Assim, falar sobre esta comida, suas relações, circunscrevê-la dentro de um espaço,
momento, consiste num dos nossos principais desafios. Enfrentá-lo, é o que tentamos
fazer sob o título: A Cozinha, os Orixás e os truques: entre a invenção e recriação onde
o tempo não pára...
“CANDOMBLÉ MESMO É COZINHA... ”
Dentro do universo do Candomblé, a cozinha merece uma atenção especial, por ser um
dos espaços onde se passa e se constitui o sagrado. Tudo nela remete a esta dimensão.
Assim, “A cozinha de santo” aparece sempre como algo distinto, separado da cozinha
do dia a dia. Separada na sua grande maioria, não por limites externos, mas internos que
são representados por mudanças de atitude, ações, formas de uso, etc.
Em muitos terreiros de Candomblé, o local onde são preparadas as comidas dos Orixás
é o mesmo onde são feitas as comidas do dia a dia. Esta separação, todavia é realizada
de forma bastante visível e determinada. Muitas vezes se reserva para as comidas de
santo um fogão especial que pode ser de lenha ou industrial, enquanto a outra
permanece num fogão menor. Comum é se trocar de horários. É muito difícil se mexer
com as panelas dos Orixás ao lado de outras panelas, bem como misturar os utensílios
destas duas cozinhas.
“ Cozinha do santo” é, assim, mais que um lugar determinado que, em terreiros de
estrutura maior, os mais antigos, se tem para preparar somente os pratos dos Orixás e,
sim, um espaço criado e redefinido a cada momento, no terreiro, através da separação
dos objetos, utensílios e mudanças de comportamento. Tudo participa do sagrado: o
espaço em si, as panelas, travessas, pratos, bacias, cestos, peneiras, colheres de pau,
ralos, o pilão, as frigideiras, formas de assar e sobretudo as pessoas que nele transitam.
A cozinha é cheia de interdições como: não conversar mais que o necessário, não falar
alto, gritar, cantar ou dançar músicas que não sejam do santo; não entrar pessoas que
não sejam iniciadas-dependendo do que se estiver fazendo, somente um número muito
restrito-não admitir que mulheres menstruadas permaneçam nela, etc. Neste espaço
sacralizado, tudo vai ganhando significado: a bacia que cai, o garfo, a faca, a colher, o
óleo que faz fumaçar o fogo, etc.
Na cozinha se aprende além do “ponto” certo de determinado prato, que não se dá as
costas para o fogo, não se joga sal no chão, não se mexe comida de Orixá com colher
que não seja de pau, que a comida mexida por duas pessoas desanda, que não se joga
água no fogo e que muitas pessoas por terem o sangue ruim fazem a comida desandar.
Ou que a presença de pessoas de um determinado Orixá faz com que uma certa comida
não dê certo, como por exemplo: em cozinha onde se tem gente de Xangô o milho de
pipoca queima antes de estourar. Pela cozinha, entram as pessoas de maior prestígio na
Religião e é nela própria que, em certas ocasiões, muito antes mesmo de se chegar no
peji do Orixá, que este é consultado a fim de se saber se a comida foi bem preparada ou
não.
Embora marcada por vários limites, a cozinha é mesmo escola mestra, local onde se
aprende as lições mais antigas, através do exercício longo e paciente da observação.
Local onde permanecem por maior período de tempo os iniciados, seja varrendo,
lavando, limpando, guardando, acendendo ou mantendo o fogo, cozinhando, com olhos