por pernas ao caminho,
quanto mais tempo demorarmos, mais tempo ele
tem para se preparar.

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- Mas mãe, se ele te queria matar, ele pode-o
conseguir agora! – Comentou aflita Inês.
- Minha querida, não me posso continuar a
esconder nas sombras, está na hora de demonstrar
que também sou uma Los Santos e que também
posso ajudar esta família, no final de contas, ser
guardiã de segredos sempre foi mais a função da
minha prima Isabella – sorrindo e dando-lhe um
beijo na testa – A nossa família é forte, estamos
sempre preparados para a morte, eu não sou
diferente.
- E nós? – Perguntou Romeu.
- Vocês vão se esconder nas matas e esperar por
ele, temos de o apanhar em superioridade, não
vamos ter os números, mas temos que ter o terreno
a nosso favor.
- Agora pareces mesmo o Felipe. – Comentou
Tiago.
- Não me quero parecer com ele, quero ser
melhor do que ele – abrindo um dos sacos que Sam
lhe tinha trazido e tirando de dentro dele, um
enorme casaco de cabedal com um lobo negro nas
costas – Está na hora de caçar uma cobra.
Antes de saírem de casa, prepararam tudo o que
tinham que preparar, Marta escreveu uma carta
com uma mensagem curta e objetiva:
“Vem ter comigo ao precipício onde mataste os
herdeiros do Alfa, está na hora de terminar com
este capítulo de uma vez por todas.

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Tentaste matar todos aqueles que te fizeram frente,
mas eu ainda vivo e vou restaurar a verdade do
nosso pai.
Ass: Marta Los Santos”
Dobrou a folha em quatro vezes, colocou-a dentro
de um envelope e selou-a com o carimbo da
família, tinha um velho revolver guardado numa
das gavetas da cozinha, com exatamente quatro
balas, a velha arma dourada estava cinzenta de
tanto pó, no tambor tinha uma leoa com uma coroa
de ouro pintada, aquele revolver tinha sido a última
prenda de Luís, supostamente para ela se conseguir
proteger.
Antes de avançarmos para o grand finale, deixem-
me contar como foi a vida desta fugitiva ao longo
destes trinta anos, não se preocupem eu, não vou
contar tudo o que ela viveu, porque isso daria toda
uma fábula nova, mas apenas os traços principais
da vida de quem não morreu, mas teve de enfrentar
uma vida que não era a dela.
No dia em que o avião se despenhou ela e o Carlos
tinham entrado para divisões do avião diferentes, a
relação deles já era apenas de fantochada e a mera
presença de um incomodava o outro, com tudo
planeado em conformidade com Luís, antes do
avião levantar voo, ela saiu pela porta do cavalo e
conseguiu que Carlos apenas desse pela sua falta
quando já ia bem alto no céu, depois de simular a
sua morte é que o verdadeiro desafio começou.
Como devem imaginar, ao pertencer a uma família
tremendamente poderosa como era a dela, a
palavra trabalhar sempre fora associada ao trabalho

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mais intelectual e nunca visando a própria
sobrevivência, mas para sobreviver sem poder
utilizar o seu nome de nascimento as coisas
complicaram-se um bocadinho. Por isso era
necessário encontrar uma fonte de rendimento, mas
com a quantidade de espiões que poderiam andar
por ai, tinha de tomar uma série de preocupações, a
primeira foi mudar de país, no inicio não tinha
concordado com a ideia de Luís, porque Itália era
nada mais, nada menos do que a sede da Mano,
mas segundo o seu companheiro, debaixo do nariz
é sempre o ultimo lugar onde as pessoas procuram,
e por incrível que pareça estava certo, mas para ter
a certeza que seria impossível reconhece-la,
comprou lentes de contacto azuis para tapar os seus
lindos olhos verdes e uma peruca de cabelos loiros
longos, mudando o seu guarda-vestidos bem
tratado e sempre com imenso nível para uma
quantidade absurda de fatos-de-treino, era uma
nova pessoa, de tal forma que da primeira vez que
Luís se arriscou a visita-la, mal a reconheceu, se
foi em tom de brincadeira ou não, ela nunca soube,
mas ela gostava de acreditar que tinha um disfarce
mesmo perfeito. Adotou um nome tipicamente
italiano, ignorou o Marta e começou a usar o
Cassandra, procurou trabalho em empresas que lhe
permitissem fazer o que ela sabia, isto é, tudo
ligado a contabilidade, afinal de contas tinha sido
essa a sua formação, mas ninguém iria dar
emprego a uma catrapilha que mal se sabia vestir e
por isso o seu primeiro emprego foi numa cafetaria
no centro de Milão, os primeiros tempos não foram
fáceis, nem um café conseguia tirar em condições,
os músculos ao fim da primeira semana estavam

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pesados como bigornas, a cabeça feita num oito, a
vontade de voltar para casa só aumentava, mas
depois pensava em tudo o que poderia acontecer
caso o fizesse e assim resistiu, as noites eram frias
e os dias solitários, as lágrimas regavam-lhe as
pausas e os soluços os momentos antes de dormir,
muitas foram as investidas de homens italianos
para a enamorar, mas com toda a força que
conseguia foi-lhes resistindo, com o passar do
tempo, e com as rugas a aparecerem esta situação
diminuiu de intensidade, agora era apenas
conhecida como a Dona Cassandra, a simpática
empregada, para falar era uma das acionistas,
devido a sua resiliência o dono do café acabou por
lhe trespassar o sitio, tratando-a como se de sua
filha se tratasse. Muito vos poderia contar, desde
das aventuras com o senhorio até aos clientes mais
divertidos que ela apanhou ao longo dos anos, mas
acho que já perceberam a essência dos anos que ela
viveu em Itália, mas antes de avançarmos para o
que realmente importa, vou só contar-vos como é
que foi o dia em que ela recebeu a notícia da morte
do seu amado.
Luís antes de tudo o que aconteceu já a tinha
avisado que o cerco estava a apertar demasiado e
que mais cedo ou mais tarde teria de “sair de
cena”, mas ela nunca tinha sequer cogitado que
este sair de cena iria incluir a própria morte.
Numa manhã de sol, dois dias após a morte de
Luís, ela recebeu uma carta de um dos poucos
homens que sabiam que ela estava viva, onde era
contado tudo o que tinha acontecido, a morte do
seu amado, a morte do Alfa, o enigma e a missão

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dela, que poderia acontecer a qualquer momento,
afinal de contas ela era agora a pessoa viva que
mais sabia sobre o Dante.
A carta foi diretamente enviada contra a parede, a
testa encontrou na mesa o seu apoio e as lágrimas
começaram a sair, ela sabia que Luís a tinha
avisado mas só naquele momento é que percebeu o
quão grave a situação estava, a vontade dela era
pegar num avião e vir para o pé das filhas, tinha
mesmo chegado a pegar num casaco e nos
documentos, mas nos verdadeiros, quando olhou
para eles entendeu que não podia voltar, era a
Marta que queria voltar, mas era a Cassandra que a
impedia, tinha de confiar no plano do Felipe, tinha
de se manter nas sombras por muito que custasse.
Nesse dia não foi trabalhar, abriu uma garrafa de
vinho que tinha recebido no seu “aniversário”, era
de uma marca tremendamente consagrada e com
algum valor alcoólico, bebeu-a toda sem necessitar
de copo, o estomago queixou-se, a cabeça também,
mas o espírito durante alguns minutos ficou em
paz. Apenas quem já perdeu alguém que amava
com todo o seu coração consegue entender que a
morte não leva consigo apenas a pessoa, mas
também uma parte de nós, muitas vezes sem
conseguirmos dizer o ultimo adeus, o ultimo
“gosto de ti” ou mesmo o “amo-te”, sem conseguir
dar o ultimo abraço e o ultimo beijo, sem cruzar o
ultimo olhar, sem partilhar o ultimo sorriso, a
morte é cruel porque não nos avisa quando vai
chegar, por isso é que temos de aproveitar todos os
momentos, porque no final de contas todos podem
ser o ultimo.

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Acabadas as frases mais sentimentais e lamechas,
voltemos aos dias de hoje e vamos terminar esta
história!
No dia seguinte chegaram novamente a Sicília, o
dia estava chuvoso, apenas tímidos raios de sol de
vez em quando decidiam mostrar o ar da sua graça,
uma leve brisa fazia com que os cabelos
esvoaçassem, dava vontade de vestir aqueles
kispos que cuidava até das temperaturas mais
baixas.
Foi neste ambiente que Marta deixou a carta na
caixa do correio de Dante, os dois cães de guarda
ainda vieram a correr para marcar posição perante
a intrusa, mas quando chegaram já o cheiro estava
distante.
O anfitrião tudo viu através das câmaras que tinha
colocadas no portão, uma delas colocada mesmo
nos olhos do lobo que servia de pendente no
enorme portão. Quando o empregado chegou a
biblioteca, onde ele imponentemente descansava,
com a carta ainda inviolada, já um sorriso estava
nos seus lábios.
- Senhor, uma carta dirigida a si.
- Finalmente decidiu aparecer, já não era sem
tempo, agora só falta um dos ratos sair da toca,
esperemos que o faça, adorava ver a cara daqueles
iludidos.- Agarrando a carta e sem precisar de a ler
deu ordens claras para que convocassem Sarevo e
os cinco homens de maior confiança, não queria
grande alarido, queria um grupo pequeno, até
porque queria ser ele a acabar com o assunto.

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Dentro de menos de uma hora estava no sítio
combinado, com o seu ar poderoso, com o seu
animal de estimação e o seu bastão majestoso
encarava o mar revoltado que se apresentava
perante si, parecia gostar particularmente quando
as ondas rebentavam contra a falésia e lhe
molhavam a cara, afinal de contas, o homem que
se mantém calmo perante a tempestade torna-se o
mais perigoso de todos.
Marta pé ante pé lá apareceu atrás dele, com o
velho revólver na mão, tremendo como varas
verdes e a morder o lábio.
- Finalmente saíste da tua toca em Milão, minha
querida irmã – Disse sem sequer se virar para trás.
- Escusas de fingir que sabias de tudo, se assim
fosse há muito que tinhas ido atrás de mim!
- Realmente sempre foste de todos nós a que
percebeste menos dos negócios da família, ainda
hoje não consigo perceber como é que o pai te
tinha colocado há minha frente na sucessão, eu
soube desde do início da tua traição e da traição do
Luís, mas ele foi-me útil, e tu eras inofensiva, por
isso não me preocupei contigo, e para além disso
sabia que quando chegasse o momento eles iriam
recorrer a ti para ensinares a nova geração como
acabar comigo. Tu seres o isco para eles se
conseguirem colocar a nossa volta era uma
estratégia que há muito eu contava, só estava a
espera que quando este momento chegasse Ele
também decidisse aparecer, mas parece-me que ele
ainda se mantém nas sombras. Triste. Mas consigo
compreender. Agora meninos, vocês podem sair,

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principalmente tu Marie, quero olhar para os olhos
da assassina do Alejandro, sim porque se não
fosses tu, ele ainda estaria vivo. E talvez aqui ao
meu lado, mas em vez disso, está ali naquelas
cinzas, sempre foste a minha preferida, mas
também gostava do miúdo, muito até.
- Mantém o teu veneno longe dela Dante! –
Gritou Hugo aparecendo atrás de Marta.
- Apareceu o cavaleiro andante para salvar a
donzela, só espero que a consigas proteger melhor
do que aos teus amigos, porque se fizeres igual, ela
chega ao final desta linda história debaixo da terra
ou espetada naquelas rochas ali em baixo.
- Não deixarei que mates mais ninguém que
esteja sobre a minha proteção!
- Sabes quem disse a mesma coisa? O teu pai,
mesmo antes da tua mãe lhe morrer nas mãos, foi o
tiro mais doloroso que já tive de dar, mas eles
tinham de morrer pelas minhas mãos afinal de
contas, era o meu fado, era a minha sina, porque se
nós queremos atingir o lugar que ambicionamos,
temos que ser capazes de fazer coisas que mais
ninguém seria, por isso te pergunto, serás capaz de
me matar? Ou serás para sempre o miúdo que se
esconde debaixo do avental daqueles que o
protegem e até morrem por ele? Como foi o caso
do teu amigo Lázaro?
- Não te atrevas a falar de pessoas que não
merecem ter o seu nome profanado pela tua língua
– Dando um passo em frente.

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Neste momento Dante puxa de uma pequena nove
milímetros e instantaneamente dispara, por muito
rápido que quisesse ser Hugo não conseguiu
desviar-se do disparo, a bala acertou-lhe em cheio
no ombro esquerdo, deitando-o ao chão,
começando a formar uma poça de sangue debaixo
dele.
Um grito de terror encheu o precipício, sem
conseguirem seguir o plano todos apareceram luz
do tímido sol que neste momento estava a mostrar
o ar da sua graça. Marie foi a primeira a correr para
acudir o seu companheiro, por muito pouco que o
disparo não acertava um ponto vital, o sangue
pintou o casaco de Hugo que começava a soluçar e
a mostrar dificuldade em respirar. Enquanto de um
lado era o terror e o desespero que aparecia
exposto na face dos jovens, do outro lado a velha
cobra sorria com um sorriso de orelha a orelha, o
sorriso branco e perfeito, acompanhado do vento
que fazia as suas roupas abanarem ao sabor do
vento, construíam uma visão completamente
fantasmagórica, quem não o conhecesse podia
pensar que era um louco fugido de uma psiquiatria
de um hospital de alta segurança, os olhos
arregalados, o braço esticado ainda em posição de
disparo, as altas gargalhadas e a voz profundo
demonstravam em muito tempo o lado mais
animalesco de Dante:
- Foi isto que o meu querido pai planeou para
me travar? Foi este miúdo que estava destinado a
unir a Mano e a Alcateia? Nunca tomei o meu pai
por idiota, mas sinceramente começo a achar que a
idade o tornou senil, porque se isto era a última

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esperança, ela está prestes a morrer! E depois
quem ficará? Um bando de raparigas que mal
conseguem pegar numa arma, um pau mandado ou
simplesmente um morto que ainda não decidiu
ressuscitar? Meus caros, mais vale admitirem já
que acabou e eu ganhei!
- Enquanto existir sangue nas minhas veias, ar
nos meus pulmões e força nos meus músculos, tu
não sairás daqui vencedor, não penses que é por
me acertares no ombro que me impedes de te fazer
frente, fui imprudente, talvez, mas não mais! –
Disse Hugo levantando-se apoiado em Marie que
tentava secar as lágrimas que lhe apareciam na
face.
- Afinal de contas és mais resistente do que eu
pensava, mas tu mal podes contigo, como é que me
vais fazer frente? Vais pedir aos teus amigos
novamente?
- Tenho mais do que argumentos para acabar
contigo velhote!
- Por mais que goste de brincar com as minhas
presas, neste momento isto já não demonstra prazer
algum. Sarevo, faz as honras por favor.
Neste momento, o capitão Sarevo, elevado a chefe
máximo das tropas de choque depois da morte de
Alejandro, surge das sombras apontando uma
pequena revólver preta a cabeça de Hugo, por
muito poucos que fossem, os homens da Mano
estavam perfeitamente colocados para imobilizar
todos os presentes, qualquer movimento brusco
teria levado a morte ou de Hugo, ou de Marta ou

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de Marie, este completamente percetível que estes
eram os alvos prioritários.
Ainda que com a visão turva e os músculos tensos,
Hugo, arriscou um bocadinho mais a sua vida:
- Depois sou eu o cobarde? Tu ó poderoso Dante
estás com medo de enfrentares um bando de
miúdos? Começo a entender o porquê de teres sido
retirado da linhagem de sucessão, falta-te a
coragem, podíamos resolver isto de forma
tradicional, tu e eu, sem envolver mais ninguém, o
que me dizes, ainda para mais eu estando já em
desvantagem, agora finalmente a luta seria justa.
- Normalmente quando encaramos a morte
desejamos sempre viver mais um segundo ou
simplesmente aceitá-la calmamente, mas tu ou
queres morrer mais rápido ou simplesmente de
forma mais dolorosa, ainda não percebi muito
bem! Mas uma coisa eu tenho a certeza, és tão
louco como todos os outros que me tentaram
enfrentar, mas acho que afinal de contas ainda
posso brincar mais um bocadinho contigo, mas
com uma regra, apenas nós dois, sem armas.
Concordas…Alfa?
- Com todo o gosto Padre.
Cambaleando, Hugo saiu detrás de Marte e
largando a mão de Marie que demonstrava
claramente preocupação nos seus olhos, que se
pareciam de forma quase idêntica aos olhos de um
pequeno cão que é abandonado pela família que o
adotou na semana transata e que durante a primeira
semana lhe deu todos os carinhos e tratos de luxo,
mas que por azar dos azares na semana seguinte

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tinha de ir de férias e levar um pequeno animal de
quatro patas atrás torna-se dispendioso e
complicado, sendo que por vezes levar consigo
animais de duas patas se torna muito menos
benéfico, mas dizer isto aos sete ventos pode-se
tornar problemático afinal de contas, o animal que
mais mata tem que ser o mais protegido, era este o
olhar de Marie, a força que estava a fazer a volta
do braço de Hugo era herculana, do outro lado
apenas recebeu um olhar quente e um sorriso
aconchegador.
Hugo sabia que aquela era a sua missão, podia
facilmente morrer e deixar todos na mesma
situação ou talvez numa pior ainda, mas sabia que
tinha que tentar, durante o curto caminho que fez
para se colocar a meia dúzia de centímetros de
Dante, a sua mente prendeu-se em duas pessoas,
aquela que tinha acabado de largar, que por alguma
razão que ele ainda não entendia era a que lhe
causava mais medo de deixar a força que ela lhe
tinha feito no braço era a mesma que ele teria feito
se a pudesse abraçar, desde da morte de Pedro não
sentia que alguém pudesse ser um porto seguro que
apenas com um sorriso e um olhar o podia deixar
seguro, embora não o quisesse admitir, tinha ao
longo dos últimos meses desenvolvimento um
sentimento bastante forte por aquela menina que
podia ser facilmente sua filha, mas que por agora
ele desejava que se tornasse algo ligeiramente
diferente. E a segunda pessoa onde a sua mente se
prendia era num jovem que estava a distancia de
um mar mediterrâneo, algo que para a força da
mente se dobra em segundos, pela primeira vez
não pensou em Felipe, mas sim no seu filho,

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gostava de saber como estava a sua educação e se
estava a aproximar do que foi o Felipe, tinha
imensas histórias para lhe contar, as primeiras
namoradas do seu pai, o primeiro cigarro e talvez
até o primeiro desgosto amoroso, mas isso era um
desejo distante naquele momento, tinha esperança
que caso a sua vida chegasse ao fim naquele
planalto, Rodrigo permitisse que Luís vivesse em
paz e embora seja um pensamento extremamente
deprimente, vivesse para sempre a fugir, mas ou
menos ia conseguir viver e talvez até formar
família, e encontrar o segundo maior objetivo do
homem, o amor, nem que seja uma ilusão! Mas
quanto mais pensava nesta opção menos provável
ela lhe parecia, afinal de contas nas veias do Luís
corria o mesmo sangue de Felipe, nunca na vida
iria conseguir viver sempre a fugir, nem que fosse
por vingança ou ódio iria lutar para morrer com
honra, mesmo que isto seja a maior idiotice de
sempre. Mais vale viver para sempre do que lutar
pela honra, pelo menos é isto que os cobardes
pensam, eu tenho as minhas dúvidas.
Foi com este pensamento que se colocou a olhar
nos olhos de Dante, os olhares eram
completamente diferentes, de um lado um olhar
que espelhava todo o sentimento de superioridade,
com um sorriso que nem mostrava os dentes, uma
sensação de vitória garantida que nem pela força
divina podia ser evitada, e mesmo a sua frente o
medo e a noção de que a morte podia estar perto
que a vitória era o melhor cenário, mas que
infelizmente era totalmente improvável e de certa
forma até indesejável, porque naquela situação, a

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vitória acabaria sempre por chegar com um preço,
que poderia ser demasiado elevado a pagar.
Foi com este ambiente que ambos se colocaram
frente a frente, como se dois pugilistas se tratassem
apenas a espera que o sino tocasse para começar a
dança da morte, até a própria respiração estava a
funcionar a mesma velocidade, os batimentos se
fossem audíveis estavam no mesmo compasso,
estavam a funcionar como um só. Nem pestanejar
nenhum dos dois queria, o vento parecia diminuir a
intensidade e as folhas abanavam agora em câmara
lenta, até o mar se acalmou, e quando um deles se
moveu tudo isto que estava em perfeita harmonia
se descontrolou, a tempestade rebentou...
Por incrível que pareça o primeiro a mover-se foi
Dante, dando um passo em frente, movimentando
o braço para trás para depois o jogar em direção ao
maxilar do seu inimigo, queria mostrar uma
posição de poder, e queria fazê-lo rapidamente,
mas antes que terminasse o seu intento, algo
surpreendente aconteceu.
O revólver que Marta tinha trazido consigo estava
agora encostada ao pescoço de Dante.
Hugo tinha agarrado nela sem ninguém se
aperceber quando se levantou e se dirigiu em
direção dele, escondendo-a dentro da camisola,
esperou pela oportunidade perfeita para ganhar
vantagem na situação, tinha quebrado as regras
pela primeira vez, mas há batalhas que não se
vencem a jogar limpo, principalmente no mundo
dos poderosos, a ética é um manual teórico que
raramente se aplica na prática.

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- Touché. Não estava a espera que não
cumprisse o combinado. – Começando a aparecer a
pequena cobra, que nesta altura já não era
novidade nenhuma.
- Se quer continuar a respirar, aconselho a
controlar essa bichana, porque se ela se aproxima
muito eu rebento-lhe os miolos. Sobre respeitar as
regras, eu respeitei as minhas regras, que
infelizmente não eram as mesmas que as suas,
aprendi isso consigo e com o Felipe, aqueles que
querem viver, têm de aprender a sobreviver
primeiro. Agora vai dizer aos seus homens para
pousarem as armas e se juntarem todos atrás de si.
- Sabes perfeitamente que caso eu morra, vocês
também não saem daqui com vida, certo?
- Até posso ter essa noção, mas tenho a
convicção de que não deseja morrer, pois não?
Afinal de contas, alguém que matou sangue do seu
sangue para sobreviver e ganhar poder, não vai
desejar morrer, principalmente as mãos de um
miúdo. Estou errado?
- Começas a perceber como e que este jogo se
joga. Sarevo, manda baixar as armas e venham
para o pé de mim.
Franzindo o sobrolho, o capitão la cumpriu as
ordens que tinha recebido, colocando as armas ao
lado de Marta la se dirigiram para trás do seu
chefe. Quando estavam todos atras de Dante,
surgiu a segunda ordem de Hugo:

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- Agora quero todos de joelhos com as mãos da
cabeça, sem gracinhas não me custa nada puxar o
gatilho!
A contragosto la fizeram o que lhes foi mandado,
estava tudo sobe controlo. Mas agora que Hugo
tinha a faca e o queijo na mão, surgia a grande
questão… o que fazer agora? Matar o Dante? Era a
vontade generalizada, mas caso o fizesse não teria
como controlar a fúria dos soldados que iriam
procurar vingança e que apesar de serem em menor
número tinham mais treino num braço do que ele e
os restantes no corpo todo, seria uma luta injusta,
mas para o seu lado. Depois não queria colocar em
risco a vida de nenhum dos presentes, levar o
Dante com eles seria fazer exatamente o contrário.
Apesar de ter todo o poder de decisão, sentia-se
entre a espada e a parede, o suor começou a correr-
lhe pela face, as dores aumentavam e a visão
estava cada vez mais turva, o peito ardia e os
pulmões pediam com urgência ajuda.
- Então Alfa? Ficaste sem opções? Queres
acabar com isto, mas não sabes como? Sabes que
antes de tomares uma atitude de herói, tens que
perceber se consegues ser o vilão se for necessário,
basta puxares o gatilho e acabas comigo, mas
depois condenaste a morte, se não puxares perdes a
oportunidade perfeita, como vai ser? Vamos ficar
eternamente neste impasse? Começam-me a doer
as pernas.
- Ele nunca conseguiria tomar essa decisão, por
isso vou tomá-la por ele.

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Neste momento Hugo sente encostada a sua nuca,
uma arma, antes que conseguisse virar a visão,
ouviu-se novamente a voz que era tremendamente
familiar:
- Passa-me a arma devagar, e tu meu querido
Dante não te mexas, preciso de acabar com vocês
os dois de uma vez, e eu não tenho qualquer
problema em puxar o gatilho!
Lentamente Hugo começou a virar o seu corpo e a
pessoa que estava a segurar era um dos que ele
mais confiava, ver a sua postura foi como um
murro no estômago, o olhar era diferente do
normal, não era mais afável, mas distante, o que
outrora parecia fraqueza muscular, agora erguia-se
a sua frente com uma postura de poder e destreza
incomparáveis.
Não encontrou um sorriso, mas sim uma boca
fechada apenas com um dos lados ligeiramente
levantado, os óculos assentavam perfeitamente
sobre o nariz e a voz não tremia como no primeiro
dia em que falaram.
- Porquê? – Foi a única palavra que conseguiu
proferir.
- Não me surpreenda que tenhas essa reação,
afinal de contas nunca esperei que me descobrisse,
foste-me bastante útil Hugo, mas agora esta na
hora de me vingar de toda a gente que me destruiu
a vida!
- Mas Romeu, o que é que eu te fiz?

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- Romeu? Sim, esse foi o nome que eu te dei e
que durante meses usei para vos enganar, mas acho
que agora já o posso largar.
- Não estou a perceber nada, quem es tu afinal?
- Se eu te disser o meu nome, sem te contar a
minha história ficas exatamente na mesma. O meu
nome verdadeiro é Klaus, não sou de origem
portuguesa e muito menos italiana, tenho sangue
alemão e sou filho de um desertor, de um pai que
nunca esteve presente e que morreu perante os
meus olhos. O meu pai, há cerca de vinte e cinco
anos, que por acaso é a minha idade verdadeira,
visitou Portugal e teve uma paixão intensa por uma
mulher conimbricense, fez-lhe imensas promessas
que a levaram a loucura, ela saiu da casa dos pais e
durante alguns meses as coisas ate correram bem,
mas após algumas discussões a vontade de ser livre
foi mais forte do que o suposto amor que sentiam
um pelo outro, e a minha mãe ficou sozinha no
mundo, comigo nos braços, sem haver necessidade
de dizer, os meus avos nem sequer quiserem ouvir
falar nem de mim, nem dela, e acabamos os dois
nas ruas da baixa de Coimbra. Quando eu tinha por
volta dos sete anos, apareceu na cidade um
salvador, alguém que acolheu todos aqueles que
não tinham futuro, deu-nos casa, armas e uma
educação diferenciada, para mim e para a minha
mãe, ele tornou-se um deus vivo, centenas de
pessoas o seguiam, apenas por ele lhes ter salvado
a vida, mesmo colocando-nos como alvo da
polícia, mesmo matando pessoas sem do nem
piedade, muitas delas mais novas do que eu, nós
não queríamos saber disso, afinal de contas se não

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fosse ele, eu teria acabado numa instituição e a
minha mãe numa vida ainda pior. Nunca quis saber
nada do meu pai, mesmo que a minha mãe por
vezes puxasse o assunto sempre fugi dele, na
minha mente se ele não queria estar connosco não
merecia o meu interesse, vi no meu Deus um pai
que nunca tive, afinal de contas ele cuidou de mim
como tal. Contudo alguns dias antes do
acontecimento que me mudou para o resto da vida,
começamos a entender que o nosso paraíso podia
estar prestes a acabar, normalmente as mulheres
tem esse sexto sentido e a minha mãe quis que eu
soubesse toda a verdade sobre o meu pai, por
muito que eu tentasse fugir e não quisesse ouvir,
fui obrigado a tal, a história que ela me contou foi
a que eu já sabia, apenas com um pormenor
diferente, um bilhete em que o meu pai me dizia
para o procurar em Itália se conseguisse, dava-me
uma morada e um nome para conseguir entrar na
mesma organização dele, porque apesar de ele não
estar comigo, teria a certeza que eu estaria seguro.
Essa organização era a Mano, não me importei
com aquilo naquele momento, mas guardei o papel
apenas para ficar com a consciência tranquila e
fazer o jeitinho a minha mãe. Numa noite quente
em que estávamos a festejar não sei muito bem o
que nas catacumbas de Coimbra, o nosso mundo
desabou, literalmente, recebemos a ordem do nosso
mestre para que as mulheres e as crianças fossem
evacuadas, mas a confusão foi tanta que eu me
perdi da minha mãe, ela não conseguiu sair dos
tuneis e foi completamente enterrada quando o
terreiro da erva caiu… eu em pânico corri para a
praça oito de maio e foi aí que eu vi o meu herói,

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vi o poderoso Alfa! Uma vez mais esperei que ele
descesse da varanda da camara e me viesse agarrar
ao colo e dissesse que tudo estava bem, mas não
foi isso que aconteceu, ele morreu, mas morreu a
assumir a culpa da destruição da nossa casa, ele foi
o culpado da morte da minha mãe, bem la no fundo
eu sabia que a culpa não era só dele, mas eu
precisava de alguma coisa que me mantesse vivo, e
naquele momento o odio que eu ganhei por ele foi
a melhor opção, e uma das coisas que mais me
enervou foi ele desculpar-se a meia dúzia de gatos-
pingados que não tinham sofrido metade daquilo
que eu sofri, memorizei as vossas caras e quando a
confusão parou, procurei-vos, a todos, mas de
alguma forma magica tinham conseguido
desaparecer todos, pensei genuinamente em
desistir, mas quando que o maldito culto a obra do
“salvador” tinha regressado o meu sangue ferveu,
ele foi um monstro, um monstro com motivos tal
como te tentei mostrar da primeira vez que
falamos, mas foi um monstro e mesmo assim,
mães, pais e filhos conseguem adorar alguém que
nem sequer conheceram! Que matou milhares de
inocentes e deixou outros tantos órfãos, bem sei
que podem dizer que sou hipócrita porque
enquanto me protegeu eu não me importava com
isso, mas têm toda a razão, sou um dos maiores
hipócritas que vocês podem conhecer, mas querem
que vos de uma novidade, todos somos, se vocês
tivessem no meu lugar pensavam exatamente a
mesma coisa.
- Estás enganado, eu nunca iria construir uma
personagem e enganar durante tanto tempo toda a

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gente. – Respondeu Hugo controlando a
respiração.
- Vindo de ti isso ainda me dá mais vontade de rir,
vindo que qualquer um de vocês, todos vocês têm
uma segunda personalidade, uma segunda vida só
porque o senhor Felipe Ferreira assim decidiu, tu
eras um paneleirote que não fazias nada da vida
sozinho, olha para ti agora, um líder, um assassino
se for necessário, deixaste de ser tu próprio porque
ele assim desejou! E todos os outros? Poderia dizer
todas as segundas vidas que mantêm só para
sobreviver! Todos são hipócritas! Mas não é esse o
ponto que quero provar, apenas vos quero contar a
história do Romeu até ao dia de hoje, depois de
saber ou pensar que todos vocês estavam
inatingíveis, fui pelo caminho mais longo, entrei
como colaborador na poderosa Alcateia! E dentro
de pouco tempo, devido a falta de inteligência ou
falta de profundidade, o que quiserem achar mais
poético, alcancei um lugar de destaque e assumi a
personalidade de estudioso mor daquele grupo de
cabeças de vento. Enquanto estudava todos os
livros da Alcateia, a Rubi veio ate mim, disse-me
que tinha sido escolhido graças a minha
inteligência para ajudar aqueles que segundo ela
“decidiam a vida de todos nós ”, não percebi o que
aquilo significou na altura mas agora percebo, tive
acesso a livros que nunca pensei que existissem e
percebi que por mais que odiasse essa ideia, o meu
pai e o meu destino estavam ligados, não por laços
de amor ou odio mas por estas malditas
organizações, descobri que a organização que ele
falava no seu bilhete era a arqui-inimiga da
organização que agora eu defendia, ou

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supostamente defendia. Comecei a investigar e
soube do enigma muito antes daquilo que era
suposto e também o decifrei antes de vocês, mas
tinha de esperar por ti, ó escolhido! E enquanto
esperava fui ajudando ambos os lados a avançar e
recuar no tabuleiro de xadrez, mas ainda havia uma
pergunta que me faltava responder, quem era o
meu pai e por que razão estava ligado a esta
maldita organização. Bem sei que vos disse, que
ele não me importava, mas quanto mais estudava
mais razoes plausíveis para o seu abandono
apareciam, e outro desejo apareceu na minha
mente, o Alfa e o misterioso líder da Mano de
Dios, tinham algo que eu comecei a invejar…
Poder! Poder de decidir, de influenciar e
rapidamente comecei a desejar em demasia isso.
Quando chegamos a Salamanca descobri quem era
o meu pai, nos registos apagados ou semiapagados
estava a entrada de alguém que tinha todas as
características que a minha mãe me tinha dito,
principalmente a cor dos olhos, para ser exato, um
olho de cada cor, descobri que o meu pai era nada
mais, nada menos do que o senhor Isaac, um
homem que me acolheu no seio da Alcateia como
nenhum outro, talvez se soubesse quem eu era não
me tivesse tratado assim, tive vontade de voltar
para trás e ir ter com ele e talvez juntos acabar com
estas malditas organizações que todos dominam,
mas sabia que se o fizesse ia passar por covarde e
ainda havia o segundo motivo que me mantinha, a
sede de poder ao ver aquelas estatuas decapitadas e
ao ler aqueles registos de imortalidade, fizeram-me
ficar, mas o destino gosta mesmo de brincar
connosco, neste mesmo espaço, vi o meu pai pela

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ultima vez, quando lhe queria contar quem eu era,
e quiçá ter-mos uma conversa minimamente
humana, aquele escroto matou-o! Por isso uma vez
mais esta minha missão tornou-se uma vingança
pessoal, não por amar o meu pai, mas porque vocês
os dois, tu no lugar do Felipe e o Dante no lugar de
si mesmo terem retirado a oportunidade de lhe
fazer só uma pergunta. O porquê? E para além
disso, se quem estava destinado a unir estas duas
casas ia ficar famoso, imaginem quem conseguir
acabar com elas no mesmo espaço e no mesmo
momento, vou-me tornar lendário! Bem, Hugo,
esta é a minha história, a história de um órfão que
deve todas as suas perdas as vossas malditas
missões.
- Tu queres saber o porque do teu pai nunca te
ter procurado? – Questionou Dante.
- Queria que ele me tivesse dito sim.
- Eu tenho as respostas para as tuas perguntas,
eu conheci o Isaac antes de ele te ter fabricado, por
isso, basta perguntares, e eu dar-te-ei todas as
respostas que precisas.

Neste momento até o insensível Klaus ficou na
dúvida, sabia perfeitamente que era o momento
perfeito para Dante tomar conta das ações,
conhecia muito bem a sua capacidade de oratória e
de retórica, sabia que podia ser enganado com a
verdade ou simplesmente ouvir uma mentira que
pensaria que era verdade, o seu lado de filho
abandonado queria ouvir a explicação, mas o seu

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lado calculista queria por tudo evitar isso, isto tudo
em questão de segundos.
- Sem gracinhas Dante, quero a verdade e
apenas a verdade!
- Pergunta-me e irei-te responder com toda a
verdade que a minha língua permita.
- O meu pai desistiu de mim, porquê?
- Porque te amava demasiado! Vou-te contar o
motivo pelo qual o teu pai entrou na Mano de
Dios. Eu salvei o teu pai, ele era um bêbado de
primeira, afogava-se na bebida, gastou toda a
fortuna da família e quando estava prestes a morrer
por causa das dívidas, eu salvei-o, conhecia muito
bem o teu avô, era um homem de respeito que
sempre nos ajudou em todas as nossas ações, e
tinha-me deixado um pedido de cuidar do teu pai,
mas como deves imaginar eu nunca ajudo ninguém
sem ter nada em troca, e por isso o Isaac tornou-se
o meu agente infiltrado, mandei-o para Portugal
para deitar o olho ao Luís, queria acompanhar de
perto as ações dele, criei-lhe uma personalidade de
homem de negócios, mas algo me fugiu das mãos,
o cabraozito decidiu que se devia apaixonar, eu
deixei-o andar ate porque eu sempre pensei que
fosse alguma temporária, mas ele queria mesmo
ficar com vocês, mas uma das coisas que eu
aprendi na vida é que uma pessoa que possui
sentimentos torna-se imediatamente vulnerável, ele
a partir do momento em que se apaixonou e
decidiu ter um filho colocou uma etiqueta com
preço no peito, todos os que amam têm um preço!
E por esse motivo quando ele me pediu para sair da

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Mano para cuidar de vocês eu joguei com o preço
que ele tinha colocado em si próprio, disse-lhe que
se ele o tentasse vos iria matar da forma mais
dolorosa possível e ele como ótimo pai que queria
ser, decidiu que preferia passar ele pelo sofrimento
de vos ver a distancia do que não vos ver de todo,
principalmente a ti, que nos seus diários descrevia
como o seu “pequeno diamante”, eu vi no seu
ultimo olhar que ele desejava ter visto o seu filho
antes do fim, ironia das ironias ele fez isso mesmo
sem saber. Esta é a verdade, o teu pai nunca vos
quis abandonar, eu obriguei-o a tal, mas ainda bem
que o fiz, já viste o que tu te poderias ser se ele te
tivesse dado amor? Mais um ser melancólico e
inútil como tantos outros?
Neste momento as mãos de Klaus começaram a
tremer sem controlo, mesmo que por breves
momentos, o odio que ele sempre sentira pelo seu
pai estava colocado agora naquele homem que
sorria a sua frente, sem qualquer medo que os seus
pecados fossem expiados com a própria morte, a
visão ficou baça e a respiração ofegante, ele sabia
que não podia estar assim muito tempo, seria o
tempo necessário para o tirarem da jogada, por isso
abanando a cabeça a toda a velocidade voltou a
fitar os dois homens que para ele eram os culpados
de tudo aquilo que tinha passado, e agora ainda
tinha mais certezas disso.
Dante a partir daquele momento ficou com um
alvo no peito, o atirador preparou tudo, fazendo
mira ao peito de Dante:

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- Como é que é capaz de dizer isso dessa forma
sem temer que eu lhe dê um tiro no peito? Sabe
que seria tão fácil como beber um copo de água!
- E por isso é que não o vais fazer. Na nossa
mente somos sempre heróis, criamos sempre mil e
uma formas de resolver os problemas que nos
possam surgir, contudo quando temos uma
oportunidade fácil para o fazer, não o fazemos, isso
é o que vos diferencia de mim, eu penso em mil
formas de matar os meus inimigos e quando chega
a oportunidade consigo executar mil e uma, vocês
pensam em mil formas mas quando têm a
oportunidade não conseguem puxar a porcaria do
gatilho, vocês são fracos e por essa razão é que vão
morrer aqui hoje e para alem disso a morte de Isaac
deve-se principalmente a ti, afinal de contas foste
tu que o convenceste a fazer jogo duplo não é
verdade menino Klaus?
Neste momento ouve-se o grito estridente de
Marie, um dos homens de Dante não tinha
cumprido as indicações que Hugo tinha dado e
tinha-se mantido escondido nas sombras, esse
homem rebelde era ninguém mais ninguém menos
do que Pierre, com um estranho sorriso na face,
segurava Marie com um braço a prendê-la contra o
seu peito, encostando uma pequena navalha contra
o seu pescoço.
- Baixa essa arma senão a cara desta menina
ganha umas linhas novas e terrivelmente belas! –
Percorrendo a face de Marie com a navalha sem
fazer força suficiente para deixar marcas para além
de uma linha fina vermelha.

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- Podes até matá-la, não significa nada para
mim, não vou deixar fugir assassino do meu pai.
- Por amor de deus Romeu! Não sejas um idiota
varrido! A vida da Marie não te pode ser assim tão
indiferente, conviveste com ela estes últimos
meses porra! Foi tua companheira e tua amiga, tal
como todos nós, matares o Dante não vai trazer o
Isaac de volta!
- Mas terei a minha vingança!
- E isso serve exatamente para que? Vais dormir
mais descansado? Eu não acredito nisso, ele matou
pessoas que nós amávamos, por isso é que o
odiamos, se o matares vais ser igual a ele!
- Tu és fraco Hugo, um covarde como o Felipe,
por isso é que pensas assim! Eu vivo perfeitamente
com a consciência pesada!
Neste momento Hugo consegue encontrar uma
abertura na defesa de Klaus e tira-lhe a pequena
revolver da mão, colocando-a apontada á testa
dele.
- Nunca mais fales do Felipe como um covarde.
Neste momento estava montado um triângulo de
tensão, Hugo com a arma apontada a testa de Klaus
e este com a arma apontada ao peito de Dante,
nenhum deles estava livre de morrer, uns estavam
mais perto, mas mesmo assim nenhum estava livre.
- Serás mesmo capaz de puxar esse gatilho? Ou
estás só armado em herói? E depois de me matares
o que vais fazer com o Dante e com o Pierre? Vais
matá-los também ou vais deixar que andem por aí

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a cometer as atrocidades mais uns anitos, matar
mais umas centenas de inocentes? A começar pela
tua amada Marie? É esse o teu plano infalível? É
que se for ainda és um estratega pior do que eu
pensava!
- Não. O meu plano não passa por matar uns e
deixar outros vivos, mas sim por não pintar mais
nenhuma vez este mundo a sangue. A ti vou-te
entregar ao tribunal da Alcateia, eles que façam
contigo o que quiserem, e ao Dante irei entregá-lo
aos tribunais internacionais para que seja feita a
justiça dos homens sobre a sua carne!
Neste momento ouve-se uma tremenda gargalhada
atrás deles, Dante tinha apoiado ambas as mãos em
cima da bengala e ria novamente como um
maníaco, gargalhadas estridentes voltaram a encher
o ar:
- Tu ainda és mais ingénuo do que aquilo que eu
pensava! Achas que os tribunais dos homens me
vão fazer alguma coisa? Quando fui eu que escolhi
quem é que os iria presidir? Até poderias recorrer
ao santo ofício, porque também fui eu que escolhi
o Papa atual! Nenhum tribunal ordinário me
poderá julgar, apenas a ponta de uma lâmina ou o
cano de uma arma o poderão fazer, porque quando
eu morrer também irei liderar e governar o inferno
que me espera! Por isso se queres justiça terás de a
fazer com as tuas mãos!
E o que vos vou contar a seguir passou-se em
segundos, fora tão rápido que até para quem o
vivenciou tornou-se difícil de explicar.

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O capítulo final da nossa história começou quando
Marie se libertou dos braços de Pierre, conseguiu
dar-lhe um pontapé na zona genital, fazendo-o
perder todo o equilíbrio e concentração que tinha
aplicado, apesar disso ele ainda tinha o seu
objetivo bastante certo e por isso num movimento
rápido e único sem distrações projetou a lamina em
direção da barriga de Marie.
Uma pequena poça de sangue começou a aparecer
a sua frente, e a pequena lâmina perdera todo o seu
brilho, a voz de Marie fez-se ouvir através de um
grito que foi acompanhado pelos gritos de Inês e
Francisca, não por chorarem a morte da sua prima
ou irmã, fico sempre confuso quando falo desta
maldita família, mas sim porque Pierre tinha
falhado o seu alvo, mesmo mantendo-se letal, a sua
lâmina não acertou a barriga de Marie como era o
objetivo, mas sim a de Marta, que num momento
cinematográfico tinha-se atirado para a frente do
movimento, se lhe perguntassem a razão pela qual
isso aconteceu, ela no momento ter-vos-ia
respondido com uma resposta poética como “foi
para expiar todos os meus pecados e para salvar
uma vida que tinha mais valor do que a minha”,
mas a realidade é que nem ela sabia o porquê de ter
feito aquilo, são aqueles momentos em que o nosso
corpo se move sem motivos e no fim tentamos
arranjar soluções, mesmo que elas não existam,
mas vamos recordar esta atitude pelo prisma
heroico, acho que é mais justo para ela. Mesmo
que o alvo não fosse o pretendido isso não tirou o
sorriso a Pierre que tinha começado algo que seria
impossível parar agora.

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Tiago precipitou-se para cima do assassino,
começando uma luta mano a mano, onde
rapidamente a lâmina perdeu toda a importância
que poderia ter.
E assim começou o efeito dominó, todos os
homens que estavam atras de Dante acorreram para
ajudar Pierre que estava a passar por dificuldades
claras para conseguir ultrapassar e derrotar Tiago.
Foi neste momento que as armas de Klaus e Hugo
se viraram para alvos comuns, várias balas foram
disparadas contra os homens que corriam e quase
todos foram abatidos, apenas um ficou de pé e por
uma razão muito simples, não por falta de pontaria
mas porque simplesmente ele não tinha feito o
mesmo movimento que os restantes, tinha
aproveitado o fogo cruzado para se aproximar
devagar de Klaus e quando estava a distancia certa
conduziu a sua mão cerrada contra a cara dele,
jogando-o contra o chão.
Este homem era ninguém mais, ninguém menos do
que Sarevo que graças a sua experiência tinha
percebido que nos momentos de aflição aqueles
dois se iriam unir novamente e as balas iriam voar
na mesma direção. Neste momento haviam três
centros de conflito acesos, Hugo estava frente a
frente novamente com Dante, Sarevo com Klaus e
Tiago com Pierre e no meio desta confusão toda,
Marie segurava o corpo inanimado de Marte e as
Los Santos faziam o seu pranto, Sam parecia um
cão assustado com o fogo-de-artifício e Ariana
olhava para que lado poderia cair, sabia que
qualquer movimento mal pensado poderia causar
uma morte e isso era o que mais desejava evitar.

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Era o momento de todos tomarem decisões e foi
isso que aconteceu.
Sarevo sem grande dificuldade imobilizou Klaus
deixando-o a sangrar do nariz deitado no chão,
fazendo mira a sua perna e puxando o gatilho, com
uma voz seca disse:
- Eu de ti trato depois, agora faz-me um favor e
está quieto.
O segundo centro de luta tinha sido controlado por
Tiago, apesar da navalha Pierre não contou com a
coragem repentina de Sam que aproveitando a luta
mano a mano dos dois aproximou-se pelas costas
do impostor e com uma pedra redonda enorme que
tinha encontrado no chão acertou em cheio na
cabeça dele a intenção era só imobilizar o agente
da Mano, mas fez muito mais do que isso, fez com
que ele caísse morto no chão, a cabeça estava
aberta e os olhos baços, morreu com um sorriso na
face e com a navalha na mão esquerda.
- Como te sentes após teres morto o teu primeiro
homem? – Questionou Tiago recuperando o
fôlego.
- Morto? Ele não está só desmaiado?
- Não, tu mataste-o, foi uma bela pancada.
Neste momento o estomago fraco de Sam voltou a
aparecer e obrigou-o a ir vomitar contra umas
árvores, parecia que quem ia morrer era ele com o
barulho que estava a fazer. Tiago apenas abanou a
cabeça e disse para si próprio “menina”.

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Os seus olhos viraram-se imediatamente para o
único ponto de luta que ainda se mantinha ativo, e
quando ia procurar a navalha para ir equilibrar a
luta para o lado do Hugo reparou que alguém já
tinha tido essa ideia.
A navalha já estava na mão da agora brava Marie,
ela avançava a tremer como varas verdes, mas com
alguma velocidade atras de Sarevo que agora se
colocava como o primeiro espectador da luta entre
a cobra e o lobo.
Apesar da idade Dante mantinha todo o seu vigor e
movimentava-se com toda a rapidez de um jovem
de vinte anos, a sua bengala para alem de trazer
consigo o seu bichinho de estimação, desdobrava-
se numa lâmina fina e comprida que era capaz de
trespassar até o naco mais forte de carne.
A luta entre eles os dois durou enquanto ele quis
que durasse, Hugo nunca tinha lutado com
ninguém mano a mano, estava ferido e cansado por
isso todos os seus movimentos eram facilmente
antecipados, a revolver que ele tinha na mão só
tinha mais uma bala e ele não a queria desperdiçar,
sem ter a certeza que seria certeiro, por este motivo
tentou imobilizar o seu “idoso” adversário o mais
rapidamente possível, mas acabou por acontecer o
contrário. Passados alguns minutos era Hugo que
tinha a lamina encostada ao peito e as costas
viradas para a enorme ravina, o vento parecia
puxa-lo, sentia a brisa da morte a abanar-lhe os
cabelos, sentia as pernas bambas e o coração a
bater mais rápido do que nunca, ainda viu ao longe
Marie aproximar-me e rezou a toda a gente para
que ela desistisse daquela ideia maluca, ela nunca

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iria conseguir derrotar o Dante, alias ele naquele
momento tinha dúvidas de que alguém fosse,
sentia-se estupido por não ter puxado o gatilho
quando podia e pensou para si mesmo, o quão
diferente era de Felipe, se fosse ele na sua posição,
aquilo tinha acabado á muito.
- Sempre tive esperança de que a minha luta
com o poderoso Alfa fosse intensa e épica, mas
parece que me enganei, e a tua sorte chegou ao fim
Hugo, e desta vez não te vou deixar escolher a
forma como vais partir deste mundo, eu vou
decidir! – Começando a empurrar a lâmina com
mais força contra o peito dele – quando chegares
ao lado de lá, dá os cumprimentos ao meu pai por
mim, ele deve estar com saudades minhas.
A pequena serpente começou a avançar ao longo
da lamina e quando estava prestes a morder o
pescoço de Hugo ouve-se o barulho de um disparo,
quem estava de costas pensou que tivesse sido a
ultima bala da revolver a encontrar o corpo de
Dante, mas a história era ligeiramente diferente,
tinha sido uma bala disparada contra a cabeça da
serpente negra, que lhe arrancou literalmente a
cabeça, fazendo o seu corpo viscoso cair redondo
no chão e continuar a rastejar sem ver para onde ia
e cair em direção ao abismo.
Dante respirou fundo e disse:
- Com a tua traição eu não contava…
- Devia contar Mestre, afinal de contas mentiu-
me toda a sua vida, fez-me matar aqueles que eu
mais amava, para nada.

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- Sarevo, mas neste momento estás no sítio que
sempre desejaste.
- Engana-se Dante, o sítio que sempre desejei,
pelo menos a partir do momento em que me
colocou como ama-seca do miúdo foi o seu! Um
homem como eu deseja sempre mais e você devia
ter sido mais cuidadoso.
- E o que vais fazer agora? Matar-me?
- Não, vou matar-vos. Não tenho nada em
especial contra ti miúdo, mas não quero ter alguém
com tantos seguidores ou com tanto potencial
como tu a viver no mesmo mundo do que eu, e
para além disso, matar-te vai ser uma misericórdia
para ti, afinal de contas estás a sofrer em demasia.
- Sarevo, sabes que posso dar-te tudo aquilo que
procuras, posso dar-te todas as riquezas do mundo,
posso fazer de ti o homem mais poderoso do
mundo, basta pedires – começando a tremer pela
primeira vez Dante.
- Meu senhor, devia saber que um homem que
não tem nada a perder também não tem preço, por
isso comigo esse tipo de argumentos não vão
funcionar, tem últimas palavras?
- Espera Sarevo…
Mas antes de conseguir terminar a frase, o gatilho
já tinha sido puxado, a bala de Sarevo tinha
acertado em cheio no peito de Dante, o seu corpo
foi projetado para a escuridão, enquanto falava
tinha-se aproximado em demasia da beira e quando
foi atingindo o seu corpo caiu em direção do

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abismo, quem viu o seu ultimo olhar diz que ele
morreu com o olhar de poder que tinha mantido
durante toda a sua vida, nem uma réstia de
arrependimento apareceu, nem uma lágrima nem
receio do que iria encontrar do outro lado, o seu
corpo por muita sorte não embateu contra os
rochedos, Hugo acompanhou a queda com o olhar,
tao bem como conseguia, engoliu em seco, sabia
perfeitamente que aquele tiro era responsabilidade
dele, deixou que outro o fizesse, uma vez mais
tinha ficado em segundo.
Quando voltou a olhar para Sarevo tinha o cano da
arma encostado quase a sua cara.
- Desculpa miúdo, não tenho nada contra ti, mas
não te posso deixar viver.
- Nem eu a ti – comentou uma voz feminina.
Era Marie, ela tinha encostado a pequena navalha
as costas de Sarevo, tremia por todos os lados, mas
tentava manter uma cara feroz.
- Não te mexas, senão eu espeto-te isto nas
costas.
- Menina, tu nem sequer estas perto de um ponto
vital, nunca me conseguirás matar, antes de me
espetares eu mato-o a mesma, eu a ti não tenho
quaisquer intenções de magoar, es demasiado
inofensiva para eu te magoar!
- Não me subestime!
- Não estou a subestimar, estou a ser realista, tu
nem sabes usar uma coisa dessas, foste treinada
para ser uma diplomata não uma guerreira.

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- Ela não, mas eu sim – uma segunda voz
feminina apareceu. E mais uma mão segurou na
lâmina.
Era Ariana, com um olhar furioso colocou-se lado
a lado com Marie e dando-lhe um sorriso tentou
dar-lhe uma segurança que nem ela tinha.
- Vocês conseguiram enervar-me - virando-se
repentinamente Sarevo sem qualquer dificuldade
conseguiu retirar a navalha das mãos de ambas e
com um movimento quase único deu uma chapada
a ambas, Marie caiu no chão redonda e Ariana deu
uma serie de passos para trás.
- Agora se não se importam deixem-me terminar
este assunto.
Quando se virou foi dado o último disparo desta
aventura, de joelhos no chão puxou o gatilho a
última vez que podia, não mirou a cabeça, nem ao
peito, mas sim contra a perna direita de Sarevo,
fazendo-o cair também de joelhos.
- Tu es muito idiota miúdo, podias ter facilmente
acabado com esta merda toda, mas quiseste ser
complacente e agora não tens mais balas e vais
morrer de qualquer maneira, querias que eu te
matasse a olhar-te nos olhos era? Porque é a única
justificação plausível!
No meio da confusão a navalha tinha-se perdido
novamente, quando o corpo de Sarevo encontrou o
chão a navalha também o fez, e embora Marie
tivesse procurado ser rápida para a apanhar, foi
Ariana que o fez, quase como um corcel selvagem
correu e agarrou a pequena lâmina, encostando-a

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diretamente ao pescoço do velho capitão, quando
estava prestes a fazer a lâmina correr o pescoço
dele ouviu-se a voz de Hugo:
- Não o mates, eu se quisesse tinha-o feito, este
não influencia tanta gente com o morto, este pode
ser julgado pela justiça dos homens, vai ser
encarcerado e passar o resto da vida na prisão,
condenações arbitrárias comigo não funcionam, e
para além disso tudo, ele matou o Dante, não que
isso apague nada do que ele fez, mas pelo menos
deve servir de redutor a toda e qualquer pena que
lhe desejássemos aplicar.
- Nem penses que vou viver dependente da tua
misericórdia, mereço muito mais e vou morrer
como qualquer soldado deve morrer, nasci para
matar pelo poder do fogo e assim morrerei, nunca
na vida vou ser colocado dentro de barras para ser
alimentado por homens que desejam todos os dias
ver-nos mortos, não vou viver como um pobre
coitado, não me vou permitir a tal – pegando na
arma e puxado o gatilho em direção ao seu queixo.
Como devem imaginar a imagem que se seguiu
não foi de todo a mais bonita de todas, sangue por
todo o lado e mais um corpo deitado no chão. Esta
morte incomodou muito menos os corações
femininos, não era a primeira morte que tinham
visto e começavam a achar que não seria a última.
Quando o corpo de Sarevo encontrou o chão,
ouviu-se o comentário de Hugo:
- Morreu como desejava, morreu como um
soldado.

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E caiu também ele para o lado.
Marie juntando todas as forças que ainda tinha
correu para junto dele, baixando-se e levantando a
sua cabeça para os seus joelhos, começando a
deixar cair as lágrimas pedia de forma baixinha
para que ele não se fosse embora, fazendo-lhe
festas na cara e soprando para o seu cabelo, quando
ouviu quase como um suspiro a voz dele:
- Será que esta minha condição me torna apto
para uma respiração boca a boca ou preciso de
desfalecer mais um bocadinho? – Começando a
sorrir.
- Tu és muito parvo! Deixaste-me muito
preocupada! – Começando a gritar e a sorrir ao
mesmo tempo.
- Se não o fizesse nunca te terias aproximado
tanto de mim, mas estou a falar a sério agora,
preciso de um médico, mas se pudesses ir
adiantando a respiração boca a boca agradecia.
- Já que és tao espertinho, aguenta-te mais um
bocado com o ar que tens nos pulmões.
- Não sejas tão mazinha, mas pronto eu aguento-
me, diz-me só uma coisa, onde esta o Romeu?
- Também já olhei á procura dele, mas na
confusão ele deve ter aproveitado para fugir, mas
nós vamos encontrá-lo!
- Deixem-no ir, algo me diz que isto ainda não
acabou – olhando para o abismo ao seu lado.

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Não muito longe dali, no meio do bosque, ainda
com uma perna a arrastar estava Klaus, estava
encostado a uma arvore para descansar, tinha dores
horrendas por causa da bala que tinha presa na sua
perna, deixava atras de si um rasto de sangue que
esperava que ninguém seguisse, tinha fugido no
meio da confusão, tinha aproveitado que ninguém
estava a olhar para ele e fugiu como podia, no
meio do nada começou a ouvir passos, respirou
fundo e rezava para que fosse alguém do grupo do
Hugo, certamente que seriam mais complacentes
do que um homem do Dante, mais idiotas também,
mas isso pouco importava desde que conseguisse
sobreviver mais uns meses ou talvez anos.
- Tu és mesmo uma raposa velha, nunca perdes a
oportunidade de sobreviveres por mais um dia,
nunca esperei que fosses corajoso, mas fugir no
meio da confusão também roça um nível de
covardia que nunca esperei vinda de ti.
- Eu apenas faço o necessário para viver mais
um dia Tiago, pensei que percebesses isso melhor
do que ninguém.
- E entendo, sempre te achei muito estranho
Klaus mas nunca pensei que fosses um ator tão
bom, conseguiste mesmo enganar-nos a todos.
- Até eu fiquei surpreendido, afinal de contas
consegui enganar o braço direito do Alfa durante
mais de dois anos.
- Isso não me surpreende, surpreende que tenhas
conseguido enganar o teu próprio pai durante de
mais de uma dezena de anos!

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- Cuidado com a língua! Eu…
- Tu o que? Mataste-me? Tu mal consegues
contigo próprio quanto mais estares-me a ameaçar,
mas não te preocupes, não tenciono matar-te, gosto
de acreditar que o destino coloca tudo no seu sítio,
e se tu não morreste naquele abismo, também não
vai ser pelas minhas mãos que vais morrer.
- Vocês sabem que ele não morreu certo? Ele
nunca iria morrer tao facilmente, era demasiado
poderoso para isso.
- Talvez, mas se isso for verdade tens de estar
preparado para quando o reencontro acontecer não
seres apanhado de surpresa.
- Vou canalizar todo o meu desejo de viver para
esse dia.
- Até esse dia mantem-te quieto e nas sombras,
eu não sei se os outros te deixariam viver como eu
deixei. Até um dia Klaus, mas se calhar é melhor
adotares um outro nome, e sem ser Romeu por
favor, quando dizia o teu nome só me dava vontade
de rir. – Virando as costas e desaparecendo entre
os pinheiros.
O que se passou nos próximos meses pode-se
contar em poucas palavras, mas tentarei dar-vos os
pormenores mais deliciosos, porque até os meses
mais parados têm acontecimentos que podem
encher a alma dos mais lamechas.
O corpo de Sarevo foi atirado fora enterrado nos
bosques do Abismo das Memórias como fora
denominado por aqueles que souberam do que se

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passou naquele dia, o corpo de Marta levado
novamente para Milão e enterrada como Cassandra
ela foi, afinal de contas, durante a maioria da sua
vida essa foi a sua verdadeira personalidade. Após
fecharem todos os buracos que a sua pequena
aventura pela Europa tinha aberto os nossos
amigos começaram a organizar-se nas suas
pacíficas vidas.
Ariana conseguiu fazer as pazes com as primas,
apos uma longa discussão na casa do telhado
vermelho, lá chegaram a conclusão que o melhor
para todas era enterrar o passado, afinal de contas
todas elas tinham sido apanhadas numa rede que
lhes moldou a vida e o pensamento, nunca tinham
sido inimigas e talvez nunca devessem vir a ser,
eram sangue do mesmo sangue e como a nossas
querida língua portuguesa nos diz “o sangue não se
quer rogado”, ao fim de alguns meses e várias
reuniões Ariana foi apresentada como sócia da
empresa das irmãs Los Santos, manteve um
emprego seguro e uma casa enorme no bairro
Norton de Matos, para alem disso e após uma
conversa franca e demorada, como todas as
mulheres gostam de ter, assumiu uma relação com
Tiago, apesar das barreiras que Luís levantou ao
início, no final das contas até se davam
minimamente bem, o seu hobby favorito era ir ver
a recém-promovida Académica aos fins-de-
semana, principalmente quando vinham jogar a
Coimbra uns dos três grandes de Portugal, muitos
anos tinha estado afastada deste patamar esta
magnifica casa, mas agora passados várias dezenas
de anos tinha recuperado parte do seu orgulho, e lá

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iam eles fazendo os seus cachecóis pretos e
brancos esvoaçarem ao vento.
Samuel com a ajuda das irmãs Los Santos tinha
recuperado o café onde tinha trabalhado anos
antes, um sorriso na sua face aparecia todas as
manhãs, graças ao bom atendimento e às inovações
que implementou, ao fim de muitas tentativas, na
doçaria tradicional, tinha sempre o café cheio, não
só com as velhinhas que iam todos os dias beber o
seu galão e comer a sua meia torrada ou o seu pão
de centeio torrado com pouca manteiga, mas
também com centenas de turistas que ao fazerem o
passeio turístico pela cidade tinham que passar
obrigatoriamente por lá.
De quem esteve naquela noite fatídica na Sicília
apenas me falta falar-vos dos amorosos Hugo e
Marie, após chegarem a Portugal, começaram
todas as semanas a tomarem religiosamente um
café, ela nos tempos livres da faculdade, ela quis
tentar concluir um curso de ensino superior, apesar
de saber que conseguiria um trabalho na empresa
da família não o quis, e ele nos intervalos das
reuniões e visitas que tinha que fazer como Alfa.
Esses cafés rapidamente evoluíram para jantares e
almoços e passados alguns meses para conversas
dentro de lençóis, viviam separados quando numa
noite amena de Maio, enquanto davam um passeio
á beira-rio, no parque Joaquim Braga, com as suas
belas árvores, o pedido mais arriscado da vida do
Hugo foi feito, certamente que ele preferia
enfrentar mil vezes o poderoso Dante Donna do
que fazer aquele pedido. Um pedido que para as
mulheres pode ser parecer completamente simples,

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mas que para os homens e condicionar toda a sua
vida em troco de discussões diárias, pode parecer
idiota, mas quando se fala de amor não se pode
pedir muito mais, não é? Foi neste ambiente que
ele colocou um joelho no chão e com um anel de
prata com uma pequena pedra preciosa no seu topo
perguntou: “Aceitas casar comigo?”.
No momento seguinte ela estava em cima dele a
gritar aos sete ventos que sim, deu-lhe tantos beijos
que caso eles fossem venenosos ele teria morrido
em cinco segundos, a alegria de ambos era
contagiante, todos aqueles que se encontravam a
sua volta começaram a bater palmas e os jovens
casais que por lá passeavam na mesma altura
ficaram separados nas reações, os rapazes só
pensavam “miserável, não lhes dês ideias” e as
mulheres apenas suspiravam e pensavam “quem
me dera que o meu homem fizesse o mesmo, ela
tem mesmo sorte”. Como é fácil e barato julgar
pelo que se vê na rua.
A preparação foi toda deixada ao cuidado de
Ariana e Inês, elas escolheram o tema, o sítio do
copo de água e a after-party, sobre as despedidas
de solteiro e solteira não vos vou contar
absolutamente nada, foram demasiado obscenas
para eu conseguir colocar em palavras tal ações, e
para alem disso na minha opinião o chantilim tem
uma utilização muito mais útil do que aquela que
eles lhe deram nas suas despedidas e mais não
digo.
Embora tudo tenha sido decidido pelas madrinhas
autointituladas, o sítio da comunhão das almas foi
decidido por eles. Foi na pequena igreja matriz da

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terra natal de Felipe, tinha sido ali que ele tinha
sido batizado, tinha sido lá que Marie embora não
se lembrasse também tinha sido, uma parte da alma
de Felipe estava naquela terra, fazia todo o sentido
ser ali.
Eles tinham ido mais longe, a prenda de casamento
de Rodrigo, por pedido deles fora a antiga casa
onde Felipe tinha crescido, recuperada baseada nas
fotos que haviam tinha recuperado todo o seu
esplendor, no dia do casamento foi nela que Marie
se vestiu.
Um vestido longo branco, com flores desenhadas
no peito, uma longa cauda que era preciso três
meninas para a segurar, um véu quase transparente
que parecia ser pintado com pequenos diamantes, o
seu longo cabelo negro apanhado com uma
bandelete também prateada, umas luvas que lhe
davam quase até ao cotovelo, quase sem
maquilhagem e apenas com o seu sorriso branco
feito neve para iluminar todos aqueles que estariam
presentes, tinha calçados uns sapatos agulha com
quase cinco centímetros de altura, mas já tinha
pedido á Francisca para que lhe arrumasse umas
sapatilhas num saco para no final das fotos
conseguir descansar os pés, odiava andar de saltos.
O carro que a iria levar á igreja era uma limusine
preta, enorme, elegante e rápida, apesar da
distância não ser assim tao grande, ela merecia
chegar em grande.
Por sua vez Hugo foi muito mais simples, vestiu-se
na sua casa em Coimbra, optou por um fato
simples, blazer azul claro, um colete, uma camisa
branca e uns sapatos ponte agudos, longos cabelos

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castanhos presos em rabo-de-cavalo, dois anéis de
prata e um colar em forma de lobo, o seu olhar
verde-esmeralda tinha ganho novamente o seu
brilho, ia na sua moto até ao casamento, disse a
todos que queria aproveitar os seus últimos
momentos como homem livre. Chegou quase com
uma hora de antecedência a igreja, o espaço estava
exatamente como se lembrava dele, a casa do
padre a entrada, onde ele recebia todos aqueles que
desejassem falar com ele, normalmente as quintas-
feiras, um enorme portão de ferro que
normalmente estava fechado e depois elevava-se o
edifício principal, com duas entradas, uma lateral
normalmente aberta para que as pessoas entrassem
e se sentassem nos velhos bancos de madeira, e
outra no fundo usada pelo pároco para entrar com a
procissão atras de si. O interior da igreja também
era belo, com várias colunas a erguerem-se em
direção ao telhado, dois pequenos “camarins”,
construídos agarrados a duas dessas colunas, onde
para onde já ninguém ia, mas que continuavam lá,
ao centro o belo Altar onde o Padre se encostava,
atras deles as cadeiras para os acólitos e do seu
lado esquerdo a divisão onde o padre se despia no
final da missa e onde eram colocados todos os
adereços necessários para a realização da mesma.
O coro era colocado numa pequena estrutura de
madeira ao lado do altar, a igreja tinha evoluído de
tal forma que até tinha ecrãs para que as pessoas
pudessem acompanhar a missa mesmo no fundo da
igreja, mas sendo sinceros eles estavam quase
sempre desligados, era mais uma ação apenas para
inglês ver. A volta do edifício principal estavam
belos jardins, quase nunca aparados, com árvores

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velhas que se pudessem falar iriam-nos contar
imensas histórias, mas acho que todas elas teriam
muito pouco de santas.
Foi este o palco escolhido para a última grande
cena desta nossa peça, mais perto da hora da missa
começaram a chegar os convidados, Hugo com
toda a educação que o nervosismo lhe permitia ia
falando com eles com um sorriso na cara, mas
quando viu o seu amigo de muitas aventuras
conseguiu respirar um bocadinho e sair de toda
aquela confusão:
- Queres um cigarro para os nervos?- perguntou
Samuel.
- Se não tivesse largado isso há muito tempo
podes ter a certeza que aceitava, nunca pensei que
isto custasse tanto…
- Mesmo depois de enfrentares a morte,
enfrentares uma mulher é sempre mais assustador
– soltando uma enorme gargalhada – como eu te
compreendo meu amigo.
- Já sabes, a seguir tens que ser tu, quando é que
assentas essa cornadura?
- Dia de são nunca á tarde, parece ser uma boa
opção, mas enfim até conheci uma rapariguita
engraçada lá no café, pode ser que seja desta que
eu acalmo, o que seria péssimo para o mundo
feminino de Coimbra, vou partir centenas de
corações!

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- Principalmente das viúvas que precisam que
lhes vás ao supermercado fazer as compras do mês
não é verdade?
As faces deles foram invadidas por sorrisos de
orelha a orelha, antes de voltarem para dentro
deram um abraço sentido e Sam disse:
- O Lázaro ia adorar ver-te assim, feliz! Ele onde
estiver está muito orgulhoso de ti, tenho a certeza
disso.
- Eu sei que sim… e não é que o filho da mãe
tinha razão? Tenho saudades dele – olhando para o
céu.
Sem dizer mais nada entraram para dentro da
igreja.
Mas antes de chegar ao altar ainda tive mais duas
paragens, uma ao pé do seu mentor e outra ao pé
do seu irmão de batalha, talvez seja melhor
começar pela conversa com o Tiago, sentado nos
primeiros bancos mesmo encostados ao altar, ele
mantinha-se lá de mãos dadas com Ariana, ela
tinha vindo a frente para ver se estava tudo bem
com a decoração da igreja, nada poderia falhar:
- Doce Ariana está tudo como previsto?
- Melhor, afinal de contas pensei que viesses de
fato de treino.
- Ainda estive tentado, mas depois o teu homem
ainda me dava um tiro.
Novamente entre sorrisos e abraços esta conversa
foi tida:

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- Parabéns Hugo, tenho a certeza que ele está
muito orgulhoso.
- Ele faz cá falta, mas não é dia para isso,
cumprimos a missão que ele nos deixou, agora é
tentar aproveitar um bocadinho a nossa vida.
- No fim da tua lua-de-mel tenho que falar
contigo, porque a missão ainda não acabou, ainda
falta uma última etapa.
- Mas hoje não é dia para isso – interrompeu
Ariana – hoje é um dia de festa, não de trabalho, a
tua noiva está linda, se não chorares quando ela
entrar por aquela porta eu vou-te bater!
- Não te preocupes eu trouxe uma cebola no
bolso, caso as lágrimas não saiam de forma natural
eu obrigo-as.
- Vocês homens são mesmo idiotas!
- O que seriam das mulheres sem nós não é
verdade?
- Teríamos muito mais sanidade mental sem
dúvida!
Foi no fim desta piada que se ouviu uma voz ao
fundo do corredor:
- Onde está o noivo, quero dar um abraço ao
meu primo emprestado – Era Rodrigo, vinha
vestido a rigor embora a gravata tivesse
ligeiramente torta.
- Meu caro amigo conseguiste vir, estava com
receio que não conseguisses!

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- Devo-te dizer que não foi a coisa mais fácil do
mundo, agora com as responsabilidades como
presidente da Câmara torna-se por vezes
impossível coçar-me.
- Acredito que sim, muito obrigado por teres
vindo, conto contigo para beberes um bocadinho
de champanhe e comeres um bocadinho de bolo?
- Contas comigo para ouvir a missa e ouvir-te a
dizer o “sim”, mas nada mais do que isso, tenho já
a tarde toda ocupada com reuniões, não posso
faltar mais, já ter libertado a manhã foi um bico-
de-obra.
- Compreendo, acho que nunca te consegui
agradecer pelas ajudas que nos deste quando
estávamos pela Europa a lutar contra a Mano,
principalmente teres conseguido convencer o Sam
a ir ter connosco.
- Não sei do que falas, a ajuda que vos dei foi
meramente em apoio moral, nunca vos mandei
nada porque só sabia das coisas passado quase uma
semana, e nunca falei com o Sam, o dia de
casamento está mesmo a avariar-te a cabeça! –
Soltando uma pequena gargalhada.
- Se calhar tens razão, mas noutro dia com mais
calma quero falar disso contigo, pensava mesmo
que tinhas sido tu a dar-nos todo o apoio
logístico…
- Vá não penses mais nisso, agora deixa-me ir
fazer a ronda social, diz-me uma coisa, o menino
das alianças já chegou? Precisava de lhe perguntar
como vão os estudos.

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- Agora que falas nisso, não o vejo desde manhã
bem cedo, onde será que o miúdo se enfiou?
O menino das alianças, era nem mais nem menos
do que o filho de Ariana, no caso seria um menino
e uma menina, seriam por ironia do destino Luís e
Marta, bem sei que vocês desejavam saber como
estava a história de amor destes dois.
Durante todo o tempo da missão, depois daquela
discussão feia que eles tiveram, nunca se falaram,
ignoravam-se pela escola, tiveram pequenos
relacionamentos baseados em prazeres físicos e
com o objetivo de fazer ciúmes um ao outro, foram
até adversários na disputa da Associação de
Estudantes daquela escola, não sei se vos importa
mas a vitoria caiu para o lado da Marta, uma
carinha laroca parte sempre em vantagem neste
tipo de coisas, quando eram perguntados sobre o
assunto diziam cobras e lagartos um do outro, só
faltava acusarem-se de homicídio! Mas quem
estava de fora percebia que era só a frustração a
falar, por mais teimosos que fossem eles gostavam
um do outro e isso custava a admitir, nenhum dos
dois estava disposto a dar o braço a torcer, porque
na cabeça deles, estavam ambos certos, eram
miúdos o que se podia pedir?
No dia do casamento, era suposto o Luís ir colocar
as alianças num pequeno cesto que levaria metade
do caminho desde da entrada até ao altar, mas
como também já é sabido, por vezes os homens
não pecam muito pela destreza e inteligência, e ao
entrar na pequena divisão ao lado do altar que eu
supra referi, tropeçou nuns ramos de flores que
estavam a entrada e deixou cair as alianças para

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uma pequena ranhura que havia no chão, bradou
aos sete infernos pelo seu azar, e depois de tirar os
restos de flores começou a tentar arranjar uma
solução, mas as suas mãos eram demasiado grossas
e não cabiam na ranhura, o desespero começou a
tomar conta dele, olhou para todo o lado e a
melhor solução que encontrou foi uma velha tanaz
ferrugenta encostada a um canto, mas nem a tanaz
conseguia lá entrar e quando entrava não conseguia
abrir por causa do espaço ser demasiado curto, ele
quase desistiu, sentou-se a beira da ranhura e
começou a pensar numa solução.
Foi neste momento que uma voz familiar lhe
surgiu nas costas:
- Não me digas que deixaste as alianças cair
nesse buraco!
- Agora sim o desastre está completo! Vai tratar
da tua vida cor-de-rosa e deixa-me encontrar uma
solução pode ser bela adormecida?
- Continuas o mal-educado de sempre, não
percebes que não é o só teu nome que está em
causa, também é o meu?
- Claro, quase que me esquecia que o nome da
menina não pode ser nem beliscado, enfim vai lá
ter com os teus amiguinhos que eu trato disto.
- Se eu quisesse estava com eles não te
preocupes, e acredita que me tratam melhor do que
tu.
- Se calhar porque não conhecem o teu lado
mimado!

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- Mimado? Tu é que tens medo de quem és e a
mimada sou eu?
- Sim! Foste tu que sempre te armaste em super
adulta e depois á primeira adversidade foste
embora! Não fui eu, e acredita tenho a certeza que
se procurasse ia encontrar uma rapariga, uma não,
dezenas melhores do que tu e bastante mais
evoluídas!
- Então vai ter com elas e desaparece-me da
frente!
- Mas eu não as quero.
- Porquê? Não são demasiado evoluídas para ti?
- Porque te quero a ti sua estúpida!
- O que?
- Foi o que ouviste, mesmo tu sendo uma idiota,
uma imatura eu continuo a querer-te a ti, o meu
corpo chama por ti, a minha mente só acalma
quando pensa em ti, imaginar-te com outros dá-me
volta ao estômago! Mas sou demasiado orgulhoso
para te dizer estas coisas, porque bem no fundo
sempre soube que merecias melhor do que eu!
Neste momento e com um movimento rápido
Marta leva os seus lábios de encontro aos dele, e
deram um beijo apaixonado, as mãos dele
envolveram a sua cintura e as dela agarraram a sua
face para nunca mais a largar.
- Seu idiota, sempre te quis e foi o medo que me
levou a mostrar o contrário, por favor nunca mais

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me escondas nada e eu prometo que tentarei lidar
com isso da melhor forma possível!
- Mesmo tendo a noção que te estás a envolver
com o filho de um rei do caos?
- Todo o príncipe precisa da sua princesa, e não
me importo de ser a princesa do caos! Mas antes de
pensarmos nisso, vamos é tirar as alianças dali.
- Não dá, tenho de ir buscar um martelo para
partir o chão.
- Nem tudo se resolve a base da brutidade. –
Esticando o braço devido a sua fineza conseguiu
retirar as alianças a primeira – as vezes é só preciso
um bocadinho de calma e leveza.
Neste momento o padre chega á divisão e avisa
que a missa ia começar.
Toda a celebração correu as mil maravilhas, todos
os cânticos foram entoados de forma magnifica
pelas dezenas de crianças vestidas de branco, as
meninos com longos vestidos brancos e os
meninos com fatos pintados a prata, pelo menos
parecia, as típicas beatas coscuvilheiras quase
choraram com o lindo casamento, Rodrigo foi
colocado para que citasse de cor um dos versículos
da Bíblia, Ariana e Tiago leram os restantes, a
beleza de Marie inundava toda a Igreja, até as
pequenas andorinhas entraram para assistir de
camarote ao casamento, colocada em cima da
representação de cristo estava uma pomba
cinzenta, quase negra, que muita gente ali sentada
pensou que fosse a representação espiritual de
alguém que não podia estar ali fisicamente, as

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opiniões dividiram-se se seria de Felipe, Lázaro ou
Marta, mas uma coisa tinham a certeza, fosse quem
fosse estava feliz porque durante toda a celebração
a pomba cantou alegremente.
Quando chegou ao momento de dizer que sim o
padre fez a típica pergunta que todos já sabem de
cor:
- Existe alguém que se oponha a este
matrimónio? Que fale agora ou que se cale para
sempre!
Todos sabem que ninguém tem coragem para
interromper um casamento, principalmente nesta
altura que está quase no fim, por isso ninguém olha
a sua volta quando são ditas estas palavras, mas
neste caso foi diferente.
Uma voz poderosa como um trovão fez-se ouvir do
fundo da igreja, mesmo colocada á porta:
- Eu tenho! Acho uma enorme desonra não ter
sido convidado.
A voz era conhecida de todos, mas ao mesmo
tempo parecia uma memória distante, todos na
igreja se viraram para confirmar quem tinha dito
aquilo, e o vulto que viram causou em todos
pânico.
Um homem na casa dos quarenta, um longo casaco
negro até aos tornozelos, uma camisola de gola alta
negra como a noite, um colar com um lobo a uivar,
uma bengala em que o topo era feito de prata
reluzente também ela em forma de lobo, longos

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cabelos negros soltos ao vento, uma barba fina
colada a face, e um sorriso branco feito neve.
Colocada ao seu lado a bela Rubi, com um vestido
longo vermelho e um batom encarnado como a
mais bela das maçãs, e por último atrás destes dois,
um velho senhor com um longo chapéu negro com
uma fivela em ouro, com um olhar meigo e uma
respiração calma.
A entrada daquele ser provocou de tudo um pouco,
algumas pessoas desmaiaram outras começaram
aos berros, umas levantaram-se para terem a
certeza, foi um pandemónio, até a pomba que
cantava alegremente se calou.
Tiago manteve-se quieto e estranhamente calmo
fazendo um simples comentário:
- Finalmente…. Chegou.
Rodrigo sentado na cadeira virou os seus ouvidos
para o lugar de onde vinha a voz, mas parecia não
querer acreditar:
- Conheço esta voz tão bem como a minha, mas
pertence a alguém que já partiu á muito!
- Não parti meu querido primo, mas tenho muito
para vos contar.
Hugo caiu de joelhos, Ariana começou a chorar e
Marie ficou perdida no olhar daquele estranho, que
lhe parecia tão familiar.
O pequeno Juan que tinha ficado com Sam quando
viu o homem de negro começou a correr

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desenfreadamente em direção a ele gritando com
todas as suas forças:
- Papá, Papá! – Atirando-se contra as suas
pernas.
Não é possível, eu vi-te morrer á frente dos
meus olhos…
- Já devias saber que os nossos olhos são
traiçoeiros Hugo, sempre estive a olhar por ti e
pela minha doce irmã. Fico feliz que o meu plano
de vos juntar tenha funcionado, mas continuo
chateado por não me terem convidado.
- Felipe tu estav…
- Estou de regresso, tiveram saudades minhas, é
que eu vim para ficar.
Toda a igreja ficou em silêncio, os olhos de Luís
encheram-se de lágrimas e a sua mente de
penumbra.
O Alfa estava de regresso!

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Epilogo
Era uma noite tempestuosa no mar mediterrâneo os
relâmpagos iluminavam o céu e s trovoes faziam
tremer até o mais corajoso dos homens, as ondas
faziam-se elevar no mar e nenhum peixe contava
com a coragem desmedida de homem algum, que
seria apelidado de lunático se saísse para o mar
naquelas condições, seria como cavar a própria
cova!
Mas foram precisamente estas condições que
levaram o jovem Alberto a aventurar-se contra as
terríveis fúrias de Neptuno, e a rezar para a bênção
e proteção das ninfas para ficar vivo mais um dia, a
pequena embarcação abanava por todos os lados,
as ondas embatiam com toda a sua fúria contra os
vidros de proteção, o oleado amarelo que trazia
vestido de nada o protegia, estava molhado até a
roupa interior, mas por incrível que pareça estava a
sorrir e a cantar, ele adorava viver no mar,
acreditava que na vida passada tinha sido um
cachalote que vagueava pelo mundos nos mares
selvagens, uma peça exótica como estão a ver.
Foi neste ambiente inóspito que ele lançou a rede
ao mar na esperança de apanhar os peixes mais
desatentos, mas o que pescou foi bastante
diferente, ao fim de apenas cinco minutos a rede
começou a pesar, muito mais do que ele poderia
esperar.
Quando a puxou para a superfície viu que tinha
pescado tudo menos o que pretendia, tinha um
homem ferido no seu barco, o homem ainda
respirava mas com dificuldade, tinha uma ferida no

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ombro esquerdo, o seu forte físico era invejável,
mas estava mesmo no limiar do Esfige, mais um
bocadinho e teria morrido, com todo o cuidado
abandonou a pescaria e levou o homem para terra
firme, fez-lhe um curativo rápido e vestiu-o com
roupas quentes, sem lhe tirar a roupa interior, por
muito que quisesse ajudar, até a ajuda tem limites,
e quando estava prestes a ligar para os paramédicos
ouviu a voz do homem num italiano perfeito:
- Amico mio, dove siamo?
- Siamo in sicilia, chiamerò un’ambulanza!
- Per favore non farlo!Lasciami riposari, la ferita
guarirà!
Depois de muita discussão o jovem Alberto lá o
deixou ficar por lá e cuidou dele com todos os
cuidados que um filho teria para com um pai, a
eloquência de Dante era louvável e neste caso não
foi diferente.
Depois de alguns meses, já totalmente recuperado,
sentado a beira-mar disse calmamente enquanto
fitava as ondas calmas:
- A minha morte deve ter sido suficiente para ele
aparecer, agora está na hora de eu reaparecer,
tenho é de pensar muito bem como é que o vou
fazer…
- Signore Dante, il pranzo è pronto! – Ouviu-se
Alberto a gritar ao longe.
Respirando fundo, apoiando-se nas suas pernas e
olhando para o horizonte disse:

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- Está na hora de ir caçar um lobo!

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Agradecimentos
Para finalizar a experiência que foi a produção,
correção e final apresentação deste livro, seguem-
me os mais sinceros agradecimentos.
Primeiramente agradecer ao senhor “doutor” como
é conhecido Fernando Vítor Ladeira Pereira, por
toda a paciência, ajuda e conselhos que me tem
dado ao longo dos últimos anos, bem sei que já o
disse várias vezes, mas sinto que deve ficar em
papel, o meu muito obrigado por me ajudares a ser
o homem que sou hoje, sem ti não seria metade e
apesar das nossas discussões diárias, espero que
continuemos a apoiar e a vivenciar as conquistas
um do outro. Obrigado Tubarão.
De seguida agradecer a pessoa mais importante de
toda a minha vida, e coautora desta história, pela
paciência a reler o livro, a falar dele comigo
durante horas a fio e a ajudar-me a criar a história
mais completa possível. Muito obrigada mãe,
muito obrigada Neusa Monteiro, por durante toda a
minha vida teres estado lá, nos bons e maus
momentos, nas boas e péssimas decisões que
tomei, por isto e por muito mais todas as minhas
conquistas em parte são tuas também!
E por último queria agradecer a dois docentes
meus, primeiramente ao professor Carlos
Martinho, pela capacidade de possuir espirito
critico e curiosidade que me incutiu nos tempos de
escola secundária e por num dos momentos mais
complicados de toda a minha vida académica ter
estado do meu lado e por último á professora
Goreti por apesar de me ter lecionado apenas

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durante um ano, que na realidade foram meia dúzia
de meses interrompidos pela pandemia, sempre me
apoiou, apoia e tenho a certeza que continuará a
apoiar, graças ao seu apoio consigo com muita
maior pujança atingir os meus objetivos, meus
queridos professores o meu muito obrigado!
“A primeira fase do saber é amar os nossos
professores”- Erasmo de Roterdão.
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