Odradek Roberto Schwarz - texto interessante

FernandaS75 0 views 4 slides Sep 29, 2025
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Odradek Roberto Schwarz


Slide Content

''Atribulaçãodeum
paidefamília"*
Dizemalgunsqueapalavra odradekprovémdoeslavo,eprocuram
determinaraformaçãodapalavracombasenestaafirmação.Já
outrosacreditamqueelaprovenhadoalemão,doeslavoteriaape­
nasainfluência.Aincertezadasduasinterpretaçõesautorizaentre­
tantoasuporquenenhumadelasacerta,mormenteporquenenhu­
manoslevaaencontrarumsentidoparaapalavra.
Comoénatural,ninguémseocupariadetaisestudossenão
existisserealmenteumserchamadoodradek.Àprimeiravista,pa­
receumcarreteldelinha,achatadoeestreliforme;eaparenta,defa­
to,estarenroladoemfio;ébemverdadequeosfiosnãoserãomais
doquefiapos,restosemendadosousimplesmenteembaraçadosde
fiogasto,damaisdiversacoreespécie.Masnãosetrataapenas
deumcarretel,poisnocentrodaestrelanasceumavaretatransver­
sal,decujaextremidadesaimaisoutra,emânguloreto.Comauxi­
liodestasegundavareta,porumlado,edumadaspontasdaestrela
poroutro,otodosepõedepé,comosobreduaspernas.
,..OcontoédeKafka,atraduçãoeocomentáriosãomeus.
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Seriaocasodeseacreditarqueesteobjeto,outrora,tenhatido
algumafinalidade,queagoraestejaapenasquebrado.Mas,aoque
parece,nãoéoquesedá;aomenosnãohásinaldisso;nãosevê
marcaalgumadeinserçãoouderupturaqueindicasseumacoisa
destas;emborasemsentido,otodoparececompletoàsuamanei­
ra.Aliás,nãohácomodizercoisamaisexataarespeito,poisOdra­
dekéextraordinariamentemóveleimpossíveldeserpego.
Elevivealternadamentenosótão,novãodaescada,noscorre­
dores,novestíbulo.Àsvezesdesapareceporsemanasinteiras;pro­
vavelmentesemudaparaoutrascasas,masécertoqueacabavoltan­
doànossa.Cruzandoasoleira,seeleestáencostadoaocorrimão,
láembaixo,àsvezesdávontadedelhefalar.Nãosefazemnatural­
menteperguntasdifíceis,eleétratado-jáoseutamaninhonos
induz-comoumacriança.Pergunta-se"qualéoteunome?".Ele
responde"Odradek"."Eondevocêmora?"Eleresponde"residên­
ciaindeterminada",eri;maséumarisadacomosósempulmões
seproduz.Soa,quemsabe,comoocochichodefolhascaídas.De
hábito,esteéofimdaconversa.Mesmoestasrespostas,aliás,não
ésemprequeseobtêm;comfreqüênciaeleficamudo,porlongo
tempo,comoamadeiraqueaparentaser.
Inutilmenteeumepergunto-dele,oqueserá?Épossível
queelemorra?Tudooquemorreterátido,anteriormente,uma
espéciedefinalidade,umaespéciedeatividade,naqualsedesgas­
tou;nãoéoquesepassacomOdradek.Seráentãoquenofuturo,
quemsabesediantedospésdemeusfilhos,efilhosdemeusfi­
lhos,eleaindarolarápelasescadas,arrastandoosseusfiapos?Evi­
dentementeelenãofazmalaninguém;masaidéiadequealém
detudomesobreviva,paramiméquasedolorosa.
''Atribulaçãodeumpaidefamília"*éumaobra-primade
poucaslinhas.Seuarabescodelicadoebreve
éviolentíssimoemor-
,..TraduzidoporModestoCaronecomo''Apreocupaçãodeumpaidefamília",
emUmmédicorural,CompanhiadasLetras,1999.(N.E.)
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deonervodeumaculturainteira.Nãoexplica,masimplicaavida
burguesacomtalfelicidadequeelasaitriturada-deumacena
simplesedoméstica,umpoucofantasiosa.Achavedomundo,
paraKafka,édelata,epodeestarnossubúrbios.SeKafkafosse
revolucionário,nãofabricariabombas,massupositórios.
AescolaalemãeaescolaeslavadisputamapalavraOdradek.
Disputam,masnãolheconhecemosentido.Ficaimplícitoquesão
idiotas,bemaocontráriodopaidefamília,quefazaobservação
etriunfanestasprimeiraslinhas.Opaidefamíliaconsolidaoseu
triunfo,dizendoque"realmente,comoénatural,àprimeiravis­
ta,defato,ébemverdade'~palavrasquesupõem,epressupondo
estabelecem,acomunidadedobomsenso.Étãoponderadoeob­
jetivo,alémdeespirituoso,quenãodiz"eu"nem"nós"atéperto
dofinal.Porenquanto,aliás,nãochegaaexistircomopersona­
gem,ésimplesmenteumavoznarrativa.Osujeitodesuasafirma­
çõesécomoqueum"se",paraindicaroconsensoanônimo,in­
discutívelediscretamentealegredoshomensdejuízo.
Ohomemrazoável,comovimos,pretendenãoserumcha­
to.Semprejuízodesolicitaraaprovaçãogeral,opaidefamília
dáumadescriçãocômicadeOdradek,apresentadocomovelha­
riacujafinalidadeseperdeu.Éridículoumserquetenhaforma
decarretelsemsercarretel,tantomaisseestivercobertodefioem­
baraçado.Oriso,diantedacoisainútileobsoleta,édesuperiori­
dade.
Àsuperioridadedohomemsensatoerisonhoacrescenta-se
adohomemprático.Adiantevemadoadulto,criadapelabono­
miacomquesefaladopequenoOdradek.Oprocedimentoésem­
preomesmo:aliciaroleitor,estabeleceroacordotácitoentreadul­
tos,brancos,civilizados.
Súbito,umdetalhequenãoédetalhe:acoisaestranhasabe
ficardepé,temvida.Ofatoémencionadocomosefosseumfia­
poamaisnocarretel.Masnãoé,emudatudo-mudançaindica­
danatraduçãopelatrocadainicialminúsculapelamaiúscula.Por
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quedescrevercomoinerteumservivo? Écomodizer:maisredon­
doqueanguloso,amarelo,umpoucoamassado,eprimodeJosé
Arthur.AprópriadescriçãofísicadeOdradek,descriçãodeum
traste,mudadesentido,poisseentreobjetosotrasteésemprene­
gativo,entrevivosasuagratuidadepodemudardesinal-como
veremos.Anarraçãopassou,pois,aparecerintencional,hátáti­
caemseugestodescritivoesensato.Oprocedimentopoderiaser
humorísticoapenas,masjáoparágrafoseguintemostraquenão.
Oanonimatodavoznarrativaéfalso,deixaentrever,aospoucos,
atribulaçãodopaidefamília,esedesmanchanaslinhasfinais,
quandoprevaleceopronomenaturaldatribulação,i.e.,"eu".Pa­
ralelamente,opaidefamíliareconhecea"pessoa"deOdradek:
trata-opelopronomepessoal
(er,ele),enãomaispeloindefini­
do
(es,it),comoaprincípio.Estereconhecimentoassociado,da
existênciadeOdradekedainfelicidadesubjetiva,malescondida
pelafacepúblico-razoável,éoquerestaexplicar.
AssimcomosonegouavidadeOdradek,porumparágrafo
inteiro,opaidefamíliasupõe,agora,queeleesteja"apenasque­
brado"-emboralogoreconheça,erepitatrêsvezes,quenãoé
assim;atépelocontrário,Odradek"parececompleto
àsuama­
neira".Serelemosocontonotamos,atrásdaposturaobjetiva,ou
nelamesma,quesepresta,adifamaçãoimpalpávelmassustenta­
dadeOdradek-naescolhadaspalavras,nareticênciaponde­
radadovezonarrativo.Porquê?
Odradekémóvel,colorido,irresponsável,livredosistema
decompromissosqueprendeopaiàfamília.Maisradicalmente,
comoconstrução,Odradekéoimpossíveldaordemburguesa.Se
aproduçãoparaomercadopermeiaoconjuntodavidasocial,
comoéprópriodocapitalismo,asformasconcretasdeatividade
deixamdeteremsimesmasasuarazãodeser;asuafinalidade
lheséexterna,asuaformaparticularéinessencial.Ora,Odradek
nãotemfinalidade,i.e.,finalidadeexterna,eécompletoàsua
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maneira,i.e.,temasuafinalidadeemsimesmo,semoquenão
hásercompleto.Odradek,portanto,éaconstruçãológicaees­
tritadanegaçãodavidaburguesa.Nãoqueeleestejasimples­
menteemrelaçãonegativacomela:ele
éopróprioesquemada
suanegação,eesteesquematismoéessencialàqualidadeliterá­
riadoconto.
Éelequegarantealcance,umalcanceextraordiná­
rio,aosdetalhesdaprosamiúdaecotidiana;referidosaOdra­
dek,tornam-seopçõesdiantedacultura.
Emescalamodesta,aexistênciautópicadeOdradekésub­
versiva,éatentaçãodopaidefamília.Aexistênciagratuitacata­
lisaascontradiçõesdovocabulárioburguês,queprezamasnão
prezaaliberdade.Compreende-seassimomistôdedesprezoe
invejaqueOdradekdesperta,eportantoatáticadifamatóriado
narrador.Eháoutrosentidoaindaparaagratuidadesedutorade
Odradek:oseuladopropriamentepecuniário,oumelhor,anti­
pecuniário.Odradekéfeitoderesíduos,demateriaisdesclassifi­
cados,semnomeoupreço,eliminadospelacirculaçãosocial.
Éa
imagemextremadaliberdadeemmeioàlidadodecoro:aper­
feiçãodescuidada,masinteiramenteasalvo,poiséfeitaderestos
queninguémquer:"Lumpenproletariat",semfomeesemmedo
dapolícia.Ogestodepreciativodaprosa,apontandoosbarban­
tes,gestoque
édeclasse,éadmissãotácitadaforçaedoesforço
queestãopordetrásdosmateriaisdemaisprestígio-edorisco
deperdê-los.Olugarsocialdavidapacificada,nomapaburguês,
éinconfessável;mas
éolixo.*
Porqueéaimagemdaausênciadetribulações,Odradekatri­
bulaopaidefamília.Asuaviolêncialiterária,entretanto,ahis­
tóriaadeveaumafrase,espantosa-queéocontextodoconto
*Emregimecapitalista,bastaumaformadeutilidadequalquerparaquealgo
oualguémsejamcandidatosa"membrodeplenodireitonomundodasmer­
cadorias"(KarlMarx,DasKapital.Berlim,Dietz,1958,livro
lI,p.436).
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inteiro.Odradek,apósdizerquenãotemcasacerta,ri;comenta
onarrador:"maséumarisadacomosósempulmõesseproduz".
Afrase
énitidamentediversadasoutras.Tempesomaior,porque
éescritacomocorpo.ParadescreverorisodeOdradek,opaide
famíliaabandonaaposturavisual,"objetiva",cujoobjeto
éexter­
noeindiferentepornatureza,eprocuraumaimagemdosenti­
mentointerno:oqueoseparadaalegriadeOdradeksãoospul­
mões.Afrasenãopermitealeituraadistância-aqueonarrador
convida-poiséininteligívelsenãoconsultamosonossocor­
po;oseuterrorestána"verificação"aqueobriga,verificaçãoque
étodapessoal:tomarconhecimentodela,dorisoprodigiosode
Odradek,
étomarconhecimentodesiemmeio àrisadaambígua
aqueonarradornosconduzira.Osentimentodocorpo,limite
diantedalevezainorgânicadeOdradek,dánervorenovadoàdes­
crição,mesmoretrospectivamente.Éocontextoquepunge,éa
restauraçãodaverdadedodiz-que-dizdestaprosa.
AgraçadeOdradekédesumana,eavidahumanaédesgra­
çada.Houve,parece,deslocamentodoproblema:aordemburgue­
sadequesefalavanão
éfatobiológicoepodesersuperada;mas
ospulmões,dequesefalaagora,nãopodem.Torna-sepossívela
leiturametafísica,segundoaqualKafkanãofaladesociedade
algumaemparticular,masdamortalidadeemgeral,daangústia
deterentranhas.Oquedói,aestaescola,nãoéserpaidefamília,
massermortal.Amim,aopçãoentreasduasleiturasnãoparece
livre:fossemortalidadeoproblema,aeternizaçãodavidachinfrim
edeseuscompromissosseriaafórmuladoparaíso;Deusnosguar­
de.Asuspensãodoscompromissosburgueses,poroutrolado,fi­
guradaemOdradek,sustentaoseucheirodefelicidadeadespeito
dapermanênciadamorte.-Umarisada"comosósempulmões
seproduz":ainfelicidadesedimentou-senoprópriocorpo;éa
vidapresente,tornadacorpoirremediável,enãoamorte,quese­
paradavidaopaidefamília.
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Destaperspectiva,explicam-seoparadoxoeaforçasinistra
daslinhasfinais.
Àprimeiravista,écomoseonarradorinvejasse
aimortalidadedeOdradek.Masjávimosqueelanãolhefariasen­
tido;emais,porsuaposiçãonafrase,asobrevidaésecundária,
poisestáqualificadapelo"alémdetudo":"masaidéiadequealém
detudoelemesobreviva,paramiméquasedolorosa".Opaide
famílianãoquersereterno;quersobreviveraOdradek,quer,nou­
traspalavras,queOdradekmorraantes.Naturalmenteéurbano
demaisparadesejaramorteaumserquenãofazmalaninguém,
queécompletoàsuamaneira;masaurbanidadenãoimpedeque
aexistênciadeumtalserlhedoa.Respeitávelportodosostítulos,
opaidefamíliaépartidárioinconfessadodadestruição.
(1966)
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ocinemae Osfuzis
Assimcomonosleva àsavana,paraverumleão,ocinema
podenoslevaraoNordeste,paraverretirantes.Nosdoiscasos,a
proximidadeéproduto,construçãotécnica.Aindústria,quedis­
põedomundo,dispõetambémdesuaimagem,trazasavanaea
secaàteladenossosbairros.Porquegaranteadistânciareal,en­
tretanto,aproximidadeconstruídaéumaprovadeforça:ofere­
ceaintimidadesemorisco,vejooleão,quenãomevê.Equanto
maispróximoeconvincenteoleãoestiver,maioromilagretécni­
co,emaioropoderdenossacivilização.Asituaçãoreal,portan­
to,nãoédeconfrontovivoentrehomensefera.Oespectadoré
membroprotegidodacivilizaçãoindustrial,eoleão,queédeluz,
estevenamiradacâmaracomopodiaestarnamiradeumfuzil.
Nofilmedebichos,oude"selvagens':estaconstelaçãodasforças
éclara.Doutromodo,ninguémficarianocinema.Porestepris­
ma,adespeitodesuaestupidez,resultadestasfitasumanoção
justadenossopoder;odestinodosbichosédenossaresponsa­
bilidade.Noutroscasos,entretanto,aevidênciatendeaseapagar.
Aproximidademistifica,estabeleceumcontínuopsicológicoonde
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