CONTINENTE DEZEMBRO 2013 | 42 CONTINENTE DEZEMBRO 2013 | 43
“Só o Nordeste e o Rio
têm essa expressão
tão rica, com o tom
da brincadeira,
da sacanagem, da
provocação”
fala igual ao pescador. São características
próprias de microrregiões. Claro, elas
interagem, fazem um conjunto, mas a
riqueza vocabular é tremenda.
CONTINENTE Como foi o processo de
checagem para saber se o termo é do Nordeste?
FRED NAVARRO É um trabalho duro
de jornalismo investigativo, que é
checar as fontes, ir aos dicionários
tradicionais e clássicos para pesquisar
a origem dessas palavras, encontrar
referências na nossa cultura popular.
Consultei os três dicionários tradicionais,
o Aurélio, o Houaiss e o dicionário da
Academia Brasileira de Letras. Quando
eles identificam, a sigla do estado está
registrada lá. Quando não conseguem
identificar o estado, eles colocam a
região. E, quando não conseguem
identificar a região, colocam como
brasileirismo. Muitas dessas palavras eu
chegava achando que eram do Nordeste
e a fonte era Goiás. Além disso, nossa
cultura popular registra essas palavras
com abundância; você pega 10 cordéis
de Caruaru, Campina Grande ou do
Crato e vai encontrar dezenas de termos
em comum, e outros não, são específicos
do Ceará, específicos da Paraíba. E eu
ia fazendo a triagem. Meu trabalho foi
tentar ver o que era realmente de onde.
Isso deu trabalho. Meus critérios foram
jornalísticos, de checar a veracidade da
informação, de procurar uma citação
digna de confiança.
CONTINENTE É normal que novos termos
sejam criados e muitos acabem se perdendo. Qual
o critério para que ele se torne um verbete?
FRED NAVARRO Useis dois critérios.
Primeiro, o registro em alguma forma
de manifestação cultural, pode ser Lia
de Itamaracá, pode ser Xico Sá ou Chico
Science. Ser registrado por alguém
é uma evidência de que esse termo
continua vivo, não caiu em desuso,
não é um ósculo da vida. O critério
para mim é aquilo que está vivo. O que
é representativo para a comunicação,
o povo adota, assume como seu.
Inclusive, nós temos centenas de
palavras de origem estrangeira, na língua
portuguesa. Se essas palavras foram
incorporadas, é porque elas tiveram uma
utilidade, uma função na comunicação
das pessoas. O critério é a utilidade, às
vezes, entra a beleza, a singularidade, o
humor, mas tem que ser útil, funcional.
fascinante junto ao bandido vingador,
que merece atenção. Esse fato reflete
um pouco nosso distanciamento
cultural, eles não se interessam pelos
livros de Jorge Amado, as músicas de
Fagner. Para eles, tudo isso é o lado
pobre, o lado sem educação, sem
instrução e estrutura do brasileiro. É
preconceito, é falta de informação e
ignorância deles. Mas, quando tiram
férias e conhecem o Nordeste, eles
voltam todo ano.
CONTINENTE Um exemplo que sempre
é citado no campo da linguística é o dos
esquimós, que possuem mais 100 termos
para designar o branco. Esse exemplo nos dá
uma ideia de que a língua se desenvolve de
acordo com as necessidades e características
de cada sociedade. A partir do seu trabalho,
é possível entender o Nordeste?
FRED NAVARRO É possível conhecer o
Nordeste através dele. Vejo o dicionário
como um manual de tradução do
Nordeste para outras regiões do Brasil
e outros países. Porque a força da
cultura popular nordestina está na
diversidade, na capacidade que tem de
expressar a voz do homem da rua e do
rico de Boa Viagem ao mesmo tempo.
No cordel, na linguagem sofisticada de
Elomar, na invenção de um Tom Zé,
Francisco Dantas. Essa diversidade cria
uma riqueza vocabular que expressa o
meio ambiente em que vive o homem
nordestino. A chave para entender o
dicionário é a relação do homem com
a natureza, é da sua relação com a
natureza que o vaqueiro, o pescador
e o canavieiro tiram a maior parte
dessas expressões. Muitas delas foram
herdadas de Portugal e adaptadas
ao meio nordestino. Isso aconteceu
em todas as regiões do Brasil, não só
no Nordeste. O número de palavras
que o vaqueiro tem para designar o
boi e que o pescador tem para falar
do barco são equivalentes às do
esquimó com a neve. O mesmo peixe,
no Brasil, tem 18 nomes diferentes.
Essa riqueza remete à questão da
globalização. A globalização passa
réguas nas culturas, mas ela localiza
e destaca as culturas com base nessa
força popular. Não são culturas que
inventaram as coisas artificialmente,
são culturas enraizadas, com história, as
histórias da nossa linguagem remetem
ao tempo medieval português, aos
romanos, à própria origem do latim.
É uma língua que soube acoplar essa
história ao meio ambiente e ao povo.
CONTINENTE No dicionário, há muitos
páginas com verbetes relacionados a
sexo. Isso é um reflexo da importância
que o tema tem no Nordeste?
FRED NAVARRO Ele não entra como
item especial, tem tantos termos quanto
comidas e árvores. Mas a importância
dos termos chulos, com a picardia e
a sacanagem, tem a ver com o bom
humor do nosso povo. Você só encontra
isso, no Brasil, na gíria carioca. A
linguagem falada no Amazonas, no
Pantanal, no Sudeste e no Sul é muito
careta, muito conservadora, sob esse
ponto de vista. Só o Nordeste e o Rio de
Janeiro têm essa expressão tão rica, com
o tom da brincadeira, da sacanag
em,
da provocação. Mário Souto Maior já
publicou o Dicionário do Palavrão com 500
e tantos verbetes.
THIAGO CORRÊA.
CONTINENTE DEZEMBRO 2013 | 42 CONTINENTE DEZEMBRO 2013 | 43
CONTINENTE O Dicionário do Nordeste
é resultado de um trabalho anterior, que tinha
como título Assim falava Lampião . Essa
primeira versão não foi bem-recebida no Rio
Grande do Sul por conta da antipatia dos gaúchos
com Lampião. Como foi essa história?
FRED NAVARRO É aquela velha
história do desconhecimento. Para
eles, a imagem de Lampião é lugar
comum, clichê, bandido, bandoleiro,
matar criança. Nunca leram Frederico
Pernambucano de Melo, nunca leram a
grande e boa literatura sobre Lampião
já feita no Nordeste, nunca viram Baile
perfumado. A região Sul e o Nordeste são
as duas regiões mais nacionalistas. O
Rio Grande do Sul já tentou se separar
do Brasil, assim como nós. Lampião era
músico, inventou um ritmo musical,
inventou o xaxado com as marcações
dos fuzis e alpercatas, para comemorar
as vitórias sobre os policiais, compôs
mais de 18 músicas, inclusive Mulher
rendeira. Lampião tinha todo um lado