anseios anteriores de alguns. Mas não pelo melhor. Pois em mim mesmo, sem dúvida alguma,
aquilo de que falo está ligado ao que posso imaginar de mais distante das deliquescências, ao
mesmo tempo do pessimismo, do perverso e desgraçado desprezo pela saúde e pela força humana
frequentemente ligados ao exercício da poesia. Devo dizer isso com estrépito, pois o movimento do
meu livro leva à confusão. Ninguém mais do que eu é alegre, amigo do homem – de suas virtudes,
e das mais juvenis – hostil a seus desfalecimentos, a seus entraves jurídicos, a suas compaixões.
Como gostaria de dizer deste livro a mesma coisa que Nietzsche da Gaia ciência: “quase nenhuma
frase em que a profundidade e a jovialidade não se deem ternamente as mãos”. E não me engano ao
colocar nos antípodas dos cafés literários esse céu mediterrâneo de Zaratustra, para o qual toda
minha vida tendeu. Desgraça a quem maldiz! Estou contente, soltando esse grito, por introduzi-lo
no início de um livro amargo. E como se poderia ver aí uma inexplicável contradição, fico contente
também por resolvê-la imediatamente tomando como testemunha Nietzsche, que escreve em Ecce
homo: “Outro ideal...”.
(No fim do prefácio, necessidade vital para o homem de não mais fugir para fora de si mesmo –
ex. quadros para conseguir deter a atenção por um instante.
Que agora não tenho mais a possibilidade como outrora de resolver, ou acreditar resolver, através
de um movimento atrevido, um desafio ao mundo, as dificuldades que ele me apresenta, mas
somente por uma atenção de cada instante.)
2
Em Cad, este trecho é precedido por:
23/08/1942
Numa depressão (no fundo do bacio, alcançada a borra):
O sentido do homem é o não-sentido. Que um ser tenha (para subsistir, até mesmo para surgir) de
se dobrar a sentidos particulares (sucessivos, discordantes, que dizem: o homem é feito para isto,
para aquilo, sempre o equivalente do “marceneiro para a plaina” apenas com a aparência geral), um
dia pedem-se as contas, contesta-se, não resta nada. O último demônio, a chance (nada tem sentido
último – nenhum tesouro protegido dos ladrões), mas que a chance se esquive! Ela não me faltava,
ao final ela me falta. Tive o que amava, respondido a meu coração. O que amava me é retirado.
Tudo acabou. Só me resta dizer como Jó: “O senhor deu, o senhor tira...”.
Interrompido. (É domingo de manhã, o sol doura a folhagem das grandes árvores à minha frente,
um canto começa muito encorpado, vozes de homens e mulheres conjugadas, é o Kyrie eleison. Oh
miserável eco, nem tão suave assim, de um outro sobre-humano que ouvi à beira do lago Maior!... e
que permanece em mim o signo menos de minha chance do que da dos homens. E agora? uma
prédica! de que só chegam a mim, ininteligíveis, os acentos compassados.)
“O senhor tira...”
Mas quando a chance é o senhor, o que ela é uma vez retirada? O não-sentido. Digo-me: o não-
sentido seria minha plaina? Antes que a chance me abandonasse, de antemão muitas vezes
encontrei o não-sentido como um pedacinho de osso quebrando-se atrozmente enquanto se saboreia
um prato. Hoje, nem prato nem sabor. Nada além de não-sentido, verdade deserta, que faz o
deserto, entrevista rasgando através da folhagem das árvores no pálido azul do céu (que é a
ausência do homem e de qualquer sentido). O que mais me desmonta é que atinjo uma verdade hoje
somente grande demais para mim pela chance, pelo excesso de força que ela dá. Hoje, quando algo
de atrofiado estragou minha vida, só me resta dizer: não é uma verdade para atrofiados, os
malformados não a suportam. Mas finalmente isto num sobressalto muito suave: essa verdade exige
minha força, e se é assim lixo-me para a má-chance, tenho de me erguer ao mais alto de mim
mesmo, e agora, que a chance me falta, encontrar mesmo assim a força (e, talvez, no fundo, o único
tipo de força à altura de uma verdade tão deserta, aquela que se encontra mesmo assim). Ontem, à
meia-noite, no auge do desencorajamento, escutava no térreo do hotel jogadores de carta