TÍTULO: “Era um arado torto, deformado, que penetrava a terra a deixa-la infértil, destruída, dilacerada.” Arado é um instrumento que serve para lavrar (arar) o solo, revolvendo a terra com o objetivo de descompactá-la e, assim, viabilizar um melhor desenvolvimento das raízes das plantas. Expõe o subsolo à ação do sol, ajudando a aumentar a temperatura e apressar o degelo .
CENÁRIO e CONTEXTO SOCIAL Fictícia fazenda ÁGUA NEGRA – sertão da Chapada da Diamantina. “Torto Arado” destaca-se pela maneira como retrata o sertão baiano e suas complexas relações sociais . A Fazenda Água Negra simboliza a luta histórica dos descendentes de escravizados pela posse da terra, refletindo as desigualdades e injustiças sociais que persistem no Brasil.
RESUMO DA OBRA Torto Arado , de Itamar Vieira Junior , é um romance que se passa no sertão baiano, na fictícia Fazenda Água Negra . A história gira em torno da família de Zeca Chapéu Grande e Salustiana , e suas filhas Bibiana e Belonísia , descendentes de escravizados . A trama se inicia com um trágico acidente na infância que une irrevogavelmente as irmãs, moldando suas vidas e trajetórias . O enredo é construído a partir das narrativas das irmãs Bibiana e Belonísia , além de uma entidade espiritual, oferecendo uma perspectiva polifônica e rica em detalhes culturais.
As irmãs enfrentam a exploração e a injustiça na fazenda, onde os trabalhadores rurais lutam por reconhecimento e posse da terra. A narrativa de Itamar Vieira Junior destaca a resistência dos quilombolas e suas lutas por direitos . Bibiana , a irmã mais velha, forma-se professora e, junto com seu marido Severo, organiza os trabalhadores para reivindicar o território quilombola . A resistência deles resulta em conflitos violentos, expondo as duras realidades da vida no sertão e a luta contínua contra a opressão. O romance apresenta as dificuldades enfrentadas pelas mulheres, tanto no âmbito doméstico quanto social.
SIMBOLOGIA A faca de prata O enredo tem início com um incidente, que é a descoberta de uma faca pelas meninas, em uma mala guardada pela avó embaixo da sua cama. O objeto encanta tanto as meninas que elas querem sentir o seu “gosto” e, com isso, uma delas perde a língua. Fato este que vai torná-las mais unidas, pois uma vai se tornar porta-voz da outra, ou seja, vai aprender no silêncio da irmã as suas vontades, os seus desejos, para transmiti-los à família. Após esse incidente, a faca some e a avó definha até a morte. O símbolo da faca é, frequentemente, associado à ideia de execução, no sentido judiciário, de morte, vingança, sacrifício.
Esse incidente é extremamente significativo para o que será narrado no romance. Uma vez que se trata da trajetória de afrodescendentes, a questão da subalternidade é ressaltada, ao afirmar que “se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade”. A faca “silencia” uma das narradoras do romance.
ESTRUTURA NARRATIVA A estrutura do romance é dividida em três partes , cada uma com uma perspectiva distinta que se complementa . Esta divisão permite ao leitor uma imersão profunda na história e nas vivências dos personagens, proporcionando uma compreensão completa das temáticas abordadas. A narrativa polifônica e a riqueza de detalhes tornam “Torto Arado” uma obra literária excepcional.
3 PARTES – Parte 1 FIO DE CORTE – 15 CAPÍTULOS Narrada por BIBIANA: * Conflitos * Encantamentos * Paisagem social : Sertão * Dependência estrutural
3 PARTES – Parte 2 TORTO ARADO – 24 CAPÍTULOS Narrada por BELONÍSIA: * Seu amadurecimento * História de Donana e do filho * Encantarias
3 PARTES – Parte 3 RIO DE SANGUE – 14 CAPÍTULOS Narrada por SANTA RITA PESCADEIRA: * Encantada * Avanço do café
PERSONAGENS FEMININAS As personagens femininas de “Torto Arado” são marcantes e complexas. Bibiana e Belonísia representam a resistência e a força das mulheres do sertão, enfrentando adversidades e lutando por justiça e dignidade . A narrativa dá voz a essas personagens, destacando suas lutas individuais e coletivas.
Bibiana é a filha mais velha de Zeca Chapéu Grande e Salustiana . Formada professora, ela é uma figura central na luta pela posse da terra. Bibiana representa a força e a resistência das mulheres quilombolas, enfrentando a exploração e organizando os trabalhadores rurais em busca de justiça.
Belonísia , a irmã mais nova, compartilha com Bibiana uma ligação profunda devido a um acidente na infância. Sua narrativa é marcada pela descoberta da própria voz e força. I nicialmente mais submissa, encontra sua coragem e assume um papel ativo na luta contra as injustiças.
Zeca Chapéu Grande é o pai de Bibiana e Belonísia , um líder místico e curandeiro. Ele pratica o Jarê e é uma figura de grande influência na comunidade da Fazenda Água Negra . Sua dualidade entre líder espiritual e trabalhador explorado simboliza as contradições enfrentadas pelos personagens. Severo é o primo e marido de Bibiana , aliado na luta pela terra. Ele representa a força masculina na resistência, apoiando Bibiana na organização dos trabalhadores e enfrentando a violência dos proprietários da fazenda.
REALISMO MÁGICO Itamar Vieira Junior utiliza elementos de realismo mágico para enriquecer a narrativa, integrando crenças e tradições culturais afro-brasileiras . A presença da entidade espiritual Santa Rita Pescadeira conecta o mundo material ao espiritual, oferecendo uma visão profunda da cultura e religiosidade do sertão.
Cresci em meio às crenças de meu pai, de minha avó, e mais recentemente de minha mãe. Os objetos, os xaropes de raízes, as rezas, as brincadeiras, os encantados que domavam seus corpos, tudo era parte da paisagem do mundo em que crescíamos. ( Vieira Junior, 2019, p. 59, grifo nosso).
Jarê Com dois significados: “quase cair ao solo” ou “cortar através”, bastante relacionados com os seus rituais. A religião de matriz africana constituída no Brasil a partir do legado desses povos é o candomblé . No entanto, o jarê , apesar de ter em suas bases a cultura dos nagô, ao se misturar com a religiosidade indígena e com os preceitos cristãos, distingue-se daquela religião.
Foi naquele período, nas festas de jarê que continuavam a acontecer, mais modestas, mas na esperança de se mobilizar o panteão de encantados para que trouxessem a chuva e a fertilidade à terra, que apareceu uma misteriosa encantada, de quem nunca havíamos ouvido falar. Nada se sabia sobre ela entre os encantados que corriam de boca em boca, muito menos havia sido vista se manifestar nas casas de jarê da região. Dona Miúda, viúva que morava sozinha num descampado no final da estrada para o cemitério da Viração, e que sempre acompanhava as brincadeiras em nossa casa, foi quem recebeu o espírito.
Quando ela se anunciou como Santa Rita Pescadeira , os tambores silenciaram e uma comoção tomou conta dos presentes. Era possível distinguir os questionamentos no meio da audiência, se a encantada de fato existia ou não, e por que até então não havia se manifestado, já que aquele jarê era tão antigo quanto a fazenda e os desbravadores daquela terra ( Vieira Junior, 2019, p. 80, grifos nossos).
TEMAS PRINCIPAIS Desigualdade Social “ Torto Arado” aborda de maneira incisiva a questão da desigualdade social . A narrativa retrata a vida dos trabalhadores rurais descendentes de escravizados na Fazenda Água Negra, explorando as relações de poder e a luta pela terra . A desigualdade se manifesta nas condições de trabalho, na falta de posse da terra e nas humilhações enfrentadas pelos personagens, especialmente pelas mulheres.
Mas as batatas do nosso quintal não são deles [...] eles plantam arroz e cana. Levam batatas, levam feijão e abóbora. Até as folhas pra chá levam. E se as batatas colhidas estiverem peque nas fazem a gente cavoucar a terra para levar as maiores [...] Que usura! Eles já ficam com o dinheiro da colheita do arroz e da cana ( Vieira Junior, 2019, p. 45).
TEMAS PRINCIPAIS Resistência e Luta Outro tema central é a resistência dos personagens diante das adversidades. Bibiana e seu marido Severo são exemplos de luta e organização dos trabalhadores para reivindicar seus direitos . A resistência quilombola é uma constante na trama, simbolizando a luta histórica dos descendentes de escravizados pela dignidade e justiça.
TEMAS PRINCIPAIS Tradições Culturais e Religiosidade A obra mergulha profundamente nas tradições culturais e na religiosidade do sertão . A presença do Jarê , ritual praticado por Zeca Chapéu Grande, e das entidades espirituais, como Santa Rita Pescadeira , ilustra a rica herança cultural afro-brasileira e a forma como essas crenças influenciam a vida dos personagens . O realismo mágico utilizado por Itamar Vieira Junior integra esses elementos de forma natural e impactante.
TEMAS PRINCIPAIS Violência de Gênero “Torto Arado” também trata da violência de gênero , retratando as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no sertão . As personagens femininas, como Bibiana e Belonísia , enfrentam não só a exploração econômica, mas também a violência doméstica e social . A força e a resiliência dessas mulheres são destacadas, mostrando suas lutas diárias por respeito e autonomia.
PONTO DE VISTA CRÍTICO Pontos Positivos “Torto Arado” se destaca pela profundidade de sua narrativa e pela maneira como aborda temas sociais relevantes. A riqueza dos personagens e a ambientação no sertão baiano proporcionam uma visão autêntica e envolvente da realidade brasileira . Itamar Vieira Junior utiliza uma linguagem poética e detalhada, que enriquece a experiência de leitura . A integração de elementos de realismo mágico com a cultura afro-brasileira adiciona camadas de significado e complexidade à trama.
PONTO DE VISTA CRÍTICO Pontos Negativos Apesar dos inúmeros méritos, alguns leitores podem achar a narrativa de “Torto Arado” densa e desafiadora devido ao uso extensivo de descrições e simbolismos . A divisão da história em múltiplas vozes narrativas pode causar certa confusão para aqueles que preferem uma narrativa mais linear . Além disso, a violência explícita e os temas pesados abordados podem ser desconfortáveis para alguns leitores, exigindo uma preparação emocional para enfrentar a intensidade da obra.