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RobertoCarvalho21 992 views 190 slides Aug 31, 2015
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About This Presentation

Linguistica


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ESTUDOS DE LÍNGUA FALADA
variações e confrontos

VENDAS
LIVRARIA HUMANITAS-DISCURSO
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cid. Universitária
05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
Tel: 3818-3728 / 3818-3796
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C
OMISSÃO EDITORIAL
PROJETO NURC/SP – NÚCLEO USP
FFLCH/USP
Área de Filologia e Língua Portuguesa
Av. Prof. Luciano Gualberto, 403
sala 205 – Cid. Universitária
05508-900 – São Paulo – SP – Brasil
Tel: (011) 818-4864
Fax: (00-55-11) 818-5035
Endereço para correspondência
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor: Prof. Dr. Jacques Marcovitch
Vice-Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert
Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz
PROJETO DE ESTUDO DA NORMA LINGÜÍSTICA
URBANA CULTA DE SÃO PAULO
(PROJETO NURC/SP - NÚCLEO USP)
© Copyright 1998 dos autores.
Os direitos de publicação desta edição são da Universidade de São Paulo.
Humanitas Publicações – novembro/1998

ESTUDOS DE LÍNGUA FALADAESTUDOS DE LÍNGUA FALADAESTUDOS DE LÍNGUA FALADAESTUDOS DE LÍNGUA FALADAESTUDOS DE LÍNGUA FALADA
variações e confrontos
Dino Preti (org.)Dino Preti (org.)Dino Preti (org.)Dino Preti (org.)Dino Preti (org.)
PUBLICAÇÕES
FFLCH/USP
33333
Projetos Paralelos - NURC/SPProjetos Paralelos - NURC/SPProjetos Paralelos - NURC/SPProjetos Paralelos - NURC/SPProjetos Paralelos - NURC/SP
(Núcleo USP)(Núcleo USP)(Núcleo USP)(Núcleo USP)(Núcleo USP)
PUBLICAÇÕES
FFLCH/USP
1998
ISBN 85-86087-38-6

Série PROJETOS PARALELOS
Vol. 1A
NÁLISE DE TEXTOS ORAIS
Vol. 2O DISCURSO ORAL CULTO
Vol. 3E STUDOS DE LÍNGUA FALADA: VARIAÇÕES E
CONFRONTOS
Direitos reservados
PROJETO NURC/SP – NÚCLEO USP
FFLCH/USP – Área de Filologia e Língua Portuguesa
Caixa Postal 2530 – Cidade Universitária
01060-970 – São Paulo – SP – Brasil
Tel: (00-55-11) 818-4864
Estudos de língua falada: variações e confrontos / organizado por Dino
Preti .– São Paulo, Humanitas/FFLCH/USP, 1998
236 p. (Projetos Paralelos, 3)
Publicação do Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta
de São Paulo (Projeto NURC/SP – Núcleo USP)
ISBN 85-86087-38-6
1. Sociolingüística 2. Português (Língua) 3.Português do Brasil
4. Comunicação verbal I. Preti, Dino II. Projeto de Estudo da Norma
Lingüística Urbana Culta de São Paulo III. Série
CDD 417
Ficha catalográfica elaborada por Márcia Elisa Garcia de Grandi – CRB 3608 SBD FFLCH USP
E 85

SUMÁRIO
Apresentação........................................................................................... 7
Breve notícia sobre os autores............................................................... 9
Normas para transcrição de exemplos............................................... 12
1. Atividades de compreensão na interação verbal.......................... 15
Luiz Antônio Marcuschi
2. Procedimentos e recursos discursivos da conversação................. 47
Diana Luz Pessoa de Barros
3. Tipos de frame e falantes cultos..................................................... 71
Dino Preti
4. Elocução formal: o dinamismo da oralidade e as
formalidades da escrita................................................................... 87
Beth Brait
5. Polidez na interação professor/aluno........................................... 109
Luiz Antônio Silva
6. Variedades de planejamento no texto falado e no escrito.......... 131
Hudinilson Urbano
7. Os processos de representação da imagem pública
nas entrevistas................................................................................ 153
Leonor Lopes Fávero
Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade
8. Língua falada: uso e norma......................................................... 179
Marli Quadros Leite
9. O emprego do subjuntivo e de formas alternativas
na fala culta.................................................................................... 209
Paulo de Tarso Galembeck

APRESENTAÇÃO
Há um interesse crescente, em todo o mundo, pelo estudo da língua
oral e de suas relações com a escrita. Abandona-se a idéia de atribuir aos
textos escritos uma importância exclusiva nos estudos lingüísticos e a de
estudar por seus métodos os fenômenos da oralidade. Procura-se, hoje,
entender as duas modalidades da língua (falada e escrita) como um
continuum em que se observam contrastes e aproximações. Seu estudo
vem sendo feito com novos métodos em várias disciplinas, como a Aná-
lise do Discurso, a Sociolingüística, a Análise da Conversação, a Socio-
lingüística Interacional, a Estilística, a Gramática, entre outras linhas de
pesquisa.
Dentro desse novo enfoque, a língua falada deve ser vista por
métodos próprios de análise, considerando-se as mais variadas formas
de interação verbal.
A série PROJETOS PARALELOS-NURC/SP vem tratando de
alguns dos problemas que envolvem as relações fala/escrita, a partir dos
referentes comuns de seus livros: os vários tipos de materiais gravados
na cidade de São Paulo, com falantes cultos, em situações de comunica-
ção diversas.
Em ESTUDOS DA LÍNGUA FALADA: VARIAÇÕES E CON-
FRONTOS, terceiro volume da série, temos um grupo de ensaios varia-
dos, nos limites temáticos da coleção:
• comparação entre discurso oral e escrito (“Elocução
formal: o dinamismo da oralidade e as formalidades
da escrita”, de Beth Brait; “Variedades de planeja-
mento no texto falado e escrito”, de Hudinilson Ur-
bano;
• características do discurso oral e gêneros discursivos
(“Procedimentos e recursos discursivos da conversa-
ção”, de Diana Luz Pessoa de Barros; “Os processos
de representação da imagem pública nas entrevistas”,

8
de Leonor Lopes Fávero e Maria Lúcia da Cunha
Victório de Oliveira Andrade);
• análise de processos de cognição na língua falada
(“Atividades de compreensão na interação verbal”,
de Luiz Antônio Marcuschi; “Tipos de frame e
falantes cultos”, de Dino Preti);
• aspectos sociolingüísticos revelados na interação
verbal (“Língua falada: uso e norma”, de Marli
Quadros Leite; “Polidez na interação professor/
aluno”, de Luiz Antônio da Silva);
• variações sintáticas da língua falada (“O emprego do
subjuntivo e de formas alternativas na fala culta”, de
Paulo de Tarso Galembeck).
Os textos desta coleção têm sido sempre de responsabilidade dos
pesquisadores do Núcleo USP do Projeto NURC/SP, grupo constituído
por catorze estudiosos de várias universidades. Mas, a partir deste núme-
ro da série PROJETOS PARALELOS – NURC/SP, passamos a incluir a
colaboração de um lingüista convidado. Assim, ESTUDOS DE LÍNGUA
FALADA: VARIAÇÕES E CONFRONTOS traz um ensaio de Luiz
Antônio Marcuschi, da Universidade Federal de Pernambuco e do NURC/
RECIFE, um dos nomes de ponta da lingüística brasileira contemporâ-
nea.
A aceitação dos volumes anteriores da série, o primeiro dos quais
já em terceira edição, nos permite pressupor que a coleção vem atingindo
seus principais objetivos: divulgar estudos sobre a língua oral, realizados
na linha de uma bibliografia continuamente atualizada pelos pesquisado-
res do NURC/SP; provocar a discussão dos assuntos tratados; e iniciar
os leitores que desconhecem essas novas abordagens do fenômeno da
oralidade.
D.P.

9
BREVE NOTÍCIA SOBRE OS AUTORES
LUIZ ANTÔNIO MARCUSCHI, professor titular de Lingüística
da Universidade Federal de Pernambuco, doutorou-se em Filosofia da Lin-
guagem na Friendrich Alexander Universitat de Erlangen, na Alemanha.
Tem dado cursos e conferências em vários países da Europa e da América.
Foi o introdutor, no Brasil, dos estudos de Análise da Conversação e publi-
cou inúmeros artigos, aqui e no exterior, além das obras Lingüística do
texto: o que é e como se faz; Linguagem e classes sociais e Análise da
Conversação. Tem desempenhado papel de relevo junto às sociedades ci-
entíficas do País, como ABRALIN, ANPOLL, SBPC etc., bem como na
assessoria científica de entidades oficiais como a CAPES e o CNPq. É,
hoje, no Brasil, um dos nomes de maior prestígio na área de Lingüística.
DIANA LUZ PESSOA DE BARROS, professora titular de Lin-
güística, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,
foi presidente da ABRALIN e tem desenvolvido e orientado pesquisas,
bem como publicado obras, principalmente nas áreas de Teoria e Análise
de Textos, Semiótica Discursiva e estudos de língua falada. Principais
livros: Teoria do discurso – fundamentos semióticos; Teoria semiótica
do texto; Dialogismo, polifonia e intertextualidade: em torno de Bakhtin
(em co-autoria com José Luiz Fiorin).
DINO PRETI, professor titular de Língua Portuguesa na USP (apo-
sentado) e, atualmente, professor de Língua Portuguesa da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, é Coordenador Científico do Proje-
to NURC/SP (Núcleo USP) e seus trabalhos se encontram nas áreas de
língua oral, vocabulário popular (principalmente, gíria urbana) e Socio-
lingüística Interacional. Tem realizado pesquisas em áreas interligadas,
como a Sociolingüística e Análise da Conversação, a Sociolingüística e
Literatura Brasileira. Principais publicações: Sociolingüística – os níveis
de fala; A linguagem proibida – um estudo sobre a linguagem erótica
(prêmio Jabuti, l984); A gíria e outros temas; A linguagem dos idosos.
BETH BRAIT é professora do programa de pós-graduação da
PUC/SP, Departamento de Lingüística Aplicada ao Ensino de Língua, e

10
professora convidada do programa de pós-graduação da USP, de onde é
professora aposentada. Pela Universidade de São Paulo formou-se, obte-
ve os títulos de doutora em Letras, em 1981, e o de livre-docente em
1994. É autora de vários livros, entre eles, A personagem (1985); Ferreira
Gullar (1981); Guimarães Rosa (1983); Gonçalves Dias (1983); Ironia
em perspectiva polifônica (1996). É, também, autora de inúmeros capí-
tulos de livros e artigos publicados em anais de congressos e em revistas
especializadas.
LUIZ ANTÔNIO DA SILVA é doutor pela Faculdade de Filoso-
fia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde leciona na área de Filologia
e Língua Portuguesa. Participa do grupo de pesquisadores do Projeto
NURC/SP e tem desenvolvido pesquisas na área de Análise da Conver-
sação. Também atua no ensino médio, lecionando no Colégio Bandei-
rantes em São Paulo. Além de artigos em revistas especializadas, é autor
da obra O nome e seus determinantes, publicada pela editora Atual.
HUDINILSON URBANO é doutor pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP, na área de Filologia e Língua Portu-
guesa. Tem-se dedicado ao estudo específico da língua falada, com par-
ticipação ativa dentro do Projeto NURC/SP (Núcleo USP) e Projeto
Nacional de Gramática do Português Falado. Nos dois projetos realizou
e publicou, individualmente ou em co-autoria, pesquisas sobre estratégi-
as e mecanismos de produção do texto oral.
LEONOR LOPES FÁVERO, doutora pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo e livre-docente pela USP, trabalha como Pro-
fessora Associada do Departamento de Lingüística da Faculdade de Fi-
losofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Sua especialidade abrange
os campos da Lingüística Textual, estudos de língua falada e História
das Idéias Lingüísticas. Principais obras: Coesão e coerência textuais;
As concepções lingüísticas no século XVIII.
MARIA LÚCIA DA CUNHA VICTÓRIO DE OLIVEIRA AN-
DRADE é professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
da FFLCH/USP, onde leciona Língua Portuguesa, desde 1992. Defen-
deu Mestrado em Língua Portuguesa, na PUC/SP, em 1990, sobre o tema
Contribuição à gramática do português falado: estudo dos marcadores
conversacionais então, aí, daí. Doutorou-se em Semiótica e Lingüística
pela USP, em 1995, com a tese Digressão: uma estratégia na condução

11
do jogo textual interativo. Tem capítulos e artigos publicados, indivi-
dualmente e em co-autoria, sobre a Lingüística Textual e os estudos de
língua falada, em livros, revistas especializadas e anais de congressos
nacionais e internacionais.
MARLI QUADROS LEITE é professora do Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên-
cias Humanas da USP, onde leciona Língua Portuguesa. Defendeu Mes-
trado e Doutorado em Lingüística, na mesma universidade, e sua espe-
cialidade é língua falada. Ocupa o cargo de Secretária Geral do Projeto
NURC/SP ( Núcleo USP). Tem no prelo um livro sobre purismo lingüís-
tico, tema de sua tese.
PAULO DE TARSO GALEMBECK leciona Língua Portuguesa
na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – campus de Araraquara.
Defendeu Mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e
doutorou-se pela USP, com uma tese sobre Um estudo dos elementos
anafóricos em textos conversacionais – Projeto NURC/SP. Tem publica-
do um grande número de artigos sobre problemas conversacionais, em
revistas e coletâneas científicas ligadas a diversas áreas da Lingüística,
mais comumente à da Análise da Conversação.

12
NORMAS PARA TRANSCRIÇÃO
OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO
( )
(hipótese)
/
maiúscula
::podendo
aumentar
para:::
ou mais

?
...
((minúscula))
do nível de renda( )
nível de renda nominal
(estou) meio preocupado
(com o gravador)
e comé/ e reinicia
porque as pessoas reTÊM
moeda
ao emprestarem...
éh::: ... dinheiro
por motivo tran-sa-ção
e o Banco... Central...
certo?
são três motivos... ou três
razões... que fazem com
que se retenha moeda...
existe uma... retenção
((tossiu))
Incompreensão de palavras ou
segmentos.
Hipótese do que se ouviu.
Truncamento (havendo
homografia, usa-se acento
indicativo da tônica e/ou
timbre).
Entonação enfática.
Prolongamento de vogal e
consoante (como s, r).
Silabação.
Interrogação.
Qualquer pausa.
Comentários descritivos do
transcritor.
* Exemplos retirados dos inquéritos NURC/SP nº 388 EF e 331 D
2

13
OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO
Comentários que quebram a
seqüência temática da exposi-
ção; desvio temático.
Superposição, simultaneidade
de vozes.
Indicação de que a fala foi
tomada ou interrompida em
determinado ponto. Não no seu
início, por exemplo.
Citações literais ou leituras de
textos, durante a gravação.
- - - -
ligando
as linhas
(...)
“ ”
...a demanda de moeda - -
vamos dar essa notação - -
demanda de moeda por
motivo
A. na casa da sua irmã
B. sexta-feira?
A. fizeram LÁ...
B. cozinharam lá?
(...) nós vimos que existem...
Pedro Lima...ah escreve
na ocasião... “O cinema fa-
lado em língua estrangeira
não precisa de nenhuma
baRREIra entre
nós”...
OBSERVAÇÕES:
1. Iniciais maiúsculas: só para nomes próprios ou para siglas (USP etc.).
2. Fáticos: ah, éh, ahn, ehn, uhn, tá (não por está: tá? você está brava?).
3. Nomes de obras ou nomes comuns estrangeiros são grifados.
4. Números: por extenso.
5. Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa).
6. Não se anota o cadenciamento da frase.
7. Podem-se combinar sinais. Por exemplo: oh:::...(alongamento e pausa).
8. Não se utilizam sinais de pausa, típicos da língua escrita, como ponto-e-vírgula,
ponto final, dois pontos, vírgula. As reticências marcam qualquer tipo de pausa.

ATIVIDADES DE COMPREENSÃO NA
INTERAÇÃO VERBAL
Luiz Antônio Marcuschi
1. Considerações iniciais
Admite-se, hoje, que a compreensão, na interação verbal face a
face, resulta de um projeto conjunto de interlocutores em atividades
colaborativas e coordenadas de co-produção de sentido e não de uma
simples interpretação semântica de enunciados proferidos. Contudo, não
se tem ainda uma noção clara do tipo de atividade que deve ser observa-
do como particularmente relevante em cada caso (v. Clark & Wilkes-
Gibbs, 1986). Também não se tem clareza quanto ao peso da contribui-
ção de cada um dos elementos intervenientes. Por exemplo, qual o peso
dos conhecimentos enciclopédicos e dos conhecimentos lingüísticos? O
que se pode assegurar é que isto, se não chega a pôr a língua num segun-
do plano, sugere atenção para outros aspectos envolvidos na construção
de sentido em situações naturais de fala. Entre estes outros aspectos estão
as faces (Brown & Levinson, 1978), as crenças pessoais, os conheci-
mentos (partilhados ou não) (Tannen, 1985, 1986), as normas e práticas
sociais, as pistas de contextualização (Gumperz, 1982), a natureza da
relação entre os interlocutores e as condições situacionais de produção
da fala.
Neste ensaio, apresento algumas sugestões para análise de ações
conjuntas desenvolvidas nas interações verbais face a face, que podem
ser caracterizadas como atividades de compreensão. Centrado em um
conjunto relativamente pequeno de situações de fala autênticas, observa-
rei como os participantes constroem espaços cognitivos e semânticos
que permitem dar sentidos específicos a suas contribuições. Os materiais
analisados provém do corpus levantado pelo Projeto NURC de São Pau-

16
lo.
1
A restrição no recorte dos dados deve-se à natureza da obra em que
este ensaio se insere. Saliento que, apesar de os materiais não serem
típicos de fala espontânea, dado o objetivo original de sua coleta, são
adequados para observar aspectos centrais das questões aqui tratadas.
2
Para o desenvolvimento do estudo, assumo algumas premissas
básicas que podem ser assim enunciadas:
•A língua não é um instrumento autônomo de codificação, produção
e transmissão de sentidos objetivos, unívocos e claramente inscritos
no texto. Embora apresente certa estabilidade formal, a língua é uma
atividade contextualmente situada, cognitivamente determinada, so-
cial e historicamente constituída.
• O texto, oral ou escrito, mais do que uma unidade de sentido é um
evento discursivo (Beaugrande, 1997) e a interação verbal, realizada
numa estrutura conversacional ou não, é uma atividade semântica,
isto é, um espaço de significações (Eggins & Slade, 1997).
•A coerência conversacional não é fruto de uma simples relação en-
tre conteúdos linearmente encadeados, mas se constrói como um
esforço de encadeamento multiplamente comandado, de modo que
os sentidos são conduzidos tanto por processos léxico-gramaticais
como por processos colaborativos exercidos na atividade discursiva
e por suposições mútuas (Wilkes-Gibbs, 1995).
•A coordenação e sincronização de ações, seja na seqüenciação das
idéias ou na coordenação rítmica (sincronia prosódica), entre ou-
tras, contribui de maneira decisiva para criar espaços e oportunida-
des de significação. Isto torna a qualidade da coordenação relevan-
te como fonte de significação e base para entendimento ou desen-
tendimento.
(1)
Todos os exemplos analisados são do corpus do Projeto NURC-SP e serão aqui
referidos como D2 = Diálogo entre 2 Informantes; DID = Diálogo entre Informante
e Documentador (entrevistas) e EF = Elocuções Formais (aulas e conferências). São
citados os números dos inquéritos e as páginas dos livros com as linhas dos segmen-
tos. Na bibliografia, podem-se ver as fontes.
(2)
Questões similares no texto oral foram recentemente tratadas por Ingedore Villaça
Koch (1997), que observa em especial as estratégias de (re)formulação com relevân-
cia na produção de sentido, partindo de premissas semelhantes às aqui adotadas para
o tratamento da compreensão.

17
•Negociação e produção conjunta são atividades essenciais para a
produção de sentidos em todos encontros sócio-comunicativos em
que dois ou mais indivíduos estiverem engajados e tiverem como
um dos objetivos a compreensão mútua.
Embora não pretenda comentar cada uma das premissas enuncia-
das, vale a pena retomar brevemente a primeira que diz respeito à noção
de língua e se situa em contexto teórico movediço. A premissa desafia a
idéia cartesiana de que a mente e a sociedade seriam categoricamente
distintas (Jacoby & Ochs, 1995:173), enfatizando a relação entre mente e
sociedade, na medida em que as toma como mutuamente constitutivas.
Certamente, há muitos modos de se ver esta relação: para o socio-cons-
trutivismo vigotskiano (Vigostsky, 1984), por exemplo, a mente seria
socialmente constituída; para o cognitivismo (Sweetser & Fauconnier,
1996), de posição teoricamente diversa, mas de conseqüências similares,
persistem estreitas relações entre cognição humana e contextualização e
para o sócio-interacionismo etnometodológico dos anos 60, a racionali-
dade como construção de ordem superior seria um “affair” essencial-
mente interacional, mediado pela língua em ações conjuntas praticadas
em situações sociais. Como se nota, está se tornando cada vez mais co-
mum correlacionar cultura e cognição (v. Cole, 1985), assim como prag-
mática e cognição (v. Silveira & Feltes, 1997), sendo que tanto cultura
como pragmática envolvem ações interativas sócio-históricas.
No seu conjunto, as premissas acima constituem a base mínima
que permite construir os princípios que dariam forma ao que se poderia
chamar de modelo sócio-interacional da compreensão. Para que este
modelo seja desenhado é ainda conveniente considerar que entre suas
características estão: dinamicidade e temporalidade, o que impede que
seja montado como um esqueleto formal. Em todos os casos lidamos
com seres humanos concretos em interação altamente complexa, dife-
renciada e instável. Identidade e determinação acontecem como estados
finais de um trabalho em que a língua é apenas um dos fatores essenciais.
Em suma, segundo argumenta Wilkes-Gibbs (1995:240),
“para que o discurso opere apropriadamente, os participantes devem
coordenar entre si mais do que a ‘mecânica’ de sua interação. O im-

18
portante para os ouvintes não é imaginar o que uma palavra ou enun-
ciado pode significar abstratamente, mas o que o falante pretende que
se entenda com eles ao tê-los dito naquela situação e naquele momen-
to do discurso. Para administrar isso, os participantes precisam mais
do que cooperar no sentido de Grice. Eles devem também coordenar
suas ações e o que eles devem entender com essas ações.”
Na realidade, temos aqui uma dupla perspectiva: por um lado,
necessita-se coordenar conteúdos e, por outro, coordenar ações. Em con-
seqüência, idéias e ações podem ser tidas como interpendentes na cons-
trução de sentido. É isto que torna a produção de sentido uma atividade
multiplamente organizada e uma conquista essencialmente coletiva (um
projeto conjunto) e não fruto de atividades individuais. A compreensão
pode ser tomada, pois, como um esforço mútuo dos falantes para cons-
truir coerência, isto é, sentido.
Posição semelhante a esta é defendida por Cook-Gumperz &
Gumperz (1984:3) que, num trabalho sobre compreensão entre exami-
nadores de uma tese de doutorado, defendem a premissa de
“que a interação verbal é uma atividade cooperativa que requer uma
coordenação ativa dos atos por parte de dois ou mais participantes e que
tudo o que é realizado, tudo o que é interpretado e toda a informação
atingida não é inerente aos signos verbais ou não-verbais como tal, mas
deve emergir dessas trocas interativas seqüencialmente organizadas”.
Esta premissa sugere que não podemos confiar apenas nas carac-
terísticas estruturais da interação nem nas propriedades comunicativas
da língua, nem nos contextos situacionais imediatos de produção da inte-
ração, mas devemos estar atentos para o que os falantes fazem com tudo
isso, se queremos perceber como eles se entendem. O importante não é a
identificação das regras da estrutura conversacional, mas a habilidade
desenvolvida pelos falantes no uso das estratégias conversacionais com
o objetivo de se entenderem e atingirem metas comuns em situações
sociais de fala.
É evidente que em todo esse procedimento metodológico de re-
cortes e interpretações a compreensão é dada como garantida para os
participantes da interação. Ao analista no entanto parece ser mais pro-

19
funda a questão e não lhe cabe apenas identificar e admitir que há com-
preensão. Ele deve dar conta da seguinte questão: como é que os partici-
pantes de uma interação resolvem suas estratégias e processos de com-
preensão de forma tão competente? O presente ensaio é uma tentativa
ainda preliminar de responder a esta questão com algumas análises.
2. A negociação e seus limites
Embora a negociação seja um aspecto central para a produção de
sentido na interação verbal enquanto projeto conjunto, nem tudo é nego-
ciável. Por exemplo, não negociamos crenças nem convicções, o que
tem conseqüências por vezes relevantes na continuidade de um tópico e
pode ditar sua “morte”. Pois a atenção dos falantes para a qualidade de
suas relações (preservação das faces, por exemplo) pode sacrificar um
tópico ao perceberem que não há condições de consenso: a única forma
de cooperar é o aborto do tópico. Vejamos um caso típico, embora nada
dramático, que conduz a demonstrações de desinteresse e abandono do
tópico por ausência de negociação.
O fato reproduzido em (1) situa-se no momento em que duas
mulheres de 60 anos, após terem falado sobre a televisão, o teatro, a
música e a literatura dos anos 70, passam a focalizar um detalhe do tópi-
co. O caso ilustra a tese de que, quando conhecimentos e convicções se
confundem, a negociação torna-se difícil. Observe-se que entre as linhas
603 e 621 não ocorre negociação. Ali a questão é se a cantora Marília é
ou não irmã do maestro Júlio Medaglia. A falante L2 diz (linha 603) que
a Marília é irmã do maestro, sendo contraditada por L1 (linha 605) que
para tanto alega a diferença no sobrenome. Nesse momento, L2 acres-
centa que ambos têm uma irmã muito inteligente que é poetisa; L1 (li-
nhas 608-9) contradiz L2 novamente. Na realidade, L1 não estava con-
tradizendo a afirmação imediatamente anterior de que eles tinham uma
irmã poetisa, mas a primeira, relativa à cantora e ao maestro serem ir-
mãos. O interessante é que L1 (linhas 611-12) apresenta a diferença de
sobrenomes como argumento para sua afirmação, no que é retrucada por
L2 com a hipótese de mudança intencional do nome, sendo que L1 não
aceita e volta a se repetir (linhas 615-18) e L2 também se repete (linhas

20
618-619) criando o confronto. Como este ponto não é negociável, só
resta o abandono do tópico e a inserção de um ponto negociável (linhas
622-25), como sinal de desinteresse, quando L1 concorda com L2 na
questão menor ao admitir que se trata de uma “poetisa”. A documentadora
tanto percebeu o impasse que promoveu uma brusca mudança de tópico.
Exemplo (1)
/…/
603 L2 é família toda interessante inteligente ela o irmão ...
o irmão {de Marília} é maestro né ?
605 L1 (que) acho que [não ...
L2 [o irmão ela tem uma irmã que é poetisa
que é muito inteligente também [(né ?)
L1 [é mas eu acho
[que não I.
610 L2 [jornalista e poetisa
L1 eu acho que o maestro Júlio Medaglia ele é
Meda-gli-a e ela é [Medalha com L e H
L2 [eu acho que ela modificou
e ele é irmão dela
615 L1 não não((clique)) parece que não eu não POsso
jurar sobre os evangelhos mas me parece que ... ahn::
ela seria Medalha com L e H ...
L2 [ eu acho que ela modificou
seu nome ... ela( ) [nome
620 L1 e ele MeDA-glia
L2 ( ) tenho impressão
L1 a irmã dela eu conheço que é jornalista né? é uma moça
jornalista
L2 poetisa…
625 L1 poetisa
Doc. e sobre o cinema… [o cinema atual?
L1 [o cinema nacional?
Olha o cinema na/ o atu/ o atual brasileiro /…/
D2 – Inq. 333, p. 249

21
O exemplo (1) traz um caso claro de como se constrói coletiva-
mente uma discordância e como se opera com ela sem resolvê-la. Já que
não se negociam crenças, negocia-se o tópico, ou seja, aborta-se e pros-
segue-se para outro ponto como forma de preservar a relação. As linhas
624-625, com uma repetição mútua lacônica, é indício claro de esgota-
mento de interesse. A documentadora, que percebe o fato, soluciona a
continuidade da relação com uma proposta alternativa logo aceita, inclu-
sive em sobreposição de vozes. O aspecto essencial desse caso reside na
consciência de que mais vale sacrificar um tema do que as relações pes-
soais, caso se queira continuar interagindo. E esta consciência é sinaliza-
da na construção progressiva do desinteresse. Além disso, é oportuno
não confundir colaboração com consenso ou concordância, pois a cola-
boração é apenas uma forma cooperativa de produzir ações cordenadas e
não um procedimento de atingir consensos.
3. Construindo um foco comum
Se em (1) as interlocutoras tinham um foco comum mas insufi-
ciente em virtude de crenças diversas sobre o mesmo tópico, em (2)
dá-se o inverso: não há foco comum e tudo o que se tem é uma tenta-
tiva de construir um foco de atenção comum. Pois numa interação
face a face, a base do sucesso das trocas é a presença de interesses
comuns e referentes partilhados, previamente existentes ou construídos
no processo da interação. Em entrevistas, por exemplo, os tópicos
são sugeridos pelo entrevistador que deve criar condições de
responsibilidade ao seu entrevistado. É assim que o entrevistador não
apenas deve indagar, mas situar sua indagação num quadro de expec-
tativas. Às vezes, o trabalho mais duro é o da busca de sintonia refe-
rencial e produção de interesse mútuo. Nem sempre se é bem-sucedi-
do nessa tarefa, como se observa em (2).
O problema central no trecho citado em (2) é o interesse muito
específico da entrevistadora (Doc.) que desejava obter informações para
seu trabalho lingüístico. A primeira tentativa seria a de estabelecer refe-
rentes comuns e não simplesmente supô-los, como ocorre no momento
em que a Documentadora (linhas 530-2) pede para “descrever um cine-

22
ma” imaginando tratar-se de uma ação e um referente inambíguos. Na
dúvida, a Informante (linha 533) solicita uma confirmação antes de res-
ponder, pois não sabe se cinema é equivalente a “filme”, sendo-lhe
explicitado pela Doc. (linha 534) que se trata do “cinema em si”, “o
local”, “o cinema”. Nada disso adiantou e a Inf. (linha 535) produz uma
das mais temidas assertivas no processo interacional, “eu não entendi a
pergunta”, o que pode significar duas coisas: (a) isso não faz sentido ou
(b) esclareça o que você está dizendo. Em ambos os casos há uma ame-
aça à face da interlocutora e tudo pode acabar ali mesmo. Vejamos o que
acontece.
Exemplo (2)
/…/
530 Doc. uhn uhn ... Dona I. como é que a senhora descreveria um
cinema ... com todos os elementos assim que compõem
o cinema?...
Inf como você diz descrever um:: um um filme?
Doc. não o cinema em si o local o cinema...
535 Inf eu não entendi a pergunta
Doc. o interior do cinema do que que se compõe o cinema? na
hora que a senhora en:: tra antes de entrar:: o que que
aconte::ce eu gostaria que a senhora me dissesse como se
a senhora fosse entrar no cinema tá?... então a senhora
540 o que que a senhora faz primeiro? a senhora chega no
cinema a senhora vai para onde? faz o quê?
Inf certo eu acho que o o o antigamente os cinemas... o
ambiente era era outro... a gente ia ao cinema tinha em
São Paulo tinha uns cinemas ótimos eu acho que aGOra
545 o:: o pessoa::l sei lá eles vão de qualquer jeito ao cinema
do jeito que estão::... eles emendam saem do trabalho
vão ao cinema saem da escola vão ao cinema quer dizer
éh éh a gente encontra no cinema no ah ah ah para
assistir um filme vários éh grupos de pessoas de de de de
550 várias camadas você encontra estuDANte você encontra
pessoa da iDAde eu acho que eh o cinema perdeu

23
muito por causa da televisão... agora se você pergunta o que
eu acho quando eu entro no cinema eu entro...
Doc. não antes de entrar no cinema a senhora... o que que
555 acontece? o que que a senhora faz?
Inf bom adquiro o bilhete para entrar
Doc. uhn
Inf entramos... x: a eu acho que éh o:: ... os cinemas... são::
você vê as poltronas bem acomodadas senta-se assiste-se
560 um filme BEM acomodado os cinemas que nós ternos em
São Paulo não tenho mais ido quase a cinema mas eu acho
que eram::... uns cinemas assim bem::... bem construidos...
o:: ... o Marabá o:: éh sentava-se a gente se sentia bem à
vontade porque era um... um ambiente:: muito assim::
565 requintado hoje já não é mais /…/
DID – Inq. 234, p. 116-7
Note-se que a longa explicação pouco elucidativa da Doc (linhas
536-41) de nada serviu, pois recebeu uma longa resposta da Inf (linhas
542-53) que divagou sobre tudo o que se pode imaginar, inclusive com
dúvidas sobre sua resposta (linha 552-3), sem um foco definido e longe do
pretendido pela Doc, quando diz (linha 554): “não”, que contrasta de ma-
neira significativa com a marca de satisfação “uhn” (linha 557) sinalizan-
do: “agora sim!”. O mais curioso, porém, ouvindo-se o resto da explana-
ção nos momentos seguintes, é perceber que persistiu a falta de sintonia
cognitiva entre Doc e Inf, dando-se o inverso do caso (1), ou seja, a Doc
desiste de insistir, já que percebe tratar-se de empresa sem futuro e deixa
sua interlocutora falar qualquer coisa.
O exemplo (2) mostra que a compreensão é um processo de
sinalização múltipla: referentes comuns, atenção centrada e interesse
construído conjuntamente. Sem esses elementos não só faltará com-
preensão, como não haverá engajamento suficiente para o desenvol-
vimento de atividades cognitivamente sintonizadas e interativamente
coordenadas. Casos como este são possíveis em interações com pa-
péis assimétricos como as entrevistas, em que o entrevistador pro-
põe, mas não comanda.

24
4. Demonstração de (des)interesse e (não)partilhamento
Dois interlocutores podem não ter previamente os mesmos inte-
resses nem conhecimentos partilhados, sendo que, neste caso, devem
construí-los dando sinais explícitos de que os construíram, caso estejam
seriamente engajados. Em (2), isto não ocorreu, mas em (3) temos um
caso de nítida mostra de atenção com antecipação/continuidade que re-
velam partilhamento construído previamente e sinalizado (linha 384) e
atenção (linha 392) bem como interesse (linhas 402…) que dão continui-
dade ao tópico.
Exemplo (3)
/…/
372 L1 eu não sei eu ouvi parece que o:: eh:: o curso Objetivo
né? está lançando um um ... [curso de::
L2 [existe uma Faculdade
375 Interamericana aí que lançou dois ou três anos
seriam ... cursos vagos ... entende né? ... agora o::
[é eu quando
L1 [
L2 adentrei numa faculdade eu:: para mim foi uma decepção
380 ... eu esperava um negócio completamente diferente
você o que é que você sentiu?
L1 não inclusive eu estava respondendo para você:: colega
o o o:: fato de eu ter escolhido a profissão do do ...
L2 economista ...
385 L1 economista né? ... então realmente :: quando:: ... eu fiz
o ginásio estava fazendo o ginásio ... em algumas ocasiões
pensei em ser ... éh arquiteto depois eu uma ocasião ...
((risos)) fiz a inscrição para o para o no Objetivo ...
depois eu resolvi ser médico ... mas nesse meio tempo
390 eu já estava trabalhando e procurei realmente uma
uma profissão ... que se::
L2 enquadrasse
L1 coadunasse mais (com) aquele tipo de serviço ... enfim
também foi em função do tempo ... porque::não havia

25
395 uma possibilidade de perder mais alguns alguns anos
enfrentando um vestibular para uma escola de Medicina
ou uma escola de Engenharia ... mas atendeu plenamente
e:: hoje estou satisfeito com o curso ... ele realmente
pôde me dar assim ... uma visão ... do global ... e:: está
400 atendendo não sei aconteceu isso no no seu caso também
ou não?
L2 não o:: eu eu senti um choque quando eu adentrei a
faculdade entende? /…/
D2 – Inq. 62, p. 70
Quando L1 (linha 383) hesita e solicita socorro, L2 (linha 384)
não titubeia em antecipar a palavra chave “economista”, um conheci-
mento construído em partes anteriores do diálogo às quais L1 acabara de
se referir (linha 382) e que aceita para prosseguir; no final dessa sua
contribuição, L1 (linha 391) hesita novamente e é outra vez auxiliado
por L2 que sugere continuidade, assumida por L1 parafraseadamente na
mesma forma verbal. Por fim, o interesse prossegue quando L1 (linha
400-1) entrega o turno na certeza de que seu interlocutor retomaria
topicamente o tema.
Em termos estratégicos, o que se observa em (3) é uma tripla sin-
tonia: cognição, interesse e atenção. Três requisitos para que a compre-
ensão se dê sem a necessidade de concordância e para que o tópico con-
tinue fluindo. Se observarmos o caso (4), veremos uma situação típica de
desinteresse pelo tópico em andamento. Isto pode ser observado pela
rarefação nas contribuições de um dos parceiros do diálogo e pelo seu
baixo engajamento no assunto.
Os dois interlocotures são um engenheiro de 26 anos (L1) e uma
psicóloga de 25 anos (L2), convidados a discorrer sobre o comércio e a
cidade de São Paulo. Na realidade, discorriam sobre seus interesses e
eventualmente sobre o tema proposto pela documentadora do diálogo.
Num dado momento falavam sobre compra, valor de troca, mercadorias
e gastos. O tema fluia muito pouco e cheio de digressões sem engaja-
mento efetivo demonstrado pela lentidão no fluxo da fala e num tom
monótono. Veja-se, no trecho (4) um exemplo claro dessa situação.

26
Exemplo (4)
663 L1 outro dia aí então o (Fábio) contando umas
histórias de um::... de um de um boy barato aí né?...
665 carro envenenadíssinto então temos que quando o cara
vai acelerar assim:: ... ele aGArra a direção assim::
pisa no acelerador:: ... e faz um movimento assim como
estivesse caval/ cavalgando
L2 ahn ((ri))
670 L1 e agarra a máquina [assim ((ri))
L2 [queria estar num cavalo
L1 por quê? … analogia... ele está cavalgando né?
é o::… o:…
L2 ((ri)) o rei do oeste ahn
675 L1 não tem oeste aqui... ((ri))
L2 não tudo bem:: eu sei entendi
D2- Inq. 343, p. 33-34
Observe-se que L1 (linhas 663-668) tentava apresentar uma situ-
ação para depois analisá-la em relação com o tópico que introduzia. Ele
estava propondo uma analogia do boy barato com o mundo da selva.
Nesse momento, L2 (linha 671) dá uma demonstração de completa dis-
tração e dissintonia tópica ao dizer “queria estar num cavalo”, o que
leva L1 (linhas 672-3) a indagar surpreso “por quê?”, pois só estava
fazendo uma analogia, não sendo conveniente aquela observação. A fal-
ta de engajamento de L2 torna-se mais evidente quando ela associa o boy
barato ao “rei do oeste”, o que não agrada a L1 que retruca “não tem
oeste aqui”. Nesse ponto L2 busca dar uma demonstração de que estava
entendendo, mas não estava interessada no assunto.
O exemplo (4) mostra como se constroi uma relação de não-cola-
boração tópica, quando um dos interolcutores discorre num faixa (faixa
séria) e o outro discorre em outra faixa (faixa não-séria): um toma literal-
mente o que o outro propõe como analogia. Trocas deste tipo são utiliza-
das intencionalmente para produzir humor ou então construir piadas ou
xistes, pois mostram interlocutores jogando em campos diversos, sem
sintonia cognitiva.

27
5. Construindo conhecimento interativamente
Situação típica de construção de conhecimento é a da sala de aula,
embora não lhe seja exclusiva, pois ela se dá também no dia a dia. Contu-
do, é no contexto de sala de aula que ocorre o exemplo (5) e ilustra como a
compreensão se constroi interativamente numa rede de relações com espa-
ços cognitivos sobrepostos e interconectados. Em (5) temos o caso de uma
aula de Antropologia dada por um professor de 51 anos que dissertava
sobre a relação “linguagem e pensamento” e se ocupava em mostrar que a
percepção é uma elaboração cognitivamente ativa e não simples sensação
passiva do organismo ou dos sentidos. Na realidade, ele defendia a tese de
que os estímulos externos não têm todos o mesmo peso, nem recebem dos
indivíduos a mesma atenção. Sempre procedemos a uma seleção coman-
dada por condições prévias (uma espécie de conhecimentos-âncoras) que
permitem identificações e manifestação de interesse. Após introduzir este
aspecto teórico, o professor percebe que não está sendo claro o suficiente e
recorre a uma das estratégias mais comuns e indicadas nessas situações: a
exemplificação. Vejamos o caso em (5):
Exemplo (5)
/…/
252 por exemplo... bom... deixe eu dar um exemplo...
bom... um exemplo clássico ...
um índio... que foi
trazido ... de uma reserva ... do norte do Canadá ...
255 para Otawa se não me engano uma das cidades canadenses ... levaram este índio a ver tudo pela primeira vez que ele tinha contato com uma cidade ... do mundo do Ocidente... quer dizer ele passou por aquilo olhando
de repente ele parou embasbacado
260 ficou olhando o quê? um indivíduo subindo num
poste elétrico para consertar… fios… coisa
equivalente... esse indivíduo tinha um cinturão de
couro ... não sei se vocês já viram isso nas ruas de São
Paulo? ... não é?... tem um cinturão de couro que
265 tem nos calcanhares uma espécie de esporão então
... ele finca o esporão no... no - - eu acho que isso

28
não há mais em São Paulo porque não há mais postes
de madeira os postes todos são de cimento não é?...
de concreto... e... de vez em quando... vocês
270 percebem que eu sou um indivíduo de outra geração já... sou um quadrado mesmo não é?...
mas enfim isso também é um::... é um exemplo bastante
antigo... é de Franz Boas não é?... digamos mil
novecentos e vinte... - - ((
risos)) então havia o poste
275 de madeira com esse esporão foi isso que o índio
percebeu ... vocês compreendem?... porque... na cidade
de Otawa ... tudo o que existia... era de tal modo
novo... que não podia ser relacionado com a
experiência anterior desse índio certo?... quer dizer
280 imagine que ele visse pela primeira vez a locomotiva.
aquela coisa imensa que se move ... com que ele tinha
relacionado com nada de preciso ... a máquina... é um
universo estranho a ele... mas
ele viu um indivíduo
subindo num poste de uma maneira muito fácil ora
285 em toda esta região os índios sobem em certas
árvores... por exemplo... certas formas de( )... que
chama-se... em português chama-se boldo parece
é uma planta que dá uma seiva açucarada... da qual
se faz uma rapadura que aliás é deliciosa e um ...
290 uma espécie de melado então eles sobem até certa
altura da árvore e talham… subir numa árvore por
meios relativamente simples como seja esporão...
furo... e uma correia de couro passada na cintura que
o indivíduo se apóia na árvore...
foi qualquer coisa
295 que a experiência anterior do índio permitiu que ele
compreendesse ele tinha um esquema anterior no
qual os estímulos novos podiam ser enquadrados
certo?... isto é... para que haja. percepção... é
necessário antes que já haja uma organização do
300 campo perceptivo claro? quer dizer é preciso
que haja... um certo modo de estruturar este mundo
porque senão as coisas não fazem sentido ... /…/

29
A estratégia da exemplificação foi o recurso interacionalmente
eficaz escolhido pelo professor para ilustrar suas teorias da percepção
cognitiva como diversa da percepção meramente sensorial. E ele o faz
situando o problema (linhas 253-56) e identificando o momento e o fato
que despertou o interesse daquele índio perdido na “selva urbana” (li-
nhas 259-61). Aproveita a oportunidade para estabelecer um paralelo/
ponte com o momento atual numa auto-ironia bem estudada (linhas 269-
71) que leva os alunos ao riso (linha 274), indicando empatia com a
sugestão. Essencial nesta seqüência tópica não é o caso particular do
índio, mas a conclusão que aparece no final (linhas 294-300), verdadeiro
objetivo da digressão.
O segmento (5) situa-se parenteticamente no contexto da argu-
mentação e explanação geral da aula, promovendo nos alunos a com-
preensão necessária para prosseguir. É uma ação-muleta praticada como
trampolim para a construção das condições de possibilidade de com-
preensão com efeitos auto-aplicativos. Depois disso, os alunos já esta-
vam em condições de saber do que se tratava, ou seja, tinham saído da
condição de ignorância para o conhecimento.
O que acabei de mostrar é precisamente a estratégia mais comum
de que nos servimos em todas as situações em que pretendemos cons-
truir no outro condições ideais de recepção de conteúdos futuros. A
exemplificação situada é uma das estratégias mais eficazes para produ-
ção de sentidos pretendidos e estabelecer a compreensão. Ela é comum
no dia a dia e nunca é sentida como digressão do tópico.
6. Construindo conhecimentos, condições e regras de
jogo
Antes de dois (ou mais) indivíduos entrarem em interação verbal,
dependendo do contexto e das condições em que o fato se dá, as expecta-
tivas são muito diversificadas. Seja pela diferença de perspectiva ou de
conhecimentos partilhados. Um encontro ao acaso entre estranhos na
porta do elevador não promete muito, já o encontro de dois namorados
no final da tarde promete mais; difícil mesmo é o encontro do réu na
acareação com testemunhas da acusação; menos complicado é o encon-

30
tro do orientador de tese com seu orientando; dependendo das circuns-
tâncias, é fácil ou então imprevisível o encontro de marido e mulher e
assim por diante. Em todos os casos haverá algo a dizer, mas as expecta-
tivas com respeito ao que será dito não são as mesmas. Como lidamos
com este aspecto nas nossas interações?
Em primeiro lugar, por menos que o façamos, sempre temos ex-
pectativas prévias; em segundo lugar, sempre fazemos algo para que elas
ocorram; em terceiro lugar, ficamos alerta para o que ocorre do “outro
lado”. Vista assim, a interação assemelha-se a um jogo cuja primeira mis-
são é estabelecer suas próprias regras. Interagir é jogar com regras dinami-
camente escolhidas, por isso é um jogo perigoso: nem sempre se escolhe a
regra certa. Vejamos três trechos breves que mostram como esse jogo e
suas regras são construídos. Esses segmentos procedem de uma entrevista
em que uma mulher de 44 anos, preocupada com sua silhueta, responde,
entre outras, a questões sobre suas preferências culinárias. Vejamos:
Exemplo (6)
/…
22 Doc. e o que que você costuma comer em cada uma dessas
refeições?
Inf. bem::... eu não estou entendendo BEM aonde você quer
25 chegar com esse “o que você costuma COmer em cada
uma dessas refeições”
Doc. desde o café da manhã até a hora do jantar... o que você
costuma comer em cada um deles?
Inf. ah como eu já disse né? as comidas comuns arroz
30 verduras:: carne peixe não porque eu não gosto de peixe
ah::… às vezes… massas né?… e nadaa mais de
tanto extraordinário
DID – Inq. 235, p. 120
A pergunta da Doc (linhas 22-23) foi aparentemente clara, mas
poderia ser uma cilada, já que antes a a Inf havia dito que se preocupava
muito com sua linha. Assim, na dúvida quanto à intenção de sua
interlocutora, a Inf precisa de garantias para aprosseguir. Daí o par inseri-

31
do (linhas 24-28) entre a pergunta inicial e a resposta final (linhas 29-32).
Quando a Inf diz “eu não estou entendendo BEM aonde você quer
chegar…” ela está ameaçando a face de sua interlocutora, com elevação
do tom em “BEM”, o que sugere “segundas intenções”. Isto obriga a
Doc a refazer sua pergunta mudando a expressão “em cada uma destas
refeições” que poderia sugerir “muitas refeições”, para uma formulação
mais adequada e menos ameaçadora “desde o café da manhã até a
hora do jantar”, o que deixa a Inf livre para definir comidas em geral,
sem um número de refeições específicas, tal como se nota na resposta
(linhas 29-32).
A questão aqui é muito sutil e revela como uma pergunta, por
mais inocente e clara, sempre pode ser recebida num contexto congnitivo
que gera significações tidas como inadequadas, mesmo que não preten-
didas pela indagação. Veja-se o caso (7) que é muito diferente do anteri-
or. Aqui a Inf (linhas 141-142) pede um esclarecimento com o objetivo
de certificar-se de que compreendeu corretamente a indagação: o proble-
ma é de conteúdo e se trata de construir uma expectativa partilhada. Ve-
jamos o exemplo:
Exemplo (7)
/…/
138 Doc. você disse que gosta de car::ne... que tipo de carne que
você gosta e quais os seus pratos prediletos que são
140 feitos com carne?
Inf bom aí o tipo que você pergunta é a maneira como eles
são feitos?
Doc. também
Inf. bom eu prefiro carnes assadas... carne de porco... um
145 pernil um lindo dum pernil cheio de bataTInhas assim em
volta é uma delícia né? ((risos)) (então)... lombo de
porco... ahn frango... urn franguinho dum frango assado né?
que vocês devem estar acostumadas também a...
Doc. uhn::: ...
150 Inf ((riu)) a saborear por aí né? ... frangos:: ... carne de vaca
bife... bife à milanesa:: bifes ... éh grelhados:: não é?...
são os:: tipos que eu prefiro de carne...
DID – Inq. 235, p. 123

32
A questão era, inicialmente, o esclarecimento da expressão “tipo
de carne”, que poderia ser duas coisas: (a) espécies de carne (bovina,
suina, aves etc) ou (b) modo de cozinhar (tipos de pratos). A Inf dá uma
sugestão de interpretação (linhas 141-142) que é aceita pela Doc com a
resposta “também”, indicando que esta era uma possibilidade correta. A
partir daí, a Inf descreveu seus pratos prediletos com uma sugestão de
engajamento direto da(s) Doc ao dizer “que vocês devem estar acostu-
madas também a …”, recebendo da Doc um sinal de concordância na
entoação típica “hun:::” com alongamento de vogal que levou a Inf à
satisfação com manifestação de riso e prosseguimento com mais pratos
saborosos.
A diferença entre a indagação da Inf em (6) e em (7) está precisa-
mente na natureza da certificação buscada: em (6) trata-se de certificar-
se de uma intenção e em (7) de um conteúdo. Isso se revela até mesmo na
formulação da pergunta, que num caso leva à repetição da indagação e
no outro apenas à certificação de uma expressão. Em ambos os casos, as
condições do prosseguimento foram construídas mutuamente e não pre-
viamente dadas.
Semelhante a (6 e 7), o caso (8) traz elementos novos que ilustram
como as pessoas conseguem construir interesses comuns e condições ide-
ais para suas contribuições. Em geral, quando uma pergunta genérica é
feita e admite muitas alternativas, somos levados a criar um contexto para
o qual construímos nossa escolha. Este é o caso típico da pergunta da Doc
(linhas 330-1): “ se você fosse preparar (…) pruma visita (…) que tipo
(…)?” que é aberta e contém três variáveis. A primeira reação da Inf foi de
estupefação “IH:: meu Deus” indicando dúvida, mas logo sugerindo uma
hipótese de contexto: “vocês por exemplo?” concretizando a escolha no
ambiente imediato. A sugestão gerou risos e tumulto, indicando que não
era prevista, mas aceitável. Este caso é ilustrativo para a construção de
regras de jogo interativas ad hoc. Vejamos o que acontece.
Exemplo (8)
/…/
330 Doc. se você fosse preparar um almoço... pruma visita tal...
que tipo de almoço você faria?
Inf IH:: meu Deus (o) que será que eu ia fazer quem seria a
visita? vocês por exemplo? ((riu))

33
Doc. ali é:: pode ser a gente ((vozes superpostas e risos))
335 Inf. se vocês (fossem::)... não um jantar já teria um pouquinho
de mais sofisticado né? então vamos fazer um almoço o
almoço é mais comunzi::nho
assim [(então)
Doc. [((risos e vozes superpostas)) merece
340 Inf não não é questão que mereça nós vamos... vamos então
assim:: ... éh::... conservar o:: protocolo né? um jantar
exige:: ... um:: preparo mais sofistica::do à no:::ite né?
vocês sabem as companhi::as são diFEREN::tes agora
num jantar vocês (viriam) lá em casa seriam sozi::nhas eu
345 sozinha assim né? ((risos)) não teriam ((riu))
acompaNHAN::tes nada disso ... então ((falou rindo))
então o negócio seria diferente ... eu primeiro ia saber o
que é que vocês preferem comer né?... porque não teria
cabimento eu che/ convidá-las pra jan/ pra almoçar em
350 casa e preparar um:: um prato do meu gosto não é?
então teria que saber o que é que vocês preferem...
e o que é que vocês preferem?
Doc. não vamos supor que a gente omita a opinião gente::
eduCAda (como eu sou) ((risos)) assim “não:: qualquer
355 coisa ser::ve e tal e não sei que” e o que que você
prepararia se a gente... deixasse... tudo a seu encargo
Inf . bom... suponho que a gente... que eu agora fosse:: fossem
dez horas da manhã por exemplo ... então daqui a pouco
estaria na hora de ir embora né? ... então fala “vamo::
360 vamos almoçar comigo?” então vocês “Vamos” … eu teria
que preparar um negócio bem:: bem mais rápido né?...
então eu iria pra casa... ia dar uma:: vistoria na geladeira
pra ver o que que tinha lá:: e supondo que tivesse... carne
né?
faria... bife... /…/
DID – Inq. 235, p. 127-128
Aqui ocorre uma seqüência de negociações bem humoradas que
pretendem conduzir a um objetivo comum com condições contextuais

34
definidas. A Inf assume o jogo e dita as regras, embora a Doc faça algum
esforço para manter uma distância relativa (linhas 353-56) sem conseguir
o intento e entregando a decisão à Inf ao dizer “tudo a seu encargo”.
Note-se que a questão inicial era: “se você fosse preparar um
almoço (…)?”. A resposta não foi relativa à questão mas às condições
em que a questão poderia ser respondida com o engajamento da(s) Doc
para a decisão final que vem na forma de uma hipótese “suponho que a
gente (…)” situada num ponto do dia “almoçar comigo” decidido horas
antes “dez horas da manhã”. Daí por diante, tudo fica mais fácil e inicia
a resposta.
O exemplo (8) evidencia alguns aspectos muito importantes a res-
peito do engajamento dos interlocutores em ações comuns para constru-
ção de condições favoráveis à compreensão na interação. Se comparar-
mos este caso com o exemplo (1), percebemos com clareza o que signi-
fica co-produção de condições interativas. Neste caso, o prefixo co- na
expressão co-produção recobre uma série de processos, tais como cola-
boração, coordenação e cooperação que resultam na construção con-
junta (co-construção) de compreensão, sem a necessidade de haver con-
senso ou concordância (v. Jacoby & Ochs 1995). Certamente, as repos-
tas da Inf em (8) não foram as pretendidas pela Doc, mas foram as obti-
das num processo colaborativo.
7. Marcas de atenção
Construir sentidos colaborativamente na interação significa voltar
a atenção para uma tarefa comum e sinalizá-la. Esta sinalização tem marcas
que se dão em atividades rituais como os olhares, os movimentos do
corpo, os sinais de atenção e os marcadores conversacionais produzidos
com uma certa carga entoacional e assim por diante. Assim, um dos
indicadores de compreensão entre os participantes da interação é a forma
como sincronizam suas atividades e não apenas como conduzem os con-
teúdos de seus tópicos. Uma boa sincronia pode indicar maior atenção
para o que está em andamento e uma má sincronização pode ser até
mesmo um indicador de problemas de compreensão.

35
Um dos recursos importantes neste caso é a prosódia que é usada
com enorme intensidade e funciona como um sistema de sinalização ou
de “pista de contextualização”, adotando a expressão de Gumperz (1982).
Ela se compõe de: (a) entoação; (b) mudança de altura do som; (c) inten-
sidade; (d) alongamento de vogais; (e) pausa e velocidade; (f) ritmo e (g)
mudanças de registro no som.
É evidente que todos estes aspectos estão correlacionados, de
maneira que não se pode, a rigor, diferenciá-los de forma estanque. A
prosódia é aqui vista como um componente gramatical, fazendo parte
tanto da fonologia como da sintaxe da oração, mas tem sua importância
também na semântica e na pragmática. Contudo, segundo frisa Gumperz
(1982:100), o essencial é perceber “que tipo de informação os falantes
depositam na prosódia em suas interações verbais”.
Segundo Gumperz (1982:104), o valor de sinalização semântica
da informação prosódica tem dois componentes: (a) ajuda a selecionar
entre uma série de possíveis interpretações ao dirigir o ouvinte pelos
meandros da significação inerente aos elementos lexicais utilizados, (b)
une os traços semânticos chave ao tema e define a linha do argumento.
Gumperz lembra que as pistas prosódicas baseiam-se sistematica-
mente em padrões de usos prosódicos convencionalizados. Estes padrões
não funcionam ou significam isoladamente, mas sim no contexto em que
são empregados e em relação com uma série de outros fatores, por exem-
plo, os elementos lexicais, a organização sintática etc., no contexto do
discurso em andamento e na dependência das experiências do ouvinte.
Observemos o caso (9a,b,c), uma situação interessante no final de
um diálogo, em que a(s) documentadora(s) tenta(m) negociar com uma
das informantes mais tempo de gravação. O curioso, neste caso, é que
tudo foi desencadeado por uma observação fortuita da Locutora L1 (li-
nha 1565) que (na ausência de gravação em vídeo podemos supor) deve
ter olhado para seu relógio dizendo “meu relógio está atrapalhando a
nossa”, indicando com isso que estava com pressa de acabar. Essa obser-
vação inserida vem desconectada do contexto do tópico; mas não inter-
rompe a fala que prossegue (linhas 1568-1594, aqui suprimidas). Pode-
mos imaginar que durante essa fala L1 deve ter olhado várias vezes para
o relógio, o que suscitou a observação da Doc que intrerrompe L1 em
sobreposição de vozes (linha 1600) sem a menor motivação tópica. Isto

36
modifica todo o andamento do discurso e traz uma digressão que constroi
outra relação entre os participantes e conduz a gravação ao fim.
Exemplo (9a)
1561 Doc e você por que que você fez?
L1 havia perdido o meu pai fazia:: ah no no primeiro colegial ...
e:: eu
o meu pai fazia:: ah no primeiro colegial… e:: eu
precisava ter uma ah optar por uma carreira pro/
1565
meu relógio está atrapalhando a nossa-- por uma
carreira profissionalizante... eu achei que as coisas dali
para frente seriam mais difíceis eu comecei o colegial...
((aqui foi suprimida uma parte da fala ininterrupta de L1 entre as linhas
1568-1595))
1595 lecionei no secundário sabe? então daí o motivo de eu ter
escolhido Pedagogia ... e gosto gosto muito... da::
psicologia da criança ... do adolescente a psicologia em
geral me cativa sabe? ... então... aí está o motivo pelo
qual... eu [escolhi esse curso
1600 Doc.
[a senhora está com horário?
L1 eu estou vocês teriam muito mais teriam necessidade
de mais tempo?... é?...
L2 muito mais?
Doc. uhn::... dez minutos
1605 L1 dez minutos? sim... porque eu tenho crianças várias
para pegar na escola... sabe? eu tenho que ir até em casa
buscar o carro senão não cabe ... ((risos)) num táxi
D2 – Inq. 360 p. 175-9
Nesse momento do diálogo a atenção está voltada não mais para o
tópico em andamento e sim para a solução conjunta de dois problemas
em que todos os participantes se angajam vivamente:
(a) buscar as crianças no colégio?
ou
(b) prosseguir com a gravação por mais tempo?

37
No caso de (a) ter a preferência, encerrar-se-ia o diálogo, mas no
caso de (b) deveria haver uma solução alternativa para (a). É o que a Doc
tenta sugerir ao propor (linha 1604): “uhn::… dez minutos”.
Observe-se que a prosódia ocorre aqui com um marcador de dú-
vida (um som nasal alongado), como quem diz: “deixa eu pensar um
pouco”, para então propor, num ritmo rápido e uma entoação impositiva,
sem maiores comentários: “dez minutos”. A tomada de turno de L1 se
dá com a repetição da proposta indagativamente, como quem quem diz:
“tudo isso?”, acrescentando as razões da dúvida.
Daí por diante, desenvolve-se uma sucessão rápida de turnos cur-
tos, todos com marcas prosódicas características e repetidas mutuamen-
te, sugerindo engajamento com o mesmo objetivo.Vejamos a continui-
dade do diálogo em (9b):
Exemplo (9b)
L2 não teria possibilidade... dela::... falar um pouco mais…
1610 mais uns dois minutos ou três depois eu complementaria
o resto? ... [ou precisa papo mesmo?
Doc. [porque)( ) entre vocês duas né?
L1 pois é
Doc. ahn ahn
1615 L2 onde é que elas estão?...
L1 no Fernão Dias em [Pinheiros
Doc. [eu posso buscá-las para a senhora
L1 é?
Doc. é
L1 depois voltaríamos aqui?
Doc. é...
L2 se ficássemos mais dez minutos já levaria direto
[(tudo direto)
L1 [ ah está bom... então está bom...
1625 Doc. a senhora acha que... vai criar problema?
L1 tem telefone aqui não?
Doc. aqui não
D2 – Inq. 360 p. 175-9

38
É interessante observar que todas as contribuições de L1, a partir
do momento em que situou seu problema, foram lacônicas ou indagativas:
L1 pois é
L1 no Fernão Dias em Pinheiros
L1 é?
L1 depois voltaríamos aqui?
L1 ah está bom … então está bom
L1 tem telefone aqui não?
Com isto estava construindo uma solução negativa para o proble-
ma, ou seja, indicava propensão a não continuar o diálogo. Isto se torna
evidente quando L1 coloca mais uma condição: encontrar um telefone
para avisar as crianças. Isto tornava as coisas mais difícieis e apontava
para o fim iminente da gravação. Observe-se como agora L1 aumenta
seus turnos com uma dificuldade adicional de cada vez:
Exemplo (9c)
L1
não tem {telefone} é longe lá embaixo tem algum público...
não tem?
nesse prédio?
1630 Doc. tem no bê ((vozes superpostas; trecho inintelível)) no cê...
L2 no cê lá no [cê tem porque foi de lá
L1 [ ( )
L2 que [eu liguei
Doc. [ ( )
1635 L2 é no cê
Doc. é...
L2 no cê tem um telefone público... que horas as crianças
saem da escola?
L1
eh:: umas saem umas cinco e meia esperariam as das
1640 seis
L2 ahn ahn
L1
e as das seis iriam se encontrar com as das seis e vinte os
das cinco e meia eu ainda((risos))
L2 ahn ahn

39
1645 L1((risos)) então quer dizer que se fossem só os meus não
teria problema é que eu levo ... ah... ah filhas de::: uma
vizinha sabe?... daria para
esperar [um minutinho?
L2 [quantos são?
1650 L1eu vou telefonar são dois eu vou telefonar e já venho
é público lá embaixo?
Doc. é não não... a senhora poderia usar... o telefone
não é público
L1 não?
1655 Doc. não é:: da secretaria lá da da portaria da
L1 ( )o número do prédio?...
L2 eu vou com a senhora...
L1 é?
L2 então um minutinho só...
D2 – Inq. 360 p. 175-9
Isolando os trechos assinalados acima, temos a fala de L1, inter-
calando as pontuações (marcas de atenção) de L2:
L1 eh:: umas saem umas cinco e meia esperariam as das seis (L2 ahn ahn) e as
das seis iriam se encontrar com as das seis e vinte os das cinco e meia euainda((risos))
(L2 ahn ahn) ((risos)) então quer dizer que se fossem só os meus não teria problema
que eu levo ... ah... ah filhas de::: uma vizinha sabe?... daria para esperar um
minutinho? (L2 quantos são?) eu vou telefonar são dois eu vou telefonar e já venho é
público lá embaixo?
Ao tomar a palavra com todas essas observações e apenas com a
participação de L2 e não mais das documentadoras, tudo indicava que
não havia mais nada a fazer e combinar. Não sabemos se depois disso o
diálogo prosseguiu, pois o certo é que a gravação conclui neste ponto.
O interessante neste caso é como as duas locutoras e as documen-
tadoras conduziram este final de diálogo cada uma com intenções bem
marcadas pela própria prosódia adotada e pela natureza das contribuibui-
ções. É claro que as documentadoras estavam em posição desvantajosa
para impor condições. A Locutora L1 tinha mais argumentos, mas ope-

40
rou competentemente, ganhando tempo e conduzindo o desfecho para o
pretendido: término do diálogo.
O caso reproduzido em (9a,b,c) ilustra claramente como se pode
construir conjuntamente, com marcas de atenção mútua, sincronização
prosódica, falas rápidas e soluções alternativas, a compreensão mútua
sem ameaças às faces e preservando as identidades.
A entoação é um recurso interessante e fundamental como ele-
mento sinalizador de construção de interesse. Nós sabemos que os
marcadores conversacionais (MC) produzidos pelos falantes são muitas
vezes demonstrações de interesse e sugestões de continuidade da fala.
Esta propriedade funcional dos MC produzidos com uma entoação em
tom de surpresa ou curiosidade (alongamentos de vogais) levam o falan-
te a se “soltar” mais e a desenvolver seu tópico com mais minúcias. O
trecho reproduzido em (10) ilustra um caso desses com muita proprieda-
de. Trata-se de um diálogo entre duas pessoas idosas: L1 é um homem de
81 anos, viúvo, e L2 é uma mulher, irmã de L1, com 85 anos, também
viúva. Ambos vinham narrando fatos pitorescos de sua vida, coisas do
início do século, particularmente certos aspectos da moral daquele tem-
po. Em (10) observa-se como a documentadora constroi o interesse no
assunto e motiva L1 a prosseguir utilizando apenas MC de atenção com
uma entoação instigadora.
Exemplo (10)
/…/
196 L1 NÓS rapazes então (vamos lá já que está-se a
falar) em toalete era::nosso ponto ficava na
rua Direita ali al/ali na esquina da::... da:: da
rua José Bonifácio... rua José Bonifácio que encaixa na rua
200 Direita justamente ali era o ali tinha um tinha tinha
o::... a drogaria... drogaria Amarante... e ali o bo/ o
bonde (segue) o bonde se/... era um ponto de bonde
o bonde parava ali... então nós rapazes ficávamos ali para
ver as moças descer... para ver dois dedos de perna das
205 moças nada mais do que dois dedos porque está/estava
(oculto)((riu))

41
L2 é:: hoje é diferente...
L1 ((riu))dois dedos de perna das moças... estavam(evi/
evid/)evi/evidentemente (ocultas)...
210 Doc. ahn::...
L1 e:: as moças (quer dizer::)... havia muito mais…
diFIculda:: de de um ra /rapaz (era) di Ficilmente um
rapaz saia com uma moça… muito difícil… a não
ser quando havia muita intimidade… os namorados
geralmente namoravam:: ... ( ) [de lon::ge de esquina
L2 [na janela
L1 de janela...
Doc.
[NO:::ssa
L1 [e conversazinha
220 L2 [tinha hora para namorar e fechar a janela
L1 é [(no)nosso tempo isso por volta de mil novecentos
L2 [(quer dizer:: lá em casa)
L1 e quin::ze mil noventos e dezesseis:: mil novecentos
e quator::ze... nas pri/primeiras décadas nas duas
225 primeiras décadas depois os costumes foram se::
se:: li/liberando mais...
Doc.
é::...
L1 nas duas nas duas primeiras até na terceira década ...
ainda::... havia muito muito reca::to ... e::... naquele
230 tempo apontava-se uma moça mais ... mais escandalosa
Doc.uhn::...
D2- Inq. 396 p. 184-5
Os MC “anh::”, “NO:::ssa”, “é::” e “uhn::”, todos produzidos
com entoação alongada em tom de surpresa, são as únicas contribuições
da documentadora neste trecho, mas servem adequadamente como inter-
pretação um tanto maliciosa do dito que visam a incentivar o falante a
prosseguir em suas observações pitorescas. Tanto L1 compreende esta
interpretação que apesar de ser muito recatado, como se nota ouvindo o
restante do diálogo, aprofunda com uma ponta de malícia suas observa-
ções. A reação de L1 teria sido seguramente muito outra se a Doc não
tivesse dados esses sinais com aquela entoação.

42
8. Considerações finais
As análises feitas neste ensaio objetivam sugerir que muito do que
acontece na interação verbal face a face deve-se a inferências produzidas
em atenção a atividades sincronizadas e a sinalizações para-lingüísticas
interpretáveis e não a simples conteúdos proposicionais. Esta era tam-
bém a sugestão inicial: nem tudo o que se compreende numa interação
social vem envelopado em linguagem verbal, mas muito está na própria
relação construída entre os indivíduos e nas atividades contextualizadas.
Em relação a isto lembraria Goffman (1998:12), quando afirma em seu
fascinante ensaio programático “The Neglected Situation”, de 1966:
“As características de um discurso que podem ser claramente transfe-
ridas para o papel através da escrita têm sido enfocadas já de longa
data; entretanto são as peças intricadas da fala que estão agora rece-
bendo cada vez mais atenção. O movimento da língua (em certos ní-
veis de análise) é na verdade apenas uma das partes de um complexo
ato humano cujo significado deve também ser buscado no movimento
das sobrancelhas e da mão.”
Seguramente, esse complexo ato humano que é a liguagem em
situações sociais autênticas continua desafiando os estudiosos da intera-
ção verbal. Goffman lembrava que um gesto produzido pelos indivíduos
engajados numa interação não é o mesmo que quando produzido fora da
interação; um tom de voz alto produzido por dois indivíduos em intera-
ção a uma distânctia razoável não é o mesmo que quando produzido em
interação próxima e assim por diante. Portanto, as ações são contextuais,
engajadas, localmente significativas e vivenciadas.
Para a investigação aqui sugerida gostaria de adotar a noção de situ-
ação social tal como proposta pelo mesmo Goffman (p. 13), quando diz:
“Eu definiria uma situação social como um ambiente que proporcio-
na possibilidades mútuas de monitoramento, qualquer lugar em que
um indivíduo se encontra acessível aos sentidos nus de todos os outros
que estão ‘presentes’, e para quem os outros indivíduos são acessíveis
de forma semelhante. De acordo com esta definição, uma situação so-
cial emerge a qualquer momento em que dois ou mais indivíduos se

43
encontrem na presença imediata um do outro e ela dura até que a pe-
núltima pessoa saia.”
Um encontro social dá origem a uma conversação. Na conversa-
ção, que é socialmente organizada sob vários aspectos, por exemplo,
pela mesma língua, por um tópico em comum, por conhecimentos parti-
lhados, por engajamentos múltiplos para fins comuns etc., temos tam-
bém “um pequeno sistema de ações face a face que são mutuamente
ratificadas e ritualmente governadas, em suma, um encontro social”.
(Goffman 1998:15).
Neste ensaio só foram analisados alguns aspectos dos processos
de produção de sentido situadamente. Muitos outros poderiam ser aqui
tratados, tais como as correções (auto e hetero-correções), as seqüências
de pares inseridos (com funções diversas) e as digressões ou inserções
parentéticas como movimentos típicos de construção de sentidos. Espe-
ro que os elementos trazidos e os exemplos analisados já sejam suficien-
tes para dar uma noção de como se organizam e conduzem as atividades
na interaçaão face a face. Trata-se de uma primeira entrada num tema
que está a merecer aprofundamento, considerando-se sua relevância para
um melhor entendimento dos processos de produção de sentido nos en-
contros sociais na vida diária, de modo especial em sociedades tão com-
plexas e problemáticas como a nossa.
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Philadelphia, John Benjamins, p. 239-267.

PROCEDIMENTOS E RECURSOS
DISCURSIVOS DA CONVERSAÇÃO
Diana Luz Pessoa de Barros
Considerações iniciais
Neste texto retomo resultados de trabalhos anteriores sobre refor-
mulação discursiva e sobre interação verbal, para apresentar algumas
reflexões sobre dois mecanismos de construção dos discursos orais, pro-
visoriamente denominados procedimentos e recursos do discurso oral.
Para tanto organizei este estudo em duas partes: a primeira, sobre as
diferentes funções assumidas pelos procedimentos discursivos na intera-
ção verbal; a segunda, mais especificamente sobre a distinção entre re-
cursos lingüístico-discursivos e procedimentos discursivos de constru-
ção do texto falado.
Essas questões serão examinadas em dois tipos de inquéritos do
Projeto NURC-SP, na perspectiva teórica da Análise da Conversação e
da Semiótica Narrativa e Discursiva.
1.Funções dos procedimentos discursivos na
interação verbal
A distinção entre procedimentos ou processos discursivos e re-
cursos discursivos será estabelecida sobretudo a partir das funções que
exercem na conversação. Na primeira parte deste estudo tratarei das fun-
ções dos procedimentos discursivos na construção da conversação e no
estabelecimento da interação entre sujeitos.
Tendo examinado os procedimentos de reformulação por corre-
ção em dois tipos de inquéritos do Projeto NURC-SP – os diálogos entre

48
informantes (Barros e Melo, 1990; Barros, 1993) e as entrevistas entre
documentador e informante (Barros, 1990) –, cheguei a algumas conclu-
sões que podem ser tomadas como hipóteses mais gerais sobre o funcio-
namento dos procedimentos discursivos da fala e sobre o papel que assu-
mem na construção das relações de interação verbal entre sujeitos.
Serão apontadas duas funções dos procedimentos discursivos na
interação verbal: a de construção do dispositivo persuasivo-argumentativo
do texto falado; a de estabelecimento de sua organização afetivo-passional.
1.1. Construção do dispositivo persuasivo-argumentativo
Para Gülich e Kotschi (1987) a função principal dos atos de refor-
mulação, como a correção ou a paráfrase, é a de garantir a intercompre-
ensão na conversação ou em qualquer outro tipo de texto. Tais atos, in-
cluídos pelos autores entre os atos de composição textual, resultam do
trabalho de cooperação dos participantes da conversação, de seu esforço
comum de construção do texto falado. Dessa forma, a competência do
falante para produzir textos, principalmente orais, e a do ouvinte para
compreendê-los dependem, em larga medida, do conhecimento dos pro-
cessos de reformulação. Essas observações aplicam-se, sem dúvida, a
outros processos discursivos.
Nos estudos sobre a reformulação por correção determinamos
(Barros e Melo, 1990) para tais procedimentos as funções gerais de ade-
quação e intercomprensão e, nesse quadro, especificamos as finalidades
de adequação e compreensão cognitivo-informativa e de bom entendi-
mento das relações intersubjetivas. No primeiro caso, a reformulação
contribui para a precisão referencial ou anáfórica dos conteúdos, no se-
gundo, para a explicitação dos desejos, anseios, dúvidas e emoções do
falante, em relação a seu interlocutor. A oposição é clássica entre conteú-
dos e funções informativas ou referenciais e conteúdos e funções emotivas
e apelativas. Na direção dos estudos de O. Ducrot preferimos não separar
fatos semânticos e pragmáticos e considerar que o uso dos procedimen-
tos de reformulação (e de outros também, como a inserção, por exemplo)
é sempre argumentativo ou persuasivo-argumentativo. No exemplo que

49
segue, em que se substitui “não fala muito” por “fala muito pouco”,
observa-se uma “correção” também de força e de direção argumentativa:
L
2
- (...) porque ela não fala muito... ela fala muito pouco (...) (Castilho e Preti,
1987; INQ 360, p. 146, l. 405).
O fim último desses processos é, portanto, levar o interlocutor
a certas conclusões e ações. Há para o sentido geral argumentativo de
“interprete-me bem” ou “compreenda-me” muitas variações do tipo
de “estou cooperando com você”, “eu falo bem”, “discordo de você”,
“pertenço às camadas X da sociedade”, portanto, “conclua e aja como
proposto”.
Em outras palavras, os interlocutores, por meio dos processos dis-
cursivos mencionados constroem-se enquanto papéis conversacionais e
enquanto papéis sociais e pessoais. O tipo de conversação, sua simetria
ou assimetria definem-se por esses diferentes papéis.
1.1.1. Papéis conversacionais
Os papéis conversacionais são aqueles que os participantes da in-
teração assumem nos diferentes tipos de conversação, tais como a entre-
vista, o debate ou a conversação espontânea.
O uso de procedimentos discursivos diferentes constrói organiza-
ções argumentativas diferentes e, portanto, diferentes papéis conversa-
cionais e tipos diversos de conversação. Mostrarei a construção discursi-
va desses papéis com os procedimentos de reparação e de reformulação
por correção, que conheço melhor, nos dois tipos de inquéritos do Proje-
to NURC-SP, já mencionados, os diálogos entre informantes e as entre-
vistas entre documentador e informante.
Apontarei cinco elementos de aproximação ou de distanciamento
entre os dois tipos de conversação examinados, quais sejam o uso de
reparações, a preferência por autocorreções em detrimento das hetero-
correções, a opção por correções totais ou parciais, os tipos de “erros”
corrigidos e os esquemas e marcadores de correção utilizados.

50
Tendo como critério o modelo da conversação em sistema de tur-
nos de fala (Sacks, Schegloff e Jefferson, 1974), distinguiram-se dois
tipos de correção, a reparação e a correção propriamente dita.
A reparação deve ser entendida como a correção de uma infração
conversacional, de uma violação das regras que organizam a conversa-
ção. Os interlocutores cometem “erros” no sistema de tomada de turnos,
desobedecem às regras e essas falhas são reparadas. A presença ou a
ausência de reparações em um texto, assim como os tipos de reparação
empregados, constroem as classes de conversação e os papéis que os
locutores nelas realizam.
Os dois tipos de inquéritos do NURC caracterizam-se pelo pouco
uso de reparações. Na verdade, elas são praticamente inexistentes nesses
textos. A ausência desse procedimento parece indicar que:
a) os diálogos entre informantes não são conversações espontâne-
as (as entrevistas não o são, por definição);
b) o objetivo dos interlocutores dos diálogos é causar boa impres-
são no documentador presente e nos pesquisadores ausentes, mostrar
que falam bem e que conhecem a “etiqueta” da conversação; há uma
certa cumplicidade entre eles, que os leva a procurar não cometer viola-
ções que devam ser reparadas e a não reparar explicitamente ou dura-
mente as raras infrações do parceiro; do mesmo modo e de forma mais
aguda, na entrevista em que, por definição, se estabelecem três diálogos
– entre entrevistador e entrevistado, entre entrevistado e audiência e en-
tre entrevistador e audiência – a ausência de reparações mostra que en-
trevistador e entrevistado estão interessados em bem impressionar a au-
diência e esforçam-se, portanto, em não violar as regras da conversação
(as reparações, por conseguinte, deixam de ser necessárias);
c) tanto os diálogos como as entrevistas mascaram os traços do
conflito, da agressividade, da polêmica que, com a cooperação e o acor-
do, caracterizam as interações verbais.
Essas conclusões decorrentes do pobre emprego de reparações
são corroboradas, nos diálogos, pelo uso do que poderíamos chamar de
“reparações implícitas ou disfarçadas” e, nas entrevistas, por certas
reformulações que põem em jogo as regras da entrevista como tipo de
conversação.

51
As “reparações implícitas” dos diálogos fazem uso de mecanis-
mos como a sobreposição de voz e a tomada ou sustentação do turno,
para reparar de modo “disfarçado” as infrações do interlocutor. Essas
reparações constroem sujeitos aparentemente cooperativos e pouco po-
lêmicos ou agressivos. São reparações “implícitas” os casos em que um
dos falantes tenta tomar o turno do outro que, no entanto, não cede a vez
e não pára de falar. O falante que não cede a palavra está recriminando,
de modo implícito, o interlocutor que procura assumir o turno, sem que
este lhe seja atribuído segundo as regras. Da mesma forma, o interlocutor
que se esforça por obter a vez acusa, indiretamente, o falante que mono-
poliza a conversa. Nos exemplos abaixo, os colchetes assinalam as so-
breposições de vozes:
L
2
- (...) e agora não eu estou sempre correndo estou sempre falando tudo depressa
porque não dá tempo....
L
1
- é... se impôs
L
2
-
[
se a gente for parar...
L
1
- essa atitude sua
L
2
- é ((risos)) exatamente se a gente for parar para fazer as coisas calmamente não
dá... (...) (Castilho e Preti, 1987; INQ.360, p. 139, L. 127-134).
O “ocultamento” das reparações coaduna-se com o tipo de con-
versação que se constrói, pois sujeitos preocupados em causar boa im-
pressão a documentadores e a analistas dificilmente farão uso de repara-
ções diretas e “grosseiras”.
As entrevistas, por sua vez, usam certas reformulações que se apli-
cam às regras e aos papéis dos sujeitos desse tipo de conversação e que
podem, por isso, ser consideradas casos marginais de reparações, como
no exemplo que segue:
Inf (...) agora quem sabe se vocês PREcisando... melhor... ou melhor insistindo em
determinadas perguntas eu poderia dizer mais alguma coisa... (Preti e Urbano,
1988; INQ.250, p. 134, l. 54-56).
O exemplo acima mostra como os papéis se constroem: cabe ao
entrevistador perguntar “bem”, para que o entrevistado também seja bem
sucedido nas respostas.

52
No que diz respeito às correções propriamente ditas predominam,
tanto nos diálogos, quanto nas entrevistas, as autocorreções (o falante
reformula seus próprios “erros”) autoiniciadas e no mesmo turno do “erro”
cometido. As heterocorreções, em que o falante corrige seu interlocutor,
são bem menos freqüentes que as autocorreções nos diálogos entre infor-
mantes (16%) e praticamente inexistentes nas entrevistas.
A maior freqüência de autocorreções parece ser a regra geral
(Schegloff, Jefferson e Sacks, 1977; Marcuschi, 1986; Gülich e
Kotschi, 1987):
– o falante não quer deixar passar a oportunidade de reparar o
seu próprio erro, pois teme suas conseqüências “conversacionais”
negativas;
– o falante procura corrigir-se o mais rapidamente possível,
pois a pressa em corrigir-se é garantia de correção “em tempo”.
O número muito pequeno de heterocorreções nos diálogos en-
tre informantes e sua ausência nas entrevistas constroem conversa-
ções cooperativas (daí a cumplicidade dos interlocutores) ou apenas
com menor tensão conversacional e laços interacionais mais frouxos.
Como foi já observado, nessas conversações a preocupação dos par-
ticipantes é a de bem impressionar o documentador e os analistas,
nos diálogos, a audiência, nas entrevistas.
Nessa mesma tarefa coerente de construção dos papéis con-
versacionais, as entrevistas utilizam, em lugar das heterocorreções,
as chamadas “negações polêmicas” (Ducrot, 1973), em que, por meio
de pressupostos ou de subentendidos, o entrevistado corrige a voz do
outro (a do senso comum), identificada com a da audiência, com quem,
em última instância, está argumentando; e os diálogos usam procedi-
mentos de atenuação das raras heterocorreções empregadas. Os tex-
tos abaixo exemplificam a negação polêmica nas entrevistas e a ate-
nuação das heterocorreções nos diálogos:
a) Doc (...) e:: de quem vocês tiveram mais apoio... pra poder realizar essas
peças?...
Inf- de quem nós tivemos mais apoio? de ninguém... mas... DE NINGUÉM
MESMO... (Preti e Urbano, 1988; INQ – 161, p. 40-41, l. 118-121).

53
O informante nega e corrige o conteúdo pressuposto da pergunta
do entrevistador: “vocês tiveram apoio”.
b) Doc- então e qual era a dieta de seu regime?
Inf- não era nada extraordinário viu era:: até muito comum... (Preti e Urbano, 1988;
INQ 235, p. 122, l. 76-77).
O informante “corrige” o subentendido de que as dietas de regime
são muito rígidas e difíceis.
c) L
2
- (...) pensar em termos de:: culpa coletiva por exemplo
L
1
-
[
só que isso não tem importan/
certo mas só que não tem nada que ver uma coisa com a outra porque (...) (Castilho e
Preti, 1987; INQ 343, p. 23, l. 250-254).
L
1
- interrompe sua correção da fala de L2 (“só que isso não tem
importan/”), emprega uma fórmula de concordância (“certo”), que ate-
nua a heterocorreção, e só então retoma a correção.
A opção por correções totais ou parciais separa os diálogos das
entrevistas. Os diálogos preferem as correções totais, em que aparecem
explícita ou implicitamente as duas fases da correção, a de negação do
elemento a ser corrigido e a de afirmação do elemento reformulador.
Com as correções totais, reforça-se o ato de correção e o “erro” a ser
corrigido e, nas heterocorreções, a discordância entre os interlocutores,
como no caso abaixo:
L
2
- (...) assim comunicação em cida/ em cidade grande o metrô é uma forma... de
comunicação né? de levar e trazer.
L
1
- transporte né?
L
2
- [pessoas e...
L
1
- não é bem comunicação é transporte (Castilho e Preti, 1988; INQ.343, p. 27,
l. 422-427).
O falante, primeiramente, corrige comunicação por transporte.
Trata-se de uma correção total, com a primeira fase, a da negação do
“erro”, implícita. Em seguida, ele aumenta a força argumentativa da cor-

54
reção, explicitando a primeira fase “não é bem comunicação (1ª fase) é
transporte” (2ª fase), mas, coerentemente com o que foi dito antes, ate-
nua um pouco o impacto interacional da correção, dizendo “não é bem
comunicação”, em lugar de “não é comunicação”.
As entrevistas, por sua vez, utilizam principalmente as correções
parciais que são formas já atenuadas de correção, em que não se nega,
nem explícita, nem implicitamente o elemento a ser corrigido. A corre-
ção parcial visa apenas à ampliação ou à restrição semântica do termo
“corrigido” e constrói, por isso mesmo, conversações mais contratuais
ou com laços interacionais mais fracos.
Essa falta de definição clara ou mesmo essa espécie de mascara-
mento dos procedimentos empregados é uma das estratégias da entrevis-
ta: enquanto os diálogos usam, como recursos, sobretudo as pausas (em
50% dos casos de correção), para marcar a produção da correção na fala,
as entrevistas servem-se, para a mesma finalidade, principalmente dos
prolongamentos de vogais (em 50% dos casos de correção). Pausas e
prolongamentos de vogais são, ambos, recursos marcadores da produção
que asseguram ao falante o tempo e o meio lingüístico necessários à
formulação e à reformulação da fala. A diferença é que o prolongamento
de vogais mascara, mais que a pausa, o ato de correção na fala. Os meca-
nismos utilizados são, portanto, coerentes: nos diálogos, predominam as
correções totais precedidas de pausas; nas entrevistas, as correções par-
ciais com prolongamento de vogais. Da mesma forma, as entrevistas
raramente usam o marcador “não”, que facilita o reconhecimento e a
interpretação da correção, a não ser no caso das negações polêmicas
mencionadas.
Nesse mesmo traçado em que se constroem os dois tipos de texto,
devem ser examinados os “erros” a serem corrigidos. Em ambos os in-
quéritos predominam as correções semântico-pragmáticas. É bem me-
nor o número de correções fonético-fonológicas e morfossintáticas, que
são sempre correções totais, pouco utilizadas nas entrevistas.
Resta mencionar, ainda, a esse respeito, que, nas entrevistas, ocor-
re um número significativo de correções de precisão anafórica, entre as
correções semântico-pragmáticas. Uma das razões é que os inquéritos do
Projeto NURC constituem um tipo específico de entrevista. Se a entre-
vista é, em geral, classificada entre os gêneros informativos, nas do NURC

55
não interessa o que o entrevistado diz, mas, principalmente, como, do
ponto de vista lingüístico, o faz. O documentador não está preocupado
com as informações que o entrevistado possa dar sobre o tema, mas ape-
nas em fazê-lo falar. Daí o grande número de elementos fáticos utiliza-
dos, as questões sobre elementos que o entrevistado considera já trata-
dos, as perguntas repetidas (Barros, 1991). Explicam-se as correções de
precisão anafórica:
Doc- você disse que você faz regime não?
Inf- não eu JÁ fiz...(Preti e Urbano, 1988; INQ 235, p.121-122, l. 74-75).
O informante, no exemplo acima, corrige o documentador, a quem
já dissera, anteriormente (p. 120, l. 5): “bem... agora que eu já terminei o
meu regime”.
É necessário examinar outros tipos de entrevista para que se veri-
fique se essa classe de correção caracteriza, como acredito, a entrevista
como tipo de conversação. Para bem argumentar, indiretamente, com a
audiência, entrevistado e entrevistador devem, a meu ver, fazer uso, com
freqüência, de reformulações anafóricas.
Espero ter conseguido apontar como os procedimentos de refor-
mulação por correção e, disto estou convencida, os demais processos
discursivos constroem os papéis conversacionais dos interlocutores e, a
partir daí, os tipos diferentes de conversação (no caso examinado, a en-
trevista e o diálogo entre informantes, nos inquéritos do Projeto NURC).
1.1.2. Papéis sociais e pessoais
Também os papéis sociais e as características individuais dos in-
terlocutores fazem parte da organização persuasivo-argumentativa da
conversação e são fabricados pelos processos discursivos.
Em outras palavras, os papéis sociais não resultam apenas do co-
nhecimento das posições sociais dos falantes, mas se constroem nos pro-
cessos discursivos como mecanismos persuasivo-argumentativos da con-
versação.

56
Numa entrevista em que o entrevistador é um jovem estudante e o
entrevistado um velho professor universitário, os papéis conversacionais
podem-se inverter, como vimos ocorrer com o uso das reparações. Nesse
inquérito (Preti e Urbano, 1987; INQ 250), apenas o entrevistado faz
reparações ao entrevistador, trocando de papéis conversacionais (de en-
trevistador e de entrevistado) e construindo seu papel social (de profes-
sor), sua posição social “superior” à do entrevistador: é o entrevistado
quem julga, aprova ou desaprova o fazer do entrevistador, ou mesmo lhe
faz perguntas:
a) Inf- ... agora quem sabe se vocês PREcisando... melhor... ou melhor insistindo
em determinadas perguntas eu poderia dizer mais alguma coisa... (Preti e Urbano,
1987; INQ 250, p. 134, l. 54-56).
b) Inf- ... foi até muito bom é/êh... muito boa essa pergunta porque... ficou mais
claro talvez agora... ficou mais clara a explicação (Preti e Urbano, 1987; INQ 250,
p. 136, l. 133-135).
Em outra entrevista (Preti e Urbano, 1987; INQ 235), em que a
informante é uma professora primária, solteira, de trinta e oito anos, com
papel social igual ou “inferior” ao do jovem estudante universitário que a
entrevista, quando o entrevistador repete as mesmas perguntas, em lugar
de críticas ou elogios ao fazer do entrevistador, a entrevistada responde
apenas com uma heterocorreção de precisão anafórica:
a) Doc- você disse que você faz regime não?
Inf- não eu JÁ fiz... (Preti e Urbano, 1988; INQ 235, p. 121-122, l. 74-75).
b) Doc- desde o café da manhã até a hora do jantar... o que você costuma comer em
cada um deles?
Inf- ah como eu já disse né? (Preti e Urbano, 1988; INQ 235, p. 120, l. 27-29).
Quando a mesma entrevistada tenta assumir o papel conversacio-
nal próprio do entrevistador, o entrevistador “repara” a infração e volta a
ser ele a perguntar, ao contrário do que ocorre no inquérito anteriormente
mencionado, em que a inversão dos papéis entre o professor e o estudan-
te não é reparada:
Inf- (...) então teria que saber o que é que vocês preferem... e o que é que vocês
preferem?

57
Doc- não vamos supor que a gente omita a opinião gente:: eduCAda (como eu sou)
((risos)) assim “não:: qualquer coisa serve:: vê e tal e não sei que”... e o que que
você prepararia se a gente... deixasse... tudo a seu encargo? (Preti e Urbano, 1988;
INQ 235, p. 128, L. 351-356).
Da mesma forma, os papéis pessoais são construídos pelos pro-
cessos discursivos da conversação. Pode-se ilustrar o fato com um diálo-
go entre informantes (Castilho e Preti, 1987; INQ 333), em que as inter-
locutoras têm o mesmo papel conversacional (ambas são informantes
que dialogam entre si), os mesmos papéis sociais (“externos” – mesma
idade, sexo, nível cultural e posição na sociedade – e “internos”,
construídos pelos processos discursivos), e, ainda assim, a conversação é
desequilibrada: uma das locutoras, jornalista, conserva o turno por mais
tempo que a outra, escritora; controla a escolha e a mudança de temas;
responde sempre em primeiro lugar às perguntas do documentador. São
fatores de “estilo” na condução da conversação. Nesse diálogo, o uso dos
procedimentos de correção por cada uma das locutoras se dá de modo
marcadamente diferente.
Apenas a escritora (L2) utiliza, algumas vezes, procedimentos de
reparação implícita, em geral de infrações à regra de que deve haver pelo
menos uma troca de falante na conversação, para, com sobreposição de
voz, recuperar o turno, já que a jornalista (L1) domina a conversação
com suas longas falas:
L
1
- retratando determinado mundo”... eu acho que é muito bom... que o Brasil
em literatura pelos seus grandes escritores há bastante tempo... já deixou de ter o
seu cordão umbilical... preso à Europa... e:: e todo o:: ... toda a América Latina já se
desprendeu... desse cordão umbilical fazendo uma literatura muito ... da terra muito
do homem ... nativo ... que é o caso de Gabriel Garcia Márquez ... e de tantos
outros e aqui:: ... no Brasil ... Jorge Ama::do e tantos outros ... e:: então agora ... no
cinema parece também que está havendo essa desvinculação... do figurino europeu
do figurino americano ... infelizmente há muito também da chamada pornochanchada
não é? ... que é uma maneira comercial mas o que se pode dizer ...
da pornochanchada aqui se ela impera na França se ela impera no
L
2
-
[
H...
L
1
- mundo todo
L
2
- um belo filme foi Orfeu do Carnaval

58
L
1
- foi ... mas esse já é antigo e foi uma co-produção não é?
L2-
[
já antigo já faz muito tempo
é
(Castilho e Preti, 1987; INQ 333, p. 250, L. 662-682)
Percebe-se com clareza a tentativa de reparação de L2, que procu-
ra ter vez após a longa fala de L1.
Com o mesmo objetivo de reparação das infrações de L1 e de
garantia de espaço a L2, o documentador (que sempre dirige suas per-
guntas às duas informantes, usando os verbos na terceira pessoa do plu-
ral e o pronome “vocês”, e recebe respostas apenas ou em primeiro lugar
da locutora jornalista, como se lhe tivessem atribuído o turno diretamen-
te) dirige, em sua última intervenção, sua questão única e diretamente à
locutora escritora (Barros, 1994):
Doc- (...)... e só para terminar vocês acham que no futuro a TV vai realmente
sobrepujar o cinema? ... aqui no nosso caso principalmente
L
1
- olha ... eu não digo sobrepujar mas (...)
(.....)
Doc. e a dona I. também ...
L
2
- ah sim naturalmente nem há nem há dúvida ... nem há dúvida (Castilho e Preti,
1987; INQ 333, p. 263-264, l. 1188-1191, l. 1215-1217)
Nesse diálogo é sempre a escritora (ou o documentador) quem
tenta reparar indiretamente as infrações conversacionais do jornalista que
não cede a vez ou que, com freqüência, toma o turno de sua interlocutora.
O emprego das reparações define, assim, “estilos” conversacionais pró-
prios, no quadro das regras gerais de “etiqueta” da fala.
Esse diálogo, além disso, apresenta mais casos de heterocorre-
ções que os demais diálogos entre informantes do Projeto, pois, devido
ao equilíbrio dos papéis conversacionais e sociais, é um diálogo mais
simétrico e mais próximo das conversações espontâneas. As heterocor-
reções são, em geral, efetuadas pela jornalista, que domina a conversa-
ção. A reação da locutora escritora é a de teimar um pouco, ou seja, a de
não aceitar as correções da outra, pois, sabendo que a jornalista lhe deixa

59
pouco espaço na conversação, não considera a reformulação como uma
tentativa de cooperação e sim como uma forma de intromissão ou de
dominação. Já quando ocorre o inverso, isto é, a escritora corrige a jorna-
lista, esta aceita a correção e reconhece seu caráter cooperativo na con-
versação.
Os exemplos abaixo ilustram as duas situações: de recusa da cor-
reção, por L2, de aceitação, por L1:
a) L
2
- o Buarque...
L1- Chico Buarque
L
2
- o o Buarque queriam dar ... (...)
(Castilho e Preti, 1987; INQ 333, p. 248, l. 573-575)
b) L1- a irmã dela eu conheço que é jornalista né? é uma moça jornalista ...
L
2
- poetisa
L1- poetisa ... (Castilho e Preti, 1987; INQ 333, p. 249, l.622-625)
É preciso mencionar ainda que é também a jornalista quem realiza
mais casos de autocorreção (mais que o dobro das correções efetuadas
pela escritora): como fala mais, “erra” mais, mas também aproveita me-
lhor a atividade verbal de correção, sobretudo as correções pragmáticas,
para seus objetivos comunicativos de precisar opiniões, confirmar cren-
ças, esclarecer idéias.
Além dos papéis conversacionais e sociais, foram-se construindo
no diálogo papéis pessoais, estilos conversacionais próprios: a jornalista
usa as correções (inclusive as heterocorreções) com mais freqüência, aceita
as correções da outra e faz bom uso sobretudo das correções pragmáti-
cas; a escritora repara implicitamente as infrações conversacionais da
jornalista que fala muito e domina a conversação, não aceita as correções
que lhe são feitas e insiste no “erro” ou nas correções que efetua, e assim
por diante.
Minha intenção foi mostrar como os processos discursivos cons-
troem o dispositivo persuasivo-argumentativo da conversação e, a partir
daí, os papéis conversacionais, sociais e pessoais dos participantes do
diálogo e os diferentes tipos de conversação.

60
O dispositivo persuasivo-argumentativo estabelecido e os diferen-
tes papéis dos participantes da conversação apontam para uma análise
narratológica da enunciação, nos moldes das teorias pragmáticas ou
semióticas. Em outros termos, na “cena” enunciativa do texto conversa-
cional, cabem aos participantes da conversação os papéis narrativos de
destinador e de destinatário, responsáveis respectivamente pelos fazeres
persuasivo e interpretativo do “espetáculo” em palco. Esses sujeitos narra-
tivos são investidos dos papéis conversacionais, sociais e pessoais que cons-
troem por meio dos procedimentos discursivos postos em uso.
O item que segue será dedicado ao estabelecimento da organização
modo-passional da conversação, nesse mesmo “espetáculo” enunciativo.
A análise narratológica da enunciação, ou seja, a análise das relações que
vigem entre os participantes da cena enunciativa leva à determinação dos
acordos, compromissos, contratos e laços afetivos ou passionais que se
estabelecem entre eles e dos mecanismos discursivos responsáveis por tais
relacionamentos.
1.2 Organização afetivo-passional da conversação
A análise da conversação sempre se preocupou, nos dois grandes
momentos de sua história, com o que se poderia chamar de “micro-rela-
ções sociais”, isto é, com as relações intersubjetivas de envolvimento
emocional dos sujeitos, por via da conversação. No início e até os anos
setenta, seu principal interesse foi a descrição dos mecanismos de orga-
nização da conversação e das relações intersubjetivas que nela se estabe-
lecem (Sacks, Schegloff e Jefferson, 1974). Na segunda etapa, os analis-
tas da conversação voltaram-se para os procedimentos lingüístico-dis-
cursivos do texto falado, tais como a repetição ou a paráfrase, procedi-
mentos que assumem funções diversas na conversação, entre as quais se
inclui sempre a de estabelecer relações de envolvimento interpessoal. Os
estudos de Tannen (1985 e 1986) sobre a repetição são exemplos privile-
giados do modo pelo qual os analistas da conversação de segunda fase
concebem as relações sociais. Para a autora, a conversação, por meio de
procedimentos como a repetição, cria envolvimento interpessoal, passa
uma “metamensagem de afinidade”, constrói um universo de discurso
compartilhado e disso depende para ter sentido.

61
Em síntese, adota-se uma perspectiva subjetivista da enunciação,
ainda que concebida de modo dialógico. A relação eu-tu, da correlação
de subjetividade de Benveniste (1966), é reduzida aos aspectos do
envolvimento afetivo e emocional.
No quadro da análise narratológica da enunciação do texto falado,
tal como definida no item anterior, há lugar para as relações sociais mais
“graúdas” e mais “miúdas”, ou seja, para as macro-relações entre grupos,
classes ou instituições sociais, como as persuasivo-argumentativas ante-
riormente examinadas, e para as micro-relações de envolvimento afetivo
e emocional dos participantes do “espetáculo” enunciativo.
Com esse fim, as relações afetivas e emocionais serão estudadas
como relações de sintaxe modal que definem laços passionais entre os
interlocutores.
No quadro da teoria semiótica, mais especificamente no da sua
sintaxe modal, são examinados os efeitos de sentido passionais de confi-
ança, de interesse, de desilusão, de amizade, de ódio e outros, como re-
sultantes de arranjos e de confrontos de modalidades no texto – querer-
ser, crer-ser, poder-não-ser, etc. A meu ver, os processos discursivos de
repetição, de paráfrase, de correção e outros recobrem e assinalam no
discurso as diferentes combinações de modalidades que, por sua vez,
determinam as relações entre os participantes da conversação, fazendo
deles sujeitos “apaixonados” – confiantes, descrentes, interessados, etc.
Esses efeitos passionais parecem dizer respeito apenas ou principal-
mente às paixões que, de alguma forma, estão relacionadas às relações
contratuais, verdadeiras ou imaginárias, que os sujeitos constroem um em
relação ao outro. Os processos discursos produzirão, assim, efeitos passio-
nais diretamente relacionados aos acordos simulados, isto é, efeitos de con-
fiança, de crença, de decepção, de segurança, de desilusão, e também os
efeitos de benquerença ou de malquerença decorrentes dessas paixões.
Os textos abaixo ilustram os efeitos passionais dos processos dis-
cursivos:
a) L
2
- (...) já é alguma coisa que eles fazem porque...
L
1
-

[
ah ajuda demais

62
né?
L
2
-
[
já ajudam bem (Castilho e Preti, 1987; INQ 360, p. 140, l.
183-186)
b) L
1
- há dois anos
L
2
- mil novecentos e sessenta e nove
(Castilho e Preti, INQ 360, p. 147, L. 456 e 457)
Nesses dois extratos de um mesmo inquérito, a análise mostra que
as correções se lêem como um arranjo de modalidades – querer-ser e
crer-ser (no outro) – que produz os efeitos de confiança e de crença entre
os sujeitos. São heterocorreções claramente cooperativas e interpretadas
como tal pelo interlocutor. Da confiança e da crença resultam o querer
fazer bem ao sujeito em que se acredita e os efeitos passionais de simpa-
tia, amizade, interesse.
Já no exemplo que segue, o falante enfatiza o erro de seu
interlocutor e produz, com a correção, o efeito de desconfiança (querer
ser e crer não ser), que leva ao desacordo, à discordância:
L
1
- (...)... que é aquele lamentável lado do Baú que de certo era isso que você ia...
L
2
- não ...
L
1
- fundamentar ...
L
2
- não ... não é o
Baú ... não
L
1
- do Baú da Felicidade ...
L
2
-
[
não
L
1
- que ele com isso ... ele se agiganta
L
2
-
[
o Baú ele é honesto
L
1
- não eu não acho que seja honesto ...
(Castilho e Preti, 1987; INQ 333, p. 260-261, L. 1094-1103)
Mesmo nesses casos, porém, para corrigir, o falante retoma o “erro”
do outro, produzindo com a repetição efeitos de confiança e de coopera-
ção, mostrando que deu atenção ao que seu interlocutor disse, que se
interessou por sua fala, ainda que dela discorde.

63
Há na correção, portanto, duas etapas, uma claramente cooperati-
va e outra que poderá ser, conforme os recursos usados, contratual ou
polêmica. Corrigir é criar envolvimento, é compartilhar o discurso e,
também, discordar do parceiro, exercer controle sobre ele, brigar pela
vez e pelo turno.
Apenas o exame dos vários procedimentos discursivos da conver-
sação determinará os diferentes arranjos de modalidades e os efeitos de
sentido afetivos e passionais que essas organizações modais produzem,
tal como exemplificado anteriormente. Alguns pontos mais gerais, no
entanto, podem ser desde já estabelecidos. Sabe-se que tais efeitos pas-
sionais são paixões decorrentes de relações de contrato entre sujeitos,
como a confiança ou a descrença, e não paixões de objeto, como o dese-
jo, o despreendimento ou a inveja. Ao utilizar uma repetição, uma corre-
ção ou uma paráfrase, o locutor estará reafirmando o contrato que sus-
tenta a conversação. A confirmação do acordo pode ser feita de diferen-
tes modos, por meio de arranjos modais diversos. A ameaça de ruptura
do contrato pelas correções agressivas e polêmicas é um desses modos.
A conversação não pode, portanto, prescindir dos processos dis-
cursivos que, ao instaurarem a organização afetivo-passional da conver-
sação, reafirmam e confirmam, de quando em quando, o contrato sem o
qual a conversação não poderia ter começado e não poderá prosseguir.
Os acordos necessários ao jogo interacional de qualquer tipo de texto
conversacional constroem-se nesse vaivém afetivo-passional de confi-
anças e de decepções, de crenças e de desinteresses.
Os papéis passionais dos participantes da cena enunciativa – su-
jeitos apaixonados, no sentido semiótico descrito, – vão-se fazendo, en-
tre outros, pelos procedimentos do discurso mencionados. Completa-se
o espetáculo.
Foram, em resumo, apontadas duas das funções dos procedimen-
tos discursivos na interação verbal: a de constituir o dispositivo persuasi-
vo-argumentativo e os papéis conversacionais, sociais e pessoais dos
participantes da cena enunciativa; a de estabelecer a organização afetivo-
passional desses discursos, com que se confirmam os acordos que sus-
tentam a conversação.
Passa-se agora para a segunda e última parte deste trabalho, em
que se espera poder distinguir, tal como proposto, os recursos lingüísti-

64
co-discursivos dos procedimentos discursivos de construção da conver-
sação e apontar a recursividade entre recursos e procedimentos nos tex-
tos falados.
2.Recursos e procedimentos discursivos da
conversação
No decorrer deste estudo, além de mostrar as funções dos procedi-
mentos discursivos na conversação, fez-se menção a elementos, como as
pausas e os prolongamentos de vogais, que, de alguma forma, facilitam,
simplificam ou marcam a realização dos procedimentos. Para corrigir-se
ou parafrasear-se, um falante faz antes uma pausa ou prolonga uma vogal,
por exemplo. Esses elementos ou mecanismos foram denominados recur-
sos, para distingui-los dos procedimentos ou processos discursivos. A meu
ver, recursos e procedimentos discursivos não devem ser confundidos,
embora nem sempre tenham sido separados com a clareza necessária.
Proponho distingui-los a partir de dois critérios:
a) o das funções que exercem na conversação: aos recursos cabem
as funções cognitivas que dizem respeito à produção e à interpretação da
conversação; já os procedimentos cumprem as funções de construção da
conversação e de estabelecimento da interação entre sujeitos, isto é, as
funções interacionais de persuasão e argumentação e de envolvimento
passional dos participantes da conversação;
b) o da hierarquia lógica entre eles: os recursos facilitam, simplifi-
cam, marcam a realização dos procedimentos, ou seja, os procedimentos
pressupõem os recursos lingüístico-discursivos utilizados.
Examino agora a questão das funções de recursos e de suas rela-
ções com os procedimentos, recorrendo, uma vez mais, à reformulação
por correção.
Autores diversos na Análise da Conversação (Jefferson, 1974;
Gülich e Kotschi, 1987, Marcuschi, 1986) afirmam que existem marcas
e padrões lingüísticos específicos de correção na conversação. Essas
marcas e padrões são, em geral, elementos prosódicos relacionados com
a hesitação (Jefferson, 1974), que assinalam as dúvidas ou as dificulda-

65
des do falante em relação ao prosseguimento de seu discurso. Têm assim
papéis que estão ligados diretamente à produção discursiva, quais sejam,
os de proporcionarem ao falante o tempo e o meio lingüístico necessá-
rios à formulação e à reformulação de sua fala e de permitirem que o
falante diga alguma coisa ou conserve o turno antes mesmo de saber o
que dizer. Tanto é assim que as heterocorreções prescindem desses re-
cursos, pois se realizam obrigatoriamente em turnos diferentes daqueles
em que os “erros” foram cometidos e têm portanto já assegurado o tem-
po necessário à reformulação.
Os recursos encontrados no exame da correção nos dois tipos de
inquéritos do NURC foram a pausa, a interrupção lexical, o prolonga-
mento de vogal, a repetição e algumas outras formas de hesitação (ah,
ahn ahn, éh):
a) Pausa:
L
2
- (...) ainda mais porque ela não é ... ela não entrou na carreira por concurso (...)
(Castilho e Preti 1987; INQ 360, p. 156, L. 785-786).
b) Prolongamento de vogal:
L
1
- (...) ela é:: tem um temperamento assim (...) (Castilho e Preti, 1987; INQ 360,
p. 141, L. 204-205).
c) Interrupção lexical
L
2
- (...) e as coisas de casa que a gente aten/ tem que atender (...) (Castilho e
Preti, 1987; INQ 360, p. 148, L. 489-490).
d) Repetição
L
1
- já tinha curso universitário já já tinha saído da faculdade (...) (Castilho e
Preti, 1987; INQ 360, p. 137, L. 67-68).
A partir do exame desses recursos, pode-se dizer que há, na verda-
de, dois tipos diferentes: os elementos prosódicos como a pausa e a inter-

66
rupção lexical que rompem a continuidade temporal do fluxo da fala; e
os que, ao contrário, não rompem o contínuo, mas desaceleram a fala,
fazendo-a “durar” (aspectualização durativa), como no prolongamento
de vogal, ou reiterar-se (aspectualização iterativa), como na repetição.
Essas duas classes de recursos de produção fabricam afeitos de sentido
diferentes: os primeiros expõem o procedimento utilizado a seguir, como
a correção, a paráfrase ou a inserção; os últimos ocultam, de uma certa
forma, o uso desses procedimentos discursivos. Os diálogos entre infor-
mantes, como vimos, empregam predominantemente as pausas, recur-
sos do primeiro tipo, enquanto as entrevistas utilizam de preferência os
prolongamentos de vogais, recursos do segundo tipo.
Além de introduzidos por tais recursos, os procedimentos discur-
sivos são marcados por determinadas expressões verbais estereotipadas,
tais como “não”, “isto é”, “quer dizer”, etc, que assumem funções direta-
mente relacionadas à interpretação: são pistas para que o ouvinte com-
preenda e interprete bem o procedimento utilizado. Em outras palavras,
um “não”, um “em termos” ou um “isto é” deverão contribuir para o
reconhecimento de uma correção ou de uma paráfrase do texto. Esses
marcadores têm, portanto, a função de facilitar a interpretação dos proce-
dimentos que assinalam.
Distinguiram-se, assim, os dois tipos de recursos de produção, os
pontuais e os durativo-iterativos, dos recursos de compreensão: os pri-
meiros facilitam a produção, os últimos a interpretação dos procedimen-
tos discursivos utilizados.
Os recursos, de quaisquer tipos, não se confundem, portanto, com
os procedimentos ou processos para cuja produção e interpretação con-
tribuem, tais como a reformulação por correção, a paráfrase ou a inser-
ção, que, como vimos, têm funções interacionais na conversação. Nos
recursos, o papel de construção da interação é indireto.
É preciso, porém, ressaltar que a caracterização dos recursos e dos
procedimentos e a relação entre eles é funcionalmente variável: uma repe-
tição, por exemplo, pode ser considerada como um recurso que facilita a
produção de uma reformulação por correção ou como um procedimento
com funções persuasivo-argumentativas e afetivo-passionais; da mesma
forma, um procedimento de correção pode assumir papel de recurso de
produção de uma inserção. Os textos abaixo ilustram essas possibilidades:

67
a) no inquérito 62 (Castilho e Preti, 1987), um dos locutores (L2)
repete com freqüência a fala de seu interlocutor como um procedimento
de construção de relações cooperativas e de afinidade, como um meio de
reafirmar o contrato (a repetição é um procedimento discursivo):
L
1
- a gente fica até mais alegre ... você não acha?
L
2
- mais alegre ((risos e vozes))... o dia que (...) (p. 62, l. 30-32)
L
1
- (...) ... então isso:: realmente:: cooperava assim para aquele:: famoso sereno né?
... São Paulo da garoa São Paulo é terra boa ...
L
2
- São Paulo da garoa (p 62, l. 63-66).
L
1
- (...) dizem que é o progresso ... dizem né? sei lá
L
2
-
[
dizem né? (é o) progresso mal
controlado (p. 63, l. 70-73);
b) já no diálogo abaixo, do mesmo inquérito, a repetição pode
assumir tanto o papel de um recurso de produção que dá ao falante o
tempo necessário à formulação, quanto o de um procedimento de ênfase
na argumentação (repetição tanto como recurso, quanto como procedi-
mento discursivo):
L
1
(...) ... e o clima inclusive é muito mais regular que aqui ... muito mais regular
que aqui ... a gente às vezes tem vontade né? de fugir um pouco desse clima né?
(...) (p. 64, L. 135-137);
c) finalmente, nos trechos do inquérito 333 (Castilho e Preti, 1987),
há muitos casos de repetição como recursos de produção que asseguram
ao falante o tempo necessário à reformulação por correção (repetição
como recurso):
L
1
- (...) ... não sei se vocês acompanharam a polêmica em torno de Gabriela ...
Gabriela ... ah ... jornais baianos:: ... não é? éh:: fizeram ... editoriais ... (...) (p.
236, l. 75-77).
L
1
- (...) ... o:: marido dela o embaixador era poeta ... é é era um embaixador poeta
um embaixador intelectual ... (...) (p. 239, l. 224-226).

68
Considerações finais
Em síntese, neste trabalho procurei apontar e explicar duas fun-
ções essenciais dos procedimentos discursivos na construção das rela-
ções de interação verbal entre sujeitos, quais sejam, a de construir o dis-
positivo persuasivo-argumentativo e os papéis conversacionais, sociais e
pessoais dos participantes do espetáculo enunciativo e a de estabelecer
os laços afetivo-passionais que se criam entre eles, para, em seguida,
distinguir os procedimentos dos recursos discursivos.
A distinção fez-se com base em dois critérios, o das funções que
exercem na conversação e o da hierarquia lógica existente entre procedi-
mentos e recursos. Em outras palavras, enquanto os procedimentos cum-
prem papéis na construção da conversação e no estabelecimento da inte-
ração entre sujeitos, tal como acima mencionado, os recursos têm fun-
ções diretamente ligadas à produção e à compreensão dos procedimen-
tos discursivos e, portanto, apenas indiretamente relacionadas com a cons-
trução da interação.
Feitas as reflexões, o caminho que se apresenta para o estudo da
conversação é, a meu ver, o de examinar recursos e procedimentos no
âmbito da organização do texto conversacional e das funções que esses
diferentes mecanismos assumem na construção da interação entre os par-
ticipantes da cena enunciativa. Só assim os aspectos que poderiam ser
considerados como “miudezas” ou “acessórios” do discurso assumem
os papéis e as funções que lhes cabem na construção dos sentidos da
conversação.
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TIPOS DE FRAME E FALANTES CULTOS
Dino Preti
Considerações iniciais
No último trabalho que publicamos nesta série (Preti, 1997: 17-
27), a propósito da linguagem das pessoas cultas documentada pelo
NURC/SP, falamos de um processo de uniformização social da língua,
em decorrência dos contextos interacionais da cidade grande, onde o
contato diário entre os mais diversos tipos de falantes fez com que se
perdessem ou se confundissem, nas interações, os índices de escolarida-
de, como variável para identificar os interlocutores, na conversação, de
sorte que falantes cultos têm sua linguagem praticamente igualada à dos
falantes comuns, de instrução média. Ambos utilizam uma linguagem
marcada, não apenas pela formação escolar, mas, sobretudo, pela partici-
pação em uma grande variedade de situações de comunicação na vida
urbana. Além disso, sobre esses falantes incide a ação do que denomina-
mos de norma lingüística da mídia, quer na sua forma oral ( TV, princi-
palmente), quer na sua forma escrita (jornais e revistas).
Este texto pretende mostrar que a presença de variações, aparen-
temente inesperadas, na linguagem de falantes cultos (diálogos, entrevis-
tas ou locuções formais), poderia ser explicada também pelas mudanças
decorrentes dos tipos de frame e do consequënte processo de tensão/
distensão do ato de fala.
Assim, ainda uma vez, procura-se discutir a propósito da lingua-
gem dos falantes cultos e da forma como estes realizam seu discurso.
l. Os diálogos do NURC/SP
As 3l6 horas gravadas pelo Projeto NURC/SP, durante a década
de 70, mais precisamente de 1971 a 1977, constituem um corpus que se

72
caracteriza por vários níveis de formalidade. Assim, desde as elocuções
formais, gravações de aulas ou conferências, com uma linguagem mais
tensa; passando pelas entrevistas, em que a participação do documentador
era mais decisiva, chegando a conduzir o desenvolvimento do tema pro-
posto; até os diálogos com diversos níveis de formalidade, pode-se dizer
que, embora esses textos não apresentem mudanças de situações de co-
municação que influam decisivamente na linguagem, revelam variações
que podem ser explicadas por diversos fatores contextuais.
Os diálogos, por exemplo, realizavam-se a partir de temas dados.
Cumpria ao documentador, que os acompanhava, a tarefa de incentivar o
seu desenvolvimento e realinhar os assuntos, sempre que observava que
os interlocutores se desviavam para temas paralelos. Essa interferência
era, em geral, cautelosa, mas a simples presença dessa “audiência técni-
ca” e do aparelho de gravação limitava ou até inibia a espontaneidade
dos diálogos. Entenda-se, também, que eram situações construídas e essa
simulação de espontaneidade poderia ou não dar certo.
A falta do que se poderia chamar de uma tensão conversacional
ou o seu afrouxamento no desenvolvimento do diálogo, imprescindível à
sua estruturação e responsável pela “contínua confrontação de duas for-
ças, de duas atitudes pessoais”(Criado Do Val, 1980: 19) chega, em al-
guns casos, a transformar os diálogos em entrevistas a dois, em que o
documentador vai conduzindo a organização do texto, dirigindo pergun-
tas alternadamente a um ou a outro interlocutor, o que torna os textos
absolutamente simétricos: cada um fala na sua vez.
Mas o que se pode observar, em geral, é que os diálogos, mesmo
iniciando-se indecisos, acabam por fluir naturalmente, ainda que os inter-
locutores quase sempre se comportem com uma regularidade que indica
que estão atentos à situação criada. Isso não impede que essa amostragem
do NURC/SP possa ser considerada eficiente para exemplificar o que seja
a linguagem das pessoas cultas, mesmo porque, em qualquer tipo de levan-
tamento que fizéssemos para chegar a essa linguagem, empregando até
gravações secretas, teríamos de reconhecer que um falante não se compor-
ta sempre de forma absolutamente informal nas situações reais de fala.
Portanto, se todo o corpus fosse constituído por gravações secretas, tam-
bém haveria necessidade de gravações conscientes, para se medir o com-
portamento do falante culto nessas condições.

73
2. O frame
Pode-se estudar o conceito de frame (ou enquadramento), a partir
de diferentes enfoques e de vários autores em varios campos do conheci-
mento, como a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia, a Inteligência
Artificial, a Lingüística (Lingüística Textual, Análise do Discurso), entre
outros.
A origem desses estudos parece vir da Inteligência Artificial
(Minsky), a propósito da representação dos conhecimentos armazenados
e a sua recuperação pelo computador, processo que funcionaria de ma-
neira semelhante aos mecanismos da memória. A atuação desses conhe-
cimentos teria papel decisivo na interação, porque ajudaria a compreen-
são dos contextos comunicativos.
Portanto, a noção de frame está ligada aos mecanismos cognitivos
que influem sobre o processo de compreensão da linguagem, a partir de
pistas encontradas no texto oral ou escrito. Assim, podemos ativar o frame
“malícia”, por exemplo, a partir de certos termos marcados ou de mudan-
ças de entonação, de ritmo, na língua oral; e de sinais de pontuação (aspas,
reticências) ou mudanças de caracteres (grifo, itálico etc.), na escrita.
É inegável que os frames têm ligações sócioculturais e o desco-
nhecimento das pistas que levam a eles ou a inexistência de modelos
cognitivos (esquemas de conhecimento) pelos interlocutores poderá le-
var ao fracasso a interação. Por isso, o falante deve estar sempre atento
para perceber se esses modelos pré-existentes estão sendo recuperados
pelo ouvinte, tornando presentes os frames na interação. Afinal, a com-
preensão e interpretação do discurso resulta, em parte, da analogia que
fazemos com conhecimentos armazenados na memória. No caso do frame
malícia, que demos como exemplo, a dubiedade de sentido de um vocá-
bulo e a inflexão dada na sua pronúncia são suficientes para acionar um
discurso também dúbio que pode ser realizado em tom de riso, com
entonação característica. Mas, se a interação se der com uma criança, a
falta desses conhecimentos interiorizados na memória pode tornar o dis-
curso inocente ou absurdo para o ouvinte. Logo, “é o nosso conhecimen-
to do mundo e a sua organização mental do tipo frame que decidem se as
condições necessárias à adequação dos atos de fala foram realmente pre-
enchidas ou não.”(Van Dijk, 1992: 80).

74
Se pensarmos em frame como categoria de análise, podemos aceitar
que sob essa denominação “podem ser designadas as estruturas de co-
nhecimento pré-existentes, armazenadas na memória e que são ativadas
a partir de estímulos, seja através de itens lingüísticos que compõem a
tessitura textual, seja através de elementos icônicos que constituem a
imagem dos textos.”(Trevisan, E. 1992:51).
Considerando, pois, os frames como campos do conhecimento
delimitados, emoldurados (daí sua denominação), podemos dizer que
eles existem a propósito dos mais diferentes assuntos e das mais diversas
formas de tratá-los, considerados os contextos interacionais. Há, pois,
frames sobre temas como a violência, o Natal, o carnaval (Cf. Trevisan,
op.cit.), o discurso político etc.
Deborah Tannen afirma que frame “é uma forma de mostrar como
pensamos sobre o que dizemos ou fazemos e como adivinhamos o que
os outros pensam sobre o que dizem ou fazem”. Assim – continua –
“sinais sutis como altura, tom de voz, entonação e expressões faciais,
paralelamente aos vocábulos que pronunciamos enquadram cada enun-
ciado como sério, engraçado, irado, polido, rude, irônico etc.”(Tannen,
D. 1986: 82-83).
Os frames incluem, não apenas redes de vocábulos ou expressões,
geralmente estereotipadas, ligadas a um tema central, mas também a pró-
pria estrutura de determinados tipos de discurso. Assim, na interação,
existem expectivas fixadas em modelos tradicionais para o desenvol-
vimento de uma entrevista, de uma narração ou de uma dissertação, bem
como de interações mais específicas, como uma entrevista, uma história
maliciosa ou obscena, uma piada, uma bajulação, uma confissão etc.
Pode-se dizer, por exemplo, que há um relacionamento convenci-
onal esperado de entrevistador/entrevistado, em contextos institucionais,
como, por exemplo, um programa de televisão ou um depoimento para o
Projeto NURC/SP ou, ainda, uma consulta médica, segundo papéis bem
distintos de médico/paciente (Cf. Ribeiro, B.T., 1991). Da mesma forma,
há pistas contextuais (denominação devida a Gumperz e adotada por
Tannen)) que tradicionalmente introduzem ou articulam o desenvol-
vimento de uma narração (Cf. Rodrigues, C., 1995) ou de um depoimen-
to de cunho dissertativo.
Podemos, portanto, falar em frames de entrevista, de narrativas,
de dissertação, de dramatização etc.

75
Os frames num contexto podem surgir, desaparecer, ressurgir
(reframes), numa sucessão necessária à interação, num contínuo pro-
cesso de ativação dos modelos guardados em escaninhos da memó-
ria.
1
Por outro lado, o frame contém uma série de pistas para propiciar
o entendimento do discurso pelo ouvinte, a partir do acionamento dos
quadros cognitivos, na memória. Assim, se o falante for um conferencis-
ta, por exemplo, há a expectativa de que seu discurso seja desenvolvido
dentro de uma linha assimétrica, com controle do turno e da palavra e
com uso de uma linguagem tensa. Se ele, de repente, atendendo a uma
intervenção de sua audiência, envolver-se num diálogo com um dos pre-
sentes, haverá um novo tipo de interação para o qual não havia expecta-
tiva de início, podendo ocorrer mudanças na linguagem, tais como: va-
riação de registros, vocabulário coloquial, sintaxe fora dos modelos da
gramática tradicional, novas inflexões de voz, mudança de ritmo e de
altura etc. Tais índices devem corresponder a modelos cognitivos, que o
ouvinte deve ou, pelo menos, tem a preocupação de entender, porque
estão ligados a frames como agressividade, humor, malícia, crítica, ava-
liação etc. ou a modelos discursivos como conferência, aula, entrevista,
narração, confissão, discussão etc.
2
3. Tipos de frame no discurso de falantes cultos
Os informantes do NURC/SP têm consciência, antes do início do
seu depoimento, de que se trata de uma situação previamente marcada
em que se deseja, acima de tudo, conhecer o seu comportamento lingüís-
tico em condições de diálogo. Assim, um primeiro frame “entrevista,
(1)
Há distinções propostas pelos autores a propósito de conceitos como frame, scripts,
esquemas de conhecimento, planos, cenários, fenômenos muito citados em Lingüís-
tica Textual e em Sociolingüística Interacional. No entanto, há divergências sobre os
limites precisos de cada um desses fenômenos. Para um resumo didático sobre o
problema, consulte FAVERO, L.L., 1991: 62-69).
(2)
A propósito do exemplo de alteração de frame em uma situação de conferência, V.
TANNEN, 1986: 92.

76
depoimento, diálogo para estudo da linguagem”é ativado ao início de
cada gravação. Por isso, às vezes, mesmo quando a conversação está em
curso, há exemplos de interrupção, pelos interlocutores, que alertam para
o funcionamento técnico da gravação, o que demonstra a consciência
constante de que se trata de um diálogo “encomendado” para estudo
futuro, o que dá certa responsabilidade aos falantes, numa situação típica
de entrevista, depoimento:
“L2 tenho se bem que eu acho que eu conheço pouco a cidade né?... por exemplo
se eu for comparar com...
L1 -- você viu se está gravando direito aí? --
Doc. está está eu já deixo no automático...
L1 -- ah o automático não indica velô/...
Doc. não”
3
(D2 343, 7-11)
4
“L2 (...) eu não vou mais estar vivendo... o que me interessa é o espaço da minha
vida sabe?...
L1 (qual) mais? ... -- como é que estamos no tempo? --
Doc. está ótimo ((ri)) mais... vinte... não trinta minutos ainda
L1 e::... mais alguma orientação... encaminhamento?
Doc. está muito interessante...”
(D2 343, 1062-1069)
A participação do documentador ou da audiência
5
no contexto do
diálogo, principalmente nos momentos em que ela é solicitada a opinar,
(3)
As citações são feitas da transcrição publicada, indicando-se o tipo e número do
inquérito e as linhas do livro A linguagem falada culta na cidade de São Paulo (V.
Referências Bibliográficas, no final deste artigo).
(4)
Da mesma forma, a transcrição dos textos obedece às Normas de Transcrição do
mesmo volume.
(5)
Entendemos por audiência as pessoas que assistem ao diálogo, acompanham seu
desenrolar e, eventualmente, participam dele, por interferência livre ou solicitada
pelos interlocutores.

77
constitui uma outra comprovação de que os falantes estão atentos a ela,
mantendo, portanto, viva a situação de comunicação previamente instau-
rada e consciente o frame de entrevista:
“L2 bem
L1 imaginar o futuro é duro
L2 ((ri)) ih::... está um pouco aleatório esse papo... pulando daqui para lá...
L1 e você no futuro... como que vai ser?
Doc. eu não posso dar opinião ((ri))
L2 não pode dar opiniões aqui?”
(D2 343, 1379-1385)
Da mesma forma, o realinhamento do tema constitui um elemen-
to de conscientização da situação de depoimento, porque, às vezes, corta
um momento natural do diálogo em que um novo tópico se desenvolvia
com interesse para os interlocutores:
(Havia sido dado aos interlocutores o tema vestiário e diversões, mas, em
determinado momento, o diálogo passou a abordar a vida das famílias italianas
importantes nas primeiras décadas do século XX. Aproveitando um alongamento
e pausa do falante, ocorre uma intervenção da documentadora)
“L2 agora::
Doc. (agora) vocês Acham que os:: tecidos -- voltando ao ... assunto -- ... éh:: os
tecidos se adaptavam eram adequados ao nosso clima... naquela época?”
(D2 396, 552-560)
“Doc. (vai ver morreu) ... ((respiração)) dona A::... e voltando aqui ao assunto
do vestuário...”
(D2 396, 433-434)
Todas essas variações, perceptíveis por essas e outras pistas con-
textuais, portanto, reconduzem à formalidade do diálogo e são perfei-
tamente compreensíveis e naturais dentro do frame em que foram rea-
lizadas.

78
3.1. Frames de dissertação
Considerados em relação ao tipo de discurso, os frames podem
também resultar em variações de tensão conversacional. O frame de
dissertação(e, portanto, o frame de entrevista, de depoimento, de confe-
rência etc.) caracteriza-se, em geral, por uma linguagem mais tensa, o
que se nota em vários momentos dos textos gravados pelo Projeto NURC/
SP. Um das marcas dessa tensão conversacional decorre da preocupação
do falante em corresponder às expectativas de uma gravação em nível
culto e, também, à presença dos documentadores. Essa preocupação vai
desde a hesitação em fazer qualquer afirmação que implique um concei-
to linguístico, até o receio de dizer algum vocábulo ou fazer alguma cons-
trução que esteja em desacordo com a gramática prescritiva:
“(...) é curioso a transformação lingüística que houve... mas há um halo semântico
que chamava-se antigamente isto... e que eu esqueci porque eu estou com duas
lingüistas na sala e eu estou me arriscando num assunto que eu não trato há
muitos anos...”
(EF124, 497-501)
“L1 (...) cresceu muito depois da guerra... imigração... e:: e do Norte sobretudo
do Norte... então aí mudou mudaram-se os hábitos”
(D2 196, 623-625)
Esse controle do discurso (muito mais comum em termos for-
mais), embora não possa ser considerado constante em função da in-
fluência dos usos sobre a norma, justifica-se também pelo fato de ser
uma linguagem que está sendo documentada pela gravação, o que altera,
em muitos momentos, o nível de responsabilidade do depoente e tam-
bém a sua naturalidade. É certo que há variação de inquérito para inqué-
rito, mas a própria dificuldade de elaboração e expressão de uma idéia na
dissertação cria uma expectativa de um discurso mais tenso. No frame de
dissertação ocorrem menos sinais, pistas contextuais paralingüísticas como
variações prosódicas (entonações variadas, mudanças de ritmo etc.), re-
cursos de fonética expressiva (onomatopéias, por exemplo) do que ocor-
re com certa freqüência nos frames de narração. Por isso, quando estes se
intercalam nos dissertativos, fica fácil ao ouvinte identificar na interação
as mudanças de frame.

79
3.2. Frames de narração e representação
Esses frames caracterizam-se, não só pela presença de marcadores
conversacionais (sabe, uma vez, um dia, isso me lembra, etc.) que inici-
am as histórias ou os fatos que comprovam o que estamos dizendo, mas
também pela presença de outras características, como a dramatização,
quando desejamos tornar presente, tornar vivo, um acontecimento pas-
sado. Nesse processo dramático são comuns variações de ritmo, de altu-
ra de voz, de entonação; sinais gestuais que, às vezes, podem ser referi-
dos no próprio texto, risos; etc. “A narrativa na conversação é a necessi-
dade de ficção que o cotidiano nos impõe”, afirma C.F.Rodrigues, apoi-
ada em teoria de Gulich e Quasthoff (Rodrigues, C.F., 1995:115):
“L1 outro dia aí então o Fábio contando umas histórias de um::... de um de um
boy barato aí né? ... carro envenenadíssimo... então temos que quando o cara vai
acelerar assim::... ele aGArra a direção assim:: pisa no acelerador::... e faz um
movimento assim como estivesse caval/cavalgando
L2 ahn ((ri))
L1 e agarra a máquina assim ((ri))
L2 queria estar num cavalo
L1 por que? analogia... ele está cavalgando né? então ele é o ::... o::...
L2 ((ri)) o rei do oeste ahn”
(D2 343, 663-674)
3.3. Outros tipos de frame
Dentro de segmentos dissertativos ou narrativos do discurso po-
dem ocorrer outros tipos de frame que, momentaneamente, se encaixam
na conversação, como recursos de expressão do falante, para atingir cer-
tos objetivos na interação, de acordo com modelos cognitivos que o ou-
vinte deve possuir:
3.3.l. Frames de reprodução da voz do outro
A reprodução do discurso do outro, procurando-se imitar seu rit-
mo, altura e tom de voz, empregando recursos expressivos para tornar o

80
texto presente na interação, usando o riso ou uma voz que indique comi-
cidade, crítica, aversão, etc. em relação à pessoa citada, pode caracterizar
bem um frame de narrativa, ainda quando encaixado numa dissertação.
Essa recriação da realidade pode colocar em destaque apenas o que o
falante julga essencial, marcando pormenores e contribuindo também
para a dramatização do fato:
“Doc. uhn uhn
Inf. foi feito o :: teste de (Galimanini) e deu positivo daí eu digo “bom...
então você não vai tomar... coisa nenhuma... vai consultar o ginecologista... e ele
que::... te receite o que deve ser feito”... ela foi ao ginecologista e ele começou a
a tratar o resfriado com::... injeções... “porque a injeção não... não:: exerce... a
influência ... do:: comprimido”... e... toca injeção injeção e::... não resolvia coisa
nenhuma... um dia... encontramos com:: um médico baiano... nosso amigo...
casado com uma prima da minha esposa... e ele virou e disse “que que você está
tomando?”ela disse “estou tomando tais tais e tais injeções” ele disse “não
((estalou a boca seguidas vezes))... NADA disso... você não tem:: resfriado
nenhum o que você tem... é uma intoxicação gravítica...”
(DID 208, 442-456)
A reprodução do discurso direto pode constituir, às vezes, um ar-
remedo da fala do outro, indicando mudança de frame, no sentido de
tornar bem distinto e bem marcado que a opinião não pertence ao falante.
Altura de voz (em geral mais baixa), tom confidencial e, não raro, crítico,
são características que marcam o frame que pode ser empregado para
preservar a face do falante, por exemplo:
“L2 então a Tatá estava contando outro dia né? que:: depois das seis horas da
noite você andar na cidade e o jeito dela “só tem preto... só tem preto e
bicha”né? e realmente acho que ne/muito pouca gente ainda mora lá assim de
nível sócio-econômico mais alto né?
(D2 343, 51-55)
Observe-se, no exemplo, que o falante chega até a referir-se ao
fato de estar imitando a maneira da outra falar (“e o jeito dela”). Encaixa-
do no discurso e particularizado na entonação, aciona um frame de
dramatização para trazer melhor a presença do outro para o presente,

81
reforçando uma idéia e, ao mesmo tempo, isentando-se da responsabili-
dade da opinião preconceituosa.
3.3.2. Frames de humor
Da mesma forma, um dos recursos de aliviar a tensão conversa-
cional é recorrer a diálogos ou frases pressupostas atribuídas ao ouvinte,
inventando-se prováveis entonações, dentro de um frame de humor. Tra-
ta-se de um frame em que fica claro ao interlocutor que o falante usa uma
linguagem distensa, pretendendo uma aproximação. Às vezes, nesses
casos, o frame pode incluir claramente uma situação irreal, até
inverossímil, com uma suposição de reações que visam à graça e à inti-
midade. É o frame que caracteriza as piadas, os exemplos cômicos:
“L1 você entendeu? não está um grau alto... está um grau sei lá... menor... a taxa
de suicídio não aumentou mui::to mais?
L2 mas é que antes outras pessoas
L1 repressivo assim
L2 antes outras pessoas
L1 “ai quero me matar”e ficava sozinha na floresta... e chegava a noite “uh uh
uh” você “ah” e corria para casa
L2 mas isso é cultural também M.
L1 “ah estou depressivo... deixa eu tomar umas bolinhas...” toma as bolinhas
e... tibum ((ruídos)) certo?”
(D2 343, 1330-1344)
O frame de humor também pode ser acionado para intercalar uma
frase mais distensa, durante uma situação em que o falante tem dificuldade
em levar o discurso adiante, configurando-se até mesmo uma perda da
face. É uma situação comum em aulas, quando uma brincadeira, uma frase
pronunciada em tom particular, às vezes de confidência, em voz mais bai-
xa, pode esconder um desconhecimento momentâneo do falante:
“Inf. (...) bom... hoje a gente vai começar... demanda de... moeda... a gente quer
saber agora... quais as razões que faz... que fazem com que... ah... -- estou meio

82
preocupado com o gravador ((risos)) éh... faz fazem... éh::: -- ah quais as razões
que levam as pessoas a... demandarem moeda”
(EF 338, 7-14)
3.3.3. Frames de malícia
Como o discurso da malícia se vale de implícitos para estabelecer
uma segunda isotopia do texto, é necessário que o ouvinte tenha nos seus
esquemas de conhecimento elementos semânticos para preencher a co-
municação lacunosa, indicada a partir de certas pistas, ou mais particu-
larmente, de certos vocábulos marcados, que funcionam como um gati-
lho para se passar da leitura ingênua para a maliciosa, imaginando novos
significados, cuja veracidade nem sempre lhe é possível testar. Normal-
mente isso acontece, quando for possível sexualizar o referente. A partir
desse momento, instaura-se o frame de malícia, caracterizado por um
campo semântico de significados sexuais, por peculiaridades de pronún-
cia, risinhos, entonações que insinuam sentidos ocultos, além de elemen-
tos gestuais que conduzem à compreensão dos implícitos. (Cf. Preti, D.
1984: 103-120)
Os temas de natureza sexual são pouco explorados no corpus do
Projeto NURC/SP. Portanto, o frame de malícia é pouco freqüente:
“L1 (uma) de no::ve... e outra de seis...
Doc. a senhora... procurou dar espaço de tempo entre um e Outro...
L2 aconteceram ou foram
Doc. aconte/...
L2 programados
Doc. (isso)... faz favor ( )
L1 a p/ a p/ é... a programação havia sido planejada... mas
não deu certo... ((risos))
L2 filhos da pílula não? ((risos))
L1 não... ((risos))
L2 nem da tabela? ((risos))

83
L1 não justamente porque a tabela não:: não deu certo é que::
((risos) vieram ao acaso
L2 ahn ahn
L1 e:: nós havíamos programado Nove ou dez filhos... não é?
L2 nossa que chique”
(D2 360, 1-18)
Nesse texto, entonação, risos marcam os eufemismos maliciosos,
como “programação” (por vida sexual), “filhos da pílula”(referência aos
processos para evitar gravidez) etc.
O diálogo, mais adiante, entra novamente no frame de malícia,
quando se fala da necessidade de evitar a gravidez, utilizando para isso
métodos cirúrgicos:
“L2 inclusive... se eu tiver... ele disse que vai ser necessário... um aborto... então
estamos naquele negócio eh... como fazer::... se faço operação:: se o marido faz::
mas ele acha que::... de jeito nenhum:: ((risos))”
(D2 360, 83-86)
3.3.4. Frames de formalidade
O distanciamento social e cultural também pode ser o objetivo
do falante culto, impondo ao ouvinte, por meio de uma lingagem mais
tensa, a impressão de que deseja ser admirado pela sua produção lin-
güística, com estruturação sintática mais elaborada e vocabulário me-
nos comum.
Instaura-se um frame de formalidade que é, quase sempre, de
natureza dissertativa, acionado por um contexto específico, como, por
exemplo, uma conferência ou um pronunciamento formal. O ouvinte,
em geral, já está preparado para esse discurso, pela possível ausência
(ou pequena freqüência) de linguagem mais distensa. É, talvez, por
isso que uma piada, em meio a um texto de conferência, por exemplo,
cause sempre uma quebra muito grande de tensão (muitas vezes, até
injustificada), porque momentaneamente o novo frame permite uma

84
pausa mais longa, com comentários, risos que seriam, a princípio, pou-
co comuns no contexto.
Utilizado em situações menos formais, esse frame torna-se inespe-
rado e, não raro, costuma-se comentar que certas pessoas “parece que es-
tão sempre fazendo discurso ou dando aula”, até durante uma conversação
espontânea. Pode-se criar, então, um estado de “indefinição de frame”, que
pode levar a uma interação deficiente.
Sintaxe mais elaborada; uso maior de subordinadas em construções
que exigem, por exemplo, correlação verbal; emprego de turnos mais lon-
gos; preferência pelo discurso indireto; aproximação da linguagem escrita
constituem algumas características do discurso esperadas nesse frame.
É importante frisar que esse tipo de discurso constitui uma particu-
laridade de falantes cultos, pressupondo maior grau de escolaridade e co-
nhecimento da língua, além de hábitos de falar de forma mais tensa, inibin-
do a participação do interlocutor.
No diálogo que se segue, temos um falante culto (professor, confe-
rencista, escritor etc.) conversando com outro professor, diretor da escola
em que ambos trabalham. A gravação foi realizada na sala da diretoria o
que contribuiu também para que se instaurasse o frame de formalidade:
“L1 comigo é o contrário eu... talvez até por certo... exotismo gostaria de poder
contar alguma experiência aérea... traumatizante ou pelo menos inquietante...
mas a não ser alguns atrasos... homéricos né? excepcioNAIS assim em termos
de...viagens... aparentemente de pequena distância... NUNca:: encontrei::
circunstâncias que tenham me feito... preocupar:: ou temer pela própria
segurança... nunca... aquela tão... característica posição do indivíduo que desce e
beija a terra agradecido... sempre... as minhas experiências aéreas foram das
mais favoráveis possíveis... como... particularidade curiosa das minhas viagens
aéreas... eu suponho que::... ahn a mais exótica foi o fato de ter trocado... o valor
de uma passagem por uma palestra a oito mil metros de altitude... quando do vôo
inaugural... da VASP para Manaus... ahn o vôo do:: One eleven... um dos::
diretores da companhia me propôs como:: forma de promoção uma passagem
aérea gratuita... eu eu disse a ele que só poderia aceitar se fosse possível levar
minha esposa tamBÉM...então ele disse que nessa circunstância para justificar
perante a companhia a ida... da minha esposa... eu teria que fazer alguma cousa
pela companhia... e... a/aquilo que o professor sabe fazer... ahn... única e
exclusivamente é dar aula... então ele pediu... que::. eu preparasse uma aula para
apresentar aos passageiros através do... microfone de::... de bordo... ahn numa

85
grande altitude... e... foi uma palestra de oito minutos não mais do que isso sobre
a a ocupação da Amazônia”
(D2 255, 98-129)
O texto chama a atenção, não apenas pelo emprego de um voca-
bulário bem amplo, pouco comum num diálogo, mas também pelo uso
do discurso indireto.
Considerações finais
A capacidade de acionar as mais diferentes espécies de frame re-
vela nos falantes cultos, não só um conhecimento amplo das possibilida-
des da norma e dos usos da língua, mas também uma amplitude de es-
quemas de conhecimento para interagir com seus ouvintes, em sintonia
com os esquemas de conhecimento destes, isto é, com seus conhecimen-
tos pré-existentes e armazenados na memória.
A mudança dos frames resulta, como vimos, em variações de ten-
são conversacional que podem constituir verdadeiras estratégias da con-
versação. Embora não se possa afirmar que apenas os falantes cultos
conheçam essas estratégias interacionais, alternando com naturalidade
frames que permitam influenciar decisivamente na compreensão de seu
discurso, podemos dizer que esses falantes possuem mais condições de
fazê-lo, pelo seu conhecimento da língua, transmitindo e compreenden-
do com mais facilidade todas essas variações, o que se torna mais evi-
dente, por exemplo, nos frames de formalidade.
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culta na cidade de São Paulo. São Paulo, T.A.Queiroz/FAPESP, v. I e II.
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86
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TANNEN, Deborah (1986) That’s not what I meant. New York, William
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uma exemplificação com o frame carnaval. Santa Maria, Editora da
Universidade Federal de Santa Maria.
VAN DIJK, Teun (1992) Cognição, discurso e interação. Trad. de
Ingedore V. Koch. São Paulo, Contexto.

87
ELOCUÇÃO FORMAL: O DINAMISMO
DA ORALIDADE E AS FORMALIDADES
DA ESCRITA
Beth Brait
Considerações iniciais
O material do NURC/SP reunido no volume A linguagem culta
na cidade de São Paulo I (Castilho & Preti, 1986) apresenta seis textos
identificados pela expressão elocuções formais – denominação que os
diferencia dos diálogos entre informantes, presentes no volume II (Castilho
& Preti, 1987) e das entrevistas, que compõem o volume III (Preti &
Urbano, 1988). Este ensaio, levando em conta essa tipologia, tem por
objetivo observar algumas das especificidades desse “gênero”, desse “tipo
de texto” denominado elocução formal e que está representado pelas
aulas e conferências aí transcritas. As estratégias a serem utilizadas in-
cluem a análise da macroestrutura textual, ou seja, da forma de composi-
ção que caracteriza esse tipo específico de texto, e o levantamento das
marcas da oralidade nele presentes para, em seguida, estabelecer uma
comparação entre as características textuais, enunciativas e discursivas
dessa fala registrada e textos escritos sobre o assunto exposto, quer esses
trabalhos tenham sido produzidos em períodos anteriores ou posteriores
à data da exposição.
Como é impossível tratar de todos esses aspectos nos seis inqué-
ritos registrados, mesmo porque nem todos foram produzidos por pes-
soas que têm textos publicados, o inquérito 153
1
será tomado como
(1)
Esse inquérito é a única publicação, de que se tem notícia, dessa conferência profe-
rida por Paulo Emílio Salles Gomes, renomado crítico e historiador do cinema bra-
sileiro.

88
referência para análise e comparação com textos escritos pelo mesmo
informante.
Para observar um provável conjunto de marcas lingüísticas, enun-
ciativas, textuais e discursivas que identificam essas produções, caracte-
rizando-as como “um tipo de texto”, uma espécie de “gênero discursivo”,
vamos recorrer, por um lado, ao conceito de gênero proposto por Mikhail
Bakhtin, e, por outro, a conceitos que, advindos da análise da conversão,
possibilitem o detalhamento das especificidades da interação verbal ob-
servada, e que é concebida, também bakhtinianamente, como uma di-
mensão enunciativa interacional. O conceito de gênero discursivo, con-
forme trabalhado pelo pensador russo
2
, e que hoje está na base das polê-
micas discussões sobre a possibilidade, o interesse e a validade do estudo
e da construção de tipologias textuais e discursivas, funciona, neste en-
saio, como sugestão relativa às formas de abordagem dos diferentes re-
cortes lingüísticos, discursivos e textuais a que o falante recorre, ou está
sujeito, no sentido de mobilizar diferentes competências nas variadas
situações em que o universo das atividades humanas se manifesta. E
mais, como o mesmo falante, em função dessas variáveis, oferece ele-
mentos para uma abordagem da variação.
O conceito de “gênero discursivo” apresentado por Bakhtin será
utilizado a partir da seguinte afirmação do autor:
“Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam,
estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpre-
ender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados
como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a
unidade nacional de uma língua . A utilização da língua efetua-se em
forma de enunciados (orais ou escritos), concretos e únicos, que ema-
nam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O
enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma
dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo ver-
(2)
Refiro-me aqui, especialmente, ao texto “Os gêneros do discurso” ou “El problema
de los géneros discursivos”, como aparece na tradução espanhola, que foi escrito
entre 1952 e 1953 e publicado em Estética da criação verbal, cuja primeira edição
russa é de 1979. Na verdade, a preocupação de Bakhtin com os gêneros discursivos
data da segunda metade dos anos 20 e já estava enunciada em Marxismo e filosofia
da linguagem (assinado Voloshinov).

89
bal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos
lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, por
sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático,
estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo
do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma
esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamen-
te é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciado, sendo isso que deno-
minamos gêneros do discurso (Bakhtin, 1992:279).
As questões relacionadas à variação serão observadas, portanto,
com apoio nos dois pontos de vista teóricos, tomados em sua
complementaridade, de forma a surpreender as diferentes perspectivas
de mobilização da língua e das normas que a constituem e que configu-
ram seu uso. A hipótese é a de que, pela diversidade da situação de pro-
dução e recepção, o falante, deslocado para a função de “escritor” e ten-
do de expor o mesmo tema, aproprie-se de um outro gênero, em função
da especificidade da esfera da atividade humana em que se insere, produ-
zindo um tipo de texto bastante diferente do primeiro.
1. Uma elocução formal: o inquérito 153
O inquérito 153 (Castilho & Preti, 1986: 90-111), cujo registro
data de 16 de fevereiro de1973, está caracterizado como uma conferên-
cia, cujo tema é “O cinema brasileiro da década de trinta”, proferida por
um homem de 56 nos, casado, professor universitário, paulistano, pai
nascido em Tatuí (SP), mãe nascida em Jacareí (SP). Embora a referên-
cia básica para este trabalho seja o texto registrado no livro A linguagem
falada culta na cidade de São Paulo, a fita em que a conferência se acha
gravada também foi ouvida, possibilitando uma maior compreensão, por
exemplo, da função de diferentes tipos de pausa, que não podem ser
recuperados inteiramente pela transcrição, mas que são fundamentais
para o reconhecimento das diferenças existentes entre um texto lido e um
texto falado, entre outros aspectos de interesse para a análise dessa elo-
cução.

90
Além disso, é também pela fita que se pode saber que o informan-
te acima caracterizado é Paulo Emílio Salles Gomes. Crítico e historia-
dor do cinema brasileiro, Paulo Emílio (São Paulo, 1916/1977) foi pro-
fessor de História do Cinema e de Cinema Brasileiro na ECA/USP a
partir de 1968, e é autor obras: Jean Vigo, 1957; Il cinema brasilia-
no,1961; 70 anos de cinema brasileiro, 1966, em colaboração com
Ademar Gonzaga, republicado em 1970 pela Série “Cinema” sob o
título Panorama do cinema brasileiro: 1896/1966, e em 1980 pela
Editora Paz e Terra, como parte do volume Cinema: trajetória no sub-
desenvolvimento, que mereceu uma nova edição em 1996; Humberto
Mauro, Cataguases, Cinearte, 1974, 1980; Paulo Emílio: Crítica de
cinema no Suplemento Literário, São Paulo, Editora Paz e Terra, 1982,
2 vol.
O que se pode observar a partir da leitura, ou mesmo da audição
do inquérito 153, é que ele apresenta uma construção composicional bas-
tante regular, marcada por seqüências formais bem delimitadas, articula-
das de forma fortemente coesiva. Há uma introdução, que se inicia na
linha 1 e vai até a linha 44, um desenvolvimento que se inicia nesta
mesma linha 44 e vai até a 816, e uma conclusão que, iniciada na linha
816, vai até o final (L 916). Assim sendo, tanto do ponto de vista da
exposição do tema principal por meio da articulação cuidadosa de tópi-
cos e subtópicos quanto da maneira como cada seqüência e cada tópico e
subtópico estão interligados, a característica marcante dessa elocução
formal, da perspectiva da construção composicional, é, como se verá, a
evidente proximidade da estruturação de um texto escrito.
Entretanto, há também um conjunto de marcas “conversacionais”,
indicativas da contingência interacional, das condições sine qua non para
a construção do texto oral, que vão se apresentando pela existência explí-
cita de um locutor em presença de seus ouvintes, pelas evidências textu-
ais de que esses ouvintes estão instaurados como interlocutores e que
atuam no decorrer da exposição como explícitos co-enunciadores. Se
esse texto falado apresenta uma estrutura organizacional bastante rígida,
aproximando-se das características de um texto escrito, as fortes marcas
da oralidade, da interação face a face, distanciam o conjunto de um texto
escrito para a leitura.

91
1.1. Parte introdutória da elocução formal
Considerado da perspectiva de uma subdivisão do tema em tópi-
cos, a introdução é o momento em que o conferencista, antes de entrar
nas especificidades que caracterizam o cinema da década de trinta, tema
sobre o qual deve dissertar, procura situar o cinema brasileiro do ponto
de vista de um subtópico, ou seja, o do comércio cinematográfico ao
longo da história, explicando que ele sempre foi considerado como “mar-
ginal”, como “penetra”, “intruso”, na medida em que atrapalhava um
mercado importador de filmes estrangeiros que funcionava muito bem.
Na seqüência, procura mostrar momentos de “um passado longínquo em
que isso não acontecia”, apresentando o que ele chama de “idade do ouro
do cinema brasileiro”, situada entre 1908 e 1912, período em que, segun-
do o enunciador, o cinema brasileiro não era marginal porque “as pesso-
as que produziam os filmes eram os donos do cinema”, interessados,
portanto, em propagar seu produto. Prosseguindo, diz que esse cinema
“artesanal” sofre um grande abalo no momento em que “o cinema virou
realmente indústria nos países adiantados” e o Brasil passou “a importar
também divertimento”. A conclusão dessa introdução é a de que, apesar
da força do cinema estrangeiro, o cinema brasileiro nunca morreu, teve
continuidade, mesmo marginalizado e com grandes dificuldades. Esse
início é ponto de partida para a compreensão do cinema na década de
trinta, parte do contexto formado pelas características gerais do cinema
brasileiro. As demais partes do texto dialogam com os pontos aí salien-
tados.
Do ponto de vista temático, o enunciador procurou, antes de en-
trar nas particularidades do cinema dos anos trinta, explicitar um ponto
de vista histórico e econômico, por meio do qual abordará a questão,
revelando o que se poderia chamar de planejamento temático bastante
cuidadoso.
Ainda no que diz respeito à introdução e sua organização, o plane-
jamento estrutural também pode ser constatado, identificando-se a preo-
cupação do enunciador não apenas com o tema, mas também com a
situação específica de enunciação: trata-se de uma exposição para um
público in praesentia e que, em princípio, ocupa o espaço enunciativo
pelo interesse em torno do assunto e do expositor. Confirmando esses

92
postos e pressupostos enunciativos, o enunciador inicia a conferência
estabelecendo a interação com o público e explicitando o tema de sua
fala. A seqüência “vamos entrar no nosso assunto... o cinema brasileiro
na década de trinta...” (p.90: L1-2) pode ser analisada considerando-se a
primeira parte como a marca enunciativa interacional que instaura o pú-
blico ouvinte como co-enunciador da conferência e a segunda como a
delimitação do tema, já conhecido de antemão pelos ouvintes, uma vez
que a conferência estava anunciada num conjunto de várias outras. Esse
“nós” inclusivo, marcado pela primeira pessoa do plural do verbo ir (“va-
mos”), assim como o “nosso”, que democratiza o domínio do assunto
compartilhando sua posse com os ouvintes (“nosso assunto”), dá início
ao que se pode denominar “primeira parte da exposição” e, necessaria-
mente, das especificidades dessa interação.
Confirmando a função de marca enunciativa interacional, essa
primeira pessoa do plural, representada por “nós”, por “a gente” ou mes-
mo por pronomes como “nosso”, reaparece mais algumas vezes, ou em
pontos-chave da articulação das três grandes seqüências do texto, como
se poderá constatar mais adiante, ou como elemento de esclarecimento
do tipo de ligação, de parceria, de cumplicidade existente entre o
enunciador e seus interlocutores, uma exigência dessa situação, dessa
“esfera específica da atividade humana” que é expor um assunto, com
conhecimento de causa, para um público que, previamente, se define
como interessado. Ainda na introdução, essa marca pode ser localizado
nas seguintes seqüências: “nós encontramos momentos no passado”, “se
nós pegarmos... se nós quisermos encontrar...”, “a gente”, “esse nosso
cineminha”, “e os nossos filmezinhos”.
Além desses, há ainda na introdução uma outra marca enunciativa
interacional: “e vocês sabem” (L.30). Nesse momento, o enunciador di-
rige-se, por meio do pronome vocês, diretamente a seus ouvintes, a seus
interlocutores, qualificando-os com o verbo saber, compartilhando com
eles, ao menos no nível retórico e interacional, um conhecimento que
está sendo explicitado e buscado naquele momento.
Mas não são somente essas marcas enunciativas e interacionais
que evidenciam, já na introdução, aspectos característicos da interação
face a face, das estratégias de construção de um texto oral, mesmo quan-
do ele se apresenta como elocução formal, cujo pressuposto é o de que os

93
ouvintes só tomarão o turno se o falante sinalizar essa possibilidade no
final de sua fala. Há outros elementos no texto que apontam para essa
mesma direção. A transcrição do texto oferece, pelo esforço de procurar
registrar com fidelidade as pausas, as hesitações, as repetições, as pará-
frases tão características da oralidade, elementos que a audição da fita
confirma como específicos da oralidade. Exemplificando alguns desses
traços, destacamos: “um cinema MARGINAL” (pausa acentuada); “foi
TRADICIONALmente (variação da altura da voz), “algo que funciona::va
direiti::nho...um negócio que funcionava bem...( paráfrase com hesita-
ção), “o cinema brasileiro ... nun::ca... nunca morreu (repetição hesitante
e enfática”), “mas o cinema... sempre... sempre continuou a existir o ci-
nema brasileiro...”.
Pelo exposto, essa introdução já oferece, metonimicamente, al-
guns elementos constitutivos da elocução formal e que podem ser resu-
midos da seguinte forma: há um perceptível planejamento temático e
composicional que aproxima a fala, a exposição, do planejamento de um
texto escrito. Entretanto, a presença de ouvintes passa a interferir nesse
planejamento, obrigando o texto, na sua aparente estrutura monologal, a
incluir marcas enunciativas e interativas próprias dessa situação.
1.2. O desenvolvimento da elocução formal
Passando-se para o desenvolvimento, é possível observar elemen-
tos que apontam para a continuidade de um planejamento temático,
composicional e até mesmo estilístico, próprio desse “gênero discursivo”.
Assim, esse trabalho revela-se no que diz respeito aos tópicos e subtópicos,
à preocupação com a estrutura composicional mostrada nos elementos
que estabelecem a coesão entre as seqüências e, ainda, nas marcas de
uma interação face a face bastante específica que é a manifestada por
palestras, aulas ou conferências, representantes textuais desse gênero
discursivo elocução formal.
O desenvolvimento, trecho mais longo da exposição em que o nú-
cleo temático está trabalhado, tem início, do ponto de vista da sintaxe tex-
tual, com o conector “e”, que estabelece a coesão explícita entre as seqüên-
cias. Do ponto de vista da interação, o início se dá com a retomada da

94
primeira pessoa do plural e com a utilização de um dêitico (aqui) marcando
o espaço enunciativo. No que diz respeito aos tópicos, acontece a retomada
do tema sob o ponto de vista enunciado anteriormente, conforme se pode
constatar em: “e no começo dessa década... que nós vamos abordar aqui...
o cinema brasileiro estava exTREmamente vivo...” (L40-41).
A exposição dos tópicos segue a perspectiva histórica e econômi-
ca anunciada na introdução. O enunciador começa sua exposição pelas
condições mercadológicas do cinema no início da década de trinta, res-
saltando o papel das importações, bem como da revolução representada
pelo cinema falado no mercado americano e, também, nos países menos
desenvolvidos como o Brasil, e que já estavam presentes no final da
década de vinte. Com as dificuldades técnicas representadas pelo início
do filme falado, o letreiro por exemplo, o enunciador mostra a brecha
encontrada pelo cinema brasileiro e o crescimento da produção brasileira
nos dois primeiros anos da década de trinta, quando mais de trinta filmes
de longa metragem foram realizados em várias regiões do país. Analisa
também os filmes no que têm de inovador dentro de uma tradição cine-
matográfica brasileira, na medida em que são feitos pelas mesmas pesso-
as da fase anterior. Motivado pelo ponto de vista econômico, recupera o
termo “cavadores” com o qual eram designados os cineastas, que eram
muito pobres, viviam em grandes dificuldades e que faziam cinema fora
dos sistemas estabelecidos. Destaca, paralelamente às atividades desses
“cavadores”, os cineastas Ademar Gonzaga, Humberto Mauro, Carmem
Santos, Joaquim Garnier, Cleo de Verberena, grandes nomes do momento.
A partir daí, o enunciador delineia as tendências às quais os filmes
se filiam e que representam a média da produção cinematográfica do
período, ou seja, a linha literária e histórica, a linha policial, a caipira, a
religiosa e a erótica, o cruzamento da religiosa e da erótica, a patriótica,
passando em seguida ao exame de cada uma, ao êxito de bilheteria que
representaram e à tentativa de novas tendências, como foi o caso do fil-
me Cousas nossas, que se aproximava dos musicais americanos sem
enredo. Refere-se a Mário Peixoto e Humberto Mauro como represen-
tantes do que houve de excepcional na década, mas esclarece que não
tratará deles nessa exposição.
Conclui esse tópico sobre o início da década de trinta com a volta
do cinema norte-americano em detrimento do cinema brasileiro, mas

95
com a presença de alguns cineastas que insistiam em realizar filmes,
como é o caso da volta dos “cavadores”, que aproveitaram a revolução
de 32, e o fato de o integralismo de Plínio Salgado levar a sério o cinema
como instrumento de propaganda. Assinala o aparecimento da primeira
associação de produtores cinematográficos, o primeiro sindicato de téc-
nicos de cinema, as convenções, as manifestações de classe junto a Getú-
lio Vargas, a criação de uma comissão, a lei do curta metragem, o papel
do Estado Novo e as conseqüências para a indústria cinematográfica bra-
sileira e suas relações com a indústria norte-americana. Após o colapso
de 34, a tendência cinematográfica foi a dos musicais com enredo ro-
mântico, incluindo Cármen Miranda e sua popularidade alcançada no
rádio e, em seguida, descoberta pelos americanos.
Aproveitando o “gancho” de que Cármen Miranda foi embora em
1939, o enunciador anuncia o final do período histórico proposto, que é
necessariamente o final do desenvolvimento da elocução, apresentando
acontecimentos que, finalizando a década, são importantes para as duas
décadas seguintes. Refere-se ao início do cinema de humor que se con-
cretizará como chanchada e, também, à tentativa de um grupo de fazen-
deiros paulistas de produzir filmes, reanimando os velhos “cavadores”,
construindo um estúdio, comprando aparelhagens, mas realizando um
único filme intitulado A última esperança.
Além dos tópicos e subtópicos sucederem-se de forma coesa e
coerente, apoiados no eixo histórico e econômico, há um outro traço que
aproxima a elocução formal da composição do texto escrito. O enunciador,
em vários momentos de sua exposição, introduz outras vozes por meio
da citação textual. Esse é o caso dos seguintes momentos em que, sem
dúvida, o texto falado incorpora, pela leitura de fontes explicitadas, a
complementação das informações que está organizando:
“Francisco Silva Júnior... que trabalhou anos a fio para os americanos e
sabia do que falava... escreveu na ocasião Cármen Miranda faria bonita
figura em qualquer filme americano do mesmo gênero”... e na mesma
ocasião um crítico Celestino Silveira comenta... a sorte desliza ao nosso
lado três vezes por dia... o negócio é descobrir quando ela vai
deslizando... agora está no Alhambra... - - era o cinema que estava
passando um filme da... Cármen Miranda - - ... é segurá-la... antes que
passe” (L 759-769).

96
“ah pode servir como introdução ao assunto... uma passagem de uma
entrevista da época... do... ator Jaime –Costa... ele dizia... o nosso público...
o carioca principalmente... vê em tudo e antes de mais nada a
parte humorística... e é por isso que eu penso... que em matéria de
cinema... devíamos explorar... essa tendência... nada de grandes
emoções...” (L 791-799)
Mas essa mesma estratégia de citação aparece sob as condições da
situação de oralidade, ou seja, não pela leitura das fontes, mas pela força
da memória que introduz na sintaxe do texto falado palavras de outros,
vozes que vêm à memória não necessariamente como foram ditas e, muitas
vezes, sem explicitação do nome do autor. É o que se observa em:
“o titulo foi tirado de um samba de Noel Rosa...hoje é um clássico né?...
a som/ a::sombra...a prontidão e outras bossas são nossas coisas
são coisas nossas né? (L 497-500).
“e o colunista da revista [revista Cinearte]comenta com orgulho... um
pouco de matéria-prima brasileira... para o...ah:: para o cinema
americano...” (L 778-780).
“um dos jornalistas da (...) época escreveu que... os filmes americanos já
fizeram muito pelo Brasil ... levaram a civilização aos nossos sertões...”
(L 694-699).
Essa contingência da oralidade está confirmada nos elementos
interativos que já haviam se manifestado na introdução e que também
estão presentes no desenvolvimento.
Como foi possível observar no início do desenvolvimento, há uma
retomada da constituição do enunciador como um nós. Essa retomada da
primeira pessoa do plural acontece em vários momentos, indicando for-
mas diferentes de parceria e identificação entre o enunciador e seus
enunciatários. A presença se dá nas seguintes seqüências: “na época em
que nós já somos dos americanos”; “que nós já vimos outro dia”; “atin-
giu índices absolutamente inéditos em toda a história... ah do nosso cine-
ma...”; “”porque os nossos cineastas...”; “entrou na história do nosso
cinema”; “nós temos assim algumas indicações sobre pessoas que fazi-
am cinema naquele momento...”; “nós podemos destacar...”; “eventual-

97
mente nós voltaremos...”; “tomemos inicialmente o filme caipira...”; “to-
memos agora...”; “precisamente por nossa conhecida Cleo de Verberena...”;
“para dar uma idéia vamos aludir rapidamente ao enredo...”; “e nós público
também ficamos convencidos...”; “os dois amigos e nós... ficamos con-
vencidos...”; “então quando nós sabemos que esse filme...”; “de um pro-
gresso tal da linguagem... ahn do nosso cinema...”; “vejamos agora um
filme patriótico...”; “ahn sobre alguns aspectos da nossa cultura...”; “é para
nós brasileiros”; “que é revelador de de nossos costumes...”; “nós já nos
acostumamos com isso não é?”; “a grande figura do nosso teatro de revis-
ta...”; “a personalidade mais viva do nosso teatro da época...”; “e tão ani-
mador para nós...”; “voltou a reinar a ordem em nosso pergado em nosso
mercado cinematográfico...”; “os nossos filmes foram de NOvo expulsos
das telas de nossos cinemas...”; “mas vamos voltar às coisas mais sérias...”;
“até os nossos dias...”; “a entrada em nosso mercado...”; “nós poderíamos
dizer hoje...”; “foi levar o sertão... à nossa civilização...”;“nosso conhecido
de Coisas nossas...”; “nós brasileiros cumpríamos o nosso longo desti-
no...”; “estamos chegando ao fim do período histórico que nos foi propos-
to...”; “o gênero cinematográfico mais vivo...que o nosso cinema conhece-
rá durante muito tempo...”.
Essa primeira pessoa do plural, explicitada pela terminação ver-
bal e pelos pronomes e que de fato têm as funções enunciativas e interativas
já indicadas na introdução, revela as especificidades da elocução formal
no que diz respeito à maneira como o “quadro participativo” está marca-
do no texto considerado uma elocução formal. Conforme Kerbrat-
Orecchioni:
“Certos papéis participativos particulares são próprios de certos tipos
particulares de interação (...) Nas conferências, um dos participantes é
geralmente o único ser investido da função de enunciador, os outros
participantes estão ratificados como ouvintes silenciosos (é a “audiência”),
enunciando unicamente os reguladores. Pode-se considerar, de acordo
com Schegloff
3
, que em tais casos constituem formas particulares de
trocas diáticas, em que os ouvintes, por mais numerosos que sejam,
constituem uma só e mesma entidade” (Kerbrat-Orecchioni, 1990: 84).
(3)
Orecchioni refere-se ao artigo “Entre micro et macro: contextes et relations”, Societé
14:17-22.

98
Nesse caso, a audiência dessa exposição oral, dessa conferência
ou aula, é um público formado por interessados em cinema e que, por
algumas passagens, como é o caso de “que nós já vimos outro dia”, de-
monstra já ter estado anteriormente em contato com o enunciador. As-
sim, essa primeira pessoa do plural, que reúne enunciador e enunciatários,
vai sendo preenchida ao longo da exposição de acordo com os papéis
que o enunciador assume e expande interacionalmente a essa audiência,
conforme as conveniências e necessidades do processo interativo. Se,
como marcador das grandes seqüências textuais, essa primeira pessoa
envolve enunciador e enunciatários nessa situação específica, outras ve-
zes esse nós indica a enunciação construída a partir dos conhecimentos
partilhados por professor e aluno, e aí o enunciador assume o papel da-
quele que sabe e compartilha conhecimentos. Em outros momentos, esse
nós significa os colonizados ou “possuídos” pelos americanos, ou mes-
mo nós os criadores de um cinema brasileiro, diferenciado do estrangei-
ro, ou ainda é o nós que engloba os participantes de uma mesma história,
de uma mesma cultura, de um mesmo processo mercadológico e econô-
mico. Mais de uma vez esse nós é explicitado com a denominação brasi-
leiros ou público, explicitando os diferentes papéis desempenhados pe-
los sujeitos dessa enunciação.
Seja qual for o preenchimento, cada uma dessas marcas vai evi-
denciando as posições do sujeito enunciador e a maneira como ele traz o
enunciatário para dentro da enunciação, fazendo-o partilhar dessa mes-
ma posição, desse mesmo ponto de vista por meio do qual o objeto da
exposição vai sendo construído.
Há momentos, entretanto, em que o enunciador se enuncia na pri-
meira pessoa do singular, como acontece nas seguintes passagens: * “com
aquelas dificuldades todas a que eu aludi...”; *“eu penso que... esses fil-
mes a que eu aludi...”; *“eu deixei propositadamente de lado...”; **“eu
tive a oportunidade de examinar alguns rolos...”; **“e eu fui levado de
novo a repensar num problema...”; **“e:: a minha experiência...”; **“e
eu realmente me interesso cada vez mais por esses filmes...”; **“ah pelo
que eu pude ver o interesse de...”; **“eu estou convencido em suma...;
**“me impressionou notadamente...”; * “nesse encontro de hoje eu não
me preocupei com a faceta propriamente estética do cinema brasileiro...
se o fizesse... precisaria abordar ...”. Ao que parece, o abandono da pri-

99
meira pessoa do plural e a assunção da primeira do singular está direta-
mente ligado a dois aspectos: a) o enunciador dispensa a parceria quando
faz referência a informações construídas por ele no decorrer dessa enuncia-
ção, como é o caso das três primeiras passagens, assinaladas com *; b) ou
quando as afirmações estão diretamente ligadas às especificidades de
seu fazer crítico, de sua postura diante desse fazer crítico, como é o caso
das seqüências marcadas por **. Nos dois casos, o enunciador abandona
a parceria interativa para assumir-se enquanto sujeito de um saber e de
um fazer que lhe conferem a hierarquia nessa interação assimétrica re-
presentada pela aula, conferência ou palestra. É preciso considerar que
essas marcas de primeira pessoa do singular, se comparadas às de pri-
meira do plural, são pouco numerosas.
Uma outra marca interativa explícita deve ser registrada em duas
passagens do texto, assinalando, pelo imperativo, a interpelação direta:
“mas cujo título é todo um:: programa imaginem que o filme se chama-
va... O calvário de Dolores...” e “um grupo de fazendeiros ricos imagi-
nem... resolveu produzir filmes...”.
Se os elementos destacados até aqui, incluindo-se a introdução e o
desenvolvimento, demonstram as especificidades dessa elocução formal
no que diz respeito à organização composicional dos tópicos e subtópicos
e às estratégias interativas marcadas enunciativamente no texto, o que
lhe confere um estatuto intermediário entre o oral e o escrito, é preciso,
ainda, fazer referência ao que Bakhtin chama de “estilo” e que, relacio-
nando-se com as idiossincrasias do enunciador, também participa das
coerções e da natureza específica do gênero.
Assim sendo, há alguns aspectos que podem ser destacados como
marcas do estilo dessa elocução formal que, sendo específicos desse
enunciador, não deixam de apontar para aspectos que constituem mar-
cas da elocução formal realizada em aulas, conferências e palestras:
um deles, mas não o único como foi possível observar, é cuidadosa
escolha lexical, trabalhada sintática e semanticamente para produzir
efeitos bastante diferentes, mas imprescindíveis à natureza desse “gê-
nero discursivo” . A escolha lexical, feita em nome do rigor e da espe-
cificidade do tema, do assunto a ser tratado, do ponto de vista assumido
pelo especialista, também funciona interativamente, produzindo efei-
tos de humor, ironia, “ganchos” estilísticos de passagem entre um tópi-

100
co e outro, entre subtópicos ou, ainda, como a divisão das grandes se-
qüências do texto.
Para conferir alguns desses efeitos, basta observar, por exemplo,
as passagens destacadas a seguir.
Ainda na introdução, ao fazer referência à indústria cinematográfi-
ca dos países adiantados, utiliza os diminutivos cineminha (“mas
DESde que o cinema virou realmente inDÚStria... nos países adianTA-
dos... naturalmente que o nosso cineminha... artesanal... foi liquidado...”) e
filmezinhos (“e começou também a importar filmes... e os nossos filmezinhos
feitos aqui foram postos...”). Esse diminutivo aparece, em contraste com a
forma normal do termo na mesma seqüência, como a incorporação irônica
da voz mercadológica.
O efeito humorístico, construído a partir de diferentes estratégias,
pode ser constatado em várias passagens, uma das manifestações dos
enunciatários é registrada por meio da forma ((risos)). Outra é fazer refe-
rência explícita a um domínio de conhecimento do enunciatário, incluin-
do o ritmo ou a entonação referencial, como acontece na seguinte passa-
gem: “se o cinema falado penetrou... foi porque
4
uma companhia de
terceira categoria uma companhia dos irmãos Warner... estava à beira da
falência...era uma companhia que não tinha mais nada... a única coisa
que eles tinham eram dois atores envelhecidos já sob contrato... um deles
era o John Barrymore... que nós vimos outro dia... no Grande Hotel às
voltas com Greta Garbo coitado... e...(...) tinha o cachorro (ritmo de)
Rin-tin-tin... né ((risos)).
O efeito de humor pode estar, por exemplo, na forma um tanto
dramático-cômica de narrar comentando o enredo de um filme um tanto
sofisticado, em relação à média dos filmes policiais da época, intitulado
O mistério do dominó preto: “eram dois estudantes que moravam no
mesmo quarto... durante o carnaval... um rapaz chega do baile... abre o
armário... e encontra uma mulher fantasiada de dominó preto...
morta...bem... o rapaz se convence... e nós público também ficamos con-
vencidos... de que foi o amigo... que... matou... a mulher... numa segunda
etapa... os dois rapazes... o tenente... e nós... ficamos convencidos... de
(4)
Embora a palavra porque não esteja na transcrição, a audição da fita mostra que ela
foi dita pelo informante.

101
que quem matou... a dominó... foi a noiva do tenente... e finalmente na
conclusão... éh se esclarece... que o verdadeiro assassino... é... o irmão...
da noiva... do tenente... ((risos)).
A maneira de trabalhar a citação também pode produzir efeitos
irônicos e ou humorísticos, como acontece na conclusão do texto, em
dois momentos. No primeiro, o enunciador recorre a uma crônica para
evidenciar a postura de um periódico especializado conservador diante
do cinema europeu e americano, misturando citação e comentário da
forma apresentada a seguir.
Inicialmente, a citação é explícita: “O articulista [Cinearte] está
comentando sobretudo... alg6uns filmes europeus (...) um cinema que
ensina o fraco a não respeitar o forte... o servo a não respeitar o pa-
trão... que mostra caras sujas... barbas crescidas... aspecto sem higiene
alguma... sordices... - - sic - -... e um realismo levado ao extremo... não é
cinema...” (L 859-863).
Na seqüência, e pela entonação, o enunciador passa a comentar o
restante da crônica, de maneira bem próxima ao texto do articulista, de
forma a não se distinguir onde começa e termina a fala de um e de outro:
“ele imagina um casal de jovens que vão assistir um filme americano
médio... vêem lá um rapaz de cara limpa... bem barbeado... cabelo pente-
ado... ágil... bom cavaleiro... e a moça bonitinha... corpo bem feito...rosto
meigo... cabelos modernos... aspecto todo fotogênico... depois há o cô-
mico e o vilão... que também são higiênicos... ((risos)) e também são
distintos... ((risos)) e então uma fazenda moderna... fotogênica...os su-
bordinados que se submetem aos seus superiores... com alegria e com
satisfação... ((risos)) e um ritmo... que é o ritmo da vida de hoje... ágil...
leve... moderna... ((risos)) o parzinho que assistir o filme comentará que
já viu aquilo vinte vezes... mas... sob seus corações que sonham... não
cairá... a penumbra... de uma brutalidade chocante... de uma cara suja...
de um aspecto que tira qualquer parcela de poesia e de encantamento...
essa mocidade... não pode aceitar essa arte que ensina a revolta... a falta
de higiene... a luta... a eterna briga... contra os que têm o direito de man-
dar... ((risos))” (L 863-883).
Na segunda recorrência à citação, comentando as posições pro-
gressistas que existiam ao lado das conservadoras, e que lutavam pela
criação de um cinema nacionalista: “o articulista:: se levanta contra o

102
cinema americano não é? ... o que para mim seria simpático não é? ( )...
mas ... o argumento principal... é o seguinte... as mulheres brasileiras...
vêem cada vez mais crescer em torno de si... o indiferentismo de seus
patrícios... ((risos)) sugestionados pela beleza impeCÁvel dos tipos
estandartizados... do écran... ianque ((risos)) (L 892-900).
Nos dois casos, as estratégias sintáticas de incorporação das falas
de outros funcionam em benefício do ponto de vista do enunciador com
a cumplicidade do enunciatário trazido para a enunciação pelas estratégi-
as interativas do humor e da ironia.
Mas há ainda um aspecto ligado ao “estilo”, no sentido bakhtiniano,
que merece ser observado: a forma como o enunciador articula informa-
ção e efeito de humor para finalizar o desenvolvimento. Ao apresentar os
últimos acontecimentos cinematográficos referentes à década de trinta,
narra as peripécias dos fazendeiros ricos que construíram um estúdio,
compraram aparelhagem e reanimaram os velhos cavadores e conclui:
“... o resultado de todo esse esforço... foi um único filme... chamado A
última esperança... ((risos)) (L 815). A ironia é feita com o aproveita-
mento do título do filme em contraste com as ambições da empreitada.
1.3. A conclusão da elocução formal
Na passagem desse desenvolvimento para a conclusão, também
se pode observar o cuidado com o relacionamento entre as partes, o que
aparece do ponto de vista dos tópicos e subtópicos, da macroestrutura
sintática e interacional: “nesse encontro de hoje eu não me preocupei
com a faceta propriamente estética do cinema brasileiro...”. Ao afirmar
que em sua exposição não se havia preocupado com o lado estético do
cinema, o que o obrigaria a tratar mais detidamente das produções de
Mário Peixoto e Humberto Mauro, o conferencista recupera esse subtópico
rapidamente, perseguindo metalingüisticamente a conclusão (“resta tal-
vez para concluir”), nela incluindo “o movimento de idéias do período”.
O final interliga o tema, o ponto de vista do enunciador e a situa-
ção específica de interação, dentro do estilo ensaístico e às vezes pró-
ximo do literário que caracteriza esse “informante”, não excluindo o ri-
tual de polidez exigido por essa interação específica denominada elocu-

103
ção formal: “esses novos recrutas da cultura... só se preocuparam duran-
te anos a fio... com o cinema estrangeiro... inclusive esta pessoa... que
passou a manhã... falando sobre o cinema brasileiro... muito obrigado
pela atenção... ((aplausos) (L 911-916).
1.4. O informante escreve sobre o mesmo assunto
Para contrastar as características da elocução formal representada
pelo inquérito 153, que acaba de ser analisado, com textos escritos pelo
mesmo informante sobre “o cinema brasileiro na década de trinta”, fo-
ram selecionados alguns trechos dos textos “Panorama do cinema brasi-
leiro: 1896/1966”
5
e “Pequeno cinema antigo” (Gomes, 1996:7-18), nos
quais aparecem referências a esse período, sem que haja um texto especí-
fico sobre o cinema brasileiro de trinta.
Em torno de 1930, nasceram os clássicos do cinema mudo brasileiro e
houve uma incursão válida na vanguarda mais ou menos hermética. Era
tarde, porém. Quando o nosso cinema mudo alcança essa relativa
plenitude*, o filme falado já estava vitorioso em toda parte. (*O autor
incluiu a seguinte nota: Plenitude apenas artística. Comercialmente o
cinema nacional permanecia marginalizado. A exibição de filme
brasileiros era mais do que precária e dependia inteiramente da boa
vontade de um outro dono de sala. Só foram realmente vistas pelo público
algumas raras obras que, por um motivo qualquer, as distribuidoras
estrangeiras incluíam ocasionalmente em seus circuitos (Gomes, 1996:
13).
(5)
Este texto é um dos três reunidos em Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, São
Paulo, Paz e Terra/Embrafilme, 1980, pp.35-69. Nessa edição, há uma nota esclare-
cendo que o “texto foi estabelecido por Maria Rita E. Galvão e Jean-Claude Bernadet
a partir de três fontes: o original, 70 Anos de Cinema Brasileiro, editado por Expres-
são e Cultura, e Panorama do Cinema Brasileiro: 1896/1966, mimeografado em
1970 pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, Série
“Cinema”, nº 1, primeira edição. 70 anos é uma condensação do original. Embora o
livro seja assinado por dois autores, o texto foi escrito por Paulo Emílio Salles Go-
mes, responsabilizando-se Ademar Gonzaga pela arte iconográfica e legendas das
fotografias. Panorama foi diretamente transcrito do original revisto pelo autor” (Go-
mes, Paulo Emílio Salles, 1980:38).

104
A coexistência do cinema mudo e falado de 1929 a 1933 justifica por
certo o fato extraordinário de terem sido feitas no ano de 1930 cerca
de vinte fitas. Realmente, o cinema falado desempenhou um papel
estimulante na nossa produção, mas isso antes de 1934, quando então
houve um colapso quase tão radical quanto o de 1911 u 1921 (Gomes,
1980:54).
Esses filmes, bem como mais uns quatro ou cinco realizados em Belo
Horizonte até 1934,não passaram de um esforço sem maior repercussão,
mesmo local. José Silva foi o responsável por três dessas produções,
Boêmios, Perante Deus e Calvário de Dolores (...) (Gomes, 1980:55).
Concentra-se a produção em Porto Alegre, limitando-se até 1933 a meia
dúzia de filmes, alguns com razoável distribuição, sobretudo no interior
(Gomes, 1980: 56).
Inspirados na vitória da Revolução de 1930, não tardaram a aparecer
filmes cívicos e militares, como Amor e Patriotismo ou Alvorada de
Glória (Gomes, 1980: 60).
Isso porém ocorria em 1928, quando toda a linguagem cinematográfica,
laboriosamente construída durante vinte anos na Europa e na América
do Norte, já se encontrava condenada pela revolução sonora. Entretan-
to, o Brasil faria ainda cinema mudo durante cinco anos, até aproxima-
damente 1933 (Gomes, 1980:62).
No começo da década de 1930, constituiu ela [Carmem Santos]sua
própria companhia, a Brasil Vita Film, e constrói estúdios onde anos
depois conseguirá completar seu empreendimento de maiores
proporções: A inconfidência mineira. Humberto Mauro dirigiu três filmes
para Carmem Santos: Favela dos meus amores, Cidade mulher e Argila.
Com Favela dos meus amores volta o nosso cinema aos morros cariocas,
não para procurar celerados, como fez a polícia de A jóia maldita, mas
para simplesmente contemplar com simpatia e lirismo uma parcela do
povo (Gomes, 1980:63-64).
Wallace Downey, americano responsável pela repercussão de Cousas
nossas*, produzia exclusivamente filmes musicais, associando-se às
vezes à Cinédia... (Gomes, 1980:64).

105
A década de 1930 girou em torno da Cinédia, em cujos estúdios firmou-se
uma fórmula que asseguraria a continuidade do cinema brasileiro
durante quase vinte anos: a comédia musical, tanto na modalidade
carnavalesca quanto nas outras que ficaram conhecidas sob a
denominação genérica de “chanchada” (Gomes, 1980:64).
Os trechos da obra utilizada tiveram sua primeira edição em 1966,
portanto sete anos antes da conferência que resultou no inquérito 153. O
que se pode observar é que, naturalmente, muitas das informações que
estão no inquérito aparecem no texto escrito e outras não, havendo inclu-
sive algumas contradições que não são motivo de análise neste ensaio.
Entretanto, a maneira de tratar o tema, a forma composicional e o estilo
evidenciam que, embora tratando-se do mesmo indivíduo, os textos re-
velam “autores” diferentes, enunciadores constituídos na especificidade
da situação de enunciação.
O texto escrito enquadra-se num gênero mais didático, no qual a
necessidade de apresentar um panorama da história do cinema brasileiro
obriga a síntese da seqüência por épocas, conforme esclarece o próprio
título “panorama do cinema brasileiro: 1896/1966. Assim sendo, a pers-
pectiva histórica e econômica, uma marca do enunciador também na
conferência, está muito mais amarrada à seqüência cronológica, ao
detalhamento cronológico, à enumeração, à localização e análise das
condições de produção e distribuição de cada época do que na exposição
oral.
Se os dois tipos de texto revelam um especialista cujas neces-
sidades didáticas não excluem o excelente crítico, o impecável historia-
dor, a organização escrita descartou a presença do humor, da ironia, das
inserções narrativas ocasionais, da cumplicidade provocadora instituída
na situação de oralidade.
O que o texto escrito guarda das características da elocução for-
mal é, por exemplo, a expressão nosso cinema, nossa produção, que
inclui o enunciatário enquanto participante de uma dimensão cultural e
artística própria do Brasil. Assim sendo, se em relação a uma conversa
espontânea ou a um entrevista a elocução formal pode ser pensada como
muito mais planejada e assimétrica no que diz respeito às relações
interacionais, quanto ao texto escrito ela mostrou-se muito mais viva,

106
mais interativa, mais aberta para as parcerias entre enunciador e
enunciatário. Até mesmo as questões políticas mais delicadas, como é o
caso do Integralismo e do Estado Novo, foram tratadas, na exposição
oral, pelo viés da produção cinematográfica e a partir de uma memória
discursiva histórica e crítica em relação ao período ditatorial e às postu-
ras radicais, conservadoras e progressistas.
Considerações finais
Além do inquérito 153 aqui analisado, a obra A linguagem falada
culta na cidade de São Paulo, volume I, registra mais cinco textos, assim
distribuídos: o primeiro, uma aula universitária, tem por tema “Os instru-
mentos da vida intelectual”, caracterizando o informante por ser do sexo
feminino, 32 anos, paulistana, professora universitária; o segundo, tam-
bém uma aula universitária, intitulada “A demanda de moeda”, foi mi-
nistrada por um informante do sexo masculino, 31 anos, paulistano, pro-
fessor universitário; o terceiro, uma aula do curso secundário, tem por
tema “A arte pré-histórica: o paleolítico” e o informante foi caracteriza-
do como sendo uma mulher de 36 anos, paulistana, professora secundá-
ria; o quarto, uma aula universitária cujo tema é “Influência da língua na
personalidade do indivíduo”, foi proferida por um homem de 51 anos,
paulistano, professor universitário; o quinto, conferência que tem por
tema “Estética no Brasil, na década de 30 e é proferida por uma mulher
de 56 anos, paulistana, professora universitária.
Embora não se possa aqui detalhar as semelhanças e diferenças
existentes entre esse conjunto de elocuções formais, é possível constatar,
a partir do conceito de gênero discursivo de Bakhtin alguns aspectos
bastante esclarecedores. O mais geral e abrangente é o que diz respeito à
denominação genérica elocução formal. Ela se sustenta em termos de
uma tipologia textual estabelecida pelo Projeto NURC/SP para os dife-
rentes registros, tendo basicamente como parâmetro a assimetria
interacional em relação à conversa espontânea. No que diz respeito às
subdivisões assumidas – aulas e conferências –, a modalização, a gradu-
ação, também se sustenta em função das diferenças representadas pelas

107
duas atividades humanas específicas, embora bastante próximas. Vários
aspectos contribuem para a aceitação dessa tipologia que, como qual-
quer outra, poderia ser polemizada e contestada pela via de outros funda-
mentos teóricos.
O primeiro aspecto diz respeito à forma como o especialista – é
assim que se está sendo pressuposto o enunciador dessas elocuções –
escolhe os tópicos e subtópicos que configuram a organização do tema,
posicionando-se diante de seus ouvintes a partir das especificidades des-
sa situação. O segundo refere-se à maneira como está configurada a or-
ganização composicional e que, necessariamente, implica o tratamento
do tema e as formas de interação com os ouvintes, alçando esses ouvin-
tes à condição de audiência passiva ou de co-enunciadores construídos
enunciativamente. E por último, mas sem nenhuma hierarquização, o
estilo entendido bakhtinianamente como as formas de utilização da língua
que dimensionam o sujeito numa posição que é a de não ser nem senhor
e nem escravo das contingências lingüísticas e discursivas.
Neste ensaio, o que se pode concluir sobre algumas especificidades
do gênero discursivo elocução formal, sem qualquer ilusão sobre ser
exaustivo, é que cada manifestação, de fato, constitui um enunciado mais
ou menos estável, conforme Bakhtin, no que diz respeito à textualidade e
às particularidades enunciativas. Mas as variações sugerem uma análise
mais acurada, especialmente no que diz respeito ao contraste com produ-
ções escritas de natureza discursiva semelhante.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN. Mikhail (1979/1992) Estética da criação verbal. Trad. Ma-
ria Ermantina G.G. Pereira. São Paulo, Martins Fontes.
CASTILHO, Ataliba Teixeira & PRETI, Dino (org.) (1986) A lingua-
gem falada culta na cidade de São Paulo. São Paulo, T. A. Queiroz.
Vol. I [Elocuções formais].
________. (org.) (1987) A linguagem falada culta na cidade de São
Paulo. São Paulo, T. A. Queiroz . Vol. II [Diálogos entre dois infor-
mantes].

108
GOMES, Paulo Emílio Salles (1966/1980) Panorama do cinema brasi-
leiro: 1896/1966. In: Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. São
Paulo, Paz e Terra/Embrafilme. p. 35-69.
________. (1996) Pequeno cinema antigo. In: Cinema: trajetória no sub-
desenvolvimento. São Paulo, Paz e Terra. p. 7-18.
PRETI, Dino & URBANO, Hudinilson(org.) (1988) A linguagem fala-
da culta na cidade de São Paulo. São Paulo, T. A. Queiroz . Vol. III
[Entrevistas – diálogos entre informantes e documentador]
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine (1990) Les interactions verbales.
Paris, Armand Colin. Tome I.

109
POLIDEZ NA INTERAÇÃO
PROFESSOR/ALUNO
Luiz Antônio da Silva
Considerações iniciais
Quando imaginamos uma situação de sala de aula, podemos pres-
supor que a interação professor/ aluno nem sempre seja tranqüila. Por
isso existem atos que podem ameaçar a estabilidade das relações desses
elementos da interação na sala de aula. Quando ocorre tal fato, dizemos
que o status de cada interactante está ameaçado. Ao pesquisar essas
relações interpessoais, Goffman (1970) estudou procedimentos de pre-
servação das faces. Para o referido autor, quando se entra em contato
com o outro, tem-se a preocupação de preservar a auto-imagem pública,
isto é, a imagem que se quer manter. A ela Goffman dá o nome de face.
Em uma conversação, é comum os interactantes cooperarem para
a manutenção da face um do outro, havendo uma espécie de acordo táci-
to entre eles. Assim, normalmente, a face de uma pessoa é mantida quan-
do a face da outra que interage também é mantida. Contudo, segundo
Rosa (1992:20), “o simples fato de entrar em contato com outros em
sociedade rompe um equilíbrio ritual preexistente e ameaça potencial-
mente a auto-imagem pública construída pelos interactantes”. Marcuschi
(1989:284) também nos lembra que “a conversação, por ser uma ativi-
dade em que se desenvolvem negociações permanentes entre os indiví-
duos, apresenta sempre uma ameaça potencial à face dos interlocutores.
Na sala de aula, pela própria natureza das relações entre professor
e aluno, há um constante movimento de ameaça e preservação das faces.
Para que as relações entre os participantes da interação na sala de aula
possam desenvolver-se de maneira satisfatória, há um verdadeiro jogo
para atenuar os efeitos das ameaças à face de um ou de outro. Com isso,
os elementos implicados na interação fazem diversas tentativas para mi-
nimizar as ameaças à face. Para isso, utilizam-se de diversas formas de
polidez, sejam elas positivas ou negativas.

110
1. Corpus
Este trabalho tem por objetivo pesquisar os processos de polidez
utilizados por professores e alunos durante a interação na sala de aula.
Para isso utilizarei quatro inquéritos do Projeto NURC, de São Paulo e
do Rio de Janeiro, constantes em Castilho e Preti (1986) e Callou (1991),
do tipo EF (Elocuções Formais).
O corpus está constituído por quatro aulas gravadas em áudio,
cujas características podem ser resumidas:
INQUÉRITO 124
Trata-se de uma universitária sobre o tema “Influência da língua
na personalidade do indivíduo”. O professor é um homem de 51
anos (2ª faixa etária), casado, filho de pais paulistanos.
Duração: 45 minutos.
INQUÉRITO 251
Trata-se de uma aula de Química para a 3ª série do ensino médio,
ministrada por um homem de 31 anos de idade (1ª faixa etária),
carioca.
Duração: 40 minutos.
INQUÉRITO 364
Aula universitária sobre o tema “A empresa”, dada por um ho-
mem de 41 anos de idade (2ª faixa etária), carioca, filho de pais
cariocas.
Duração: 55 minutos.
INQUÉRITO 382
Aula de História no ensino médio, cujo tema é “A Revolução
Francesa”. A professora é uma mulher de 56 anos de idade (3ª
faixa etária), carioca.
Duração: 45 minutos.

111
Segue, abaixo, uma síntese das características dos inquéritos que
constituem o corpus do trabalho, indicando o número do inquérito, a
cidade onde foi gravado, o sexo do informante (professor) e o grau (ní-
vel) de ensino da aula gravada:
Nº INQ. CIDADE SEXO GRAU
124 São Paulo masculino universitário
251 Rio de Janeiro masculino médio
364 Rio de Janeiro masculino universitário
382 Rio de Janeiro feminino médio
2. Preservação das faces: face negativa e face positiva
Sendo uma atividade puramente interacional, a conversação pres-
supõe a relação entre, no mínimo, dois interactantes. Ao pesquisar essas
relações interpessoais, Goffman estudou procedimentos de preservação
da face. Para o referido autor, quando se entra em contato com o outro,
tem-se a preocupação de preservar a auto-imagem pública. A essa auto-
imagem pública Goffman (1970:13) dá o nome de face:
“Pode definir-se o termo face como o valor social positivo que uma
pessoa reclama efetivamente para si por meio da linha
1
que os outros
supõem que ela seguiu durante determinado contato. A face é a ima-
gem da pessoa delineada em termos de atributos sociais aprovados,
ainda que se trate de uma imagem que outros podem compartilhar,
(1)
Na teoria de Goffman, linha (“line”) é um modelo de atos verbais e/ou não-verbais
pelos quais o interactante expressa seu ponto de vista a respeito da interação e a sua
avaliação dos participantes, inclusive a de si mesmo. Um interactante está na “face
errada” quando não apresenta uma linha consistente com sua auto-imagem. Um
interactante está na “face correta” quando está firme na linha que toma.

112
como quando uma pessoa enaltece sua profissão ou sua religião graças
a seus próprios méritos.”
A manutenção da face, tanto a do falante como a do ouvinte, fun-
ciona como se fossem regras de trânsito da interação. O simples contato
com o outro já representa o rompimento de um equilíbrio preexistente
entre as partes, ameaçando a auto-imagem pública construída pelos par-
ticipantes da interação. Assim, em contato social, o indivíduo assume
dois pontos de vista: uma orientação defensiva, tendo em vista preservar
a própria face; uma orientação protetora, tendo em vista preservar a face
do outro. Quando ocorre a “invasão da territorialidade” por parte de um
dos interactantes, haverá o que Goffman chama de perda da face. En-
contrando-se nessa situação, o indivíduo pode valer-se de determinados
procedimentos (face-work), utilizados para neutralizar as ameaças à face.
A face constitui um conjunto de desejos que podem ou não ser
satisfeitos por ações de outros. Sendo assim, há mútuo interesse em man-
ter a face. Por isso, na relação interpessoal, parece haver um acordo táci-
to entre os interactantes da conversação. Enquanto o falante não ameaça
a face do ouvinte, este não ameaça a face daquele. Ao preservar a própria
face, é preciso ter o cuidado de não ameaçar a face do outro e, ao preser-
var a face do outro, deve procurar-se uma saída que não leve à perda da
própria face.
Goffman distingue três tipos de responsabilidade diante da amea-
ça à face. No primeiro, ao ameaçar a face, o indivíduo age com certa
ingenuidade, isto é, a ameaça é involuntária. Se o indivíduo tivesse pre-
visto as conseqüências ofensivas, teria evitado a situação. É o que se
chama de atitude desastrada ou gafe. No segundo, a ameaça é resultado
de malícia ou de rancor, com a clara intenção de provocar um insulto. No
terceiro tipo, a ameaça é provocada por ofensas acidentais, isto é, a pes-
soa que ameaça sabe da possibilidade de colocar em risco a face, mas
não o faz por rancor.
Com efeito, o indivíduo pode encontrar-se em situações variadas
diante da ameaça à face. Se deseja sair-se bem diante das ameaças à face,
deve contar com um repertório de práticas para preservar a face. A ma-
neira mais segura de uma pessoa não colocar em risco a face é evitar
situações de contato que possam representar ameaças em potencial, ou

113
tomar o devido cuidado para não colocar em risco a própria face ou a
do(s) outro(s).
Brown e Levinson (1978:06) ampliaram a noção de face a partir
dos estudos de Goffman. Assim os autores definem o conceito de face:
“Nossa noção de face deriva de Goffman e do termo folclórico em
inglês que liga a face às noções de estar constrangido ou humilhado ou
‘perdendo a face’. Assim, a face é algo em que há investimento emo-
cional e que pode ser perdida, mantida ou intensificada e que tem que
ser constantemente cuidada numa interação. Em geral, as pessoas coo-
peram (e pressupõem a cooperação mútua) na manutenção da face na
interação, sendo essa cooperação baseada na vulnerabilidade mútua da
face. Isto é, normalmente, a face de qualquer um depende da manuten-
ção da face de todos os outros e, como se pode esperar que as pessoas
defendam suas faces quando ameaçadas, e, ao defender suas próprias
faces, ameacem a face dos outros, geralmente é de interesse de cada
participante manter a face do outro, isto é, agir de forma a assegurar aos
outros participantes que o agente está atento às pressuposições relati-
vas à face ameaçada.”
Para Brown e Levinson, todo ser social possui duas faces: face
negativa e face positiva:
a)face negativa: envolve a contestação básica aos territórios,
reservas pessoais e direitos; em outras palavras, a liberdade de
ação e liberdade de sofrer imposição. É o desejo de não ser
impedido em suas ações, por isso a preservação da face nega-
tiva implica a não-imposição do outro;
b)face positiva: representa a auto-imagem definida ou personali-
dade (incluindo principalmente o desejo de que esta auto-ima-
gem possa ser aprovada e apreciada) de que os interlocutores
necessitam. É o desejo de aprovação social e de auto-estima.
Marcuschi (1989:284) apresenta um resumo de atos que amea-
çam as faces:

114
1.atos que ameaçam a face positiva do ouvinte:
desaprovação, insultos, acusações;
2.atos que ameaçam a face negativa do ouvinte:
pedidos, ordens, elogios;
3.atos que ameaçam a face positiva do falante:
auto-humilhação, auto-confissões;
4.atos que ameaçam a face negativa do falante:
agradecimentos, excusas, aceitação de ofertas.
Para ilustrar, veja-se o exemplo a seguir:
Exemplo 1
PROF.: (...) mais um tipo de equilíbrio... pra terminar por completo... então a
nossa... estudo de cinética química... vocês imaginem se nós tivermos...
ALUNO: que produtos foram utilizados?
PROF.: é isso que eu vou ( )... isso com um pouquinho de paciência a gente
chega lá... a idéia básica é a seguinte... nada vai ser diferente... nada vai
ser realmente diferente em cima desse troço que nós estudamos... tentei
chamar a atenção ontem... eu tentei chamar a atenção de vocês... para
este tipo de equação aqui... e eu não sei se fui suficientemente feliz... tá?
Não sei se fui suficientemente feliz... pra que vocês me entendessem de
uma maneira ... TOTAL... inclusive extrapolando pra outras matérias... a
PROFUNDIDADE deste troço... bom... na hora em que vocês
conseguirem sacar a profundidade deste troço... até que ponto a gente é
capaz...
(NURC/RJ, Inq. 251, p.13)
2
(2)
A indicação dos exemplos será feita da seguinte maneira: cidade (Rio de Janeiro ou
São Paulo), número do inquérito, página constante na publicação.

115
Em geral, na sala de aula, como em toda conversação, há um acor-
do tácito entre professor e alunos. Enquanto um não coloca em risco a
face do outro, não há ameaças à face de ninguém. O exemplo acima
ilustra o fato de uma ameaça desencadear outras. Ao enunciar a pergunta
– “que produtos foram utilizados?”-, o aluno ameaça a face negativa do
professor, pois lhe tira a liberdade de ação, ao interromper as explica-
ções. Em seguida, o professor ameaça a face negativa do aluno, ao deixar
claro, por meio de um ato de fala que mostra polidez negativa (“é isso
que eu vou ( )... isso com um pouquinho de paciência a gente chega
lá...”), que a pergunta foi inadequada, pois as explicações do professor
ainda não haviam terminado. A resposta do professor também indica que
o aluno avançou o sinal e deveria ter tido paciência, ter aguardado, não
ter sido precipitado. Por outro lado, ao não responder, prontamente, à
pergunta do aluno, o professor coloca em risco a própria face. Não res-
pondendo, ele pode dar a entender que não sabe a resposta. Embora o
professor tenha dito “com um pouquinho de paciência a gente chega lá”,
ele não chegou lá, isto é, ele não deu a resposta ao aluno.
Na seqüência, há nova ameaça à face do professor. Este ameaça a
própria face positiva, afirmando que seus alunos ainda não haviam en-
tendido. No processo ensino/ aprendizado, a responsabilidade do profes-
sor é grande, por isso, se os alunos não entenderam, o professor pode ter
parte da culpa. Observe-se que há a intenção de o professor preservar a
própria face. O professor manifesta essa preocupação, ao enunciar “ten-
tei chamar a atenção ontem... eu tentei chamar a atenção de vocês.” Ele,
pelo menos, tentou, fez a parte dele. Se o objetivo não foi alcançado, a
culpa não é dele. Em seguida, o professor procura verificar como está
sua imagem. Ele fez a parte dele, ainda que não saiba se teve sucesso:
“não sei se fui suficientemente feliz... tá?”. Ainda que a pergunta seja
indireta, deseja resposta e resposta positiva. Como não houve, depois da
pausa, há um marcador “tá?” e a repetição do enunciado para reiterar a
verificação: “não sei se fui suficientemente feliz...”.
Exemplo 2
PROF.: (...) Lévi-Strauss em La Pensée Sauvage... diz o seguinte... “por que nós
supomos que o nosso modo... de interpretar o mundo... é o modo verdadeiro?”...
alguma coisa que está mais de acordo... com a física atômica... compreende?...

116
porque eu acho... eu não não estou de acordo com isto eu não andei pichando
muito Lévi-Strauss para vocês porque senão... vocês não conhecem mas
3
eu há
anos que eu... me bato contra o Estruturalismo... em todo o caso... neste nível de
análise... eu creio que nós podemos utilizarmos desta reflexão...
(NURC/SP, Inq. 124, p.62)
Há casos em que o próprio professor, diante de seus alunos,
assume determinados riscos, colocando em xeque sua face positiva.
Se considerarmos a década de 70 em que foi feita a gravação, o fato
de posicionar-se contra Lévi-Strauss e contra o Estruturalismo em
moda significava correr o risco de ser considerado ultrapassado. Re-
pare-se que o professor age com relativa cautela. No início, quis uti-
lizar um atenuador “porque eu acho...”, mas abandona esse atenuador
para assumir uma posição bem definida contra o Estruturalismo. O
professor resolve expor-se, ameaçando a própria face. O “mas” de
“vocês não conhecem mas eu há anos...” sinaliza aos alunos que o
professor tem consciência das implicações negativas de sua afirma-
ção, porém há razões para fazer tal afirmação. Dessa forma, o profes-
sor, antes da afirmação, já está querendo dirimir julgamentos negati-
vos. É possível, ainda, pensar que, ao assumir uma posição de risco,
ameaça sua face positiva, mas, por outro lado, ressalta a face positi-
va, ao deixar evidente a posição de intelectual que tem convicções
próprias e não está à mercê de modismos.
3. Polidez
O princípio da polidez tem por objetivo manter o equilíbrio so-
cial e as relações cordiais entre os interlocutores. Dessa forma, polidez
implica comportamento que respeita as necessidades de aprovação da
(3)
Baker (1975) lembra que o “mas” é metacomunicativo, pois representa comentários
sobre atos de fala que lhe seguem e orientam o interlocutor como deve receber o que
foi enunciado. Dessa forma, sinaliza ao interlocutor que suspenda qualquer julga-
mento negativo que o ato subseqüente possa induzir.

117
face dos interlocutores envolvidos na interação. Ainda que não fique
tão claro, Fraser (1980) distingue entre polidez e atenuação. Para ele,
atenuação implica polidez, mas esta não implica aquela. A polidez é
um fenômeno mais vasto que a atenuação, cujo objetivo é modificar
um ato de fala que visa à redução dos efeitos indesejados que possa ter
para o interlocutor.
Durante a conversação, há atos que são contrários aos desejos do
outro e ameaçam a face. Esses atos de fala que ameaçam a face são
chamados por Brown e Levinson (1978) de atos ameaçadores da face
(Em inglês: face threatening acts ou FTAs). Podem ser ordens, pedi-
dos, conselhos, oferecimentos, promessas, elogios, expressões de ódio,
críticas, etc. A partir dessa constatação, Brown e Levinson também utili-
zaram o termo face-work como um mecanismo de organização das fa-
ces e responsável pela organização dos processos de polidez na interação
conversacional. Esse sistema de polidez serve como mecanismo para a
administração das faces. Com efeito, os autores procuraram identificar
estratégias de polidez utilizadas pelos interlocutores, visando à manuten-
ção da face quando houver um FTA. Assim como o Princípio da Coope-
ração
4
tem como meta assegurar uma transmissão eficaz da informação,
(4)
Grice (1982:81) postulou o princípio da cooperação (cooperative principle). Esse
princípio segue a regra de que se devem adaptar as contribuições conversacionais
ao objetivo da conversação de que se participa. Grice refere-se a quatro máximas:
qualidade, quantidade, relação e modo. A máxima da qualidade refere-se à
sinceridade do falante e encerra duas submáximas: “Não diga o que acredita ser
falso”; “Não diga senão aquilo para que você possa fornecer evidência adequada”.
A máxima da quantidade está relacionada com a quantidade de informação a ser
fornecida: “Faça com que sua contribuição seja tão informativa quanto requerido
(para o propósito corrente da conversação)”; “Não faça sua contribuição mais in-
formativa do que é requerido”. A máxima da relação prescreve ao falante que
suas contribuições conversacionais sejam relevantes: “Seja relevante!”. A catego-
ria do modo está relacionada ao como o que é dito: “Seja claro!”; “Evite obscuri-
dade de expressão!”; “Evite ambigüidades!”; “Seja breve e evite prolixidades!”;
“Seja ordenado!”. Às vezes, as máximas podem ser violadas, intencionalmente,
causando o que Grice chama de implicaturas, que podem exercer diversas fun-
ções comunicativas, entre elas, a polidez. Esta é empregada quando não se quer
dizer algo diretamente, usando-se, portanto, uma forma polida, mais branda, indi-
reta.

118
a polidez tem por meta a melhoria das relações sociais. Polidez diz res-
peito a técnicas para bem viver em sociedade por meio da satisfação das
faces dos interlocutores numa interação verbal.
Num estudo semelhante ao de Brown e Levinson, Leech (1983)
estabelece a distinção entre polidez relativa e polidez absoluta. A pri-
meira depende decisivamente das posições sociais dos interlocutores,
que impõem uma série de seleções que determinam a forma do enuncia-
do e matizam seu significado. A segunda implica uma tendência em as-
sociar determinados atos de fala com a polidez, “pois alguns atos
ilocucionários (por exemplo as ordens) são intrinsecamente descorteses;
e outros são intrinsecamente corteses” (Cf. Leech, 1983:83).
Ao comentar essa posição de Leech, Beltzer (1996:2) afirma que
“essa perspectiva supõe que a polidez seja uma qualidade abstrata que
reside em algumas expressões individuais, em itens lexicais ou morfemas,
sem considerar as circunstâncias particulares que integram seu empre-
go”. Ressalta, ainda, que essa idéia também está presente na teoria de
Brown e Levinson na fórmula para determinar o risco potencial dos atos
ameaçadores da imagem do falante e do ouvinte. Esse risco é determina-
do por três fatores de natureza social:
1. a distância social ou dimensão horizontal, que inclui o grau de
familiaridade e contato entre os interlocutores;
2. o poder relativo do ouvinte sobre o falante, ou poder vertical;
3. o grau de imposição de um ato sobre a imagem do falante e do
ouvinte.
Dessa forma, Beltzer (1996:02) lembra que o termo polidez está
carregado de conotações várias e o considera uma expressão vazia, que
encobre a tendência a equiparar a polidez com determinados marcadores
lexicais ou gramaticais e com a excessiva ênfase posta na imagem do
ouvinte em detrimento da imagem do falante. Propõe que se empregue o
termo polidez, baseando-se na noção de “adequação”, que permite
descrevê-lo em termos de fazer o que socialmente é aceitável. Isso impli-
ca inscrever a polidez dentro de um marco bem amplo da interação so-
cial, isto é, como uma norma externa ao comportamento lingüístico, mas

119
interagindo com ele. Assim, conclui que não se pode falar em polidez em
termos absolutos, pois a polidez “só deve ser considerada em relação a
um contexto particular, de acordo com as expectativas de um interlocutor
particular e com sua interpretação concomitante. Uma desculpa ou qual-
quer outro ato de fala, supostamente próprio de polidez, pode muito bem
ser inadequado (descortês), tanto em virtude de sua ocorrência desacer-
tada em uma situação particular, como pelo modo em que se realiza.”
Haverkate (1994:15) lembra que as normas de polidez funcionam
como “regras que regulam formas de comportamento humano que exis-
tiam antes de as regras serem criadas. Por esse motivo, a comunicação
verbal poderia dar-se perfeitamente sem aplicar as normas de polidez.
Uma pessoa que atuasse como se essas regras não existissem, violaria as
convenções inerentes à boa educação, mas seria compreendida sem qual-
quer dificuldade”. Dessa forma, a compreensão diz respeito às normas
constitutivas do texto, enquanto a polidez, às normas regulativas do texto
conversacional.
4. Polidez na sala de aula
Em uma conversação, é comum os interactantes cooperarem para
a manutenção da face um do outro, havendo uma espécie de acordo táci-
to entre eles. Assim, normalmente a face de uma pessoa é mantida quan-
do a face da outra que interage também é mantida. Na sala de aula, não
ocorre de forma diferente, por isso podemos prever algumas situações:
!o professor ameaça a própria face;
!o professor ameaça a face de um determinado aluno;
!o professor ameaça a face dos alunos como um todo;
!um aluno ameaça a face do professor;
!os alunos como um todo (a classe) ameaçam a face do professor;
!um aluno ameaça a face de outro aluno.
Pela própria situação, a relação professor/ aluno é assimétrica, e o
aluno, na sala de aula, nem sempre está disposto a ouvir e a aprender.

120
Além do mais, há a distância representada pelo próprio cargo ocupado
pelo professor. Em conseqüência disso, é comum haver situações em
que há ameaça à face do professor e à do aluno. Em qualquer situação
interativa, haverá atos contrários aos desejos do outro, ameaçando, por
conseguinte, a face. Por exemplo, no contexto de uma comunicação
em um congresso, a própria situação de quem expõe um trabalho já
representa ameaça à face. Se alguém fizer alguma pergunta durante a
exposição; se, enquanto estiver expondo, começarem a entrar ou sair
da sala, tudo isso representará ameaça à auto-imagem de quem está
fazendo a comunicação. Na sala de aula, a situação não é diferente,
pois inúmeras atitudes dos alunos colocam em risco a face do professor
ou vice-versa.
Pelo próprio papel desempenhado, é freqüente haver ameaças à
face do professor. Durante o evento aula, há um jogo constante de atos
que ameaçam a face do professor e atos que procuram preservar-lhe a
face.
Exemplo 3
PROF.: (...) a prova é quando se alcança o grau de solubilidade máxima... ele
passa a ser insolúvel... então... o conceito de solubilidade é um conceito
relativo... agora... em relação a nós... é que nós definimos o que é
solubilidade... a gente aqui diz... ó... daqui até aqui é muito solúvel...
daqui até aqui é pouco solúvel... daqui até ali é insolúvel...
ALUNO: mas Zé Paulo...
PROF.: e é preciso...
ALUNO: mas... Zé Paulo...
PROF.: só um minutinho só... que todo mundo fique de acordo... certo? Se tiver
um cara em desacordo... bagunçou o coreto... é uma de-fi-ni-ção... é
uma... como uma convenção... que tal?
ALUNO: aquele negócio que você falou que tem que ser... muito solúvel... quer
dizer... a gente...às vezes não é questão da gente de ( )
PROF.: não...
ALUNO: nem o álcool com água... por exemplo? Ele continua...
PROF.: mas nós não acabamos de ver que... imagine o HCl... o NaCl não é...
você não usa um? você não usa álcool igual a um? se botar uma massa de
( ) você entrou ( )... se ele fosse sempre toda vida solúvel não tinha

121
salina ( )... certo? Tudo tem um produto de solubilidade... todas as
coisas têm um produto de solubilidade... só que uns têm tão grande que
você pode ( )
ALUNO: quer dizer que a evaporação é você exprimir a concentração que evapore
a...
PROF: é:: não é que evapore a água toda... não... poxa... vou esperar... se você
fosse evaporar a água toda... o nosso sal não prestava... ia precipitar o
cloreto de potássio...
(NURC/RJ, Inq. 251, p.29-30)
Na primeira intervenção do professor, já é possível perceber que
este utiliza uma forma de polidez positiva ao manifestar interesse e aten-
ção em relação a seus alunos: o emprego do pronome na primeira pessoa
do plural (“... em relação a nós... é que nós definimos o que é solubilida-
de... a gente aqui diz...”). Isso significa que professor e aluno estão en-
volvidos no processo conversacional.
Em seguida, um aluno interrompe a fala do professor, produzindo
um FTA (ato ameaçador da face), ameaçando a face negativa do profes-
sor (“mas Zé Paulo...”). Este é a autoridade na sala de aula, autoridade no
sentido do saber e da disciplina. Em tese, ele não deveria ser interrompi-
do, a menos que, espontaneamente, entregasse a palavra a seus alunos. A
interrupção por parte do aluno representa ameaça à face do professor,
pois constitui invasão do território discursivo.
Na verdade, no exemplo acima, há dupla ameaça à face do profes-
sor. Em primeiro lugar, o professor, como autoridade, não deveria ser
interrompido. Repare-se que o aluno, aproveitando a pausa do professor,
quis fazer uma pergunta. O fato de o professor ignorar a pergunta sinaliza
que não era a hora certa de perguntar. O aluno insiste e o professor, com
sua autoridade, coloca em risco a face do aluno, que lhe fez a pergunta
por meio de um FTA, representado pelo enunciado: “só um minutinho
só...”. Ainda não era o momento; o aluno não deveria ser precipitado. No
dizer de Brown e Levinson, a expressão “só um minutinho só...”, ao
mesmo tempo que representa um FTA, pode trazer certa carga de polidez
positiva, pois mostra, da parte do aluno, colaboração mútua no sentido
de estar cedendo um pouco de seu tempo. É importante lembrar que a
polidez positiva tem por objetivo atenuar os efeitos de um FTA.

122
Com efeito, o ato de fala do aluno, iniciado por “mas” (“mas... Zé
Paulo...”), adversativo, demonstra a intenção de discordância, ameaçando
a face negativa do professor. A resposta do professor é peremptória: “não”.
Com isso, há também ameaça à face do aluno. Além de fazer a pergunta no
momento errado, a dúvida não procede. Percebe-se que já não há mais
intenção de o professor ser polido. Ao enunciar “não”, o professor emite
um FTA, ameaçando a face do aluno, sem qualquer elemento atenuador.
Como ocorre em qualquer atividade interativa em conflito, há
momentos de alta e baixa tensão. Após o momento em que houve a
ameaça crua, sem qualquer polidez, parece que o professor deseja atenu-
ar a maneira como se dirigiu ao aluno, pois o outro ato de fala do profes-
sor – “mas nós não acabamos de ver... que...” – é um exemplo de polidez
negativa, pois o professor desejou ser indireto, recorrendo a um
modalizador. Na terminologia de Grice (1982), é uma implicatura, isto
é, uma forma polida para dizer algo desagradável: “Você não estava atento!
Você não prestou atenção às explicações!”.
Exemplo 4
PROF.: (...) mas você não pode... separar... essa causa política... das causas
sociais e das causas econômicas... nós vimos que tudo isso se entrelaça...
nós vamos ver hoje... aqui... quem já falou... já viu alguma coisa sobre
o Sobul... nós vamos ver... o que a Revolução Francesa... o que a
caracteriza... FALA GILDA... que que você... que que caracteriza a
Revolução? Nós falávamos na outra aula sobre isso... Gilda... então...
aí... vamos lá...
ALUNO 1 (Gilda): não estava na outra aula...
PROF.: não estava? ( ) mas você já viu alguma coisa e pode dizer o que que
caracteriza a Revolução Francesa?... ((vozes)) quem substitui? Grasiela...
também faltou à outra aula... quem disse... aqui? Gelson...
ALUNO 2 (Gélson): estava
PROF.: que que caracteriza a Revolução Francesa?
ALUNO 2 (Gélson): eles fizeram a Assembléia Nacional...
PROF.: eles fizeram a Assembléia Nacional... mas isso não é a característica...
uma revolução... que é uma revolução?
ALUNO 3 (Michel): ( )
PROF.: ah... muito bem...

123
ALUNO 3 (Michel): ( )
PROF.: muito bem...
ALUNO 3 (Michel): ( )
PROF.: muito bem... olha o Michel tá ficando... tá ficando um “expert” em
História... começou... no princípio foi ótimo... não ter ido muito bem na
primeira prova... não foi? Foi ótimo porque ele se interessou de tal
maneira... que agora dá aula...
(NURC/RJ, Inq. 382, p.103-104)
O início da intervenção do professor é a apresentação de um novo
subtópico, a caracterização da Revolução Francesa. Como o professor
não deseja impor, isto é, tem a intenção de camuflar o fato de que ele sabe
e os alunos devem aprender, faz que seus alunos participem. Ao se dirigir
diretamente a uma determinada aluna (Gilda), o professor ameaça a face
negativa dessa aluna (“Gilda... então... aí... vamos lá...”). Para amenizar
o FTA, emprega uma estratégia de polidez positiva: o “nós” participativo
englobando a aluna no âmbito do saber (“nós falávamos na outra aula
sobre isso...”). Ao mesmo tempo, esse enunciado representa uma
implicatura, que sinaliza: “Você ouviu falar sobre isso, logo deve saber”.
Repare-se que a intervenção da aluna Gilda é uma resposta a essa
implicatura com outra implicatura – “não estava na outra aula...” –, que
sinaliza ao professor: “Eu não estava na outra aula, portanto não tenho
obrigação de saber”. A aluna Gilda, por não saber responder à questão
proposta pelo professor, utiliza uma estratégia de polidez negativa, pois a
intervenção da aluna é uma forma atenuada de dizer que não sabe a res-
posta. A resposta da aluna ameaça ainda mais a face negativa dela mes-
ma, pois, além de não saber responder (função de quem está aprenden-
do), não estava, como era de esperar, inteirada do assunto. Por isso mes-
mo o professor não aceita a desculpa da aluna e ameaça a face positiva
por meio de uma estratégia sem qualquer atenuação, deixando evidente
que, mesmo não estando presente na outra aula, a aluna deveria saber
alguma coisa sobre o assunto.
Percebe-se que o professor não desiste de interagir com a classe e
insiste em que seus alunos participem e respondam à questão inicial. Em
seguida, o aluno Gélson afirma que estava presente na outra aula e tenta
responder (“eles fizeram a Assembléia Nacional...”). Sua resposta, no

124
entanto, não satisfaz a expectativa do professor. Num primeiro momento,
há polidez positiva quando o professor repete o enunciado do aluno. O
que foi dito pelo aluno não está errado, contudo não responde à questão
proposta. A face do aluno também foi ameaçada, por meio do FTA re-
presentado pelo enunciado do professor (“mas isso não é característi-
ca...”). Além de não saber a resposta, não conhece o termo conceitual. O
que ele respondeu não é uma característica, trata-se de um fato. A intera-
ção professor/ aluno(s) na sala de aula constitui um jogo de ameaça e
preservação de faces. A situação criada pelo professor, ao fazer a pergun-
ta, coloca em risco não só a face dos alunos que deixaram de responder,
mas ameaça a face da classe como um todo e, por conseguinte, a face da
própria professora: caso seus alunos não saibam responder, o objetivo
das aulas não foi alcançado. Usando a implicatura de Grice, pode-se
dizer que se subentende que o professor não sabe ensinar.
Finalmente, para salvar a imagem da classe e do professor, há um
aluno que responde à pergunta formulada. Ainda que não saibamos o
que tenha respondido (sua fala fica inaudível), Michel corresponde às
expectativas. O professor faz questão de sancionar a face positiva do
aluno, mostrando o progresso que teve; de uma situação ruim – “não ter
ido muito bem na primeira prova”- para uma situação abonadora: res-
ponder a uma questão que ninguém da classe foi capaz. O professor
sanciona a face positiva de Michel por meio da polidez positiva, repre-
sentada pela expressão “muito bem”, enunciada três vezes. É interessan-
te notar que, enquanto o aluno responde, o professor o monitora e incen-
tiva; em seguida, ameaça a face positiva, lembrando a situação desagra-
dável, para, em seguida, ser testemunha do percurso de sucesso: foi mal
na prova (e não desiste como tantos outros), interessou-se e superou a
situação ruim, tornando-se um “expert”, que está acima do nível de alu-
no, pois “agora dá aula”. Com efeito, da situação desabonadora, quando
o aluno foi mal na prova, pode ter ficado a impressão de que a culpa era
do professor, contudo o sucesso do aluno é a prova do sucesso do profes-
sor. Ele tem parte no progresso do aluno.
Exemplo 5
PROF.: depende do piloto... depende de quem está administrando... mas
depende do carro também...

125
ALUNO 1: é claro...
PROF.:ninguém discute que o Fittipaldi é um excelente piloto... todos
continuam... hã... acreditando tecnicamente no Fittipaldi... mas o carro
não ajuda né? O carro não passa ninguém... passa quando os outros
quebram...
ALUNO 1: o carro é bom...
PROF.: o carro é bom?
ALUNO 1: é lógico...
PROF.: é bom?
ALUNO 1: o problema... o problema é o motor...
ALUNO 2: quando está correndo várias corridas...
PROF.: então o carro não é bom... pô...
ALUNO 1: o carro é bom...
PROF.: se (você) tá dizendo que o carro é bom... o problema é o motor... o
carro não é bom...
ALUNO 1: é que tem desnível no motor... ((risos)) não... porque todo carro de
For/ de Fórmula Um tem o mesmo motor...
PROF.: hum? Só que o dele ele não conseguiu ajustar?
ALUNO 1: é... por causa do...
PROF.: enfim...
ALUNO 1: é... não interessa...
(NURC/RJ, Inq. 364, p.72-73)
No exemplo acima, percebe-se uma disputa entre professor e alu-
no acerca do carro de Fórmula Um dirigido por Émerson Fittipaldi. Na
época, Émerson Fittipaldi era um piloto consagrado que resolveu guiar
um Fórmula Um brasileiro. O piloto era bom, mas o carro não correspondia
ao condutor. O professor defende essa idéia, mas o aluno afirma que o
carro era bom, porém o motor era ruim. Nesse aspecto, o professor chega
a ameaçar a face negativa do aluno várias vezes, por meio de sintagmas
interrogativos que colocam em dúvida a afirmação do aluno: “o carro é
bom?” e “é bom?”. Esses sintagmas interrogativos representam formas
de polidez negativa, à medida que o professor, em vez de ser direto e
afirmar que o carro não era bom, recorre a formas indiretas, a fim de
atenuar o FTA (atos ameaçadores da face).

126
O aluno também ameaça a face negativa do professor, insistindo
na idéia de que o carro era bom: “o carro é bom...”; “é lógico”; “o carro é
bom”. Como o professor está convicto do que está dizendo, ainda mais
que era opinião corrente na época, chega a alterar a voz. Nesse momento,
o professor deixa sua relação de cortesia e não se importa de produzir
FTAs. O enunciado “então o carro não é bom... pô...”, produzido de for-
ma conclusiva e direta, representa a estratégia em que se ameaça a face
sem qualquer intenção de ser polido, pois o professor não deseja preser-
var a face do aluno, mesmo porque a dele, professor, já estava ameaçada
pela posição do aluno. Quando o aluno procura explicar seu argumento,
chega a provocar risos nos colegas, ameaçando a própria face (“é que
tem desnível no motor... (risos)”). Na intervenção seguinte, o professor
reage de forma irônica ao argumento apresentado pelo aluno. O enuncia-
do “hum? Só que o dele não conseguiu ajustar?” é uma estratégia em que
se emprega a ironia, violando a máxima da qualidade (no dizer de Gri-
ce), ameaçando a face do interlocutor. O contexto partilhado pelos inter-
locutores leva o aluno a entender a ironia. No turno seguinte, diante da
reação irônica do professor, o aluno procura explicar sua posição e, tal-
vez, pela situação delicada em que se encontra, não consegue completar
o enunciado. O professor intervém e, mais uma vez, ameaça a face do
aluno, enunciando um FTA (ato ameaçador da face) – “enfim” –, que
deixa claro que é para o interlocutor dizer qual era a referida causa. Final-
mente, o aluno reconhece que não vale a pena insistir na discussão – “é...
não interessa...”, preservando a face positiva do professor. Podemos, in-
clusive, supor que essa expressão do aluno (“é... não interessa...”) traga
também certo aspecto agressivo ou de desprezo. Pode-se supor que ele
deseja indicar que, como o professor é a voz de comando na sala de aula,
resolve não ficar insistindo na posição assumida, pois o professor não se
dobrará diante dos argumentos de um simples aluno.
Exemplo 6
PROF.: (...) vejam bem a pergunta... hein... tá? Vocês não estão (entendendo)
aqui dentro nada... eu só digo pra vocês... aqui dentro tem uma solução
de cloreto de prata... e digo pra vocês... que... o produto de solubilidade
do cloreto de prata... faz de conta... tá? Só de brincadeira... aqui... é
sete... e eu digo que lá dentro eu tenho dois... uma concentração igual a

127
dois de prata e uma concentração igual a três de cloro... e pergunto... lá
dentro eu tenho uma ou duas fases?
ALUNO 1: uma...
ALUNO 2: tem duas fases...
PROF.: bom... vamos ver... o que é que significa... como é que vai saber? Se
perguntando... vamos se perguntar... agora... duas fases... por quê?
ALUNO: porque ela devia dissociar o produto sete... né? Pelo que eu sei isso é
alguma coisa assim...
PROF.: ao contrário... né? Tem menos do que sete...
ALUNO: tem menos que sete...
(NURC/RJ, Inq. 251, p.19)
No exemplo acima, encontramos procedimentos de atenuação utili-
zados como polidez. No início do turno do professor, já há uma forma de
atenuação. Percebe-se que o professor não deseja ser impositivo. Em vez
de enunciar um sintagma impositivo, como “Prestem atenção!”, é enun-
ciada uma forma indireta: “vejam bem a pergunta”. Em seguida, desejan-
do integrar seus alunos na explicação de determinado conceito, o professor
procura simular uma situação, como se fosse um “faz de conta”. Preocupa-
do, porém, com sua auto-imagem, deixa claro que a situação não é real e
reitera: “... faz de conta... tá? Só de brincadeira...”. Com essa estratégia,
procura integrar seus alunos e começa a fazer algumas perguntas.
Ao enunciar a pergunta: “... lá dentro eu tenho uma ou duas fa-
ses?”, o professor chama seus alunos à participação. As respostas são
desencontradas, por isso é iniciado um processo de elucidação. Nesse
processo, faz-se a pergunta (“... lá dentro eu tenho uma ou duas fases?”).
O aluno, que respondeu afirmativamente, tenta explicar seu ponto de
vista sem muita convicção. Preocupado com sua face negativa, o aluno
emprega um procedimento de atenuação: “Pelo que eu sei”. Dessa for-
ma, assume todos os riscos pela afirmação. É o que ele sabe; não é,
propriamente, a última palavra; pode haver contestação. Esse procedi-
mento mostra que não tem certeza do que foi afirmado; deve ser algo
parecido com o que foi dito. Rosa (1992:45) denomina esse procedimen-
to de marcador de opinião, que expressa a incerteza do locutor enunciador
a respeito do que diz. Repare-se que o núcleo da afirmação do aluno está
no início: “porque ela devia dissociar o produto sete... né?”.

128
Ao avaliar a resposta, o professor coloca em risco a face negativa
do aluno, enunciando um FTA direto: “ao contrário”. O aluno, por sua
vez, aceita a restrição do professor e concorda com o comentário feito,
repetindo a fala do professor: “tem menos que sete”. Pela própria função
desempenhada na sala de aula, é possível que o aluno, mesmo com sua
face ameaçada, sancione positivamente a face do professor. A própria
instituição – escola – faculta esse procedimento, pois deixa claro que o
professor é aquele que sabe e o aluno aquele que não sabe e está ali para
aprender.
5. Considerações finais
A sala de aula é um local onde professor e aluno(s), mediados pela
linguagem, constroem ativamente o sentido do mundo. Nela, o individu-
al e o social estão em contínua articulação, e os sujeitos, em constante
processo de negociação. Ao professor cabe atrair e manter a atenção de
seus alunos; incentivá-los a falar ou ordenar que se calem e, especial-
mente, motivá-los a participarem do processo ensino/ aprendizado.
No geral, quando se trata de situação de sala de aula, não se pode
ignorar a presença de dois grupos bem distintos: aqueles que têm conhe-
cimento e aqueles que não o têm, mas desejam tê-lo. Considerando esse
aspecto, aquele que aprende deve admitir a falta de conhecimento, ver
naquele que ensina alguém que possui o conhecimento de que necessita
e envolver-se no processo a fim de realizar o fim último que é aprender.
Nem sempre, contudo, ocorre dessa forma na sala de aula. Não raras
vezes, a aquisição do conhecimento passa de algo que, em princípio, é
divertido, porque satisfaz uma necessidade, para algo que requer algum
esforço daquele que aprende. Os alunos não mais querem aprender, são
forçados a aprender.
Dessa forma, a relação professor/ aluno, constantemente, está su-
jeita a ameaças das faces, pois, se de um lado encontramos alunos que
não estão desejosos de aprender, de outro, encontramos um professor
que está desgastado com a renitência dos alunos. A preservação das fa-
ces de ambos torna-se precária e as ameaças são constantes. Nesse jogo

129
de ameaça e preservação, tem grande importância o processo de polidez,
que poderá atenuar ou não a fragilidade das faces.
Ao longo deste artigo, procuramos mostrar alguns procedimentos
de polidez na relação professor/ aluno na sala de aula. Foi nossa intenção
associar a variação desses procedimentos com o jogo de preservação das
faces entre professor e aluno(s). Ainda que tenhamos procurado pesquisar
inquéritos de diferentes níveis, médio e universitário, não nos preocupa-
mos em fazer levantamento estatístico por considerar que o corpus não
era significativo para chegar a conclusões claras e precisas. Cremos que
há necessidade de um corpus mais extenso para se chegar a dados que
nos levem a resultados positivos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Chicago Linguistic Society (CLS), 11: 37-47.
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CASTILHO, Ataliba T. de e PRETI, Dino (Orgs.) (1986) A linguagem
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LEECH, G. (1983) Principles of Pragmatics. London, Longman.

130
MARCUSCHI, Luiz Antônio (1989) Marcadores conversacionais do
português brasileiro: formas, posições e funções. In: CASTILHO,
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ROSA, Margaret de Miranda (1992) Marcadores de atenuação. São Pau-
lo, Contexto.

131
VARIEDADES DE PLANEJAMENTO NO
TEXTO FALADO E NO ESCRITO
Hudinilson Urbano
Considerações iniciais
Todos que falamos e escrevemos temos um conhecimento empí-
rico forte de que não se escreve como se fala. Mas adquirimos um conhe-
cimento científico desse fato, quando procuramos, por meio de uma
metodologia apropriada, entender, explicar e demonstrar racionalmente
as causas dessa evidência.
Há, na verdade, textos escritos que se parecem com “falas”, dada
a presença neles de marcas de oralidade e de linguagem popular. Isso
acontece, ou por ignorância e despreparo daquele que escreve em rela-
ção às normas da língua escrita, ou por uma questão consciente de estilo.
O inverso também pode ocorrer: textos falados que reproduzem uma
estruturação frásica e cuidados próprios da língua escrita. Aqui o fato se
explica, entre outras razões, pelos hábitos lingüísticos arraigados, adqui-
ridos por força de vários fator(es)
1
, e transferidos natural e inconsciente-
mente para o uso da fala diária.
O presente ensaio pretende observar algumas evidências e limites
dessas duas situações, analisando, a partir da perspectiva do planejamen-
to textual, um texto falado, gravado para o Projeto NURC/SP, em abril
de 1976
2
, e um texto escrito produzido, na mesma época, para o jornal
Folha de S. Paulo, pelo mesmo informante.(1)
Entre as outras razões está a situação de comunicação, que determina, por exemplo,
atitudes lingüísticas menos ou mais formais. Entre os vários fatores, citam-se, por
exemplo, a escolaridade, e o uso continuado e profissional da escrita.
(2)
Para informações esclarecedoras, v. neste livro Parte 1. Os diálogos do NURC/SP,
do artigo “Tipos de frame nos falantes cultos”.

132
1. Características básicas externas do texto falado e
do texto escrito
Muitos são os fenômenos que, pela tipicidade ou freqüência, ca-
racterizam, externa ou internamente, ambas as modalidades. Considera-
mos aqui, a título de ilustração e suporte, inicialmente, apenas algumas
características que interessam diretamente ao presente estudo.
A mais clara evidência é a língua falada ser realizada oral e audi-
tivamente, num continuum sonoro
3
, e a língua escrita apresentar-se grá-
fica e visualmente em seqüências de vocábulos claramente delimitados
por espaços em branco. O continuum do material sonoro é responsável,
no texto falado, pelas suas mais sensíveis propriedades: entonação, rit-
mo, intensidade, dinâmica e qualidade da voz, que são reproduzidas na
escrita, direta ou indiretamente, pelas letras, pontuação, sinais diacríticos
e por descrições lingüísticas específicas, como, por exemplo, a explicita-
ção da maneira de falar em “falou apressadamente”.
Outra característica da expressão oral, além do material sonoro, é
o uso de vários meios auxiliares, como a expressividade facial (incluindo
olhar e gestos), a postura e as características situacionais, que na escrita
só podem ser manifestadas também indiretamente pelo canal estritamen-
te lingüístico.
2. Planejamento textual
As presentes considerações levam em conta sobretudo a língua
falada da conversação, de natureza altamente interacional. Isto posto,
advogamos que a característica fundamental, possível causa e explica-
ção da maioria das demais, são as diferentes condições de produção da
língua falada em face da língua escrita. Com efeito, o texto falado emer-
ge e se transmite no próprio momento da interação, num tempo único.
Há, pois, uma tarefa cognitiva e verbal quase conjunta, sendo a verbali-
(3)
A concepção de “continuum sonoro” não exclui a presença de pausas, que de alguma
forma se ligam ao ritmo e à entonação.

133
zação praticamente sobreposta à ativação das idéias. Ademais, emerge
dentro de uma dupla atividade de produção discursiva, isto é, dentro de
uma co-produção do falante e seu interlocutor. Pelo contrário, a pro-
dução do texto escrito subdivide-se em duas etapas e dois tempos: o
tempo da atividade mental (geração ou busca de idéias) e o tempo da
prática verbal (realização lingüística efetiva). E o texto assim produzido
é transmitido a posteriori.
Disso decorre que no texto falado, na falta de intervalo temporal
entre a produção cognitiva e a oral, não há, em princípio, como planejar
previamente o texto, sendo ele planejado apenas localmente, durante
sua própria produção, de forma geralmente imperceptível ao ouvinte,
enquanto, em relação ao texto escrito, havendo um intervalo de duração
teoricamente opcional, há suficiente possibilidade de planejamento pré-
vio do texto antes da sua execução.
Salientamos no conceito de planejamento a capacidade de previ-
são e projeção; a atividade que prepara e projeta outra, possibilitando a
previsão dos riscos da execução e a tomada antecipada de decisões. Ele
se caracteriza como uma atividade consciente e complexa. Nesse sentido
“planejamento prévio” pode parecer pleonasmo, mas o adjetivo, na com-
posição da expressão, procura ressaltar que se trata de um intervalo tem-
poral “de duração razoável e suficiente” para a produção do empreendi-
mento textual. Sem entrar em aprofundamentos, que o presente artigo
não comporta, registramos a contribuição de Martins e Ochs para a com-
preensão do assunto. Martins (1983) considera explicitamente os dois
tipos de planejamento: a) o que ocorre antes da realização efetiva e b) o
que ocorre quase simultaneamente à atividade da execução lingüística.
Na visão dessa autora, o primeiro tipo está voltado para a organização
das idéias e de sua formalização lingüística, enquanto o segundo se ca-
racteriza como um mecanismo que cria soluções para um produto em
processo de construção. Ochs (1979) esclarece que a noção de planeja-
mento coincide com a idéia de “planificação”, sendo o discurso não-
planejado aquele que não foi considerado antes de ser expresso; por ou-
tro lado, essa noção envolve a idéia de “organização”. Nesse sentido, o
texto falado, em princípio, não é nem planejado, enquanto produto, nem
planejável, enquanto algo a ser produzido, isto é, não pode ser planejado
suficientemente a priori, ao passo que o texto escrito não só é planejado

134
como também planejável. Pode-se mesmo acrescentar que no texto fala-
do, em particular na conversa espontânea, o planejamento prévio é im-
provável, desnecessário
4
e até certo ponto incompatível com a esponta-
neidade da fala, que é um processo natural em relação à escrita, que é
artificial. Ele “se caracteriza como um mecanismo que cria soluções para
um produto em processo de construção” (Martins). Por outro lado, sendo
a produção desse tipo de texto reconhecida como uma realização coleti-
va dos parceiros, o planejamento dele terá de ser também coletivo e rea-
lizado obviamente durante o ato de produção, com todos os lucros e
perdas que essa condição evidentemente acarreta.
Por outro lado, além do planejamento prévio e local, podemos
considerar, em outra dimensão, vários outros níveis de planejamento.
Referimo-nos ao planejamento temático ou de conteúdo, planejamento
verbal (lexical, gramatical, prosódico), planejamento rítmico, planeja-
mento de formas e modos de utilização do discurso (narração, descri-
ção, dissertação, crônica, carta, entrevista etc.), planejamento estilístico
(estilo coloquial ou oral; por exemplo, uma oralidade conscientemente
planejada no texto escrito), planejamento pragmático (maior ou menor
atenção ao contexto, adequação à audiência) etc. É como resume Ochs,
dizendo que o planejamento de um discurso pode se dar em relação às
funções referencial e não referenciais. Podemos pensar até em prepara-
ção psicológica. Esses níveis, considerados de modo geral sob a perspec-
tiva do texto falado, podem, com exceção talvez dos níveis prosódico e
psicológico, aplicar-se perfeitamente ao planejamento do texto escrito.
Vale a pena ter em mente ainda que o planejamento prévio pode
ser global, isto é, prevendo-se e planejando-se previamente o texto todo,
ou parcelado, ou seja, planejando-se e replanejando-se o texto por partes.
Naturalmente a espécie desse procedimento depende muito do tipo e
dimensão do texto a ser produzido. Por natureza, todo planejamento é
flexível, do que decorre ser difícil que qualquer texto seja planejado pré-
via e cabalmente de maneira definitiva e irreversível. Em muitos casos,
geram-se as idéias e se faz um planejamento cognitivo superficial geral.
(4)
Isso, entre outras razões, talvez explique por que falar é “mecânica e psicologica-
mente mais fácil do que escrever”. HOROWITZ e NEUMAN, apud AKINNASO,
1982).

135
O desenvolvimento, porém, será planejado e executado por partes, numa
forma e ritmo muito ao estilo de cada um.
Como se conclui, a geração/busca/seleção de idéias de um lado, e
o respectivo planejamento do outro, constituem procedimentos, em tese,
separados, mas procedimentos que freqüentemente se confundem ou
mesmo se fundem num só amálgama. Daí, normalmente, podermos con-
siderar a produção cognitiva e seu respectivo planejamento como pri-
meira e única etapa, e os outros vários níveis de planejamento, outra.
Levadas em conta as condições de produção e construção do texto
escrito e do falado, inferem-se as possibilidades dos vários tipos de pla-
nejamento para um ou outro tipo de texto. Grosso modo, o texto escrito,
sobretudo o mais formal, recebe um planejamento prévio geral, temático
e verbal, enquanto o texto falado é, em regra, não planejado previamente,
nem temática nem verbalmente, sendo a atividade da sua construção ad-
ministrada e controlada passo a passo, ao sabor das circunstâncias
interacionais concretas.
Antes de prosseguirmos, cabe, porém, ressalvar, com Ochs, uma
impressão que as considerações anteriores possam ter deixado: a de que
estaríamos polarizando o conceito de planejamento. Na verdade, como
acontece em quase tudo na relação língua falada/língua escrita, temos que
aceitar um continuum. Daí a preferência em se utilizar freqüentemente as
expressões “relativamente não-planejado” / “relativamente planejado”.
3. Marcas de planejamento prévio / planejamento local
O planejamento local (ou não planejamento prévio), acionado
enquanto se gera concomitantemente o texto, provoca e explica uma sé-
rie de fenômenos que se manifestam na superfície dele, como marcas
evidentes do não planejamento prévio, a saber: certos tipos de estruturas
frásicas e léxicas muito recorrentes; estruturas frásicas fragmentadas,
descontinuidades temáticas e verbais, hesitações, pausas (preenchidas
ou não) de planejamento local etc., como pretendemos demonstrar adiante.
O contexto imediato, especificamente, deixa também marcas do planeja-
mento local, quando, por exemplo, por influência dele, acontecem certos
tipos de desvios e digressões tópicas inesperadas.

136
Ao contrário, a ausência dessas pistas somadas à presença de evi-
dências claras de elaboração temático-verbal sinaliza, no texto escrito, o
planejamento prévio e a execução desse planejamento.
A presença ou ausência dessas marcas como decorrência do pla-
nejamento / não planejamento prévio leva Bernstein, entre outros moti-
vos, à celebre distinção entre “código elaborado” e “código restrito”.
Com efeito, ao distingui-los na base de uma definição psicológica, escla-
rece, segundo Kato, que “o que determina a forma do “código elabora-
do” em oposição ao “código restrito” é a qualidade do planejamento
verbal (...). O nível mais alto de organização estrutural e de seleção lexical
do código elaborado exige um planejamento mais cuidadoso, o que pos-
sibilita a preparação e transmissão de significados de forma mais explíci-
ta” (Kato, 1986: 21).
4. Corpus e análise do texto falado
O texto falado sob enfoque é o Inquérito D2 333 (Diálogo entre
dois informantes), gravação realizada em 7.4.76, com a jornalista Helena
Silveira (L1) e a escritora Isa Leal (L2), tendo como assuntos gerais Te-
levisão, Cinema, Rádio e Teatro. A gravação está transcrita em A lingua-
gem falada culta na cidade de São Paulo. Vol. II.
Nessa gravação, L1 participa durante mais ou menos 75% do tempo
total de 57 minutos, tomando a iniciativa da resposta em mais de 90%
das vezes. E normalmente são respostas ou comentários longos (mais ou
menos vinte linhas transcritas).
Reproduzimos na seqüência, como amostra para análise, a trans-
crição do primeiro par pergunta/resposta do texto. Durante a análise con-
trastiva, porém, recorremos eventualmente a outros trechos do Inquérito.
A gravação foi reouvida várias vezes e o trecho foi retranscrito com algu-
mas correções, acréscimos e adaptações
5
.
(5)
Pausas com duração maior do que 0,5 segundo, consideradas pragmaticamente sig-
nificativas, foram indicadas com números, conforme sua duração em segundos. Por
exemplo: (1,5). Como reveladoras do continuum sonoro, típico da fala, também fo-

137
1 Doc. Dona Isa e Dona Helena gostaríamos que dessem as
suas opiniões a respeito de televisão (3)
L1 Olha Isa... eu (1,5) como você sabe (2) u::ma pessoa/ um
diretor lá da Folha (1,5) certa feita me chamou (1,5) e
5 m’incumbiu d’escrever sobre televisão (1,5) o que me parece
é que na ocasião (1) quand’ele m’incumbiu disso (1)
ele pensou/ (1) que ele ia:: (1,5) ficar em face de uma
recusa (2) e qu’eu ia... esnoBAR ((ri)) – agora vamos
usar um termo (1) qu’eu uso bastante e que todo mundo
10 usa muito - - eu iria ESnobar a televisão (1) como todo
intelectual realment’isnoba (1) mas acontece (1) qu’eu
já tinha visto durante muito tempo televisão (1,5) por::que::
houv’uma época na minha vida que a literatura:: me
fazia prestar muit’atenção ... e eu queria era uma fuga...
15 então a minha fuga (1) era me deitar na cama (1) ligar
o:: o receptor e ficar vendo... ficar vendo (1,5) I:: aí eu
vi (1) não só que já se fazia muita coisa boa e também
muita coisa ruim é claro (2) mas:: vi também todas as
possibilidades... que aquele veículo... ensejava
20 e qu’istavam ali laTENtes para serem aproveitados (1,5)
agora voCÊ (2) foi dos tempos heróicos (1) da mencionada
luta
A documentadora (Doc.) inicia, solicitando às duas informantes,
indistintamente, suas opiniões sobre televisão. Dessa forma, demarca o
assunto inicial, mas não sua perspectiva, ao mesmo tempo em que pro-
põe uma forma de exposição (informal e não conceitual) sobre o assunto.
Os informantes do Projeto NURC tinham conhecimento prévio e
genérico sobre o conjunto de temas a serem abordados, podendo, portan-
to, estar mais ou menos preparados para discorrer sobre eles. Entretanto
não tinham conhecimento sobre a ordem da abordagem desses temas.
ram registradas as elisões e eventuais mudanças de timbre. Por exemplo: m’incumbiu.
Glottal stop (parada do som na glote, semelhante à interrupção do staccato musical)
foi indicado por (/).

138
No caso, televisão era a especialidade temática de L1, o que explica te-
nha L1 tomado a iniciativa e a incumbência da resposta, não, porém, sem
alguma hesitação, denunciada pela pausa de mais ou menos três segun-
dos, entre a proposta e o início da resposta. A hesitação pode ser explicada,
na verdade, não só pela ordem e perspectiva temáticas não planejadas,
como também pelo arranjo das idéias iniciais e por uma preocupação de
ordem pragmática ante a expectativa de que a parceira pudesse preferen-
cialmente tomar a palavra. Aliás, no lugar de se dirigir diretamente à
documentadora interpelante, L1 dirige-se a L2, assumindo também a
orientação do Projeto NURC, no sentido de que os informantes procu-
rassem estabelecer um verdadeiro diálogo entre si, abstração feita da
documentadora.
Dada a vaguidade do tema, L1, antes de tentar expor sua opinião,
recorda, socorrendo-se de uma narrativa introdutória, o começo de sua
atuação no jornal Folha de S. Paulo. (L. 3-16)
O trecho é caracterizado por marcas de planejamento local e de
ausência de planejamento prévio. Assim, logo de início, L1 muda a dire-
ção discursiva sugerida pela documentadora, começando por um relato
de fatos em lugar da exposição de opiniões sugerida. Há, pois, mudança
do plano inicial proposto, naturalmente possível graças ao não compro-
metimento dos parceiros com um planejamento prévio. Embora o plano
proposto não envolvesse a dificuldade de uma dissertação de caráter con-
ceitual, o relato, implicando fatos concretos e conhecimento partilhado
vivenciado com a interlocutora, facilita a construção de um texto não
planejado. Apesar da mudança de plano, L1 mantém-se dentro do assun-
to. Mas essa variação e a improvisação da ordem temática, imposta “de
fora para dentro” (Rodrigues, 1997:20), sinalizam a falta de planejamen-
to prévio, portanto, presença de um planejamento ad hoc, de controle
igualmente local. Sob esse aspecto, o trecho abaixo, extraído do mesmo
Inquérito, exemplifica com mais evidência um diálogo que só prossegue
graças a um replanejamento da perspectiva tópica, negociado localmen-
te durante o processo interacional:
L1 (...) agora... o lado discutível... escapa
à televisão... que é aquele lamentável lado do Baú que
de certo era isso que você ia...

139
L2 não...
L1 fundamentar...
L2 não... não é o Baú... não
................................................................................................
L2 (...) não não é isso não me interessa aí
nesse ponto a economia popular não interessa tanto...
o que me revolta profundamente é o programa Cinderela
L1 ah bom ( )
L2
[
aquele aquele programa aquilo é abaixo da crítica...
(L. 1093-98; 1115-19)
Como se percebe, L1 propunha uma reflexão sobre o Baú, empre-
endimento que o apresentador e empresário Sílvio Santos comercializava.
Embora pensando no mesmo apresentador, L2 pretendia focalizar, po-
rém, uma outra questão: seu programa Cinderela, assunto que só foi
possível topicalizar (L1 ah bom) graças a um negociação local.
Voltando ao texto selecionado inicialmente para análise, percebem-
se, na sua verbalização, muitas pausas imprevistas e irregulares quanto à
sua localização e duração, principalmente nos primeiros momentos. Com-
parem-se esses primeiros momentos de L1 com o enunciado mais planeja-
do e padronizado da documentadora, este com ritmo ligeiro e regular, sem
pausas internas, nem mesmo depois dos vocativos. Na fala de L1 obser-
vam-se pausas de 1, 1,5 e 2 segundos (L. 3-6), não só delimitando natural-
mente incisos, como “como você sabe” e “quando ele m’incumbiu disso”,
como também quebrando o ritmo frasal após o anacoluto “eu (1,5)” e entre
o sujeito e o respectivo predicado “um diretor lá da Folha (1,5) certa feita
me chamou”. Embora não ocorram as chamadas pausas preenchidas com
segmentos não lexicais do tipo ah, eh, eh::, muito freqüentes em qualquer
texto falado, que caracterizam momentos de hesitação e planejamento lo-
cal, algumas pausas e alongamentos podem ser atribuídos a esses procedi-
mentos como se pode constatar nos alongamentos das linhas 7, 12, 13 e 16
e nas pausas das linhas 8, 12, 17, 18 e 19.
Alguns alongamentos, como os da linha 3 (“u::ma”) e da 16 (“o::”)
representam hesitação ao se planejar o segmento seguinte, em termos de

140
escolha lexical. Parece que o próprio inciso “como você sabe”, logo no
início do turno, manifesta um artifício de adiamento da resposta, com
vistas a ganhar tempo, pois é semanticamente desnecessário, uma vez
que, se L2 “sabe”, a observação é supérflua. Pragmaticamente, porém, a
observação é útil para permitir o planejamento ou replanejamento local
(além do efeito puramente interacional). Com efeito, L1 inicia com “uma
pessoa/”, replanejando em seguida, porém, para “um diretor”. Revela,
portanto, uma reflexão a posteriori, ao passar do genérico (“u::ma pes-
soa/”) para o específico (“um diretor”). O glottal stop na produção do “a”
final de “pessoa” sinaliza essa intenção da correção, com o objetivo de
especificar o referente.
Mas há outros fenômenos que parecem revelar o não planejamen-
to prévio, seja temático, seja verbal:
a) o uso e retomadas constantes do “eu” (7 vezes); do “ele” (3
vezes); do “me” (6 vezes);
b) outras repetições lexicais ou paráfrases, mais ou menos “pati-
nadoras”
6
do avanço temático: “m’incumbiu” (2 vezes); “esnobar” (3
vezes); “prestar atenção” (2 vezes); “ver” (3 vezes); “muita coisa” (2
vezes); “certa feita” / “na ocasião” / “quando”; “usar um termo” / “que eu
uso bastante” / “que todo mundo usa muito”. Algumas repetições e reto-
madas, porém, podem ser atribuídas a uma intenção de ênfase ou elabo-
ração, como “ficar vendo... ficar vendo”; “se fazia muita coisa boa e
também muita coisa ruim é claro”; “eu queria era uma fuga” / “então a
minha fuga”;
c) recorrência de certos elementos relacionais, denotando
recorrência de estruturas oracionais singelas, pouco planejadas ou elabo-
radas. Só o uso do “que”, principalmente nos primeiros momentos, fo-
ram seis nas primeiras sete linhas, e do “e” foram oito no trecho todo;
d) o emprego por duas vezes do “ia”, frustrando a correlação verbal
canônica dos tempos, em lugar de iria, forma empregada logo em seguida,
parecendo corrigir-se, numa demonstração de conhecimento gramatical;
(6)
O termo “patinadoras” prende-se à “patinação”, empregado por Koch et alii, ao
referirem-se aos processos de reconstrução no fluxo informacional, sobretudo à
“recorrência, em graus variados, da informação dada” (p.158)

141
e) falso começo ou abandono prematuro do enunciado: “eu (1,5)”;
f) a referência à “mencionada luta” no fechamento do turno. Tanto
“luta” quanto “mencionada” parecem idéias estranhas e inexplicáveis
sob o ponto de vista do desenvolvimento tópico. Pressuposta, porém, a
coerência textual, a referência a essas idéias tem aceitação e explicação
no conhecimento partilhado das parceiras. Com efeito, sabe-se que L1 e
L2 são parentes com convivência intensa, como, aliás, se percebe clara-
mente no desenrolar da seqüência do Inquérito. Ademais, logo no início
do trecho sob análise, como já referimos anteriormente, L1 acena para
esse aspecto, ao dizer: “olha Isa... eu (1,5) como você sabe”.
Admitir que o trecho analisado denuncia elementos de não planeja-
mento prévio e de pouca elaboração não significa, porém, que ele não
esteja, de forma evidente, estruturado e articulado temática e textualmente.
De fato, L1: a) toma a iniciativa da resposta, dirigindo-se diretamente a L2;
b) inicia uma narração introdutória da resposta propriamente dita: c) inse-
re, na seqüência, uma explicação sobre um termo usado (inserção
explicativa); d) retoma a narração; e) fornece finalmente, ainda em tom de
relato (“vi”), sua opinião muito genérica e superficial sobre o tema; f) en-
trega explicitamente o turno a L2. O que queremos dizer é que as partes
seqüencialmente estruturadas – mas topicamente dispersas – não o foram,
porém, segundo um planejamento prévio. Parece-nos claro perceber que
essa seqüência não atende a um planejamento prévio, mas sim a um plane-
jamento local, ao sabor da proposta genérica da documentadora, da lem-
brança ativada da falante e da presença interativa de L2.
Por outro lado, na perspectiva contrária, certas construções, pala-
vras e cuidados compatíveis com a atividade de um planejamento prévio
podem ser observados:
a) estruturas oracionais e frásicas típicas da língua escrita: “um
diretor lá da Folha certa feita me chamou e me incumbiu d’escrever so-
bre televisão”, “acontece qu’eu já tinha visto durante muito tempo televi-
são por::que:: houv’uma época na minha vida que a literatura me fazia
prestar atenção”
7
;
(7)
Apenas o uso do “lá” pleonástico e a omissão de um “em” regencial antes do “que”
na última oração podem ser atribuídos ao tom coloquial da fala.

142
b) o já referido futuro do pretérito “iria” (letra d acima);
c) o verbo haver, igual a “existir”, em lugar do coloquial “ter”;
d) neologismo culto (“esnobar”);
e) termos ou expressões usados normalmente dentro da lingua-
gem culta: “incumbir”, “ensejar”, “latentes”, “tempos heróicos”;
f) cuidada e ostensiva articulação do r final em escrever, usar,
ligar, prestar, ficar, conforme se ouve claramente na gravação.
Essas constatações poderiam levar a crer, ingenuamente, ter havi-
do um planejamento prévio. Na realidade, esses fenômenos não podem
nem devem ser atribuídos a isso. São hábitos lingüísticos de uma pessoa
com larga experiência da escrita culta, que se transferem, naturalmente,
para sua fala, ainda que informal e espontânea
8
.
5. Corpus e análise do texto escrito
L1, a jornalista, mantinha, semanalmente, na Folha de S. Paulo, à
época do seu depoimento no Projeto NURC/SP, três seções sobre televi-
são, com títulos permanentes, a saber: “Helena Silveira Vê TV”,
“Videonário” e “Cartas na mesa”. Em “Helena Silveira Vê TV”, a jorna-
lista escrevia uma ou mais pequenas crônicas, com títulos específicos,
muito circunstanciais, sobre o mundo da televisão (programação, artistas
etc.), às vezes subdividindo-as; em “Videonário”, também iniciava com
uma pequena crônica, mas passava depois a fazer resumos dos capítulos
das telenovelas da semana; em “Cartas na mesa”, respondia e comentava
correspondências de seus leitores. Vários assuntos, programas e artistas
mencionados durante seu depoimento para o NURC/SP encontram al-
gum eco nos textos da Folha.
Para o presente estudo, com objetivos bem delimitados, selecio-
namos apenas o trecho inicial da crônica produzida para a seção “Helena
Silveira Vê TV”, a do dia 3.4.76, dia anterior mais próximo do dia do seu
depoimento para o Projeto. O trecho escolhido tem aproximadamente o
(8)
Ver nossa Nota nº 1.

143
mesmo tamanho do trecho transcrito do NURC (mais ou menos 180
palavras), mas, como fizemos em relação ao texto falado, utilizamos even-
tualmente outro trecho da crônica:
Os muitos cardápios da crítica
5 Fico feliz quando vejo eruditos sistematizarem em teorias o que
sempre realizei no arroz com feijão cotidiano em meu
mister de escriba. Assim, Roland Barthes não vê a crítica no sentido
de juízo de valores. Pensa, e muitos com ele, que
deverá haver umareformulação na crítica. Ela passaria a ser uma cria-
ção sobre a criação...
Creio que só os egocêntricos ou incuravelmente narcisistas
podem se postar diante do fato artístico e decidir: é ou não arte, é ou não
uma realização que se completou.
10 A linguagem da ciência, em seus comunicados, é cheia de
“parece-nos”, “supomos”. Porque (sic) no terreno movediço
das artes, sofismável, mutável, indefinível, as afirmativas de
valores seriam “a palavra de Deus na voz da História”?
repetindo o nosso amável imperador amante do poeta, D.
Pedro II ?
15 Não faz muito tempo, em um programa de TV, um jovem
se defrontou comigo e, cuidando me agredir, sentenciou:
– Na minha casa, jamais entrará um receptor de televisão.
Redargui:
– E ela, a televisão, vai se incomodar muito com isso ?
20 O piche, nada mais.
Estou fazendo essas considerações porque, com freqüência,
me cobram o piche pelo piche.
O trecho corresponde à introdução ao tema “o exercício da crítica”.
Pode ser classificado como um escrito coloquial, mas coloquial
estilística e previamente planejado. Ou, como diz Ochs, trata-se do pla-
nejamento do discurso não planejado, isto é, da expressão auto-consci-
ente das características do discurso não-planejado em que o escritor pro-
duz intencionalmente um discurso que parece ser não-planejado.
A autora trabalha a crônica, dando-lhe uma feição coloquial, sem
perder, porém, os propósitos literários. Assim, na sua feição coloquial, o
texto é construído em primeira pessoa; utiliza basicamente um vocabulá-

144
rio fundamental de conhecimento e uso freqüentemente comum e gene-
ralizado; emprega imagens com motivação popular, recuperadas
estilisticamente, como “os cardápios da crítica” (no título), “no arroz
com feijão cotidiano” (L. 2); gírias, como “piche” (L. 20, 22); articula
períodos curtos, a maioria com orações absolutas. Na verdade, nos doze
períodos do trecho, seis são períodos simples, dois possuem duas ora-
ções, três constituem-se de três, nenhum de quatro ou cinco e apenas um
de seis. Constatam-se ainda o uso de perguntas retóricas (L. 11-14) e a
reprodução de situação de conversa com discurso direto descontraído e
interativo. (L. 17-19). Observe-se ainda o segmento “nosso amável im-
perador” (L. 14), respingando intimidade no texto, ao propor menor dis-
tanciamento com o leitor.
Em termos de planejamento prévio, a seleção de um título para a
crônica – e um título específico e metafórico – é o primeiro forte índice.
No texto falado, casual e espontâneo, e mesmo no depoimento não casu-
al e não totalmente espontâneo do NURC, a atribuição de um título –
apenas para argumentar – feriria sua própria natureza.
Outro indício de planejamento prévio é a escolha da crônica como
forma discursiva, embora, tanto essa forma, como o título permanente da
seção (“Helena Silveira Vê TV”), tenham sido obviamente planejados e
decididos muito tempo antes, possivelmente na fase inicial das ativida-
des de L1 na Folha.
Embora constitua mais ou menos apenas um terço da crônica, o
trecho revela indiscutível planejamento temático prévio, na medida em
que indica, desde o início, e depois numa progressividade evidente, o
ponto onde a cronista pretende chegar: sua opinião pessoal sobre “o exer-
cício da crítica”. Com efeito, ela desenvolve sua introdução, sinalizando:
a) a postura dos eruditos sobre a crítica, que coincide com a sua (1°
período); b) a postura de Roland Barthes em abono a sua posição (L. 3-
6); c) a postura contrária dos egocêntricos e narcisistas (L. 7-9); d) a
postura não dogmática dos cientistas (L. 10-11). Finalmente, questio-
nando a postura no terreno movediço das artes e ilustrando com uma
situação concreta (diálogo com um jovem), prepara o terreno para decla-
rar sua própria posição, contrária ao “piche pelo piche”(L. 22). Confron-
te-se a pequena narração deste texto com a do texto falado que analisa-
mos. Grosso modo, relatam os mesmos tipos de fatos. Todavia, uma

145
análise de sua composição verbal – que nos dispensamos de fazer –
revela, no nosso entender, o planejamento prévio do texto escrito em
oposição ao planejamento local do texto falado.
Ao contrário do que observamos no texto falado, sentem-se como
planejadas no trecho escrito sob análise uma condensação e progressão
tópicas em relação às várias posturas a respeito do tema, que funcionam
como argumentação preliminar da própria postura da cronista.
É, talvez, porém, na dimensão da formalidade, manifestada já na
superfície do texto, que ele mais se revela realmente planejado previa-
mente, sobretudo sob o aspecto de planejamento verbal.
Embora a base lexical seja a da linguagem comum, reconhece-
se em muitas palavras e expressões um esforço de elaboração ou um
grau de reflexão e abstração, que evidenciam um texto lexicalmente
planejado: “sistematizar:”, “mister de escriba”, “juízo de valores”, “ha-
ver”, “reformulação”, “egocêntrico”, “incuravelmente narcisista”, “pos-
tar-se”, “fato artístico”, “realização”, “terreno movediço das artes”,
“sofismável”, “mutável”, “indefinível”, “defrontar-se com”, “cuidar”
(no sentido etimológico de “pensar”), “sentenciar”, “redarguir”, “con-
sideração”.
É interessante e significativo comparar, por exemplo, o tamanho,
freqüência e distribuição das palavras nos textos falado e escrito:
N° de sílabas N ° de sílabas
01 02 03 subtotal04 05 06 subtotal Total
11
N° de pals.: T. Fal. 64 79 30 173 6 2 1 9 182
T. Esc 76 55 31 152 17 6 2 25 177
Observa-se um emprego ligeiramente maior de palavras de uma a
três sílabas no texto falado em relação ao texto escrito: 14% a mais, ou
seja, 173/152. Já, no grupo das palavras mais longas – polissílabas de
quatro a seis sílabas – a porcentagem se inverte substancialmente em
relação às palavras de uma a três sílabas: no texto falado é de apenas 5%

146
(9/173), enquanto no texto escrito é de mais de 16% (25/152), ou seja,
mais de três vezes mais.
9
Outra constatação é o emprego bem apropriado do termo
“sentenciar”, usado uma vez aqui e duas vezes durante o desenro-
lar do depoimento todo do Inquérito 333 do Projeto NURC/SP:
Doc. e problemas co mo o Sílvio Santos vocês entendem?
L1 o problema do Sílvio Santos é um problema MUITO difícil
de se SEN-ten-ciar sobre ele como aliás é difícil de
sentenciar sobre tudo...
(L. 1068/71)
Caso semelhante de intertextualidade entre a crônica e o Inquérito
333 sob enfoque parece acontecer também com os enunciados arrolados
nas seqüências abaixo, embora, curiosamente, com pontos de vista con-
trários:
“Estamos num país que se destrói, todos os dias”.
(na crônica, linhas adiante);
“acho que há uma língua ( ) uma nossa que está se construindo
todos os dias como o país também que está se construindo todos os
dias”
(Inquérito, 1. 179-181)
“eu acho que a televisão nossa está se fazendo na medida...
ah.: justamente do que a nossa sociedade... ela é fluxo e refluxo...
ela está se construindo todos os dias... na medida que o país está se
construindo todos os dias...”
(Inquérito, 1. 910-914)
(9)
Muitas constatações e referências registradas aqui, como “densidade verbal”, “uso de
palavras derivadas, polissílabas, de vocabulário abstrato e variado” etc., já haviam sido
arroladas por Akinnaso em relação à língua escrita. Confira-se também Ochs e Martins
sobre traços e aspectos dos discursos relativamente não planejado / planejado.

147
“eu acho que a nossa televisão está: : é muito difícil prever a... o
fuTUro dela... ela está se construindo... na medida que o país está se
construindo...”
(Inquérito, 1. 938/940)
Além do trânsito das idéias, há de se considerar a construção simi-
lar dos segmentos. Essa constatação denuncia uma vez mais hábitos lin-
güísticos inconscientes que, à semelhança das idéias, transitam entre as
modalidades falada e escrita de L1. Aqui, o domínio parece ser dos hábi-
tos lingüísticos da língua escrita. Observa-se, por exemplo, o uso da voz
passiva, tido como uso preferencial dessa modalidade lingüística.
Retornando ao texto escrito sob análise, também se observa um
cuidado especial no uso de formas típicas pensadas dentro da gramática
normativa, como “sistematizarem” no infinitivo pessoal e o demonstrati-
vo “essas” em oposição a “estas”, com o qual forma um par de uso muito
instável.
Evidentemente o nível da estruturação frásica (sintático) é um dos
níveis em que a língua escrita mais diverge da língua falada, dado que a
estruturação frásica é a menos convencional ou formulaica, não estando
normalmente pronta, para uso, na memória do falante, como ocorre ou
pode ocorrer com o léxico e a morfologia. Nesse sentido, é mais necessá-
rio e evidente o planejamento de grande parte do texto em termos sintá-
ticos, embora o texto sob análise, de feição intencionalmente coloquial,
registre, com exceção do segundo parágrafo, um grande número de perí-
odos curtos, aparentemente pouco elaborados. Mas, ainda assim, obser-
va-se, por exemplo, o uso de incisos, oracionais ou não, semanticamente
válidos, bem localizados e delimitados por vírgulas, a sugerir o ritmo de
uso mais disciplinado e autônomo da frase escrita.
10
Serve de exemplo o
trecho seguinte:
(10)
Vale a pena transcrever aqui o pensamento de PARISI (1977: 181-182) sobre o ritmo
autônomo e heterônomo respectivamente nas produções escritas e faladas: “O ritmo
do comunicar é simplesmente o ritmo das produções da unidade de comunicação,
(...) o ritmo pode ser heterônomo, isto é, imposto de fora, ou autônomo, isto é, um
critério de quem comunica. Naturalmente, na fala, a velocidade com que se produ-
zem as mensagens é imposta de fora, isto é, pela presença do ouvinte, ao qual é

148
“Não faz muito tempo, em um programa de TV, um jovem se defron-
tou comigo e, cuidando me agredir, sentenciou:”
(L. 15/16)
Trata-se de um período em que a oração básica um jovem se de-
frontou comigo só começa a ser delineada e estruturada tardiamente, e o
núcleo verbal, que lhe está gramaticalmente coordenado (sentenciou) só
aparece no fim, revelando tratar-se de um período realmente elaborado,
conforme já assinalamos linhas atrás.
Por outro lado, o indício generalizado de um planejamento prévio
está, porém e sobretudo, na “ausência” de pistas tempestivas da geração
do discurso, sistematicamente presentes no texto falado, principalmente
as pausas vazias e os segmentos semanticamente esvaziados ou pobres,
que evidenciam, por um lado, a ausência de atividade mental prévia à
verbalização do texto e, por outro, conseqüentemente “a atividade de
planejamento lingüístico em atuação no momento mesmo da produção
verbal.” (Martins)
Ademais, seguindo mais ou menos o roteiro de análise praticado
anteriormente para a análise do texto falado, podemos observar ainda:
a) a total ausência do pronome “eu” explícito, embora o texto es-
teja vazado em primeira pessoa;
b) a ausência de repetições ou paráfrases – portanto um vocabulá-
rio mais variado – salvo os poucos casos, explicados em função da pró-
pria intenção estilística ou estrutura argumentativa do texto, como: “crí-
tica”, “valores” e “piche”, por serem termos chaves do tema ou do seu
desenvolvimento, e “uma criação sobre a criação”, “o piche pelo piche”,
por se tratar de frases feitas;
necessário enviar mensagens com uma determinada velocidade para que possa recebê-
las e captá-las. Ao contrário, no escrito normalmente a velocidade das produções das
mensagens depende, dentro de limites muito amplos, só da vontade e da exigência de
quem escreve (...). A maior ou menor autonomia do ritmo das produções no escrito,
em relação ao ritmo marcadamente heterônomo da fala, é um dos fatores que está na
origem das diferenças mais importantes que se observam entre o escrito e o falado.
Autonomia de ritmo significa
ter mais tempo para planificar antecipadamente. (grifo
nosso).

149
c) a parcimônia no emprego do “que” (quatro vezes, enquanto no
texto falado foi de onze) e do “e” (quatro vezes, enquanto no texto falado
foi de oito);
d) a introdução do discurso direto com “sentenciou” como verbo
dicendi. Na verdade, “sentenciar” é semanticamente mais complexo e
comunicativamente mais caracterizador do que simplesmente dizer, que é
de uso recorrente e sistemático na introdução das citações de fala que ocor-
rem no discursos falados. Rastreando o próprio inquérito sob enfoque, cons-
tatamos que o verbo dizer é empregado vinte e oito vezes (90%) enquanto,
os verbos “responder”, “falar” e “testemunhar”, apenas uma vez.
Considerações finais
Sob a perspectiva do “planejamento textual”, em seus diversos
tipos e graus de variação, procuramos não só refletir sobre essa ativida-
de, distinguindo basicamente o planejamento prévio/local e temático/
verbal. Os dois primeiros conceitos, que devem ser considerados dentro
de um continuum, decorrem da condição de o texto escrito ser transmiti-
do como produto acabado, isto é, com tempo suficiente, durante sua pro-
dução, para ser planejado e elaborado, e de o texto falado ser transmitido
enquanto se produz. O planejamento temático e verbal, por sua vez, são
entre si teoricamente independentes e podem ser realizados tanto prévia
quanto localmente. No texto falado, casual e espontâneo, o planejamen-
to, sobretudo o verbal, dificilmente pode ser prévio.
Na seqüência analisamos textos das modalidades falada e escrita
produzidos por uma mesma pessoa. Em relação ao texto falado, procura-
mos detectar e analisar determinadas marcas lingüísticas e paralingüísticas,
sob o argumento de que sua “presença” sinalizava claramente o não pla-
nejamento prévio, mas sim o planejamento local. Por outro lado, tam-
bém detectamos e analisamos outros índices que poderiam ser atribuídos
a um esforço de elaboração dentro das condições de um planejamento
prévio, mas que reconhecíamos serem, na realidade, estruturas incorpo-
radas ao desempenho lingüístico geral da informante, como hábito lin-
güístico inconsciente. Na análise do texto escrito, adotamos procedimento
inversamente paralelo.

150
Ao mesmo tempo que analisamos os textos sob a perspectiva do
seu planejamento, ressaltamos, para tanto, algumas características gerais
do texto falado e do escrito como duas modalidades lingüísticas.
Ademais, durante a pesquisa para o embasamento teórico e a aná-
lise das duas modalidades, pudemos observar alguns pontos que julga-
mos importante ressaltar:
1) o termo planejamento, na direção e profundidade aqui tratadas,
parece ter surgido ou ganhado interesse e espaço a partir dos estudos
mais específicos da língua oral;
2) o planejamento prévio no texto escrito não dispensa as várias
tarefas e estratégias teoricamente iguais na produção do texto falado, por
exemplo, apagamentos, correções etc. O que ocorre é que o produto fi-
nal, transmitido, as oculta na materialidade textual de superfície;
3) todavia, a intenção consciente de se produzir um texto aparen-
temente não planejado leva o escritor a imprimir algumas marcas no
texto, graças às quais o leitor, e o analista, percebem nele um clima de
coloquialidade planejada, estilisticamente elaborada;
4) além da ausência de intervalo temporal, condição necessária
para um planejamento prévio, o texto oral dialogado não é cabalmente
produzido apenas pelo falante: conta também com a co-produção do
ouvinte, o que conduz, conseqüentemente, a um planejamento também
coletivo, portanto localizado.
Analisamos os textos falado e escrito de uma pessoa culta, cuja
competência lingüística e comunicativa podem ser bem observadas e
avaliadas. A escritora em questão teve, em tese, todo o tempo necessário
para planejar seu texto escrito. Cremos que o tempo disponível para pla-
nejamento de um texto, aliado ao grau de experiência de uma pessoa, é
um fator importante para explicar o nível do texto produzido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AKINNASO, F. N. (1982) On The Differences between Spoken and
Written Language. Language and Speech 25(2):97-121, Teddington
Kingston Press Services.

151
CASTILHO, A. T. e PRETI, D. (Org.) (1987) A linguagem falada culta
na cidade de São Paulo. São Paulo, T. A. Queiroz/FAPESP, v. II.
KATO, M. (1986). No mundo da escrita. Uma perspectiva psicolongüís-
tica. São Paulo, Ática.
KOCH, I. G. V. et alii. (1990) Aspectos do processamento do fluxo de
informação no discurso oral dialogado. In: A.T. de Castilho (org.)
Gramática do Português Falado v. I – A ordem. Campinas, Ed.
UNICAMP, p. 143-184.
MARTINS, A. S. N. (1983) Reflexões da atividade de planejamento
na conversação espontânea. Dissertação de Mestrado, São Paulo,
PUC/SP.
OCHS, E. (1979) Planned and Unplanned Discourse. Syntax and
Semantics. v. 12:51-80, Academic Press Inc., New York.
PARISI, D. G. (1977) Scritto e Parlato. Studi di Grammatica Italiana
6:169-190.
REY-DEBOVE, J. (1996) À procura da distinção oral/escrito. In: Nina
Catach (Org.). Para uma teoria da língua escrita. São Paulo, Ática.
RODRIGUES, A. C. S. (1997) Língua falada e língua escrita. In: Dino
Preti (org.). Análise de textos orais. 3 ed. São Paulo, Humanitas.

153
OS PROCESSOS DE REPRESENTAÇÃO DA
IMAGEM PÚBLICA NAS ENTREVISTAS
Leonor Lopes Fávero
Maria Lúcia da Cunha Victório de Oliveira Andrade
Considerações iniciais
O objetivo deste artigo é estudar os processo de representação da
imagem pública na linguagem da mídia, especificamente nas entrevistas
apresentadas pela televisão na cidade de São Paulo, estabelecendo um
contraponto com as entrevistas publicadas pelo Projeto NURC/SP. Con-
sideraremos o conceito de face utilizado por Brown e Levinson (1987)
para discutir como as estratégias de polidez
1
, empregadas durante a inte-
ração, derivam da necessidade de salvaguardar a face.
Devido ao corpus selecionado, o centro de interesse, neste tra-
balho, estará voltado, por um lado, para as entrevistas em que ocorre
certa polemização, já que se instaura o debate de idéias, o confronto de
opiniões (programa Entrevista Coletiva, apresentado na TV Bandeiran-
tes); por outro, para entrevistas onde se traça um perfil humano (Progra-
ma Jô Onze e Meia, apresentado no SBT, e Juca Kfouri, veiculado pela
CNT). Nessas entrevistas, há um documentador e um informante que
estão fisicamente presentes, um diante do outro, portanto numa situação
comunicativa direta, de interação face a face. Entretanto, há certo distan-
ciamento entre os interlocutores, embora – em geral – o documentador
procure minimizar essas condições durante o evento. Já no segundo tipo,
existem dois tipos de situação:
(1)
No artigo “Discurso e Interação: a polidez nas entrevistas”, apresentado no Colóquio
Internacional “A investigação do Português na África, América, Ásia e Europa:
balanço crítico e discussão do ponto atual das investigações”, realizado em abril de
1998, Fávero, Andrade e Aquino discutiram as propriedades identificadoras da po-
lidez nas entrevistas de televisão.

154
a – programa Entrevista Coletiva: um mediador (jornalista Fran-
cisco Pinheiro) e quatro entrevistadores (jornalistas especiali-
zados) que fazem as perguntas ao entrevistado;
b – programa Jô Onze e Meia: um entrevistador (Jô Soares) e um
entrevistado, em geral pessoa de destaque na sociedade: artis-
ta, jornalista, modelo, diplomata, cartunista; programa Juca
Kfouri: um entrevistador (Juca Kfouri) e um entrevistado, em
geral pessoa que se tem sido notícia no momento: jornalista,
político, locutor esportivo, entre outros.
Quanto às entrevistas do Projeto NURC (DID161, 242 e 250), o
objetivo é deixar o interlocuto falar, não importando o que possa dizer,
mas o modo como o diz. Considerando-se a proposta do Projeto, não há
preocupação com o conteúdo, mas com o lingüístico, colocando ao
Documentador a determinação e o direcionamento do assunto, resultan-
do num grau menor de dialogicidade. Esses dados auxiliam a pensar a
interlocução, levando-se em conta os diferentes tipos de configuração
contextual (entrevista em Ciências Humanas e entrevista jornalística) em
que ocorre o evento e as conseqüências para os distintos processos
interacionais.
Partiremos do princípio de que há vários tipos de ações que criam
conflitos de interesse e tais conflitos podem pôr em perigo a imagem públi-
ca do locutor ou de seu interlocutor; em casos como esse, a polidez é
necessária para amenizar a ameaça potencial à face dos interlocutores. O
estudo das estratégias de polidez implica a abordagem de alguns fatores
imprescindíveis, tais como: relações de poder, distância social, variação
lingüística, grau de imposição do próprio ato e a conjunção desses fatores
determina a seleção das estratégias durante a atividade discursiva.
1. Características da Entrevista
Em suas várias aplicações, a entrevista é uma técnica de interação
social. Por meio dela, busca-se uma interpenetração informativa que visa

155
a quebrar isolamentos sociais, grupais, individuais; pode ainda servir à
pluralização de vozes e à distribuição democrática da informação. Em
seus diversos usos nas Ciências Humanas, constitui sempre um meio
cujo objetivo fundamental é o inter-relacionamento humano.
Enquanto gênero jornalístico, a entrevista pode ser definida como
uma técnica eficiente na obtenção de repostas pré-pautadas por um ques-
tionário. Entretanto, não será uma comunicação humana em que a verda-
deira interação se deixará notar, dado que as relações entre os participan-
tes – entrevistador e entrevistado – não atingem o diálogo em sua pleni-
tude.
Quando determinada entrevista transmite autenticidade e emoção
nas palavras do entrevistado e também no encaminhamento das pergun-
tas elaboradas pelo entrevistador, a audiência (leitor ou telespectador)
sente e se identifica, instaurando-se – conforme Medina (1986: 6) uma
vivência única, e a autora acrescenta:
“A experiência de vida, o conceito, a dúvida ou o juízo de valor do
entrevistado transformam-se numa pequena ou grande história que de-
cola do indivíduo que a narra para se consubstanciar em muitas inter-
pretações. A audiência recebe os impulsos do entrevistado, que passam
pela motivação desencadeada pelo entrevistador, e vai se humanizar,
generalizar no grande rio da comunicação anônima. Isto, se a entrevis-
ta se aproximou do diálogo interativo”.
Em toda entrevista, além de se pretender uma troca de informa-
ções, de experiências, de juízos de valor, há uma ambição mais ousada
que o filósofo Martin Buber (1982) já dimensionou: o diálogo em que a
relação eu – tu é plena, isto é, entrevistador e entrevistado saem “modi-
ficados” do encontro, porque houve interação, ambos se revelaram, cres-
ceram no conhecimento do mundo e deles próprios.
Para Nahoum (1958), a entrevista pode: recolher fatos, informar
ou motivar. Já Garrett (1981) amplia o âmbito dessa prática humana,
afirmando que todas as pessoas – de uma maneira ou de outra – são
envolvidas na entrevista, ora entrevistando, ora sendo entrevistadas. A
base de sua teoria é somar a técnica à arte: arte de ouvir, perguntar, con-
versar.

156
Ao refletir sobre a entrevista no rádio e na televisão, Edgar Morin
(1973) aponta que se pode seguir a trilha da espetacularização do ser
humano (entrevista-rito e entrevista anedótica) ou esboçar a intenção de
compreendê-lo (entrevista-diálogo, neoconfissão). O autor critica a su-
perficialidade dos dois primeiros tipos e seu traço caricatural. Revela,
ainda, seu entusiasmo pela entrevista que visa à compreensão e ao apro-
fundamento, o que se atinge com os dois últimos tipos.
À medida que o jornalismo vai desenvolvendo estilos de aborda-
gem, tem-se o desdobramento dessa tipologia, como aponta Medina
(1986:15 e ss.):
1 – subgêneros da espetacularização: perfil do pitoresco, do inusitado, da
condenação, da ironia intelectualizada;
2 – subgênero entrevista conceitual: enquete, investigativa, confronta-
ção/polemização, perfil humanizado.
Se na conversação espontânea, a comunicação entre os interlo-
cutores deixa transparecer um tom mais “intimista”, na entrevista – con-
forme já apontou Barros (1991: 254) – “rompe-se o dialogismo estreito
(eu e você, aqui e agora) e alarga-se a circulação do dizer na sociedade”.
Três diálogos são instaurados durante a atividade:
– entrevistador e entrevistado;
– entrevistado e audiência (público: leitor, ouvinte, telespectador);
– entrevistador e audiência.
Cria-se um jogo duplo de comunicação e interação entre entrevis-
tador e entrevistado, visto que há sempre a possibilidade de inversão e
reciprocidade da relação eu – tu: o entrevistado pode, a qualquer mo-
mento, tomar o turno e mudar o tópico discursivo em desenvolvimento,
alterando, assim, a direção da entrevista. Entretanto, as relações estabele-
cidas entre entrevistador/entrevistado e a audiência não são passíveis de
inversão: o público é construído a partir de traços genéricos, sendo uma
espécie de extensão dos papéis do ouvinte
2
, na conversação natural. Tais
(2)
Papéis do ouvinte: ouvintes autorizados e solicitados, ouvintes autorizados mas não
solicitados e ouvintes por acaso. Cf. Goffman, 1976.

157
traços permitem elaborar um horizonte de expectativas que condicionam
o evento.
Entrevistador e entrevistado têm a tarefa de informar e convencer
o público. Desempenham, portanto, um duplo papel na interação: são
cúmplices, no que diz respeito à comunicação, e oponentes, quanto à
conquista desse mesmo público.
Dessa forma, as entrevistas ora tendem para o pólo do contrato
ora para o da polêmica. No primeiro caso, os interlocutores buscam cau-
sar boa impressão na audiência, para isso tentam respeitar a fala do outro,
costumam ceder o turno, evitam traços que demonstrem agressividade.
Já no estilo polêmico, a interação pode apresentar inclusive a desqualifi-
cação de um dos interlocutores. Segundo Barros, ambos os estilos ins-
tauram-se a partir de procedimentos que visam a um mesmo objetivo:
“persuadir o público e com ele estabelecer uma relação interacional uni-
lateral” (p. 255-256). Em quaisquer tipos de entrevista, contratual ou
polêmica, entrevistador e entrevistado buscam somente interagir com o
destinatário desse jogo interacional que é a audiência, por isso os laços
que os envolve são considerados frouxos, sejam eles cúmplices ou opo-
nentes.
Vejam-se os exemplos colocados a seguir, em que o entrevistado
revela claramente sua preocupação com o público e não tanto com o
entrevistador:
(1)
L1: eu fiz um “show” lá no teatro Quitandinha... que foi...ótimo... aliás eu vou fazer
uma apresentação... no Rio de Janeiro... não falei isso ainda... vou falar... no
Metropolitan... casa do Ricardo Amaral... vou fazer dia oito de dezembro... vou
fazer uma apresentação lá com o meu espetáculo... inédito no Rio de Janeiro... ...
O Gordo em Concerto... já aproveitei... já encaixei
L2: tá certo... ((risos))
(Programa Jô Soares Onze e Meia, com Zezé de Camargo e
Luciano, Corpus, p. 13)

158
(2)
L2: ((...)) nós teremos que buscar formas de defesa... o Itamaraty tem o seu ramo
cultural...
[
L4: é muito ruim... né?
[
L2: eu não... eu não...
[
L4 esse esquema de ( )...
[
L2: essa é a liberdade que tem o
jornalista...
[
L4: é... o senhor não pode...
[
L2: Luís Nassif de julgar um ramo da administração...
((risos))
[
L4: eu sou o seu
superego... ((risos))
L2: o jornalista Luís Nassif tem a sua liberdade de julgar um ramo da administra-
ção de uma maneira muito direta... eu não sei... eu preciso ter contatos... eu
preciso aprender... não é?
(Programa Entrevista Coletiva, com Francisco
Weffort, Corpus, p.99)
Nesses exemplos pode-se verificar a preocupação dos interlo-
cutores em informar a audiência ou manter uma imagem em relação ao
público.
Em relação aos demais textos conversacionais, a entrevista se dis-
tingue por três aspectos: o número de participantes envolvidos em sua
organização; o caráter assimétrico da interação; o planejamento e o tem-
po de elaboração. Vejamos, a seguir, cada um desses pontos.

159
1.1. Organização Interacional
Com o intuito de observar o processo interacional nas entrevistas,
é preciso considerar a situação, as características dos participantes e as
estratégias por eles utilizadas durante o evento.
Importa observar algumas características desse tipo de interação,
bem como as condições de poder evidenciadas por certas marcas. Em
outras palavras, é necessário atentar para um conjunto de traços que evi-
denciam o esquema de dominância esboçado no transcorrer do diálogo.
Embora em muitas entrevistas haja – a princípio – certa condição
de igualdade (não existe qualquer hierarquia pré-estabelecida entre os
participantes), a interação não se fixa apenas em cumplicidade e solidari-
edade, mas também em certa disputa, na medida em que os interlocutores
fazem parte de um jogo de linguagem que se instaura através de um
processo de negociações, trocas, normas partilhadas, concessões.
Durante as entrevistas, os participantes não apenas expressam suas
idéias e opiniões, trocam informações, mas também – ao cumprir seus
papéis – constroem juntos o texto, buscando atuar sobre o outro e sobre a
audiência. Conforme aponta Kerbrat-Orecchioni (1990: 89), “todos os des-
tinatários de uma mensagem, mesmo aqueles que o são indiretamente,
desempenham um papel importante no desenvolvimento da interação”.
Para diferenciar os vários níveis de organização, é necessário con-
siderar, de acordo com as sugestões de Charaudeau (1984), as particula-
ridades do modo de presença dos participantes do evento interacional e o
modo de relação que os interdefine em função da configuração contextual.
Cabe acrescentar que uma atividade interacional envolve não ape-
nas a linguagem oral, mas também a gestual. Segundo Abercrombie
(1972:64), “nós falamos com os órgãos, mas é com o corpo que nós
conversamos”. Nesse sentido, pode-se afirmar – conforme Brait (1993:
202) – que:
“pelo olhar, cada um dos protagonistas de um evento interacional pode
captar as características exteriores do outro, a dimensão espacial confi-
gurada pela situação, as expressões faciais, os gestos, a postura, as ati-
tudes corporais e outras marcas que configuram e circunscrevem uma
situação, um contexto interacional”.

160
Isso equivale a dizer que essa situação única não é estabeleci-
da previamente, mas é algo que se constrói a partir da negociação
entre os interlocutores e que depende diretamente das competências
e intenções de cada um deles, bem como do modo como essa ativida-
de se instaura e se desenvolve no intercurso conversacional.
As entrevistas pertencentes ao material do Projeto NURC/SP
permitem um bom trabalho relativo às especificidades do texto oral;
entretanto, não contêm, em suas transcrições, os aspectos referentes
aos gestos, visto que as gravações foram feitas apenas em áudio. As-
sim, a dimensão abrangida pelo olhar, a interferência que esse aspec-
to poderia executar no texto lingüístico e as supostas conseqüências
para a situação interacional somente serão trabalhadas no material
relativo às entrevistas de televisão, cuja transcrição menciona alguns
aspectos referentes aos gestos e ao olhar, significativos para a ativi-
dade conversacional.
O estudo da gestualidade é impulsionado tanto pela desvalori-
zação de sua função social, já que a verbalização é dominante, como
pela possibilidade prática de sua extensão, através dos meios de co-
municação visual. Entretanto, cabe lembrar que os gestos são sempre
expressivos, constituem uma linguagem original, universal e verda-
deira.
Elemento básico nos processo de comunicação, o gesto é uma
das primeiras expressões de sentimento que a natureza deu ao ho-
mem e a expressividade é a sua função primordial: “fala-se melhor
aos olhos do que aos ouvidos” (Rousseau). Na verdade, um gesto
dirige-se sempre a um outro (real ou maginário), revelando uma situ-
ação de interlocução que não é redutível à comunicação, mas o sig-
nificado de um gesto não depende da intenção e o que se descreve
não é tanto o gesto como o contexto. Cada gesto é sempre a cena
silenciosa que integra a atividade verbal.
Para Jean-Loup Rivière (1987), “é no silêncio e no não-senti-
do que o gesto propicia aquilo que a palavra cumpre”. Neste sentido,
pode-se afirmar que o gesto tenta restabelecer um elo que a lingua-
gem rompeu. Veja-se o exemplo a seguir:

161
(3)
L2: vou mostrar a roupa pra vocês... posso fazer um desfile pequeno pra mostrar....
[
L1: deve...
[
L2: pode ter um fundo musical pra mim aí...
[
L1: música... por favor...
L2: eu sempre faço alguma coisa aqui... né?
L1: sempre... várias...
((Luís Fernando desfila o modelo; há risos e aplausos da platéia))
(Programa Jô Onze e Meia – Luiz Fernando
Guimarães, p. 2)
(4)
L2: É... o retrato do Brasil... é o retrato... daquele pessoal que tava reclamando ali...
na saída do presidente da república do Copacabana Palace quando lá estava o
presidente da Argentina Menem... o presidente... vendo a polícia baixar o pau
nos caras que estavam lá... e sorri... PÔ onde é que nós estamos? o pau dele só
na nossa meu Deus do CÉU ((batidas na mesa))... o que é isso?... ((batidas na
mesa)) o aposentado... que vai ganhar agora?... ENTÃO...
(Programa Juca Kfouri, com Sílvio Luiz,
Corpus, p. 160)
1.2. Simetria e Assimetria na Interação
A entrevista define-se por apresentar uma interação assimétrica
(cf. Marcuschi, 1986), dado que os papéis dos interlocutores (entrevista-
dor e entrevistado) são distintos. Ao entrevistador cabe escolher o tópico
discursivo e a direção da conversação: quando ou como interromper ou
terminar (isto fica bem claro na entrevista jornalística), a distribuição dos
turnos, o caráter contratual ou polêmico, entre outros. Por sua vez, o
entrevistado pode conservar o turno por mais tempo, pois é a ele que se
quer ouvir.

162
No entanto, o conceito de assimetria interacional está relacionado
não só às funções dos interlocutores na situação comunicativa, mas prin-
cipalmente a seus papéis sociais e a suas características individuais. Há
casos em que a importância social do entrevistado leva à inversão do
equilíbrio da entrevista: o entrevistado seleciona os tópicos e decide quan-
do passar o turno. Por sua vez, há entrevistadores peculiares que domi-
nam a entrevista e não deixam ao entrevistado nem mesmo os turnos que
lhe são devidos.
A seguir, são destacados em dois inquéritos do Projeto NURC/SP
os papéis sociais que marcam as interações:
(5)
Doc: escute me conta uma coisa... essas peças que
você representou você e seu grupo...
elas foram apresentadas assim em outras faculda::des:: em outros teatros em teatro
você já falou que já foram ... foram representadas... mas eu quero saber se elas foram representadas em outras faculdades?...se ELA foi representada em outras
faculdades?
(SP DID 161:64-70, p. 39)
(6)
Doc: ahn
eu gostaria que a senhora indicasse a... porque a senhora tem alguns livros
publicados né? eu gostaria que a senhora dissesse alguma coisa...
(SP DID 242: 46-48, p. 149)
No primeiro exemplo, em que o informante é um jovem publicitá-
rio, de 25 anos, solteiro, as formas de tratamento destacam a informalidade
da entrevista e a igualdade de papéis sociais dos interlocutores (entrevis-
tador e entrevistado). Já no segundo, as reiterações de
a senhora revelam
diferenças hierárquicas nos papéis sociais dos participantes. O entrevis-
tador é um jovem estudante, o entrevistado é uma bibliotecária, de 60
anos, solteira.
Outro caso interessante é a inversão de papéis que ocorre em um
dos inquéritos analisados, dado que é o entrevistado (professor universi-
tário, de 69 anos, casado) e não o entrevistador (jovem estudante) quem
avalia, aprova ou desaprova as perguntas que lhe são feitas, ou ainda é
ele próprio quem questiona o documentador. Vejam-se os exemplos reti-
rados dessa entrevista:

163
(7)
Inf:(...) nos termos daque::la ahn... dispensa que eu me referi... quando respondi
à::... à pergunta anterior se não estou enganado... foi até muito bom é/éh...
muito boa essa pergunta agora porque...ficou mais claro talvez agora... ficou
mais clara a explicação
(SP DID 250: 131-135, p. 136)
(8)
Inf:e::... mais vulTOsas em relação a bancos... agora quem sabe se vocês
PREcisando...melhor...ou melhor insistindo em determinadas perguntas eu
poderia dizer mais alguma coisa...
(SP DID 250: 53-56, p. 134)
(9)
Inf:antes disso eu quero dizer uma coisa não... eu estou ficando tão entusiasmado
com estas perguntas que eu fico até com vontade de ser banqueiro... ((risos))
embora eu não tenha a mínima vocação pra isto... para esta profissão... bom...
a vantagem de abrir uma conta bancária...
(SP DID 250: 432-437, p. 143)
Nas entrevistas de televisão também encontramos a inversão de
papéis, visto que o entrevistado assume o papel do entrevistador e passa,
muitas vezes, a comandar por um certo tempo a interação, dirigindo per-
guntas a este último; veja-se o exemplo a seguir:
(10)
L1: então... a pedidos... conta... ((risos)) vamos fofocar um pouquinho aqui ( )...
L2: aí que vergonha... ((risos))
[
L1: magina... conta lá... como é que foi...
[
L2: como é que foi que foi
que você conheceu a Flavinha?
L1: como é que eu conheci a Flavinha? ((risos))
L2: só se você contar a sua... ((risos))
L1: (conto... ah... magina... ) eu conheci a Flavinha... que ela foi no teatro com
uma amiga me assistir...
[
L2: ah... foi parecido então...
(Programa JÔ Soares Onze e Meia, com Débora Bloch, Corpus, p. 40)

164
(11)
L2: você é conselheiro
L1:olha aqui... ((impaciência)) você veio aqui pra ser entrevistado ou pra me
entrevistar?...
L2: não... eu não estou te entrevistando
L1: ahn::
L2: eu estou... realmente... sabe?... ahn:: hoje é dia... dia de aniversário de Fausto... Fausto
Silva faz aniversário...
L1: ele faz aniversário hoje?
L2: faz
(Programa Juca Kfouri, com Sílvio Luiz, Corpus, p.162)
1.3. Planejamento Textual e Tempo de Elaboração
É sabido que uma das características específicas da oralidade é
seu modo de inscrição no tempo (Viollet, 1986): planejamento e pro-
dução são atividades simultâneas ou quase simultâneas. Na escrita, por
sua vez, a elaboração e a produção são duas atividades separadas no eixo
temporal, o que permite tantas revisões e reescrituras quanto necessárias
até se chegar ao produto final.
Na entrevista, distinguem-se três momentos: o de preparação da
pauta, o da entrevista propriamente dita e o da edição. Quando se fala em
planejamento da conversação, é importante salientar que esse planeja-
mento existe pelo menos da parte do entrevistador, mas também pode
ocorrer, em certos casos, da parte do entrevistado. Desse modo, os parti-
cipantes têm mais tempo de elaboração, o que torna possível uma dimi-
nuição das marcas de reformulação textual. Nesse sentido, a entrevista
deve ser vista como um caso particular de produção oral.
Por sua vez, a edição da entrevista traz à tona um outro interlocutor
que também participa da produção final do texto e cuja marca se faz
notar juntamente com as dos demais participantes (entrevistador, entre-
vistado, audiência). No momento da edição, a entrevista pode passar da
linguagem oral para a escrita, como ocorre em jornais ou revistas, ou
manter-se oral, como na televisão ou no rádio.

165
Ainda que conserve sua forma dialogada, a entrevista escrita per-
de muito das características da língua falada: repetições, correções, pará-
frases, hesitações são elimidas; o texto é reescrito; as relações interacionais
são modificadas. Entretanto, nas entrevistas em que se conservam os
traços da oralidade, podem ocorrer alterações nos efeitos de sentido pro-
duzidos. Vale ainda mencionar as entrevistas feitas ao vivo, em que a
falta de uma edição final permite que a espontaneidade aflore em detri-
mento do planejamento conversacional. Observem-se os exemplos colo-
cados a seguir:
(12)
Veja: O brasileiro é essencialmente caipira, como acredita o presidente
Fernando Henrique Cardoso?
Nassar: O brasileiro em geral não sei, que não sou sociólogo, mas
posso falar de mim. Me sinto caipira se acontece de eu entrar num
shopping. Me sinto caipira diante da parafernália eletrônica. Me sinto
caipira diante da desenvoltura urbana de certos cidadãos, uma desen-
voltura que literalmente me faz mal. (...)
(Revista Veja: Entrevista – Raduan Nassar, 30 de julho de 1997, p. 9)
(13)
ISTOÉ: Você não tem medo de que versos como “afogar o ganso” e
“molhar o biscoito” esbarrem na pobreza poética?
Gabriel: O limite sou eu quem faço. E mesmo assim é muito relativo.
Às vezes bate uma dúvida, faço uma rima escrota e não gosto. Mas um
f.d.p. com conteúdo é um desabafo diferente. Não tenho o pudor do
palavrão em si, o que não pode é passar do ponto. (...)
(Revista Istoé: Entrevista – Gabriel O Pensador, 18 de fevereiro de
1998, p.6)
1.4. Entrevistas do Projeto NURC x Entrevistas de TV
As entrevistas do Projeto NURC pertencem ao grupo de entrevis-
tas em Ciências Humanas e são semelhantes às entrevistas ao vivo. Fo-
ram gravadas em fitas magnéticas e sua edição para a escrita deu-se por
meio da transcrição, buscando manter as especificidades da língua oral.
Entretanto, como já dissemos, apresentam uma particularidade: interessa

166
menos o que o entrevistado diz e muito mais o modo como diz, ou seja,
o aspecto lingüístico.
Ao ouvir e depois analisar as transcrições do NURC, verifica-se
que o entrevistador não está preocupado com as informações que o en-
trevistado tem a dar a respeito do tema em questão, mas apenas em fazer
com que o informante fale. Por outro lado, nas entrevistas de televisão o
entrevistador dirige o diálogo de modo a obter determinadas informa-
ções e opiniões e, em certos casos, até a desmascará-lo. Decorrem desses
elementos apontados as diferenças significativas entre os dois tipos de
entrevista. Nos materiais do NURC, encontram-se, por exemplo, alguns
procedimentos que marcam aquela preocupação do entrevistador com o
modo do discurso. Vejam-se os casos (exemplo 14) em que o
documentador repete por três vezes, praticamente, a mesma pergunta.
Como o entrevistado tem convicção de que respondeu, satisfatoriamen-
te, ao que lhe foi perguntado, é comum que marque isso em seu turno,
acentuando a irrelevância da pergunta ou ainda mostrando que o assunto
já tinha sido tratado anteriormente (exemplo 15):
(14)
Doc: e o que que precisa uma peça pra ela REalmente atingir o público?...
Doc: no seu entender o que é o imprescindível pruma:: peça de teatro obter sucesso?
Doc:conta uma coisa... que tipo de peça assim... quer dizer o esTIlo da peça... que
você acha que é mais aceito pelo público?... quer dizer o::o que o que
precisa existir numa peça de teatro pra ela:: atingir realmente a massa?...
(SP DID 161: 234-235; 322-323; 488-491; p-43-49)
(15)
Inf: é o que eu fa/
o que eu falei... agó/ na gravação não eu falei fora da gravação
pra vocês... o que::: o brasileiro tem um mal muito grande ele gosta de
imitar...
Inf:o que eu falei... é atingir diretamente ao o público... a:: ao qual ela foi
destinada...
Inf:o que eu falei... pra atingir realmente o público... ela precisa ter eh::
(SP DID 161: 265-268; 324-325; 492-493; p. 44-49)

167
Outro ponto a destacar em relação aos materiais do NURC é que,
de modo geral (cf. DID 242, 250, entre outros), após fazer o bloco de
perguntas iniciais, o entrevistador se limita a participar da interação ape-
nas emitindo marcas de assentimento ou monitoração, tais como:
ah é,
certo, uhn uhn.
(16)
Doc. certo
(17)
Doc. uhn uhn
(18)
Doc. ahn ahn
(SP DID 161: 115, 221, 400, p. 40, 43 e 47)
Os pontos levantados permitem afirmar que a interação nas entre-
vistas do NURC se dá de maneira frouxa, visto que as relações estabele-
cidas não se sustentam por trocas de informações, nem por envolvimento
intersubjetivo ou conhecimento partilhado fortemente estabelecido.
Já as entrevistas de televisão apresentam uma interação em que a
estrutura de participação que envolve os interlocutores (falante, ouvinte
ratificado, ouvinte não ratificado ou espectadores) revela que cada um
cumpre seu papel de modo mais efetivo, alternando-se nos turnos ao
mesmo tempo em que contribuem para o desenvolvimento desse tipo de
texto e revelando maior envolvimento interpessoal.
Não se pode deixar de observar o papel desempenhado pela audi-
ência como elemento propulsor de modificações na interação entre os
participantes, já que a interação se desenvolve exatamente em função da
terceira-parte e é em razão de não se perder esse aliado que se procede a
reformulações ou reorientações temáticas. Cabe lembrar que o direito à
participação do espectador por meio de interferências em que se locali-
zam formulações lingüísticas é pequeno se o relacionarmos com o tem-
po de participação direta do entrevistador/entrevistado durante o evento,
como se pode notar no trecho a seguir:

168
(19)
L1: codorna? eu como todas ((risos)) leitão já comeu? já fez teste de comer leitão?
L2: ôh:::... já
L1: ((dirige-se à senhora da platéia que riu)) minha senhora... minha senhora...
minha senhora... é comer por via oral... não é:: isso que a senhora está
penasando ora... ((novamente dirige-se a L2)) um leitãozinho assado você come
direitinho?
(Programa Jô Soares Onze e Meia, com Miguel Gonçalves, Corpus, p.66)
Em toda a entrevista, os interlocutores representam seu papel
discursivo e de identidade (entrevistador/entrevistado) que pode ser defi-
nido como o conjunto de direitos e deveres comunicativos, associados
aos papéis dos interagentes e ao desempenho de uma identidade social.
Importa salientar a configuração espacial dos programas que ser-
vem como corpus para este trabalho. No que se refere ao Programa Jô
Soares Onze e Meia, tem-se uma proximidade física entre entrevistador
e entrevistado e há um caráter de intimidade entre os participantes. Este
se programa insere no gênero talk show, termo que indica toda forma de
palavra dialogada veiculada pela televisão. Segundo Machado (1996:
101), este tipo de programa não visa ao sensacionalismo ou à polêmcia:
“o talk show prima por seu aspecto consensual e intimista e por tentar
estabelecer uma relação de confiança entre o entrevistador e convidados,
diante de um dado público”.
O apresentador Jô Soares acumula várias funções e pode ser de-
signado apresentador-vedete, já que o culto à personalidade do animador
é uma característica fundamental do programa. O entrevistador prima
por parecer simpático, tenta criar um ambiente agradável para que a situ-
ação comunicativas se instaure.
Na abertura do programa, o animador apresenta-se sentado de frente
para a platéia e para o telespectador; entretanto, no momento da entrevis-
ta assume a postura semifrontal, colocando-se de lado, em relação ao
público. “Quando quer fazer alguma pergunta, o animador inclina-se para
seu convidado: sua aproximação e seu afastamento vão indicar, respecti-
vamente, o início e o término das unidades discursivas de comunicação”
(Machado, 1996: 103-104). Cabe apontar que o animador mantém uma
distância interpessoal que favorece o toque (criador de um certo efeito de
intimidade): feito sempre ao término da entrevista.

169
O Programa Jô Onze e Meia prioriza o divertir em detrimento do
informar, criando – conforme já apontaram Fávero, Andrade e Aquino
(1998b) – um compromisso com o fazer espetáculo. Diferentemente, os
programas “Entrevista Coletiva” e “Juca Kfouri” primam pela informa-
ção e enquadram-se na entrevista jornalística. Estes dois programas não
possuem platéia, porém o telespectador pode participar de modo mais
efetivo através de fax ou via Internet. Em muitas entrevistas, principal-
mente aquelas feitas com políticos, instaura-se um discurso polêmico
gerador de situações onde emerge o conflito.
Os programas de entrevista foram-se modificando ao longo do
tempo e não têm mais como ponto de referência perguntas e respostas
que visam a preencher um espaço de tempo pouco significativo. Segun-
do Aquino (1997: 98), a entrevista desenvolve-se com base em pergun-
tas, mas a partir da direção que se dê a elas, o entrevistador perspicaz –
num estilo próprio – utiliza-se de estratégias variadas para a obtenção de
boas respostas. Um entrevistador eficaz consegue, muitas vezes, a reve-
lação de material secreto e chega até a conseguir revelações íntimas de
forma sutil, como ocorre, por exemplo, com as entrevistas comandadas
por Marília Gabriela.
2. A Representação da Imagem Pública
Para atingir os objetivos conversacionais, o locutor precisa atuar
de algum modo sobre o seu intelocutor. Nesse sentido, é fundamental
que a atividade interacional esteja voltada para fatores sociais, como:
idade, sexo, grau de conhecimento prévio, posição social, consideradas
enquanto variáveis que determinam o grau de distanciamento entre os
participantes da conversação. Conhecer as regras sociais implica saber
agir de acordo com os padrões que regem a preservação da imagem e
distinguir quando ela está sendo utilizada ou não.
A preservação da imagem pode ser concebida como um conjunto
de normas sociais que cada comunidade estabelece para orientar o com-
portamento adequado de seus membros, ajustando atitudes a normas. As
formas de preservação da imagem estão vinculadas não só a determinada

170
cultura, mas também à língua dessa sociedade. Nesse sentido, pode-se
afirmar, por exemplo, que o uso das formas de tratamento corresponde à
expressão lingüística reconhecida socialmente; porém, a necessidade de
seu usodentro de uma determinada língua depende, não só do sistema
lingüístico, mas da organização social. Embora grande parte da polidez
entendida como norma social tenha evidente repercussão na escolha de
certas unidades lingüísticas, os estudos pragmáticos voltam-se para a
possibilidade de se conceber a manutenção da imagem como estratégia
discursiva.
Podemos afirmar que a comunicação verbal é uma atividade in-
tencional dirigida para a obtenção de determinado objetivo e o uso ade-
quado da linguagem pode constituir um elemento determinante para o
êxito do objetivo pretendido. O locutor deve, assim, levar em conta que
seu enunciado esteja de acordo com suas intenções e, principalmente,
com a categoria e o papel de seu interlocutor. Portanto, o uso conveniente
de todos os meios de que a linguagem dispõe é fator primordial para a
manutenção de uma interação cordial, especialmente quando o falante
deve enfrentar um conflito entre seus objetivos e os de seu interlocutor e
quer, muitas vezes, não romper suas boas relações. Neste sentido, a poli-
dez pode ser entendida como um conjunto de estratégias discursivas des-
tinadas a evitar ou amenizar o conflito.
Segundo Leech (1983), a polidez é o referencial que regula a rela-
ção entre os interlocutores, pois é por meio dela que mantemos ou dimi-
nuímos a distância social e seu equilíbrio. Estabelece, ainda, uma classi-
ficação de ações a ela relacionadas. São ações que:
– instauram a polidez – agradecer
– não interferem na polidez – informar
– entram em conflito com a polidez – ordenar
– inviabilizam o bom relacionamento entre os interlocutores –
acusar.
Cumpre salientar que tais categorias não são estanques, antes apontam
para um continuum
Em relação a essas categorias apontadas por Leech, podemos afir-
mar que não só a intenção do locutor prevalece para que a polidez se
instaure, mas o contexto pode propiciar ou não que a mesma ocorra.

171
O funcionamento da polidez pode, ainda, ser explicado de modo
mais completo pela teoria proposta por Brown e Levinson (1987). Par-
tindo do conceito central de imagem (face: cada indivíduo tem e reclama
para si uma certa imagem pública, ou prestígio, que pretende conservar),
dele derivaram todas as estratégias de polidez. A imagem é universal em
si mesma e também ao determinar os comportamentos sociais, o que
varia em cada cultura são traços particulares que constituem a imagem
pública desejada. Pode-se apresentar como: negativa (desejo de liberda-
de de ação e de domínio do próprio território) e positiva (desejo de ser
aceito pelos outros e de que estes compartilhem os mesmos desejos).
De acordo com a perspectiva adotada pelo programa de televisão,
as entrevistas apresentam características específicas no que se refere à
ocorrência da polidez. As diferenças entre uma interação mais tensa, que
assume em certos casos um caráter inquisitorial, como se verifica no
programa Entrevista Coletiva, ou uma conversa intimista, distensa, como
a delineada no Programa Jô Soares, são visivelmente observáveis.
Não existe uma relação direta entre a posição do entrevistador em
manter o máximo controle sobre o discurso e o uso de estratégias de
polidez. Entretanto, é preciso observar que a polidez se coloca como
elemento imprescindível para a boa interação durante as entrevistas e
para a consecução de que esta transcorra de modo a se alcançarem os
objetivos a que se propõe.
Numa entrevista, a atuação de entrevistador e entrevistado é igual-
mente importante. É preciso que haja empatia entre os interlocutores e
sua manutenção está diretamente relacionada às estratégias de polidez.
Observa-se que alguns tópicos discursivos podem-se colocar como mais
ameaçadores para determinados entrevistados e, nesse caso, o entrevis-
tador pode, estrategicamente, formular seus enunciados de modo polido,
sem deixar de perguntar sobre o assunto. O entrevistador deve ser ágil e
perspicaz para que a entrevista transcorra de modo a conseguir efeitos
positivos. Não se pode esquecer que ele precisa captar as indagações do
telespectador, já que este é o elemento fundamental para que se leve a
entrevista ao ar.
No corpus sob análise, a polidez pode ser localizada, por exem-
plo, em segmentos como este que ocorre no Programa Entrevista Coleti-
va, cujo entrevistado foi o ministro da cultura Francisco Weffort:

172
(20)
L3 o ministro... ahn... nós podíamos... ahn... tentar... porque... ahn... tentar
entender um pouco... o que é cultura no sentido do governo... ahn e pra isso
eu
gostaria de... ahn... relembrar como é que apareceu o ministério da
cultura... ele apareceu como uma idéia do... do presidente Tancredo que iria
instalar o ministério...
(Programa Entrevista Coletiva, com Francisco Weffort,
Corpus p. 98)
Nesse exemplo, o locutor talvez para não parecer indelicado hesi-
ta, escolhe as palavras (ahn... ahn...), emprega o futuro do pretérito (gos-
taria).
Entretanto, quando o jornalista percebe que para obter uma certa
resposta, precisará ser de certa forma indelicada, usa a estratégia de anun-
ciar o que vai fazer, deixando claro ao interlocutor qual é o seu papel:
(21)
L4 é...
dando uma de advogado do diabo aqui... ministro... em relação ao papel
do intelectual... em geral... a imagem que se tem é o seguinte... quando um
intelectual tá à frente de um empreendimento... tem-se clareza nos conceitos e
nas teses... mas tem pouco comprometimento com resultdos e pouca experiência
com a gerência... qual a garantia.... quer dizer... qual a estrutura que o senhor
vai montar... pra que realmente os conceitos e as idéias se transformem em
resultados... efetivos...
(Programa Entrevista Coletiva, com Francisco Weffort, Corpus, p. 102-103
Observe-se, também, Programa Juca Kfouri em que o entrevista-
do é o jornalista Rogério Pacheco Jordão, quem deu a primeira matéria
sobre um escândalo envolvendo a prefeitura de São Paulo. O entrevista-
dor usa,inicialmente, o verbo no futuro do pretérito, como uma forma de
atenuar ou deixar certa imprecisão (teria feito), mas corrige, empregando
o marcador NÃO e depois o verbo no pretérito perfeito:
(22)
L1 Rogério... de repente você se viu também inadvertidamente como o pivô de
um grande caso de imprensa que houve em São Paulo... ah... que teve a saída do
jornalista Elio Gáspari do Estadão porque o Elio
teria feito... teria NÃO...
escreveu uma coluna... dando o o crédito ... ao repórter Rogério Pacheco
Jordão...
(Programa Juca Kfouri, com Rogério P. Jordão, Corpus,p. 154)

173
Na entrevista com Débora Bloch, ao formular uma pergunta, Jô
Soares reveste-a de elementos lingüísticos que amenizam a interação
(sem querer ser indiscreto), resguardando sua face e possibilitando a
organização de um contexto em que a distensão é matiz principal:
(23)
L1 e depois... nesse jantar já... já rolou um romance... já começou um clima
assim... gostoso?
L2 dia seguinte...
L1 dia seguinte já teve almoço...
L2 já teve almoço... ((risos))
L1 mas Débora...
sem querer ser indiscreto... no dia seguinte já teve café da
manhã? ((risos))
L2 ahn... ah... cê tá sendo muito indiscreto... eu vou ficar com vergonha...
[
L1 então teve ... ((risos))
L2 eu sou uma mãe de família...
[
L1 ué... e mãe de família não toma café não? ((risos))
(Programa Jô Soares Onze e Meia, com Débora Bloch, Corpus, p 40-41)
Nas entrevistas do NURC/SP que constituem corpus deste tra-
balho (DID161, 242 e 250), a Documentadora as inicia sempre com
uma pergunta que implica resposta pessoal, invasão da privacidade do
outro, atenuando-a com o emprego do futuro do pretérito.
(24)
Doc. C.A. ... você estava dizendo pra gente sobre umas representações
teatrais...
daria para você contar alguma coisa assim sobre essas
representações que você fez...
(SP DID 161: 1-3, p. 38)
(25)
Doc. professor R. ... nós gostaríamos primeiramente que o senhor nos dissesse
assim... tudo o que O senhor souber....
(SP DID 250: 1-3, p. 133)

174
(26)
Doc. bem dona H. eu gostaria de saber... éh... como a senhora entrou pra
esco::la e com que ida::de
Por exemplo?
(SP DID 242: 1-2, p. 148)
Outro procedimento usado com freqüência nessas entrevistas e
que indicam preservação da face é através de marcadores de opinião que
diminuem a responsabilidade do locutor, prevenindo possíveis reações
desfavoráveis do interlocutor (Galembeck, 1997:146)
Considerem-se os exemplos:
(27)
Inf. bem... a missa... eu
... acho melhor não descrever... porque naturalmente eu
teri/gostaria de fazer se fosse fazer uma coisa dessa... eu gostaria de fazer
uma coisa bem feita...
(SP DID 242: 540-543, p. 160)
(28)
Inf. agora... o que eu
acho que melhorou MUITO na missa... nas missas
modernas... em relação às missas antigas... porque uma coisa que eu NÃO
acho que foi bom...
(SP DID242: 595-598, p. 161)
À pergunta do Documentador sobre o que o informante considera
importante para a realização de uma peça teatral, este último responde:
(29)
Inf. então
acho que:: o principal... em matéria assim de espetáculo... não só de
teatro... pode ser um programa de televisão... éh:: espé/por que novela de
televisão faz sucesso?...
(SP DID 161: 375-378, p. 46)
No inquérito 242, a informante usa freqüentemente hedges
(marcadores de planejamento) que modificam o valor ilocutório do enun-
ciado. Ao empregar
quer dizer (linhas 168, 222, 264, 407) e vamos dizer
(linha 216), sinaliza a atividade de planejamento verval, provocando um
efeito de imprecisão:

175
(30)
Inf. ... todo mundo está sem::pre procurando obter o MÁXIMO de rendimento...
quer dizer... é um defeito... que não... não é do profeSSOR::...
(SP DID 242: 166-169, p. 152)
(31)
Inf. é preCI::so desenvolver muito nos professores... é a:::... o... vamos dizer...
o trabalho de MOTIVAR os alunos...
(SP DID 242: 215-217, p. 153)
Considerações Finais
A polidez é, como se pôde observar nas análises, um princípio
regulador da conduta que se situa a meio caminho entre a distância social
e a intenção do locutor, possibilitando a manutenção do equilíbrio social
entre os participantes. Neste sentido, os mecanismos empregados são
estratégias dirigidas a amenizar ou evitar as tensões na interação social.
No que diz respeito às entrevistas sob análise, constatamos que,
dependendo da linha adotada pelo programa de televisão e de quem é a
personalidade entrevistada, a representação da imagem pública pode es-
tabelecer-se de forma diferenciada, ou seja, não se pode predizer qual
tipo de programa conterá uma interação com maior ou menor polidez.
No caso das entrevistas do NURC/SP, observa-se que a represen-
tação da imagem pública pode também estabelecer-se de forma diferen-
ciada, mas assinalam-se os vários modos como os interlocutores partici-
pam na construção do texto, isto é, a interação é frouxa porque o que
importa é deixar o entrevistado falar.
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179
LÍNGUA FALADA: USO E NORMA
Marli Quadros Leite
Considerações iniciais
Analisar a língua, quer na modalidade escrita quer falada, é sem-
pre uma tarefa difícil. Em primeiro lugar, porque não se pode, simples-
mente, tomar o enunciado e começar a fazer conjeturas sobre ele; em
segundo, porque esse enunciado resulta de um complexo de fatores, de
natureza diversa (cognitiva, sócio-interacional, lingüística etc.), que ne-
cessariamente tem de ser levado em conta na análise para que não se
façam afirmações equivocadas sobre o falante ou seu texto
1
.
Relativamente aos assuntos que interessam ser abordados neste
artigo, uso e norma lingüísticos, a situação sócio-interacional é funda-
mental à escolha, pelos usuários, dos itens lexicais e sintaxe para a
formulação do enunciado. Como o nosso objetivo é investigar caracte-
rísticas da fala urbana culta, da cidade de São Paulo, estudamos diálogos
ocorridos entre paulistanos que mantinham entre si graus de intimidade
de níveis médio a acentuado. Desse modo, pensamos flagrar a esponta-
neidade do uso da língua para observar, em amostras da fala culta, algu-
mas realizações lingüísticas discordantes ou não do que se entende por
“bom uso” do português, a fim de verificar se essas escolhas são cons-
(1)
Cf. Goffman (1998: 13) “O falante está conversando com alguém do seu próprio
sexo ou do sexo oposto, subordinado ou superior, com um ouvinte ou com muitos,
alguém ali mesmo ou ao telefone; está lendo um script ou falando espontaneamente;
a ocasião é formal ou informal, de rotina ou de emergência? Note-se que não são os
atributos da estrutura social que estão sendo levados em conta aqui, tais como idade
e sexo, mas sim os valores agregados a estes atributos na forma que são reconheci-
dos na situação imediata enquanto ela acontece.”

180
tantes, quando constituiriam casos de norma, ou variáveis, quando seri-
am apenas usos. Isto é, partimos do pressuposto de que certas expressões
selecionadas, mas presentes em baixa freqüência (menos de 50% do to-
tal realizado) no texto falado, caracterizam usos; outras, selecionadas e
com freqüência alta (50% ou mais do total realizado) no texto falado
caracterizam a norma lingüística.
1. Uso e norma lingüísticos
Há várias possibilidades teóricas para explicar o fenômeno lin-
güístico da norma e, entre elas, as perspectivas: lingüística, pragmática e
antropológica. A primeira vem da teoria de Coseriu (1987), que acres-
centou a noção de norma à dicotomia saussuriana língua/fala, explican-
do que essa norma lingüística é “um sistema de realizações obrigadas, de
imposições sociais e culturais, e varia segundo a comunidade”. A norma
é aquilo que já se realizou e, teoricamente, sempre se realizará no grupo
social; é a tradição à qual todos estão submetidos e obedecem, sem sen-
tir. A qualquer tentativa de ruptura dessa tradição, há reação.
Outra possibilidade de se estudar a norma é pela perspectiva prag-
mática da realização da língua. Assim, segundo Rey (1972), há a norma
do falar objetivo, da língua efetivamente realizada nos diversos grupos
sociais, chamada norma objetiva, segundo a qual entendemos que cada
grupo tem sua própria norma e que, conseqüentemente, há tantas nor-
mas quantos grupos sociais houver. De acordo com esse autor, há outro
tipo de norma que é a norma prescritiva, cujo objetivo é o de impor um
uso extraído da língua literária de épocas sempre anteriores à dos falan-
tes contemporâneos. Essa norma, por estar codificada e ser a de maior
prestígio dentro da comunidade lingüística, é a única que se presta à
realização dos objetivos político-pedagógicos da escola. Finalmente, há
a norma subjetiva que é o ideal de língua a que todos os falantes aspiram.
Ainda podemos falar sobre norma segundo a perspectiva sócio-
antropológica, adotada por Aléong (1983). Segundo esse ponto de vista,
há uma norma explícita, codificada e divulgada por um aparelho de refe-
rência, integrado pela escola, gramáticas e dicionários. Há, ainda, as nor-

181
mas implícitas que são próprias de cada grupo social e, na medida do
possível, tão mutáveis quanto estes.
Para imprimir maior clareza ao texto, evitando misturas termino-
lógicas, optamos por usar esse último conceito de norma; sem, todavia,
desprezar as idéias que subjazem aos demais. Assim, quando nos referi-
mos à norma do “bom uso”, ou seja à norma posta na gramática tradici-
onal, falamos da norma explícita; já quando nos referimos à norma, fala-
mos da norma implícita a um grupo social que, no âmbito desse estudo é
o dos falantes cultos.
A norma é resultado do uso lingüístico de um dado segmento
social e esse uso, por tradicional, é preservado e varia de acordo com as
possibilidades de realização que o usuário faz da língua. Então, um fa-
lante que tem conhecimento da prescrição lingüística, naturalmente, ali-
nhará sua linguagem o quanto possível a ela, a depender da situação de
comunicação. Em tese, portanto, um falante culto, em situação de forma-
lidade, tentará, de um lado, seguir as regras da norma explícita de sua
língua; de outro, atualizar, em termos de léxico, um repertório que, se
não for erudito, também não será vulgar.
A diferença existente entre uso/norma não encontra unanimidade
na literatura lingüística. Preti (1994:51-2), por exemplo, chama a aten-
ção para esse fato quando diz: “Embora nem sempre os autores estejam
de acordo quanto à definição de uso ou norma, todos concordam quanto
ao seu caráter social, visando aos interesses da comunicação no grupo”.
Como se pode observar, o problema de grande parte das definições é a
falta de diferenciação entre uso e norma, ambos tratados como um único
fenômeno.
Hjelmslev (1943:85), entretanto, estabelece a distinção entre uso
e norma, quando objetiva esclarecer as relações existentes entre língua e
fala, no sentido saussuriano. Assim, o autor afirma que “a língua-esque-
ma, língua-norma e língua-uso não se comportam do mesmo modo fren-
te ao ato individual que é a fala”. O ponto de vista adotado por esse autor
é o mesmo defendido por Sechehaye
2
, na obra Les trois linguistiques
sausurriennes, segundo o qual a norma é oriunda do uso e do ato e não
o contrário.
(2)
Cf. Hjemslev (op. cit.)

182
Hjemslev (op. cit. : 87) exprimiu a sua compreensão sobre o fun-
cionamento da língua, em termos da interrelação dos fenômenos ato/
uso/norma frente ao esquema (sistema) lingüístico do seguinte modo:
Norma
Esquema
Uso Ato
O gráfico indica a relação de interdependência entre uso e ato, de
determinação (variável constante) entre norma e uso/ato e também
de determinação entre esses e o esquema. Isso quer dizer que do mesmo
modo que a norma mantém relação de determinação com o uso, o esque-
ma (sistema) mantém relação com a norma, que por sua vez já está influ-
enciada pelo uso. Ineptas são, pois, as reações violentas, que, por vezes,
se observam quanto a determinados usos, porque, se constantes, esses
tendem a se normalizar e, depois, podem alcançar o sistema.
A passagem do uso para a norma não é, entretanto, automática.
Entre aquele e essa há um estágio intermediário a que Coseriu (1979:72)
denomina adoção, isto é, toda inovação tem, primeiro, de ser aceita e
imitada pelos falantes de um determinado grupo social e, depois, se trans-
forma em uso. Pela divulgação, esse uso, por meio dos falantes no de-
sempenho de seus diversos papéis sociais, pode ser adotado e se transfor-
mar em norma.
Juntando as contribuições de ambos os autores, entendemos que
esses estágios podem ser representados da seguinte maneira:
uso
adoção
norma
(sistema)

183
De acordo com Coseriu (1980:123), o sistema é mais amplo do
que a norma, pois essa se realiza a partir das possibilidades oferecidas
por aquele.
3
Entretanto, o mesmo autor admite que a partir do ponto de
vista que se adote para a análise, a norma pode, em certos casos, ser mais
ampla que o sistema e, desse modo, este estar contido naquela
4
. Logo, ao
lado da representação:
SISTEMA
NORMA
é possível a representação:
NORMA
SISTEMA
(3)
“Se a norma contém tudo o que é fato de realização tradicional, o sistema contém as
oposições funcionais: tudo aquilo que na técnica lingüística é distintivo e que, se
fosse diferente, teria (ou seria) uma outra função de língua, ou não teria (nem seria)
nenhuma função na língua respectiva, podendo, eventualmente, tornar-se irreconhe-
cível (ou incompreensível). Portanto, todos os traços que assinalamos como distinti-
vos pertencem ao sistema.” (op. cit.)
(4)
“A norma é, em certo sentido, mais ampla do que o sistema: com efeito ela encerra
também traços não funcionais, enquanto o sistema contém só os traços distintivos
necessários para que uma unidade da língua (quer no plano da expressão, quer no do
conteúdo) não se confunda com outra.” (op. cit.)

184
Para exemplificar, poderíamos recorrer ao caso em que, no portu-
guês, o par poça(ô)-poças(ó) perde a distintividade da oposição vocálica
fechada/aberta para o singular/plural, respectivamente, em favor da pro-
núncia aberta tanto para o singular quanto para o plural, como se ouve com
freqüência
5
. Outros exemplos poderiam ser citados, como a fixação do
masculino para a palavra fim, antes do gênero feminino, e do feminino para
a palavra senhora (com ó, no Brasil). Ao acaso seria possível arrolar não
somente exemplos nos campos da fonologia e morfologia mas também
nos da sintaxe e semântica. No entanto, preferimos explorar dados presen-
tes nos diálogos do Projeto NURC, que constituem nosso corpus.
Embora a mudança seja um fato normal na língua
6
, não deixa de
incomodar os falantes de uma determinada sincronia. Surge, assim, o
sentimento de que a língua está entrando em processo de decadência, e
aparecem manuais em que se aconselha como “falar corretamente”
7
.
Mas, como diz Aitchison (1993:11), “a mudança não afeta a linguagem
em termos de progresso ou decadência”, o que ocorre é simplesmente
um jogo de forças opostas, um fluxo conservador vs. outro inovador, que
co-ocorrem e, assim, permitem à língua manter um ‘equilíbrio entre o
avanço e o retrocesso’.”
A comprovação desse movimento pode-se dar por meio do cotejo
de textos de diversas épocas e, também, como é o nosso objetivo neste
artigo, por meio do confronto entre uso e norma, na língua falada. Esses
são os dois métodos descritos por Aitchison (op. cit.:23-36) para explicar
como os pesquisadores recolhem pistas com o fito de comprovar a mu-
dança lingüística.
Falar sobre essa variação é sempre um trabalho complexo porque
o analista tem de estar atento para uma coleção de fatores que interferem
nas escolhas dos falantes. Nossa tarefa aqui, contudo, não é tão incômo-
da, pois temos o objetivo de, a partir de um corpus em que as variáveis
sociolingüísticas estão controladas, e as sócio-interacionais observadas e
(5)
Pelo menos na fala urbana culta da cidade de São Paulo.
(6)
“Não pode haver nunca um momento de verdadeira quietude na linguagem, como
tampouco no pensamento dos homens, sempre em movimento. Por natureza, está em
contínuo processo de desenvolvimento.” Humbold, W. Apud Jean Aitchison (1993: 9).
(7)
E, especialmente, escrever.

185
consideradas, apresentar a existência da variação na fala culta. Isto é,
nosso intento é mostrar que escolhas, em certos casos, os falantes cultos
fazem quando põem a língua em funcionamento. É claro que se o nosso
corpus está delimitado, é um diálogo gravado com o conhecimento dos
interactantes, e a situação de comunicação está previamente delineada,
os falantes procurarão adaptar-se a ela. Mesmo assim, poderíamos en-
contrar, dentro de cada diálogo, ou entre um diálogo e outro, maior ou
menor formalidade.
Preti (1997:21) explicou que mesmo num diálogo em que os fa-
lantes assumiram uma postura mais formal, em decorrência de fatores
sócio-interacionais, os locutores não apresentaram, em cem por cento
dos casos, escolhas sintáticas coincidentes com a a norma explícita. Des-
se modo, o locutor n.2 (L2) de um dos diálogos entre dois informantes, o
D2-255, tanto usou:
“L2 (...) então a gente fica junto assiste a esse filme... mas em termos de
assim...” (linhas 498-99)
quanto:
“L2 (...) então a gente procura ir... assistir assim os filmes que a gente
considera melhor...” (linhas 39-40)
Por isso, desprezaremos o controle rigoroso da variação de forma-
lidade, dentro de cada diálogo e entre eles, já que a variável maior, diálo-
go entre falantes cultos
8
, as recobre de modo suficiente. E, reafirmamos,
o nosso interesse é verificar, dentro dos limites de nosso estudo, algumas
ocorrências lingüísticas que, de um lado, estando ou não em compasso
com o discurso do “bom uso” podem ser consideradas, na fala de pesso-
as cultas, fatos de norma, e, de outro, o que ainda está no âmbito do uso.
Isso implica dizer que, sob esse ponto de vista, afirmar que certa realiza-
ção, como, por exemplo “assistir aos filmes”, na qual a estrutura sintática
está de acordo com a prescrição gramatical, não é fato de norma implíci-
ta da língua falada culta, pois sua freqüência é baixa, o que configura
apenas um uso.
(8)
Para o conceito de falante culto, cf. Preti (1997:26).

186
A publicação anterior do Projeto NURC/SP
9
traz quatro artigos
em que se discute o problema da norma culta e se tenta conceituá-la e
caracterizá-la. Há entre todos esses textos um ponto em comum: a afir-
mação de que os falantes cultos tanto apresentam realizações lingüísticas
em acordo quanto com em desacordo com a norma explícita. Vejamos,
pelo menos em dois desses artigos, o que dizem os autores. Afirma Preti
(1997:26):
“Em síntese, o que o corpus do Projeto NURC/SP tem-nos mostrado (e
isso já na década de 70) é que os falantes cultos, por influência de
transformações sociais contemporâneas a que aludimos antes (funda-
mentalmente, o processo de democratização da cultura urbana), o uso
lingüístico comum (principalmente, a ação da norma empregada pela
mídia), além de problemas tipicamente interacionais, utilizam pratica-
mente o mesmo discurso dos falantes urbanos comuns, de escolaridade
média, até em gravações conscientes, e, portanto, de menor esponta-
neidade.”
A conclusão a que Barros (1997:42) chega sobre o tema vai nesse
mesmo sentido, vejamos:
“O último aspecto a ser apontado sobre a imagem que os falantes do
Projeto constroem da norma é o de que muitos usos que não são aceitos
pelas gramáticas aparecem nas falas examinadas e não são corrigidos
ou, ao contrário, ‘bons usos’, segundo a gramática, são ‘consertados’.
Algumas hipóteses explicativas podem ser apresentadas para o primeiro
caso: esses usos estão dentro das possibilidades da norma culta na fala,
ainda que não estejam aceitos na norma explícita da escrita; esses usos
assinalam, em sincronia, que mudanças lingüísticas estão ocorrendo,
tal como ensinam Jakobson e Labov; os erros são idiossincrasias do
falantes. Por sua vez, as correções de ‘bons usos gramaticais’, do se-
gundo caso, entram no rol da hipercorreções e mostram, uma vez mais,
a preocupação do usuário em ‘falar bem’.”
Essa amostra, recortada do pensamento dos autores citados, per-
mite afirmar que, é claro, ao tempo em que há grande material lingüístico
(9)
Cf. Preti, D. (org. ), 1997.

187
na fala do usuário culto perfeitamente de acordo com a norma explíci-
ta
10
, há, também, uma porção que dela diverge. Passaremos a examinar,
então, certas expressões que ora aparecem de um modo, ora de outro, na
fala de pessoas cultas, para verificar qual delas pode configurar uma nor-
ma e qual configura um uso. Para tanto, faremos por amostragem um
levantamento estatístico das ocorrências. Entendemos que certa realiza-
ção só poderá ser considerada como caso de norma se atingir, pelo me-
nos, 50% de ocorrências; aquela que estiver abaixo desse percentual con-
figurará o uso.
Para análise, escolhemos algumas expressões que vêm sendo abor-
dadas na literatura lingüística. São elas: emprego das expressões a gente
e nós; emprego do verbo chamar com regência direta e indireta, na acepção
de “dar/ter nome”; emprego do verbo ir, acompanhado das preposições
a, para e em, ou com preposição e adjunto adverbial implícitos, na acepção
de “movimentar-se de um lugar para outro”; emprego do verbo chegar,
acompanhado das preposições a e em nas acepções de “ir ao ponto de” e
“atingir o lugar visado”; emprego da expressão através de e do vocábulo
detalhe; e, finalmente, emprego do pronome sujeito (ele/ela) na posição
de objeto.
2. Análise do corpus
Analisamos três diálogos, integrantes do corpus do Projeto NURC/
SP, ocorridos entre informantes de diferentes faixas etárias, conforme
critérios e classificação definidos pelos pesquisadores do Projeto. As-
sim, os informantes do D2 342 são integrantes da 1ª faixa etária (25 a 35
anos), os do D2 255 da segunda (36 a 55 anos) e os do D2 396 da terceira
(mais de 56 anos)
11
. A atenção à variável idade pode-nos permitir verifi-
(10)
Para conceito de norma na fala urbana culta, cf. Barros (op. cit.) e Brait (1997).
(11)
A distribuição de cada informante por faixa etária é a seguinte: D2 343: Locutor 1 –
homem, 26 anos, solteiro, engenheiro, paulistano, pais paulistanos; Locutor 2 – mu-
lher, 25 anos, psicóloga, solteira, paulistana, pais paulistanos. D2 255: Locutor 1 –
homem, 37 anos, casado, professor, paulistano, pais paulistanos; Locutor 2 – ho-

188
car que ao lado da atitude lingüística conservadora dos falantes mais
idosos, o que é fartamente comprovado nas pesquisas, há também uma
atitude, em certos casos, até inovadora quando esses adotam usos lin-
güísticos que, em tese, seriam dos falantes mais jovens.
Primeiramente, vejamos em que medida a expressão a gente é
empregada pelos falantes, nos diálogos escolhidos para análise. De cada
inquérito, traremos apenas um exemplo de cada caso, dada a alta fre-
qüência das expressões analisadas:
(01)
120 mão-de-obra barata... então isso CHAma... um fluxo de
gente para São Paulo... que muita gente quer poDAR...
para não crescer mais... ((tossiu)) que a gente não
importa ricaço essas coisas né? ricaço vai para o Rio sei lá
qualquer outro lugar certo? ... então ...
(D2 343, linhas 120-24)
(02)
L2 agora de:: uniforme de escola era saia azul mari::nho
blusa branca sapato preto... costume a gente andava de
20 costume... não é?
(D2 396, linhas 18-20)
(03)
passagem ... ahn eu quero crer que uma viagem São Paulo
65 e Manaus ... ou São Paulo a Belém ... a gente costuma ser
mem, 40 anos, casado, advogado e professor, paulistano, pais cariocas. D2 396:
homem, 81 anos, viúvo, dentista, natural de Jundiaí/SP (veio para São Paulo com 3
anos), pai paulista e mãe paulistana; Locutor 2 – mulher, 85 anos, viúva, professora,
natural de Sorocaba/SP (veio para São Paulo com 5 anos), pai paulista e mãe
paulistana. Quanto ao grau de intimidade, sabemos que os informantes dos Inquéri-
tos D2 343 e D2 396 são irmãos e os do D2 255 são professores, colegas que traba-
lham na mesma escola. Para esclarecer, informamos que o “D2” que antecede o
número do inquérito significa “Diálogo entre dois informantes”, um dos tipos de
conversação que integram o corpus do Projeto NURC.

189
MUIto bem atendido e regiamente tratado ...de maneira
assim ... toda especial ... em termos:: particulares eu
(D2 255, linhas 64-7)
Vejamos, também, um exemplo da atualização de nós, em cada
inquérito:
(04)
L1 para nós... como está ficando tudo muito complicado
pode dar um colapso total... então o que eu acho é o
seguinte... pode ser uma questão de probabilidade...
1525 surgir alguma coisa que dê colapso total... vê começa a
(D2 343, linhas 1522-25)
(05)
L2 eu normalmente em fim de semana ... ahn vou para o
clube ... nós temos aí um Clube ... Pinheiros aqui em
São Paulo ... que nós somos sócios entende? ... então eu
370 geralmente jogo voleibol ... no sábado de manhã no
(D2 255, linhas 367-70)
(06)
1295 segui para Lindóia... e::... e nós na na na nossa
família (não sei:: eu que)apanhei essa gripe quando vim
a São Paulo...mas eu eu vim estive um ou dois dias
em São Paulo só apanhei fui não...
(D2 396, linhas 1295-98)
O levantamento das ocorrências das duas expressões, nós e a gen-
te, mostra haver equilíbrio de emprego entre ambas, com vantagem para
a atualização de a gente. Esse é um dado significativo no âmbito da
linguagem culta, ainda mais se consideramos ser o D2 255 um dos mais
formais dos diálogos transcritos pelo Projeto NURC/SP, e o D2 396, um
diálogo ocorrido entre informantes idosos, que, em princípio, seriam re-
sistentes a inovações. Vejamos o que diz o gráfico:

190
Realização de a gente e nós.
Não há como negar, tendo em vista os percentuais, em torno de
50% para ambos os casos, que a gente é uma expressão normal na fala
culta, adotada pelos falantes de todas as três faixas etárias. Não se pode
dizer, portanto, que há preferência pelo pronome pessoal nós, em lugar
da expressão substantiva a gente, no discurso dos falantes do Projeto
NURC/SP; pode-se dizer que as duas expressões fazem parte da norma.
No campo da sintaxe, verificaremos alguns casos de regência ver-
bal, como as dos verbos chamar e ir.
O verbo chamar, na acepção de “dar ou pôr a (alguém) o nome de”
deve, segundo a recomendação da norma explícita, realizar-se por meio,
por exemplo, da seguinte estrutura: verbo + objeto direto + (predicativo).
No Brasil, porém, há estruturas paralelas a essa em que aparece a preposi-
ção de entre o verbo e o objeto direto, ou entre o objeto e o predicativo,
ficando, assim, as estruturas: verbo + de + objeto direto ou verbo +
objeto direto + de + predicativo. Em princípio, a primeira estrutura deve-
ria ser própria do discurso culto, oral ou escrito e, assim, constituir a nor-
ma; as segundas seriam características do discurso popular e, por isso,
poderiam constituir apenas possíveis usos brasileiros dessa sintaxe. O que
observamos, entretanto, por amostragem, é estarem as três estruturas pre-
sentes na fala culta, embora a primeira seja predominante.
No corpus analisado, o verbo chamar foi enunciado em várias
acepções, por exemplo: “convocar”, “atrair”, “invocar o nome de”,
“avocar”, “ter o nome de” e “dar o nome a”, das quais selecionamos
apenas as duas últimas. Os excertos, a seguir transcritos, exemplificam o
emprego de chamar a partir da estrutura.
0%
20%
40%
60%
80%
100%
D2 343 D2 222 D2 396 TOTAL
A GENT E
NÓS
Gráfico 1

191
I. verbo + de + objeto:
(07)
L1 nós estamos com o metrô muito::... sei lá... a gente está
acostumado já de ouvir falar de metrô porque está muito
mas... não não temos metrô ainda metrô tem que ser
uma malha... certo? nós temos uma linha... coitadinha
400 não sei se dá para chamar ela de metrô...
L2 ((riu)) é ((tosse))
(D2 343, linhas 396-400)
(08)
até pouco tempo atrás quando eu mudei para Vale do
345 Cerilu ... isto porque eu tenho um filho ... que nós o::
chamamos de Ceri e o outro de Lu ... como eu sou
geógrafo né?
(D2 255, linhas 344-66)
(9)
315 um bocadinho... (mais) ((buzina))... mais expansivo
lá vinha algum... naquele tempo nós chamávamos de
macamBÉ... macambé era um s/ era um nós dizíamos
que::... ah s/ s/ Portugal exportava para o Brasil duas
coisas... bacalhau... e macambé... macambé era a
(D2 396, linhas 315-19)
Os dados mostram que o verbo chamar seguido de objeto
preposicionado não é norma na fala culta, por ter ficado aquém de 50%
da freqüência, conforme se pode comprovar no gráfico. Mesmo assim,
temos de afirmar que a freqüência da estrutura é significativa, embora
configure apenas um uso. A seguir, apresentamos alguns exemplos em
que há as seguintes estruturas:
II. verbo + objeto
(10)
L1 genial né?
L2 da sociedade entende? então ... eu ahn ... assisti filmes

192
540 dele muito bons entende? Férias de Monsieur Hullot e::
o Trânsito Traffic né? ... que eles chamavam ...
[
L1 Meu Tio
L2Mon Oncle né? Meu Tio ... enfim gosto então de
comédias assim BOAS entende? que apresente uma certa
(D255, linhas 540-44)
(11)
40 jornalista::... jornalista::
L2 o apelido dele que era doutor...
[
L1 doutor Guandê...o apelido
dele... isto era o Alexandre Marcondes Machado... que
era um jornalista... dO Pirralho neste tempo existia
45 aqui um jornaleco chamado Pirralho... entre outros
jornais... então ESte usava isto mas o coMUM::... não
(D2 396, linhas 40-6)
III. verbo + objeto + de + predicativo
(12)
2000 L2 fiNInho fininho...
L1 usavam esse esse::chouriço...
L2 mas a cabeça peSAva porque tinha uma porção de
grampos que não era... dessas::-- não sei como é que
se chamam esse grampo de moderno agora--... eram uns
2005 un::s uns grampos::... compridos de::arame...
(D2 396, linhas 2000-05)
A distribuição do emprego do verbo chamar, nos três inquéritos
que compõem o corpus, pode ser visualizada no gráfico a seguir, no qual
se percebe, na coluna que totaliza os dados, a pequena diferença de fre-
qüência entre as estruturas chamar e chamar de.

193
Realização do verbo chamar, na acepção de “dar/ter nome”.
No D2 255, os falantes usaram, indiferentemente, duas estruturas,
tanto o verbo chamar com regência direta quanto com indireta
12
. Foram
quatro ocorrências, sendo duas sem preposição e duas com preposição.
O D2 343 traz apenas uma ocorrência do verbo, no sentido ora em foco,
transcrita no exemplo (07). O D2 396, conversa entre idosos, foi o que
apresentou maior freqüência do verbo chamar: dezessete ocorrências,
dez realizadas sem preposição e sete com a preposição de.
Para finalizar, devemos dizer que na fala culta de São Paulo a
norma é a estrutura verbo + objeto, e o uso, as estruturas verbo + de +
objeto e verbo + objeto + de + predicativo.
Outros casos de regência verbal a serem investigados são os dos
verbos ir e chegar acompanhados ora da preposição a, como recomenda
a tradição gramatical, ora da preposição em, em desconformidade com
essa tradição. Na linguagem falada urbana contemporânea é comum se
ouvir, em diversas situações, dizer “vou no médico”, “fui na escola”,
“cheguei no ponto máximo da resistência” etc. Vejamos se nos diálogos
0%
20%
40%
60%
80%
100%
D2
343
D2
255
D2
396
TOT
AL
V + DE + P red.
V + DE + OD
V + OD
(12)
Luft (1987:115) diz: Aparentemente, a sintaxe de origem é chamá-lo + Predicativo,
chamá-lo poeta, como dizê-lo capaz, denominá-lo príncipe e sobretudo como o pró-
prio verbo chamar na acepção de ‘pôr/ ter o nome de’: chamá-lo/chamar-se Pedro
de Tal. O de da construção chamá-lo de + Predicativo talvez venha de locuções onde
a proposição introduz um aposto designativo (Epifânio : 141): dar a alguém nome
(Chamá-lo) de poeta. (...)
Quanto ao uso, o português culto do Brasil prefere justa-
mente estas duas construções.” (Sublinhamos)
Gráfico 2
TOTAL

194
do projeto NURC/SP se pode confirmar ser tal emprego uso ou, ainda,
norma.
Em primeiro lugar, analisemos o verbo ir, apenas na acepção de
“movimentar-se de um lugar para outro”.
I. Ir a
(13)
linha artística séria de cinema entende? e assistimos uma
... média aí de uns:: três por mês entende? ( ) geralmente
o dia que a gente vai ao cinema é sexta-feira à noite
...então a gente procura ir ... assistir assim os filmes que
440 a gente considera melhor teatro MEnos que cinema ...
(D2 255, linhas 436-40)
(14)
Doc.mas::... o senhor não ia também a Santos
1775 assim à:: pra::ia?
[
L1a Santos (viemos) uma umas duas vezes... algumas vezes
eu fui a Santos
(D2 396, linhas 1774-78)
II. Ir para
(15)
eu passo ali do lado da faculdade certo?
30 L2 quando você vai pra:: para Aliança né?
[
L1 é quando eu pego o carro... e:: também é
horrível o aspecto... (parece) assim montoeira de
concreto... sem nenhum aspecto humano certo? Os
(D2 343, linhas 20-33)
(16)
L2 eu normalmente em fim de semana ... ahn vou para o
clube ... nós temos aí um Clube ... Pinheiros aqui em
São Paulo ... que nós somos sócios entende? ... então eu

195
370 geralmente jogo voleibol ... no sábado de manhã no
domingo de manhã jogo voleibol ... e:: ... freqüentamos
(D2 255, linhas 367-71)
(17)
640 todos se conheciam... depois de quarenta não agora
( ) a gente vai para a cidade não conhece mais ninguém::
em absoluto... porque::: foi TANta gente vindo de fora
tanto... tantos advenas...
L2 estran:: estrangeiros não é?
(D2 396, linhas 640-44)
III. Ir em
(18)
ele já sabe o caminhozinho saidazinhas especiais ou::
... não vai de carro até lá... vai de metrô e... anda três
480 quarteirões... quer dizer eu não vou na cidade de carro...
(D2 343, linhas 474-80)
(19)
Doc.uhn uhn
775 L2 essas ( ) nós combinávamos de ir na rua Santa Ifigênia...
tinha ( )...
(D2 396, linhas 775-6)
IV. Ir (com preposição e adjunto adverbial implícitos)
(20)
L1 quando eu era noivo ... há dez onze anos atrás ... íamos
385 ao teatro ... QUAse que sistematicamente a ponto de às
vezes optar pelo cinema ... por falta de peças ... novas
em cartaz né? ... mas depois com o:: nascimento dos
filhos e com a dificuldade em deixá-los ...ahn nós
abrimos um:: espaço de tempo muito grande ... sem
390 realmente poder freqüentar teatro ... e isto acabou::
tirando o hábito embora não tivesse tirado o gosto pelo
teatro ... de maneira que:: hoje em dia freqüentamos

196
assim ... com MUIta raridade sobretudo porque neste ...
espaço de tempo ... sobreveio a compra do sítio ...
395 e através dessa compra naturalmente uma outra forma
de motivação ... ahn e conseqüentemente vamos:: ...
MUIto pouco embora:: tanto eu como minha esposa
tenhamos assim uma grande admiração um grande gosto
pelo teatro ... o cinema:: ... ahn já acaba sendo uma
(D2 255, linhas 384-399)
(21)
1765Doc.( )...lá em Santos...
L1 para Santos::... houve uma recepção um baile lá em
Santos... você não foi é Ana que foi...
L2 eu não fui foi Ana ( )... ( )...
[
L1 foi Ana... Ana (Malaide) a Benedita minha
1770 cunhada foi também...
[
L2 foi e:: e Cassiano também...( )...
[
L1 Cassiano é (o tal)
( )vocês não foram...
(D2 396, linhas 1765-74)
Nos exemplos 20 e 21, percebemos claramente que o falante dei-
xou implícitos os adjuntos adverbiais ao teatro e ao baile, respectiva-
mente.
No gráfico, os dados que se referem tanto a ir para e ir a foram
postos sob uma única rubrica (ir a/para); separados ficaram ir, com pre-
posição e adjunto implícitos e ir em. Vejamos a seguir:

197
Realização do verbo ir, na acepção “movimentar-se de um lugar para outro”.
Os dados mostram que é norma a regência ir a ou ir para, pois
predominantes em todos os diálogos analisados, e uso ir em, pois minoritário
em relação a todas as ocorrências do verbo ir, nessa acepção. No D2 343,
houve seis ocorrências ir para (com adjunto adverbial explícito), nenhuma
ir a, e quatro de ir com preposição e adjunto implícitos no contexto, contra
cinco ocorrências ir em. O D2 255 apresentou oito ocorrências de ir a, uma
de ir para, duas de ir com preposição e adjunto implícitos e uma de ir em.
Finalmente, o D2 396 traz seis ocorrências de ir a, três de ir para, nove de
ir com preposição e adjunto implícitos, e uma de ir em. Em suma, para
trinta e nove ocorrências do verbo ir, acompanhado da preposição a, houve
seis com a preposição em. Sem dúvida, vemos que a realização ir em con-
figura apenas uso, sendo norma ir a/para.
O estudo do verbo chegar exige considerar as suas várias acepções.
No sentido de “atingir o termo do movimento”, o verbo é intransitivo e
todas as ocorrências no corpus coincidiram com a norma explícita. O
mesmo se observou quanto às acepções “conseguir” e “alcançar”, quan-
do o verbo é transitivo indireto regido da preposição a, ou desacompa-
nhado dela (às vezes por problemas de sintaxe fonética, como em “chega
um ponto”, em que é quase impossível distinguir se o falante realizou ou
não a preposição a). A concorrência das estruturas chegar em e chegar a
dá-se quanto às acepções: (1) ir ao ponto de; (2) atingir o lugar visado.
Em (1), o verbo apareceu: a. acompanhado da preposição a; b. desacom-
panhado de preposição; e c. acompanhado da preposição em. Quanto a
(2), o verbo apareceu apenas acompanhado da preposição em, o que, em
0%
20%
40%
60%
80%
100%
D2
343
D2
255
D2
396
TOT
AL
Sem prep./adj.
EM
A/PARA
Gráfico 3
TOTAL

198
termos absolutos, é pouco, mas em termos relativos é muito significati-
vo, já que deixa clara a opção do falante
13
.
Vejamos alguns exemplos, um de cada diálogo, da acepção (1),
“ir ao ponto de”:
(22)
960 até mesmo ao cinema ... numa dimensão ... diferente
... que que é a dimensão em que a imprensa chega ... o
mesmo pode ser dito da própria imprensa ... suponho ...
suponho ... que talvez pela sua maior antigüidade no
Brasil... a:: imprensa escrita já chegou a essa sofisticação
(D2 255, linhas 960-64)
(23)
de outra linha ... então neste aspecto ... a imprensa
escrita já cheGOU a este RAmo de sofisticação ... a este
ideAL de sofisticação que pode fazer com que o público
975 venha optar por este ou por aquele órgão ... dos papéis::
(D2 255, linhas 972-75)
(24)
500 subdesenvolvido e diz-se também que ele está crescendo...
se desenvolvendo... parece que está saindo de uma...
condição de subdesenvolvimento para chegar sei lá numa
de desenvolvido... okay?... uma:: um caminho
(D2 343, linhas .500-03)
(25)
se funciona o:: ao mesmo nível sabe... o cara procura
terapia ou digamos a cida::de... procurar uma terapia
porque chegou um ponto assim porque aí é:::...
215 L1 não não não não
L2 é bem tribal né?
(D2 343, linhas 212-16)
(13)
LUFT (1987:117) comenta sobre o emprego do verbo chegar, na acepção de “atingir
o termo do movimento de ida ou vinda; atingir (o lugar visado)// Aproximar-se :
“Verbo de ‘movimento para’, é natural reger ele preposição a diante do complemen-

199
Na acepção (2), “atingir o lugar visado”, entre outros, temos os
seguintes exemplos:
(26)
L2 depois quando chegava em casa :: tirava fora porque::
[
410 L1 (espera aí)...( )...
(D2 396, linhas 409-10)
(27)
perto de Ribeirão Preto... e ele dedicou-se MUIto...
cansou exauriu-se...então embarcou para Ribeirão
Preto... com a mulher... chegou em Ribeirão chegou em
Cresciuma... e ele caiu com a gripe ele e a mulher...
1385 os dois... e ele:: era um sujeito forte(bonito) forte
inteligente... (e gastador)... RIco... e ele não queria tomar
remédio... não queria nem por nada tomar remédio “EU
(D2 396, linhas 1381-87)
O gráfico 4 demonstra, na coluna do total, que, nesse sentido,
tanto o falante seleciona a estrutura chegar + a, quanto chegar + em, o
que pode ser visualizado nas duas porções menores da coluna. A parte
maior da coluna é a que concentra a estrutura chegar + Ø + adjunto
adverbial, sobre as quais não podemos afirmar se houve ou não a reali-
zação da preposição a, já que nesse caso pode ter ocorrido um problema
de sintaxe fonética, o que nos fez isolá-los dos demais.
to de lugar. No Brasil, entretanto, usa-se muito a preposição em (exclusiva, diante de
casa ‘lar’, e não chegar a casa), como aliás também com outros verbos de movimen-
to (...). Pode colaborar para isso a tendência de considerar o estado e o repouso
(‘lugar onde’) em vez do movimento (‘lugar para onde’) (...). As pesquisas de Lessa
(168-71) e Barbadinho (1977:61-2) confirmam amplamente esse brasileirismo nos
autores modernistas. (...) Mesmo assim, penso que em texto escrito culto formal
melhor se ajusta o chegar a.

200
Realização do verbo chegar na acepção “ir ao ponto de”.
Gráfico 5 (acepção 2)
0%
20%
40%
60%
80%
100%
D2
343
D2
255
D2
396
TOT
AL
Se m p r e p .
Prep. Em
Prep. A
Gráfico 4 (acepção 1)
0%
20%
40%
60%
80%
100%
D2
343
D2
255
D2
396
TOT
AL
Prep. EM
Prep. A
Realização do verbo chegar na acepção “atingir o lugar visado”.
A leitura do gráfico 5 tem de ser precedida da informação de que
a realização do verbo chegar, no sentido de movimento até o lugar visa-
do, presente nos inquéritos 343 e 396, foi, exclusivamente, por meio da
estrutura verbo + em + adjunto adverbial. Logo, é possível afirmar ser
essa uma estrutura de norma da fala culta da cidade de São Paulo. No D2
255 não houve nenhuma ocorrência do verbo nesse sentido.
Também interessante de ser notado é o emprego do verbo assistir.
Lembramos já ter falado, neste artigo, sobre o emprego desse verbo, a
propósito dos comentários de Preti (1997), que observou os falantes cul-
tos do D2 255 também se utilizarem de estruturas de “pouco prestígio”,
sob o ponto de vista da norma explícita. Pois bem, a pesquisa da freqüên-
cia de tal verbo mostrou que a opção do falante é empregar o verbo assis-
TOTAL
TOTAL

201
tir desacompanhado da preposição a, no sentido de ver, presenciar. O
exemplo selecionado por PRETI (op. cit.), no D2 255, foi a única ocor-
rência do verbo com a estrutura assistir + a + objeto indireto.
Alguns dos exemplos colhidos foram:
(28)
L1 ((rindo)) (eu estou falando de) cidade...
530 L2 ((rindo)) e daí? a cidade não é também?... a origem das
coisas é a emoção... as aulas as aulinhas lá que eu
[
L1 você mexe...
L2 estou assistindo
L1 fundamentalmente
[
535 L2 oi?
L1 com os indivíduos né? é diferente de mexer com casas
(D2 343, linhas 529-536)
(29)
L2 eu:: ... e minha mulher nós costumamos ir ao cinema ...
assim umas duas ou três vezes por mês né? a gente
escolhe assim ... os filmes melhores:: ... se não ... não
420 tanto por exemplo os que têm maior propaganda como
é o caso do Exorcista agora ... até pelo contrário esse tipo de propaganda assim ...
eu:: ... para eu assistir um filme desse tipo como o Exorcista mesmo é preciso que::
(D2 255, linhas 417-23)
(30)
410 L1 (espera aí)...( )...
L2 tantas horas ali de aulas... não é? vinha um lente...
dava::...ah ah::... dava uma matéria (por
exemplo) História vinha outro né?...
[
Doc. uhn uhn
415 L2 Fí::sica e a gente ficava ali:: assistindo tomando
apontamentos não é?((riso))
L1 apertada (na cadeira)...
(D2 396, linhas 410-17)

202
Percentualmente, o que se observou nos inquéritos analisados foi
o seguinte:
Gráfico 6
0%
50%
100%
D2
343
D2
255
D2
396
TOT
AL
V + OD
V + A + OI
Realização do verbo assistir.
A representação gráfica das ocorrências deixa claro que tanto os
falantes jovens quanto os idosos realizam sem problemas a estrutura
direta do verbo. No D2 343, os falantes empregaram apenas duas vezes
esse verbo, cada uma de modo diferente, uma direta e uma indireta, o
que, mesmo assim, não infirma a nossa idéia de estar normalizada na
fala culta a estrutura direta. Nesse caso, também, vemos que as duas
estruturas existem igualmente, o que aponta para o fato de, nem sempre,
a mudança implicar apagamento da estrutura antiga; simplesmente, uma
estrutura nova ganha maior espaço no paradigma (no âmbito da fala
culta). A estrutura antes aceita como norma passa a integrar o uso lin-
güístico.
Em relação ao léxico, entre tantas possibilidades, escolhemos,
por questão de espaço, apenas dois casos: o emprego de através de e
detalhes, ambas ainda objeto de reclamações por quem exige o “bom
uso” do português
14
. A expressão através de, no discurso da norma
prescritiva, ainda aparece com restrições para o emprego, como nos
exemplos abaixo, no sentido de por meio de ou pelo, sendo a recomen-
dação a de que se selecione uma dessas expressões em vez daquela.
(14)
Cf. Leite (1996) para outros casos de purismo lingüístico.
TOTAL

203
(40)
L2 mais fácil mostrar::... sabe não podia mostrar::...
1360 oralmente::... a coisa o que estava sentindo mostrava
através do corpo... e o hoje o isolamento é tal que a pessoa
...sabe esquiza... é é é mais sério você esquizar
do que você
(D2 343, linhas 135-63)
(41)
ahn ... única e exclusivamente é dar aula ... então ele
pediu ... que:: ... eu preparasse uma aula para ...
apresentar aos passageiros através do ... do microfone
de:: ... de bordo ... ahn numa grande altitude ... e
(D2 255, linhas 121-25)
É curioso observar que mesmo sendo essa uma expressão muito
freqüente no português do Brasil, não é registrada no dicionário de usos
nos sentidos acima comentados. Ferreira (1986) anota as seguintes
acepções: “Através de. 1. De um para outro lado de. (...) 2. Por entre. (...)
3. No decurso de. (...)”, deixando de arrolar aqueles sentidos presentes,
por exemplo, em todos os diálogos do corpus ora analisado. Segundo a
prescrição tradicional, uma das restrições ao emprego de através de em
substituição a pelo/pela é o fato de não se admitir que o agente da passiva
seja introduzido por essa expressão
15
.
A palavra detalhe é também, de certo modo, rejeitada no discurso
da tradição gramatical. Ferreira (op. cit.) traz o verbete sem apresentar-
lhe restrições; outros dicionaristas, todavia, registram o baixo prestígio
por que passou a palavra em certa época. Aulete (1968), por exemplo
diz: “DETALHE, s. m. [gal. condenado pelos puristas mas de grande
vulgaridade na língua] Ação ou efeito de detalhar, // Minudência, cir-
cunstância muito especial, particularidade, pormenor. // Do fr. Détail”.
Também Silva (1987) anota a restrição à palavra: “DETALHE, s.m.
Gal. Pormenor, minúcia.” Nos diálogos, o falante selecionou, para em-
(15)
Em nosso corpus não houve registro do uso de através de introduzindo agente da
passiva.

204
pregar o sentido “pormenores, minúcias”, a palavra detalhe, não restan-
do dúvida de que é norma empregá-la, nos contextos em que se exigem
tais sentidos. Vejamos dois exemplos desse emprego:
(42)
1050 publicações realmente impressas ... até algumas com
alguma riqueza assim de detalhes ... mas o:: o ciclo
colegial é um ciclo marcado assim por uma rapidez muito
(D2 255, linhas 1050-52)
(43)
Doc.o senhor lembra de algum detalhe assim:: de terno que
o senhor gosta::(va) muito?
[
910 L1 bom... nós tivemos aqui entre
outros::... figurinistas ou:: ou alfaiates... o
(Canicceli) e o Vieira Pinto... eram especialistas
e::... então:: digamos( )... aI já existia um
(D2 396, linhas 909-13)
Um fenômeno bastante discutido em relação ao português de Bra-
sil é o da substituição do pronome objeto pelo pronome sujeito, em cer-
tos contextos. No corpus analisado, encontramos poucas ocorrências dessa
troca, embora significativas, se levarmos em conta que esses são diálo-
gos gravados com a permissão e conhecimento dos interlocutores, fato
que os torna muito mais atentos à linguagem que devem usar. Mesmo
assim, dentre os inquéritos examinados, encontramos os quatro exem-
plos abaixo expostos, três no D2 343 e um no D2 255. No D2 396 não
houve, desse fato, nenhuma ocorrência.
Digno de nota é que a estrutura verbo + objeto (pronome oblí-
quo de 3ª pessoa) não foi, tampouco, fortemente recorrida pelos infor-
mantes. No D2 343 os falantes fizeram apenas uma construção desse
tipo, com verbo no infinitivo + pronome clítico:
(44)
585 L1 e se eu (saio) dali ou não basicamente eu posso não
interferir... no processo global... mas eu queria entender

205
esse processo né? porque às vezes eu vejo assim pontes
enormes que:: se gastam... fábulas para construí-la...
desde o projeto até::... a entrega da obra... mas às vezes
590 eu não sinto muito o nexo na ponte...
então eu fico me
(D2 343, linhas 585-91)
No entanto, houve três ocorrências, no D2 343, em que os infor-
mantes escolheram o pronome sujeito para ocupar o lugar do objeto:
(45)
L1 nós estamos com o metrô muito::... sei lá... a gente está
acostumado já de ouvir falar de metrô porque está muito
mas... não não temos metrô ainda metrô tem que ser
uma malha... certo? nós temos uma linha... coitadinha
400 não sei se dá para chamar ela de metrô...
L2 ((riu)) é ((tosse))
(D2 343, linhas 396-400)
(46)
L1 uhn... eu sinto isso não consigo dar um exemplo ((longo
silêncio)) dar um exemplo de um mecanismo que teria
1265 que se repetir que vão tentar não deixar ele se repetir
L2 éh:: o sadomasoquismo na família... sabe você pega
assim:: sem pensar no que veio atrás né? um casal que tem
um relacionamento sadomasoquista... aí quando vêm
os filhos... MUIto por cima assim dizendo como a coisa
1270 funciona... eles vão transmitir isso de uma certa forma né?
(D2 343, linhas 1263-70)
(47)
L2 por exemplo... o que fizeram com o Reich você conhece
ele Wilhelm Reich que foi:: pre::so nos Estados Unidos
e tal... mas as experiências que eles fizeram... ele dizia
que a caixa funcionava... só que... nas bases da coisa
(D2 343, linhas 1636-39)
No D2 255, por sete vezes os falantes escolheram construir a frase
com o pronome oblíquo na posição do objeto, quando apenas uma vez

206
com pronome reto. Note-se, ainda, que no caso dos exemplos 46 e 48 a
estrutura sintática apresenta-se com o verbo deixar no infinitivo e pode-
ria ser interpretada como uma oração reduzida de infinitivo, que, em
nível profundo, equivaleria a “ não deixar que ele se repita” e a “não
deixaram que ele comprasse”, respectivamente, na qual ele é o sujeito da
oração. Os exemplos, porém, são pertinentes ao nosso estudo tendo em
vista a entonação dos falantes estar conforme a nossa primeira interpre-
tação, ou seja, verbo e complemento são enunciados de modo tão solidá-
rio que até formam um vocábulo fonológico. Leia-se o exemplo:
(48)
660 como Sílvio Santos por exemplo ... que hoje quase é
DOno de um canal de televisão ... só não é dono parece
que à última hora não deixaram ele comprar um canal
de televisão ... mas ele no fim é MAIS do que dono
porque ele domingo inteiro ele tem um programa num
(D2 255, linhas 660-64)
A baixa freqüência desse emprego indica que a realização do pro-
nome sujeito na posição de objeto está apenas em nível de uso na fala
culta, não podendo ser considerado como norma já que aparece, ainda,
em posição minoritária. O gráfico permite boa visibilidade da questão:
Gráfico 7
0%
20%
40%
60%
80%
100%
D2
343
D2
255
D2
396
TOTA
L
V + P r. suj.
V + P r. o bj.
Realização de verbo acompanhado de pronome objeto ou sujeito.
TOTAL

207
Considerações finais
Os conceitos de uso/norma mostram-se úteis para a análise da
língua falada, por possibilitar que se expliquem certas opções lingüísti-
cas do usuário. Os casos de norma são aqueles de alta freqüência, seleci-
onados naturalmente pelos falantes, como: a. a expressão substantiva a
gente, com valor pronominal; b. o pronome nós, ao lado de a gente; c. o
verbo assistir empregado com regência indireta; d. o verbo chegar acom-
panhado da preposição em, na acepção de “atingir o lugar visado”; e. a
expressão através de e do vocábulo detalhes; f. o verbo chamar na estru-
tura chamar + objeto direto; g. o verbo ir acompanhado das preposi-
ções a e para. Os casos de uso foram observados em relação: a. ao verbo
assistir com regência indireta; b. ao verbo chamar nas estruturas cha-
mar + de + objeto e chamar + objeto + de + predicativo; c. do verbo
chegar, na acepção de “atingir o lugar visado”, acompanhado da preposi-
ção a; d. ao emprego do pronome sujeito na posição de objeto.
Esse recorte do discurso dos falantes cultos mostra que, em certos
pontos, a linguagem de jovens e idosos é coincidente quanto a empregos
considerados “inovadores”. Vimos aqui, por exemplo, que em relação
ao uso de nós/agente todos os falantes recorreram igualmente às duas
formas, e em relação ao verbo chamar a preferência dos idosos foi pela
regência indireta, e, quanto a chegar, a opção desses foi pelo emprego da
preposição em para compor o adjunto adverbial, o que, de certo modo,
rompe a expectativa de que o idoso culto está sempre mais próximo do
considerado “bom uso”, e o jovem, distante.
Uma pesquisa maior sobre o tema poderá demonstrar, diacronica-
mente, como um uso é adotado, generaliza-se, alcança a norma e provo-
ca a mudança lingüística ao alterar o sistema. Por enquanto, o nosso
objetivo foi apenas o de demonstrar possível diferenção entre uso e nor-
ma, em uma amostra da linguagem culta paulistana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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208
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209
O EMPREGO DO SUBJUNTIVO E DE
FORMAS ALTERNATIVAS NA FALA CULTA
Paulo de Tarso Galembeck
Considerações iniciais
As gramáticas de Rocha Lima (1960), E. Bechara (1980), e
Cunha e Cintra (1985) coincidem genericamente ao mencionarem as
modalidades de oração em que o modo subjuntivo é empregado
1
:
a) Orações Independentes:
•Introduzidas por talvez:
(01)
“Talvez seja ele a pessoa indicada para o cargo.”
•Com valor hipotético ou optativo:
(02)
“Seja o triângulo ABC.”
(03)
“Bons ventos o levem.”
b) Orações subordinadas adverbiais:
•Causais (introduzidas por não que ou não porque, expressões
que indicam a causa negada):
(1)
Os exemplos citados nesta seção, “Considerações iniciais”, são de autoria do autor
do trabalho.

210
(04)
“Saí correndo, não porque estivesse com pressa, mas porque me
sentia constrangido naquela sala.”
(05)
“Mesmo que você não goste de literatura, é preciso conhecer os
clássicos.”
•Condicionais (condição hipotética ou irrelizável):
(06)
“Caso você não tenha interesse em adquirir o livro, posso concelar
o pedido.”
•Finais:
(07)
“Expus-lhe minhas razões, a fim de que ele pudesse julgá-las.”
•Conformativas, que enunciam uma eventualidade ou possibilidade:
(08)
“Farei tudo conforme você ordenar.”
•Temporais que, igualmente, enunciam uma eventualidade ou
possibilidade, ou um fato não-realizado:
(09)
“Logo que puder, encaminhe-me o relatório.”
(10)
“Dirija com cuidado, sempre que houver aglomeração de pessoas.”
(11)
“Vamos embora, antes que ela nos veja.”
•Consecutivas, que exprimem não um fato real, mas uma finalidade
ou meta:
(12)
“Vou contratar um auxiliar, de modo que possamos dar contas dos
pedidos.”

211
•Proporcionais, com valor de eventualidade:
(13)
“À medida que você receber os pagamentos, liqüide as faturas em
aberto.”
•Comparativas de valor hipotético, introduzidas por como se:
(14)
“Ficou imóvel, como se fosse uma estátua.”
c) Orações subordinadas adjetivas explicativas:
•Denotadoras de eventualidade ou possibilidade:
(15)
“O operário que se atrasar será descontado.”
•Que combinam as noções de finalidade e conseqüência:
(16)
“Procuro um médico que me atenda de manhã.”
d) Orações subordinadas substantivas, ligadas a nomes,
verbos e locuções que denotam ordem, proibição,
possibilidade, irrealidade:
(17)
“Quero que você não se atrase.”
(18)
“O estatuto contém, de forma explícita, a proibição de que os
docentes em tempo integral acumulem cargos.”
(19)
“É possível que nenhum candidato obtenha a maioria absoluta.”
(20) “É impossível que você atenda tantos clientes num único dia.”

212
Verifica-se, contudo, que o emprego do subjuntivo nos tipos men-
cionados constitui uma possibilidade ou virtualidade, uma vez que o
emprego desse modo só constitui uma regra categórica nas orações inde-
pendentes mencionadas: nos demais tipos, as formas do subjuntivo alter-
nam-se com o uso dos tempos do indicativo e das formas nominais do
verbo, especialmente do infinitivo. A possibilidade da citada alternância
conduz às seguintes indagações: a) em que modalidades de oração esse
modo é efetivamente empregado?; que fatores determinam o seu empre-
go ou o uso de uma forma alternativa?
Nota-se, ademais, que as citadas regras foram estabelecidas a
partir do uso escrito da língua, conforme pode ser deduzido dos exemplos
apresentados pelos três gramáticos mencionados. Cabe, então, verificar
se essas regras são efetivamente realizadas na língua falada, ou melhor,
se há correspondência entre o uso prescrito e a realização em situações
de fala.
Esse trabalho tem por objetivo principal verificar a presença do
subjuntivo em textos representativos da fala culta de três capitais brasi-
leiras (São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador). A esse objetivo correspon-
dem duas hipóteses: a) as regas do emprego do subjuntivo na fala não
coincidem necessariamente com as regras propostas para a escrita; b) o
emprego do subjuntivo é determinado por razões semânticas e discursivas,
qual seja, a necessidade de exprimir a possibilidade, a incerteza, a
irrealidade. Como objetivo complementar, coloca-se o seguinte: estudar
o emprego do subjuntivo a partir de três variáveis: sexo, faixa etária,
local de origem dos informantes. Esse último objetivo funda-se na hipó-
tese de que o emprego das formas do referido modo é dependente das
citadas variáveis.
Para a consecução dos objetivos propostos, foram examinadas, no
corpus, todas as ocorrências dos tipos de orações mencionados no início
desta exposição, sendo essas ocorrências divididas em dois grupos: ora-
ções em que se emprega o referido modo, e aquelas em que predomina o
emprego de uma forma alternativa (indicativo ou formas nominais, espe-
cialmente o infinitivo). Esse exame permitiu verificar em que tipos de
oração o subjuntivo é correntemente empregado na fala das três capitais.
Além disso, as ocorrências levantadas foram divididas em três grupos,
de acordo com as variáveis citadas.

213
O corpus deste trabalho é constituído pelos inquéritos do tipo DID
(Diálogos entre Informante e Documentador) nº. 161, 208, 234, 242,
250, 251 (NURC/SP, publicados em Preti e Urbano (1988)); nº. 12, 84,
112, 233, 261, 317 (NURC/RJ, publicados em Callou e Lopes (1993));
nº. 100, 125, 159, 231, 277, 283 (NURC/Salvador, publicados em Mota
e Rollemberg (1994)). Esses inquéritos perfazem 819min. (13h39) de
gravação e estão distribuídos eqüitativamente entre ambos os sexos e as
três faixas etárias dos informantes do Projeto NURC (1ª. faixa: 25 a 34
anos; 2ª. faixa: 35 a 54 anos; 3ª. faixa: 55 anos em diante). Cabe acres-
centar que as análises efetuadas levaram em conta as seguintes variáveis:
a origem, o sexo e a faixa etária dos informantes.
É preciso reiterar a hipótese deste trabalho: o emprego do subjun-
tivo decorre de fatores semânticos ou discursivos. Essa observação é
necessária, pelo fato de a classificação das orações vigente misturar cri-
térios sintático-funcionais (orações independente, coordenada, subordi-
nada, adverbial, substantiva, adjetiva) e critérios semânticos (orações
adversativa, conclusiva, causal, condicional...). O emprego de classifica-
ções relacionadas à sintaxe não deve ser visto como uma mistura de
critérios, mas como uma referência à classificação vigente.
1. Emprego do subjuntivo e das formas alternativas,
de acordo com o tipo de oração
A tabela a seguir mostra o emprego do subjuntivo (S) e das for-
mas alternativas (NS) nos diversos tipos de orações. Trata-se de uma
tabela geral, apresentada com a finalidade de mostrar a freqüência do uso
do subjuntivo e das formas que podem substituí-lo.

214
Tabela I
Emprego do subjuntivo, de acordo com a modalidade de oração
SNS
Tipo de Oração N % N % Total
1. Adverbiais
causais 07 100 0 – 07
comparativas 05 100 0 – 05
concessivas 35 80 09 20 43
condicionais 109 63 64 37 173
conformativas 14 93 01 07 15
consecutivas 04 80 01 20 05
finais 21 11 175 89 196
proporcionais 0 - 01 100 100
temporais 10 48 11 52 2
2. Adjetivas 98 54 84 46 182
3. Substantivas
subjetivas 27 67 13 33 40
objetivas diretas 67 60 44 40 113
objetivas indiretas 22 61 14 39 36
compl. nominais 04 09 39 91 43
predicativas 06 86 01 14 07
apositivas 01 100 0 – 01
4. Independentes
Com valor de dúvida 33 100 0 – 33
Total 463 51
446 49 909
Obs.: S – Subjuntivo; NS – Não-Subjuntivo
O quadro anterior revela, inicialmente, a desigualdade numérica
no emprego das várias modalidades de orações: alguns tipos, com efeito,

215
têm uma representatividade bastante reduzida, como as adverbiais
causais, conformativas, consecutivas, proporcionais e as substanti-
vas predicativas e apositivas. Devido a essa desigualdade, optou-se
por centrar a análise apenas nas modalidades de orações cujas ocor-
rências totalizassem, pelo menos, 20 orações, número que corres-
ponde a, aproximadamente, 2% do total de casos levantados: adver-
biais concessivas, condicionais, finais e temporais; adjetivas; subs-
tantivas, subjetivas, objetivas diretas, objetivas indiretas e completivas
nominais; independentes.
Outra verificação reside no fato de ocorrer o predomínio (em grau
variável) do subjuntivo em algumas modalidades de oração: adverbiais
concessivas e condicionais, substantivas (exceto as completivas nomi-
nais) e independentes. Já nas adjetivas e nas adverbiais temporais, há
equilíbrio entre o uso do subjuntivo e das formas alternativas; nas ora-
ções finais e nas substantivas completivas nominais prevalecem larga-
mente as construções infinitivas. Como o subjuntivo predomina em al-
gumas modalidades (mas não em outras), esta seção será desdobrada em
três itens; o primeiro é dedicado aos exame das orações em que prevale-
ce o uso do subjuntivo ou em que há equilíbrio entre esse modo e as
formas alternativas, ao passo que no segundo se discutem as orações em
que predominam as formas alternativas. No terceiro item, é feito um
balanço do emprego do subjuntivo nas várias modalidades de orações.
1.1 – Orações em que predomina o subjuntivo ou nas quais se verifi-
ca equilíbrio entre o subjuntivo e as formas alternativas
Esta seção focaliza as orações em que predomina o emprego do
subjuntivo (concessivas, condicionais, substantivas, independentes de
valor dubitativo) e aquelas em que há equilíbrio entre o subjuntivo e as
formas alternativas (temporais e adjetivas).
1.1.1 – CONCESSIVAS: exprimem, geralmente, um obstáculo supera-
do ou uma expectativa que não se confirma, o que faz com que elas se
relacionam com a noção de irrealidade:

216
(01)
(...) então a minha mãe assina exclusivamente J. C.... daí meu avô jamais
se conformou com isso muito embora tenha::falecido a... com quase
oitenta anos (...)
(NURC/SP, 208, L. 609-611)
.
(02)
(...) sou bastante independente... em matéria de religião... embora eu seja
uma pessoa de muita... crença (...)
(NURC/SP, 242, L. 365-366)
O emprego do subjuntivo, nos exemplos citados, decorre de o fato
expresso pelo verbo contrariar os pressupostos, definidos pelo senso co-
mum ou pelas expectativas normalmente aceitas: no exemplo 01, o em-
prego de tenha falecido relaciona-se com quebra da pressuposição de
que a idade forma as pessoas mais pacientes ou tolerantes; no exemplo
02 também há quebra de expectativa: espera-se que as pessoas indepen-
dentes em assuntos religiosos não tenham uma fé intensa. Como recurso
para assinalar a quebra da expectativa, os informantes optam por uma
forma verbal que assinala a irrealidade.
As ocorrências de orações concessivas em que se emprega o
indicativo correspondem a orações introduzidas por se bem que:
(03)
(...) às vezes o ... a branca é que faz o black-power... né? se bem que ele
já está caindo (...)
(NURC/RJ, 317, L. 611-612)
O indicativo é empregado porque a oração se bem que ele já está
caindo exprime antes ressalva – valor próprio das adversativas – que
concessão. Além disso, essa oração representa uma digressão baseada
no enunciado (Dascal e Katriel, 1982), como tal entendido o enunciado
digressivo que apresenta algum tipo de relação de conteúdo (semântico
ou pragmático) com o enunciado principal. Trata-se de um acréscimo ou
observação paralela, com a qual o informante procura demonstrar co-
nhecimento da situação, e não constitui um enunciado que esteja, relaci-
onado com a expressão da realidade.

217
1.1.2 – CONDICIONAIS: constroem-se com o subjuntivo as orações
condicionais que exprimem hipótese ou irrealidade:
(24)
(...) se houver algum problema de incêndio só tem uma escada... né?
(NURC/RJ, 84, L. 520-521)
(25)
(...) se você quiser que eu descreva essa casa... eu também descrevo (...)
(NURC/RJ, 233, L. 97-98)
Nos dois exemplos anteriores, o emprego do subjuntivo está rela-
cionado à expressão da hipótese ou eventualidade. Não é um fato real,
mas algo que pode ocorrer ou não. As orações condicionais em que se
emprega o indicativo constituem os casos de condicionalidade real ou
factual (Fávero, 1991). Nelas não há propriamente a expressão do hipo-
tético ou do irreal:
(26)
(...) se a gente vê... você lê Machado de Assis... você sente que o Rio de
Janeiro não podia ser tão quente (...)
(NURC/RJ, 233, L. 212-213)
Mira Mateus et alii (1983) consideram o fato expresso pela condi-
cional de valor real uma condição suficiente para que se realize o que é
expresso na oração principal. Trata-se, pois, da expressão da realidade: o
fato de alguém ler Machado de Assis é tido como algo que conduz, ne-
cessariamente, à percepção de que o Rio de Janeiro não podia ser uma
cidade muito quente. Ainda a esse respeito, Gili y Gaya (1972) admite
que as orações condicionais construídas com verbo no indicativo expri-
mem, por sua vez, a condição real, enquanto aquelas que tem o verbo no
subjuntivo indicam a condição irreal
2
.
(2)
A observação de Mira Mateus et alii – conquanto feita para a língua escrita – aplica-se
ao português falado. O mesmo pode ser dito de Gili y Gaya, acrescentando-se, nesse
caso, que as observações válidas para o espanhol também se aplicam ao português.

218
Com orações condicionais de valor modal (introduzidas por sem/
sem que), é mais freqüente o uso de infinitivo, pois nelas não é nítida a
expressão da hipótese:
(27)
(...) eu não podia fazer a primeira comunhão sem saber algo da doutrina
(...)
(NURC/RJ, 261, L. 635-636)
O infinitivo é empregado porque o conhecimento da doutrina é
tido como algo real, necessário para fazer a primeira comunhão. Não há,
pois, expressão da irrealidade ou hipótese.
1.1.3 – SUBSTANTIVAS: não foi feita a distinção entre as várias fun-
ções das orações substantivas (com exceção das completivas nominais),
pois o que determina o emprego do subjuntivo não é o tipo da oração,
mas o valor do verbo, nome ou expressão que “pede” a subordinada.
Com verbos, nomes e expressões que indicam ordem, pedido, suposi-
ção, possibilidade, apreciação é de regra o emprego do subjuntivo, uma
vez que, nesse caso, não há expressão da realidade, mas da suposição ou
da possibilidade.
As completivas nominais serão discutidas no item 1.2.2, já que
nelas predominam (9% das ocorrências) construções infinitivas.
(28)
(...) e é possível que ele esteja próximo do fim, né?
(NURC/SSA, 100, L. 631-632)
(29)
(...) ele me pediu que eu trocasse os títulos (...)
(NURC/SP, 242, L. 95-96)
(30)
(...) então eu falei para minhas crianças que absolutamente não
acreditassem nessas histórias (...)
(NURC/RJ, 84, L. 411-412)

219
Nos três exemplos anteriores, a presença do subjuntivo decorre
de verbos e locuções indicativas de possibilidade ou pedido. É preciso
ressaltar, porém, que além da presença desse traço semântico, o empre-
go do subjuntivo decorre, em caráter subsidiário, da presença de um
sujeito explícito (exemplos 08 e 09) ou elíptico (exemplo 10, no qual o
termo minhas crianças não figura na oração subordinada. Nos casos de
sujeito indeterminado, porém, predominam as ocorrências de infinitivo
(85% dos casos), como é ilustrado pelos três exemplos seguintes:
(31)
(..) é realmente necessário fazer o metrô (...)
(NURC/SP, 100, L. 315-316)
(32)
(...) e acho até IMpoSSível uma pessoa... ... de uma inteligência... normal
duvidar... de uma força superior (...)
(NURC/SP, 242, L. 367-368)
(33)
(...) mas acho válido você botar a criança o mais cedo possível na escola
(...)
3
(NURC/SSA, 231, L. 302-303)
Nos exemplos anteriores, verifica-se que a noção de apreciação
ou obrigatoriedade apresenta-se um tanto diluída, uma vez que não é
produzida por um ser determinado, mas por um todo indefinido. Quando
não existe intenção clara de manifestar os valores inerentes ao subjunti-
vo, o falante opta pelo emprego do indicativo:
(34)
(...) não posso dizer propriamente que eu pratiquei esporte (...)
(NURC/SSA, 259, L. 181-182)
(3)
Você, no citado exemplo, não é empregado como pronome de tratamento, mas como
recurso para indeterminação do sujeito.

220
(35)
(...) não vou dizer que ela [a Justiça do Trabalho] falha sempre (...)
(NURC/SP, 250, L. 91)
Nos dois exemplos citados, o emprego do subjuntivo é possível
(“Não posso dizer que eu tenha praticado esporte”; “Não vou dizer que
ela falhe sempre”), mas os informantes utilizam o indicativo como forma
de assinalar que nas respectivas asserções o valor de dúvida ou possibili-
dade acha-se atenuado ou diminuído. Por isso mesmo, nos exemplos 14
e 15, não há como falar em expressão da realidade ou da fatualidade
oposta à dúvida ou a hipótese; aliás, só é possível falar em expressão da
realidade quando ocorre – junto do verbo no indicativo – modalizador de
certeza ou afirmação:
(34a)
(...) não posso dizer propriamente que eu de fato pratiquei esporte (...)
(35a)
(...) não vou dizer que ela realmente falha sempre (...)
O acréscimo das expressões adverbiais sublinhadas constitui um
teste que permite verificar o valor da realidade dos verbos no indicativo.
Não se trata de ocorrências reais, mas de uma simulação realizada com a
finalidade de assegurar maior objetividade à analise realizada. Em outros
termos: o teste realizado torna a exposição mais clara, à medida que traz
uma justificativa que não se baseia exclusivamente na intuição do autor
do trabalho.
1.1.4 – ORAÇÕES INDEPENDENTES: o subjuntivo é empregado
em todos os casos de orações independentes iniciadas por talvez. Esse
advérbio, aliás, determina de forma categórica o emprego desse modo:
(36)
(...) talvez... fosse por isso... né eram poucas as moças (...)
(NURC/RJ, 261, L. 504-505)

221
(37)
(...) quer dizer pelo menos pra nós é mais novo né? talvez num outro país
mais adiantado... não seja (...)
(NURC/SP, 251, L. 326-328)
Nos dois exemplos anteriores, o verbo no subjuntivo e o advérbio
talvez constituem modalizadores de dúvida ou de incerteza.
No inq. 250 (NURC/SP) foi localizado um único exemplo de ora-
ção independente de valor optativo:
(38)
(...) e a gente não pode fiar como a velha figura do mineiro... os meus
amigos mineiros que me desculpem (...)
4
(NURC/SP, 250, L. 394-396)
Essa é a única ocorrência desse tipo de oração, fato que, por si,
impede considerações mais aprofundadas a esse respeito.
1.1.5. TEMPORAIS: nas orações adverbiais temporais e nas adjetivas
existe equilíbrio entre o emprego de subjuntivo e de outras formas de
expressão (tempos do indicativo e formas nominais).
As orações temporais que normalmente se constroem com o subjuntivo
são as que exprimem um fato futuro, não realizado ou eventual:
(39)
(...) e é um camarada que eu posso ter confiança e quando ele me disser
“eu fiz o serviço”, fez mesmo (...)
(NURC/SSA, 277, L. 465-467)
(40)
(...) depois que ele
ga/ganhar uma certa velocidade... eu vou passando a
segunda... terceira (...)
(NURC/RJ, 112, L.519-521)
(4)
O que não tem função sintática, pois é expletivo: “os meus amigos mineiros me
desculpem”.

222
Verifica-se, no entanto, que a eventualidade ou possibilidade tam-
bém podem ser expressas também por orações infinitivas:
(41)
(...) ele tem condição de vir em vôo planado muito... muitos quilômetros...
até conseguir um lugar ideal para pousar (...)
(NURC/SSA, 277, L. 590-592)
No corpus foi localizada apenas uma outra ocorrência análoga à
anterior. O pequeno número de ocorrências representa, por si, um fato
que impede considerações mais consistentes a esse respeito. O indicativo
é empregado nos casos em que o falante exprime um fato futuro tido
como real ou certo:
(42)
(...) [esses produtos você] compra quando termina ou quando quebra
(...)
(NURC/RJ, 84, L. 644)
A opção pelo indicativo ou subjuntivo manifesta a indicação da
atitude do próprio falante (modalidade): certeza (indicativo) ou possibi-
lidade, incerteza (subjuntivo).
1.1.6 – ADJETIVAS: todas as orações adjetivas que se constroem
com o subjuntivo possuem o antecedente com o traço [-definido]
5
. Esse
traço, aliás, reforça a idéia de eventualidade, irrealidade ou conjectura:
(43)
(...) não me deram nenhuma notícia que tivesse... assim... um museu em...
lá em Natal (...)
(NURC/SP, 161, L. 90-93)
(5)
Esta particularidade foi ressaltada pelo Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho, durante
a apresentação da comunicação. “O subjuntivo em elocuções formais (Projetos NURC/
SP e NURC/RJ)” (I Congresso Internacional da ABRALIN, Salvador, setembro de
1994).

223
(44)
(...) quem faz teatro qualquer papel que lhe seja conferido ele deve saber
interpretar (...)
(NURC/SP, 161, L. 90-93)
Essas orações exprimem possibilidade ou eventualidade e pode-
se verificar, aliás, que é possível inserir um modalizador que exprima
esses valores (“... nenhuma notícia que pudesse ter”; “qualquer papel
que eventualmente lhe seja conferido”). A exemplo do que foi discutido
nos exemplos 14a e 15a, cabe ressalvar que a inclusão desses modaliza-
dores não é um dado real, mas uma simulação, realizada com a finalida-
de de tornar a explicação mais clara.
Quando o antecedente tem o traço [+ definido], o subjuntivo –
embora possível – não é empregado, pois a noção de possibilidade ou
eventualidade não é tão evidente:
(45)
(...) em geral a gente pro-cura um... o dentista de quem a gente tem
recomendação de:: recomendações de colegas (...)
(NURC/SP, 251, L. 217-219)
(46)
(...) antigamente o vestibular era muito limitado... somente a... ao
conhecimento do estudante em relação à área que ele ia estudar (...)
(NURC/SSA, 231, L. 829-831)
Nos exemplos anteriores, esse modo é possível de ser empregado
(“a gente tenha”; “ele fosse estudar”) , mas os informantes optam pelo
indicativo, como forma de assinalar que se trata de um evento certo e real.
As orações examinadas neste item 1.1 correspondem aos dois va-
lores básicos assinalados por Gili y Gaya (1972) para o subjuntivo: sub-
juntivo potencial (relacionado com a expressão da dúvida, da contingên-
cia, da possibilidade) e subjuntivo optativo (referente à manifestação de
desejos e necessidades). Incluem-se nos casos de subjuntivo potencial as
orações condicionais, as concessivas, as temporais (particularmente as
que manifestam fatos que se projetam para o futuro), as substantivas

224
(ligadas a verbos e nomes que exprimem dúvida ou desconhecimento,
emoção ou temor, possibilidade), as adjetivas, relacionadas à expressão
da dúvida ou da possibilidade, as orações independentes de valor hipoté-
tico ou introduzidas por talvez). Já o subjuntivo optativo manifesta-se
particularmente nas substantivas ligadas a verbos e nomes que expri-
mem desejo ou necessidade.
Esses dois valores básicos manifestados pelo subjuntivo não es-
tão claramente manifestados nas orações finais, nem em certas substan-
tivas completivas nominais; desse modo, prevalece nessas orações o
emprego do indicativo ou do infinitivo.
1.2 – Orações em que prevalece o uso do indicativo ou de formas
nominais do verbo
1.2.1 – FINAIS: conforme já foi visto na Tabela I, o subjuntivo é empre-
gado em apenas 11% das cocrrências de orações finais. Em 89% dos
exemplos levantados empregam-se formas alternativas, representadas,
nesse caso, pelo infinitivo:
(47)
(...) quando ele chegou lá... nem estrada não tinha pra ele entrar na nossa
fazenda (...)
(NURC/SP, 251, L. 110-111)
(48)
(...) elas teriam que ler muita coisa para obter alguma informação sobre a
aula dada (...)
(NURC/SP, 242, L. 72-73)
Os dados do corpus revelam que todas as orações finais em que é
empregado o subjuntivo têm, necessariamente, sujeito diverso da oração
principal:
(49)
(...) e LÁ:: eu senti a falta... de um material... de um texto... para

225
assim dizer... para que... os alunos tivessem uma ba::se para aquela
cadeira (...)
(NURC/SP, 242, L. 61-65)
1.2.2. Orações substantivas completivas nominais
Essas orações são tratadas à parte das que exercem outras fun-
ções, porque nelas se verifica o predomínio das construções infinitivas e
do indicativo. Como já foi visto, aliás, estas orações se afastam da ten-
dência revelada pelo conjunto das orações substantivas, nas quais preva-
lece o emprego do subjuntivo.
(50)
(...) foi um jeito de acabar... com o mercado de Água dos Meninos na
Bahia (...)
(NURC/SP, 208, L. 280-281)
(51)
(...) eu tenho a impressão que o ensino vai bem (...)
(NURC/SSA, 231, L. 206-207)
O subjuntivo não é empregado, nos exemplos anteriores, por-
que essas orações complementam nomes que não denotam ordem,
possibilidade, hipótese, etc. Além disso, nota-se que nessas constru-
ções, o emprego do subjuntivo é possível, conquanto o resultado sejam
frases canhestras, de pouca aceitabilidade: “foi um jeito para que se
acabasse”; que o ensino vá bem”.
Luft (1975) classifica construções análogas às anteriores como
orações substantivas com função de adjunto adnominal. O problema
dessa classificação é que as citadas orações têm nítido valor integrante,
isto é, elas completam os termos a que se ligam, não sendo, pois,
acessórios. Por causa disso, optou-se, neste trabalho, por incluí-las
entre as completivas nominais.
As orações completivas nominais em que se emprega o subjun-
tivo são aquelas que estão ligadas a substantivos e adjetivos que, pelo
seu valor semântico, “requerem” esse modo:

226
(52)
(...) e uma infinidade de outros serviços que se tornam necessários pra que
haja um meio ambiente favorável a que a pessoa possa viver (...)
(NURC/SSA, 100, L. 531-534)
A opção pelo emprego do subjuntivo manifesta possibilidade ou
incerteza. Essa opção, aliás, torna-se mais evidente quando se verifica
que o falante poderia empregar o infinitivo, forma na qual os citados
valores tornam-se menos nítidos: “necessários pra haver”; “favorável à
pessoa poder viver”.
1.3 – Um balanço do emprego do subjuntivo nas diversas modalida-
des de orações
O exame que se empreendeu revela que o emprego do subjuntivo
é dependente, sobretudo, do valor semântico da oração (no caso das ad-
verbiais concessivas e condicionais) ou do termo a que a oração se liga
(no caso das substantivas). Dessa forma, não é pertinente a observação
de Câmara Jr. (1974: 360 e 361), segundo a qual o subjuntivo “só apare-
ce em determinados tipos frasais por uma servidão gramatical”. Em ver-
dade, o emprego do subjuntivo tem motivações semânticas e é particu-
larmente nítido nos casos em que são expressos os valores da hipótese,
incerteza, irrealidade, dúvida, possibilidade. Nos casos em que esses va-
lores são menos evidentes, existe oscilação no emprego do subjuntivo
(temporais e adjetivas) ou há ampla preferência por recursos alternati-
vos, como o indicativo e as formas nominais do verbo, nas orações finais
e nas completivas nominais. Sob o ponto de vista funcionalista, o sub-
juntivo corresponde a uma intenção clara e definida do falante, qual seja,
a expressão dos valores inerentes a esse modo.
Subsidiariamente, o emprego do subjuntivo é dependente de tra-
ços gramaticais (presença de sujeito expresso ou depreendido, nas ora-
ções substantivas) ou antecedente com o traço [- definido], nas orações
adjetivas. Cabe ressalvar, porém, que esses traços são meramente secun-
dários em face da intenção do falante em expressar os valores inerentes
ao subjuntivo (dúvida, possibilidade, desejo).

227
Cabe acrescentar que a intuição de falante nativo do português
revela que os dados obtidos podem aplicar-se à língua escrita. Trata-se,
porém, de uma hipótese, a ser comprovada pela análise de um corpus
representativo do português usual escrito.
2.Emprego do subjuntivo e das formas alternativas,
de acordo com a variável faixa etária
Tabela II
Emprego do subjuntivo e das formas alternativas em cada modalidade de oração,
de acordo com a variável faixa etária
FAIXAS ETÁRIAS
I II III TOTAL
TIPO DE S NS S NS S NS S NS
ORAÇÃO
N% N% N% N% N%N% N% N%
1. Adverbiais
– concessiva 06 60 04 40 14 78 04 22 15 94 01 06 35 80 09 20
– condicional 16 50 16 50 39 65 21 35 54 67 27 33 109 63 64 37
– final 12 27 33 73 02 02 83 98 07 11 59 89 21 11 175 89
– temporal 0 1 2 0 0 4 8 0 0 4 1 0 0 0 – 0 5 4 2 0 7 5 8 1 1 0 4 8 1 1 5 2
2. Adjetivas 3 2 6 2 2 0 3 8 2 7 5 7 2 0 4 3 3 9 4 7 4 4 5 3 9 8 5 4 8 4 4 6
3. Substantivas
– subjetiva 0 6 6 7 0 3 3 3 0 7 6 4 0 4 3 6 1 4 7 0 0 6 3 0 2 7 6 7 1 3 3 3
– obj. direta 1 9 7 6 0 6 2 4 2 7 5 6 2 1 4 4 2 1 5 5 1 7 4 5 6 7 6 0 4 4 4 0
– obj. indireta 0 7 7 8 0 2 2 2 0 5 6 2 0 3 3 8 1 0 5 3 0 9 4 7 2 2 6 1 1 4 3 9
– compl. nom. 0 – 0 2 1 0 0 0 3 1 1 2 5 8 9 0 1 0 8 1 2 9 2 0 4 0 9 3 9 9 1
4. Independente 1 8 1 0 0 0 – 1 0 1 0 0 0 – 0 5 1 0 0 0 – 3 3 1 0 0 0 –
OBS: I – 1ª. faixa etária; II – 2ª. faixa etária; III – 3ª. faixa etária

228
A tabela anterior revela que, como regra geral, os percentuais de
cada faixa etária acompanham – com alguma variação para mais ou para
menos – as tendências gerais já apresentadas. Há três exceções (apresen-
tadas a seguir), devidas a desvios apresentados por informantes isolados:
a) Na primeira faixa etária, as orações condicionais apresentam desvi-
os em relação ao total geral (1ª. faixa: 50% – S; 50% – NS; total geral:
63% – S e 37% – NS). Esse desvio é devido ao informante do Inq. 161
(NURC/SP), que emprega o indicativo em 71% das ocorrências:
(53)
(...) não adiantam... infinitos recursos técnicos... se eles não são bem
aproveitados (...)
(NURC/SP, 161, L. 334-335)
No exemplo anterior (e em outros análogos), o informante mani-
festa certeza e realidade.
b) Ainda na primeira faixa etária, ocorre um desvio nas orações tempo-
rais (1ª. faixa: 20% – S; 80% – NS; total geral: 48% – S; 52% – NS). Esse
desvio é devido ao Inq. 084 (NURC/RJ), cuja informante emprega 100%
de formas de indicativo, como já foi ilustrado pelo exemplo 23.
c) Na segunda faixa etária, ocorre um desvio também nas orações tem-
porais; os informantes empregam 100% de formas de subjuntivo.
Não foram registrados desvios significativos na terceira faixa etária.
3. Emprego do subjuntivo e das formas alternativas,
de acordo com a variável procedência dos
informantes
A situação é análoga àquela já discutida no item anterior: os infor-
mantes de cada capital seguem, de modo geral, as tendências reveladas

229
pelo conjunto das ocorrências. É o que pode ser confirmado pela
Tabela III, que expõe as ocorrências de subjuntivo (S) e não subjuntivo
(NS) de cada tipo de oração em estudo, nas três capitais.
Tabela III
Emprego do subjuntivo e das formas alternativas em cada modalidade de oração,
de acordo com a variável cidade de origem
CIDADE DE ORIGEM
SP RJ SSA TOTAL
TIPO DE
S SN S SN S SN S SN
ORAÇÃO
%N %N %N %N %N %N %N N%
1. Adverbiais
– concessiva 1 2 7 5 0 4 2 5 0 9 6 9 0 4 3 1 1 4 9 3 0 1 0 7 3 5 8 0 0 9 2 0
– condicional 4 3 5 5 3 5 4 5 3 6 6 7 1 8 3 3 3 0 7 3 1 1 2 7 1 0 9 6 3 6 4 3 7
– final 0 8 1 3 5 5 8 7 0 4 0 8 4 9 9 2 0 9 1 1 7 1 8 9 2 1 1 1 1 7 5 8 9
– temporal 0 2 6 7 0 1 3 3 0 4 3 6 0 7 6 4 0 4 6 7 0 2 3 3 1 0 4 8 1 1 5 2
2. Adjetivas 3 4 5 2 3 2 4 8 2 1 4 1 3 0 5 9 4 3 6 6 2 2 3 4 9 8 5 4 8 4 4 6
3. Substantivas
– subjetiva 0 9 8 2 0 2 1 8 0 7 5 8 0 5 4 2 1 1 6 5 0 6 3 5 2 7 6 7 1 3 3 3
– obj. direta 2 0 6 1 1 3 3 9 2 0 5 9 1 5 4 3 2 7 6 3 1 6 2 7 6 7 6 0 4 4 4 0
– obj. indireta 0 2 2 9 0 5 7 1 0 7 7 8 0 2 2 2 1 3 6 5 0 7 3 5 2 2 6 1 1 4 3 9
– compl. nom. 0 – 2 3 1 0 0 0 1 0 9 1 0 9 1 0 3 3 3 0 6 6 7 0 4 0 9 3 9 9 1
4.Independente 1 8 100 0 – 1 1 100 0 – 1 4 100 0 – 3 3 100 0 –
OBS: SP – São Paulo; RJ – Rio de Janeiro; SSA – Salvador
As exceções à tendência evidenciadas pela totalização de cada
grupo vêm expostas a seguir:

230
a) Os informantes de São Paulo, nas orações objetivas indiretas,
afastam–se radicalmente da tendência geral (Total: S – 61%; NS –
39%; SP: S – 29%; NS – 71%). Este fato ocorre porque os informantes
dos Inqs. 242 e 250 não empregam o subjuntivo nessa modalidade de
oração:
(54)
(...) e já fui convidada... para... dirigir a seção feminina do Mackenzie
(...)
(NURC/SP, 242, L. 36-37)
(55)
(...) o pagamento feito à vista eu creio que não deve oferecer nenhuma::
nenhuma dificuldade especial (...)
(NURC/SP, 250, L. 581-582)
No exemplo 36, a preposição em (eu creio em que) está elidida.
A elisão da preposição antes do que integrante (precisar que, acreditar
que) constitui fato comum, mesmo na linguagem culta.
b) Nas três capitais, o total das ocorrências apresenta equilíbrio entre
o emprego do subjuntivo e das formas alternativas (S – 48%; NS –
52%). Ocorrem, porém, duas tendências diversas: em São Paulo e
Salvador, verifica-se o mesmo percentual (S – 67%; NS – 33%), ao
passo que no Rio de Janeiro predominam ocorrências em que não se
usa o subjuntivo (S – 36%; NS – 64%). Essa diferença é sobretudo
devida ao informante do Inq. 112, no qual 83% das orações temporais
são construídas com o infinitivo ou indicativo:
(56)
(...) depois então que ele [o avião] ganha altura... ele segue o seu vôo
normal (...)
(NURC/RJ, 112, L. 412-413)
(57)
(...) para fazer a viagem de trem? (...) até chegar o trem... ou até sair do trem ?
(NURC/RJ, 112, L. 39-41)

231
4. Emprego do subjuntivo e das formas alternativas,
de acordo com a variável sexo dos informantes
Como já foi discutido nos dois itens anteriores, existe, geralmente,
uma correspondência entre o percentual obtido no total das ocorrências e
aquele que se verifica na linguagem de homens e mulheres. É o que pode
ser verificado na Tabela IV, que expõe o emprego do subjuntivo em cada
tipo de oração em estudo, de acordo com a distribuição nos grupos mas-
culino e feminino.
Tabela IV
Emprego do subjuntivo em cada tipo de oração, de acordo com a variável sexo.
SEXO
M F TO TA L
TIPO DE S NS S NS S NS
ORAÇÃO
S% S% S% S% S% S%
1. Adverbiais
– concessiva 17 77 05 23 18 82 04 19 35 80 09 20
– condicional 49 73 18 27 60 57 46 43 109 63 64 37
– final 1 3 1 4 7 9 8 6 0 8 0 8 9 6 9 2 2 1 1 1 175 8 9
– temporal 06 40 09 60 04 67 02 33 10 48 11 52
2. Adjetivas 60 59 41 41 38 47 43 53 98 54 84 46
3. Substantivas
– subjetiva 16 59 11 41 11 85 02 15 27 67 13 33
– obj. direta 30 73 11 27 37 53 33 47 67 60 44 40
– obj. indireta 13 72 05 28 09 50 09 50 22 61 14 39
– compl. nom. 04 25 12 75 0 – 27 100 04 09 39 91
4. Independente 11 100 0 – 22 100 0 – 33 100 0 –
OBS: M – masculino; F – feminino;
As exceções são as mesmas já discutidas nos tópicos anteriores:

232
a) Nas orações temporais, predominam, no grupo feminino, as ocor-
rências de subjuntivo (total: N – 48%; NS – 52%; F: S – 67%; NS –
33%). Essa discrepância é devida à informante do Inq. (NURC/RJ),
que só emprega formas do subjuntivo:
(39)
(...) eu disse pra minha prima... quando ela olhar... você diz [que o vestido
está rasgado] (...)
(NURC/RJ, 261, L. 15-16)
b) Nas orações objetivas indiretas, o grupo feminino apresenta igualda-
de no emprego do subjuntivo e dos outros recursos de expressão, o que
diverge do total de ocorrências (S – 61%; NS – 39%). Esse fato se deve
à circunstância de que sete dentre as nove informantes constroem essas
orações utilizando unicamente ou o subjuntivo ou, alternativamente, o
indicativo ou as formas nominais.
Considerações finais
As análises efetuadas permitiram verificar que o emprego do sub-
juntivo é dependente do valor semântico de cada modalidade de oração.
Com efeito, pôde-se verificar que o subjuntivo é mais freqüentemente
empregado nas orações que exprimem valores relacionados com a dúvi-
da, a incerteza, a suposição, a hipótese, a possibilidade. Este é o caso das
concessivas, das condicionais, das substantivas (ligadas a nomes e ver-
bos que exprimem os citados valores) e das independentes introduzidas
por talvez. Quando esses valores modais não se manifestam com clareza
– e este é o caso das orações finais e das completivas nominais – preva-
lece o emprego de formas do indicativo ou do infinitivo. Na zona inter-
mediária entre esse extremos, surgem as orações temporais e as adjetivas,
nas quais ocorre equilíbrio entre o emprego do subjuntivo e das formas
alternativas.
O estudo efetuado demonstra que se confirma a hipótese enuncia-
da: o emprego do subjuntivo é determinado por fatores semânticos ou

233
discursivos. Os fatores sintáticos – quando ocorrem – têm um papel
meramente subsidiário e manifestam-se apenas em dois grupos de
orações, as substantivas (presença do sujeito na subordinada) e adjetivas
(antecedente com o traço – definido).
Também foi visto que as três variáveis (faixa etária, procedên-
cia e sexo) não trazem diferenças significativas no emprego do subjun-
tivo. As discrepâncias entre os percentuais obtidos no total de ocor-
rências e aqueles correspondentes a cada grupo de informantes só se
revelam pertinentes em casos isolados, facilmente identificáveis. Além
disso, esses desvios geralmente podem ser atribuídos a um ou outro
informantes em particular. Por isso mesmo, não se confirma a hipó-
tese de que o emprego do subjuntivo é dependente das citadas variá-
veis. A esse respeito, pode-se mesmo admitir que os falantes cultos
neutralizam (ou tendem a neutralizar) os fatores ou variáveis que
possam determinar a variação lingüística.
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