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o
ano 351
A2
Lê atentamente o texto seguinte.
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Dorme Baltasar no lado direito da enxerga, desde a primeira noite aí dorme, porque é desse
lado o seu braço inteiro, e ao voltar-se para Blimunda pode, com ele, cingi -la contra si, correr- lhe
os dedos desde a nuca até à cintura, mais abaixo ainda se os sentidos de um e do outro
despertaram no calor do sono e na representação do sonho, ou já acordadíssimos iam quando se
deitaram, que este casal, ilegítimo por sua própria vontade, não sacramentado na igreja, cuida
pouco de regras e respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele. Talvez
ande por aqui obra de outro mais secreto sacramento, a cruz e o sinal feitos e traçados com o
sangue da virgindade rasgada, quando, à luz amarela do candil, estando ambos deitados de costas,
repousando, e, por primeira infração aos usos, nus como suas mães os tinham parido, Blimunda
recolheu da enxerga, entre as pernas, o vivíssimo sangue, e nessa espécie comungaram, se não é
heresia dizê-lo ou, maior ainda, tê-lo feito. Meses inteiros se passaram desde então, o ano é já
outro, ouve-se cair a chuva no telhado, há grandes ventos sobre o rio e a barra, e, apesar de tão
próxima a madrugada, parece escura noite. Outro se enganaria, mas não Baltasar, que sempre
acorda à mesma hora, muito antes de nascer o sol, hábito inquieto de soldado, […] até que um
leve rumor acorda Blimunda e outro som começa e se prolonga, infalível, é Blimunda a comer o
seu pão, e depois que o comeu abre os olhos, vira-se para Baltasar e descansa a cabeça sobre o
ombro dele, ao mesmo tempo que pousa a mão esquerda no lugar da mão ausente, braço sobre
braço, pulso sobre pulso, é a vida, quanto pode, emendando a morte. Mas hoje não será assim.
[…]
Quando Blimunda acorda, estende a mão para o saquitel onde costuma guardar o pão,
pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tateia o chão, a enxerga, mete as mãos por baixo da
travesseira, e então ouve Baltasar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os
olhos com os punhos cerrados, implora, Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão, por alma de quem lá
tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso, gritou ela, e bruscamente
tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete-Sóis deitou-lhe o braço são, prendeu-a pela cintura, ela
debateu-se brava, depois passou-lhe a perna direita por cima, e assim libertada a mão, quis afastar -
-lhe os punhos dos olhos, mas ela tornou a gritar, espavorida, Não me faças isso, e foi o grito tal
que Baltasar a largou, assustado, quase arrependido da violência, Eu não te quero fazer mal, só
queria saber que mistérios são, Dá-me o pão, e eu digo-te tudo, Juras, Para que serviriam juras se
não bastassem o sim e o não, Aí tens, come, e Baltasar tirou o taleigo de dentro do alforge que lhe
servia de travesseira.
José Saramago, Memorial do convento , Editorial Caminho, Alfragide, 2013, pp. 99- 101.
1. Comenta o relacionamento entre Baltasar e Blimunda, tendo em conta a globalidade do texto.
2. Considerando a excecionalidade de Blimunda, clarifica o significado de «só queria saber que
mistérios são» (ll. 27-28).
3. Seleciona um excerto do texto em que o tom oralizante seja evidenciado pela pontuação,
justificando a tua escolha.