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About This Presentation

livro


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Pedro Bloch

00
Ire ro

Pedro Bloch

‘iy il je Con, ou

25* Edigäo

Copyright © EDIOURO PUBLICAGÓES S.A.

“Todos 0s direitos reservados e protegidos pela Le 9.610 de 19/02/1998.
E proibida a reprodugso total ou parcial, por quaisquer melos,
sem autorizado prévia, por escrito, da Editor.

Coordenasdo edtoriak Maria de Lourdes Andrade Aradjo
digo de arte: Hamilton Marcos Fernandes
Coordenagdo de pradugáo: Vicente R.Luz
(Coordenagdo de PC?: Armando Gomes
Projeto gré e Eitoracáo nen
Diare Editor e Comercial de Livros LTDA,

Dados Intemacionais de Catalogagko na Publicagio (CIP)
(Cámara Brasilia do Livro, SP, Brasil)

Bloch Pedro, 1914

air me compra um amigo? / Pedro Bloch; |

Hustracbes Teixeira Mendes. Sáo Paulo:
FEsiouro 201

comparta Ihre de orietaçäo de liura
Bobibligraña,
ISBN 85:00 005629

1. Literature infantojuveni L Mendes,
Teixeira Titulo

1083 00-0785

Indice para catálogo sistemático:
Literatur infatojwenil 0285
2 Literatura juvenil 0285

EDIOURO PUBLICACÓES S.A.
Ri de neko
Aus No Jesala, 345 Berceo = 21042230 - lo de neto
Tl: RN EGO 128 = aml 25/84/32 = Fox vendas: (IN) 560-6122 = ama 213
“emai vendasgedouncambr

‘So Paulo
IA Bosque de Saude, 1432 - J orque da Sade» 04142082 ~ Sto Pa SP
"RL DOG) 38693300 - fox vendas: (KT) 55893300 mal 233
‘ema vendspeediouncombe
Tres mnneieurnconde

Bebeto olhou o sinal de träfego. Cor era coisa que con-
fundia mesmo. Confundia só, näo. Via tudo em preto, branco e
cinza mais forte ou mais fraco. O sol náo era amarelo, o céu
no era azul, a mata náo era verde. Na vida do menino tudo era
complicado. Nada se resolvia a favor.

— O menino nasceu de sete meses! - dizia a mae.

Bebeto levou tempo pra descobrir que as criangas nas-
cem de nove. :

Quando quis andar nao houve nem rebuligo. Nao teve
aquele apoio de entusiasmo de todo mundo, gente torcendo,
pai suando comovido, mäe de lágrima na boca de espera, avé
Já aprontando conquista de neto. Náo. Quando tentou o pri-
meiro passo, foi só uma palmada da babá, que estava vendo

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

novela. Andar era coisa errada, pelo visto. Sentiu, mais do que
compreendeu, que pensamento de crianga, no comego, é senti-
mento purinho. E olhe lá!

Bebeto lembrou do dia em que sonhou ter um cachorro só
pra ele, isto j com cinco anos

E explicava:

— Eu náo tenho irmáo. Cachorro serve.

— Cachorro dá hidrofobia — disse a avó.

— Dé o que?!

— Doença!

Mas a gente cuida dele, ué!

— Apartamento náo & lugar pra cachorro! — decreta o pai. —
E sabe quanto um gigante desses custa só em comida?

— Eu quero um pequenininho.

Bebeto dizia petenininho. Precisava corrigir.

— Pequeno é pior ainda. Fica doente á toa.

— Entäo eu quero um amigo. Vocé compra?

O pai, Ronaldo, bem-sucedido administrador de empresa,
mas péssimo psicólogo, explodiu, sem perceber direito o que o
garoto pedia:

— E onde é que a gente vai fabricar um amigo pra vocé?

Bebeto se sentia rejeitado mesmo. A mäe nao tinha tempo
pra ele. Era artista. Nao artista de televisäo. Pintora. Muita gente
dizia até que era muito boa. Pintava umas coisas, com é mes-
mo?... ah, sim!... abstratas.

Aos sete anos e pouco Bebeto chegou a aprender, com certa
dificuldade, o que era concreto e o que era abstrato. Concreto era
coisa de pegar e abstrato coisa de sentir. Nao era bem assim, mas
era assim que ele entendia,

Quando chegou a hora de aprender a ler foi aquele desastre.
Confundia tudo. Misturava. Nao distinguia letra parecida, nem
som parecido. Ainda confundia máo direita e esquerda. Ontem,
hoje, amanhä, em cima, adiante dava pra atrapalhar. A letra, quan-
do comegou a escrever, era toda mal arrumada, de tamanho dife-
rente, torta pra um lado, pra outro, mais forte, mais fraca, fora do

PEORO BLOCH za

lugar. As linhas pareciam montanha-russa, sabe como 6? Falaram
que aquilo era dislexia, disgrafia, disortografia... näo sei que mais.

Nao que ele tivesse decorado esses nomes complicados to-
dos. Que esperanga! Aquilo era dito pela profesora, pela coorde-
nadora, pela psicóloga, pelas vizinhas, pela mae, pelo pai. Só fal-
tava anunciar na televisäo. Viviam botando defeito, poxa!

Ainda quando devia mamar, depois de sair da incubadeira
(um aparelho onde fica, muita vez, crianga que nasce antes do
tempo) náo deu pé. Quando deu pé a mae náo deixou por causa da
estética. Bebeto nao entendia bem. Nao era bem estética, E que
nao podia obedecer a horário. Como é que ela podia ficar ali, de
plantáo, de seio pronto, quando tinha que estudar na Faculdade? —
Filosofia era o nome.

Mesmo que quisesse amamentar, o leite parece que adivi-
nhou e secou logo, de maneira que Bebeto (filho que veio em hora
errada, pois queriam esperar um pouco mais e algo falhou) se viu
cumprindo horário de comer com a baba. Mas o leite vinha sem
maior calor, sem carinho maior, sem voz de máe, sem uma
cançäozinha pra enfeitar o siléncio.

Tudo era assim pra Bebeto, desde pequenino. Tudo tinha
um porém, uma trave, um obstáculo.

Pra encurtar: — se a gente fosse anotar tudo o que acoñtecia,
ia perceber que ele andava assim meio sem certeza, balangando,
tinha pé chato, um sem jeito para pegar as coisas (incoordenagáo
motora, boletim da escola), um mau jeito para desenhar (coisa
que todo menino, mesmo sem Escolinha de Arte, fazia fácil).

Bebeto olhou o sinal. Quando a nossa história comega está
mais aflito que nunca. Sente que tudo com ele sai errado e o mais
errado é ele mesmo. Tem de atravessar a rua, mas as cores do
farol náo Ihe dizem nada: náo vé cor! Cruza quando vé todo mun-
do atravesando a rua. Chega, o coraçäo agitado.

Corre depressa para o elevador. Vai ao sétimo andar. É a hora
da psicóloga. Engragado era o que tinha acontecido na penúltima
sessäo. Ao sair levara cola plástica e a psicóloga explicou:

— Vocé levou a cola porque quer ficar sempre grudado
comigo.

zu PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

Bebeto se espantou:

— Näo, tia! Eu levei emprestado pra colar as figurinhas do
meu álbum.

Bebeto tinha plena consciéncia de que tudo era dificil mes-
mo. A avó resolveu tomar conta dele mas, também, tinha seus
problemas. Cadé tempo? Bebeto pegou umas manias meio dife-
rentes, Ficava agarrado a um paninho, dia e noite, Custou a largar.
Fazia xixi na cama. Roeu unha. Chupou dedo. Teve pesadelos.
Tinha medo de tudo, era demais. Troväo. Escuro nem se fala! De
noite qualquer sombrinha virava fantasma.

E a vovó se justificando sempre. Zulmira era o nome. Viú-
va de senador.

— Todo mundo diz que eu protejo demais o Bebetinho. Só
porque fago as vontades dele? Só porque ele, coitadinho, vive
agarrado comigo? Só porque eu conto histórias de bichos? Só
porque fago ele comer um pouco? O menino tem fastio. Vomita
tudo. Se eu nao cuidasse delet...

Na verdade só cuidava quando náo tinha o que fazer em seu
palacete em Petrópolis.

Mas a grande ambiçäo de Bebeto era a aprovaçäo do pai.

O pai queria ter um filho todo programado. Todo certinho.
Pois náo é que até canhoto o menino era?

—E canhoto € defeito?

— Nada!

Gente! Por ai vocés estáo vendo que a vida de Bebeto näo
era facil!

O mundo que ele via nem colorido era. Nem adiantava com-
prar tevé em cores. E na familia tinha mais gente com o mesmo
problema.

Quando foi hora de aprender a andar de bicicleta, quem
disse?

Era cada tombo deste tamanho! Colegas seus faziam até
esqueite, com malabarismo, coisa de circo, só vendo! Ele, nfo.
Bicicleta era, pro Bebeto, mais arriscado que viagem à Lua pro
Neil Armstrong, que foi o primeiro homem a pisar nela.

No futebol nao dava pé, nem chute. Todo desconjuntado.

tinha equilibrio. Ficar num pé só era faganha impossivel.

A psicóloga fazia ludoterapia, isto &, ele ficava brincando
com uma porçäo de coisas e ela ia dando conta do que aquilo
queria dizer.

Já ia até là sozinho, mas apavorado. Comegara com a gripe
da empregada/baba Mariana. Arriscou, se sentiu perdido. Das
vezes seguintes foi ainda pior que nos primeiros dias da escola,
quando se agarrou à saia da avé e deu aquele show de berreiro.
Era como se estivesse sendo levado pro fim do mundo. A escola,
pra ele, náo era lugar onde a gente faz amigos, brinca, aprende, ri,
canta, desenha, oresce. Náo! Era lugar em que todo mundo era
melhor do que ele, mais forte, sabia mais, podia mais, tinha mais.

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

Professora Helena, compreensiva até dizer chega, captou
no ar o problema do menino. Problema, uma virgula! Os proble-
mas. Plural. Encaminhou, e ele acabou na psicóloga. Pois é.

Naquele dia, Helena, aliás tia Helena, estava contando a
história do Patinho Godó. Foi ainda no jardim.

— Era uma vez o Patinho Godó. Bobo como ele só.

E lá vinha a história inteirinha.

Ora, qualquer crianga se lembraria fácil dela. Mais fácil que
história em quadrinhos do Pateta. Falei?

— Falout

Mas o coitado do Bebeto náo fixava nem o nome do pato,
nem o que ele dizia que fazia e acontecia. Nao guardava as coisas
direito. Baralhava tudo.

O que doeu mais foi o que Toninho disse na hora:

— Esse Patinho Godó parece o Bebeto, tia.

Todo mundo riu.

Quem náo achou graga nenbuma foi o Bebeto. Nem a pro-
fessora.

Infeliz ou felizmente deu pra entender.

Com os olhos cheios de água virou-se para o colega que
tinha dito aquilo. O menino vazia judó. Nem pode ameaçar.

Baixou a cabega e chorou baixinho. Naquela hora queria
ser super-herói, qualquer coisa, pra agarrar O garoto €...

Mas parou com medo até do pensamento.

Olhou, de novo, pro colega e decidiu:

— Vou contar pro meu pai

Quando, a noite, procurou explicar o que tinha acontecido
na escola, papai Ronaldo teve um ataque:

—E vocé náo reagiu?

— Ele... pa... pai... € campeño de judó! (Seu medo já pro-
movera o garoto a campedo).

— Eu näo digo? A senhora precisa cuidar mais de seu filho.
Nao quero filho meu maricas. Daqui a pouco ele vai brincar coña
boneca. E chega!

PEDRO BLOCH

Aquilo era demais pro Bebeto. Saiu correndo da sala e
procurar, desesperado, o paninho que já tinha abandonado. Ni
encontrou.

— Vem comer, menino! - foi o grito que veio da sala.

— Estou com dor de barriga!

E estava mesmo.

Se Bebeto enxergasse cores teria visto que aquele cachor
que sonhava ter era castanho. Mas logo percebeu que poderia
medo até de bicho.

Até de cachorro.

Era demais! Dose pra leño!

Tinha esquecido de uma coisa. A psicóloga mandara di
pro papai ir falar com ela, Nao deu o recado.

Também náo ia adiantar. O papai Ronaldo, apesar de to
o seu modernismo, tinha, simplesmente, horror à psicolog|
Horror!

— Psicologia é chinelo! — dizia. - Chinelo!

Mas Bebeto sabia que náo era verdade. Quando Ihe per;
taram, um dia ele explicou certinho:

— Eu acho que pissicéloga (ele dizia aumentando) é p
soa que tira o medo do coragáo das criangas.

A vida de Bebeto náo era nada fácil, poxa!

apitulto- 2

Bebeto nao conseguia mesmo andar de bicicleta, por mais
que tentasse. O equilibrio necessärio era o que mais Ihe falta-
va. Olhava com admiragáo meninos querendo motocas, na-
dando em campeonato, lutando judó, jiu-jitsu, caraté... mas,
pra ele, tudo era meio impossivel. O mundo ficava como fora.
de foco, uma espécie de televisäo de imagem desregulada. Sabe
como é?

Voltando pra casa começou a olhar, no caminho, uma
porçäo de coisas. Aquela multidáo andando, cada um parecen-
do que tinha passo mais seguro e destino mais certo. Meninos
de sua idade, de riso deste tamanho, interesados pot tudo, mos-
trando coisas na vitrina e querendo outras que nem estavam.

PEDRO BLOCH

O problema do Bebeto crescia. Eu disse problema? Proble-
mas. Plural. Como é que ele ia mostrar o boletim ao pai? Estava
deficiente em quase tudo. Carente. Até na briga, de manhá, quan-
do foi provocado, uma vez mais, e se acovardou num “näo tenho
jeito”, carecia de golpes pra se defender.

— Bebeto! Dé uma chave, Bebeto! — gritavam o Sardento e
a Marcela

— Bebeto! Uma gravata, Bebeto! - zombavam outros.

Bebeto, de chave só conhecia a do banbeiro. E de gravatas,
as do pai, quando tinha a tal de reuniáo, que, fora disso, andava de
roupa esporte.

O pior é que o pai nao se interessava muito pelo seu bole-
tim. E náo ia pedir pra ver. Bebeto, porém, náo podia voltar pra
escola sem a assinatura do pai ou responsável.

Um dia quis saber de um companheiro:

— O que é responsável?

— Nao sabe, ué? Responsável...
dento!

Sardento sabia das coisas:

— Responsável é pai ou mie, ou quem cuida da gente...

—E por que responsável tem que assinar?

— Porque a gente ainda somos pequeno explicou Toninho.

— A gente somos é burrice! - explicou Sardento na “deli-
cadeza”.

E continuou:

— Responsável é a pessoa que gosta da gente, que cuida
da gente, que fala com a gente, que abraga a gente, que ajuda, dá
coisas que a gente gosta.

Bebeto se trancou. Ah, responsável era aquilo? Entáo na
casa dele ninguém era responsével.

É... O jeito era mostrar o boletim pro velho e pedir a assina-
tura, Ou entäo aquele rabisco rápido. Rubrica € o nome.

Ou, quem sabe, mamie... podia...

Rapazes passavam com pranchas de surf. Cada shape! Ti-
nham uma energia incrivel. Só levar aquelas pranchas até o

Explica pra ele, Sar-

NE COMPRA UM AMIGO?

Arpoador j& era uma parada. Imagine dropar! Havia quem pegas-
se onda horas seguidas. Só de pensar no subo que via na televisäo
Bebeto tinha frio na espinba.

E as conversas eram sempre aquelas:

— Sabe, cara? O Dudu foi com o pai pro Havaí.

—Eo Paulinho?

— Também foi?

— Pro Peru. Deve estar numa boa.

— Este fim de semana nós vamos pra Saguá.

— Podes crer!

Mais adiante havia um garoto soltando papagaio. Uma
dessas pipas que parecem pássaros de verdade. Gaivota é o nome.
Aquele menino tinha tanta alegria por dentro que náo sabia o que
fazer dela: gritava, pulava, chamava atengáo, puxava linha, dava..

Júnior, primo de Bebeto, bem mais velho, havia explicado a
sensaçäo que Ihe dava o surf

— Seguinte: — quando fico em.cima de uma prancha estou
dominando a natureza de forma natural, falei?

A turma queria mais dicas.

— A gente está vivendo com muito gueime, computador e
muita máquina. Por isso € que é preciso sentir que a gente nao
controla a natureza só com máquina. A gente pode usar a gente
mesmo.

— Pois é. E mar é perigo.

— Vencendo o mar dä aquela coisa que náo adianta explicar.

— É. A gente se sente livre. Deve ser legal voar como 0
Nestor. Surf no ar. Já calculou a emogäo?

— Visual!

Bebeto pegava palavra daqui, frase dali, náo entendia direi-
to e sonhava acordado. Poxa, meu Deus! Tinha gente que domi-
nava as ondas, que voava, que fazia coisas de nem se acreditar e
ele tinha que fazer forga para controlar uma canetinha á-toa de
escrever.

Tinha ménino que era só músculo e movimento. Menino
sem grilo. E ele tinha que tomar cuidado pra descer escada ou

PEDRO BLOCH

num. chutezinho de nada, isto quando a bola passava por perto,
que no time mesmo ele náo entrava.

— Men pai vai me dar uma bicicleta porque melhorei em
Matemática! — ria um colega.

— O meu vai me mandar pra Disneyländia, sacou? — explo-
dia outro.

— Já fui —explicou o terceiro. — Agora vou fazer excursäo.

Bebeto näo podia compreender direito. Pai que dava pré-
mio só porque o filho melhorava de nota! Ele, se pudesse, estuda-
va dia e noite. O negócio era que esquecia tudo. Era como se
entrasse por um ouvido, ficasse um instante na cabega e saisse
logo pelo outro, sem lugar pra ficar. A cabega de Bebeto estava
entulhada de emoçôes, de sentimentos confusos, de coisas softi-
das e náo comprendidas. Ele e o mundo estavam misturados que
nem quebra-cabeca.

Em casa papai e mamáe ficavam acordados até tarde. Muita
noite jogavam xadrez. Ouviam música. Nao era Roberto Carlos,
náo! Bebeto náo sabia que aquilo era de Bach pra cima. Minto,
Pra cima de Bach náo dá. Era coisa de Beethoven, Mozart, Brahms,
gente desse time. Bebeto ficava acordado, querendo adivinhar a
graga que os coroas encontravam naquela música. Chegavam uma
certa hora e ele náo conseguia pegar no sono. Vinha descalgo dar
uma espiada. Papai e mamäe pareciam gostar. Só que estavam
longe um do outro. Cada um olhando o teto, sorrindo macio e
jogando fumaga do cigarro comprido pro ar. Papai tomava umas
notas, de vez em quando. Mamie punha em ordem papelada de
estudo. Pesquisa é o nome.

Um dia surpeenderam o menino. Um flagra daqueles.

— Que é que vocé está fazendo aqui?!

— Estava... ouvindo... Eu...

A desculpa nao sabia como sair. Esfarrapada.

— Volte pra cama já!

— Náo fiz o dever. Náo entendi.

— Mas esse menino nao entende nada? — berra o pai. E
tevoltado: — Vocé nao tem explicadora, professora particular?

PAZ, ME COMPRA u
— Faltou, hoje.
Ronaldo nao se conteve:
— Está vendo? Nao adianta. Esse negócio que o menino
tem deve ser genético. Tua familia.
— Näo mete minha familia nisso! — zanga a mie.
— Pra cama, menino! Pra cama!
O pior é que Bebeto foi deitar com um problema a mais:
Nao sabia o que era genético.

Pela manhá quis pegar o pai antes dele sair pro trabalho.
Engracado é que nunca tinha visto esse tal de escritério. Só sabia
que o pai tinha secretäria, uma porçäo de pessoas trabalhando com
ele e que, de vez em quando, havia uma tal de conferéncia, Bebeto
precisava da assinatura no boletim. Ainda de pijama supreendeu
© pai tomando mais um cafezinho e fumando cigarro atrás de ci-
garro. Mamie já tinha escapado, quase de madrugada, para a tal
de Faculdade. Na horinha mesmo em que Bebeto ia estendendo a
mio pra mostrar... Ronaldo pegou o telefone e começou a ligar. E
era tanto telefonema, tanta coisa misturada, tanta discaçäo e con-
fusäo, que o menino ficou pensando que talvez fosse até pecado
invadir aquele mundo com seus probleminhas.

— Pode deixar, dona Diva, que depois eu assino — ouviu o
pai dizer.

Mas era isso mesmo que ele precisava! Uma assinatura!

— Papai — esboga ele. Esbogou porque náo disse exatamen-
te papai. Como tudo que dizia ou fazia, era incompleto. Nao se
chegava a ouvir e ouvindo podia ser que nem se entendesse sua
pronúncia imprecisa.

— De pijama a esta hora? — espanta-se Ronaldo.

— Hoje náo tem Matemática. A professora ganhou neném.

— Banho depressa, ponha roupa e depois conversamos. Ta?

Que remédio! Tava!

Tinha que tomar banho frio por causa da asma. Dormia com

PEDRO BLOCH za

travesseiro especial. Tiritou quando a ägua surpreendeu seu
ombrinho mirrado. Escondido dele mesmo (nao havia ninguém
pra testemunhar) acendeu o aquecedor e se deliciou com a caricia
morna.

Mas 0 castigo veio a galope, que nem mocinho perseguindo
bandido. Comegou a espirrar. E era um espirro atrás de outro.
Náo acabava mais. E a falta de ar!

Vestiu-se com a dificuldade de sempre. Náo amarrava cor-
dao de sapato direito. Abotoar, as vezes, era problema, também.

Ao voltar pra tomar café da manhá, ouviu o carro de motor
funcionando. O grito que soltou para reté-lo nem deu pro gasto. O
pai, metido a grande volante, já acelerava que nem garoto com
fusca na máo, e sumia da vista e do ouvido de Bebeto.

O menino sentou-se. Dai a pouco vinha o transporte escolar
e tinba que estar com tudo pronto. As torradas já estavam frias, o
café quase gelado.

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

— Mariana! — chamou.

A empregada, que fora babá, veio da cozinha, já de cara
fechada.

— Que é?

— 0 café

Nem deixou Bebeto acabar.

— Claro que tem que estar frio! O senhor leva duas horas pra
tomar banho! E nem se penteou direito. Já viu sua cara no espelho?

Nao. Näo queria ver. Nao encarava nem as pessoas, nin-
guém, e muito menos sua propria imagem, que the dava idéia de
susto, tristeza, bobice.

Distraído, nem reparou que tinha derramado café na mesa.

— Minha Nossa Senhora! Mas quando é que esse menino
toma jeito!

E Mariana começou a enxugar. Até que no fundo queria
bem ao garoto. No fundo! Falei?

— O transporte já deve estar chegando. Quer que esquente,
Bebeto?

— No, Mariana. Nao dá tempo.

Conferiu, olhando o reloginho, presente da avé. (O engra-
gado é que náo sabia calcular os minutos.)

— Sua avó disse que este fim de semana vocé passa com
ela — informou Mariana.

— Näo quero. Este fim de semana vai ter uma festa dos
meninos da escola. Na casa do Toninho. Já chamou quase todo
mundo! Vai ter um som espetacular.

— Espetacular — corrige a empregada.

— Pois é.

Bebeto hesita:

— Mariana... Dá pra vocé assinar meu boletim?

— Que é isso, menino? Quem assina o boletim & pai ou
mäe. Onde j se viu

Bebeto tenta explicar:

— Nao, Mariana. Quem assina boletim € o responsável.
Vocé toma conta de mim e.

PEDRO BLOCH [o]

— Näo, filhote. Responsável é pessoa da família.

— Vocé já €, Mariana.

Mariana enterneceu.

“Este menino é um problema!”, tinha ela ouvido o paträo
dizer. “É mesmo! Está na psicóloga por isso mesmo”, confirmou
amie. “A gente tem que confiar nos especialistas!”

A buzina tocou.

— Tehau, Mariana!

— Tehau, Bebeto. E cuidado! Levou lápis-de-cor?

— Esqueci! Cadé?

Saiu aos trambolhôes, carregando um monte de coisas e um
coragáo pesando mil quilos.

No terceiro degrau um espirro fez esparramar tudo.

Baixou-se chateado e, chorando baixinho, comegou a jun-
tar livro por livro, folha por folha.

— Leve a merenda! — lembrou Mariana, entregando.

A buzina tocou outra vez.

Aprumou-se, disfargou, foi quase fingindo que estava cor-
rendo e uma düvida Ihe surgiu, de repente, antes mesmo de poder
pisar o degrau altíssimo do ónibus. Dúvida que ia desfazer logo.

Ao entrar deu de cara com o Toninho, que anunciou:

— Minha festa é amanhä, sabia?

— Legal, beleza!

— Vai ter um som bacana mesmo!

— Poxa! Valeu!

—-Só náo convidei vocé porque náo sabe dangar.

— Como é?!

— Sem dangar nem tem graga. Nao se enturma, Vocé náo
acha?

Bebeto engoliu seco. Como é que a gente pode engolir em
seco... uma lágrima?

1 a
C

“apitulo 3

O recreio pro Bebeto era a hora da maior tortura. Todo
mundo comia de tudo e brincava de tudo. Ele, náo. Isto fazia
mal, aquilo Ihe dava urticária, cachorro-quente chegava a mor-
der por dentro. No esporte tinha que maneirar porque ninguém
o queria em seu time.

Na piscina, disfargadamente, só ia pro lado raso. Quan-
do perdia pé o coragáo disparava.

Em conversa de futebol no conseguia entrosar.

— Viu aquele gol? — dizia um.

—E aquele frango do goleiro?... - emendava outro.

Um era Flamengo, aquele era Fluminense, Toninho —
Botafogo.

— E o teu time qual 6? — perguntou o Sardento numa
incerta.

PEDRO BLOCH zu

Bebeto teve que decidir na hora:

— Fla... Flamengo.

— Mentira! Nunca vi vocé lá!

Foi ai que Bebeto se lembrou de que o pai nunca o tinha
levado ao Maracaná. Havia meninos com bandeiras enormes, que
torciam, e ficavam roucos, brigavam e se exaltavam. Pra ele tan-
to fazia. Na realidade seu time mesmo era a Seleçäo. Quando o
Brasil jogava & que ele acendia. E um dia se surpreendeu soltando
um 8000000000000l sem mais tamanho. Se assüstou com o prö-
prio grito e já no gol seguinte, sua voz saiu encolhida, espremida,
quase esganigada.

Ficou tonto com o movimento e a agitaçäo do recreio. Ele
era sobra de todo lado. Sobrava no jogo, na conversa, na piada, no
recreio.

Ao recomegar a aula a professora quis saber:

— Seu Bebeto, onde está seu boletim?

Engasgou.

— Papai náo teve tempo de assinar. Amanhá eu trago.

— Diga a seus pais que a coordenadora quer dar uma pala-

vrinha.
— Sim, senhora!
—E, também, que eles já faltaram a duas reuniöes de pais.
— Sim, senhora!
— E o senhor? Já escolheu o teatrinho em que vai tomar
parte?

— Eu vou... 0 qué?...

— Ah, é verdade! Vocé faltou na quinta passada...

— Gripe.

— Pois é. Vamos ter um teatrinho e cada um vai fazer
uma coisa. Tem gente que vai inventar a histéria, gente que vai
desenhar o cenário, gente que vai representar, iluminar, gente
que vai fazer um monte de coisas... Enfim... Bem. Depois eu
explico. É só pra ficar pensando no que vocé mais gostaria de

fazer, tá?

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

Viu, pela janela, o carro da mie parando e o chofer, seu
Augusto, saltando. Levou um susto daqueles!

No era nada demais. Vinha esperar Bebeto para levá-lo ao
dentista. O pensamento começou a vagar. Toda e qualquer coisa
que ficasse sem solugáo imediata era pra ele um suplicio. Bole-
tim, teatro, deveres... Chi! Tomara que a professora náo cismasse
em chamä-lo pra corrigir Matemática. Mas parccia transmissäo
de pensamento, telepatia. Foi só lembrar e a profesora Helena
quis saber:

— Quem näo fez os deveres de Matemática?

O brago de Bebero se levantou, lentamente, à espera de ou-
tros que se acusassem. Foi o único.

— Nao deu tempo, profesora.

Dona Helena, que já conhecia as dificuldades de Bebeto,
náo insistiu.

— Pode trazer amanhä. Combinado?

PEDRO BLOCH

— Combinado.

O dentista surgiu com aquele sorriso de propaganda de pas-
ta e se pós a mexer na boca do guri.

— Nao tenha medo, meu filho — tranqúilizou. — Nao vai
doer nada. É só flúor.

— Pra que é?

— E pra conservar... Evitar cárie.

— Aaaaah!

O chofer o levou pra casa, furando o rush. Bebeto subiu a
escada da varanda. Abriu a porta depressa. Queria liquidar logo
aquela agonia do boletim. Mamie estava sentada, escrevendo umas
coisas, com uma porgäo de livros abertos e o pai (chegou cedo!)
preparava o fim de semana que ia ser maior por causa do feriado
da sexta.

— Mamie, tem o boletim pra assinar — anunciou o pequeno.

— Fale com seu pai, Bebeto.

— Papai, tem o bo...

— Isto € com sua mäe. Nao vé que estou ocupado?

— Mamie...

Ela acabou erguendo os olhos para Ihe dar atengáo.

Bebeto estende o cartáozinho dobrado.

Lücia assina sem olhar. Devolve. Bebeto respira aliviado.

Mas logo cm cima vem a voz da professora particular, que
já estava esperando, encolhida no canto, mais sumida que o ho-
mem invisivel:

— Deixe ver esse boletim!

Bebeto nao tem saida. Dona Dirce olha o cartáo e franze a
testa. O sorriso se desmancha e a reclamagáo vem montada no
desalento:

— Mas outra vez, menino! Re-cu-pe-ra-gäo!

Disse aquilo, sem querer, como se recuperagäo fosse pala-
vráo. Vai ver que €!

Ai chega a hora do pai explodir:

— Mas eu náo estou dizendo? O menino & um irresponsá-
vel nato!

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

— Ele tem dificuldade — quer justificar a explicadora.

—Eu também tive — grita Ronaldo. - Eu também tive. Só que,
no meu tempo, náo tinha esse negócio de menino ter hora de psi-
céloga, ter desculpa pra tudo, de ficar fugindo da responsabilidade.

E para a mulher:

— Este pirralho vai deixar a tal de psicóloga, hoje mesmo,
entendeu? Dinheiro jogado fora!

Bebeto ensaiou:

— Ela quer, mesmo, falar com o senhor.

— Pra dizer o qué? —urra Ronaldo. — Eu conhego bem a tua
psicologia. Este fim de semana nao vai ter televisäo.

— Ronaldo! — adverte a mie.

— Näo vai mesmo! Menino que tem cuca náo tem nada que
ficar debilóide na base de história de gato e rato, de Tom e Jerry,
Pokemon e náo sei que mais...

— Como náo? — tenta dona Dirce.

— Porque se, ao menos, ele tivesse a esperteza do ratinho
pra derrubar o gato, vá lá! Mas ratinho que náo rói nem queijo,
nao dá! Tenha paciéncia, mas nao dä!

E definitivo:

— Fim de papo! De amanhä em diante nao tem mais esse
negócio de justificar tudo na base do coitadinho. Nada de encon-
trar desculpas pra tudo porque o neném nao mamon direito, por-
que a mie näo tinha leite e porque näo sei que mais... Chega! Pra
mim, chega!

Dona Dirce interveio:

— Mas é preciso que ele seja crianga! É preciso dar a ele
oportunidade de... ser menino! Gastar a infancia!

— Mais crianga do que ele tem’sido, dona Dirce! O que €
que tem faltado a este pingo de gente, além de uma boa surra?
Nada!

Nao havia diálogo mesmo. Nao adiantava. Por mais que
ele, Bebeto, quisesse encontrar uma brecha, uma maneira, uma
ponte, um apoio, uma coisa, para poder ser ouvido, para expli-
car o que sentia, para mostrar que náo tinha culpa... Mas náo!

PEDRO BLOCH za

Papai era uma espécie de super em tudo. Fazia grandes negó-
cios, nadava, tinha náo sei quantas medalhas de nfo sei qué, de
náo sei onde nem quando, brigava até com assaltante que se
metesse a valente (havia derrubado dois que quiseram roubá-
lo), falava idiomas, era de uma saúde incrivel, náo tinha medo
de nada. Náo entrava na cabega dele que nem todos eram assim.
Há gente que é feita só de carne, osso e nervos. Nem todos säo
de ago. Falei?

Mas foi aí que mamáe veio com a notícia que, pela lógica,
deveria aliviar o ambiente.

— Hoje eu nao gostaria de discussöes aqui, Ronaldo.

—E, nao é?

— Nés vamos ter um filho!

A notícia pegou Ronaldo de surpresa. Na mosca.

— Vamos ter o qué?!

— Estou gravida.

— E agora é que vocé vem me dizer isso?!

— Tive prova na Faculdade. Nao deu tempo.

Ronaldo corre para abragá-la mas para no caminho.

— Nós nao tinhamos combinado que...?

— Aconteceu.

— Mas isso nao cai do céu!

— Caiu.

Bebeto näo sabia nem o que fazer com ele mesmo. la agora
Inascer um irmäozinho! Entáo ninguém teria mesmo tempo pra ele. |
E agora? à

A mamäe lembrou que podia ser um choque pro menino:
“Um irmáozinho áquela altura dos acontecimentos!...” Chamou-

e explicou:
— Olha, meu filho. O irmäozinho que vocé vai ganhar...
ode ficar sossegado. Vocé náo vai softer nada com isso. Vai até
ajudar a mamás, entende? Vocé vai continuar o reizinho da casa.

Bebeto engoliu um solugo que estava atravesado na alma.

Naquele momento é que havia descoberto que ele era... como

mesmo?... Ab, sim!... O reizinho da casa.

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

A me o abragou, enquanto Bebeto mantinha os bragos
caídos. A explicadora, dona Dirce, com um parabéns sem grande
emoçäo, pegou da máozinha dele e foram para a outra sala marte-
lar os näo-sabidos.

O reizinho da casa ergueu os olhos cheios de lágrimas.

O Tom e Jerry e outros desenhos que podia ver náo eram

:oloridos... pra ele,
A vida, também, era em preto e branco.

= =)
2 pi
Eng
= [2

A festa na casa do Toninho foi demais. O som era daque-
les e a garotada parecia feita de ritmo.

Sardento estava na paquera. Gostava de Marcela, uma
garota metida a entender de tudo, um sorriso comprometido
com a ortodontia (nem aquele aparelho Ihe tirava a beleza),
cheia de planos e projetos. Queria fazer tudo ao mesmo tempo.

O cabelo Ihe tapava os olhos, constantemente, e o gesto de
dividi-los, de novo, de amansé-los, era característico.

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

Toninho tinha mandado ver nuns sanduiches e salgadinhos.
Refrigerante era por conta da turma. Cada um trazia o seu.

Paula estava que era uma figurinha de táo bonita e colori-
da. Dangava de rostinho colado com o Renato, dono das piores
notas da escola, mas com um papo capaz de derrubar qualquer
um. Sua simpatia coloria sua vagabundagem. Contava coisas que
pareciam mentiras. Só que mentia pra menos. A verdade era sem-
pre maior.

Quando os vizinhos comegaram a reclamar da barulheira,
Renato mandou avisar que música também é cultura. E soltou um
sorriso que desarmou o reclamante, síndico chato e severo e
que acabou aceitando um salgadinho. A coisa esquentou mais que
vulcáo em atividade.

Tudo isto pra Ihes dizer que o assunto geral, no dia seguin-
te, na escola, era a festa do Toninho. Bebeto nao tinha muito a
dizer. Nao tinha estado. Engoliu, com sofrida inveja, cada uma
das palavras, cada um dos comentários, quis saber, timidamente,
como tinha sido e como náo tinha.

De repente Paula estranha e pergunta:

— Por que vocé náo foi?

Bebeto náo quis contar a verdade.

Renato explico

— Näo foi convidado.

Paula ficou de sorriso desmanchado. Seus olhos näo que-
riam entender o que o coragáo náo aceitava.

Toninho correu na explicaçäo:

— Ele nao sabe dançar.

— E isto é motivo?

Bebeto sentiu apoio naquela solidariedade. Uma coisa mor-
na e gostosa passou, por aqui assim, na altura do coraçäo.

Foi só vir o protesto de Paula e todos comegaram a se sentir
meio culpados. Uma vergonha amarela tomou conta da turma
e quando professora Helena quis saber a razäo daquela conversa
e confabulagäo, cada um foi disfargando, botando cara-de-pau e
mudando de assunto.

PEDRO BLOCH

Bebeto voltou andando pra casa, conseguiu escapar do Óni-
bus que ia levä-lo. Queria andar e pensar. Engragado como pensar
faz falta, gente! A vida era táo cheia de coisas pra fazer, de deve-
res de casa, deveres de rua, de náo sei que mais, que náo dava
tempo de botar as idéias em ordem. O pior era quando näo se
tinha nem idéia pra arrumar.

Bebeto resolveu, com certo medo, pensar em sua vida. Ca-
réncia de amor era a coisa. Só que ele náo sabia ainda o que era
caréncia. Sabia o que era falta de carinho, de atengáo. Quis com-
preender o que estava acontecendo com os pais. Nao deviam estar
muito bem, afinados. Papai já náo se despedia da mamäe com
beijo e com voz de antigamente. Antigamente era logo no ano
passado. Estavam sempre discutindo, desde a música até a roupa;
desde uma ninharia até coisas assim meio complicadas como.
como era mesmo o nome?... filosofía. Mamie emendava um ci.
garro no outro, papai escondia sua vida atrás do cachimbo que
passou a fumar. Bem que Bebeto queria surpreender uma conver-
sa que Ihe desse, assim, um claro. Mas quando surgia, eles logo
sussurravam aquele negócio de “diante do menino, nao”.

“Bobagem”, pensava Bebeto. “Adulto tem mania de achar
que crianga nao pega as coisas no ar. Que criança só tem de seguir
as regras, como se só adulto tivesse o certo e o errado na mio?
Criança também tem seu pensamento, sua verdade. Adulto es-
quece muito depressa da criança que foi e só conserva o ruim do
vivido, sentido e acontecido.”

Bebeto, com uma sensibilidade agugada pelas deficiéncias
© caréncias, captava que nem antena coletiva, radar, tudo o que
pairava no ambiente. Nao era preciso dizer. Bastava olhar um fran-
zir de testa, uma mao mais entrelagada com outra, uma musiqui-
nha qualquer na voz e tudo ficava transparente. Como o tal de
pleonasmo. Bebeto tinha aprendido, por acaso, o que era pleonas-
mo. Era uma repetigáo, um reforgo. Era quando se dizia que viu
com os próprios olhos, a cara estava na cara

Á proporgáo que Bebeto pensava, comegava a converter a
tristeza em raiva. Raiva miúda, que raiva grande náo cabia.

ME COMPRA UM AMIGO?

A injustiga constante vinha de imaginarem que ele náo fazia as
coisas porque náo queria e náo porque náo podía.

Recordou várias situagóes em que tinha tentado se explicar:
“Papai, minha letra náo é assim porque eu quero. Eu queria ter
uma letra como a sua. Nao dá, nao consigo.” “Papai, eu näo con-
sigo me equilibrar na bicicleta.” “Mamie, eu náo posso nadar na
piscina funda.” “Eu como com a mio esquerda porque pra mim &
mais fácil.” “Matemática é uma coisa que...”

A resposta, o eco, o que vinha de volta, era encarregar al-
guém de resolver o problema. Bebeto reconhecia:

“É. Pode ser que papai e mamäe nfo tenham mesmo tempo
pra mim. Náo tém culpa. Papai precisa ganhar dinheiro, mamáe
precisa estudar e eu... preciso... O que & mesmo que eu preciso?”

Claro que os pais o amavam. Claro que ele era querido!
Claro que faziam por ele o que achavam melhor. Se o papai náo
Ihe resolvia as coisas era porque pensava que, assim, ia desenvol-
ver mais independéncia. Se a mamäe náo o acarinhava mais, era,
naturalmente, porque náo queria fazer dele um moleiráo, que nem
o Marcio que, até hoje, ainda faz escándalo, com medo que a mae
náo venha buscá-lo no colégio.

Ea raiva de Bebeto foi se transformando em compreensäo.
Mas é duro compreender coisas que machucam a gente... Com-
preendia com o pensamento, mas descompreendia com o senti-
mento.

E a história do irmäozinho?

Papai náo tinha ficado muito feliz com a novidade. Por qué?
Será que quando ele, Bebeto, tinha nascido, também...

Mariana é que, na verdade, cuidava dele. Mesmo tristeza
ele ia chorar com ela. Mariana náo tinha filhos e derramava nele
a ternura que sobrava. Náo que o protegesse demais, mas via um
menino que precisava de alegria, de entrar no mundo, que näo
tinha formado o seu eu, que estava como que tateando, andando
num labirinto, procurando caminho e luz.

Acontece, porém, que o que Mariana fazia náo chegava.
Bebeto tinha uma inveja que nem podia esconder, quando ela Ihe

PEDRO BLOCK

contava das alegrias e da vida que a familia humilde tinha, nos bons
momentos, na casa do subúrbio. Cada coisa conquistada, cada
geladeira paga, cada comida na panela, cada jogo do Maracaná,
era festa, era conversa quente, era vida um pouco melhor.

O caminho pra casa estava se tornando curto, de tanta coisa
que Bebeto queria botar em dia. Agora era só dobrar a esquina e
pronto. O fim de semana prometia coisa.

Subiu a escada da varanda e ouviu vozes. Papai e mamäe
discutiam. No meio daquele bate-boca surgiu, de leve, a palavra
divórcio. Falaram em separagáo. Um pánico, um gelo, tomaram
conta de Bebeto. Quando entrou na sala parecia um fantasma.

O siléncio veio. Pararam.

— Foi bom vocé ter chegado, filhinho — falou a mamás,
pouco depois.

Bebeto estranhou aquele filhinho fora de hora.

— Ah, mas isso é coisa pra se discutir depois do fim de
semana — cortou logo Ronaldo.

E quando Licia comegou a querer explicar ao menino que
há casais que náo se entendem bem, o que náo significa que cada
um deles náo goste muito dos filhos... E que, se por acaso, papai
tivesse que se separar da mamáe — era preciso compreender bem
que era uma questáo de combinar ou náo combinar... E que... E
que... E que... E que...

As explicagóes eram boas. O que Bebeto sentia é que
no era.

— Eu acho prematura esta conversa — cortou O pai.

Bebeto nao sabia o que era prematuro, mas sabia que
doia paca.

ss náo vamos pra fora, pai? — quis saber.

— Claro que vamos, querido! — disse Ronaldo com expan-
sáo excessiva. (Já tinha até esquecido do boletim.) E vai ser o
melhor fim de semana da nossa vida. Vocé vai se divertir muito
com... Nao quer levar um colega?

— Todo mundo já tem programa — entristeceu o garoto.

— Ea sua turma? Vocé nfo está enturmado, menino?

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

— Estou — mentiu Bebeto. — Só que... assim... em cima da
hora... náo dá tempo.

—E por que vocé nao convida seu primo?

— Ele está de mal comigo.

— De mal por qué?

— Porque a gente nunca convida ele, náo 6, pai?

— Näo faz mal — decidiu Ronaldo. — La mesmo temos uma
porçäo de vizinhos com filhos. É só enturmar vocé e pronto. Com-
binado?

É. Parecia fácil. Enturmar era exatamente a sua dificuldade.
Nao que ele náo quisesse. Fazia uma forga enorme para pertencer
a, fazer parte de um grupo, se ligar com os colegas, mas acabava
ficando sempre de fora. Sobrando.

Em casa ou na rua, levava a culpa de tudo. No comego es-
bogava sempre um “náo fui eu”, quando alguma coisa errada re-
caía sobre ele. Agora nem discutia mais. Era de nem acreditar.
Parecia azar. Tudo coincidia para parecer que as coisas que acon-
teciam tinham sido provocadas por ele.

Se éstava tentando arrumar alguma coisa, lá vinham com
“náo deixa cair isso, menino”. Se demorava um pouco mais, cria-
va fama de lento, preguigoso. Se esquecia o que todo mundo es-
quece, era porque (diziam) nunca prestava atengáo. Nao Ihe da-
vam chance de usar sua infáncia em coisas que para um garoto
sáo táo simples, táo banais. E táo importantes.

Bebeto comegou a preparar o que devia levar pro fim de
semana.

Sonhou uns planos.

Mas o sonho desmanchou logo, porque lembrou que tinha
deveres acumulados e que, quando náo compreendia um ponto,
nao adiantava querer estudar o seguinte porque náo dava pra en-
tender.

Mas foi ai que surgiu aquele telefonema. Mariana veio di-
zer que estavam chamando Roberto ao telefone. Bebeto estranhou
alguém querer falar com ele. Quem poderia estar chamando?...
Quem se interesaria por ele? Quem?

0 BLOCH

— Quem é? — quis saber, já com receio.

— Nao sei — informou Mariana.

— Menino ou menina. Pelo telefone náo se reconhece.

— Al6! — sussurrou Bebeto.

— E vocé, Roberto? — veio, do outro lado, uma voz cheia
de vida.

— Quem €? — receou ele ainda.

— Aqui é a Paula. Olha, Bebeto. Vocé pode vir no meu
aniversário na segunda?

— Se eu posso... o qué? — duvidou ele.

— Meu aniversärio. Segunda. E olhe, náo se preocupe. Eu
quero ensinar vocé a dangar. Posso?

Bebeto perdeu a fala.

Nao teve outra saída:

— Pode, sim. Obrigado.

— De nada. Vou adorar, viu? Vou adorar.

O paraíso, por um momento, veio se instalar na alma
de Bebeto.

Mas o paraiso de Bebeto durou pouco.

Foi só comegar a festa de aniversário de Paula e ele se
sentiu meio deslocado.

Paula era um sorriso só. Guiava-o pela mio, apresenta-
va a este e aquele, queria ver se ficava à vontade.

Enquanto foi só de dizer “este é o Roberto” e “prazer em
conhecé-lo” tudo correu mais ou menos.

O terror veio na hora de explodir o som.

— Vou ensinar vocé a dangar— disse Paula, com vozinha
mais doce que o sorriso.

PEDRO BLOCH

E explicou

— Deixa tudo mole, bem descontraido... Assim... E deixa o
corpo ir escolhendo o que ele quiser fazer com a música, entender?

Bebeto se assustou:

— Meu corpo náo obedece.

— E que vocé fica muito amarrado em vocé mesmo. Bota
pra fora a alegría escondida.

— Escondida onde?

Paula náo perdeu a paciéncia:

— Todo mundo tem alegria escondida. Só que nao sabe di-
reito onde.

Roberto arriscou. Deu uns passos pra cá, outro pra lá, suan-
do frio, bamboleou o corpo, deu aquele jeito de cabega de ganso,
na hora de dangar, acomodou o movimento dos bragos pra mar-
car um ritmo pra ele impossível e já ia cruzando a barreira do
som, quando viu todo mundo parando pra ver o espetáculo que
estava dando

Havia gente morrendo de rir. Toninho era uma gargalhada
que náo acabava mais. Marcela nao ria alto, mas escondia o rosto
para que náo se visse o quanto achava aquilo divertido.

Paula morria de pena, mas náo queria entregar os pontos.

De repente começou a torcida do deboche, dirigida por
Renato:

— Be-be-to! Be-be-to! Be-be-to!

E o riso, a gozaçäo, conseguiam abafar até o som que reben-
tava o tímpano de qualquer um.

Enguanto isto ia acontecendo, Bebeto, pra náo pensar na
danga, resolveu recordar o que tinha sido sua vida. Culpa de tudo!

Coisa quebrada, livro sumido, roupa rasgada, perna ralada,
vidro partido... e pronto! Podia até nem ter estado na hora, no dia,
no lugar. Era sempre o suspeito número um, como nas histórias
policiais da televisäo. “Mas nao fui eu! — protestava com uma voz
desesperada. — Juro que náo fui eu!” Adiantava? Náo adiantava
nada. Adiantava coisa nenhuma! Como era sempre a vítima e como
no adiantava discutir, aprendeu, entáo, a aceitar a culpa do

EG PAI, ME COMPRA UM AMIGO?

que acontecia. Que bom se tivesse a coragem de fazer mesmo
o que diziam que ele tinha feito!

Dai a pouco terremoto na China ou furacäo no Japáo tam-
bém iam ser culpa dele. E imaginou um pouco divertido, que so-
pro seu podia dar vendaval e que pisada mais forte de seus pés
fracos podiam fazer tremer a Terra... 8 graus na escala de Richter.
Terremoto pra burro! Tudo que tentasse fazer de bom acabava
também virado do avesso. Era sempre antónimo.

A danga continuava mas Bebeto nao queria pensar naquilo,
nem ouvir o som. Queria ficar longe, o pensamento levando para
outros lugares e coisas.

No dia em que quis plantar uma árvore houve alvorogo da
avé: “Vai ficar imundo! Mexendo com terra, menino?” Mas como
é que se pode plantar árvore sem mexer em terra, gente!?

Pior foi quando quis pegar o baláo caído em noite junina.
‘Uma revolugäo! “Este menino ainda acaba botando fogo na casa!”,
gritou o motorista Augusto. “Mas o baláo está apagado, gente!”
Adiantava explicar? “Náo adiantava.”

No dia em que se aproximou, timidamente, tentanto ajudar
o pai a trocar o pneu do carro, segurando o macaco, Ronaldo gri-
tou logo: “Nao atrapalha, menino! Vai cuidar de coisas de crian-
ga!” Ele só queria participar. Nem que fosse segurando a lanterna.

E como náo tinha jeito, e como nao Ihe davam vez pra ter
jeito, ficou a verdade e a fama e ficou a tristeza de náo ser com-
preendido; ficou a dor de náo poder ser gente como todo mundo.

Na escola era o bode expiatório. Quase todo mundo des-
contava nele: “Foi o Bebeto! Foi o Bebeto! Foi o Bebeto!” Injus-
tiga dói mais em coragáo de crianga que perna quebrada.

Bebeto penava demais. Vejam só se é possível! Qualquer
crianga que se interesa por bicho a gente pensa logo que tem
vocaçäo pra veterinärio; se for por planta, vai ser agrónomo. Mas
quando olhava cachorro ou alface era (diziam) porque estava pre-
parando alguma. Tomara que preparasse. Cadé coragem?

— Be-be-to! Be-be-to!

Voltou a realidade. Estava ali, completamente desconjunta-
do, que nem palhaço de circo sem graga e sem saber dar camba-
Ihota, sem cara pintada e sem sapatáo ou colarinho grande.

Paula dava o maior apoio a Bebeto e náo ligava a mínima.
Ficou firme ao lado dele. Era uma garota de alma limpinha. Toda
ela cheirava a sabonete. Que sabonete ela usava no sentimento
ninguém dizia, mas dava pra ver que era muito perfumado. Náo
sabia na hora se o que sentia por Bebeto era pena ou carinho.
Amor ela náo sabia direito o que era e adulto parecia náo acreditar
em amor de crianga.

— Bebeto, vocé está o máximo!

Era dito de verdade. Só que ele náo conseguia acreditar. Sim.
De certa maneira o máximo, para ele, era o mínimo para outros.

Estava acostumado a ver tudo täo complicado, táo inalcan-
gavel, que até saltar de um degrau para o cháo, para ele, era aven-
tura. Havia garotos que na capoeira faziam coisa de cair o queixo.
Assim, 6! Outros botavam roupas imaculadas de judó, com faixas
de cores diferentes. Ele, náo. Já tinham decretado que tudo nele
era mais complicado, mais cheio de nós. E comegou a olhar o
mundo do mesmo jeito que olhava pra ele mesmo e que olhavam
pra ele. Tudo era perigoso.

- Quando ouvia os jornais da televisäo, com um mundo tio
agitado, táo cheio de problemas, com violéncia, seqüestro, assal-
to, poluiçäo, de pernas pro ar, náo compreendia por que é que
Deus, vendo aquilo täo desarrumado, to fora do lugar, náo corri-
gia tudo que nem professora Helena, quando corrigia os cadernos
dos alunos. O mundo era carente. Nao era só ele, Bebeto, que
precisava de recuperagáo. Todo mundo precisava de reforgo, pra
explicar por que é que nasce sapo e paváo, por que é que nasce
garotáo e menino deficiente.

Na escola havia um menino com olhinho de chinés. Pelo
menos era o que parecia a Bebeto. Era mongolóide. Ouviu dizer
que precisava de professora cuidando mais e que menino assim

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

devia estar incluído, receber carinho. Que todo mundo devia, e
devia mesmo!, participar, colaborar, ajudar, viver junto o que des-
se ou viesse em relaçäo ao futuro de criangas assim. Nao era só
problema dos pais. Era de todos.

Bebeto compreendia, embora crianga, o que aquilo signifi-
cava, o que queria dizer.

Os erros que o garotinho cometia eram celebrados. Qual-
quer tentativa sua era comemorada e aplaudida. Uma mae compre-
ensiva e cheia de luz interior aparecia, de vez em quando, para con-
versar com a orientadora, com a psicóloga, e saía feliz com qual-
quer progresso, mínimo que fosse, que desse sinal de que se esta-
va dando um passo à frente. Mesmo errando pra corrigir depois.

Bebeto queria que entendessem meninos como ele, também.
Sabia que tinha obstáculos a vencer, mas precisava de estímulo,
precisava, antes de mais nada, que acreditassem nele, que perce-
bessem seu esforco, sua luta pra ser como todo mundo.

Na escola também havia um menino operado de céu da boca
furado. Tinha ainda uma fala que estava sendo corrigida. Falava
pelo nariz. A professora explicou que aquilo era coisa que näo
dependia do menino. Ninguém ficava rindo dele. Com o tempo,
exercícios e uma nova operaçäo ia ficar ótimo. E todo mundo
esqueceu. Deixou o menino viver e progredir trangüilo.

Até o gaguinho tinha sido bem aceito. No comego houve
tentativa de imitagáo, de botar apelido, defeito, mas logo se com-
preendeu, quando a professora mostrou que a gente pode tropegar
na fala como pode tropecar no andar.

Tudo era compreendido. Só ele, Bebeto, tirando o que dizia
o carinho de dona Helena, era todo “defeituoso”.

O som parou de repente. Todo mundo aplaudiu Bebeto. Mas
nao era aplauso de aprovacáo. Pra ele aquilo queria dizer que es-
tava dando espetáculo pros outros. É que todos se sentiam supe-
riores a ele. Palhago muito inteligente faz com que pensem que é
bobo e todo mundo fica feliz porque se sente o bacanáo.

PEDRO BLOCH E

— Gostou? — pergunta Paula, com carinho na voz.

Bebeto ergueu os olhos úmidos.

— Gostei — mentiu. — Demais.

Mas sabia que alguma coisa precisava ser mudada dentro
dele para que pudesse olhar a vida pelo lado bom.

Na hora do bolo e do parabéns lembrou que náo tinha trazi-
do presente. Passou vergonha mas Paula fingiu que náo tinha nada.
Tudo bem.

Quando chegou a hora de voltar pra casa todo mundo tinha
carona, menos ele.

Paula ofereceu o carro do velho.

Bebeto náo aceitou:

— É pertinho! Mamie disse que eu posso ir a pé.

— Nao é táo perto assim — observou o doutor Luciano.
— Eu levo.

— Eu também vou — gritou Paula. — Eu também vou!

E foram mesmo.

Só que, ao descer, em vez de entrar em casa, Bebeto resol-
veu continuar seu caminho. Náo sabia pra onde. Mas tinha certe-
za de que náo tinha cara pra ir deitar, sabendo que ninguém em
casa estava com tempo pra ele, pra sua vida, sua lágrima, seu
sentir,

Eram capazes até de reclamar da hora e de sua cara pálida.

Continuou a andar e resolveu testar, com um medo enorme,
se chegando bem tarde, iam se dar conta de sua falta. Será que ele
fazia falta mesmo?

E caminhou pra dentro da noite.

Comegou a imaginar coisas que dariam até enredo pra
fita de cinema.

Quando Bebeto chegou á esquina daquela rua movimen-
tada viu uns garotos com caixinha de papeläo vendendo chi
cletes e pastilhas. Os carros que paravam no sinal fechado eram
quase assaltados pelas vozes do: “Compra um pra me ajudar!”

Passavam carros e mais carros e só de vez em quando,
alguém se decidia a ficar com aquilo.

PEDRO BLOCK ol

O sinal abriu e comegaram a circular de novo.

— Que é que vocé está fazendo af? — perguntou um pirralho,
acendendo cigarro, ao ver Bebeto com roupinha de festa, na rua,
áquela hora.

— Estou dando uma volta...

— Volta? — duvidou o outro. — Pessoal, vem ver o que eu
achei.

Bebeto foi cercado por todos e ficou meio alarmado com a
curiosidade despertada. (Bebeto ia pensando e a história imagina-
da parecia até verdade.)

— Vocé näo se perdeu náo, neném? ~ quis saber uma meni-
ninha toda suja e rasgada, vinda da favela próxima.

—N... naol...

— Que é que menino de familia está fazendo aqui?...

— Vai ver que ele foi “secrestado” e soltaram ele — lembrou
alguém.

— Vocé sabe onde mora? — perguntaram a Bebeto.

— Sei.

—E por que vocé náo vai pra casa? — indaga outro.

— VE primeiro se ele tem uma grana pro refri da gente ri
um todo desdentado.

— Näo tenho.

— Dé uns cascudos nele, logo, que € pra deixar de ser besta...

— Andar na rua sem dinheiro € perigoso, sabia?...

— Tira oreloginbo dele —zombou o primeiro que tinha falado.

— Náo precisa — diz o colega. — O menino € educado. Vai
dar de presente pra gente, náo vai?

O olhar nao admitia recusa.

O relógio deixou o pulso do Bebeto e passou pro outro.

— Está vendo? Educagäo € pra essas coisas — riu o maior.

— Estou gostando da camisa dele — falou a menina.

— Bacana, né?... O que é que está escrito nela?

—Nio sei — fez Bebeto. — É inglés.

— Será? - duvidou o menino do “pano pra sujar pára-brisa”.

—É, sim — garantiu Bebeto.

— Entäo tira pra gente ver. Nao 6, Toquinho?

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

— Faz isso, náo — proibiu o Toquinho. — Váo reparar e a
ente acaba em cana.

O sinal fechou.

Bebeto chamou a atengáo de um velho no volante:

— O que é que vocé está fazendo, a esta hora, garoto?

— Esperando meu pai.

—E ele deixou vocé sozinho, ai?

— Foi só na farmácia. Vem já — mentiu Bebeto.

— Compra um, mogo. Só pra me ajudar.

O homem náo quis conversa:

— Näo chateia, menino! V4 encher outro!

Toquinho se danou com a resposta e, disfargadamente, re-
lsolveu esvaziar o pneu.

O carro seguiu.

— Vocé mora onde? — indagou um que vendia “amendoim-
torradinho-tá-quentinho”.

— Lä embaixo.

— Fugiu de casa - sugeriu, de mansinho.

— Nao. Só pra assustar os velhos.

— Legal, heim? — espantou-se um tal de Fifinho.

— A gente podia até brincar de seqiiestro — riu Toquinho,
esparramando a idéia na cara.

— Brincar, como?

— A gente... Nao viu na tevé?... A gente telefona pra casa
dele... Vocé sabe o telefone, nao sabe?

— Sei.

— A gente telefona pra casa dele e pede um regaste. Nao é
assim?

— Sei la!

— A gente manda deixar na encruzilhada... A gente pode
até pedir cem “paus”.

— Que é isso, bobäo? — debochou o outro. — Regaste é só
de milháo pra cima.

— Milhäo de qué? — quis saber a Zaira.

— Milhäo de milhäo! — bancou sabido o Fifinho. — Milhäo
é milháo e tá falado.

PEDRO BLOCH Li]

Mas Toquinho achou que assim náo dava. Ninguém tinha
milhäo em casa. Resolveu pedir quinhentas “milhas”.

— Assim dá pra desconfiar. Quem é que vai fazer isso por
quinhentos, seu?

— É só pra dar o susto.

Comprou ficha no jomaleiro. Falou no orelháo, depois de
saber o telefone.

— Como é teu nome? - fez um deles.

— Bebeto.

—Tá.

O telefone, do outro lado, atendeu.

— Voz de homem ~ anunciou o Toquinho.

— Quem fala? — quiseram saber.

Toquinho fez voz grossa:

— Aqui ¢ 0 Coralino.

— Sim...

— Olhe. Seu neném está aqui com a gente. Quer ouvir a voz
dele? (Toguinho quase engasga de rir.) - Fala com papai, menino!

Bebeto chega a boca ao fone e solta um aló.

— É vocé, Bebeto? — se aflige o pai. — Onde vocé está,
menino?

Toquinho corta logo:

— O senhor vai deixar o regaste... na.

E explicou tudo.

— ALO! Aló! Quem fala?...

Ronaldo náo queria acreditar. Parecia trote.

— Espere um momento — pediu.

Corren para o quarto de Bebeto. A cama estava intacta. Nem
sinal dele. Voltou ao telefone e explodiu:

— Olhe. Eu pago o que quiser. Mas nao façam nada com
meu filho.

— Se o senhor fizer o que a gente mandar, tudo bem. Aguar-
de nova chamada.

E desligou.

A gargalbada foi geral. Bebeto ficou meio assustado mas
contente por ver que o pai tinha ficado aflito.

Em casa Ronaldo acordou Lúcia. (Tudo isso só acontecia
na cabega do Bebeto.)

—Nio estou entendendo direito. Bebeto foi onde?

— Aniversario de Paula.

— Sabe se ele está 14?

— Deve estar. Que foi?

Ronaldo näo quis adiantar afligáo.

Ligou pro pai da menina.

— AÏ6! doutor Luciano? Aqui é o Ronaldo, pai do Bebeto.
Ele ainda está aí?

— Nao. Acabamos de “deixar ele”, faz meia hora, em
sua casa.

— Aqui?!

PEDRO BLOCH

— Ai mesmo. Por qué?
Ronaldo sobressaltou. Epa!
Desligou, completamente desnorteado.
Onde, diabo, estaria o diabo do menino?
Gritou por ele escada a baixo.
Nao houve resposta.
De repente viu Liicia, a seu lado, aflita.
— Que houve?
— Nao afoba. O Bebeto já devia estar aqui... e náo está.
lecebi um telefonema que parecia trote. Pelo jeito náo era.
— Que telefonema?
— Uma pessoa pedindo resgate pelo Bebeto.
Um grito saiu do fundo de Lricia, lá do canto mais escondi-
da alma.
— © menino foi rap... Já chamou a polícia?
— O melhor é a gente náo afobar antes do tempo. Vocé sabe
mo o Bebeto €.
— Nao. Nao sei — confessou Lucia com incrivel honestida-
— Nao sei como o Bebeto é.
Mariana acordou e soube da novidade.
— Minha Nossa Senhora!
— O que eu náo entendo — se desespera Ronaldo. —...o que
náo entendo é que o resgate eles ainda náo pediram direito.
Lúcia náo compreendia.
— Voz de crianga... Vao telefonar de novo.
Parecia adivinhagáo porque o telefone tocou naquele
tante.
— Aló! — atendeu o pai.
— Sim...
— Quem fala?
— Aqui & 0 Xis-7.
— Xis... o que?
— O chefe, entendeu?
— Que é que vocés estáo fazendo com o meu filho?

PAL, ME COMPRA UN AMIGO?

— Queremos duas milhas... Bota num envelope amarelo e
deixa na caixa de lixo da esquina da rua. Se alguém botar os tiras
no meio disso... o menino vai entrar numa fría.

— Um momento. Deixo o dinheiro lá, mas quando é que eu
vou ter o menino de volta?

— Primeiro a grana.

E desligou.

Ronaldo botou as máos na cabega.

— Que é? — se aflige Lúcia.

— Sé pode ser brincadeira. Voce já viu alguém pedir duas
milhas por um resgate?

—É esquisito!

— Pra mim... quer saber?... isto é coisa do menino mesmo.
Um garoto me telefona e me pede esta quantia ridícula pela vida
de meu filho. Só pode ser piada. Pra mim foi o próprio Bebeto
quem combinou isto.

— Vocé está doido!

— Garanto que ele quer chamar a atengáo, simplesmente.
Olhe, eu náo vou chamar a polícia coisa nenhuma. Vou até a esqui-
na, coloco um envelope com papel rasgado e espero pelos garotos,
escondido.

— Vocé náo vai se arriscar.

— Qual é o problema?

— No faga isso, pelo amor de Deus, Ronaldo!

— Mas que nervos sáo esses?!

— Pelo nosso amor, querido!

— Pelo... qué?!...

A exclamaçäo de Lúcia parecia sincera. Só que ele no pöde
satisfazer o pedido. Pegou um envelope grande, meteu uns papéis
rasgados dentro e saiu correndo em direçäo à esquina. Pelas düvi-
das botou um revólver no bolso.

Colocou o envelope na cesta de coleta de papéis da rua e foi
se afastando, de olho, pra ver se alguém aparecia. Escondeu-se
atrás de um carro estacionado do lado mais escuro da rua.

PEORO BLOCH

Esperou. Ninguém apareceu.

Minto. Apareceu um menino pra perguntar com uma voz
que ele juraria igual à do telefone:

— Compra chiclete... pra me ajudar?

Ronaldo ainda teve que pagar o chiclete e desandou a correr
[pela rua, procurando näo sabia bem o qué.

Quando agarrasse o filho ia Ihe dar uma surra. A maior sur-
Ira de sua vida. Foi ai que ele viu o menino do chiclete se aproxi-

ar do coletor e retirar o envelope. Nem olhou o que tinha dentro.

¡Saiu em disparada, gritando:

— Pessoal! Pessoal!... Mandaram o regaste. Mandaram o
egaste.

Tudo isto passava pela cabecinha modesta de Bebeto. Com

putras palavras, é claro! E a imaginaçäo se enfeitava, que nem

lobisomem.
Decididamente o pessoal, em casa, devia estar sofrendo sua
lemora.

Abriu o portáo de entrada com esforgo.

Subiu a escada.

Entrou na sala,

Papai e mamäe estavam ouvindo música, fumando, na de-
es. O seqüestro só havia existido na cuca de Bebeto. Quando sur-
iu, mal ergueram os olhos. Pra falar a verdade... nem ergueram.

— Oi! — tentou o menino.

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

— A festa foi boa? - fez Lúcia, sem se dar conta, ao menos,

da hora.

— Beleza! — simulou Roberto.

Nem perguntaram com quem tinha vindo pra casa.

— Eu pedi um presente pra levar, lembra? — lamentou-se.

— Nao posso ter tudo na cabega — respondeu a mie
- Posso?

E censurando:

— Devia ter falado de novo.

— Falei.

— Nao ouvi direito.

Acusando:

— Vocé, também, fala com uma voz que ninguém ouve! V4
deitar que amanh tem que acordar cedo

— Amanha?... — estranhou o garoto.

— Vamos pro sítio. Fim de semana.

— Eu... tambem?...

— Mas que pergunta boba, menino! Claro que vocé,
também!

— Estou com uma porgäo de deveres. Recuperaçäo.

O “recuperaçäo” saiu em surdina.

— Há hora pra tudo. Pra brincar e pra estudar.

— Mamäe? Posso comprar álbum de figurinhas?

— Que bobagem é essa, menino! Outro? Um homem deste
tamanho... €...

Lucia lembrou, a tempo, que tamanho faltava mesmo.

— Todo mundo tem, mäe.

— Todo mundo é todo mundo, vocé é vocé! T4?

Ronaldo explode:

— Näo se pode máis ouvir Mozart sossegado?!

A música era Mo... Mozart

—Tá.

Bebeto subiu triste pro quarto. Ficou cismado ainda. De re-
pente, trovoada. De dar susto em fantasma. O relámpago enorme

PEDRO BLOCH

havia anunciado. Depois se multiplicaram. Era uma vez o tal de

uiquende.

Ficou torcendo para que a chuva no parasse. Talvez, as-
sim, pudesse ficar em casa, sem acordar cedo.

Mas os desejos de Bebeto nunca se realizavam. De manhä
surgiu um sol lindo (radioso, & o nome), tinindo de novo. Parecia
de propósito.

— Dez minutos pro café e bola pra frente — ouviu a voz
do pai.

— Vocé dispensou o Augusto? — pergunta Lúcia.

— Claro! Gosto de guiar! — fez Ronaldo.

Quando o telefone tocou, Bebeto chegou a sentir um trogo no
coraçäo. Parecia que estava adivinhando.

E náo deu outra:

— Bebeto! É pra vocé! — gritou Mariana.

Nem quis acreditar.

— Aló!

— Aqui é a Paula.

— Oi, Paula!

— Vocés, também, väo pro sitio?

— Vamos, sim!

— Entáo a gente se vé lá.

Bebeto perdeu o ar.

Ela prosseguiu:

— Olhe. Adorei vocé na minha festa.

Bebeto mentiu:

— Olhe, Paula. Teu presente ficou aqui em casa. Eu

— Nao precisava se incomodar. Que bom que a gente vai
Estar junto, né?

— Tehau!

Ele nao conseguiu dizer mais nada. Desligou.

— Que negócio de presente é esse? Nao há tempo, menino!
Onde é que se vai fabricar presente de manhá cedo?

Bebeto chegou a sentir enjóo.

E agora?

Entrou no carro atrás do pai.

Ninguém reparou que nem café havia tomado.
Encolheu-se no fundo do carro e adormecen.

— Devo estar gravida mesmo - disse Lucia. - Estou come-
gando a querer comer melancia. Lembra?
Ronaldo lembrava, sim. Só que esperava que o novo filho

viesse bem diferente e... Bem. Melhor mudar de assunto.

Quando Bebeto chegou ao sitio, ao passar pela casa de
Paula, nem acreditou no que estava vendo.

Saídos como que por mágica apareceram o Sardento,
depois Marcela, Toninho, Suzana, Renato, Fredinho... a turma
da escola, convidados de Paula.

Marcela corria como coelho, de um lado para outro, que-
rendo... Náo. Náo querendo nada. Era só a alegria do movi-
mento. Sardento, na bicicleta com motor, fazia mil coisas, re-

PAT, ME COMPRA UM AMIGO?

alizava faganhas de espantar. Toninho arranjou logo um cavalo,
saido náo se sabe de onde, que montou sem sela, em pélo purinho.

Paula surgiu trazendo um prato de sanduíches numa mao e
coca na outra. Gostou de ver Bebeto e soltou:

— Puxa! Como vocés demoraram!

Bebeto, a medo, estendeu seu presente. Na parada do cami-
nho, a pretexto de fazer xixi, comprou escondido, com todo o
dinheiro da mesada, uma caixa de bombons:

— Pra vocé!

Lúcia e Ronaldo se entreolharam sem entender.

— Apareça logo! — pediu Paula, mudando de cor de con-
tente. — E obrigada!

Os outros nem prestaram atençäo no que ela dizia. Queriam
era gozar cada instante, saborear a liberdade, gastar vitalidade,
disputar corrida, comida, bola, cavalo, rede, ar puro, tudo. Bebeto
se sentia pigmeu em terra de gigantes. Todos pareciam ser mais,
ter mais, poder mais, fazer mais.

Paula, como quem nao quer nada e querendo, reuniu o gru-
po, depois da agitagáo geral e explicou seu plano com cuidad

— Olha, gente! Eu queria... que vocés me ajudassem
numa coisa.

— Pede! — gritou o Sardento.

— Tu ouviu? — perguntou Toninho a Marcela.

— Tu ouviu é besteira. E vocé ouviu.

— Nao fica me corrigindo, com grito, poxa! Eu ouvo
muito bem.

— Ougo — emendou Marcela, só de má.

— Vamos deixar a Paula falar, tá? — cortou Sardento.

— Quem é que náo tá deixando? — quis saber Toninho.

— Tu! Fica falando que nem... náo sei o qué... €...

— Siléncio! — berra Marcela. - Poxa!... Até parece que be-
beram água de chocalho!

Marcela era de Pernambuco. Ainda carregava um sotaque
muito gostoso e frases que os outros, por vezes, nem entendiam
direito.

PEDRO BLOCH

— Olha, gente! — conseguiu dizer, afinal, Paula. — Eu que-
ria pedir a vocés pra “colaborar”... Pra todo mundo ajudar o Bebeto.

— Ajudar em qué? — espantou Toninho.

— Vocés nao devem botar apelido nele.

— Quem botou?

— Aquela coisa de ficar chamando de Godó, como se fosse
o pato bobo daquela história do primeiro ano.

—E náo é?

— Ele nao tem culpa — explicou Paula. - Roberto tem pro-
blemas.

— Quem tem problemas resolve! — disse Toninho implacável.

— Vocé náo resolve nem conta de somar! — machucou
Marcela, pra ele deixar de ser grosso.

— Vocés ainda náo me entenderam — diz Paula. — Nossa
turma tem que ser que nem os trés mosqueteiros: um por todos e
todos por um. Quem quiser me ajudar levante a máo.

Todos levantaram esperando melhor decifragáo da charada.

— Bebeto & um garoto brigado com a vida, entendem?

— Näo! - responderam em coro. — Bebeto nao briga com
ninguém.

Ela tentou:

— Bebeto nao é como a gente. Nao corre, náo brinca, náo
briga, náo monta, nao anda de bicicleta. A educaçäo dele foi toda
amarrada. A profesora me explicou.

— E que é que vocé quer que eu faga? — indagou Marcela.
— Problema dele!

— Problema de todos nós.

— Os pais dele náo sabem cuidar?

Paula se armou de uma paciéncia deste tamanho:

— Pai, ás vezes, faz as coisas pensando que está fazendo o
melhor péla gente e acaba fazendo o pior.

— Näo saquei — confessa honestamente Sardento.

— Nenhum pai quer o mal de seu filho, né? Nenhum pai
quer filho com defeito. Falei?

— Falou!

za PAT, ME CONPRA-UN AMIGO?

— Mas o mundo é muito complicado. Poluigáo, tecnologia,
essas coisas. O pessoal fica todo baratinado quando vai educar
um filho. Se tem cuidado demais, faz do filho uma crianga que
nem cresce direito. Se tem cuidado de menos... a gente se sente
abandonada. Uma crianga pensa que pode pedir tudo ao mundo.
A outra tem medo até de pedir licenga.

— Saquei o lance.

— Pois é. Eu me lembro de uma história bonita. É a história
de um pai que tinha um filho que nfo conseguia segurar as coisas.
E ele dizia: “Todo mundo quer ter filho doutor, importante, rei,
presidente, sei lä! Eu só queria que meu filho pudesse encher um
copo de água sem derramar”. Essa era a maior felicidade pra ele.
Garoto que pode fazer tudo, ás vezes, se sente sem amor, sem
gente tomando conta. Tomar conta demais é fogo, também.

— Vocé náo tá querendo ser a mäezinha do Bebeto, tá? —
quis tirar dúvida o Toninho, meio no deboche.

— Tou — teve Paula a coragem de confessar. — Tou.

— E que é que vocé quer que a gente faz? — pergunta
Toninho.

— Faga — emendou logo Marcela, só pra chatear.

— Olha, gente. Vamos comegar a enturmar o Bebeto. Va-
mos fazer ele sentir que nós somos a turma dele. Que pode con-
fiar na gente, como se a gente fosse da familia.

— Como?

— Tratando dele como gente. Chamando pra brincar, aju-
dando a aprender as coisas, ajudando.

— Ah, mas eu náo sou baba de ninguém! —repele Marcela.
—Eu, heim! Corta essa!

— Nao é questo de ser baba, sua boba. O que eu que-
ria... O que eu quero é que a gente aprenda a brincar de fazer
alguém feliz. 3

— Como € isso? — espanta a amiga.

Suzana, que andava calada, explodiu:

— Brincar de fazer feliz, sua infeliz!

—E o que é que a gente vai fazer com um cara daqueles?!

PEDRO BLOCH

— Vamos fazer ele acreditar nele mesmo. Dar uma forga
pra ele.

— Acreditar em qué?! — riu Toninho.

E na zombaria:

— Vocé tem cada uma!

— Como é que ele vai acreditar nele mesmo se ele é igual-
zinho ao patinho Godó da história? Náo anda direito, náo nada
direito, nao voa direito, näo corre direito, nao fala direito...

— Pato náo fala, sua boba!

— Ma história ele falou.

Paula transbordou de paciéncia acumulada:

— As pessoas ficam sendo o que a gente pensa que elas säo.

—E como é que a gente vai mudar o pensamento da gente?

—-Náo é preciso mudar pensamento. Ele vai mudando quan-
do as pessoas também váo mudando. Olhem, quando o Bebeto
aparecer, vamos brincar de uma coisa em que ele possa tomar
parte. Um brinquedo que o Pedro inventou: — Brincar de defini-
gäo. Brincar com palavras.

— Que brinquedo mais besta, Paula! Tem graga?!

— Vocé vai ver só a graça que tem.

Mais tarde Bebeto apareceu com todo o seu sem jeito. A
garotada ainda estava no finzinho do lanche.

— Chegou na horinha! — festejou Paula.

— Já lanchei, obrigado! — disse ele.

E toca a gastar siléncio.

— Vem aqui pra perto da gente — sorriu Toninho.

Dava pra desconfiar de tanta gentileza.

Bebeto se aproximou e Toninho esticou o pé, fazendo-o tro-
pegar e cair esparramado no cháo.

Ergueu-se contendo o choro.

— Desculpe. Foi sem querer — riu Zoninho.

— Foi de propósito! — garantiu Sardento.

E deu um tapa no Toninho que era pra ele deixar de ser besta.

Bebeto agradeceu com o olhar.

— Toninho, vocé é antipätico até dizer chega! — gritou
Suzana, revoltada.

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

— Foi sem querer. Juro!

— Vocé é mais impossivel que dar nó em pingo d'água —
juntou Marcela.

Paula resolveu apaziguar:

— A gente pode comegar o jogo de palavras, tá? Vamos,
gente. Atengáo! O que é antipático?

— Eu sei! — gritou Toninho.

— Vocé náo sabe — corrigiu Marcela. — Vocé É!

— Sou o qué

— An-ti-pá-ti-co!

— Se o Toninho &

io pode ser boa coisa — diz Sardento —

Antipático €... Ora! Está na cara!
— Claro que está! Antipatia é um trogo que está na cara!
— Antipático — explica Suzana — € um sujeito de cara =
desafinada. à
— Como é?!
—É um cara que, quando tudo está ótimo com a gente, vira‘)

e pergunta: “Por que é que vocé está táo abatida? Está doente, 6?”

— Isto nao € antipatia. É espírito de porco.

— Antipático é o que náo é simpático — faz Edite, garota:
uruguaia, passando uns dias em casa de Suzana.

— Falou! Mas é até pecado a gente ficar brincando de pi
vras com todo esse sol lá fora chamando.

— Ótimo! — confirmou Paula. — E o que é pecado?

— Pecado — explica Edite em castelhano — é quando
coisa muito bonita quebra dentro ou fora da gente.

— Pecado é tudo que Deus náo gosta.

— Nao gosta, mas perdoa.

— Perdoa, nada!

sem saber que estava repetindo um grande poeta.

— E o que é Deus? = pergunta Marcela.

— Deus é uma coisa que a gente tem dentro da Bente
junta com o infinito.

O pessoal tonteou quando viu que quem tinha dito:
era Bebeto.

PEDRO BLOCH

Bebeto diz mais:

— Deus (e explica quase com medo) —...é... eu acho... tudo
que tem vida. Morte náo é Deus.

Foi aí que o pai de Paula resolveu entrar no brinquedo e a
turma se assanhou.

— O que é injustiga?

— Injustiça — diz Fredinho — é o senhor fazer uma pergunta
dessas a um garoto do meu tamanho.

— Se voce, Bebeto, pudesse pedir uma coisa a Deus o que é
que vocé pedia?

— Eu näo pedia — fez Bebeto, baixando os olhos. — Eu per-
guntava se Ele precisava de mim pra alguma coisa.

E acrescenta quase sussurrando:

—É que eu acho que ninguém precisa de mim... pra nada.

Aquilo passou por alto e só Paula sofreu. Entáo era isso
que ele pensava? Era isso que sentia? Ninguém precisava dele?

— Eu preciso! — garantiu Paula com um sorriso triste.

— Mentira! — murmura Bebeto.

— Preciso, sim! E sabe por qué?

Ele nem tem coragem de perguntar.

Aí ela explica:

— É que vocé vai ser o meu melhor amigo e todo mundo
precisa muito de um melhor amigo.

Bebeto ficou mais iluminado que o Cristo do Corcovado.
Depois comegaram a jogar damas e excluíram, automaticamente,
Bebeto da jogada. Xadrez ninguém se atreveu. Difícil! Quando o
pai de Paula, o doutor Luciano, pegou do tabuleiro e arrumou as
pedras, de repente se viu Bebeto dar o primeiro lance e foi indo,
foi indo... Moveu as pegas, espantou tanto, que, pouco a pouco,
um a um, se foram colocando em torno, cada qual mais perplexo!
O que era mesmo perplexo?

Entáo o ratinho sabia jogar aquilo, poxa?!

Sabia mesmo. Um desses fenómenos. Ele, “deficiente” em
tudo, tinha visto o pai e a máe jogando tantas vezes que, por uma
dessas coisas que ninguém sabe explicar pela lógica, aprendeu
Parecia ter aquilo no sangue. Sei lá!

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

A turma continuou a envolvé-lo, em seu espanto.
— Isto é jogo pra quem tem cuca! — explicou o doutor.
Sardento, como quem náo quer nada, esticou a perna quan-

do o Toninho avançou curioso e este veio se esborrachar no chao.
Sardento tinha vingado Bebeto do tombo.

— Desculpe, foi sem querer! — disse.

E riu na cara do Toninho, na mesma hora em que se ouvia a
voz triunfante de Bebeto, pela primeira vez na vida, gritando:

— Xeque-mate!

O dia seguinte amanheceu com cara de bandido. Dia,
quando zanga, é pior que gente ou fera. A noite tinha chovido
e as estradas ficaram intransitáveis. As gargas, que costuma-
vam dar o ar de sua graga na lagoa próxima, nem se dignaram
aparecer. Tudo que era bicho, inseto, ave, deu cha de sumiço.
E olhando o céu náo era preciso ser nenhum especialista em
meteorologia para prever chuvas. Bastava ver. Ó ela caindo!

Pois bem. Numa hora dessas adulto resolve seu proble-
ma enfiando-se num livro, relaxando (preguiça de adulto é
relax), batendo aquele papo sobre economia e a situaçäo do
mundo, decidindo uns salgadinhos e umas bebidinhas, mais

PAL, ME COMPRA UK AMIGO?

tarde jogando cartas. Até gamáo, um jogo velho como chao, ain-
da era diversäo dos vovós. É o tipo de coisa que jovem nao enten-
de e paga pra näo entender. Náo sabe, nao quer saber e tem raiva
de quem sabe. Gamáo passa a ser mais difícil que computador. É
juma questáo de querer saber ou nao. Nao dá. Nostalgia € apelido
de saudade. Muitos adultos ficam recordando os sambas de Noel,
los cantores do seu tempo, tudo que achavam bacana. Nostalgia
[era coisa que fazia vibrar com aquela música, com aquelas roupas
que, de vez em quando, voltam a ser moda, com mil coisas mais.

Garoto no tem nostalgia. O tempo está perto demais. A
Isaudade precisa de distancia pra crescer. Garoto tem muita forga
¡pra gastar, muita energia acumulada por uma noite de sono e pre-
isa botar pra fora de qualquer jeito

Tudo isso pra dizer que a meninada quando viu o dia meti-
do a “tempo instável com chuvas no decorrer do período”, como
diz o homem da televisäo, resolveu fazer um grupinho, sentar no
chao, bater figurinhas, ler umas histórias em quadrinhos, jogar
gueime, ouvir um sonzinho razoável bem baixinho, pra náo cha-
tear adulto. Nao sei se vocés já repararam que adulto no agüenta
som forte. É só botar um ritmo daqueles e aumentar o volume que
logo aparecem dez pra dar voto contra

— Menino, vé se abaixa isso!

— Que inferno! Vocé fica surdo, neném!

E é aquela luta. De um lado adulto baixando volume e do
outro garoto, disfarçadamente, aumentando.

Na realidade a gente fica até com a impressäo de que meni- |
no náo quer conversar. O som forte € só pra permitir diálogo de
movimento e náo de palavra, 4

Muito bem. Reunidos na garagem, lugar de guardar tudo +3
até menino — ampla e de chäo confortável, a turma levou um papo;
sem perceber que estava abrindo e lavando a alma. 2

Quando Bebeto apareceu, Paula comandou uma salva de
palmas.

O menino levou até susto.

— Joga xadrez e náo diz nada pra gente, heim!

— Deu uma surra no doutor, poxa! Campeäo!

Até o mau-caráter do Toninho näo deu pra falar mal. Sorriu pra
dentro e engoliu com inveja aqueles elogios que náo eram pra ele.

Soltou só um “nós estava esperando vocé” que Marcela
corrigiu no ato.

— Quem é que está acompanhando novela? — quis saber
Paula.

Quase todos;

— Novela e dever náo dá. Cadé tempo?

Sardento explicou que era tanta coisa passada pra fazer em
casa que a escola acabava sendo em casa. Suzana protestou. É
que ele náo estava organizado pra estudar. Vai ver que näo tinha
método.

— Ou entáo a cuca náo ajuda — aventurou Fredinho, pri-
meiro da turma, só pra encher.

— Tá me chamando de burro? - se irritou Sardento.

— Nao. O problema näo é teu. É uma questäo de massa
cinzenta.

— Massa o qué?!

— Depois eu te explico.

Quase sai briga mas Paula, com um jeito que só vendo,
botou paz na área conflagrada. Palavra legal conflagrada, né?

Bebeto se sentiu melhor depois daquela acolhida amiga.
Sentou-se, timidamente, mais pra ouvir que pra falar.

—E os teus velhos? — quis saber Toninho.

— Ainda náo acordaram.

— Poxa!

Bebeto quis logo justificar:

— Papai e mamáe ficam lendo até muito tarde e ouvindo là
a música deles.

— É verdade que tua mae está esperando um irmäozinho
pra vocé? .

—E. Mamäe está gravida.

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

— Eu sei. Ela contou pra minha.

— Irmáo que nasce € chato.

— Chato, por qué?

— Vem tirar o lugar da gente. É tudo pro neném, já viram?

— 0 pior — explica Suzana — é que cles vêm com aquela
conversa de que a gente vai ajudar a criar o irmáozinho e que eles
continuam gostando da gente como sempre e patati-patatá...

— Tem coisa que adulto devia aprender com crianga.

— Por exemplo...

— Psicologia.

— 0 qué?!

— Como entender as pessoas.

— Olhe. Aquele pintor que todo mundo pensa que pode
pintar igual a ele... Picasso, é o nome... disse, uma vez, que toda
criança nasce génio. Quando vira adulto estraga.

— Também náo é tanto assim! Tem adulto que até € gente!

—O que dá raiva - faz Edite— é quando os grandes come-
gam a querer explicar sexo pra gente. Sementinha. Espermatozóide
é sementinha, pode?

— Falou! Outro dia aconteceu uma coisa muito engragada.
Mamie foi me explicar — veja vocé! — que a cegonha ia trazer
mais um bebé pra tia Elza e ficou muito admirada, com uma cara
deste tamanho, quando eu disse: — “A cegonha vai trazer, é? En-
to sáo dois porque a titia está gravida.”

— A gente devia fazer um livro chamado “como criar os
pais da gente”.

Nesta hora Marcela resolveu abrir o jogo, isto é, falar de
coraçäo aberto, francamente.

— Vocés sabem por que eu sou assim toda infantil, esta-
banada, brincando com boneca e querendo carinho?

— Nao!

—É que eu preciso gastar minha infáncia, entendem?

— Como é?

— Quando eu era pequenina todo mundo me adorava, só que
eu näo podia pegar nisso, sujar aquilo, mexer no brinquedo novo.

PEDRO BLOCH

Quando eu ganhava uma boneca nova a mamás queria que eu
tomasse tanto cuidado que um dia tive que gritar: ~ “Mamie, a
senhora quer me arranjar uma boneca de brincar?”

Sardento riu e achou:

— Eu tenho é a mania de saber como as coisas funcionam.
É só me dar um troço que eu possa desarmar e já viu, né?

— Já viu o qué?

Sardento facilitou:

— Olhe. Eu, por exemplo, acho que a gente só sabe das
coisas no mais ou menos.

— Nao entendi.

— Vocé pega um telefone.

— Sim.

— Sabe como funciona?

— Nao.

— Pega numa televisáo. Eu queria que me explicassem como
é que chega ali a imagem e o som, a cor e a música. Nao adianta
me falar em ondas e náo sei que mais, em transistor e sei 14. É
trocar uma ignoráncia por outra. Professor devia explicar até a
gente ficar sabendo mesmo. Papai diz que a gente só esquece o
que nunca aprenden.

— Eu só queria saber uma coisa — juntou Toninko. — Por
que é que a gente lembra de tudo que é personagem de desenho
animado, jogador de futebol, artista de novela, enredo de filme,
resultado de corrida de carro, palavräo, e esquece o que fica estu-
dando que nem um danado?

— Quando a gente gosta de uma coisa, aprende mesmo.
Dona Helena falou que as coisas dificeis säo feitas de uma porçäo
de coisas muito fäceis que as pessoas náo entenderam direito.

— Ai é que está! Matemática, por exemplo, é fogo!

— É que alguém andou fazendo onda que Matemática é
dificil. Bota um professor que mostre como é fácil e vai ver como
vocé aprende logo.

— Papai disse que a quantidade de coisas que a gente pre-
cisa saber, hoje em dia, € de assustar. Quando vocé acaba de saber

ME COMPRA UM AMIGO?

o que uma coisa é... ela já náo é mais aquilo. Falou que... como é
mesmo? Ah! Quarenta minutos... Cada quarenta minutos traz tan-
ta coisa nova no mundo que dá pra encher uma Enciclopédia de
24 volumes.

— Entäo a gente tem que se acostumar a mudar cada dia, a
renovar todo dia.

— Eu acho — explica Paulo — que antigamente os pais da
gente tinham tempo pra gente. Hoje todo mundo estuda e traba-
Tha. Coroa vai pra Universidade. Outro vai fazer curso pra apren-
der de novo aquilo que pensava que já sabia. A gente fica assim
meio perdido que nem antigamente, quando náo havia bússola.

— Os navegadores se guiavam pelas estrelas.

— Hoje a coisa mudou paca. Vocés ouvem todo dia o rádio
dizer que o Aeroporto do Galeäo está funcionando com instru-
mentos. Radar, eu acho. Coisas assim.

— E teus pais, Sardento? Como é que eles säo?

— Meu pai — diz ele — é físico. — Está com bolsa nos Esta-
dos Unidos.

— Que é que fisico faz? — quis saber Toninho.

— Estuda Física, seu burro! — gritou Fredinho.

— Isto eu sei. Mas o que é Fisica?

— Eu näo sou dicionário. Quer saber, procura!

— A professora ensinou a usar o dieionärio. Eu nao sabia
que havia tanta palavra, poxa!

— Tem, sim.

— Cada coisa tem um nome e no mundo tem coisa que nao
acaba mais.

— Pois é.

— E tua mie, Sardento?

— Mamäe está fazendo curso de História da Arte.

— Pra qué? si

— Pra aprender a ver quadro, essas coisas.

— Pra qué? — insiste o chato do Renato.

— Pra saber, né? Todo mundo tem que estar na onda. En-
tender filme que ninguém entende, falar de astro... náo sei o qué.

PEDRO Loch a

— Astrofísica. Papai explicou.

— Que negócio é esse?

— É uma mistura de física com astronomia.

—E o que é que tua mäe já aprendeu de História da Arte?

— Por enquanto eu só ouvi ela contar uma história que ela
acha muito engragada. Ela ia passando em Rio Bonito e tinha um
homem vendendo cestas. Umas eram todas enfeitadas de flores
lindas. As outras eram lisas, Pois bem. Quando mamie perguntou
© prego o homem disse que era tudo igual. “Igual?” “Pois &” ex-
plicou o homem, “Eu só cobro o trabalho. A arte é de graga.”

O pessoal näo pegou muito aquilo. Ninguém riu.

Só Paula, ágil como beija-flor, pegou no ar e esbogou ape-
nas um sorriso, que era pra nao humilhar ninguém.

Chegou a vez de Edite:

— Eu sou a cagula de casa. Em espanhol, se diz benjamim.
Quando nasci meus irmäos já eram grandes e tinham uma porgáo
de vontades. Todo mundo queria cuidar de mim, mas ninguém
tinha muito tempo. Ai eu comecei a me defender... pensando.

— Ué!

— É, sim! Pensar é mais fácil que andar de bicicleta. A
gente devia brincar de pensar. É só treinar, Mas em volta de mim
só tinha adulto. Falavam aquelas palavras todas e eu, sem querer,
ia aprendendo. Quando comecei a usar na rua, na escola, no clu-
be, todo mundo achou que eu era uma garota metida a besta. Juro
que náo era. É que as palavras que todo mundo achava dificeis,
rebuscadas, pra mim eram mais fäceis que as outras,

—E como € que vocé está falando como todo mundo?

—É que eu aprendi a desaprender. Aprendi a esquecer. Nao
uso palavras que väo chamar a atençäo de todo mundo. Só uso o
coloquial,

— Colo... o qué?! — se admirou Fredinho.

— Coloquial é conversa comum, papo de gente, papo de
todo dia,

— Aaaaah!

PAL, ME CONPRA UM AMIGO?

la chegando a vez de Bebeto abrir a alma. O coraçäo ficou
batendo muito porque sentia que estava se aproximando o mo-
mento de falar dele mesmo. Nao tinha assunto. De que é que ia
poder.

—E vocé, Bebeto?

Aquilo foi como se tivesse caído um peso na cabega.

— Eu... o que?.

— Como € vocé?

— Bu acho que... que nasci meio com defeito.

— Defeito todo mundo tem — explicou Edite.

— Pra mim as coisas säo mais dificeis — esclareceu.

— Explica.

— Todo mundo corre bem, né? Pra, correr já é... sei la!

— Explica. Quem sabe a gente pode...

— Eu me sinto assim meio fraco e bobo. Acho vocés todos
muito bacanas... E o pior é que eu fico com inveja.

— De qué?

— De quem sabe as coisas, de quem aprende fácil, de quem
joga brincando, de quem tem coragem.

—E só treinar, né?

— Parece pra vocés, que pegam as coisas na hora. Eu, pra
saber se agúcar é com c cedilha, tenho que quebrar a cabega. Dai
a pouco estou esquecendo.

— Mas tem uma coisa — consola Paula. — Voc& & dos tais
que quando aprendem náo esquecem mais.

—E, depois, eu tenho psicóloga e explicadora — professora
particular.

— Bom pra vocé!

— É, mas náo dá tempo pra fazer tudo que preciso. Quando
chega a hora da leitura, pra mim é mais difícil que prancha desurf.

— Cada um tem facilidade pra certas coisas. Vocé näo viu.
no xadrez?

— Ah, isso qualquer um aprende!

— Aprende uma ova! - estimula Sardento. - Eu nao sei
nem o nome das pedras.

PEDRO LOCA

— Pegas — corrige Fredinho.

— Viu? — confirma o outro, triunfante. — Nao sei nem o
nome das pecas.

— Vocé faz nataçäo, Bebeto?

— Devia, por causa da asma,

— Vocé tem?

— O médico disse que é de nervoso.

—E por que vocé náo pratica nataçäo?

— Fico logo cansado.

— Faz um pouco um dia, no outro um pouco mais. Vai na
piscina lá em casa

Bebeto sentiu um calor gostoso correr por ele mesmo. Ha-
via interesse, havia coisas muito lindas naquelas palavras, naque-
les gestos de amigos, naquela... como era mesmo?... solidarieda-
de é o nome.

Os homens do mundo — concluiu o menino—eram uma coi-
sa só. A gente ama a terra da gente mas sabe que gente € gente em
toda parte.

Professora Helena tinha contado que um grande escritor
brasileiro (Érico Verissimo) um dia teve que encher uma ficha em
que devia escrever nome, idad, nacionalidade e raga. Quando
chegou raça náo teve dúvida e botou: — humana.

É bom mesmo esta mistura de ragas, de ritmos. Por isso
podemos compreender bem todos os povos, gente como a gente,
náo é?

Bebeto, em meio a seus amigos, pela primeira vez se sentiu
gente. Da raga humana. Dentro do mundo. Com trés bilhóes de
criaturas. Um por todos e todos por um.

E pensar, poxa, que toda a garotada de hoje vai pisar a Lua
à toinha, à toinha, facil, facil!

7 Mas näo é o máximo? Poxa!

Capitul o 9

Os meses foram passando e Bebeto náo se via mais como
alguém perdido no mundo. Sabia que cada ser humano tem
seus problemas, maiores ou menores. Ele tinha os dele. Mas,
pouco a pouco, poderia ir se libertando das dificuldades. En-
graçado como, quando a gente acha que pode, acaba podendo
mesmo.

É verdade que náo via o mundo com olhos comuns. Como
náo distinguia a cor que todo mundo vé, passou a sentir me-

PEDRO BLOCH Lo]

Ihor as diferengas de tonalidade. Sabia, pela intensidade maior ou
menor, o que era azul, verde, vermelho ou amarelo. Quando co-
meçou a freqiientar piscina, desenvolveu mais seu jeito de andar e
correr, Isto fez com que quisesse, adivinhem o qué?, aprender um
pouco de flauta. E seus dedos, procurando acertar nas notas, ga-
nhavam maior controle da própria escrita. Sua letra já náo era de
garranchos. Claro que náo era lá essas coisas mas, quando
caprichava, saía até aceitävel. Procurava olhar as palavras escri-
tas como amigas. Conhecé-las pelo jeito, pela arrumaçäo, pela
frase, pelo que queriam dizer. Sua grande vitöria foi no dia em
que Fredinho Ihe emprestou uma bicicleta — com rodinhas. Teve
vergonha de usar mas, de repente, deu um estalo e viu que näo
precisava mais das rodinhas. Sua alegria foi täo grande que soltou
um grito parecido com o de Tarzä.

O cachorro do Sardento Ihe fazia festas e os dois rolavam
no chao como amigos de velha data. O cachorro que sonhava ter
aos cinco anos.

A explicadora se espantava com o interesse despertado. An-
tes, quando Bebeto nao entendia uma coisa, ficava sonolento, triste,
de cabega caindo, de olhar vago. Agora, cada coisa que apren-
dia, era uma vitória. Nao ficava mais preocupado com o que ain-
da no podia nem sabia. Ficava era feliz com cada passo pra fren-
te. Até futebol já procurava treinar, sempre que dava pé. Ainda
náo se achava em condigóes de participar do time da escola, mas
sabia que um dia chegava lá.

Lia tudo que via. Manchetes de jornais na banca, letreiros,
anúncios de televisáo. Pouco a pouco tudo comegou a clarear. As
letras, à proporgäo que se sentia dentro do mundo, mais confian-
te, também passava a ocupar lugar certo no espago. Seu corpo
comegou a se mover, a se deslocar, a sentir seu próprio movimen-
to, a gravar como em videoteipe o que queria ou conseguia fazer.

Um dia foi surpreendido pelo motorista quando, na gara-
gem, ligou o som e comegou a dangar um rock desenfreado, meio
desajeitado, mas já querendo.

— Um dia eu chego lá! — era o que sentia o coragäo Ihe
dizer, se é que coragáo fala. Por mim acho que sim.

A surpresa maior veio quando o pai, sem acreditar em seus
ouvidos, percebeu aquele pedido:

— Quero aprender Inglés.

— O qué, menino? — espantou-se Ronaldo.

— Todo mundo esta estudando.

— Eo seu Portugués?

— Tá melhorando, pai.

— Pra que é que vocé quer estudar Inglés, agora?

— Quero entender as letras... as palavras... das músicas que...

O impulso inicial de Ronaldo foi perguntar “e Portugués
vocé já entende?”, mas freou a tempo.

— Seus colegas entendem as letras que ouvem?

— Acho que náo.

— Entio!

— Já aprendi umas dez palavras só de ouvir: boy, good,
mother, father, coisas assim.

E Bebeto pronunciou quase corretamente.

Mas aí surgiu um problema. A barriga da máe estava cres-
cendo. De tio grande parecia até que ia ter gémeos. O médico
tinha proibido o cigarro e comer demais. Achava que náo devia
engordar. Mas ia fazer uma cesariana. Cesariana, foi explicado
pro Bebeto, é quando o bebé, em vez de sair, naturalmente, como
devia ser, ia ser tirado por um corte feito na barriga da máe e
depois costurado. Suturado € o nome. Uma espécie de operagáo.

Descobriu que ele, também, tinha nascido de uma cesaria-
na. Só que haviam esperado demais.

Tudo estava voltado, agora, para o bebé que ia nascer. Bebeto
náo estranhou muito, porque já estava acostumado a náo receber
carinho.

PEDRO BLOCH 07

Com a ajuda da turma e com a psicóloga ia, aos poucos,
compreendendo e equilibrando.

Mas um dia a injustiga doeu demais.

Foi numa tarde em que mamäe voltava do médico e anun-
ciou que daí a uma semana teria que ser operada.

Bebeto quis tocar o bebé, através da barriga da máe. Mas no
momento em que veio correndo pra abragä-la, tropegon (coisa que
agora só ocorria raramente) e bateu com a cabega no ventre ma-
terno, o que quer dizer, traduzido em mifidos, na barriga da mie.
Ela soltou um grito, Parecia que o mundo ia acabar. Nao acabou.
Mas...

— Isto sáo modos? — berrou. — Este menino náo tem mesmo
jeito!

Bebeto subiu correndo pro quarto. Jogou-se na cama e...
náo chorou. Paula tinha razáo. Quando adulto nao entende a
gente, a gente tem que compreender adulto. Náo é fácil, poxa!
Mas o pior é quando náo se compreende que adulto náo faz as
coisas erradas por querer. Faz porque vive nervoso. Faz na hora
errada, mesmo quando a intengäo € certa. Faz porque... porque...
é adulto!

Ninguém gostava dele. Verdade?...

Bebeto comegou a achar que os pais estavam, 4 maneira
deles, até querendo ajudá-lo, só que o faziam da forma mais de-
sastrada.

Sua raiva náo se acalmou.

— Tudo, agora, vai ser pro neném que vai nascer. Só pen-
sam nele, só cuidam dele e ele ainda nem existe. Nem sabem como
€ a cara dele. Nem sabem que nome vai ter, Gostam de um desco-
nhecido. Gostam de um neném invisivel.

Queria extravasar seu coraçäo machucado. Desceu, lenta-
mente e, se aproximando da mie, explicou:

— Foi sem querer.

— Podia ter machucado o neném.

— Näo foi de propósito. Eu queria abragar os dois. A se-
nhora e o bebí

— Eu ja nfo disse pra vocé náo fazer as coisas táo estaba-
nadamente?

— O que é estaba...

— É afobado, precipitado, sem jeito.

— Mamie, preciso comprar um caderno novo.

— Mande o chofer. Seu Augusto compra.

— Posso ir sozinho. É logo ali.

— Náo tem nada que ir sozinho. Procure acabar os seus
deveres.

— Ja acabei.

Hesitou:

— A senhora quer assinar meu boletim?

Estendeu, com orgulho, o cartáo, onde suas notas tinham
passado por uma melhora surpreendente.

Lücia assinou sem mesmo olbar direito.

— Mamie...

— Que é, Bebeto?

Ele a fitou desconcertado e resolveu:

— Nada.

E se foi. Lécia ficou resmungando:

— Näo acabo nunca de entender esse pequeno.

Mas se surpreendeu ao vé-lo subir correndo aquelas esca-
das. Ué!

— Deu bicho-carpinteiro em vocé, menino?

Bebeto gritou, do alto, triunfante:

— Nao. Estou subindo a escada como todo mundo

Nao deu pra mäe entender. Tinha que terminar, apesar da
gravidez, um trabalho de filosofia, além de retocar um quadro. O
médico falara em tinta. Náo devia pintar nesse período, porque
podia fazer mal pra ela e pro bebé que ia nascer. Nao ligou muito.
Foi para o estúdio e comegou a misturar tintas para terminar um
quadro iniciado e que ia intitular, embora a obra fosse abstrata,
Maternidade.

PEoRO noch Ea

O bebé nasceu, Peso normal. Tudo legal. Chorou logo. Era
menina.

Bebeto foi visité-la. Viu a menina, misturada com muitas
outras, num bergärio. Todas táo iguaizinhas que, a nao ser pelo
azul e pelo rosa das roupinhas, parecia difícil distinguir algo mais.

— Aquela é a sua irmázinha ~ mostrou o papai.

— Qual?

— Aquela ali.

— E mamäe?
— Mame está bem. Quer ver vocé.
Bebeto quase leva susto:

— Quer o qué?!

— Ver vocé. Vamos?

—Tá.

Entraram no quarto. Lúcia, aliviada da preocupaçäo, estava
sorridente. Ronaldo baixou-se pra beijá-la na testa. Parecia que
estava tudo bem.

— Vocé esteve na psicóloga, Bebeto? — indagou Lúcia
sorrindo.

— Estive.

— Ela preparou vocé bem para o nascimento de sua
irmäzinha?

— Preparou... como?

— Explicou que nao havia razôes pra cime?

— Nao. Falamos de uma porgáo de coisas.

— E vocé, como se sente?

—Bem.

— Lembra o que eu falei?

— O qué?

— Vocé vai continuar sendo o reizinho da casa.

— Eu sei que a senhora... vai ter que cuidar do neném.

— Está contente com a irmázinha?

— Estou. (Nao é que estava mesmo?!)

Compreendeu que, apesar do ciúme, apesar de tudo, o bebé
ia obrigar a mamäe a ficar mais em casa...

— Mamie...

— Que é, menino?

— Vocé gosta de mim?

Aquilo saiu sem querer. Quando viu já tinha dito.

Lúcia se surpreendeu com a pergunta.

Na realidade náo vivia manifestando afeto. Ela mesma pre-
cisava que a aprovassem a cada instante. O erro de Ronaldo tal-
vez fosse o de náo Ihe dar aquela dose de palavras doces que fa-
zem bem à alma de cada um. Achava que qualquer manifestaçäo
de afeto era tolice. 5

Hé gente assim. Pensa que qualquer ato de ternura, qual-
quer palavra mais açucarada, é pieguice. Há pessoas que tém medo
de sentir. Talvez porque tivessem sido muito magoadas quando
criangas, quando tentaram manifestar seu carinho e foram repelidas

PEDRO BLOCH

sem querer. Talvez também tivesse ocorrido o problema do filho
mais querido e menos querido. O mais querido se sente um vito-
rioso permanentemente, O menos querido, embora muita vez isso
nem corresponda á realidade, fica como que sobrando na vida e
no mundo, pisando terreno inseguro, areia movediga, como na-
quela fita em que o mocinho ficou preso sem poder sair e afun-
dando cada vez mais.

— Claro que eu gosto de vocé, meu querido!

Abragou-o mas, entre eles, estava o neném, que tinha vindo
para mamar justo naquela hora.

— Quando é que o neném vai pra casa?

— Na quinta.

— Por que é que o papai náo gosta de mim?

Mal acabou de dizer levou até susto com as proprias
palavras.

— Papai tem uma vida muito cheia de trabalho. Garanto
que ele adora vocé. Só que há gente que mostra isso com abrago e
beijo. Outros mostram sentindo. Só sentindo.

—E como é que a gente vai saber, se a pessoa náo fala?

— Estamos falando agora. Está vendo como é bom ter did-
logo? Vocé quase náo se comunica...

— E que vocé e papai estáo sempre muito ocupados — pau-
sa, ~ Sabe que papai nunca me levou no escritório dele?

—O que é que vocé queria 1a?

— 56 olhar. Ver as coisas. Ver como ele trabalha. É meu
pai, né?

— Voce pede a ele.

— Acha que náo vai zangar?

— Claro que ndo!

Mas, apesar do diálogo, apesar do aparente entendimento,
quando o bebé e a mamáe chegaram em casa, só houve tempo
pra cuidar dele. E porque o bebé isso, ¢ porque o bebé aquilo e

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

porque chora, e porque fralda e porque está vomitando e porque
© intestino está desarranjado e porque o leite € fraco (mas todo
leite de peito é forte, é o melhor, explicou a pediatra) e porque a
mamadeira e porque a babá e porque parece que está com febre
e porque é preciso náo fazer barulho com essa flauta, e porque é
preciso descer a escada na ponta dos pés e porque... Uffff!

Parecia que aquele era o único bebé do mundo.

Dava a impressäo de que, subitamente, pai e mie se haviam
dado conta de que Bebeto náo tinha recebido a dose de afeto de
que carecia e toca a derramar dose máxima no recém-nascido.

A menina ia se chamar Irene.

O pior foi quando comegaram a chegar os presentes. Nin-
guém se lembrou de que Roberto também era gente, poxa! Cada
visita trazia uma coisa mais linda pro bebé. Bebeto ficava no ora
veja. Quando se cogitou de escolher padrinhos, lembraram do
melhor amigo do pai, o senador Mendonga, que o tinha até ajuda-
do a subir na vida. Era tio, também. Tio longe.

Bebeto até quis lembrar quem era os seus padrinhos. Dele!
Nao atinou. Tinha, sem dúvida. Mas acontece que náo contava
com eles. Mal se lembravam de seu aniversário, mal conseguiam
vé-lo uma ou duas vezes por ano. E o pior é que, cada vez que o
encontravam, diziam: “Pensei que este menino fosse mais cresci
do. Que idade ele tem, mesmo?” Um dia cruzou com eles na rua,
de carro, e acenou discreto. Náo o reconheceram. O gesto ficou
perdido no ar que nem vóo de passarinho que nao deixa rastro.

— É — pensou Bebeto.— Agora é que a minha vida vai ser...
como é mesmo?... fogo!

E oihou a irmázinha toda enfeitada, que nem bolo de noiva,
no bergo cheio de frescuras e cuidados.

Ninguém se lembrou de que era hora de mandar a ele, Bebeto,
tomar banho. Tinha, daf por diante, pelo visto, que resolver as
coisas sozinho. “Desta vez — decidiu — ninguém vai me obrigar a
tomar banho frio.” Correu pro banheiro. Quis ligar o aquecedor
mas, para surpresa sua, haviam desligado o gäs para que nfo pu-
desse fazé-lo.

PEDRO BLOCH

“Isto é pro seu bem”, tinha advertido o pai.
Claro que era pro seu bem! Mas cadé a palavra de estimu-
10? Cadé que Ihe davam aquela forga? Cadé?

Naquela noite papai voltou de cabega baixa.

Dirigiu-se ao quarto e viu Lucia quase adormecida.

— Que foi?

— Fui falar com a psicóloga.

— Até que enfim!

— Ela me contou coisas do Bebeto.

—Sim...

— Palavra que eu náo sabia o esforgo que o menino estava
realizando para cumprir suas tarefas. Estou me sentindo um
monstro!

— Ele nao tem culpa das dificuldades que tem.

— As dificuldades também säo nossas — confessa o pai.
Hoje é que eu percebi. A gente vive lendo tanta droga que acaba
baratinando a educagáo dos pröprios filhos.

Ele acendeu o cachimbo para meditar.

De repente se ouviu uma flauta, muito baixinho.

Ronaldo sentiu um arrepio. Como é que nunca havia presta-
do atengáo no menino? Tocava flauta!

Nao € que a melodia ia saindo bem?... Havia qualquer coisa
de lamento. Como se o menino procurasse, na musiquinha, tradu-
zir o que Ihe ia por dentro.

Ronaldo subiu a escada devagarinho, degrau por degrau,
com medo de qualquer rangido.

L4 em cima, em seu quarto, com pavor de chamar atengäo,
estava o pequeno Roberto, solto, como ilha perdida no meio do
oceano. Sozinho com seus problemas.

Ronaldo o olhou, sem que o menino pereebesse e, náo sabe
bem por qué, Ihe pareceu que aquele garoto era assim como um
pequeno farol, um farolete, acendendo e apagando e Ihe parecia

ouvir, sem saber de onde, uma voz: Aviso aos navegantes. Hoje
náo há aviso aos navegantes.

Ai ele percebeu. Sim. Havia uma aviso. Náo vinha de farol.
Vinha da música. Era um menino tentando dizer que estava só, tio
só, que precisava de uma voz amiga; muito urgente e muito amiga.

Ronaldo o abragou de surpresa e, pela primeira vez, beijou
o filho um sem-número de vezes, apertando-o nos bragos e com-
preendendo-o como jamais.

Bebeto ficou quase sufocado com aquele acesso de ternura.
Quis acarinhar o pai, mas no rosto deste só encontrou lágrimas
correndo... correndo... correndo..

— Bebeto, meu filho!

— O que é, papai? Que foi? Aconteceu alguma coisa com o
neném?

Lapíitulo-

Paula ligou o som e todo mundo comegou a dangar.
Toninho se espalhou logo. Sardento desconjuntava o corpo in-
teiro. Marcela, Fredinho e Edite pareciam estar levando cho-
que na agitagäo frenética que realizavam. Suzana resolveu dar
uma de camped olímpica numa cambalhota no ar.

Bebeto olhava aquilo com prudencia. la entrar, a qual-
quer momento, na danca, mas precisava juntar mais forga.
“Afinal de contas o que é que ele arriscava?”, pensou. O máxi-

PAL, ME car

mo que podia acontecer era o pessoal achar engragado. Mas tinha
comegado a ver a turma com olhos táo amigos que achava que
ninguém estava ali pra botar defeito. Crianga, as vezes, diz a ver-
dade na cara. Náo tem pena. Mas quando sabe onde tem o nariz,
conhece a hora e a vez de fazer as coisas no direito

Num “plinct” Bebeto entrou na danga. Plinct foi a palavra
que ocorreu. Nao queria dizer nada mas, pra ele, significava uma
espécie de estalo, velocidade.

— Já estava demorando, Bebeto! — gritou radiante Paula.

E comegou a dar passos com ele. Quanto mais ela compli-
cava, mais ele procurava acompanhar. Nao era demonstragäo pra
ninguém. Era pra ele mesmo, entendem?

— Claro!

Bebeto sentiu o prazer de poder acompanhar o grupo de
amigos que cram agora quase irmáos. Irmäos escolhidos a dedo.
Mesmo o Zoninho náo era tio mau assim. Vai ver que tinha pro-
blemas.

Sardento resolveu dangar de rosto colado com Marcela.

— Tá na paquera! — gritou Fredinho. — Tá na paquera!

— Falou! - explodiu em coro a turma toda

Depois veio a hora do conjunto. Violáo elétrico, bateria, flau-
ta e um trogo que náo sei bem como se chama. Também tem cada
instrumento que a gente fica sem saber, mesmo!

E já adivinharam quem estava na flauta, náo &?

Quando o som parou um pouco e chegou a mesa dos doces
e dos sanduíches (a festa era só pros garotos) quem vocés pensam
que Paula foi servir logo-logo? Pois &. Adivinhöes, heim?

Mas o bom, mesmo, foi quando papai Ronaldo resolver
chamar Bebeto e, metendo-o no carro, rumou pra um lugar que o
menino náo tinha visto nunca: o escritério dele.

‘Ao entrar, uma tal de dona Diva veio logo correndo e que-
rendo saber quem era aquela graga de menino. Foi assim mesmo
que ela disse: “graga de menino”.

PEDRO BLOCH

—É o meu filho Roberto.

O bem que aquilo fez näo estava no mapa. Sentiu, na voz do
pai, uma espécie de orgulho, uma coisa que a gente nem explica
com palavras.

Foi apresentado a todos os companheiros de trabalho. Fes-
tejado por todo mundo. Mas quase perde o fólego, mesmo, quan-
do ouviu Ronaldo dizer:

— Vocés me desculpem, mas eu e meu filho, hoje, vamos
ao Maracaná.

Bebeto mudou de cor. Náo sabia onde esconder sua feli-
cidade que saía por todos os cantos. Maracaná?! Poxa! Era dia
de Fla X Flu!

— Aqui está sua bandeira, meu filho!

Bebeto ficou vidrado:

— Como é que o senhor sabe que eu sou Flamengo?

— Ué! Vocé...

— Eu nunca disse pro senhor!

— Está na cara.

— Mamie é Botafogo.

— Teu padrinho é Fluminense. E dai? Cada um torce pelo
time que bem entender. Olhe, menino! Telefone pra sua mäe e
pergunte pela sua irmá. Diz que nós dois vamos chegar tarde em
casa, hoje. Pra ela náo se preocupar. .

É confidencial:

— Mulher vocé sabe como é. Fica preocupada à toa.

O Maracaná era uma festa de cor, fogos e gritos. Pipoca,
sorvete, cocá e torcida se misturavam nas máos de Bebeto.

Tinha medo que aquilo fosse sonho. E parecia mesmo.

De repente aquele berro da multidäo e pai e filho saltam
juntos num grito sem fim como o daquele locutor que parece que
tem fölego de quilömetros:

PAL, ME COMPRA UM ANIGO?

— G00000000000000000000000l!

Bandeiras se agitam. Gente brigando. Uns caras caindo so-
bre os outros. Xingamentos para o juiz divididos com os berros
de impedimento.

Quando o jogo acabou Bebeto e Ronaldo desceram e foram
procutar o carro, estacionado longe. Os dois apostaram corrida e
o pai näo sabia que estava com to pouco fôlego de tanto fumar.
Bebeto ganhou na honestidade.

Voltaram pra casa entre gargalhadas e mil comentários.

Ao chegar encontraram a mamáe na sala e o bebé ador-
mecido.

—Posso dar um beijinho na Irene? — pergunta Bebeto, mui-
to sincero.

— Se no acordar, pode — faz Lúcia com um carinho novo.

Ronaldo respirou fundo e acendeu um cigarro (mas se lem-
brou da corrida até o carro na aposta com o filho e como o cigarro
estava Ihe prejudicando), soltou aquela rodela de fumaga que
extasiava Bebeto quando menor e apagou-o. Talvez para sempre.

— Minha filha, foi um jogo sen-sa-cio-nal! Nao foi, Bebeto?

— Se foi! A senhora vai ver os gols na televisäo.

— Hoje — confessa Ronaldo - comecei a aprender a ser pai.
Pai profissional.

E fingiu comegar uma luta com Bebeto, rolando com o ga-
roto pelo chao.

Quando a professora particular, dona Dirce, foi dispensada,
ficou radiante:

— Eu mesma ia propor. Acho que o menino, agora, já pode
estudar sozinho.

— Eu estudo com a minha turma — esclareceu Bebeto.

— Está realizando progressos e, se ficar com aulas extras,
só vai se cansar sem necessidade.

— Obrigado — agradeceu o menino. ~ A senhora é legal.
Me ajudou muito. i

— Vocé acha mesmo, meu filho?

— Poxa! Ainda pergunta? Até em Matemática!

Dona Dirce saiu emocionada e convencida de que cumprira
a missäo,

Quando Bebeto subiu pro quarto, Ronaldo ficou conversan-
do com Lücia.

—A gente passa anos sem conhecer o proprio filho, näo é?

— A culpa näo € só da gente. É da vida. Do mundo. Sei lá!

— Näo - repeliu Ronaldo. — O mundo é o mesmo. A vida é
a mesma. Só que a gente tem de perceber onde está errando.

— A gente joga a responsabilidade nas costas do médico,
do psicólogo e esquece que toda crianga precisa é da gente mes-

mo. Passamos horas e horas trocando nosso filho por Beethoven e
Bach.

— Quando a gente pensa... que... náo é a quantidade do que
damos aos meninos que importa... mas a qualidade... E eles pe-
dem to pouco!.

— A gente precisa aprender a se dar mais.

— Quase que a bomba estoura. Nós mesmos, cada um de
nós, lavava as máos da responsabilidade e jogava a culpa um no
outro. Mas ninguém tinha culpa de verdade. A culpa era näo com-
preender, náo pensar, náo ver.

— Quase que a gente se separa. Já pensou?

— Separar pode ser da vida. Só que nao tínhamos motivos
pra isso, a no ser o fato de nunca termos olhado o que realmente
importava.

Conversa vai, conversa vem e os dois comegaram a sentir o
quanto precisavam um do outro, sem que cada um deixasse de ser
um. Respeitando o que cada um era, fazia ou sonhava mas, ao
mesmo tempo, sonhando, também, juntos.

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

— O menino já disse a vocé o que vai ser?
— Näo importa. O importante, pra comegar, é que ele se
sinta gente. Feliz.

O time do colégio estava formado. Bebeto tinha ficado na
reserva.

Comegou o jogo contra o time da escola rival.

Só vendo como jogavam! Uma coisa! Metidos a pelés,
faziam mil driblagens, malabarismos com a bola, cabegadas,
centravam, passavam, um espetáculo!

Bebeto olhava os colegas. A inveja, agora, já náo tinha lu-
gar maior dentro dele. É que superara tanta dificuldade que o im-
portante pra ele era saber que podiam contar com ele. Estava na
reserva, no banco, mas firme, pronto pra entrar em agáo. Daí a
pouco deu-se aquilo. Toninho deu uma cabegada no Xexéu, do
clube adversärio e recebeu o troco, com juros e correçäo monetá-
ria, na hora, e ficou estendido no campo.

Bebeto foi chamado pra substituir, enquanto Toninho cra
socorrido. Bebeto veio de mansinho, como náo querendo nada,
devagar, sem pressa, naquele jeito que vira na televisäo quando
jogador aparece em cámara lenta e chuta, no replay, a bola na
rede. Foi passando pros companheiros, foi pasando; náo segura-
va, dava chance pros amigos, sabia que daquela distancia nao
adiantava chutar porque nunca acharia a porta do gol. Pouco a
pouco o jogo foi esquentando, a partida comegou a subir. Já havia
uma torcida organizada gritando por Sardenio que fazia misérias
em campo. Outro que se destacava longe era Fredinho, envergando
uma camisa 10 com um orgulho enorme estampado no rosto e
ajudando a corrida. —

Bebeto foi se colocando, se colocando... Recebeu um passe
de Sardento, que avangou, esperando que Bebeto Ihe devolvesse
abola mas de repente, Bebeto percebe o gol vazio, desguamecido,
no avango displicente do goleiro.

PEDRO auoch [5]

Vislumbrou... Sim! Vislumbrou é a palavra, na torcida, a
carinha sorridente de Paula gritando “Bebeto, Bebeto, Bebeto!” e
náo teve dúvidas. Concentrou todos os anos de sofrimento naque-
le chute, colocou no pé toda a forga do sentir e do pensar, botou na
chuteira toda a alma de um craque que sonhara ser e centrou.

— G000000000000000l!

O pequeno estádio veio abaixo.

— Go00000000! de Bebeto. Goooo00000l de Bebeee-t0!

“Ah, meu Deus!” — pensou o menino. “Mew pai aqui!”

Estava adivinhando a cara de orgulho que o pai usaria pra
ocasiáo.

Virou-se pra receber o abrago dos companheiros, Teve ver-
gonha de dar uma corrida e ficar com o brago socando o ar, como
um craque de verdade. Mas no que ele vira, está Ronaldo, o pai,
sentado ao lado de Paula e gritando com ela, com uma voz que já
vai enrouquecendo de tanto berro:

— Be-be-to! Be-be-to! Be-be-to!

PAL, NE COMPRA UN AMIGO?

As lágrimas de Bebeto, agora, sáo riso líquido. Choro tio
feliz que até dá gosto!

E 0 jogo continua. Bebeto sai e deixa lugar pra outro que
está no banco, á espera de sua chance.

Senta-se ao lado do pai e de Paula e declara, modesto, dian-
te dos elogios gerais:

— Futebol é sorte!

E cresceu aos olhos dele mesmo.

NI

|

Japitulo- 11

A professora anunciou que um aluno transferido de ou-
tra escola ia ser coleguinha de classe.

O menino apareceu. Bebeto teve um choque. Nao & que
era como se fosse uma cópia do Bebeto de antigamente? Anti-
gamente era quase ontem. Acanhado, mirrado, com medo de
olhar as pessoas nos olhos, andar vacilante, roupa desajeitada,
cabelo que näo assentava direito, tudo gritava que o menino
era problema. Problema, náo — protestava o coraçäo de Bebeto.
O menino era gente... com um problema ou vários, mas antes
de tudo, gente.

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

— Vocés váo receber com muito carinho o Carlinhos.

Todo mundo ficou quieto.

— A escola de Carlinhos é um pouco mais fraca que a nos-
sa. Ele vai ter um período de adaptagáo.

Siléncio geral.

— Carlinhos me disse que náo ouve muito bem e que usa
um aparelhinho pra poder ouvir melhor. É natural.

E esclareceu:

— Da mesma maneira que há meninos que usam óculos,
como vocé, vocé e vocé, há outros que náo precisam melhorar a
visäo, mas melhorar a audiçäo. E, praticamente, a mesma coisa.
Eu acho que o aparelhinho do Carlinhos näo vai nem chamar a
atengáo de ninguém.

— Eu só vou querer saber como o aparelho funciona — diz
Sardento.

— Carlinhos explica a vocés.

E voltando-se para o menin

— Como é que o seu aparelho funciona?

O menino se acanha, mas tenta. Articula mal as palavras.

— Eu tenho esse molde aqui. O aparelho tem uma pilha.
Aqui. Aqui a gente vai aumentando o som. Ele fica assim meio
escondido, mas dá pra ver.

Conclui:

— Vou trocar na semana que vem porque tem um modelo
novo melhor que este.

— Posso experimentar? — pede Bebeto.

— Pode. Está ouvindo?

— Legal, gente! Legal! — é a exclamagäo dele. — E forte, né?

Todo mundo se aproxima pra ver. Carlinhos é envolvido
por curiosidade amiga. Ao fim de dez minutos acabou o espanto,
todo mundo viu o que tinha que ver e a aula recomegou.

— Marcela, trouxe o dever?

— Está aqui.

— Jorge, trouxe o dever?

Ninguém responde.

De repente Sardento pula. Jorge era ele, poxa!

— S6 faltou a última coisa que eu náo entendi direito.

— Está certo. Vamos corrigir os trabalhos, diante de vocés,
e explicando o que náo compreenderam. Combinado?

— Combinado,

— Pode sentar, Carlinhos.

O menino do aparelho foi parar ao lado de Bebeto porque
Paula tinha faltado. Garganta inflamada.

A aula continuou.

Bebeto olhou seu companheiro. Rapidamente passou por
sua cabecinha tudo o que tinha sofrido. Todas as dificuldades que
tina enfrentado. Seria táo bom que seu novo amigo pudesse ven-
cer os problemas como ele, Bebeto, estava conseguindo! A vida é
assim mesmo. Problema todo mundo tem.

Sorriu para o menino. Este devolveu um sorriso tímido.

Mexeu no aparelho que deu um chiado. Diminuiu e acerton.

— Vocë, Carlinhos, pode ficar na primeira fila, pra ouvir
melhor.

— Sim, senhora!

—E niio tenha o menor acanhamento de perguntar, quando
náo entender direito.

— Está certo.

O certo saiu ligeitamente errado. Pequena deformaçäo do
som da fala. Coisa fácil de corrigir.

Dai a pouco Carlinhos seria mais um naquela classe. Pare-
cia até que sempre tinha estado ali

A aula terminou, tarefas foram dadas, movimento geral da
turma.

Bebeto vitou pro Carlinhos e disse:

— Olha, Carlinhos, domingo vai ter um som lá em casa.

E, muito comovido, lembrando-se de si mesmo:

— Eu vou ficar muito contente se vocé... Vocé vem, 14?

E com muita vontade de convencer:

— Contente mesmo!

O rosto de Carlinhos parecia a máscara da felicidade.
— Obrigado!

Chegando em casa Bebeto telefona:

— Paula está? Aqui é Bebeto.

— AIö! Aqui é Paula.

— Voc está melhor?

— Estou, sim.

— Olha, Paula. Tem um menino que veio de outro colégio.
Acho que vai precisar da gente. Precisamos dar uma forga pra
ele. Ta?

Paula riu do outro lado, carinhosamente, e só pôde dizer:

— Estamos ai, né, Bebeto? Estamos ai!

No outro dia Bebeto se vin vestido naquela roupa de fazer
judo,

Amarrou a faixa com cuidado, sabendo que náo era ne-
hum campeäo. Estava apenas comegando, vencendo o medo e a
vergonha.

O médico tinha dito que ele, pra crescer, precisava de um
tratamento especial, Pediu uma porgäo de exames que Bebeto nfo
entendeu bem e aconselhou que fizesse exercicio.

No comego o judó era só ginástica. Era preciso levar na
calma, devagar.

Fez o que pöde. Gastou toda a timidez no exercício. O ba-
ho frio, pela primeira vez em sua vida, foi uma delicia.

Na saída do ginásio uma surpresa. Quem o esperava náo era
o chofer. Era o pai. A emoçäo foi tanta que perdeu a fala.

— Tudo bem?

Confirmou só com a cabega. Tudo bem.

No carro esporte do “velho” póde dizer:

PEDRO BLOCH En

— A turma da escola vai fazer excursäo.

— Legal! ~ se entusiasmou Ronaldo.

Pausa

— A professora disse que cada um tinha que escolher seus
amigos para o acampamento.

— Otimo! Vocé já escolheu os seus?

— Ta dificil! fez Bebeto.

— U! Vocé náo tem amigos? — exclamou o pai.

— Näo, pai. Dificil é escolher. Sáo todos meus amigos.

De repente Bebeio se viu com cinco anos pedindo:

“Papai, eu náo tenho irmáo. Cachorro serve.” “Apartamen-
to náo € lugar pra cachorro”, tinha dito o pai.

“Entäo, me compra um amigo!”

Riu baixinho. Que idéia!

Respirou fundo. Contente. Feliz da vida. Decidiu:

— Vou escolher o Carlinhos, primeiro. Dar uma forga
pra ele.

Eos outros?

Escolher? Escolher como? Se ele agora tinha tantos ami-
gos, poxa!
— Está pensando em qué, menino? Perdeu a boca?
— Näo, pai.
— Gostou do judô?
— Paca!
Ronaldo deixou o carro na oficina pra revisäo.
— Vamos apostar uma corrida? Até em casa, amigäo?
O “amigäo” era ele, Bebeto.
— Tal
— Quem chegar por último é.
Chegaram juntos, empatados.
— Amanhä tem jogo no Maracaná — lembrou Ronaldo.
— Sou Flamengo e dou dois gols de vantagem - aposta
Bebeto.

Subiram na disparada a escada. Lá em cima riram até per-
der o fôlego e cairam um nos bragos do outro.

za PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

— De que é que vocés estäo rindo? — quis saber Lúcia.

— De nada! — conseguiu dizer Bebeto, quase sufocado.

— Nada é peixe! — fez a mae. — Pare com isso e telefone pra
Paula. Ela já ligou mais de mil vezes. E depois liga pro Toninho,
pro Sardento, pro Fred, pro Renato, pra Marcela... e pra náo sei
quem mais. Todos eles, parece, escolheram vocé pro acampamento.
Que diabo de acampamento é esse?

— Excursáo, mae.

Subiu a escada interna e entrou no quarto, inundado de
alegria.

Pegou da flauta e boton toda a música que tinha no coraçäo
numa melodia que os pais ouviram espantados lá de baixo. Nao é
que o garoto tinha talento?

PEDRO BLOCH

E, pela primeira vez, se fez um siléncio total. Lucia e Ronaldo
estavam ouvindo aquilo como se fosse música de Bach.

O telefone tocou.

— Bebeto! Telefone!

— Quem é, mae?

— Nao quis dar o nome. Diz que € um amigo!

Bebeto se precipitou:

— Aló!

— Aqui é o Carlinhos.

— Tudo bem? — perguntou Bebeto com entusiasmo.

A fala, do outro lado, veio muito tímida e apagada:

— Posso pedir uma coisa pra vocé?

— Pode!

— Posso escolher vocé pra meu amigo na excursäo?

Bebeto se comoveu mas gritou:

— Näo! Nao pode.

E com uma felicidade total

— Nao pode... porque eu já escolhi vocé, primeiro.

A voz do pai veio gritada:

— Amigäo!

— Que é, papai? — pergunta Bebeto radiante.

— O jantar está na mesa!

Desceu correndo, com alegria demais nos olhos e na cara.
Que bom! Sentou, ao lado do pai sorridente, e devorou tudo,

Lúcia e Ronaldo trocaram um sorriso doce.

Quando a excursáo começou e o ónibus foi acelerando, Paula
pediu pra trocar de lugar e veio sentar ao lado de.

—oi!

—oi!

—Tudo bem?

— Beleza!

— A gente vamos nos divertir paca! — gritou Toninho là do
fundo.

PAL, ME COMPRA UM AMIGO?

— A gente vai - corrigiu Marcela, pra nao perder o costume.
De repente comegou a cantoria com todas aquelas musiqui-
nhas que falam das coisas, sem maldade, só pra divertir:

“Minha escola tem um ga-to-to
Mas o gato-to náo é meu-meu-meu
Quando veio o segundo prato-to..
Adivinha, adivinha quem morreu-reu-reu!

O riso era tanto e a brincadeira que parecia táo inocente...
Até as profesoras da escola entraram no coro. Sardento náo re-
sistiu e soltou:

Sobremesa é rapadura-ra

Dura-dura-ra de roer-er-er

Salada é casca de banana pura-ra

E a banana a gente dá pra quem quiser-er-er.

Riram até náo poder mais.
O ónibus ia correndo, atravesando cidades e desvendando
paisagens, cada vez mais verdes, cada vez mais primitivas.
Dentro, a garotada festiva era uma alegria só.
Foi ai que Bebeto olhou bem fundo nos olhos de Paula.
É, gente. Adulto náo entende mesmo amor de crianga!
Falei?

A excursäo prossegue.
E pensar, poxa, que toda aquela garotada vai entrar no 3°
milénio, passar do ano 2000!

Pedro Bloch

Pedro Bloch, médico especialista em problemas de Voz, Fala,
Linguagem e Audiçäo (Comunicologia), introduziu o Tratamento
de Voz e Fala (foniatria) no Brasil, tendo formado turmas em
Fonoaudiología e ministrado aulas na pés-graduaçäo médica da
PUC-R] e na Escola de Reabilitaçäo do Rio, onde lecionou duran-
te anos. Escritor (autor de quase cem livros), jornalista (com segdes
permanentes nas revistas da Manchete e O Globo, compositor e
Poeta, nasceu na Ucránia, a 17 de maio de 1914, chegou ao Brasil
ainda criancinha. Aqui fez o primário, o secundário (Colégio Pedro
IN), o superior (na Faculdade Nacional de Medicina da Praia Ver-
melha), tendo colaborado em jornais e revistas, desde muito cedo,
aleangando uma série de prémios de contos, inclusive no famoso
concurso do jornal Dom Casmurro.

Em sua especialidade médica exerceu a vice-presidéncia da
associaçäo internacional (IALP) e fundou a Sociedade Brasileira
de Foniatria e Logopedia, tendo produzido inúmeros livros e arti-
gos de seu campo e sido relator do Congresso Internacional de
Viena,

Seu Filho Fala Bem?, Vocé Quer Falar Melhor?, Sua Voz e
Sua Fala, O Problema da Gagueira, A Voz Humana, A Conquista
da Fala, Falar É Viver, Voz e Fala da Criança säo alguns de seus
livros de divulgagäo.

Trabalhou em sua especialidade no Nacional Hospital for

. Speech Disorders de Nova lorque. Dirige o Servigo de Foniatria da
ABBR, que tem o seu nome. Hoje é até nome de rua em Lengöis
Paulista.

Lidando com a crianga e o adolescente, de forma constante,
produziu muitos livros em que focaliza o que a crianga diz, por
exemplo, Dicionário de Humor Infantil, Ediouro, entre tantos, é 0

za PAL, ME COMPRA UN AMIGO?

resultado de seus diálogos no consultório além de numerosos volumes
para adolescentes,

Criança Diz, Cada Uma, O Menino Falou e Disse, Crianga É
Isso al, Criança Sabe das Coisas, Esses Meninos de Hoje säo alguns
dos livros que enfocam coisas de criangas.

Na faixa do jovem escreveu pela Ediouro: Um Barco para a
Lua, Chuta o Jodozinho pra cá, Me dá uma Forga, Gente!, Miro Ma-
ravilha e Pai, me compra um amigo?, O Menino que Inventou a Verda-
de, Nesta Data Querida, Pai, fica na tua!, Essa Garota € Demas, Lico
Cara-de-pau, Mae, Cadé meu pai?, Rafa Bom de Bala. E por outras
editoras: O Segredo Azul, O Misterio de Irene, O Velho Careta, O Ga-
rotáo, Tininho, o Folgado, O Segredo de Taquinho, O Som da Pesada,
Um Barco Para a Lua e muitos outros.

No teatro ele escreveu cerca de 30 obras. As mais conhecidas e
traduzidas säo As Maos de Eurídice, Esta Noite Choveu Prata!, Dona
Xepa, O Sorriso de Pedra, os 4 Ediouro, Os Inimigos ndo Mandam
Flores, Morre um Gato na China.

No teatro de Malmo (Suécia), quando da diregáo de Ingmar
Bergmann, duas das pegas de Pedro Bloch foram ali apresentadas com
extraordinärios atores.

Foi o primeiro autor brasileiro a alcangar a Broadway (Booth
Theatre), onde também teve encenada sua pega Os Inimigos näo Man-
dam Flores (Provincetown Playhouse). Sua pega As Mäos de Eurídice,
Ediouro, foi apresentada, por centenas de atores, teve cerca de 60.000
apresentaçäes, fez parte do Festival de Edinburgo. As tradugóes de
suas obras teatrais correm mundo.

Hé pouco escreveu Samba no pé, e com o maestro Francisco
Mignone, glöria da música brasileira, um musical baseado em sua obra
Bodó, o Bobo Alegre.

Pedro Bloch obteve o Prémio de Melhor Autor (da Crítica), a Me-
dalha de Ouro de Produçäo Teatral (da Sbat) e o Prémio Artur Azevedo
(Teatro) da Academia Brasileira de Letras.

Casado com Miriam, durante muitos e muitos anos, trabalham na
recuperagäo de pacientes da comunicagáo.

Pedro Bloch

Pai, me COM vn
um wig!

Esta é a comovente história de
Bebeto, um menino diferente que quer
achar seu lugar no mundo. Mais que
isso, quer ser aceito, compreendido,
amado. Além destas dificuldades,
mostra pais ausentes, colegas
preconceituosos. Apesar disso náo há
amargura no livro, ao contrário,
mostra que sempre há uma chance de
mudar. Bebeto deu um passo, os
amigos, outro, os pais, outro, de modo
que todos puderam mostrar
sua sensibilidade ás questóes alheias,
trabalhar as relagóes humanas,

a auto-estima, amadurecer, e crescer
em todos os sentidos.

Cy vas nosso ss

= wwwediouro.com.br
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