A FILOSOFIA DO DIABO

robertoaxe 2,510 views 123 slides Aug 12, 2011
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About This Presentation

Este é um livro irreverente sobre as sombras que diariamente somos obrigados a varrer para baixo do 'tapete' de nossa mente. Acostumados a pensar nossos 'pensamentos de estimação', esquecemos de uma força brutal e demolidora que habita nos recônditos escuros de nosso pensamento....


Slide Content

Roberto Axe
A
F I L O S O F I A
DO
D I A B O
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ÍNDICE

Pág 03.....................................................................................................PREFÁCIO

Pág 07 ............................................................................................... A APARIÇÃO
Pág 19.................................. ATRAINDO O OCEANO PARA UM PINGO D’ÁGUA
Pág 27......................................................... SOBRE SÓBRIOS E EMBRIAGADOS
Pág 41................................................................................... .UM TIRO NA CHUVA
Pág 48................................................................ EXPLICANDO O INEXPLICÁVEL
Pág 53................................................................................POR QUE O DIABO RI?
Pág 84................................................. ARMADILHAS QUE JÁ NÃO FUNCIONAM
Pág 91..................................... OS HOMENS- ESQUELETO E SUAS CARNIÇAS
Pág 98....................... .ROMPENDO COM OS PENSAMENTOS DE ESTIMAÇÃO

Pág 107.............. .PARA AS LUZES ELÉTRICAS O FOGO DA VELA É LOUCO!
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PREFÁCIO
Napoleão dizia: raspe um russo e por baixo aparecerá o cossaco! Esta frase sempre
me inspirou alguns pensamentos. Qual o sujeito que apareceria se raspássemos um
civilizado? Acho que quem mais aproximou o rosto deste quadro foi Freud. Fica
difícil, ao analisarmos nosso dia a dia, não entregar o cetro ao pai da psicanálise.
Mas então somos obrigados a admitir que subjaz abaixo dessa tenra roupagem,
uma força invisível, para a qual se fazem necessárias todas as formas de jogos e
interpretações com o fito de decifra-la e distraí-la. Por que? É tão forte assim? É tão
terrível assim? Então por que não incorporamos esta força definitivamente como
nossa? Como um poder atávico do animal que levamos conosco por onde quer
que andemos, embora ferido por lanças invisíveis, mas poderosas. Se olharmos
mais atentamente para as mãos dos portadores destas lanças, veremos que elas
estão vazias, as lanças não existem, apenas nos fizeram crer em suas pontas
envenenadas. Por que tanto medo do animal? Por que anatematiza-lo? Por que ser
ele a fonte de todo o ‘Mal’? Não é preciso ir longe para encontrarmos a resposta, é
simples: os instintos são o inimigo mortal desta grande acomodação
organizacional chamada sociedade. E não são poucas as distrações e arranjos que
os instintos mais poderosos observam com seus olhos extáticos e atentos, como os
de uma serpente. Quem não é do ‘ramo’ fica entre o espanto e o riso ante a
pantomima sem a qual esse grande negócio não iria para frente, esse grande
negócio que tem por essência a manutenção do ‘ser humano’ fora do ‘ser’. Afinal o
que é ‘ser’? Ora, uma discussão ontológica reservada aos filósofos da teoria! Tudo
muito bonito, muito erudito! Mas, enquanto isso a serpente de olhos extáticos e
atentos continua lá... alheia, perigosa, segregada, observadora silenciosa... sempre
varrida para baixo do imenso tapete platônico/teológico. Que este extenso e
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invisível tapete abrigue os que se subtraem ao seu ‘inodoro’ calor, vá lá, é a grande
multidão dos friorentos! Porém, existem os animais selvagens que amam a neve!
Eles se desvelam e saem lentamente debaixo deste abrigo aconchegante e vão à
caça, animais de rapina que são... animais curiosos, animais de andar lento e olhos
de fogo! Ferinos de calmos e belos gestos. É preciso então que não saiam! É
preciso encontrar sempre uma ameaça, sim, mais uma ameaça... Pois quem não
tem medo do frio é porque é feito de fogo! Então se cria o inferno, lugar de fogo é
no inferno! Mas é cada vez mais difícil dormir embaixo do imenso e tépido tapete,
pois à noite os risos demoníacos lá de fora anunciam uma alegria que não é
tolerada, não pode ser tolerada, este riso desafiador dos ferinos de fogo... e seus
insuportáveis hálitos de liberdade! Este livro é dedicado a todos aqueles que
andam na neve, quem sabe até derretendo-a com seus passos incandescentes e
descobrindo a relva mansa que subjaz tranqüila sob seus pés descalços. Daí então
possivelmente estes correrão, saltarão, darão cambotas, pularão, dançarão, darão
muitas risadas e quando finalmente estiverem vencidos pelo cansaço de tanta
alegria, abrirão suas imensas asas e voarão para onde o infinito melhor lhes
aprouver. Enquanto isso, muitas doutrinas serão ‘ensinadas’ lá embaixo do Grande
Tapete; agora não só o fogo deverá ser evitado como pestilência, agora, também
deverão ser evitadas... as asas. Talvez então o coro exclame em uma só voz:
‘Maldito seja, todo aquele que é feito de fogo! Maldito seja, todo aquele que voa!’,
mas todos nós já estaremos longe demais para escutarmos as vozes uníssonas
desse patético coro, nada do que nos pertence e nos faz mais fortes pode ser
varrido para baixo desse tapete incolor e mortiço, até porque, teríamos então que
quebrar nossas imensas asas de morcego para caber embaixo de qualquer coisa.
Roberto Axe
Porto Alegre, 02 de julho de 2009.
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Este livro é dedicado a todo(a) caminhante que tem a coragem de inventar e
dançar os próprios passos.
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‘Cuidado ao expulsares teus demônios, podes estar
expulsando o melhor de ti.’

Nietzsche
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A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 01 A APARIÇÃO
- Esta é a pior parte. – esta frase, pronunciada pelo pensativo inspetor Santos,
quebrou o silêncio que normalmente acompanhava aqueles profissionais do crime.
Parados e pensativos diante do corpo inerme que jazia no chão, em um pequeno
apartamento perdido no meio da noite fria. Empoeirado e lúgubre, localizava-se no
centro baixo da cidade e a iluminação amarelada emprestava um ar mais sinistro
àquela cena de morte. Quatro vultos analisavam, quietos, aquela cena. No chão, o
corpo de um homem estatelado bem no meio da pequena sala tinha como
adequada mortalha um sobre-tudo negro e pesado. Jazia deitado com o peito em
uma imensa poça de sangue; um sangue denso e enegrecido pela iluminação
precária. A saleta era de uma pobreza constrangedora; em um canto uma cadeira
velha arcava com o peso de algumas revistas, e ao lado, encostada na parede, uma
pequena e velha mesa suportava o peso de um traste que outrora fora uma
televisão. A iluminação pífia tinha como fonte uma lâmpada que balançava
lentamente no centro da pequena sala, com o bocal amarrado do jeito que dava,
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como um pingo de luz que teimava em não cair do teto. Pela janela semi-aberta
um ar sereno e frio embalava a solitária lâmpada de tal jeito, que projetava as
sombras daquelas pessoas ali de pé ao redor do defunto, numa dança lenta e
macabra, tendo como palco as imundas paredes daquela...
- Pocilga! Isto mais parece uma pocilga! – exclamou o inspetor Santos – o cheiro
da decadência chega a infectar minhas narinas. Acho que se alguém vive em um
lugar como este não tem realmente motivos que lhe prendam a esta vida, talvez a
morte lhe caia como uma libertação.
- Acho que o morto concorda com o senhor. – Edson, investigador, braço direito
de Santos disse isso se levantando calmamente depois de apanhar no chão, com
uma pinça, um pequeno bilhete ao qual acabara de ler e entregava-o ao inspetor.
Santos pegou o bilhete sem tirar os olhos de Edson enquanto tateava o bolso do
paletó à procura de seus óculos – Bosta! Nunca sei onde ponho esta merda de
óculos! Achei! Vejamos...hummm – leu então em voz alta o conteúdo do
papelzinho: - Não deixo nada, não tenho amigos, família, não tenho sonhos, não
tenho nenhum motivo para que ficar aqui! Minha vida é uma verdadeira merda! Pra
quem achar que estou mentindo, que olhe em volta, isto é tudo que eu tenho! Ah, e
tenho também 60 anos! Não é mole! Larguei! A quem interessar possa, vão todos
para a puta que os pariu! Ninguém vale nada! Ass Nestor. – Coitado, morreu pobre
e revoltado. – esta observação veio de outra pessoa presente, investigadora Nina. –
Pudera! - ponderou Santos – isto aqui é o próprio olho da miséria.
- E no quarto, além de algumas baratas mortas, – disse Edson saindo do outro
aposento – tem uma cama de solteiro e um armário sem portas com umas poucas
e rotas vestimentas, o homem era um miserável, coitado.
- Bem, vejamos, mande entrar o senhorio desta porra toda! – ordenou Santos.
Ato contínuo entrou um sujeito que parecia ter saído das entranhas daquele lugar,
e levava a sua triste história decadente no semblante. Vestia todo de negro e as
olheiras profundas davam um ar mais fantasmagórico ao seu rosto muito pálido e
sulcado; era um senhor de alguma idade e parecia nervoso.
- Está bem nervoso não é senhor? – inquiriu Santos.
- Pudera – respondeu o senhorio – isso nunca aconteceu em meu prédio! Do
que este homem morreu? De tiro? Foi morto? Matou-se? – indagou o homem sem
tirar os olhos do morto.
- É o que queremos saber – prosseguiu Santos – seu nome era Nestor?
- Bem, pelo menos este é o nome que ele me deu quando fez a papelada aqui, e
também da identidade.
- Eis a arma! A numeração está raspada. – interrompeu Nina apontando para um
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sala, quieto e observando tudo era Tito, um novato que estava acompanhando
seus colegas policiais pela primeira vez em uma cena de crime. Tito a tudo se
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mantinha atento, a tudo observava, extasiado com aquela experiência profissional
fascinante, seu primeiro crime... uau! Seu primeiro crime! Ele, tão jovem e tão
policial, tava no sangue afinal. Tito divagava nestas coisas quando a voz baixa de
Edson lhe trouxe de volta à cena do crime.
- Hoje você vai conhecer nossa arma secreta! Sei que já mandaram chamá-lo,
chego a me arrepiar! Aguarde.
- Arma secreta? De que você está falando?
- Calma, aguarde.
- Há quanto tempo – prosseguia Santos - este Nestor é seu inquilino, senhor...
senhor...
- Irineu, meu nome é Irineu.
- Pois bem, Sr Irineu, há quanto tempo?
- Uns três meses.
- E qual era o comportamento do Nestor?
- Esquisitão.
- Melhore isso, como assim, esquisitão?
Neste momento algum alvoroço veio do corredor, o que fez com que os presentes
ficassem calados; Irineu ia dizer alguma coisa, mas foi interrompido por um
schhhht! - É ele, é ele... – cochichou Edson para Tito; este entendia cada vez menos
o que se passava. Do lado de fora do apartamento, que estava com a porta
escancarada, crescia uma voz alta e risonha que derrapava em algumas
gargalhadas; pastosa, parecia a voz de um bêbado que vinha da farra. – Ele está
chegando! – disse Edson a Tito que divisou então na soleira da porta uma silhueta,
ou melhor, duas silhuetas, um homem grande parecia carregar outro, menor e de
casacão escuro e um chapéu preto estilo Homburg inclinado desleixadamente
sobre a testa e... bêbado! Sim, o homem menor estava totalmente embriagado.
Falava sem nexo, dava algumas gargalhadas e dizia algumas coisas meio estranhas
como: - Estou sentindo o cheiro do defunto! hummmm e de cabaço! – foi então
que o estranho homem parou debaixo da luz mortiça e o novato percebeu, não
sem tremer levemente, uma figura misteriosa; parecia uma daquelas intrigantes
divindades saídas do panteão do umbanda. Era um homem negro, baixo, quase
gordinho, tinha uma idade indefinida e que enquanto ajeitava o chapéu desleixado
sobre sua careca reluzente, esparramou malevolente um olhar que jamais lhe sairia
da memória. Tito recebeu o olhar do homem; um olhar agudo, injetado, sanguíneo
e cortante que saltava dos olhos esbugalhados do estranho. Este olhar inquietante
era entrecortado sistematicamente por pálpebras preguiçosas que teimavam em
baixar indolentes, mas reabriam num sacrifício contínuo e penoso. O odor do
álcool logo se espalhou pelo pequeno recinto. Um homem imenso e de rosto
insosso mantinha o recém chegado, mesmo que às duras penas, de pé. O peso
daquele olhar foi amenizado por um sorriso que lentamente desabrochou no rosto
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negro e redondo acompanhado pelos olhos indolentes. Tito sentiu um alívio e
esboçou também um sorriso, meio que de alívio, meio que de uma verdadeira e
estranha alegria; por não ter sido devorado talvez? Reparou nos dentes
amarelados, mas sem falhas apresentados pela alegria ruidosa de uma boca
grande e de imensos beiços. O negrão arfava – Vai ter um treco – pensou Tito,
reparando no suor que fazia as têmporas reluzirem naquela luz amarelada. O
estranho apontou lentamente para Tito, deu uma gargalhada e depois disparou
com sua voz embriagada e lenta: - Bom, o cabaço eu já encontrei, quem é esse, um
novato?
- Este é Tito, - respondeu Santos – está sentindo o cheiro de sangue pela
primeira vez, e seja muito bem vindo Epaminondas!
- Seja bem vindo Epaminondas! – repetiu o negrão, ensaiando alguns passos,
mas sempre carregado pelo seu anjo da guarda – Seja bem vindo Epaminondas!
Vocês acham que é mole! Saí de uma roda de samba cheia de boceta, trago, e
outras ilicitudes, he, he, pra vir aqui lamber sangue de morto! Vocês acham que eu
sou o que? Um mísero vampiro, ou já serei um personagem mitológico desta
cidade? Uma gárgula sanguinária que adquire vida tão logo é evocada pelos
necessitados! Mas então minhas asas são de pedra, preciso de muito tempo para
me mover, e sair para a luz me é penoso demais! Isto é sabido.
- Pare com esses discursos Epaminondas, - comentou o impaciente Santos – e
fique à vontade para dar uma boa olhada por aí.
- Bem, - prosseguiu o recém chegado – o cabaço eu já encontrei, só falta o
cadáver – e ato contínuo, apontou para Irineu – Eis o defunto! Viram, não perdi o
faro! Ecce Homo! Há,há,há,há,há... – os presentes riram meio constrangidos, com
exceção, claro, do senhorio e de Santos que emendou: - Agora chega
Epaminondas! Dá uma força pra nós...
- Chega é o caralho! – interrompeu Epaminondas perdendo a paciência – não
ganho pra isso, moreno! Vocês que são sóbrios que se entendam, eu, perturbado
na minha embriaguez, minha divina e cristalina embriaguez, tenho que socorrer
sóbrios! Era só o que faltava! Levar sermão de sóbrio! Oh, filhos do Bem e do Mal!
– levantou as mãos imitando um discurso grandiloqüente, dando mais trabalho
para seu atento arrimo - Vocês batem suas cabecinhas sóbrias quando acontece o
inusitado, não são preparados para isso não é? Oh, filhos do Bem e do Mal!
Miquinhos amestrados da civilização! Tão sóbria e séria esta civilização, mamãe
zelosa! Por quê recorrem a este velho embriagado quando lhe faltam as respostas?
Taí o corpo no chão, e vocês querem trabalhar pouco, não é assim? Do contrário
não me chamariam em horas tais. Dou a mão, querem o saco! Precisam das
respostas, sempre as respostas, - tirou do bolso do casaco uma pequena garrafa e
a ergueu numa libação - a Dionísio! Meu amado Dionísio! Meu sangue negro é teu
ditirambo! Meu sangue entorpecido na tua profunda orgia! Brinca, deus
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embriagado! Brinca, na escuridão da minha profunda alegria! E que, com Sileno,
sábio quando sóbrio, eu ao contrário, aprenda a brincar de esconde-esconde com
o Sol! - ato contínuo deu um imenso gole e guardou a garrafa novamente no
bolso, limpou a boca com as costas da mão e emendou – agora vamo lá! o que
temos aqui, um possível suicida certo?
- Exato, teria deixado este bilhete – Santos entregou o papelzinho a
Epaminondas. Este apanhou o bilhetinho e após lê-lo rapidamente, desabou em
ruidosa gargalhada. Ria tanto, que seu anjo da guarda tinha alguma dificuldade em
segurá-lo, as risadas eram entrecortadas por eventuais acessos de tosse. A risada
contagiou a todos, menos Irineu, que arfava, muito intrigado com tudo aquilo. A
cena sugeria que o evento transformava-se rapidamente em uma tragicomédia.
- Meu caro senhorio – prosseguiu Epaminondas, limpando com um lenço as
lágrimas que o riso descontrolado provocara em seus imensos olhos esbugalhados
– o senhor obviamente deve ter um livro de registro de seus hóspedes...
inquilinos... ou seja lá o que for, traga para mim rapidamente, por obséquio. - o
homem saiu rápido e silencioso. Epaminondas deu uma rápida olhada no quarto
soltando um comentário – Porra, que miserê do caralho! – voltou então para a
saleta e rondou o morto com seu passo trôpego e evitando pisar no sangue quase
caiu, mas foi amparado prontamente por seu guardião. Neste momento adentrou
na cena mórbida o senhorio Irineu, trazia o livro com os apontamentos e o
entregou ao bêbado. Este o apanhou levando-o para onde a tímida iluminação
tinha uma melhor incidência. Após uma rápida olhada, perguntou para Irineu,
enquanto lhe devolvia o documento: – Este pobre coitado nunca lhe pagou não é?
- Nunca, ele estava desempregado, para dizer a verdade, nem sei o que ele fazia.
- Então o senhor o matou não é? É bem verdade que quase acidentalmente, isso
vai amenizar sua pena, mas o melhor é confessar logo, nêgo véio!
- Como ousa! – o velhote colou as costas na parede, como que procurando um
apoio para não desabar ao chão.
- Como ousa? Diz ele! Como ousa? Pois então, o que se passou aqui eu vou
contar agora, - tirou o chapéu e começou a batucar na copa como se fosse um
pandeiro – se liga moçada neste sambinha que vou improvisar – ato contínuo,
começou a cantarolar, batucando no chapéu:
- Era uma vez um senhorio, que tinha o nome de Irineu.
Hospedou um tal Nestor, que mancada ele deu!
Era pobre o tal Nestor, não tinha nada nem ninguém.
Ficou ruim pro senhorio, dele arrancar algum vintém!
Foi então que um belo dia, num acesso passional,
Decidiu o senhorio, nisto botar ponto final.
Procurou ao tal Nestor, pra pôr fim a esta contenda,
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Mas foi munido de sua arma, cano longo, cromada,
Que o Nestor é um cara grande ‘e eu não tô pra palhaçada!’
Discussão começou, e desandou pra pancada;
Irineu apavorado usou então sua cromada;
Merda feita, Nestor no chão!
Bolou então o matador, seu plano malsão.
Escreveu um bilhetinho, sua arma na mão do morto, tudo certinho.
Não percebia, Irineu, que com este plano cretino,
Escrevia em sua testa, a palavra ‘assassino’.
Um bilhetinho, Irineu? Um bilhetinho?
De onde tirou idéia tal! Quanta asneira escrita em papelzinho!
Ora, não se deu conta o assassino, que na penúria o inquilino,
Se fosse o conteúdo escrito, ao pé da letra levar,
Justamente um bilhete, é a ultima coisa que ia deixar.
E foi mais desatento o tolinho, no que tange ao bilhetinho.
Ora, se o coitado, morrendo de fome estava, e fome é coisa brava!
Capaz de distorcer, os sentimentos mais nobres;
É de estranhar que a cromada, mesmo raspada, não seja passada nos cobres!
Olhem em volta, amigos, que no meio desta miséria,
A arma é o único bem do morto, que não se presta à pilhéria!
Mas não parou por aí, a peraltice do Irineu;
Pasmem agora, com esta mancada que ele deu!
Ao botar a arma, na mão direita do morto,
Realizou na Razão, um admirável aborto.
Embora tenha acertado, pois o defunto usava a destra,
Para tanto basta olhar o seu quarto, a mesinha de cabeceira,
Ao lado direito da cama, nisto não cometendo asneira.
Porém, não percebeu o maroto!
Que a porra do bilhetinho, fora escrito por canhoto.
Embora o tenha escrito, em desgraçada caligrafia,
Não foi o suficiente, para não entrar numa fria.
Quando o negão aqui, pediu seu livro de anotação,
Foi só pra tirar a cisma e lhe apontar o dedão;
O Irineu é canhoto! Minha gente, é um canhotão!
Eis o assassino, deste coitado no chão!
A esta altura, realmente os presentes não continham as gargalhadas, com exceção
óbvia de Irineu. Que num acesso de raiva disparou para Epaminondas: - Bêbado
desgraçado! Quem ou o que é você? Como pode saber tudo isso? Você arruinou
minha vida! - Epaminondas ficou sério. Desprendeu-se calmamente de seu poste,
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caminhou com seus passos arrastados e encarou o senhorio quase encostando a
ponta de seu nariz na ponta do nariz do homem, que encarava o negrão com
visível pavor nos olhos. – Seu sóbrio filho da puta, – disse Epaminondas, com sua
voz bêbada e calma – olhe para você, sua vida está arruinada desde que nasceu.
Seu zumbi desgraçado, morto-vivo de uma figa... ou você pensa que o fato de
respirar, comer e cagar, lhe dá o direito de se sentir vivo? Não fosse você um
sujeito que me inspirasse pena eu me alongaria no assunto. Como pode um ente
que se pretende homem, não arcar com as próprias atitudes? Como pode não
matar no peito seus atos? Que tipo de homem pode escolher se esconder na
mentira a encarar a vida de frente, de peito aberto, senhor dos seus atos, mesmo
quando estes dão em merda? encarar sem medo? Foi para seres humanos como
você que foram inventadas as regras e a moral, afinal, não passam de crianças
idiotas que brincam com dinheiro e gravatas; afinal que digo eu? – Epaminondas
encaminhou-se para a porta, sendo carinhosamente seguro por seu fiel amigo –
Estou entre sóbrios, e o apanágio do sóbrio é o medo. Seguir as regras é o crème
de la crème de toda uma vida sóbria. Sem coragem, sem riso, sem dança, sem
demônios ruidosos e risonhos. Acocorados atrás das regras, atiram pedrinhas nos
que têm coragem de andar. Você nunca mudará, Irineu, vai sempre preferir a
mentira à responsabilidade de ser homem, ou seja, nada mais nada menos do que
ser você mesmo, com coragem de ser autêntico; mas você não tem nada por
dentro não é? Não tem demônios, não tem conflitos, não tem nada que possa dar
um pingo de dignidade a essa existência de mera casquinha, para que? Se vocês
sóbrios imaginam fora de vocês o que os tornariam pessoas interessantes, para
fazer o que mais gostam; jogar pedras ou ajoelhar-se diante desses totens, seus
totens do Bem e do Mal! Bem, já não tenho mais nada a fazer aqui. – e partiu
calmamente, sumindo na escuridão dos corredores do antigo prédio, não sem
antes os presentes escutarem uma gargalhada, e ainda sua voz: – Às bocetas,
amigão, às bocetas, há,há,há,há - que desapareceram rapidamente.
- O que é tudo isso? – comentou um patético Irineu – como ele poderia saber os
detalhes? Quem é esse cara?
- Esse cara – disse Santos enquanto Edson botava as algemas no velhote – é o
pesadelo de quem não se comporta direitinho Sr. Irineu – vamos...
- Hmmm... Quem não se comporta direitinho? – disse o velhote lá com seus
botões - acho que não... Acho que não...

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***
Encaminhado o assassino à delegacia, todos saíram à rua e enquanto caminhavam
Santos comentou: - O cara está cada vez melhor, aí está um mistério que jamais
entenderei; Epaminondas... Epaminondas... Às vezes penso que este homem é um
enviado dos infernos, zomba da gente, da nossa incapacidade, se sente superior,
no entanto não passa de um bêbado inveterado. Caramba!
- Zomba da nossa preguiça, se me permite, senhor – começou Edson –
poderíamos desvendar, ou não, este caso. Quanto tempo de trabalho penoso
teríamos de encarar? Virar a vida do defunto de cabeça pra baixo e sacudir até cair
as migalhas com que pudéssemos trabalhar! Ademais, quem liga para esse morto?
É só mais um, não é verdade? Teríamos saco pra levar isto adiante? Pra que
iniciarmos algo que nos sacrifica, se o negão resolve na hora? Ele vem, olha e
pimba! Está feito. É bem verdade que sempre nos faz escutar aquela merda toda,
acho que o cara é místico, sei lá... sempre tem aquele sermão! Aquele negócio de
sóbrios e embriagados.
– Vocês sóbrios que se entendam! – falou Edson imitando o jeito ébrio de
Epaminondas.
- Místico é o caralho! – refutou com veemência Santos – esse cara é um grande
filho da puta! Aposto que agora está rindo da nossa cara lá com as putas dele! Eu
realmente de minha parte não chamaria essa entidade infernal! Confesso pra vocês
que às vezes ele me dá medo; de onde ele tira essas respostas tão rápidas? Alguém
duvida que tem parte com o diabo? Decididamente não é dos nossos, não fosse o
delegado Fidelis nos empurrar goela abaixo essa figura dantesca, há muito que não
precisaríamos encarar aquele olhar assustador presente nas cenas dos crimes; aí
sim sou obrigado a concordar com Edson, o Fidelis não quer é trabalho.
Nina então botou sua mão no ombro de Tito e deixou um belo sorriso se achegar
manso no seu rosto sereno, deu uma carinhosa chacoalhada no novato – E então,
neófito? Nos diga o que achou do seu primeiro dia? De uma coisa eu gostei,
confesso, o broto não teve náusea, isso é um bom começo. – Tito riu e respondeu:
- Náusea realmente não tive, mas, mais do que a cena do crime, de fato fiquei
muito impressionado com esse tal Epaminondas...
- Não disse! – interrompeu Santos – o senhor Epaminondas roubou a cena mais
uma vez! Com sua bruxaria, com seu hálito de cachaça, e aquele muro de arrimo
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que carrega consigo. – virou-se subitamente para Tito abrindo os braços
energicamente – Vamos pergunte! Pergunte logo, mate esse verme da curiosidade
que corrói esse coraçãozinho novato! De onde surgiu esse ente, Epaminondas! Ora,
poderia te responder que ele não existe. Sim, não existe, é só uma alma penada
que sai do Cemitério das Camélias para ajudar policiais quando estes se deparam
com casos escabrosos. – Santos de repente parou a pantomima, e sério, encarou
Tito, os outros dois embarcaram com notória curiosidade naquele repentino
silêncio. – Bem, na verdade... na verdade não é bem assim. – prosseguiu
caminhando calmamente, no que foi seguido pelos demais; Tito tinha os olhos
cravados no semblante de Santos e este reparou no vivo interesse do rapaz, deu
então um leve sorriso e prosseguiu.
- Epaminondas era um policial da velha guarda, aliás, era excelente policial,
daqueles de meter a cara no fogo, não tinha medo de nada. Não precisou muito
tempo para despertar o espanto e a admiração dos seus superiores, era destemido
e muito inteligente; suas diligências invariavelmente apontavam para o culpado, ou
os culpados; sempre trabalhou no crime. Subia morro e encarava de igual para
igual todo mundo, se pesca bandido com isca de chumbo! Dizia. Pulava em telhado,
disparava forte, não deixava colega na mão. Todos queriam ir para a linha de frente
com ele, aliás, se espelhavam nele. Certa vez tomou dois tiros durante uma batida
no morro, caiu e todos pensaram que era o fim de Epaminondas; achegaram-se
então ao ferido. Iam pedir ajuda pelo rádio quando para espanto de todos, o
negão levantou de um pulo empunhando sua ponto 45 e saiu gritando e correndo
como um ensandecido na direção dos tiros inimigos. Pulou para dentro de uma
casa através da janela, que estava fechada e, diga-se de passagem, espatifou-a
com o impacto de seu corpo ágil e uma vez lá dentro fuzilou a todos, sem
clemência! Bem, este feito lhe rendeu uma honra ao mérito é claro, porém,
também rendeu uma imensa desconfiança por parte de seus superiores; quem,
diabos, era aquele homem? Bom, Epaminondas logo se recuperou de seus
ferimentos com rapidez espantosa. Ficou mais alucinado ainda, pediu a seus
superiores para agir somente à noite, no que foi atendido. Começou a trabalhar
mimetizado sob as sombras noturnas, se tornou invisível... e implacável! Os colegas
apenas davam cobertura à distância, mas em vão, pois o demônio sumia na
escuridão; a partir daí, quem presenciou suas ações conta que o negócio era de
arrepiar! Não demorava muito e os gritos dos vagabundos apanhados por ele se
faziam ouvir em toda a vila ou morro onde a ação se passava. Eram gritos
alucinados de verdadeiro e vivo pavor! Ninguém saiu vivo de suas investidas. Era
silencioso, invisível e... mortal! Bem, disso resultou que a criminalidade começou a
cair na cidade; os marginais, por incrível que pareça, começaram a temer o tal ‘
homem da sombra’. A repercussão à época foi tanta, que até as mães humildes
desses locais ameaçavam seus filhos, no caso de mau comportamento, com a
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proverbial frase ‘veja bem o que você vai fazer ou o Homem da Sombra te pega!’.
– Tito interrompeu o relato com viva empolgação - Êpa! Minha mãe cansou de me
ameaçar com o tal Homem da Sombra! Este então realmente existiu? Há,há,há,há...
não acredito que acabei de conhecer um mito de coação infantil! Cresci sendo
ameaçado com ele e o tal ‘velho do saco’! Puta merda! Quem diria!
- É isso aí, garoto. – prosseguiu Santos - Conheceu o home! É difícil saber o que
é verdade e o que é lenda na história deste demônio; as coisas hoje se confundem,
mas tudo que relatei até então é a mais pura verdade. Mas, mais verdadeiro ainda
é o final desta história. Os superiores começaram a desconfiar de que uma pessoa
normal não poderia agir daquela maneira; veja bem, não que os resultados os
desagradassem, ao contrário, a criminalidade caiu tanto que até a mídia deu uma
força e começou a divulgar, irmanada com a polícia, tratar-se os eventos de um
esquadrão de justiceiros. Assim, nosso herói poderia agir à vontade. Porém,
resolveram examinar Epaminondas mais de perto e descobriram que ele agia sob
efeito de drogas pesadíssimas, que eu não saberia descrever agora, tratava-se de
verdadeiros coquetéis de entorpecentes, os quais, dizia-se, um ser humano normal
não agüentaria um décimo! Harmonizava tudo isto com generosas doses de
cachaça; realmente não fosse ele um sujeito fora do normal e há muito teria
sucumbido. Foi então que os superiores perceberam de que não valia a pena correr
o risco de abalar a reputação da corporação caso algo saísse errado. Até porque
Epaminondas estava cada vez indo mais longe com suas diabruras, e tudo indicava
que não terminaria bem. Epaminondas há algum tempo já começara a discutir com
seus superiores, a zombar mesmo da cara das autoridades, chegou até a
questionar se estava do lado certo desta briga. Submeteram então o endiabrado a
um tratamento para livra-lo das drogas e do álcool, mas foi tudo em vão; em
pouco tempo todos os que tratavam Epaminondas ou já não o suportavam mais
ou estavam viciados, isso mesmo, viciados. Foi nesse tempo, na clínica, que
começou a pedir para ficar afastado da luz, passou a não suportar claridade,
tiveram que improvisar um quarto totalmente escuro para ele. Passou por outras
clínicas, e transformou-se numa rotina ter de acomoda-lo em quartos escuros.
Passou a ter comportamento estranho, pois quando privado da bebida e das
drogas, escutava música clássica e jazz, e passava horas e mais horas de pé com
um roupão negro com capuz, dizia coisas incompreensíveis. Acendia velas pelo
quarto escuro, e todos, sabedores do que ele era capaz, não o contrariavam,
faziam-lhe as vontades. Epaminondas sempre foi espantosamente persuasivo,
porém, nessa época falava muito pouco. Bom, segue-se daí que obviamente o
aposentaram. Epaminondas então sumiu. Ninguém sabia dele. Foi então que um
crime aconteceu em um bairro bacana da cidade, aquele da loira com o vibrador,
recordam? Pois é, para espanto de todos, o homem apareceu na cena do crime e
os antigos companheiros o saudaram com alegria e emoção. Ele mal se agüentava
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de pé de tão bêbado, e era amparado por dois homens, possivelmente seus
amigos. Por delicadeza e até por reconhecido respeito, deixaram Epaminondas dar
seus pitacos sobre a cena do crime. Ele então descreveu o que ocorrera ali com
uma precisão cirúrgica; bom, é óbvio que todos fingiram, por gentileza ou quem
sabe até por um pouco de medo, que levavam a sério o que o bêbado dizia.
Epaminondas assim como apareceu, foi embora. Dias depois o crime foi elucidado,
e para espanto geral, era ipsis verbis o que o negão descrevera. A partir daquele
episódio, e já faz tempo, quando o caldo engrossa, quando se calcula ser um crime
encardido: chama o Epaminondas! Ah, sim, ele deixou um número de telefone para
contato quando da primeira vez, alegando que o chamassem para que ele pudesse
praticar um pouco de esporte. Bem, senso de humor ele tem. Meu jovem, acredito
ter lhe dado o cartão de visita de nosso amigo misterioso, e se me perguntar por
onde esse cara andou ou anda, não saberia lhe responder, ele é uma aparição, e
todos querem que continue assim.
Tito a tudo escutara impressionado, quando a voz de Nina interrompeu seu
pensamento que já viajava longe – Vamos comer alguma coisa, Cabaço! Não é tão
tarde assim, e esses dois têm família esperando em casa, eu não tenho e pelo que
sei você também não.
- Claro, apesar de não ter muita fome, o defunto embrulhou meu estômago.
- Normal, mas isso passa logo, coisa de novato nestas coisas.
- Não vai comer o rapaz já logo de saída Nina, você nem engorda o porco? –
brincou Edson.
Nina fez um conhecido sinal com o dedo médio e pegando na mão de Tito, o
retirou da presença dos outros, que seguiram na direção oposta não sem antes
ouvir de Santos alguma recomendação em tom jocoso. Não precisaram andar
muito para acharem um bar de esquina já com poucos clientes. Sentaram, pediram
um sanduíche aberto e duas cervejas pequenas. Nina reparou que Tito seguia meio
aéreo, e o chamou ao chão novamente.
- Primeiro dia na pauleira é assim mesmo, malandro! E olhe que você foi
agraciado! Conheceu já de saída, o grande Epaminondas! – o grande Epaminondas
foi dito numa imitação de grandiloqüência.
- Realmente estou impressionado, admito que nunca vi nada assim, o homem
chegou e pum! Resolveu tudo! De que manga ele tirou tão rapidamente a solução
do caso? Ou realmente – agora com um sorrisinho maroto – ele tem parte com o
demo?
- Parte com o demo? – disse Nina interrompendo um gole direto da garrafinha
de cerveja – não sei. A única coisa que sei é que estou há dez anos na polícia e
todos se borram de medo desse homem. Mas não tenha receio querido, pelo que
eu sei, ele só sai à noite e não muito. Como já fez sua ‘aparição’ hoje, duvido que
nos assombre mais uma vez.
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- Mas Nina, me diga... Você nunca ficou curiosa sobre esse homem nestes dez
anos?
- Meu querido Cabacinho! É praticamente proibido tocar no assunto
‘Epaminondas’ na polícia. É uma espécie de totem em que a gente não toca.
Realmente acho que o pessoal tem medo de que o negão encha o saco e suma
para nunca mais voltar. Seria um prejuízo incalculável se ele sumisse. Você viu, ele
chega e mata a charada. Ninguém quer correr o risco de afugentar o cara. Agora,
você me pergunta se nunca tive curiosidade, é óbvio que sim. Para dizer a verdade,
perdi noites de sono tentando desvendar o segredo deste homem, o ‘Homem da
Sombra’; mas quer saber? Nunca cheguei à conclusão nenhuma, então desisti.
Acho que existem alguns mistérios que se explicam por si, e isso é tudo; paciência.
- Acho que quem não vai dormir a partir de agora sou eu. Fiquei com esta
imensa pulga negra atrás da orelha. – neste momento Tito pousou os olhos com
mais calma em sua interlocutora, e reparou que Nina apesar de não ser uma
mulher bonita, tinha um rosto interessante: olhos levemente puxados que sorriam
em consonância com sua boca pequena e bem desenhada. Tinha possivelmente
uns trinta e alguma coisa, de corpo mignon e sarado, apesar do excesso de roupa
naqueles dias frios. Tinha cabelos castanhos claros invariavelmente presos e pele
branca como neve. Agora na claridade daquele bar podia vê-la pela primeira vez,
assim, de pertinho, e estava surpreso por não ter reparado antes nos sutis e bem
escondidos encantos de Nina. É bem verdade que a achava meio abuzadinha, meio
espaçosa para seu gosto. Bom, era o jeito dela, e ele agora estava imbuído em
coopta-la para um grande plano que se desenvolvia com grande velocidade em
sua cabeça.
- Estou cansado demais por hoje Nina, me desculpe se já bocejei duas vezes, é
que foi dose pra elefante estes acontecimentos desta noite.
- Não seja por isso, Cabacinho, vamos embora porque eu também não agüento
mais esse negócio de Epaminondas.
- Mas aquele sambinha, aquele sambinha foi sensacional. Nunca esquecerei
aquilo. - e os dois riram, pediram a conta e se foram.
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A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 02 ATRAINDO O OCEANO PARA UM PINGO D’ÁGUA
Na delegacia, na manhã seguinte, a agitação de sempre; gente entre balcões e
mesas protagonizava o tráfego ruidoso do ambiente policial. Nina digitava seu
relatório num ultrapassado computador, há muito que o pessoal reivindicava por
aparelhos mais avançados, mas sabem como é... repartição, etc. tem de esperar. Ela
esbravejava alguma coisa baixinho quando Tito aproximou-se sorrateiro e por trás
sussurrou no seu ouvido: - Consegui! - Nina deu um pulo – Droga, seu puto! Vai
assustar a sua mãe!
Tito riu despreocupadamente, e prosseguiu balançando um pequeno pedaço de
papel – Ta aqui, neguinha, ta aqui! - ela tentou apanhar o papel, mas ele recolheu
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rapidamente a mão - Não com tanta pressa amorzinho! Isto aqui é um verdadeiro
tesouro!
- Se é seu número de telefone, não me interessa, seu abestado! – brincou Nina,
retomando seus afazeres no velho computador.
- Nada disso, o que tenho aqui, me foi dado pelo comissário Gordon, é o
numero do telefone direto do Batman.
- Então liga pra ele e diz pro morcegão que eu acho ele um saco.
- Se liga mulher! Se liga, consegui o telefone do Epaminondas, há,há,há...
A mulher tirou rapidamente os olhos de sua tarefa e com vivo interesse, levantou-
se para contemplar aquela pérola apanhada nos mais recônditos mares. – Como
você conseguiu?
- Isso, fala mais alto. O que temos aqui é o maior segredo da policia! Quer que a
delegacia toda descubra? Vamos sair daqui quietinhos. – e os dois retiraram-se do
local. Já no corredor ela acendeu um cigarro, e eufórica, pedia para ver o
papelzinho – Olha - disse Tito - é uma pérola conseguida graças a minha cara de
pau; arrisquei o couro pra conseguir essa porra!
- E como você conseguiu?
- Bem, hoje cedo, Santos me chamou em sua sala para que eu assinasse alguns
relatórios sobre a ação de ontem. A partir daí começamos a conversar. Ele estava
sentado à sua mesa e em dado momento alguém o chamou para uma merda
qualquer, ele pediu que eu esperasse e se retirou. Percebi seu celular em cima da
mesa, e então me veio a idéia! Ora, eu sabia que Santos havia ligado para
Epaminondas ontem à noite. A partir daí bolei um plano; sentei
despreocupadamente o bundão em sua mesa, peguei um pedaço de papel e uma
caneta, fingi então que anotava alguma coisa, e realmente anotava, anotava as
últimas ligações do Santos, que estavam na memória do celular.
- Putz! Você é louco, malandro? Se o homem te pega...
- Mas não pegou, chhht, deixa-me terminar. O Santos voltou e veio com umas
papeladas, disse então que falaríamos outra hora e me dispensou. Procurei um
telefone público e testei os números. O da casa dele eu conheço, esse eu pulei,
outros dois atenderam mulheres diferentes, talvez uma seja sua esposa e a outra
sua amante sei lá... Noutra deu numa casa de penhores, acho que ele anda mal de
grana... Depois, em outra deu no escritório de um tal Dr. Palácios advocacia cível,
etc. e finalmente, pimba! Atendeu um sujeito estranho que disse ‘alô’ e ficou
mudo, é aí, pensei, então eu disse: - É da parte do inspetor Santos – o homem
respondeu o seguinte: - Inspetor Santos? Mas ele sabe muito bem que o home não
atende de dia, vão ter de se virar sem ele. - Nesse momento eu desliguei. Não há
dúvidas este é o número do negrão! Diga-me, sou ou não sou um bom
investigador?
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- Acho que isto é o que vamos descobrir a partir da agora; mas saiba, essa
curiosidade é minha também, nem pense... Nem pense em fazer qualquer coisa
sozinho! Desvendaremos este mistério juntos, capisci, Cabacinho?
- Então vamos começar desvendando outro mistério; que prazer é esse que você
tem de me chamar de Cabacinho? Porra, esse troço enche o saco, capisci? Se
quiser ser minha companheira neste negócio, das duas uma: ou confere meu
cabacinho na cama, ou pára com essa merda!
- Tá se agigantando, malandro? Mais devagar... ter esse segredinho no bolso
não lhe torna policial experiente, e pra encarar essa merda toda tem que ser galo
velho! Só quero ver. Quanto a lhe chamar de Cabacinho, certo, negócio fechado. Eu
paro. Quando começamos as investigações, Pequeno Hímem! – Nina caiu na risada,
e foi acompanhada por um sorriso meio sem graça de Tito; não era hora para
polêmicas, ele tinha uma idéia fixa e aquela mulher era a melhor cúmplice com que
podia contar. – Bem, vamos ter de esperar anoitecer para fazer contato.
- comentou Tito.
- E alegar o que? Ou vamos matar alguém para atrai-lo ao local do crime. Diga-
se de passagem, que esta seria a maior burrice do mundo, uma vez que ele mataria
a charada em dois segundos.
- Vamos dizer a verdade.
- Que?
- A verdade, pura e simples, nada mais.
- E qual é a verdade pura e simples, nada mais?
- Que somos fascinados nele, é nosso herói etc., sei lá, porra!
- Você não conhece este homem. Ele vai rir da nossa cara, esse negócio de herói
com ele não cola e de mais a mais, por quais nobres motivos ele nos receberia em
sua toca?
- Bem, vou pensar em algo até a noite, agora vamos trabalhar para não
pensarem que estamos de namoro no serviço.
- Oh!
Os dois então entraram e foram às suas respectivas mesas. Mas foi difícil trabalhar
naquele dia, a expectativa era grande e nada acontecia, o dia foi lento e sem graça;
pequenas e corriqueiras ocorrências, boletins e papeladas. A única graça que os
dois acharam para se entreterem naquela modorra burocrática, era a de rápidos
olhares cúmplices trocados sorrateiramente. Quando enfim, começou a anoitecer,
Tito percebeu que estava ficando nervoso, e isto não era bom. Se quisesse que o
plano desse certo, teria de encará-lo com naturalidade. Começou então a pensar
de como conseguiria uma audiência com Epaminondas. Onde afinal vivia o negrão?
Que tipo de recepção eles teriam? E se o cara se negasse a recebe-los? Se
reclamasse deste assédio a Santos? Como ele explicaria a aquisição do numero do
telefone? Percebeu então que começara a suar frio. Poderia estar botando sua
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carreira em jogo, valeria a pena arriscar tudo assim? Logo agora que começara a
investigar crimes? Se descobrissem poderia tomar um cano, e ficar por meses
rebaixado ao envolvimento com a burocracia da delegacia. Mas estava
irreversivelmente fascinado com aquela misteriosa e profundamente enigmática
figura. Achava estranho, mas seus instintos diziam que ele teria muito a ganhar
com aquele desconhecido, sentia algo místico, que o impelia a correr riscos para
atingir seu fim; mais ainda: achava que se não houvesse riscos, seu
empreendimento seria de bem menor valia. Estava convencido de que
Epaminondas era um daqueles raros sujeitos que realmente tem algo a dizer. O
problema era de como convencê-lo de que eram de confiança; que seus possíveis
segredos estariam em total segurança. Às vezes Tito perdia seu olhar na paisagem
cinzenta que a janela oferecia e alguns pensamentos lhe provocavam algumas
pontas de desânimo; e se tivesse mitificado aquele sujeito? Se não fosse nada
disso, se o cara não passasse de um bêbado comum que acertava palpites em
cenas de crimes? Se, ao encontrá-lo, finalmente percebesse que Epaminondas era
um pobre coitado, miserável e rancoroso por ter sido relegado ao ostracismo da
polícia, um homem que choramingasse as mágoas de ser um incompreendido e
injustiçado, que dera seu sangue, literalmente, ao seu trabalho e que quando está
para chover, os ferimentos dos tiros doem e lhe causam grandes transtornos de
saúde? Ele mostraria os remédios de que era obrigado a tomar para depressão,
cirrose, etc. enquanto sua velha e paciente companheira diria que ele não bebia
tanto antes de sair da policia – Agora está virado nisso aí! – e apontaria para um
Epaminondas baboso, atirado em uma velha e furada poltrona, com uma garrafa
de conhaque no colo. A paciente senhora se retiraria para preparar-lhes café, e
então o ex-policial começaria, com sua voz pastosa, a desfiar o rosário familiar e de
como era mal tratado por todos os seus circundantes, para em seguida, em voz
alta para a esposa escutar, contar bravatas de valentia, dos seus bons e velhos
tempos. Quem sabe à luz, seu olhar amedrontador não passe de olhos embaçados
pelo vício e pela idade; que já não dizem nada, sem força e sabe-se lá, até mesmo
suplicante e patético. De repente, Tito despertou deste devaneio. Não, claro que
não, ele não seria este ente patético e deprimido. E Tito deixou escapar uma risada;
não, um cara assim jamais desvendaria um crime compondo e cantando um samba
de improviso! Não, decididamente este ser doente não seria jamais aquele
repentista fascinante e embriagado que o assombrou na noite passada. E
principalmente, o homem que disse o que disse, olhando nos olhos assombrados
do assassino, na noite anterior. Olhando então pela janela, Tito esqueceu a noite
passada, porque a noite de hoje já havia chegado.
22

***
Tito e Nina saíram juntos da delegacia. Percorreram alguns quarteirões e
resolveram sentar em um bar para tratar da execução do plano.
- Muito bem, maroto. O que você bolou. Qual será nosso cavalo de Tróia
para entrarmos na vida do Sr. Misterioso? – perguntou Nina.
- Para dizer a verdade, não me ocorreu nada. Acho que temos que ligar e
pronto. Sem muito esquema. – disse Tito, enquanto observava o garçom
colocando dois copos na mesa e uma garrafa de cerveja.
- Quem sabe o convidamos para beber? Não é o que ele mais gosta? À
nossas expensas. – brincou Nina.
- Seria como atrair o oceano para um pingo d’água. Se existe uma coisa da
qual, creio eu, Epaminondas não se ressente, é da falta de trago. Não acredito
que é por aí o negócio. Temos que pensar em algo que realmente lhe agrade.
– comentou Tito enquanto servia os copos.
- Mais que a cachaça? Você tá brincando! Um brinde, tim tim!
- Tim tim!
Nina então reparou com mais calma no seu teimoso colega. Achou que era, até,
um sujeito bonito. Tinha estatura média e forte. A pele queimada pelo sol
realçava um belo sorriso, embora Tito fosse o que Nina considerava homem
sério, não muito afeito a brincadeiras fora de hora. O cabelo extremamente
negro e um pouco comprido para seu gosto, apresentava nuances do trabalho
inclemente do Sol, enquanto os olhos grandes igualmente pretos, dificilmente
pousavam por muito tempo em alguma coisa, ao que Nina atribuía a uma
possível timidez mal disfarçada. Talvez não passasse de um menino.
- Quantos anos você tem? – disparou curiosa.
- Vinte e seis. Porquê? Pareço muito velho? É esta porra desta luz, dá bem em
cima de mim! Quanto eu aparento, trinta, trinta e cinco?
- Com a boca fechada. Quando fala, uns... dez. – falou Nina divertindo-se.
- Ah, sim, é que tenho de fazer jus a meu gracioso apelido de Cabacinho.
- Mas não fique brabo comigo, quem lhe presenteou com esta maravilhosa
alcunha foi seu amado ídolo. Aliás, me ocorreu uma idéia! Epaminondas disse
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que sente cheiro de defunto e cabaço; logo, ele poderá chegar a nós farejando
você! Vamos andar pela cidade e deixar que nos ache, há,há,há...
- Isso, tira sarro... você não está ajudando em nada para acharmos uma
solução. Me pergunto se não seria melhor trabalhar nisso sozinho. Não é mole
agüentar todo esse seu sarcasmo.
- É que você é muito sério, precisa relaxar. Desde que botou esse bebum na
cabeça não fala de outra coisa. E se por acaso tudo isso não der em nada? O
que você vai fazer? Aguardar outro assassinato para encontrar-se com seu
único e verdadeiro amor? Ele aparecerá e desaparecerá no nada, como sempre.
- Quantas vezes você presenciou suas aparições?
- Não muitas, mas lhe garanto, ninguém nunca se atreveu a segui-lo ou coisa
parecida. Todos têm respeito ou medo dele. Você viu ontem? O Santos,
sempre cheio de pose, metido a sabichão, gosta de vomitar ordens, etc. meteu
o rabo no meio das pernas quando o negão abriu a boca. O que você quer
fazer, na verdade, é praticar um crime de lesa-majestade. No momento que
encontrar o cara e ele não gostar, pode desistir de ajudar a polícia. E aí, o que
você vai dizer para o Santos? E para o delegado Fidelis? E para toda a
corporação? O que dirá você? Amigos, o homem da sombra não virá nunca
mais, pois fui impertinente o suficiente a ponto de procurá-lo e aborrecê-lo,
agora ele não quer mais saber da policia! – Nina deu uma parada, suspirou e
prosseguiu – Sei o que você deve estar pensando, que eu então não devia ter
topado esta empreitada...
- Exatamente.
- Mas eu também morro de curiosidade sobre esse homem. Só que temos
que ter um plano que não dê errado do modo algum, só isso. Acho precipitado,
você conheceu o cara ontem e já quer procurá-lo hoje, e assim, sem nenhuma
carta na manga! Você nem sabe com o que está lidando, e se ele for perigoso, e
se há muito ele já não esteja em seu juízo perfeito? Porra o cara é uma esponja!
Duvido muito que não haja algum dano naquele cérebro.
- Puta merda! Se aquele cérebro tem algum dano, também quero um deste.
Você não tem vergonha de dizer uma coisa destas? Quatro policiais sóbrios
precisam que um bêbado, vindo não se sabe de onde, resolva um crime! Dano?
Que dano pode ser esse, que faz com que o sujeito improvise um samba e
conte a história do assassino e do morto? Assim, num estalar de dedos! Ao
contrário de você, eu realmente acho que estamos diante de um misterioso
fenômeno. E quero descobri-lo. Só não sei se ainda posso contar com você.
- Pode... Claro que pode – disse Nina, fazendo um ar cansado - mas volto a
dizer, precisamos de um plano.
- Você quer um plano? Está aqui o plano... – ato contínuo, Tito pegou o
celular e ligou, com tanta determinação, que Nina preferiu ficar em silêncio,
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embora aflita. Tito esperava com o aparelho junto ao ouvido, o rosto impassível
aos poucos descorava, e a mão começou a tremer levemente – Droga! Não
posso fraquejar agora.
Alguém atendeu do outro lado. Tito estremeceu. Os olhos saltavam no rosto
exangue. Nina tinha os olhos cravados na fisionomia do rapaz, como se através
desta, pudesse decifrar o enredo daquela conversa que enfim começava. Uma
voz grave e pastosa atendeu do outro lado – Ora, ora, ora... se não é o meu
amigo cabaço! Fale meu rapaz, onde foi a merda desta vez?
- Não... não houve nenhum crime Sr. Epaminondas. – Tito sentia que a voz
lhe saia miúda e a garganta parecia fechar.
- Não? Então o que vocês querem de mim, porra? Estava me preparando pra
dar uma sonora trepada! Ou lembraram deste velho diabo porque finalmente
reconheceram que é chagada a hora de recompensá-lo com um gordo cachê?
Desembucha meu filho!
- Não é a policia que está lhe ligando, sou eu. É particular. Gostaria inclusive
que eles não soubessem deste contato. Aliás, não sei como adivinhou ser eu ao
telefone.
- Há,há,há... Não, meu filho, adivinhação não existe. Eu apenas sabia ser você
ao telefone, nada mais. É particular? Hummm... Qual é o rolo que você se
meteu? Eu tô dizendo... vão acabar me chamando até para fazer parto! Essa é
boa! O cara quer atendimento particular! Agora escute com atenção, filhote, se
eu abrir uma exceção para atendimento particular, este telefone não vai mais
parar de tocar, que horas vou achar para me embriagar? Meu negócio é beber,
me chapar a valer, trepar muito, brincar, dançar, cantar e dar risadas, a que
horas poderei fazer isto? Não poderei, pois terei de trabalhar sob a incidência
de luz... urghh! Tá louco! Por isso, não me leve a mal, não é nada pessoal, a
polícia é uma exceção por questões sentimentais, pois dei uma parte da minha
vida a ela em troca de algum dinheiro. Agora lhe dou uma ínfima parte da
minha vida e não quero dinheiro nenhum, faço por esporte, isso é tudo, garoto.
- Não desligue! Deixe-me dizer! Não sei como o senhor vai interpretar isso,
mas realmente, como um policial que está iniciando uma carreira na
investigação de crimes. Cabaço você diz; sim, totalmente cabaço! Gostaria
muito que me ensinasse sua técnica dedutiva! Seria-me de grande valia, isto é...
Obviamente, se o senhor tiver um pouco de paciência com seu jovem aprendiz.
Sou de aprender rápido sei que não se arrependerá. – Tito disse isto quase que
de um fôlego só, e começava a sentir uma incômoda sensação de que
começava a fazer papel de idiota.
- Há,há,há... Espere que vou dar mais um gole! Êta vinho bom! Hummm....
Delícia! Bom, que você queira ser um dedicado filhotinho do Estado, posso
compreender, afinal está há pouco tempo nesse negócio. Todo o tesão é
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louvável meu garoto! Mas creio realmente que a estas ambições, algumas
cartilhas e manuais de procedimento poderão lhe ser de maior utilidade que do
que eu. Obviamente, meu caro, além de um dom natural que, espero, você
tenha. De minha parte, se tem alguma coisa que nunca me passou pela cabeça
é ensinar alguma coisa; me seria terrivelmente penoso vestir essa carapuça, a de
mestre; porra, só de falar disso me deu sede! Bravo! Mais um gole... êta vinho
bom! Agora, se me permite, filhote, tem uma mulata... eu adoro mulata, os
sóbrios costumam dizer que ela tem a cor do pecado! há,há,há... tem uma
mulata maravilhosa na minha cama, exalando seu cheiro amoroso de cravo, ela
faz agora uma dança de cigana, quer o seu negão! Seu negão! Bem
embriagado! E todo amor e tesão que pode sorver, egoísta, desta minha
embriaguez despreocupada e profana! Sim, todos os meus sentidos estão em
profunda alegria, tem uma mulata na minha cama! Portanto irmãozinho sóbrio,
sem rodeios: sinto que você quer mesmo é me conhecer mais de perto, eu lhe
impressionei, etc. e tal... Eu li isto ontem nos seus olhos. Por que você
simplesmente não fala a verdade? Dá para sentir o cheiro da mentira daqui!
Enquanto optar pela mentira, não poderei fazer nada por você. Pare para
pensar, nessa luz parca que incide sobre vocês, sóbrios, que induz à mentira
para atingir um fim, mesmo que este tenha nascido dos mais profundos
sentimentos.
- Perdoe-me, o senhor tem razão, – disse Tito totalmente sem jeito sob o
olhar estupefato de Nina que não imaginava que o rapaz pudesse levar a
conversa tão adiante - talvez eu não esteja pronto para este contato.
- Sim está; tanto que, creio eu, deve ter conseguido meu telefone de forma
não muito lícita. Arriscou seu pescoço. Isto demonstra paixão, paixão ao
empreendimento ao qual você se propôs. Com isso angariou meu respeito.
Livre-se destas pequenas mentiras e me aguarde, eu te acho. Uau! Estou me
derretendo de tão embriagado e tesudo; tem uma mulata na minha cama, e
ela... ela faz uma dança de cigana... Ah! Antes de desligar, dê um beijo aí, para a
Nina... é Nina o nome dela não é mesmo? Tchau!
Tito desligou o telefone sem tirar os olhos da atônita Nina. – Lhe deixou um
beijo! – disse em júbilo – yes, yes, yes... Consegui! Consegui! Ele me dará uma
chance e se não tivesse eu, usado de subterfúgios mentirosos, me daria bem já
hoje. Lembra quando lhe disse que a verdade seria o melhor caminho para
chegarmos a ele? Você queria planos mirabolantes! Não, para se achegar a ele
basta apenas ser você mesmo, sem estas mentirinhas nojentas que inventamos
todos os dias para abrir pequenas portas. Sim, eu tinha razão.
- Certo, você ganhou, tinha razão, mas me conte tudo, tudinho, fale, fale
garoto! - e Tito cheio de um entusiasmo anormal, pediu mais uma cerveja e
começou a descrever sua rápida conversa.
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A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 03 SOBRE SÓBRIOS E EMBRIAGADOS
Três dias se passaram sem nenhuma novidade. Neste ínterim, não acontecera
nenhum crime que justificasse a presença de Epaminondas no local. Mas, uma frase
não saia da cabeça de Tito: me aguarde, eu te acho... o que o ex-policial queria
dizer com eu te acho? Nestes dias quando saía da delegacia, nem que fosse para
fazer um lanche, olhava para todos os lados à procura de algum sinal. Procurava
alguma pessoa estranha, algum aceno no outro lado da rua, alguém que lhe
entregasse sorrateiramente algum bilhete contendo instruções sobre como e
quando encontrar aquela enigmática figura. Estava criando o hábito de tomar
algumas cervejas com Nina quando um ou outro não estava de plantão. Às vezes
Edson também participava, mas nestas ocasiões tinham os dois, ele e a colega, de
cuidarem o que diziam, afinal, tinham um segredo. Um olhava para o outro, de um
jeito que ficasse claro quando o álcool ameaçava fazer derrapar a língua, pondo
em perigo seus planos. Às vezes reparava melhor na mulher, principalmente
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quando a bebida lhe afrouxava o espírito sisudo; olhava-a então com mais atenção
e tinha de admitir que o riso brincalhão de Nina ‘mexia com ele’. Algumas vezes
lhe ocorria convidá-la para continuarem a festa em seu apartamento, mas em
seguida sua costumeira insegurança com as garotas apossava-se de seus nervos.
Melhor deixar assim, de mais a mais, ela tinha um espírito brincalhão que talvez o
fizesse confundir as coisas. Sabia também, que não podia perder esta forte aliada;
se cometesse algum deslize que desgostasse a moça poderia pôr tudo a perder.
Foi assim que três dias se passaram e ele já começava a cogitar ligar mais uma vez
para o homem; no entanto, quando pegava seu celular desistia. O que dizer?
Epaminondas disse que o achava, e se isto fosse alguma regra que deveria
obedecer com total reverência? Poderia ser a condição sine qua non para o
encontro. Não, melhor não; desistia então da ligação e ficava entregue à ansiedade.
Foi pensando nestas coisas que chegou em casa, depois de mais um dia de
trabalho em que nada acontecera digno de nota. Cansado, talvez da modorra do
dia, não conseguiu naquela noite nem ver um pouco de televisão, indo direto
desabar em sua cama, de roupa e tudo, adormecendo em seguida. Caiu então na
imensidão do nada. O sono profundo em que mergulhara aos poucos dava lugar a
uma voz arrastada e grave, era a voz de Epaminondas. Enquanto despertava
lentamente, juntava preguiçosamente as migalhas de seu raciocínio perdidas na
escuridão silenciosa do sono. Aquela voz... Achou que estava iniciando um sonho e
entregou-se lentamente à doçura etérea daquele canto de Morfeu. Uma
gargalhada então, alta e lasciva, o trouxe à superfície. Abriu lentamente os olhos
numa luta serena contra pálpebras de chumbo. Começou aos poucos a divisar
algumas coisas à sua frente; a princípio imagens desconectas que dançavam; eram
luzes salpicadas de escuridões. Num esforço mais intenso obrigou suas pupilas a
lhe fazerem uma tradução mais fiel do que via. Dezenas de círios acesos, pretos e
vermelhos, emprestavam suas luzes a imagens assustadoras, carrancas, cabeças de
bronze com imensos chifres. Nas paredes pululavam imagens estranhas, pareciam
demônios que zombavam do recém chegado com seus sorrisos ruidosos. A dança
lenta, porém intensa daqueles pontos de fogo faziam com que claridade e sombra
brincassem em suas fisionomias assustadoras e alegres. Davam-lhes os
movimentos necessários para que mostrassem todo o êxtase de suas alegrias
pagãs; demônios orgulhosos que realizavam extáticos, suas danças infernais. O
medo exalado pelo inusitado visitante parecia arrancar-lhes risadas maldosas
embora surdas, como que em agradecida celebração pelo inocente, que agora ali,
petrificado, era oferecido em holocausto. Tito reparou então em uma imensa e
temerosa pira que ardia no centro do recinto, sentindo arrepios. Estava nauseado e
verdadeiramente apavorado. Não, aquilo não era um sonho! Decididamente aquilo
tudo era real, podia sentir o calor daquelas chamas e sentia também o aroma
inebriante e suave de incenso; sim, seus olhos estavam bem abertos.
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- Não, garotinho, você não está sonhando... – aquela voz bêbada e arrastada ele
já conhecia. E o pavor da situação o fez pensar se realmente acertara naquela
procura. Estava com muito medo. E se Epaminondas fosse um louco! E se
ingenuamente, caíra como um cãozinho estúpido e xereta nas garras de um
depravado! Ali imóvel, a mercê de seu raptor, que reação poderia exercer? Levou a
mão, num ato mecânico, abaixo do braço; procurava sua arma no coldre axilar, o
movimento saiu lento e em vão. Ouviu então a risada debochada de Epaminondas.
Aquilo o fez tremer. Sentiu uma vontade incrível de chorar, chorar um choro
infantil, de criancinha desamparada e então percebeu que estava entrando em
pânico. Começou a respirar fundo e tentou levantar-se de um só golpe; não
conseguiu. O sentimento de medo foi dando lugar ao de raiva, seu corpo imóvel
possivelmente drogado, fora conduzido sabe-se lá como, para aquele lugar
assustador. Pesava agora trezentos quilos. Desistiu de uma reação, apenas olhou
para o raptor à procura de alguma indulgência. Nos seus olhos estava escrita a
rendição, e os de Epaminondas pareciam-lhes mais sinistros do que nunca – Meu
caro e indefeso amigo - prosseguiu Epaminondas, que vestia uma grande capa
negra com capuz. Esta indumentária dava aspecto mais sinistro ao evento e a seu
principal personagem – Permita que me apresente: eu sou eu e não eles. Eu sou
aquele que escutou quando menino, ‘seja nós’, e respondeu: não posso porque eu
sou eu. Mais tarde escutou, então seja igual, e respondeu: impossível, porque sou
diferente. Por fim escutou, então pelo menos seja ‘bom’ e respondeu: como assim,
me pedir um sentimento? Ficou então enojado dos pedintes e foi embora. Não me
presto a ser comestível, queriam que eu fosse mais um arroz...branquinho, coletivo
e indefeso, mas não. Eu sou a mosca que pousou no prato! Este sou eu. Portanto
meu caro espero que você não seja um babaca qualquer, que venha apentelhar
meu sossego. Imagino que o que lhe fascinou naquela noite, foi o inusitado, estou
errado? Claro que não. O inusitado, quando se está entre sóbrios é entretenimento
que desconcerta, é diversão. Sob a luz mortiça da Razão, todo mundo é valente!
Todos, sob a tutela da sobriedade, essa parca luz, são muito curiosos. No entanto,
basta apagar a luz, e voltam a ser as criancinhas mimadas, desprotegidas e
chorosas, que os sóbrios, em ultima instancia, são. Crianças que têm medo do
escuro. Apresenta-se a você uma situação inédita, e seu coraçãozinho sóbrio entra
em desespero. Por que? Porque o dia a dia em que sua cabecinha é viciada, não
pode prever que exista vida onde você não enxerga. Ninguém me vê durante o dia.
Pois saiba novato! Na sombra a vida é mais intensa que na luz. Porque à sombra,
só enxerga quem ilumina com o próprio fogo, se não, morre de fome! Quem não
tem luz própria, apavora-se na escuridão, não vê nada, e que perigos podem surgir
de onde não se enxerga! Ajoelha-se então e reza por uma lanterna salvadora. A
lanterna da luz sóbria! Olhe você! Queria ter comigo. Dou-lhe uma chance e você
se caga nas calças! O que você imaginou? Que eu estaria à sua espera em um
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botequim de quinta categoria, em uma esquina qualquer? Claro que sim! Tenho
certeza, há,há,há... mas não, meu filho, embora adore botequins de quinta
categoria. Só cuide com esse hábito sóbrio de rebaixar o que não conhece à
imagem e semelhança do conhecedor. – Epaminondas abriu os braços e saiu
andando pela imensa sala com seus passos trôpegos – Olhe tudo isso! Estes todos
são avatares de uma embriaguez cósmica! Estão lhe recepcionando com intensa
alegria! São os melhores amigos que você pode ter, desde que possa percebe-los
quando vêm dançar, no silêncio misterioso da sombra. Oh, não! Esqueci-me, você é
um sóbrio! Tem pra você tudo bem iluminadinho! Escolhe as coisas pela incidência
de luz que nelas refletem; narcisicamente, escolhe então os reflexos de luzes que
mais lhe agradam. Alimenta-se de luzes refletidas, reflexos de luzes alheias. Mas, e
a sua luz? Não existe? Há,há,há... Você só saberá se dançar com seus demônios
danças infernais, menino, sob a luz negra de sua própria sombra. Olhe essas velas...
iluminam na escuridão com luzes feitas de fogo! Luzes que dançam! E só pode
haver fogo, se este vier da nossa mais profana profundidade. Para mim, filhote, não
há dúvidas, ou iluminamos com nosso fogo ou somos iluminados por luzes
mofadas. Esse pavor estancado em seus olhos vem do mofo sóbrio em que você
foi criado. Vocês civilizados, há.há.há... os civilizados me divertem muito! Você sabe
realmente o que é ser um civilizado? Eu tenho um palpite: é nada mais nada menos
do que assumir o compromisso de ser hoje, ao acordar, o mesmo que você foi
ontem. Você se transformar no seu próprio circulo vicioso, é isso que esperam de
você, que seja um óbvio, um previsível. Só assim pode ser medido o grau de perigo
que você eventualmente possa representar à sociedade sóbria; se for um óbvio,
receberá o selo de ‘bom’. Divirto-me quando vejo aquelas figuras empoladas
falando; o discurso combinando com a gravata, almas decoradas. Aliás, creio que a
‘alma’ é a armadilha do ser. Caralho! A ‘alma’ é a jaula dos instintos! Para quem os
têm bem fracos ou praticamente não os têm, essa dama é uma benção!
Praticamente pode justificar toda uma existência débil. É o manto sagrado vestido
pelo sóbrio; no entanto, é uma camisa de força a ser rasgada pelo embriagado!
Quem não tem nada se apega a qualquer coisa, principalmente se vem pintada de
branco e tem ornamentos santarrões. A alma é a carteira de identidade dos
sóbrios, assim, reconhecendo-se nela, reconhecem-se todos, e todos querem
também a imortalidade dos seus pequenos egos. E assim conduzem à
imortalidade... o ‘divino’ Platão. Nada mais. Divertem-me esses sóbrios, acocorados
sob a luz platônica! Lutando contra seus instintos, lutando contra si próprios! Ficam
com a ‘alma’ e jogam no lixo o que têm de mais profundo, forte e original, dando-
lhe o nome de diabo. Mas é no lixo dos sóbrios que faço minhas melhores
pescarias. Qualquer coisa que não sirva para um sóbrio torna-se uma iguaria para
um embriagado! Costumam desfazer-se do fruto, consumindo avidamente a casca.
Bem, digo-lhe tudo isto, porque realmente me surpreende seu medo. Você foi
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valente para me encarar, ou foi uma súbita curiosidade tola? Se foi, tudo bem,
estará em casa logo mais e faz de conta que tudo não passou de um pesadelo;
agora não repare, mas tenho que tomar um gole! Minha boca está ficando seca.
Porra, eu falo pra caralho, compadre! Foi você aí deitado, abatido, que me inspirou
esta fúria verborrágica! É que vocês me enchem o saco com esses medinhos tolos.
– Epaminondas serviu-se de uma garrafa de champanha, enchendo também uma
taça para Tito. Estendeu-a ao assustado rapaz, que a apanhou com mão trêmula.
Este em seguida conseguiu sentar-se com dificuldade no acanhado sofá, que só
agora percebia, estivera por este tempo todo deitado. O pior já havia passado, e
aos poucos, Tito reorganizava suas idéias. Planejara não fraquejar quando estivesse
na presença do negrão e dava-se conta de ter protagonizado um pequeno vexame.
Embora tivesse ficado este tempo todo em silêncio, o lance de tentar pegar sua
arma demonstrava uma patetice à toda prova. Resolveu então, entrar de bem na
dança. Epaminondas sugeriu um brinde e os dois bateram os copos. Em seguida,
Tito ensaiou suas primeiras falas.
- Perdoe-me Sr. Epaminondas – disse isso levando a mão à cabeça, ainda estava
meio zonzo – foi tudo muito rápido, ainda agora dormia em minha casa e... de
repente...
- Deixa comigo que eu sei como é, mas não posso correr riscos. Compreenda,
estou em meu habitat, não posso permitir que venham xeretar por aqui, tomei a
precaução de remove-lo dormindo, sei alguns truques, é fácil. Assim, com este
pequeno ardil, eu garanto minha tranqüilidade, pois se você falar disso para
alguém, dirão que sonhou e que você não passa de um lunático. Aliás, penso que
você é meio maluquinho, não e? - Epaminondas sentou-se em uma poltrona de
espaldar alto, ornada com mantos de cetim com variadas cores e estranhos
brocados, mas estava difícil para Tito divisar pormenores naquele ambiente; o
negrão olhava-o e sorria com a taça de champanha na mão, o rapaz achou melhor
corresponder-lhe o sorriso.
- Você é corajoso garoto, gosto disto. O pessoal da policia é só interesseiro.
Querem somente os meus préstimos, e quanto mais rápido eu partir da cena do
crime, melhor. Mal sabem eles que tudo que quero é sair logo de suas presenças
sóbrias. É um bando de cínicos. O Santos mal consegue disfarçar o seu desgosto
com minha presença, mas trabalhar pouco é tudo que ele quer, portanto, chama o
negão Epaminondas! Só vou nessas porras todas porque gosto de praticar, botar
um vagabundo mentiroso e covarde na cadeia é uma delícia! Veja, e você é novato
e vai se acostumar, como é a condição humana; eles cometem crimes e escondem-
se atrás de mentiras, das mais variadas, isso não é uma vergonha? Os sóbrios e
seus crimes... não conseguem nem assumir a própria violência de suas paixões. Não
assumem nada, afinal. O que me deixa puto é que muitos botam a culpa na
bebida! Ora! Eles são sóbrios! Sóbrios quando bebem não ficam embriagados,
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ficam bêbados! e nesta condição encontram a desculpa adequada para todo tipo
de patifaria. ‘Eu estava fora de mim!’ é isso que alegam. Porém, como aqueles
cãezinhos de circo que só têm valor porque andam ‘de pé’, nas patinhas de trás,
adestrados que foram para isso, quando andam com as quatro patinhas perdem o
glamour e a serventia, porém tornam-se o que realmente são, cãezinhos, nada
mais. Assim é que imagino a condição humana, ‘eu estava fora de mim!’, aqui ó!
Quando botou as patinhas no chão, tornou-se por um momento o que é lá nos
recantos mais profundos de seu ser: uma besta! É quando a máscara do
adestramento sóbrio cai, e vemos o rosto que se esconde por detrás da mascara
‘civilizada’. É irmãozinho... acho que o velho Freud realmente tinha razão. Dá um
tremendo mal estar ter de estar sóbrio o tempo todo! Mas estar embriagado é uma
delicia! Amo a embriaguez! Por isso, vamos tomar outra! – encheu então sua taça e
a de Tito, que continuava um pouco aéreo, sentou novamente e continuou – À
besta humana! – ergueu um brinde, ato contínuo, sorveu tudo em poucos goles - À
besta humana, por encenar esta maravilhosa ópera buffa que me diverte tanto! A
essa canga pesada que são obrigados a carregar, sua santa Razão, uma Razão de
túnica branca. Muito bonita e que cheira a jasmim, para combinar com suas almas
puras, tão branquinhas. Tudo muito bonitinho, muito comovente... oh, como me
toca! Sabe, pimpolho, a maioria dessas caras que você encontra lá fora, quando
está ao Sol, precisam mesmo de uma alma, de um rótulo, de um comportamento;
ser sóbrio é uma profissão. Parece-me que agradecem aliviados, já existir de
antemão um molde os aguardando, para que, tal qual a água que toma a forma do
recipiente no qual é vertida, seu ser assuma uma função nesse grande negócio.
Será remunerado com grana! Grana e reconhecimento.Terá uma bela família, para
mostrar fotos aos amigos. Não precisará existir fora disso, para alívio seu, pois não
teria para onde ir. Não é nada, só um molde. Acho isso a ditadura do frasco sobre a
essência, quando esta é parca ou não existe. O sóbrio é uma aparência. Mas
existem os embriagados, ah... os embriagados, os que vertem seu ser para fora do
acanhado recipiente, porque este por si só não basta. Uma coisa eu aprendi nestas
minhas andanças pelos becos da existência: o pequeno precisa de um conteúdo
que lhe dê forma, e o grande, precisa livrar-se de um conteúdo que lhe deforma.
Isto é tudo. Saiba, esta pode ser a fórmula para entender o mundo sóbrio. A
sociedade detesta qualquer superfície em que não possa colar seus rótulos. Eu, por
exemplo, sou um ‘bêbado’! Há,há,ha... um mero bêbado, porém, pensam eles,
talvez até um homem demoníaco! Há,há,há... a única coisa que quero do sóbrio é o
seu medo. Assim, ficam longe de mim. Que vão pra puta que pariu! Há,há,há... o
sóbrio e sua ‘alma’! Eu não tenho alma, meu garoto! Sou só instintos! Sou um
monstro instintivo, uma espécie de Dragão de Komodo, negro, gordo e
malevolente, que anda nas quatro patas com aquela lassidão que uma existência
confortável proporciona. Carrego comigo uma garrafa de aguardente, e ando pelos
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esconderijos mais escuros e sujos, sempre com minha língua de dragão dando
rápidas investidas no nada e sempre lascivo, com meu pau arrastando por onde
ando! Desapareço nas sombras atrás de minhas presas, caço os demônios mais
escrotos, os devoro com a calma dos crocodilos, mas sempre mastigando com
cuidado para não matá-los, pois ao ingeri-los vivos, passarão a fazer parte do que
sou, acolherei suas danças em meu ventre. O velho e bom dragão sai de suas
sombras de buxo cheio, mais pesado, mais preguiçoso, e mais forte. Quero que me
chamem de diabo! Quero os epítetos mais escabrosos! Quero ser o adversário! O
do contra! O bárbaro! O parta! O godo! O herege! Quero ser queimado em suas
fogueiras! E então, em meio às chamas, riria minha mais diabólica risada e diria em
alto e bom som:
Cá estou eu
Na fogueira de novo!
Mas saibam, senhores:
De tanto ser queimado,
Fiquei amigo do fogo!
Epaminondas falava alto e transpirava. Estava bastante embriagado e Tito não
sabia realmente onde tudo aquilo ia dar. O negrão falava todas aquelas coisas que
o confundiam, era um sujeito extremamente debochado, concluíra Tito; e vertia
aquelas palavras de um jeito que realmente pelo que parecia, estavam engasgadas
há muito. Tito então era o ‘sóbrio’ que caiu em suas redes; mais que isto, às
procurou. Achou, então, que devia dizer alguma coisa; talvez dizer que muitas
vezes não se sentia como um sóbrio, e quando isso acontecia tinha vontade de
sumir. Mas ‘sumir para onde?’ Talvez tivesse uma ‘alma’ e não soubesse lidar com
ela, mais que isto, talvez algumas vezes sentisse o peso da responsabilidade de a
ter, mas quem sabe era tudo que tinha. Seria ele um ‘sóbrio’? Estava confuso.
Teriam as recém chegadas palavras de Epaminondas despertado alguma coisa
adormecida na sua curta existência? No torvelinho da situação, preferiu deixar para
pensar nestas coisas em outra ocasião. Reparou então que Epaminondas dançava,
e naquela dança estranhamente, sua bebedeira parecia haver passado. Dançava
com uma leveza surpreendente para o cara pesado que era, estava de braços
abertos e dava suaves e precisos rodopios no ar, parou então e encarou Tito. – É
aqui que pratico meu misticismo. Sacou, garoto! É aqui que mergulho nos meus
mais profundos abismos. É aqui que confraternizo com meus demônios, é aqui que
a cachaça que é o meu ser exala seu perfume, um perfume negro e demoníaco,
profundamente delicioso e inebriante! Instintos lascivos e embriagados encontram
guarida nas mais tesudas companheiras de jornada. Adoro mulata, então trepo
muito! Bebo e trepo! E aí? Quem vai dizer o que? Os sóbrios não praticam suas
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religiões ajoelhados em seus templos? Pois eu pratico meu misticismo fodendo,
dançando e bebendo aqui no meu! Ah... As delicias dionisíacas... este hedonismo
manso, esta alegria incontida no meu corpo e na minha mente! Sempre mais vinho,
garoto! Sempre mais vinho! Quem poderá me atirar uma pedra? Acaso não é
enojado que eu volto daquelas cenas de crimes? Crimes de sóbrios! Aqui não
existe mentira, não existe cinismo nem a desfaçatez, sou o que sou no meu mais
puro ser. Não quero a luz, quero a escuridão. Não quero o ranço da existência
comprometida com o desempenho, o ranço das coisas ditas e repetidas, de
pessoas carameladas pelo açúcar da alma. A chatice desse dia a dia na parca luz. O
que poderia dizer a mim, o que não tem voz? O que não tem cor? Só o odor de
pensamentos coagulados! A roda morta do dia a dia na promessa traiçoeira de
mais dinheiro! Muito pouco, meu nêgo! Muito pouco pra mim. Quero as
cachoeiras que brotam de mim mesmo, cachoeiras de cerveja preta! Delicia!
Sóbrios filhos das putas! Deixem-me viver o que é meu, fora daqui! Fora da minha
cabeça! Pulgas brancas! Sanguessugas de meus mais violentos instintos! Se o
velho Freud tinha razão, se temos dentro de nós sentimentos aos quais ele
denominou Eros, instinto de vida, e Tanatos, instinto de morte; este segundo, eu
dei para o Estado. Matei muito. E quando matava todos me amavam. Este meu
instinto, então, servia à sociedade! Meu instinto de morte! Sempre o tive muito
forte e eu matava mesmo. Sem perdão, sem compaixão. Matar ou morrer, foda-se!
E sabe que mais, neguinho... eu adorava fazer isto: matar! Sempre tive comigo, que
só me realizaria enquanto o homem que sou, se matasse. Sentia um poder
indescritível, o poder de sentenciar e executar a sentença. Nunca questionei estes
meus sentimentos, pois sabia serem instintivos e eu não questiono meus instintos,
apenas dou a eles a mim mesmo, inteiro, total. Sempre fiz meu trabalho com
eficiência; alguém há de duvidar? O que me impressiona é esse seu olhar
assustado. Assustado com o que? Não é isso que esperam de um bom policial? De
um bom servidor da sociedade? Não espantei, por acaso, os vagabundos da
cidade? Não fiz despencar os índices de criminalidade nesta porra de cidade
sóbria! Esta cidade sóbria, por isso mesmo hipócrita e cínica, que diz: ‘bandido
bom é bandido morto?’ Todos passaram a dormir tranqüilos em suas camas
quentes, não sem antes beijarem as testas dos filhos, assegurando-se de que seus
anjinhos dormiam seguros. Enquanto isso o negão aqui, com o olhar repleto de
sangue, no vento frio da madrugada violenta e com o dedo coçando a ponto 45,
encarava os lugares mais escabrosos. Lugares, meu querido novato, que fariam
você tremer, suar pela bunda e pedir pela mamãe. Sou um louco sanguinário? Que
seja, mas no mundo sóbrio é uma linha tênue a que separa um louco sanguinário
de um herói, não é mesmo? Eu seria um assassino filho da puta, caçado pelos
quatro cantos, tendo sob meus ombros o ódio desta sociedade se esta não tirasse
proveito de meus instintos mortais. A mesma sociedade que tem exércitos e treina
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adolescentes para serem assassinos frios em suas guerras podres. Mais uma vez o
proveito próprio vem em primeiro lugar. Viu como tudo é relativo meu caro
aprendiz de polícia? Há,há,há... se eu levasse chumbo, caísse morto em qualquer
beco escuro, todos continuariam dormindo seus sonos de anjo, afinal, me pagavam
para isso, certo? Saí de cena amiúde, ninguém viu meu rosto. Sou um homem das
sombras, para que os sóbrios me vissem, eu precisaria sair à parca luz. Talvez
então, esta sociedade que dorme tranqüila, me olhasse nos olhos e horrorizada, me
expulsasse para a sombra, esconjurando seu protetor, dizendo ser lá o meu lugar e
de onde nunca deveria ter saído. Não precisariam mais de mim, me chamariam de
demônio. Eu agradeceria comovido, pois meu habitat natural é o escuro e uma vez
não precisando mais de meus préstimos, me proporcionariam a alegria de me
dedicar à lascívia serena de minha proverbial embriaguez. Eu sumi nas sombras e a
partir deste dia um batalhão de inseguros insones assumiu os corpos daqueles
seguros dorminhocos de outrora. O medo, apanágio do sóbrio, estava de volta.
Mas eu sou a morte impiedosa. Sou aquele que as lagrimas e pedidos de piedade
não convencem. A sociedade sóbria sempre precisará de mim! Só tenta se
convencer de que não. Mas de minha parte já chega; sugaram meu Tanatos como
um bebê suga as tetas fartas de uma mãe matrona. Aposentaram-me. E sabe por
que? Porque descobriram que meu Eros não interessava; deste meu instinto, ela, a
sociedade sóbria, não tiraria nenhum proveito! Não é irônico? Sempre a utilidade!
O que ou quem, não é função, não interessa. Você só é reconhecido enquanto
função. Mesmo quando eles tenham de fechar os olhos para seu zelador, enquanto
ele faz o trabalho sujo! De minha parte, dei algo de mim para esses utilitaristas de
merda e é o que basta! Agora desabrocho em mim mesmo, na volúpia deliciosa
desta embriaguez. Nesta dança alegre do autoconhecimento, neste despencar
despreocupado e inebriante dentro de mim mesmo. Longe das pulgas morais,
soldadesca espúria, sempre zelosa em sua missão de cravar ‘nãos’ em nosso Sim!
Mas comigo não, sou mais eu, sou um embriagado. E não se consegue colar
rótulos em um copo transbordante. Saiba garoto! Só se deixa apanhar o que é
extático, parado, inerte. Um corpo dançarino estará sempre livre! E longe... bem
longe das redes dos sóbrios.
***
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Tito conseguira retomar agora amplamente seus sentidos, e mais que isto: já
sentia os torpores do champanha com que insistentemente Epaminondas
completava seu copo. Talvez até pelo efeito do álcool, agora se sentia à
vontade com seu raptor. Sentia mesmo até um sentimento de cumplicidade.
Achava que Epaminondas não estava tão errado naquilo que até então
expusera com sua língua arrastada, embora claramente compreensível. Avaliara
que o ex-policial fizera seu trabalho, e bem, ao tempo em que prestou seus
inestimáveis serviços à corporação. Também não era falso quando afirmava que
seus instintos assassinos foram de grande proveito seu, enquanto a pura
catarse de sua agressividade; e, todavia, também proveitoso a todos, porquanto
disto a sociedade também usufruiu. A franqueza enigmática de Epaminondas
lhe impressionava, não julgava que merecesse tão rapidamente a confiança de
alguém, principalmente daquele velho ex-policial. Mas tinha de admitir que
estava gostando do crédito que lhe era concedido. Mais que isso, aquilo lhe
conferia até uma certa importância, julgava ele. E o sentimento de medo agora
dava lugar a uma sensação de felicidade. Este é um momento etéreo, devo
segura-lo, pensou. E então tomou a iniciativa de erguer a taça para
Epaminondas – Estou feliz de estar aqui, veterano colega! – disse, com um
brilho verdadeiro nos olhos.
- Há, há,há... – gargalhou despreocupadamente o negrão -Ora, ora... quem
sabe você tenha algumas sombras que precisam ser visitadas! Quem sabe esta
minha humilde moradia não seja a porta de entrada para um mundo muito
maior? E que você não pode ver, por estar ainda sóbrio? Você me diz que está
feliz! Ora, ora... Não seria por causa do champanha? Do incenso? Do fogo
dançarino das velas? Dos rostos dos faunos risonhos que brotam das paredes?
De toda essa infinita escuridão que nos circunda? E deste seu amigo, que diz
coisas embriagadas?
- Acho que de tudo isso, estou feliz, realmente feliz! Há,há,há....
- Há,há,há... – Epaminondas riu junto com Tito, tornando mais hilária a cena. E
os dois então desabaram em muitos risos. Um não podia olhar a cara do outro
sem dar início a novas gargalhadas. Tito sentiu uma alegria extasiante, parecia
perceber, que um átimo de tempo poderia conter a eternidade. Talvez até, o
segredo da existência coubesse num momento fortuito. Estava feliz e nada
mais. Nada mais existia em sua volta, somente aquelas presenças fantásticas...
seu hilário anfitrião, os demônios risonhos, o fogo inquieto, o delicioso
incenso. Seus sentidos estavam em festa, nunca vivera algo parecido, era a
sensação da alegria mais pura e mais inebriante. Sem porquês, sem motivos
aparentes, sem responsabilidades, sem perguntas e sem respostas, só aquela
alegria etérea, - Acho que engoli o Céu! Há,há,há... – brincou então.
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- Não é uma deliciosa ironia? – disse Epaminondas – dizer que engoliu o Céu,
quando se está nos portais do inferno? Há,há,há... Você me diverte muito
querido amigo! Curta! Curta este momento intenso! - ato contínuo, bateu
palmas, duas vezes, e a porta daquele estranho recinto abriu dando entrada a
duas mulheres fantásticas, de formas voluptuosas, que fizeram Tito estremecer
de prazer ante aquela visão. Estavam nuas, porém portavam máscaras
estranhas, com imensos chifres e intensa cabeleira; eram máscaras de demônios
semelhantes àqueles da parede. Começaram elas então a dançar numa
coreografia mansa e estranha; uma terceira pessoa entrou então no local, desta
vez um corpo masculino, mas com máscara semelhante e tocava flauta
enquanto saracoteava numa dança mais frenética. Uma das mulheres sentou no
colo de Epaminondas, que, para surpresa de Tito, havia colocado uma
amedrontadora máscara de demônio. Tito reparou também que Epaminondas
não vestia nada por baixo da sua capa negra, estava completamente nu. A
mulher começou então a manusear a imensa pica do negrão e este começou a
soltar gemidos de incontido prazer. Em seguida, a outra mulher sentou-se no
colo de Tito, que a princípio ficou meio atônito, mas, embriagado com aquela
situação cedeu com alegria àqueles deliciosos apelos eróticos. Caíram no chão.
O cheiro daquela pele eriçou seus sentidos, entregando-se ele então a um sexo
carnal e despreocupado, de puro tesão incontido, emitindo gemidos prazerosos
que se confundiam com os da companheira; esta, após arriar calças, montava
na posição ‘cavalinho’ no rapaz que se encontrava saborosamente vencido,
estirado no grosso tapete. Os gemidos de Epaminondas, abafados pela
máscara, eram cada vez mais lascivos e o sátiro continuava a tocar sua ruidosa
flauta; dançava circulando por todo o recinto. Acirrava sua música, conforme
pressentia o momento do gozo dos participantes da orgia. De repente
Epaminondas levantou-se de chofre e prensou a mulher contra a parede,
cavalgando-a por trás, com força e determinação, até atingir um gozo
alucinado; gritando, gemendo e bufando como um potro. Tito tesionou-se mais
ainda com aquela cena e no embalo, acabou-se numa alucinação deliciosa,
intoxicado pelo incenso e por aquela dança ardente das velas; o sátiro pulava
em volta com sua flauta em êxtase! – Que tesudo esse rapaz! – brincou
Epaminondas, trazendo à Terra um saciado Tito. Este reparou que o negrão
estava de pé ao seu lado, já sem a máscara, acompanhando o gran finale do
ato. O manto negro do anfitrião estava entreaberto, dando vista a Tito do
imenso membro pendurado e em proximidade temerosa. Tito então removeu
carinhosamente a moça, e procurou distancia segura. Epaminondas,
percebendo a preocupação do rapaz caiu em sonora gargalhada.
- Há,há,há... Meu assustado amiguinho! Mesmo que eu quisesse, não teria
fôlego para tanto! Portanto, que minhas amigas desfrutem de seus dotes físicos
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e vice-versa, fique tranqüilo. Porra! Dou-lhe minhas boas vindas e você ainda
tem medo de mim, caralho! Que convidado difícil de agradar esse! – disse,
enquanto com um sinal, mandou que os demais se retirassem.
- Não, não... fique tranqüilo. – disse Tito ofegante - Apenas, tudo isto é muito
pra mim! Não estava preparado para estas emoções. É natural que fique um
pouco assustado, só isso. Estou extasiado, realmente extasiado, só posso lhe
agradecer por esta noite louca.
- Isso não é nada meu filho! – disse Epaminondas sentando-se em sua
poltrona, visivelmente cansado – vamos beber... é sua vez, sirva-nos de mais
champanha! O véio aqui está mortinho.
Tito serviu duas taças e entregou uma ao ex-policial, este então ergueu uma
libação.
- A Dionísio! Deus embriagado! A Sileno, sátiro safado! Às ariscas ninfas, com
seus aromas de mato e rio! Duendes e Egipãs! À flauta de Pã! Flauta da
embriaguez, da desmesura, dos sentidos em êxtase... deus ao qual as fronteiras
sóbrias que delimitam os seres seriam motivo de risos. Ah... que trepada
gostosa! Celebremos, meu amigo, celebremos! – Tito ergueu a taça a
Epaminondas em retribuição. Estava sereno e feliz, o efeito da embriaguez já se
fazia sentir. Sentou-se então no velho sofá, e observou seu extasiado
interlocutor sem o sinistro capuz, com o rosto à mostra com seus olhos de sapo
e a capa aberta sentado em seu ‘trono’. Ostentava várias correntes no pescoço
que serviam de amparo a mandalas estranhas e em quase todos os dedos das
mãos havia anéis das mais variadas formas e tamanhos. Estava com as pernas
despudoradamente abertas, quase que em exibicionismo desleixado e oferecia
uma visão desconfortável a Tito; o imenso pênis jazia desabusado tendo como
arrimo um gordo saco, imenso e negro. O rapaz evitou então, esbarrar os olhos
naquela região. Epaminondas, indiferente às comezinhas preocupações do
moço, prosseguia: - Ah... como eu gosto destas incursões orgásticas! É a famosa
blitz do prazer! Gostou? Criei este negócio para meu mais etéreo gozo. De
repente, estamos no caminho desse ditirambo frenético de sexo e alegria. Esses
deliciosos súcubos nos acham, nos usam, e partem com seu sátiro saltitante;
voyeur lascivo na excitação de sua flauta! Aí, celebro sua aparição bebendo
champanha e vinho. Posso querer mais que isto? Que tipo de papel eu teria de
representar, que personagem teria a força de me remover do meu mundo? A
sobriedade de qual função utilitarista teria o condão de me remover da
sombra? Diga-me, fazer o quê, sob a incidência da parca luz? Ou talvez, seus
apelos de consumo exerceriam sobre mim alguma influência? Há,há,há... essa é
boa! Por que eu abriria mão do meu paganismo; meu, só meu? Este delicioso
misticismo saído das minhas impressões digitais, para cair no canto das sereias
corporativas? Tão zelosas com os hábitos de seus clientes. Sabe garoto... hoje
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olho espantado para do que são capazes estes ‘deuses corporativos’.
Encaixotar as mentes com seus rótulos, seus comportamentos. Fabricando
gente em série. Até quando vendem ‘rebeldia’, deixam claro que estão
fabricando um ‘rebelde’. Você é ‘rebelde’ desde que consuma seus produtos...
há,há,há... me divirto muito! Ah... vocês sóbrios... há muito achei uma função
para vocês, a função de me divertirem com seus comportamentos
comprometidos, assépticos, consoantes. Vendem também ‘liberdade’,
há,há,há... me perdoe, mas não consigo parar de rir; ‘liberdade’ há,há,há... –
Epaminondas riu muito e então enxugou com as costas da mão as lágrimas
provocadas pelo riso – Ah, que deliciosa bebedeira! Não repare menino, é que
gosto de caçoar dos sóbrios. O que me restaria em relação a eles? Leva-los a
sério? Impossível. Acho até que eles hoje têm vergonha de seus dentes caninos.
Talvez estes lhes lembrem o animal desfalecido que são obrigados a carregar;
até acredito, ao contrário de Aristóteles, que esta é a única essência do ser
humano. E o que dizer de seus entretenimentos patéticos? E suas mídias? E o
pânico das grandes corporações de que em suas iniciativas persuasivas possa
vazar inadvertidamente um átomo de inteligência? E que dizer da Arte? Que
finalmente agora se encontra quase que totalmente sob o domínio dos sóbrios?
A Arte agora é sóbria, pobre, comprometida. Os sóbrios finalmente abriram
totalmente mão da Arte, acho que este era um velho sonho. Ela não precisa
mais expressar, não precisa mais exprimir beleza, não precisa mais ser a flor
nascida da criação. A que sobrou só precisa vender, nada mais. Que fim levou a
capacidade do homem de admirar-se perante as coisas, perante o próprio
homem? Foi relegada aos becos escuros da existência, onde o artista cria a
partir do próprio sangue, quem ousará molhar os dedos nesse sangue? Agora
tudo o que viceja sob a parca luz é o que se pode comercializar. Os sóbrios
sempre ‘toleraram’ a Arte. Detestam qualquer coisa que não possam reduzir ao
tamanho da palma de suas mãos; haja vista de como sempre interpretaram
seus textos religiosos. A metáfora, ou seja, a pérola contida na ostra, a
mensagem viva, é desprezada; porém, a forma como ela é dita, através das mais
variadas metonímias e polissemias, são consumidas ao pé da letra! Os sóbrios
só consomem a forma, posto, que são só forma. São incapazes de perceber que
a forma é a encarnação de uma mensagem mais profunda. As formas são
fantoches que ganham vida e movimento pela mão da Arte. Só que essa mão é
invisível ao sóbrio, portanto, este ficará somente com as formas e as
interpretará colando seus rótulos, principalmente os seus preferidos: os do
‘Bem’ e do ‘Mal’. Sendo assim, criam seu próprio Céu e Inferno, creio que
jamais poderiam viver sem estas instituições; precisam submeter-se a elas, os
sóbrios são altamente ‘morais’. Acho até que é só para isso que existem. Talvez
agora nesta porra de pós-modernidade, em que a economia de mercado feriu
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de morte o velho deus moral deles, comecem a bater cabeças gerando feridas
novas. Não imaginam, nem por sonho, que mundos possam existir fora de suas
redomas em forma de ‘Céu’. Ahhhh! como vivo bem fora do Céu! No orgasmo
constante da minha singularidade, um ébrio de mim, um homem das sombras!
Bem, assim penso eu. Ninguém é obrigado a concordar comigo, aliás, sempre
desconfio quando assentem muito rápido com minhas idéias. Esta é minha
leitura de mundo. Isto é tudo. Adoro opinar; mais que isto, preciso!
principalmente quando encontro um amigo tão atento. Tenho opinião,
portanto a exponho; claro, à medida que o silêncio de meu interlocutor permita.
Posto isto, eu pergunto: quem poderá me atirar uma pedra? Os ‘livres’?
há,há,há... portanto, querido amigo, que marche o exército de autômatos
sóbrios, que o façam com seus olhares mortos sob essa parca luz! Porque da
minha parte, prefiro observar tudo daqui da minha sombra, que é o meu lugar.
É na sombra que constatamos até onde nosso olhar alcança, porque somos
obrigados a enxergar emitindo nossa própria luz, a luz de nosso fogo, a luz
mais intensa do mundo, porque é nossa! Este é o lugar mais negro e mais belo
da face da Terra! Porque é meu! Meu paraíso, minha delícia! Bebamos, há muito
que celebrar! Celebremos! Celebremos a alegria de existir, de existir no único
lugar onde podemos realmente ser felizes... em nós mesmos! Não quero
seguidores, não quero ser exemplo de nada, não nasci para ser função de porra
nenhuma! Nasci para a embriaguez, a embriaguez de desabrochar em mim
mesmo! Celebremos! - Tito ergueu sua taça com incontida alegria, mas sentia o
peso da bebida sorvida em excesso, longe de tentar acompanhar o ritmo do
raptor-anfitrião Epaminondas. Sabia que não teria a menor chance de
permanecer consciente. Observou Epaminondas levantar-se, colocar novamente
sua máscara de demônio e iniciar uma dança em volta da pira cantando coisas
desencontradas, talvez num dialeto desconhecido. Os gestos e as palavras do
negrão foram confundindo-se suavemente em sua cabeça, as luzes vivas dos
círios concediam um pano de fundo que dançava amarelado, pontilhado por
infinitas escuridões; e foi numa destas que Tito mergulhou sua mente cansada,
para em seguida, carrega-la consigo e dissolver-se no nada.
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A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 04 UM TIRO NA CHUVA
Tito abriu os olhos de supetão! Mirando o teto, sentiu um arrepio correr pela
espinha. Estava em casa, na segurança uterina de sua cama quente. Demorou
algum tempo para reorganizar suas idéias. Levou a mão lentamente à cabeça,
esta doía, doía de um jeito que ele conhecia. Dor de bebedeira! As imagens da
madrugada então lhe saltaram à mente. Aquilo não poderia ter sido um sonho,
não, não... sabia discernir sonho de realidade. Para ter certeza passou a mão no
pinto e cheirou, sim, cheiro de boceta! Uma estranha alegria então se apossou
dele, esteve com Epaminondas em seu esconderijo, tinha certeza; mais que isto,
fez uma bela festa com o negão! A cabeça doía, mas estava extasiado de
prazer, considerava uma distinção ter privado da intimidade do ‘velho diabo’,
concessão que deveria ser dada a bem poucos. Olhou no relógio, acordara na
sua hora de sempre, estava a tempo de assumir seu papel de ‘sóbrio’.
Levantou-se e cambaleou até o chuveiro, onde tomou uma ducha quente e não
contendo seus instintos de alegria, cantarolou. Após vestir-se, enquanto bebia
um copo cheio de café e comia uma fatia de pão preto, perdeu seu olhar pela
janela da cozinha enquanto divagava. Afinal quem era aquele homem? Porque
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lhe dissera tudo aquilo? Por que lhe proporcionara aquela bela e inesperada
trepada? Quem eram aquelas mulheres, quem era aquele sátiro? Onde esteve
afinal? Então de súbito lhe ocorreu algo e ele estremeceu; como entraram em
seu apartamento? Ato contínuo, foi até a porta, a única que dava acesso ao
interior do imóvel, abriu-a e conferiu com calma, passando sua mão à procura
de alguma rachadura ou machucados na pintura ou afundamentos na madeira.
Nada. Foi à janela da sala, era um apartamento pequeno; quarto, sala, banheiro
e cozinha. Por onde teriam entrado? Olhou pela janela, morava no segundo
andar, e de súbito deu uma gargalhada! Hora, como poderiam tira-lo do imóvel
por alguma janela? Mas logo ficou sério. Entrar inadvertidamente em sua casa,
em sua intimidade, em sua cidadela. Isto era preocupante. Poderia dormir
tranqüilo a partir deste episódio? Sentiu então que talvez tenha feito papel de
um bobo à frente de Epaminondas. Deveria se impor e cobrar a invasão em sua
intimidade; como pode? Estava dormindo! Dormindo, caralho! Que perigos
podem rondar alguém destituído de seus sentidos? Imaginou as coisas mais
bizarras e decidiu que em um próximo encontro deveria cobrar esta invasão de
domicílio seguido de rapto de um inconsciente. Porém, riu novamente. Pensou
então ser óbvio que seria somente desta maneira escusa que haveria a
possibilidade do encontro. Epaminondas talvez se irritasse com suas cobranças
e abrisse mão dos contatos; não, melhor não falar nada. Sentiu-se então,
brincando em uma gangorra com a Razão, ora sentia isto, ora sentia aquilo. Era
melhor deixar essas coisas de ‘sóbrios’ de lado se quisesse tocar adiante seu
projeto. Divagava nestas coisas, quando seu celular tocou trazendo-o de volta à
Terra. – Alô. Oi Nina.
- E daí, Pequeno Hímem! – a voz brincalhona de Nina, caiu como um bálsamo
em seus ouvidos – o Santos já perguntou duas vezes por você, afinal você vem
ou não vem? – Tito olhou em seu relógio.
- Puta merda, Nina! Esqueci da vida! Diga a esse xarope do Santos que
estarei aí em vinte minutos. E lhe digo, tenho novidades que vão deixar você
louca!
- Novidades? Puxa, estou curiosa, que novidades poderia ter aquele cara
cansado de ontem à noite, que só queria ir para casa dormir, o que teria para
me contar hoje cedo da manhã? – Tito então botou definitivamente os pés no
chão. Epaminondas estava certo em sua estratégia. Já de saída podia ver a
dificuldade de não passar por mentiroso. Uma sensação de cansaço tomou
conta de sua mente. Não iria ser fácil convencer a colega. Ora, foda-se! Iria dizer
a verdade nada mais, se não quisesse crer o problema era dela. – Bem, lhe
conto quando chegar na delegacia.
- Acho difícil, meu nêgo! Acho que o Santos vai lhe monopolizar por um bom
período, mas vem logo que o tempo tá passando.
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- Fui, tchau! - desligou o telefone, e saiu às pressas. Desceu as escadas,
pegou seu carro na garagem e ganhou a rua. Neste ínterim começou a chover,
o barulho da chuva e o vai e vem de seu limpador de pára-brisas marcava o
compasso de seus pensamentos. As ruas cinzentas daquela manhã chuvosa se
prestavam para o pano de fundo de suas divagações. Estava realmente
fascinado por Epaminondas, este tivera o poder supremo de quebrar a mesmice
de seu dia a dia, de trabalho para casa de casa para o trabalho. E isso que
trabalhava numa delegacia! Porém desde que começara, nada além do crime
do senhorio no qual conhecera o estranho personagem, acontecera de mais
emocionante. Era novo no front, sabia que tinha muito por vir, mas aqueles dias
realmente valeram pelo ‘fator’ Epaminondas. Estava impressionado, e queria
manter aquela estranha relação, custasse o que custasse. Só à Nina deveria
revelar suas peripécias com seu novo amigo. Quando, enfim, um novo crime
ocorresse naquela feição, no qual o negrão fosse chamado, deveria manter-se
indiferente; ninguém deveria desconfiar daquela amizade, esta deveria
continuar ‘na sombra’. Lembrou-se da trepada, do sátiro, de Epaminondas
fodendo com sofreguidão. O efeito das luzes das velas naquelas cenas todas, da
delicia do incenso e do maravilhoso champanha. Acho que eu estava meio
travado, imaginou ele. Da próxima, e tomara que tenha uma próxima, vou estar
mais relaxado. Pensava também nas coisas que ouviu. Epaminondas deixara
claro de que não ligava a mínima para a sociedade dos ‘sóbrios’, mais que isso,
a desprezava. Dera seu instinto assassino a esta, e isso era tudo. Seus instintos
‘egoístas’ não interessavam. Tinha lógica então, aquele papo de utilitarismo. O
fato de embriagar-se desgostava a sociedade pelo fato de que de sua
embriaguez ninguém tirava proveito, só ele. Era então uma satisfação restrita.
Puxa, que intolerância! Pensou. Se fizer bem a si próprio, é desterrado. Se fizer
mal a alguém que a sociedade considere um pária, ela fecha os olhos porque
disto tira proveito. Concluiu que havia muito cinismo na ‘sobriedade’ das
pessoas de ‘bem’. Não era de admirar que o ‘negão’ adorasse a distância
dessa gente. Porém, ele Tito, era pago pelos ‘sóbrios’ para executar seu papel,
e era para este ofício que agora estacionava o carro no pátio da delegacia.
Chovia muito. Saiu do carro, levantou a gola do sobretudo, e ainda
raciocinando sobre as reminiscências da noite anterior, concluiu enquanto
corria para dentro do prédio: se aquilo é a sombra, quero muito freqüenta-la!
- Demorou, hein, rapaz! – Edson, saudou-o com um leve tapa nas costas e
seguiu às pressas para outra sala. Tito percebeu um alvoroço no recinto. Santos
apareceu à porta de sua sala e gritou para o rapaz: - Onde você andava seu
porra! Pegue seu colete e vá para a viatura! – Tito correu ao vestíbulo, apanhou
em seu armário o colete à prova de balas e o vestiu rapidamente. Edson
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apareceu de repente entregando mais dois pentes para sua pistola, que agora
havia ido para a cintura. – O que tá pegando, Edson? – perguntou assustado.
- Deu merda no Morro do Tigre! O pessoal da terceira está encurralado
naquelas porras daquelas vielas, parece que os ‘trafi’ estão com um verdadeiro
exército e estão sentando o dedo adoidado! Um dos nossos está morto e tem
dois ou três feridos, a merda está grande. Davam uma batida quando desabou
uma chuvarada, a visão ficou prejudicada e os vagabundos surgiram de cima
das lages metendo fogo! Vem comigo, antes de sairmos quero te dar uma
coisa. – ambos então, foram ao banheiro da delegacia e Edson abriu a porta do
pequeno recinto onde fica o vaso sanitário e com um gesto de cabeça indicou
que Tito entrasse. Este obedeceu meio atarantado, e para seu espanto, já havia
outros dois colegas, dois jovens, dentro do ínfimo local. Um era Caveira, magro
e alto, tinha o pescoço comprido e fino, seu rosto branco e descarnado
expunha as maçãs salientes. Caveira tinha os olhos redondos e esbugalhados
jazendo em profundas olheiras, no quadro geral, fazia jus ao apelido. O outro
era Caldas, um sujeito baixo e atarracado, que nunca mereceu de Tito maiores
atenções. Caldas tinha uma cara de buldogue afundada entre os ombros, que
lembrava os ‘tiras’ de filmes policiais dos anos trinta. Todos ali já estavam
devidamente paramentados com seus coletes, prontos para a ação. Tito
reparou então que Caveira tinha em uma mão uma buchinha de cocaína e na
outra segurava um pequeno espelho que servia de bandeja contendo varias
‘linhas’ da droga. Caldas cheirou e passou para Edson uma nota de dinheiro
enrolada na forma de canudo. Edson pegou o canudinho improvisado e deu o
seu ‘teco’ em duas linhas. Ato contínuo estendeu para Tito o canudinho –
Vamos, cara, vamos, tem de ser rápido, caralho! – Tito a princípio ia recusar,
nunca havia cheirado, embora outras vezes já tivesse tido a oportunidade de
consumir a droga. Porém, dentro da delegacia era novidade para ele. Ia recusar,
mas devido àquela situação achou então melhor ‘entrar de boa’ e não gerar
qualquer tipo de discussão. Pegou o canudo e para não parecer mais cabaço do
que merecesse seu apelido, aspirou com força uma e depois a segunda linha. É
isso ‘Titã’! exclamou Caveira. Agora já podemos meter chumbo naqueles
‘filhadaputa’. E saíram em disparada na direção da porta de saída, em seguida
entraram na viatura. Tito percebeu que Nina entrava em outro carro, apressada.
Em seguida saíram todos em alta velocidade, rumo ao Morro do Tigre.

***

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A viatura voava em direção ao Morro do Tigre. O motorista, habilidoso, era um
negro magro de cabelos compridos à moda rastafari e de feições bonitas, ‘metido
a comedor’, que usava pequenos fones de ouvido e cantarolava como se nada
estivesse acontecendo; era conhecido como ‘Black’. O policial de patente superior
naquele carro era Edson, por antiguidade. Era um alívio para todos que Santos não
estivesse. Tito, aproveitando-se disto e de que começava a sentir os efeitos da
droga, começou soltar a língua; dirigiu-se então aos colegas: - Porra, não dá para
entender vocês! Cheiram sob o pretexto de ‘criar coragem’ para meter fogo nos
caras. Nos mesmos caras sem os quais vocês não teriam o pó! Pelo lado de lá, a
mesma cosa; os vagabundos cometem um suicídio indireto vendendo a coisa para
dar coragem a seus perseguidores. Nosso mundo é confuso mesmo, não e?
- Fodam-se eles! – retrucou Caveira – a mim não me interessa nada disso! Cheiro
e meto chumbo! O que você é? Um sociólogo? Um filósofo? Quero ver você
encarar essa porra toda de carinha limpa! Aliás, é sua primeira vez; se eu fosse
você, cheirava mais!
- Agora não é hora para este tipo de conversa, meu velho! – emendou Edson,
dirigindo-se a Tito – precisamos chegar com a adrenalina na ponta do dedo. Os
caras não são mole! Estão dez vezes mais doidão que nós, e você quer voltar para
casa não quer?
– Tito achou melhor deixar assim, se tinha um momento para não iniciar uma
discussão era aquele. A viatura, de repente, começou a dar alguns solavancos; já
estavam subindo o morro e encontravam-se num trecho barroso e difícil, até
mesmo para Black. Tito começou a sentir o coração pulsar na boca. Estavam
chegando e preocupava-se também com Nina que vinha logo atrás. A chuva havia
piorado e a manhã parecia estar anoitecendo. Agora todos olhavam atentamente
para e frente – Peguem as armas, porra! – gritou Edson. Todos então pegaram os
fuzis alcançados por Caldas que os apanhava atrás do banco traseiro da
caminhonete.Tito divisou então, por um momento, seu rosto no espelho retrovisor,
estava pálido. Mordia o lábio inferior insistentemente. No rádio a voz do delegado
Fidelis deu uma ordem qualquer, mas ele estava longe e não prestou atenção.
- Você ouviu, Black! À esquerda! À esquerda! – gritava Edson. O carro então entrou
em uma pequena viela, onde já se encontravam duas ambulâncias estacionadas.
Tito, ao passarem por elas, pode ver em meio à chuvarada, um corpo coberto por
uma lona sendo colocado pelos para-médicos no interior de uma delas. Dois
outros homens eram atendidos deitados no chão. Outros colegas, da terceira
delegacia, faziam sinais frenéticos com as mãos apontando para algum lugar mais
acima no morro. – É agora minha gente! Destravem estas porras que o bicho vai
pegar! - Ato contínuo, Edson deu ordem para parar. Saíram da viatura apressados e
esgueiraram-se à direita por uma ruela embarrada. O que se via era uma praça de
guerra. Policiais agachados, deitados e de pé, protegidos atrás de qualquer coisa,
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respondiam a um fogo pesado e intermitente que vinha da parte superior do
morro. Tito percebeu o piscar insistente das luzes oriundas das armas adversárias,
era uma chuva de balas. Procurou o lugar mais seguro, como se isso fosse possível,
e aninhou-se junto a uma mureta, Caveira em seguida chegou ao seu lado. Tito
segurou firme seu FAL (Fuzil Automático Leve) e gritou para Caveira: - Porra! Tá
difícil de achar alguma coisa para acertar!
- Não esquenta – gritou de volta Caveira – atire em qualquer coisa! O negócio é
sair vivo daqui... caralho, isto aqui é uma guerra! – Tito deu uma espiada rápida por
sobre a mureta, e depois outra e mais outra. Lembrou-se então de Epaminondas e
toda a sua valentia. O respeito angariado entre os colegas, e de tudo o que Santos
lhe contara. Mas principalmente o que o negrão falara sobre matar. Aquilo lhe
impressionara. Agora ali, liberado, autorizado pelo Estado, e aterrorizado perante a
iminência da morte, julgou ser a hora certa para decidir. Afinal, era legitima defesa,
pois estava abaixo de tiros de armas pesadas. E mais, quem poderia saber de onde
partiu o tiro que eventualmente tenha vitimado alguém? Era o pingue-pongue da
violência. Estava totalmente liberado para matar! A adrenalina o convidava para
isso, o efeito da cocaína já havia cortado os laços morais que poderiam prendê-lo a
algum comportamento padrão. Estava livre! Espiou por cima da mureta. Sim, já
havia divisado a vítima. Espiou novamente. Ao seu lado uma seqüência de tiros o
deixou quase surdo, era Caveira metendo bala a esmo. Levantou a cabeça
lentamente acima do muro, podia divisar o vulto de um homem que se expunha
parcialmente para atirar e rapidamente recolhia-se, fazia isso insistentemente.
Estava a uns cinqüenta metros, teria que ser bom de mira; recolheu-se e respirou
fundo. Estava a um passo de mudar sua vida. Que efeitos poderiam surgir a partir
de então? O que mudaria na sua vida, ter matado um homem? Porra! Era um
policial afinal... porém, policiais matam quando não tem escolha, pelo menos foi
lhe ensinado assim. E agora podia decidir se aquele homem viveria ou não.
Começou a sentir então uma sensação de poder indescritível, com isto já poderia
dar-se por satisfeito, aquele homem viveria a partir de hoje por uma decisão sua!
Era uma sensação indescritível. Faria o que Caveira aconselhara, atiraria, só isso.
Pegasse onde pegasse. - Ora, mas esta é uma saída simplista! Pensou. Aquele
homem quer matar meus colegas, quer matar a mim! Oh, mas é um ser humano,
meu filho... mamãe diria. Pois é... – repentinamente Tito parou e perdeu o olhar no
nada; ficou extremamente sério – Eu também sou! – de supetão, girou sua arma
por cima da mureta e fez mira. Puxou o gatilho e recebeu o tranco do fuzil em seu
ombro. Recolheu-se e espiou por sobre a mureta o corpo que despencava da lage.
– Que tiro, homem! – exclamou Caveira. Sim, a todas estas se esqueceu do colega a
seu lado, testemunha ocular da sua decisão. Tito não sentiu sensação nenhuma
além de um imenso vazio. Se pudesse voltar atrás alguns segundos talvez não
cometesse o ato. Queria comete-lo só para si, sem testemunhas. Queria a partir de
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então, rondar seus sentimentos e perceber quais as conseqüências de sua decisão
de vida ou morte. Um corpo agora jazia no barro. Não havia mais nada a fazer;
tomara uma decisão, é isto, uma decisão. Pronto, nada mais. Não era o lugar e a
ocasião para divagar; iria então continuar seu trabalho. Mas quando foi espiar por
cima da mureta, esta explodiu duas, três vezes na altura do parapeito. Estava
recebendo o troco, sem dúvida. Caveira aninhou-se como pode – Já sabem que
estamos aqui, é o que dá ser bom de mira! – gritou. Agora a sensação de Tito era
do mais puro pânico. Pagaria por seu ato, pagaria o preço de sua decisão. Agora os
marginais queriam a todo custo o atirador por detrás da mureta – Veja o que você
arrumou, porra! – gritou Caveira, companheiro de trincheira que só queria dar tiros
a esmo para não se complicar – Sabe quando é que vamos sair daqui? – Tito
tentava ficar calmo para avaliar a situação. A troca de tiros estava parelha e
violenta. Tinha de achar uma maneira de saírem daquele local a qualquer custo,
mas naquele momento não dava. Eram agora os alvos de alguns atiradores, se
corressem de volta para a rua onde a viatura estava em segurança, seriam presas
fáceis. O chão era pura lama, o que dificultaria a agilidade dos movimentos. Sentiu
que naquele momento ‘ninguém era de ninguém’, e espiar por sobre a mureta era
arriscado; tinha de elaborar uma estratégia rápida. Enquanto isso, para surpresa
sua, Caveira gritou: - Foda-se! Não tenho o dia inteiro! E ainda quero comprar o
presente de aniversário do meu filho! – ato contínuo, virou-se e começou a atirar.
Tito então gritou: - Não faça isso, pelo amor de Deus! Abaixe-se, porra! – segurou
o colega pela alça do colete e começou a puxar Caveira, que não gostou: - Que é
agora? Novato de merda! Tenho que consertar a merda que você nos arrumou!
- Você vai é cometer suicídio, seu filho da puta! – Caveira então caiu por cima de
Tito. Mas não da maneira que este queria. O rosto ensangüentado e dilacerado
ironicamente foi parar no colo do novato. A cabeça parecia uma pedra lascada na
qual miolos e sangue se misturavam à surpresa tétrica do instante inesperado. Tito
soltou um grito de puro pavor. Agarrado ao colega, gritava, fazia sinais para os
demais. Quando conseguia falar, apenas gritava - Homem ferido! - dominado pelo
pânico, esqueceu-se do perigo de morte que rondava aquela mureta e saiu
arrastando o policial pelo barro, deixando uma trilha sinistra de sangue e pedaços
de cérebro. Três ou quatro homens com metralhadoras detonavam o local de onde
partira os tiros, enquanto davam guarida para que Tito socorresse ao colega, Nina
se juntou a ele, em parceria com Caldas. Arrastaram Caveira e dobraram pela
esquina, onde algumas ambulâncias estavam de prontidão. Os para-médicos então
assumiram a situação, mas em seguida, se olharam e um meneou a cabeça. Nina e
Tito ficaram abraçados, manchados de sangue sob a chuva, enquanto o rapaz
chorava e dizia insistentemente - A culpa foi minha!
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A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 05 EXPLICANDO O INEXPLICÁVEL
- Então por que fez? – Nina fez a pergunta enquanto botava os pratos na mesa.
Tito estava sentado apenas observando os movimentos da colega. Os olhos
acompanhavam os afazeres da moça, porém a cabeça estava muito longe dali. Esta
pergunta não saia de sua mente: por que fiz? Os olhos desviavam-se dos copos,
talheres e pratos ajeitados com esmero para fustigarem alguns aspectos do
apartamento de Nina. Não era maior que o seu, apenas um quarto, sala cozinha e
banheiro, porém mais desleixado. Alguns objetos pessoais atirados por sobre o
sofá e roupas dependuradas por qualquer canto apontavam para uma mulher
‘bagunceira’ embora o local fosse limpo. Tito tinha o hábito de conferir,
sorrateiramente, a cozinha de seus anfitriões quando era convidado para jantar.
Nina fora aprovada. Tudo muito limpo, mas as coisas fora de lugar confirmavam as
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suspeitas de que se tratava de uma mulher instável. Não era bom em psicologia,
mas imaginava que a casa de alguém refletia seu interior. E Nina não deixava a
desejar; achava-a meio maluquinha, portanto não podia encontrar nada diferente
do que já não havia imaginado. Tito sempre manteve seu apartamento limpo e
organizado, justamente para que tivessem uma boa impressão sua quando
recebesse alguma visita. Afora isto, sempre gostou de organização, detestava
bagunça. Pensou mesmo, observando ao redor, se poderia se dar bem com Nina
numa eventual relação. A moça agora o servia um bocado de macarrão tirado de
uma travessa que colocara no meio da mesa. Tito num ato quase autômato pegou
a garrafa de vinho e mesmo sentado colocou-a em meio às pernas, ‘parafusou’ o
saca-rolha e puxou. Nina que há muito reparava na apatia do rapaz comentou –
Sinceramente, não sei se foi uma boa idéia lhe trazer para minha toca. Pensei que
você melhoraria, mas acho que me enganei. Saiba, também estou chocada com a
morte do Caveira, afinal éramos colegas, embora não fosse lá muito com a cara
dele. Mas não vou me sentir culpada pelo fato do evento não tirar minha fome –
falou isto e começou a comer. Tito então comentou:
– Você não entende... se eu não tivesse atirado naquele cara lá em cima... eu
tinha a escolha de não atirar. No entanto, decidi matá-lo; o próprio Caveira havia
me dito momentos antes, que se nós apenas atirássemos mesmo que em ninguém,
provavelmente nada nos aconteceria. E ele só queria voltar para casa, tinha filhos
pequenos. Sim Nina, eu atirei para matar. Escolhi a dedo minha vitima, pude fazer
mira... vi o corpo desabar da lage! Vi o corpo espatifar-se na lama! Eu decidi que
aquele cara iria morrer, assim como poderia decidir que deixaria viver. Pensei que
depois disso me sentiria melhor, sei lá... um homem melhor. Porra! Tenho instintos
também não tenho? Quem nunca pensou em matar? Quantas vezes isso já ocorreu
comigo? Quando garoto, quis ver no inferno uns três ou quatro meninos! Quem
nunca quis? Quem nunca quis ver morto um professor déspota? Ou um político?
Isso não seriam as tais pulsões? Temos que engolir estas pulsões, sempre, pela vida
toda? Eu não... bom, pelo menos pensei...
- Você está louco! – interrompeu Nina veemente – do que você está falando?
Por acaso já imaginou se todo mundo levasse ao pé da letra tudo o que vem na
cabeça? Seria o caos, meu filho! Por isso os homens criaram este grande acórdão
chamado civilização! Caramba! Você trabalha justamente para que este acordo seja
cumprido. Acho que terá de escolher de que lado vai ficar neste negócio. Já tem
vagabundo demais nas ruas metendo fogo em gente de bem! Você matou um
bandido, pronto! Você é policia, pronto! Agora, se quer começar a matar em série
para dar vazão a seus ‘instintos assassinos’, é bom primeiro certificar-se que os
possui. E lhe digo, olhando para você neste instante posso lhe garantir, não é o
caso. E me permita dizer: você não é o Epaminondas. – isto foi como um tapa na
cara de Tito, o rapaz enfureceu-se e levantou-se da mesa esbravejando.
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- De onde tirou essa idéia? Por que não posso ser eu mesmo? Serei tão fraco e
débil assim para não ter idéia própria? Não pensar por minha conta? De onde tirou
esse negócio de Epaminondas?
- Tirei de sua fascinação pelo cara! E aquelas histórias que o Santos contou, de
que ele era um matador contumaz! Se você quer angariar respeito seja você
mesmo e esqueça o negrão, isto não pode dar certo. Cada um na sua. Você está
acabrunhado, se sentindo culpado por duas mortes a do vagabundo e a do colega.
Fosse o Epaminondas, ele estaria cagando para remorsos, possivelmente esta hora
estria fodendo as putas dele e enchendo os cornos de cachaça!
- Estive com ele ontem. – disse Tito, sentando-se novamente à mesa com um ar
sério e cansado.
- Como assim? Você vai insistir com o que me disse ao telefone, que esteve com
ele durante a madrugada? O que! Ele ficou comovido com sua ligação e resolveu
lhe fazer uma visita? Hummm.... meio complicado não acha?
- Ele me disse que ninguém iria acreditar, – disse o rapaz com um olhar perdido
no nada – ele tem razão. Deixe assim.
- Desculpe-me, – disse Nina, arrependida – mas me parece que você teve um
sonho. Às vezes nossos sonhos são tão reais que ao acordarmos confundimos as
coisas, e você... bem, convenhamos, nunca vi ninguém ficar tão impressionado ao
conhecer uma pessoa quanto você ficou com o negrão.
- E por isso então, agora confundo sonho com realidade! Fiquei demente. Tá
bom. Pensei que ao menos você acreditaria em mim. Mas o cara é mais esperto do
que se imagina, faz a coisa direito, não deixa pistas, e se alguém falar que esteve
com ele vai parecer loucura. Realmente ele não quer nada com sóbrios. Estes só
servem para diverti-lo, desde que seja de longe. Acho que não posso culpá-lo.
- Cuidado garoto, quem brinca com fogo pode se queimar. Esse cara não é flor.
Não é à toa que é um eremita. Pelo que me consta não gosta de pessoas de bem;
nem consegue conviver com elas. Creio mesmo que gostaria que o Sol não
nascesse para poder andar por ai aterrorizando, matando e trepando. É um
monstro. Como pode alguém viver à sombra? Não gostar de Sol? E aquela
gargalhada? Nem parece humana! Nos olha como se fossemos vermes que
rastejam de dia, e ele... bem, ele se acha o deus da noite. É uma aparição macabra,
nunca me habituei com sua presença. Nas poucas vezes que tive o desprazer de
vê-lo, senti um frio na espinha, algo como se um perigo iminente de alguma coisa,
sei lá o que, estivesse para acontecer. Aquela cara de sapo, aquele olhos injetados,
às vezes penso que ele poderá a qualquer momento soltar sua língua de réptil e
num só golpe catar a todos e engolir. Tenho medo dele, para mim ele é o próprio
demônio. Sim, apesar de tudo tenho um fascínio por ele, admito, mas não quero
mais fazer parte disto, me desculpe. Se ele levou você é porque quer você, não a
mim. De minha parte a aventura termina por aqui. Você esteve dentro da boca do
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sapo então? O que encontrou lá? Algum pentagrama? Alguma imagem de
Baphomet?
- A imagem do que?
- Ora, neguinho, são símbolos do ocultismo. Você não viu por lá a imagem de
um bode com tetas e um imenso pau duro? Não viu uma estrela de seis pontas?
Ou o seu Mefistófeles não faz uso dessas coisas.
- Falou grego pra mim minha filha, não entendi nada do que você disse; na
verdade não vi nada disso por lá, porém, vi mil demônios que riam sem parar, se
você quer saber. Mulheres nuas que dançam com mascara de diabo, vi um sátiro
que dança tocando flauta de bambu. Coisas que você nunca verá. Não me admira
que tenha dado para trás, mas não lhe culpo, afinal realmente é muito assustador.
Fico mais tranqüilo com você fora disso, mas tenho de admitir que fiquei fascinado.
Quero que ele me busque novamente; preciso voltar lá.
- O que quer dizer com ‘quero ele me busque novamente’? ele mandou um
carro lhe apanhar em casa? Puxa, que chique hein? Vá gostar de um novato assim
lá no inferno! – divertiu-se Nina.
- Apesar de suas gracinhas, eu lhe digo que realmente aconteceu. Aquela noite
eu estava terrivelmente exausto, como você pôde ver; quando cheguei em casa
desabei na cama de roupa e tudo, nem a arma eu retirei. Mas ele a retirou, tanto
que quando acordei estava sem ela. Dei de cara com o negrão em meio a todas
estas coisas de que lhe falei agora. Bebemos tanto que adormeci, quando acordei
já era de manhã e eu estava em meu apartamento. Foi uma grande aventura lhe
garanto, espero que aconteça novamente.
- Só espero, meu caro, que você não esteja sofrendo de nenhum surto
esquizofrênico. A ser verdade o que você diz, deveria abrir seu olho; eu não ficaria
tranqüila com esse cara ou qualquer de seus asseclas entrando em minha casa ao
seu bel prazer para me levar dormindo a lugares lúgubres sem meu
consentimento. Vai comer ou não vai? – perguntou Nina interrompendo o assunto
abruptamente.
- Não tenho fome. Estou com duas mortes na minha conta... a do vagabundo já
seria suficiente para me tirar o sono por uns bons dias. Você não entende? Eu tive
opção de escolha, porra! Eu matei o cara com uma frieza que não é minha. Nunca
me imaginei capaz de atirar em alguém que nem ao menos estava me vendo. Foi
um tiro traiçoeiro e covarde. É isto que sinto agora, mas não bastasse este
sentimento de remorso, quem recebeu o troco pela minha atitude foi o Caveira. O
cara tinha família, filhos pequenos, é difícil imaginar que por causa de uma atitude
bem pensada, agora duas crianças estão órfãs de pai. Estou me odiando por isso.
Só queria voltar o tempo, faria o que ele disse, atiraria em direção ao topo do
morro, se pegar pegou.
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- Fez o seu trabalho – Nina levantou-se, e começou a recolher os pratos – se
todos os policiais agissem como você agiu, escolhendo com critério em quem vai
atirar, talvez os vagabundos pensassem duas vezes antes de matar pai de família.
Eu conhecia o policial da terceira que morreu, também tinha filhos, você acha
realmente que eles se importam com isso? Quanto a Caveira, escolheu a profissão
de policia, quem tá na chuva... – a moça foi à cozinha com os pratos e Tito
acompanhou-a com os olhos. Estava com uma calça justa que lhe fazia jus às belas
formas. O rapaz cravou os olhos na bunda bem torneada da policial. Não estava
com disposição para fazer qualquer investida, porém, sentia algo estranho, uma
espécie de tesão súbito que fez suas faces arderem. Pensou então, que seria até
uma espécie de desrespeito pelos mortos e suas famílias, ter aquele tipo de
pensamento neste momento de luto e culpa. Mas Nina voltou da cozinha e os
olhares se entrelaçaram num abraço lúbrico. Não havia mais nada a fazer, o sexo já
começara através do clima exalado pelos olhos travessos da moça. Esta se
aproximou, retirou o copo de vinho da mão de Tito, que permanecia sentado, e
baixando o rosto beijou-o com delicadeza, no que foi correspondida. Foram
esquentando suas libidos, a ponto de não saberem mais onde botar mãos ou
bocas. Tito escancarou os seios de Nina que saltaram ruidosamente livres; não
eram grandes, porém, eram alvos e suculentos; os mamilos eriçados denunciavam
o estado de excitação da moça. Abocanhou-os com sofreguidão e uma doce
cegueira instintiva tomou conta daqueles corpos. Desabaram no tapete, Nina sabia
que não podia se dar ao luxo de levá-lo ao quarto, pois qualquer descuido e a
arisca presa poderia voar. Trabalhou em zíper e botões enquanto beijava
ardentemente a boca de sua vítima; não, ele não poderia mais lhe escapar, sentiu
na mão a rigidez da pica de Tito como um troféu pela sua vitória. O rapaz
correspondeu em tudo, e corpos que se cheiravam, lambiam, beijavam e mordiam,
flanaram pela madrugada adentro naquela deliciosa e lasciva expedição da
descoberta do outro.

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A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 06 POR QUE O DIABO RI?
Havia muita gente no Cemitério das Camélias. Familiares e pelo menos uma
centena de policiais acompanharam as exéquias de Caveira. Tito e Nina ficaram
juntos todo o tempo; a moça tinha especial preocupação com o estado do rapaz,
que a muito custo segurava um choro constrangido e culpado. Tito recebeu
abraços de colegas que intentavam mitigar o notório sofrimento do jovem policial.
Sentiu especial mal-estar quando das condolências à viúva e aos dois filhos
pequenos que não paravam de chorar a morte do pai. Após o enterro, todos
caminharam cabisbaixos e silenciosos pela alameda do cemitério. Vozes baixas já
começavam a cochichar os assuntos comezinhos e diários à medida que se
aproximavam do portal de saída do campo santo. O novato imaginou então que
não era mais um novato. Talvez a partir de agora não o chamassem mais de cabaço
ou coisa parecida; talvez até mesmo atingisse um certo status e angariasse respeito
dos colegas, porém, nada disso aliviava a dor que sentia. Estava experimentando
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uma espécie de torpor existencial, nunca passara por aquilo; sempre quis ser
policial e sabia que um dia enfrentaria esses problemas, realmente não era isto que
o incomodava. O que lhe corroia por dentro era o fato de ter precipitado os
acontecimentos com total lucidez sobre seus pensamentos e atos, procurou aquilo,
quis fazer aquilo! Aí estava o problema... quis mesmo? Esta era a dúvida que o
torturava. Foi seu, aquele certeiro tiro e todas as conseqüências que dele adveio?
Ou foi de... Epaminondas! Tinha de reconhecer que Epaminondas o impressionara
quando da sua convicção em matar. Disse mesmo que era um homem que
precisava matar! Aquilo havia o inebriado, ou seria o álcool daquela noite? Aquela
situação de sonho e pesadelo numa mistura ébria e etérea teria se incrustado em
suas veias a ponto de ele tomar alguma atitude que não sua, apesar de bem
pensada? Ou teria sido mal pensada? Suas divagações foram interrompidas por
uma pedrada que veio na forma da voz trepidante de Santos.
- Tire o resto do dia de folga, é quase meio dia, não acredito que você tenha
alguma utilidade na delegacia hoje. Porra, você está um trapo meu filho! Lhe
espero amanhã bem cedo, e tomara que esteja bem recuperado. Esse carrossel não
pára, irmão, até lá.
O rapaz agradeceu com um sorriso forçado e foi com Nina para um lugar a salvo
de ouvidos curiosos.
- Preciso uma horinha para mim. Não estou muito bem. Amanhã bem cedo
falamos na delegacia.
- Claro – disse Nina compreensiva – me ligue se precisar. E... bem, eu queria dizer
que adorei a noite anterior. Pra quem está meio broxa de espírito até que você foi
bem tesudo.
- Nos falamos amanhã, acho que preciso realmente de uma boa noite de sono,
mas até lá tenho muito que raciocinar; botar as idéias em ordem. Amanhã estarei
melhor tenha certeza. – os dois então se despediram com beijos no rosto para não
despertarem suspeitas e cada um rumou para seu destino.
***
Tito, ao contrário do que havia imaginado não conseguia concentrar-se e um
torpor embalado pela tarde modorrenta o fez afundar cada vez mais em sua cama.
Então as delicias do sono começaram a dançar sua dança de cigana até que
desapareceram por completo todos os vestígios do Sol. Lentamente abriu suas
pálpebras pesadas e à sua frente, um cenário que já conhecia tomou conta de sua
visão. Lá estavam os demônios zombeteiros, as velas e os incensos. Tito, porém
reparou em alguns detalhes que destoavam daquela outra noite; as velas não eram
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em número tão elevado, fazendo com que a sala ficasse mais escura, lúgubre e
assustadora. Olhou com atenção e divisou a pira, esta não estava acesa. No
entanto, sobre a mesa redonda havia três objetos que fizeram gelar seu sangue.
Eram três caveiras, uma das quais, a do meio, portava uma vela vermelha afixada
no topo da cabeça; a vela estava consumida pela metade e a cera derretida caia-
lhe por sobre o crânio dando um aspecto por demais sinistro. As outras duas
tinham o topo do crânio virado para baixo encaixados em delicados suportes, sem
dúvidas serviam como taças; horrendas taças. Taças de crânios humanos! Aquilo
revoltou o estômago do policial e este reparou também em uma garrafa ao lado
destes artefatos nefandos. A pouca e bruxuleante luz das velas davam um aspecto
tenebroso a tudo aquilo, os demônios das paredes pareciam mais ruidosos do que
nunca. Deu-se conta então de que Epaminondas não estava no local. Levantou-se
do velho sofá e, cambaleante, encaminhou-se à porta. Respirou fundo por algumas
vezes; que merda seria essa que o negrão usava para drogá-lo? Pensou. Ficou ali
parado por alguns momentos e quando se achou em condições, deu
prosseguimento à sua curiosidade; abriu a porta vagarosamente e saiu. Para sua
surpresa, saiu em um corredor com archotes que ardiam em ambos os lados das
paredes, os fogos deixavam o corredor com iluminação suficiente para que Tito
percebesse a cor de terracota e o longo comprimento deste. Em seguida percebeu
varias portas intercaladas por distancia regular, talvez uns cinco metros entre cada
uma, tinham portas dos dois lados do corredor. O rapaz então apurou os ouvidos e
escutou gemidos que vazavam através de uma porta entreaberta. Era a porta mais
próxima de onde então se encontrava; curioso, aproximou-se e espiou para dentro
do quarto. Ficou impressionado. Era um imenso quarto com uma grande cama
redonda ao centro, rodeada por círios que ardiam com tanta intensidade que
praticamente não havia onde pudesse ter um ponto de escuridão. Na cama, três
corpos nus e em completo êxtase enroscavam-se como serpentes em um ninho.
Epaminondas estava no meio, e enquanto beijava com sofreguidão a boca e
acariciava os seios de uma garota escultural, com a outra mão dedilhava
carinhosamente a boceta de uma fantástica mulata. Em seguida, inverteu os papéis.
As mulheres riam em êxtase e o negão, embora banhado em suor, gemia de
prazer. Tito começou a ficar excitado e começou a manusear seu pau por cima das
calças. Epaminondas então se deitou de barriga para o teto e a mulata veio por
cima enterrando calmamente a imensa pica do negrão em sua boceta empapada
de prazer; a outra mulher sentou sem cerimônias no rosto do homem, oferecendo-
lhe a xoxota inchada, no que foi atendida de pronto por uma língua ébria e úmida
de tantas bebidas alucinantes. O trio entrou em êxtase. Corpos que tremiam em
prazer incontido, gritos e gemidos eram acompanhados agora por gestos
frenéticos. As mulheres beijavam-se abraçadas; bocas, seios, tudo agora entrava
naquela ciranda vertiginosa enquanto por baixo, um escravizado Epaminondas
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estava totalmente à mercê daquele frenesi. Tito reparou que os olhos do negão,
que apareciam e desapareciam no vai e vem decidido da bunda da mulher,
reviravam de prazer e não agüentando mais, o voyeur tirou o pau para fora e
gozou junto com aquelas bacantes alegres e seu sátiro. Seus gemidos foram
abafados pelo gozo frenético que vinha daquele quarto. Satisfeito, o rapaz ajeitou-
se e quando espiou novamente viu o trio alegre que, em gargalhadas, enchiam
taças de vinho. Epaminondas vestiu um roupão de cetim preto e encaminhou-se
para a porta. Tito correu para a outra sala e sentou-se rapidamente no sofá, em
seguida surgiu o negrão.
- Você é foda mesmo, compadre! – disse Epaminondas com seu tom bêbado e
brincalhão – ficou batendo bronha na porta em vez de participar! Não sou egoísta,
você já sabe. Poderia muito bem se juntar a nós; ou continua com medo da minha
piroca negra? Há,há,há...
Tito ficou sem jeito e tentou se explicar, mas o homem interrompeu em tom jocoso
– sei como é essa estória de pudor. O sóbrio é cheio de pudor, mas adora bater sua
punhetinha em lugar seguro, he,he... bem, me desculpe se não fiquei para assistir
seu despertar mas você há de concordar que eu tinha compromissos inadiáveis, e
tudo que envolva prazer tem minha total atenção. Esta surubinha é um bálsamo
para mim, não estou mais em idade de poder passar sem um ménage, você tem de
entender. – o rapaz então olhou para as sinistras taças e comentou – fiquei meio
assustado com isso, são... São crânios de verdade?
- De verdade meu filho. Aqui não tem nada de mentirinha. É um presente de
Lord Byron.
- Quem?
- Esquece. São para comemorações especiais, e hoje devemos celebrar. Mas para
tanto, ofereço-lhe meu cachimbo da paz. – Epaminondas tirou de um recipiente
que estava em um canto da sala, o que parecia ser um imenso charuto, acendeu e
sentou-se em seu ‘trono’. - Mas o que está esperando? – prosseguiu – sirva esse
delicioso vinho nessas taças que preparei especialmente para você.
- Nessas taças?
- Ora, como não? São para ocasiões especiais, a poucos dou o privilégio de
realizar libações nesses maravilhosos recipientes. Ficaria realmente desapontado se
você não me desse a honra de me acompanhar; hoje é dia de muitas efemérides,
celebremos! Fume um pouco. – Epaminondas estendeu o charuto ao rapaz que o
pegou titubeante – Mas o que é isto afinal, maconha, haxixe? Tem cheiro de
maconha ou coisa parecida. Será que não vou pirar demais com isto?
- A idéia é essa, coragem irmão. Quero leva-lo a lugares que você nunca sonhou
existir; quero leva-lo ao meu lar.
- Pensei que seu lar fosse aqui.
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- Muitos são os meus lares. Pobre daquele que vive somente nas outras coisas e
esquece de viver nele mesmo. Vou lhe mostrar coisas espantosas, coisas em que
jamais você ousou pôr sua mente sóbria.
Tito fumou o charuto uma, duas, três vezes. Sentiu que era chegada a hora de
aprender alguma coisa e não queria titubear, fosse o que fosse, queria ir até o fim.
Precisava tornar-se mais forte, não estava agüentando as contingências da vida lá
fora. Queria arcar consigo mesmo, coisa que lhe parecia por demais penoso
naqueles dias. Estava totalmente perdido e precisava agarrar-se a qualquer coisa,
sentia que uma imensa força emanava de Epaminondas e se pudesse dispor de
alguma parte deste poder, resolveria a sua vida. Queria muito expor ao veterano
policial o ocorrido no Morro do Tigre. Queria sua opinião não como policial
experiente, posto que era um apóstata, queria sim, sua opinião de matador, de
homem implacável das ruas, sim, ele precisava saber sua opinião, e não seria
surpresa se o negão já não soubesse do ocorrido.
- Sabe... – iniciou Tito, enchendo os crânios com vinho – aconteceu uma coisa lá
no Morro do Tigre...
- Espere aí meu velho! Antes de falar me alcance a taça com esse delicioso vinho.
E se já fumou, apague isso naquela vasilha. – o novato obedeceu e sentou-se no
sofá.
- Quer me falar do que? Do homem que você matou? – Tito arregalou os olhos,
mas em seguida ficou calmo, Epaminondas de tudo sabia no âmbito policial e ele
até já esperava por isso. – É... eu...
- Há,há,há... meu caro, quando se encosta a ponta da espada, se empurra até o
fim. Beba esse vinho nesse crânio, beba... – o rapaz começou a ficar nauseado, o
efeito da droga começou, pensou ele, pois estava realmente enojado com aquele
crânio na mão e começava a suar frio, porém, estava disposto a ir até o fim. Virou a
taça macabra deixando escorrer o líquido pelos lados da boca.
- Curta este momento glorioso! – disse Epaminondas abrindo os braços – este é
o crânio do homem que você matou, e o que você bebe é o seu sangue, há,há,há...
As risadas de Epaminondas acompanhadas daquelas palavras cortaram o coração
de Tito. Este começou então a sentir o gosto de sangue em sua boca; apavorado
olhou para a taça de osso, esta estava toda vermelha de sangue. Os dentes da
caveira estavam mais assustadores do que nunca e de repente, um par de olhos
esbugalhado apareceu onde antes havia apenas dois buracos escuros no crânio.
Tito jogou a monstruosidade na parede, mas esta não se espatifou e rolou de volta
aos seus pés.
- Mas você realmente acha que pode matá-lo novamente? – disse Epaminondas
em tom de escárnio – já não bastou uma vez? Há,há,há... Este é o vinho da culpa,
irmão! Transforma-se em sangue na boca! Há,há,há...
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Tito ia dizer alguma coisa, mas petrificado pelo pavor, apenas conseguiu visualizar
uma transformação demoníaca à sua frente. Epaminondas agora ria muito, e havia
se transformado em um terrível demônio. Olhos puxados e imensos chifres
afloravam em meio ao intenso fogaréu surgido do que ainda pouco, eram
inocentes círios bruxuleantes. Epaminondas agora tinha a metade inferior
extremamente peluda seus pés viraram cascos de bode. De bode também era sua
barba. Soltava sonora gargalhada, e um fedor incrível tomou conta de tudo.
- Sabe por que o diabo ri? Perguntou o demônio ao rapaz, que meneou a
cabeça sem conseguir dizer palavra.
- Ri porque não tem medo! A risada é a antítese do medo; não a risada tola, de
claque, risada de sóbrios! Falo da risada livre, desafiadora, demolidora! Capaz de
fazer desmoronar o mundo estabelecido. Você tem a capacidade de rir? Acho que
não. Olhe para você, apavorado! Pensa que vê o que não vê. Não poderá chegar
nunca perto de mim! Como prefere me ver, meu filho? Através de quais crenças?
De quais preconceitos? De quais filtros morais? Essas crenças é que me moldam
em sua mente, através delas vem a formula da forma como me vê; eu de minha
parte continuo sendo o bom e luxurioso Epaminondas. Você terá coragem
suficiente para me seguir? Se tiver venha comigo, mas desde já jogue fora todas as
imundícies que os sóbrios lhe inculcaram nessa cabecinha mole! Qual a vantagem
de sentir tanto medo? Digo, qual a vantagem para você? Para os donos da sua
consciência as vantagens são inúmeras, você será sempre o cordeirinho assustado
atrás de proteção. Eles então poderão lhe abençoar com seus dinheiros, seu
preconceitos, suas mentiras, seus medos e suas dádivas. São fracos cuidando de
fracos. Quando me olha o que você vê? Digo-lhe o que vê, você vê os estereótipos
patéticos nos quais foi condicionado. Sente cheiro de enxofre, porque disseram
para sentir. Vê coisas que lhe parecem feias porque disseram que era isso que
tinha de ver. Tem medo porque disseram para ter. Mas eu não sou nada disso! Sou
o contrario! Sou a coisa mais simples que pode existir, o dia que você perceber isso
estará livre! Sou apenas o homem que mora na sombra, nada mais. Mas você...
olhe para você... está empapado em suor, sinto o fedor de seu medo! Seu sóbrio
idiota! O que você sente é o medo de você mesmo! Do seu ‘eu’ verdadeiro, que os
sóbrios batizaram de diabo para que você ficasse longe, tivesse medo, visse como
algo profano. Seu tolo! O dia que você incorporar seus demônios, o dia em que
você compreender que o diabo é você, nesse dia então poderá dizer que é o
homem mais poderoso do mundo, porque então o mundo, humildemente, vai
aninhar-se finalmente na palma de sua mão. A partir desse dia, descobrirá que
tudo está ao alcance da mão, mas os sóbrios lhe adestraram para acreditar ao
contrário. Basta ser um pouco inteligente para perceber quem sai ganhando com
essa farsa. Criaram tantos fantasmas no percurso entre sua mão e a coisa desejada,
que não é de estranhar que a imensa maioria dos sóbrios não consegue mais
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levantar os braços, tirar as mãos dos bolsos, da segurança dos bolsos. Saiba, não
existe empecilho nenhum entre você e a coisa desejada, pegue-a! Caralho, pegue-
a! Um dia vou entender esse mistério do mundo sóbrio; de jogar fora a força e ficar
com tudo que é débil, fraco, anêmico e patético. Vendo por esta ótica, não posso
deixar de achar divertido todo esse medo do ‘diabo’. Como já disse, os sóbrios me
divertem muito. Bom, minha garganta secou, bebamos vinho! Vinho sangrento,
há,há,há... vocês sóbrios são tão idiotas que têm medo de sangue, mais que isso, o
usam como um apanágio terreno. Sangue é coisa ruim, lembra a falta de ‘alma’,
esta sim, é coisa boa, não tem sangue. O fogo por sua vez é a característica do
diabo, do inferno, no entanto imaginem o planeta sem o Sol! Simplesmente não
haveria vida na Terra. Sempre imagino uma imensa ‘alma’ suspensa no espaço
‘aquecendo’ as ‘almas’ dos sóbrios. Sou fogo e sangue meu jovem! Meu sangue
ferve em minhas veias embriagadas! Por isso danço muito e faço muito sexo.
Tenho também a minha imaginação, este é outro delicioso vinho! Ah, minha
imaginação... o que eu seria sem ela? É mais uma das delicias a quem dou meus
instintos. Crio lugares fantásticos para meu deleite, vou lhe apresentar alguns, se
estiver mais calmo. Venha comigo. – Epaminondas encaminhou-se à porta da sala
e Tito reparou que seu aspecto já não era tão assustador, o negão apenas
mantinha dois imensos chifres e a parte inferior de seu corpo continuava peluda,
os pés continuavam fendidos em patas de bodes. O anfitrião se desfez do roupão,
pegou a taça de crânio com vinho e saiu pela porta nu, com seu imenso pênis
pendurado num balanço despreocupado. Tito saiu logo atrás.
****
- Meu Deus, o que é isso! - exclamou o rapaz diante da paisagem demoníaca.
- Não é bom blasfemar por aqui – divertiu-se Epaminondas. Na escuridão, os
dois estavam diante de um imenso mar. Um mar de sangue. As ondas levantavam e
quebravam à beira da praia gerando brumas vermelhas. A areia era extremamente
amarela, e no mar pululavam ilhas, ilhas de fogo! Algumas levantavam labaredas
extremamente altas, talvez quilômetros de altura, que conseguiam iluminar a orla o
suficiente para discernir-se claramente as cores. Tito estava petrificado.
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- Isso... isso é o inferno? – perguntou tentando não vomitar, nauseado pelo
cheiro de sangue.
- Para um sóbrio sim. Mas, isto aqui é minha escuridão, meu sangue, meu fogo,
meu lar! Olhe tudo isso meu garoto, é aqui que danço minhas danças mais
demoníacas! – dito isto Epaminondas começou a dançar, a dança foi tornando-se
mais frenética e em seguida o demônio correu para o imenso mar vermelho
pulando e mergulhando nas ondas, imprimiu então fortes braçadas até sumir na
imensidão. Tito tremia de pavor e não conseguindo mais segurar, vomitou vinho
naquelas areias amarelas. Sim, ficou aliviado, era vinho, nada mais. Tentava agora
se concentrar para escapar daquela ‘viagem’; sabia que tinha fumado algo
extremamente poderoso e que aquele vinho do crânio também tinha gosto
estranho, uma coisa era certa, estava profundamente drogado. Mas algo então
chamou sua atenção, o calor aumentara muito, então olhou para o mar novamente,
e para seu espanto, como se fosse possível espantar-se mais, o oceano de sangue
agora era um imenso mar de chamas que iluminava quase toda a escuridão. No
meio do mar uma gigantesca silhueta humana de fogo se ergueu e quanto mais se
aproximava da orla mais terrível era seu gigantismo, chegando a ponto de clarear
toda a escuridão. Uma gargalhada bem peculiar fez Tito reconhecer a terrificante
figura. Já não havia mais o mar de fogo, todas as chamas estavam concentradas no
gigante. O rapaz se deixou cair sentado, vencido pelo paroxismo da bizarria. Já não
tinha mais nada na cabeça, apenas observava como um autômato. Conforme o
monstro se aproximava ia diminuindo de tamanho, chegando à frente de Tito no
seu tamanho normal. Era Epaminondas no seu aspecto mais trivial, e só não
estavam em completa escuridão porque este deixara um rastro de fogo atrás de si.
Deu a mão ao rapaz que a segurou tremendo, Epaminondas levantou-o e lhe disse:
- Venha, quero lhe mostrar outro lugar, você merece um descanso – Tito começou
a andar com um passo trôpego, quase não se agüentava nas próprias pernas;
observou, porém, que seu anfitrião caminhava com passos firmes; sim
Epaminondas não estava embriagado. Pensou que talvez estivesse no único lugar
onde isto pudesse ser possível. Por ironia, quem estava totalmente embriagado, ou
mesmo drogado, que é uma forma de embriaguez, era ele Tito. Na sua ‘viagem’
então, raciocinou num lapso, de que Epaminondas deveria ser um homem
infinitamente mais forte do que ele, posto que levava sua embriaguez aos sóbrios,
até mesmo a impondo como seu modo de vida. Já Tito, no mundo da embriaguez
‘epaminôndica’ portava-se como um ‘embriagado sóbrio’ – Aqui não passo de um
drogado medroso, não passo de um merda! – pensou. Realmente não podia deixar
de sentir admiração por aquele estranho demônio. Os dois então caminharam por
um deserto em plena escuridão, iluminado parcamente pelo rastro de fogo que
agora era bem diminuto. Contornaram uma montanha muito alta e ao terminarem
de fazê-lo, Tito vislumbrou uma paisagem noturna que o deixou mudo de tanta
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beleza. Sete imensas luas refletiam uma claridade intensa; esse clarão derramava-se
sereno em outro mar, porém, este era calmo e de águas transparentes. As águas
eram tão límpidas que era possível ver com clareza as areias brancas no fundo,
bem como, os imensos peixes prateados serpenteando em suas trajetórias a esmo.
Os peixes refletiam aquela claridade serena e ficavam mais graciosos quando de
seus saltos para fora da água; eram saltos lentos e alegres, como se estes animais
aquáticos quisessem sorver toda a paz daquele clarão; parecia mesmo que havia
uma cumplicidade surda entre eles e aquelas maravilhosas luas. O endiabrado
então começou a correr na direção daquele calmo mar e o rapaz não pode conter
um riso, ao ver aquela silhueta negra e nua no contraste fantástico daquela luz.
Não se conteve e começou a tirar rapidamente suas vestes; uma vez nu, correu
também para aquelas águas transparentes. Entrou correndo e se atirou, sentindo o
frescor delicioso daquele misterioso e diáfano mar. Agora ria como uma inocente
criança, pulava, mergulhava, divertia-se; olhou para Epaminondas, este ria às
gargalhadas e o reflexo prateado das milhares de gotas no corpo negro daquele
velho diabo lhe davam um aspecto de dragão, um alegre dragão das águas. –
Venha comigo – disse, e mergulhou. Tito fez o mesmo. Epaminondas nadava feito
um peixe imerso naquelas águas, Tito procurava imitá-lo e com alegria constatava
seu sucesso. Reparou com calma naquelas areias tão brancas, passando-nas
suavemente sua mão; um cardume de imensos peixes prateados os acompanhava
e quando olhava para cima podia ver claramente as sete luas, sete luminárias de
serenidade. Estava feliz, numa felicidade nunca sentida; estava tão feliz que nem
precisava pegar ar na superfície, como se ali sempre tivesse sido seu lugar. Sua
fadiga ficou para trás, e agora ele serpenteava como uma enguia, levantava a areia
por onde passava e apostava corrida com seus amigos peixes. Nadou e brincou até
cansar novamente. Ao retirar-se das águas, reparou que o negrão descansava
sentado à margem. – E daí garoto! – saudou-o Epaminondas – que achou deste
lugar, gostou?
- Você está brincando! Nunca vi nada assim, tanta beleza e tanta paz.
- Pois este também é meu lar, sabia que ia gostar. É sereno. Também gosto.
Porém, não sou homem de me acomodar. Sou feito também de sangue e fogo!
Embora tenha me parecido que este aspecto lhe perturbou muito. As pessoas não
nasceram para ser espelhos creio eu, por isso esse seu pavor com o desconhecido;
não posso fazer nada. Gosto das pessoas que são pontos de partida. Sempre são
as mais interessantes, aonde vão chegar? Ninguém sabe, nem elas mesmas, não
raro perdem-se para sempre; todavia, não se conformaram com essas embalagens
às quais teriam de vestir. Sou sim, meu filho, sou estas águas calmas e límpidas,
mas também sou sangue e fogo. Neste exato momento você é um hóspede da
minha imaginação. Como havia lhe dito, sou um homem de muitos lares, e acaso
não estaria eu em casa quando crio? A criação é a chama da existência. Enquanto
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vocês sóbrios freqüentam os supermercados das idéias, eu crio. É muito mais
divertido, e eu adoro me divertir, como, é óbvio, você já notou.
- Você me deixa totalmente confuso, quase que não quero mais vestir minhas
roupas. -Tito então ficou com um ar melancólico – quase que não quero mais vestir
a mim mesmo, a minha própria carapuça. Olhar para tudo isso e retornar para o dia
a dia concreto e violento. Quem sou, afinal? Serei aquele tolo do dia a dia? Serei o
tolo do ramerrão profissional? Mas o pior é que... eu não saberia fazer outra coisa.
Uma vez você disse que os sóbrios se acovardavam na sua condição por não terem
para onde ir, puxa, nunca uma carapuça me serviu tanto.
- Se não pode ser você mesmo, seja o que você faz, que remédio? Já lhe disse
uma vez que não tenho pendores para mestre, então não tente me seguir. Cada
um é cada um, de minha parte sofri uma grande ruptura com o mundo lá fora e fiz
deste limão uma laranjada! É da minha índole, gosto dos desafios, quero sim ver
quem é mais forte do que eu. Nesta queda de braço sou mais eu. Vivo na sombra,
poderia despedaçar um sóbrio pegando em seu pé e o puxando para baixo, para a
escuridão; seus gritos alucinados poderiam se fazer escutar em todo o Planeta!
Todos os demais, os ‘irmãozinhos no infortúnio’ viriam em seu socorro, mas
bastaria que eu botasse meu rosto para fora e os fitasse com meus olhos de fogo
para que todos saíssem em disparada e passassem o resto da noite agarrados em
seus livros-frauda. Agarrariam-se a todas essas chupetas que os homens-nenês
recorrem quando vêem fogo! Gosto de fazer ‘buuuu’ e vê-los correr. Quem pode
com meu fogo? Cuspo fogo. Ejaculo fogo. Que sóbrio poderá comigo? Minha
imaginação desbrava mundos inimagináveis, vôo acima de céus vermelhos,
amarelos e de cores que ainda não foram inventadas; assumo tamanho impensável,
engulo o universo. Não foram criadas ainda medidas que possam mensurar o
tamanho de minhas asas. Vejo coisas com o lado de dentro do olho! Coisas
inimagináveis que só eu crio. Isto que você está vendo não é nada, é só o que
posso lhe mostrar sem que você pire total! Como poderia levar um sóbrio para
dentro da minha imaginação sem enlouquecê-lo ou matá-lo? Ademais, não tenho
propensão a Vergílio. Este inferno é só meu. E sendo meu, não é inferno, é paraíso!
Meu caro sóbrio, esse caminho não posso seguir por você, se não tem condições
de trilhar, refugie-se no dia a dia e era isso. Reze com os demais e me esconjure,
tenha medo do escuro porque é lá que habito. E quando ver minhas encarnações
em pedra, papel, tela, seja lá como for, apenas tenha a presença de espírito para
dizer: - Porra, mas esse cara está muito bonito com esses chifres pagãos
maravilhosos!
- Você acha mesmo que eu não passo de um sóbrio irrecuperável não é? – disse
Tito com visível desalento. Epaminondas sorriu e prosseguiu: - Você é o que vocês
chamam de ‘um homem de bem’; sei muito bem da sua tortura moral por causa
daquelas mortes. Não tente me seguir, insisto. Sou um homem instintivo, sou o
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homem que vocês chamam de mau. Mato sem remorsos. Mato e vou tomar vinho.
Se você não tem isso nas entranhas, aconselho a parar de tentar ser uma coisa que
não é. E daí? Se for no girar da roda morta dos dias sóbrios que você pode fazer
sua casa? Não sendo um embriagado o que você vai fazer? Forçar a sua natureza?
Mas meu caro, se você entendeu alguma coisa que eu disse, deverá compreender
que é da Natureza que estou falando. Minha natureza é assim e a sua é assado,
não nesta ordem, he,he... sou a Natureza pura! Só sei ser o que sou, não sei ser
outra coisa! Nem conseguiria mesmo que quisesse. Sou instintivo demais, instinto é
a Natureza, irmão! Nem no mundo sóbrio se pode eliminá-la. É impossível. Mas
podem sim anatematizá-la, dizer que é corrupta, que é o que de pior eles têm. A
Natureza é o diabo! Há de ser combatida com seus flagelos espirituais e a alma
invisível e santa deverá tomar o lugar da Natureza! Há,há,há... mas isso é
impossível! Com isto só podem distraí-la, os sóbrios precisam distrair a Natureza
para que a roda da civilização continue girando. A economia de mercado, esperta,
usa a Natureza para vender seus produtos e até do tesão da rapaziada eles já se
apossaram. O interessante é que essa vontade sub-reptícia de eliminá-la ou então
usá-la para fins de negócios, está fazendo com que a destruição do Planeta seja
iminente. O sóbrio tem o vezo de detestar qualquer vida que não seja a dele
próprio. Nisto são sempre egoístas, criaram até doutrinas para poderem tolerar-se;
numa delas a Natureza leva a culpa pelos seus ‘pecados’. Meu irmão, os sóbrios
adoeceram a filosofia para poderem arranjar culpados pela sua existência anêmica,
até isto fizeram. Sob esse verniz de civilização existe uma tal podridão existencial
que toda vez que ocorre uma pequena ruptura nesse frágil tecido, sentimos um
fedor insuportável. A civilização é uma tentativa, nada mais. Imagino que se fosse
rasgado repentinamente esse contrato social, todos mostrariam as verdadeiras
caras, só então se poderia dizer – Muito prazer fulano, não lhe conhecia, você era
esse imbecil o tempo todo? – a máscara ‘civilizatória’ é a salvação da grande
maioria. Mas nesse contrato surdo, certos fatores colocam em risco essa
organização. As drogas, por exemplo, exercem um verdadeiro medo pânico. Toda
vez que alguém acende um baseado am algum lugar, é rompido o elo do
comportamento aceito. Isso me diverte muito! O que preocupa e gera a repressão
dos governos é tão somente o fato de não poderem botar suas garras famintas nos
negócios gerados pelo vício; ou você acha, meu amigo, que os comandantes
sóbrios não querem botar a mão, a título de impostos, nestes bilhões? Uma vez
não podendo, e aí sendo vítima da sua própria moral, repreende para deixar claro
que é ilícito tudo o que não lhes gera dinheiro para meter no cofre. Ingênuo é
quem pensa o contrário. E aí tem de se entender, pois os sóbrios são criados e
doutrinados para serem ingênuos. Penso que o efeito secundário dessa repressão é
o fato do rompimento irreverente com o compromisso sóbrio. É, irmão, os caras
têm verdadeiro pavor de que numa ‘viagem’ o sujeito enxergue a sua condição de
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prisioneiro e arrebente com seus grilhões. Se a moda pega... bem, mas não creio
que a grande maioria possa ter condições de olhar e ver. A maioria não consegue
enxergar, o sóbrio é adestrado para esbarrar sua vista na muralha da Razão; e essa
herança socrática é cultivada hoje por seus sucessores. Gosto de brincar com a
Razão como uma criança que se diverte pulando pequenos muros. Não, meu filho,
não me siga, pelos portais que passo você não poderia cruzar. Cada um carrega a
si mesmo por baixo da roupa diária, e eu, eu carrego um turbilhão! Sou uma
bomba atômica, e esta é toda a minha alegria. Não tenho alma, espírito, nada... sou
Epaminondas, o embriagado... sou o diabo! Há.há,há... – a gargalhada do negrão
ecoou por todos os lugares assustando Tito; era como se o risonho estivesse em
todos os cantos ao mesmo tempo, no céu, na areia e no mar. De todos os lados
vinha aquele som estrondoso; o rapaz tapou os ouvidos para não enlouquecer e
não agüentando mais soltou um grito alucinante. Estalou então os olhos e viu
Epaminondas rindo sentado em seu indefectível trono. – Caramba! – exclamou,
olhou para os lados e constatou que estava na sala mística dos demônios, dos
círios e dos incensos; estava deitado no velho sofá e a luzes das chamas brincavam
na fisionomia alegre do anfitrião. Tito fechou os olhos por alguns instantes e
reminiscências de sua ‘viagem’ lhe surgiam como ‘flaches’; via fogo, águas
cristalinas, peixes dourados saltitantes e o demônio de fogo. – Cacete! O que foi
tudo isso? – disse enquanto reabria suas pálpebras pesadas.
- Meu lar, filhote! – respondeu um alegre Epaminondas – Você conheceu
algumas dependências da minha imaginação, uma parte ínfima é verdade; jamais
poderia expô-lo a mais que isto, você enlouqueceria ou até mesmo poderia morrer.
Sua mente é bastante singela e destreinada, é viciada na trivialidade do
pensamento cotidiano, seria como jogar uma bolinha de papel pela boca de um
vulcão.
- Mas estou realmente fascinado, puxa vida! Que experiência louca! Nunca
imaginei que pudesse existir algo assim. Existe pelo menos alguma esperança de
eu poder conhecer um pouco mais?
- Ah! A esperança! – exclamou o negrão – isso é bem sóbrio da sua parte. Meu
filho, esse negócio de esperança me embrulha o estômago! A esperança foi
inventada pelos sentados. Se vocês tivessem condições de entender melhor as
metáforas eu lhe contaria a estória da caixa de Pandora! Os pré-socráticos eram
sábios. Mas quem tem ouvidos para as coisas bem ditas? Preferem tapar os
ouvidos e esperar, esperar e esperar... enfim, é a esperança. A esperança é a melhor
desculpa para não se sair do lugar; fodam-se os sóbrios e seus ensinamentos
mortificantes. Para os antigos gregos esta senhora, a Esperança, era alguma coisa a
ser evitada como uma peste! Mas afinal, eram pagãos! Dançavam para celebrar a
alegria de estarem vivos! Os sóbrios por sua vez precisam de avatares que
justifiquem a agonia de estarem vivos. Que inversão hein? Não é de estranhar que
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invertam interpretações para que possam repousar nelas. Não, querido, não
conheço essa tal esperança, quando quero algo estendo a mão e pego; se não
estiver ao meu alcance, caminho, me aproximo e pego. Quem pode me impedir?
Os fantasmas que pululam no caminho? Mas meu caro, eu não acredito em
fantasmas! Acredito em demônios, mas estes são meus; fantasmas são obstáculos
que sinalizam de fora para dentro, impedindo a ação. Demônios são soldados que
saltam de dentro para fora, são as próprias ações! Portanto, quem tiver medo de
fantasmas que se agarre à esperança. Eu não, eu sou formado por milhões de
demônios de fogo, os demônios da minha singularidade, he,he... contra estes
ninguém pode! Digo isto porque se você quer alguma coisa, faça! Jogue fora esta
palavra, ‘esperança’, e realize-se na ação! Outra coisa que sempre me intrigou nos
sóbrios é a essa tal ‘felicidade’. Todos procuram a felicidade, institucionalizaram
esta senhora, sim, é tratada como uma senhora matrona sempre distante, mas de
braços abertos para seus filhinhos que um dia chegarão... ou não. Para serem
felizes cometem um crime lesa-majestade, ou seja, ‘expulsam seus demônios’, ou
melhor, botam-nos para dormir; é isto que eu chamo de ‘vida santa’ ou ‘assepsia
da alma’. Realizam uma verdadeira faxina existencial, jogando fora a si mesmos,
como se com isto pudessem, enfim, sedimentar o caminho para a felicidade, a
senhora matrona. Somos um amontoado de sentimentos, pensamentos, atitudes,
riso e choro, enfim... rancores, ódios, alegrias, vitórias e derrotas. Somos humanos
não é isso? Pelo menos é o que dizem; então que tipo de assepsia poderá passar
sua régua niveladora para reduzir um ser tão complexo deste a alguma coisa vazia,
mas ‘feliz’? Porém, os sóbrios vestiram esta senhora com vestido azul celeste, e
agora ela paira flutuando no nada fazendo seus sinais carinhosos e conclamando:
‘venham, venham meninos, a mamãe Felicidade quer abraçar vocês eternamente’.
De minha parte, penso que esta dama rivaliza com a ‘esperança’ na intenção de
manter as pessoas sonhando com o nada, são duas velhas enganadoras, mas sem
as quais os sóbrios não podem viver. Não sou ‘feliz’, sou apenas eu, na alegria e
espanto de mim mesmo. Amo meus demônios como animais de estimação, eles
são a minha força, minha alegria, são o que sou! Amo suas danças infernais
espalhando seus amáveis rastros de fogo pela minha existência embriagada. São a
minha imagem e semelhança, seus cornos são os meus, suas risadas despudoradas
são as minhas, são os meus próprios instintos em ebulição! Ah... que delicia! Sabe
garoto, se me atiram uma pedra, eu a abocanho no ar, mastigo e engulo; ela é
alimento, então, estou mais nutrido e mais forte. Que me atirem mais! Sou um
homem faminto, aquilo que machuca o sóbrio é almoço para mim. As pessoas
precisam abrir mão delas mesmas para serem ‘felizes’; precisam enquadrar-se no
padrão ‘felicidade’. Nunca consegui entender isso. É como convencer um cravo de
que ele só será feliz tornando-se uma rosa. É extremamente difícil enfiar na cabeça
de um sóbrio que a alegria de existir não está nos padrões de suas crenças, e sim,
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na própria existência! A singularidade deveria ser a meta a ser almejada, porém, é o
comportamento de rebanho que justifica sua patética existência. Bem, não é de
estranhar então que nessa corrida de galgos, a felicidade seja o coelho. Já a alegria
de existir se faz sentir numa grande gargalhada, debochada e livre! É o riso do
diabo! – dito isto, Epaminondas soltou uma de suas melhores gargalhadas – Este
riso incomoda tanto que é atribuído ao diabo! Há,há,há... são uns fodidos esses
sóbrios, mas não me divertiria tanto se eles não existissem!
- Sabe – disse Tito – você me confunde muito... vivo entre os chamados ‘sóbrios’
e até mesmo sou um deles. Mas quando escuto você falar, gostaria de não sê-lo.
Sinto-me um merda, mas olho para os lados e... acho que não teria para onde ir...
isso esta começando a me incomodar.
- Existe um ditado, meu caro branquelo, que diz: o que não tem remédio,
remediado está. Não tente avançar em terras desconhecidas, se não nasceu para
desbravador. Poucos são os que têm realmente condições para esta viagem
fantástica e colorida que os recônditos negros proporcionam; se você não tem
demônios por dentro, tenho pena de você, porém não force a barra. Siga o script
oferecido e vá atrás da senhora de azul, seja um bom reprodutor ‘civilizatório’ e
fique tranqüilo, se você é uma função, paciência! Mas nunca tente me imitar ou
coisa parecida. A imitação é coisa de ‘alma’ e essas mazelas das quais detesto; sou
minha singularidade, isto não pode dar certo para um outro e quem procede assim
é um picareta! Quem quer seguidores, se for honesto, sabe que é um picareta!
Viverá com seu dedo apontando para a ‘felicidade’ e fazendo sinais para que o
acompanhem pela sua estrada santa e sábia; a muito custo eu poderia deixar de
imaginar que esse serzinho tolo, porém metido a esperto, não queira dinheiro em
troca. Este descobriu rápido o perfil do ente ‘sóbrio’. Sim do ente, ou melhor,
doente; os metidos a espertos são aqueles que desvendam a doença sóbria e se
aproveitam dela. Não é o meu caso. Se você está procurando um guru ou coisa
parecida, saiba irmão, este não sou eu. Tudo o que tenho para lhe mostrar é a
minha própria anatomia e talvez lhe perguntar se você possui uma; se tiver, bem,
então você tem uma individualidade e poderemos festejar uma amizade dos
diabos! trocarmos idéias, leituras de mundo, enfim... se não tiver, a culpa não é
minha. Você é um sóbrio, foi criado para ficar longe de você mesmo... longe do
diabo! Você está confuso porque nunca pensou. Este nosso breve convívio talvez
tenha lhe ressuscitado uma qualidade que estava morta; a de pensar. Não sei se é
isso, tomara que seja, e tomara também que você seja daqueles que consegue
pensar sem as muletas sóbrias, porque do contrário, estará perdido. Agora, se me
permite, darei mais um gole neste delicioso sangue da videira... ahhhh.... o falerno...
sabe, minha imaginação é também um vinho delicioso e poderoso, é ela que me
conduz a lugares perdidos no tempo. Com minha imaginação, mergulho de cabeça
no DNA da História e então bebo o falerno com os romanos quando eu quero.
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Visito pérolas da antiguidade: Alexandria, Babilônia, Etioquia, Cartago... enfim, vou
onde me dá na telha; por que não? Caminho sob o sol escaldante da Mesopotâmia
entre assírios e caldeus, só em minhas viagens ando sob o Sol; viajo com os
fenícios pelo Mediterrâneo barganhando mercadorias pelas costas da península
imperial. Vejo coisas: vi Aníbal abrir mão de mudar a história do Ocidente ao
dormir às portas de Roma. Vi Lucio Séptimo enfiar sua adaga covarde nas costas
de Pompeu; vi também um vil Ptolomeu entregar a cabeça do Imperador a César.
Vi o legado romano negociar com os aqueus: quod autem isti dicunt non
interponendi vos bello... sim, vi os papas medievais e suas horrendas bulas
assassinas! Vi pessoas que foram torturadas e queimadas naquelas fogueiras que
reduziram meu amigo fogo a mero carrasco a serviço de idéias funestas.
Humilharam o fogo! Atearam-no contra o pensamento livre! Até isso fizeram
aqueles covardes bolorentos e mal intencionados! Escondendo-se atrás de seus
símbolos, mas sempre com suas mãos nos sacos dos reis. Por isso não me admirei
quando Felipe IV, codinome o Belo, mandou dar um ‘susto’ no papa Bonifácio VIII,
com isto matando-o e arejando as finanças de França. Sim, garoto, eu vi. Vi com
quanta ‘santidade’ foram tratados os africanos! Não é a toa meu caro, que hoje o
neo-paganismo corporativo encontre o terreno fértil para vender seus novos
deuses de consumo, ou seja, as grandes marcas. Essa é uma massa que já vem
sovada há centenas de anos. É a eterna história da esperteza; até a filosofia deixa
de ser o pensamento perscrutante para se transformar em algo comprometido e
doente, exalando o mau hálito daqueles que a morderam. Não vou nem falar em
escolástica, urgh! Que nojo! Para mim não há dúvidas, a História é a história da
esperteza, e só há espertos se há submissão, e só há submissão se há crença.
Crença em qualquer coisa, qualquer coisa que as pessoas julguem ser maior que
elas; veja que terreno fértil para oportunistas! Adestradas para imaginar que não
são nada, obviamente vão acreditar em quem disser qualquer merda metafísica!
Espero pelo menos que você seja um pouco mais esperto e aprenda uma equação:
não é porque alguém pensa azul que terá o direito de convencer os outros de que
as outras cores são ruins. Se eu penso vermelho, como poderei ser ‘feliz’ pensando
azul? Impossível. Sempre imaginei o ser humano como um ponteiro em um dial de
rádio, procurando sua musica preferida de estação em estação, quando a encontra
enfim, pára e curte com prazer. Assim é quando enfim sintonizamos a nós mesmos!
Quem, que picareta, poderá nos tirar a delícia da existência em nós mesmos? Acho
que é o que Epicuro chamava de ataraxia! Os sóbrios não gostam de sofrer, não
querem morrer, então inventaram o Céu, a Alma e o caralho a quatro! É uma
infinidade de cores se iludindo com o azul! Mas como pode existir uma cor melhor
que a nossa, só nossa, seja ela qual for? Por isso é que eu bebo! Um brinde! Que
vinho delicioso! Hummm... você já pensou quantos dragões foram convencidos de
que são ovelhas? Quantos lobos vivem como cordeirinhos? A sociedade sóbria
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assim se protege deles. A sociedade tem medo, então cria medrosos, é natural.
Porém, irmão, lhe digo: quem é diabo que se assuma! É a hora do diabo! É a hora
de rasgar o véu azul enganador e deixar os autênticos voarem finalmente com suas
imensas asas de morcego e seus risos ensurdecedores até atingir seu próprio
tamanho. É hora de dominar o mundo! Chegou a era dos risos! Chegou a era da
dança! Chegou a era do sexo! Chegou a era do pensamento livre e ardente!
Chegou a vez dos demônios risonhos! Viva a embriaguez dos vivos! E que os
mortos continuem sóbrios. Os vivos sabem que este deleite não é eterno por isso
curtem o prazer da vida! Os sóbrios estão mortos e seguirão mortos pela
eternidade lá no céu assexuado deles, que deve ser chato pra caralho, diga-se de
passagem! Se o inferno é aqui, então meu querido vem e abrace aqui o negão,
porra! Há,há,há.... o que dizer da embriaguez do riso! O que pode ser mais
gostoso? Rir, rir de verdade! Demolir o mundo com uma risada. Não sobrar pedra
sobre pedra e então reconstruirmos este à nossa imagem e semelhança. Nos
vermos em pequenas coisas, e que estas coisas reflitam a nossa vontade; que tudo
tenha nossa impressão digital; pois é, ou você assume o seu mundo, meu caro, ou
o deixa a mercê dos picaretas da esperteza. Não há meio termo. Sempre temos
uma escolha, eu fiz a minha! Vivo na sombra, onde é o meu lugar, não existem
meios de me doutrinar, me cooptar, me convencer... então passo a ser o
abominável, o inimigo, o adversário, o diabo! Quanto mais adjetivos encontram
para me jogarem, mais feliz eu fico! Se existe alguma coisa que me provoca uma
alegria incontida é o ódio dos sóbrios para comigo; desde menino me diverti com
isso. Quando eu era garoto sofri preconceitos na escola, pela minha cor. Os
meninos brancos vinham zoar comigo, me chamavam de cara de sapo, essas
coisas; fui ficando puto! Eles andavam em bando, como tinha de ser. A valentia
apoiada no número é o apanágio do idiota; é o sentido de massa sendo trabalhado
para que desde cedo a força da individualidade seja exorcizada; mas comigo não,
violão! Chamei de canto os pequenos aprendizes de bestas e avisei: se não
largassem do meu saco iria quebrar os cornos burgueses deles. Eles então se
agigantaram e partiram para a briga, que era tudo o que eu queria... estavam em
quatro e apanharam todos. Bati mesmo, com raiva; detesto essa gentalha
perfumada que anda em bando para poder imaginar... supor, ser alguma coisa,
mesmo se tratando de meninos idiotas. Botei-os para dormir de tanta pancada,
empilhei-os envoltos em sangue, para espanto geral da garotada que assistia a
tudo incrédula. Peguei minhas coisas e sai tranqüilo pelo portão para nunca mais
voltar. A partir daquele dia eu já sabia o que queria ser quando crescesse: diferente
deles. Pois é meu caro branquelo, a vocação para ser do contra já nasce com a
gente. Cresci enojado com o que via, ninguém queria ser alguém; era o esforço de
um ‘alguém’ para ser um ‘ninguém’. Eram oferecidos estereótipos, que eram
consumidos avidamente! A garotada mergulhava sua nascente individualidade nos
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comportamentos oferecidos, assim dissolvendo-se na mão daqueles a quem este
tipo de redução interessava. É bem verdade que não podemos comparar com o
que acontece hoje em dia, ministrado pela economia de mercado. Hoje existe uma
verdadeira fábrica de comportamento, as ‘tribos’ pululam, gastando uma bela
grana para obterem o direito de fazerem publicidade gratuita de marcas,
conduzindo-as nos seus próprios corpos. Naqueles tempos os interesses eram
outros. Porém sempre houve e haverá interesses por trás dos comportamentos
exigidos pela sociedade sóbria. O pensamento encaixotado e comprometido de
hoje, carimbado com as marcas das grandes corporações são a ‘alma’ do
comportamento padrão idiota exigido, não é isso? O pensamento não tem mais
asas nem espada, não rasga mais o véu azul para ganhar o infinito, para uma vez
chegando lá, engoli-lo porque uma coisa maior que o infinito foi criada, e depois
criada uma outra que engolirá tudo para dar a luz a alguma coisa esplendorosa
nunca antes imaginada pelos mortais; todos os conceitos conhecidos morrerão aos
pés do novo, que não se chamará novo porque não existirá denominação para essa
apoteose. Só quem voa longe, muito longe, sabe que o pensamento não tem fim e
esta agonia do querer ir mais e mais só ameniza um pouco quando se vai com o
pensar aos lugares que não são lugares, às coisas que não são coisas, ao tudo que
é nada, ao encontro do inominável. Quando nos encontramos, enfim, onde tudo há
por criar, inclusive os conceitos pelos quais poderíamos explicar por onde
estivemos, pois não temos como traduzir em palavras. O vinho delicioso do pensar!
Ahhh, delícia colorida, luz da escuridão, escuridão na luz, quando o pensar
encontra-se no tesão cósmico do não-pensar; nas alturas das alturas e nas
profundidades das profundidades ao mesmo tempo! Então explode a bomba
atômica da mente! Estamos onde ninguém nunca esteve, e nem nunca estará!
Estamos a sós no nada! No orgasmo da criação, na arte que cria a nós mesmos... na
imensidão das imensidões... mas que digo eu? Falo de coisas que não tem como
serem ditas, pois que para elas não foram criadas palavras! Bom, o negócio então é
beber mais um pouco da alma da uva, hummm... que vinho inebriante. Vejo que
você me escuta atento, pois lhe pergunto respeitosamente: você consegue pensar?
Já ao menos tentou? Já conseguiu soltar-se das amarras sóbrias que fazem com
que seus pés e sua cabeça fiquem aprisionados ao cotidiano, tão mesquinhamente
repisado no ramerrão eterno dos dias? Você consegue voar? Consegue viajar no
tempo? Consegue visitar o futuro? Consegue usar sua inteligência para ler o
mundo que o cerca e sua imaginação para pular por cima dele e brincar com ele
como uma foca brinca com uma bola e assim até chagar a amá-lo? Responda-me
garoto!
- É o que lhe disse, - respondeu Tito - quanto mais você fala, mais confuso eu
fico. Nunca pensei nestas coisas. É tudo novidade para mim, uma fascinante
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novidade; mas nesta confusão na minha mente, tenho certeza de que talvez não
possa mais viver sem este mundo que você me apresenta...
- Calma lá! – interrompeu Epaminondas – acho que você não entendeu nada!
Este é o meu mundo, você terá de encontrar o seu. Estes são os meus demônios,
são os meus mares, minhas luas, meus peixes prateados, minhas orgias! É o meu
vinho que aqui lhe ofereço, é o meu fogo que aquece sua imaginação, é o meu
incenso que lhe inebria! Será que falei para as paredes até agora? Sou o anfitrião
aqui, esta sombra é minha, onde está a sua? Será que joguei conversa fora quando
disse que não tenho nenhuma propensão a mestre? Vocês sóbrios são foda!
Precisam sempre de alguém que o conduzam pela ‘espinhosa estrada da vida’,
nem que seja pelo nariz! Será que você não enxerga, isto aqui sou eu! Não faça
com que me arrependa de minha gentileza! – Tito percebeu que Epaminondas se
exaltava, e estava bastante embriagado para se tornar imprevisível; começou a ficar
com medo, principalmente porque o negrão levantou-se de seu trono e andava
com seu passo cambaleante de um lado para outro da sala.
- Acho que realmente nunca vou entender vocês! – prosseguiu Epaminondas –
você quis me conhecer, foi impertinente o suficiente para botar sua carreira em
risco e me procurar; eu fui gentil então e o recebi, mais que isto, fui buscá-lo em
casa, olha que mordomia! Recebi-lhe em meu mundo, apresentei uma ínfima parte
deste a você, coisa que faço raramente, e você quer levá-lo para casa! Quando
você visita alguém e gosta de sua casa, o que diz quando se despede? – adorei seu
apartamento, vou leva-lo comigo, se você não rapara... – É isso que você faz? O
que me deixa puto é ter falado para as paredes este tempo todo; não foi educado
de sua parte não me oferecer em troca um pouco da sua inteligência. Se o tivesse
feito, teria percebido que estamos falando de singularidade; que uma pessoa não
pode ser outra, que cada um deve encontrar seus próprios demônios, deve
incorporar os infortúnios e as delicias da responsabilidade de ser quem é. Será que
me expresso tão mal assim? Ou estarei tão embriagado que enrolo a língua a
ponto de não ser compreendido? Não lhe ofereci um mundo, apenas o convidei
para conhecer o meu. Ninguém pode oferecer mundos a ninguém! A não ser os
picaretas! Já não falamos disso? Ou você... você... caralho! – Epaminondas parou e
fitou Tito, este olhava para o chão desolado, então se sentou novamente. Serviu-se
de vinho na taça de crânio e prosseguiu, porém agora em tom paternal – Você não
tem um não é? Não tem um mundo só seu. Você é oco... é a forma mais acabada
de sóbrio; esses filhos da puta conseguiram! Falei-lhe o tempo todo em demônios,
sem você ter a mínima noção do que pode ser senti-los. Você é inteiramente um
deles! Um homem fabricado para não ter profundidade; é plano, horizontal e
coletivo... sua mente é condicionada para pagar impostos, consumir e ter alegrias
idiotas. Como não percebi isso? Por que eu, que sou bom em deduções não deduzi
isto? Que magia, maroto, você tem? Enganou-me direitinho, caralho! Diga-me por
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que quis tanto ter comigo? Logo você, um sóbrio da ‘gema’? O que viu em mim,
porra? Por que não me teme como todo mundo? Que parafuso esqueceram de
apertar aí?
- Não sei – Tito tinha agora lágrimas que escorriam pelos olhos que teimavam
em ficar cravados no chão, estava arrasado – você é diferente, é bom no que fez e
no que faz; é valente, foi ótimo policial, tem ótima dedução em crimes, fiquei
fascinado então pensei: - Puxa, se eu fosse assim! Que belo profissional eu seria!
Queria realmente um mestre, um professor da sabedoria policial. Queria reverter
todo o conhecimento que pudesse angariar com você, para a minha profissão.
Mas, tudo o que você me disse... esse negócio de embriagados e sóbrios, isso tudo
me confundiu... ao mesmo tempo que me dava conta de ser um sóbrio, me
apaixonava por esse seu mundo embriagado na sombra. Tudo aqui é delicioso,
nunca senti nada parecido, se pudesse não sairia mais daqui... do seu mundo. Você
diz coisas que despertam minha curiosidade, me mostrou uma ínfima parte do seu
mundo, mas foi o suficiente para que eu percebesse de que nunca poderia ter o
meu. Sinto um grande vazio. Nunca me senti assim, talvez porque nunca tivesse
olhado para outro lugar; imaginei que não existisse nada além do que temos para
fazer. Agora, bem, agora estou meio perdido.
- Há,há,há... você se aproximou de mim com intenções profissionais? Ora, que
tolinho! – debochou Epaminondas – Irmão, peça a Santos para lhe ensinar sua
experiência policial sob a parca luz; peça para Fidelis lhe ensinar como se ascende
na carreira, Fidelis e seu comando de fancaria! Da minha parte, não tenho nada a
lhe passar a não ser como agarrei nojo a tudo isso! Mas, esta não é minha
intenção, porra! Nunca foi! Já lhe disse que essa didática toda enche meu imenso
saco negro, que nasceu pra produzir e expelir e não para aturar. Sou inimigo
mortal dos conceitos; estes, na minha opinião são os ‘anjos sóbrios’; flanam com
suas asas azuis sempre no intuito amoroso de abraçar e então vestir com sua
mortalha azul a tudo que não tem nome, mas ‘precisa se expressar’. Os conceitos
são as carapuças mortais que voam rodeando como urubus ao inverso, não
querem as coisas mortas, pois são os arautos destas, querem as vivas, muito vivas,
que ainda não se deixaram capturar para serem dissecadas sob a luz sóbria dos
conceitos inventados. Sim, reconhecem o odor do recém nascido com velocidade
espantosa. Cada ramo de atividade manobra com seus próprios conceitos, então a
mente do pequeno se submete amiúde a estes e encontra nisso a própria razão de
viver. Ali são apresentadas à ‘felicidade’, ‘esperança’, ‘liberdade’ etc. e humildes,
estes pássaros sem asas aceitam a escravidão com resignação e alívio, pois quando
nasceram tudo já estava inventado, já havia os conceitos; beijam então as grades
que os aprisionam, na demonstração servil de seu comodismo existencial. Beijar a
mão do carrasco então vira profissão, e esta tem nome: obediência. Sem
obediência não existe sociedade e sem sociedade não existem ingênuos e
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picaretas. Os picaretas são os mais espertos na lida com conceitos; apossam-se
destes rapidamente e os usam como peças de dominó para conduzir os ingênuos a
outras prisões, talvez ‘mais confortáveis’. Você, meu caro, é só mais um ingênuo,
um sóbrio, que agora se deu conta disso, que fazer? Evocar seus demônios? Mas
você não os têm! Isso me deixa penalizado. Pois é meu caro, só os demônios
libertam. Quando evocados eles surgem da escuridão, lascivos, risonhos e
ruidosos... fortes e amedrontadores para tudo que está estabelecido, botam tudo
abaixo! Derrubam, quebram, destroem! Passam por cima, vão adiante! formam a
corrente poderosa deste rio que é a própria vida! Instintos! Alegria! Natureza!
Singularidade! Força! Nada pode ser igual ou parecido, são nossos, só nossos! São
os nossos vinhos mais preciosos, nossa melhor embriaguez! Viva irmão, viva os
demônios! A eles ofereço esta libação! – Epaminondas ergueu então a taça de
crânio, esta transbordava de vinho - Porque os fortes não conhecem o conceito de
‘força’, isso é uma piada! A força só pode surgir como produto do próprio ser, é
flor que nasce da própria existência! O resto são os conceitos-fantasmas para
enganar tolos! Meu coração negro agora transborda de alegria! – bate com força
no peito – sou Epaminondas, o homem da sombra! Sou o alegre, o exuberante, o
exultante, o homem-mundo, sou o tesudo, sou um homem de pau duro! Sou, sou,
e sou, na alegria inigualável de ser! Como você pôde ter a ingenuidade de imaginar
que eu poderia ser seu mestre na arte de ser? Ou você é ou não é! Você quer ser
Epaminondas? Mas de que jeito? Quer o mundo de Epaminondas? Mas de que
jeito? Não tenho culpa, meu irmão, se você foi criado por doutrinas broxas que lhe
ensinaram a não ser. Você é o fragmento de uma imensa alma coletiva; sozinho
não é nada. Quando confrontado com sua própria solidão sente esse imenso vazio
que está sentindo agora, não é de admirar, mas veja, se você tivesse algum pendor
para diabo, há muito já estaria se questionando sobre tudo. E se refugiaria
freqüentemente em sua solidão; esse é o momento em que sintonizamos a nós
mesmos e só aí podemos medir e sentir nossa força e nosso misticismo. Não
entenda mal, quando digo misticismo falo daquele surgido de nossa singularidade,
do teatro que montamos para representar a nós mesmos a partir de nossa mais
profunda raiz, os rituais são as flores nascidas dessa raiz. Fazemos isso para
expressar a alegria de nossa existência livre e tesuda! Mas vocês sóbrios não...
Espantam-me, embora eu me divirta em assisti-los, com seus rituais de
mortificações, negação do mundo e da vida, fico impressionado! Querem arrastar
suas vidas mortas para sempre! Entrarão finalmente no Céu Moral, e viverão pela
‘eternidade’ sem os impertinentes instintos, sem as pulsões da vida mais pura e
selvagem, sem desejos, sem nada, assumirão, enfim, em triunfo, seus papéis de
mortos, mas então para sua ‘felicidade’ estarão assim por toda a ‘eternidade’.
Poderão exercer lá toda a sua broxisse existencial, posto que finalmente esta estará
legitimada. E eu rio aqui na minha eternidade, que não é eternidade, que é este
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delicioso aqui e agora em que a fonte cristalina da vida jorra sem parar. Comecei a
descobrir esta delicia de existência ainda muito pequeno, quando me questionei
por que, justamente quando estava mais feliz eu era repreendido; diziam que eu
estava fazendo ‘arte’; veja aí que este rótulo tem a conotação de arte como coisa
ruim, mas enfim, os sóbrios estavam trabalhando na minha doutrinação; diziam
também que eu tinha ‘outro por dentro’ e finalmente que ‘cabeça vazia é a oficina
do diabo’, leia-se ‘cabeça vazia’ como uma definição para os pensamentos
autônomos, que os sóbrios suspeitavam não tirar proveito algum. Mas aí foi
demais! Juntei as peças - arte, outro por dentro, oficina do diabo e daí concluí: se
me repreendem justamente em meus momentos de alegria, se para ser igual a eles
tenho que abrir mão do melhor de mim, então esse ‘outro por dentro’ só pode ser
eu mesmo, em meus momentos mais lúdicos e que não interessam a eles, pois
destes não pode tirar proveito sua sociedade. Foi com algum espanto então que
percebi que me ameaçavam com a minha própria imagem refletida, embora
deformada, para poderem assustar-me. Nesse dia eu desvelei a face do diabo!
Percebi também porque a arte assusta tanto os sóbrios. Nesse dia eu sacudi todos
os farelos restantes do mundo desfeito e assumi meu papel de demônio! Assumi a
mim mesmo! São rupturas, meu amigo, precisamos romper com muitas coisas se
quisermos descobrir nosso próprio tamanho; e você, pergunto, quais preconceitos
já rompeu? Já se olhou no espelho sem máscaras? O que viu? Pois é, eu desde
cedo tive de ensinar-me as coisas de mim! Um autodidata de mim, na delicia da
autodescoberta alegre, zombeteira e demoníaca! Tive de remover com cuidado as
cascas das feridas impingidas pelos sóbrios; estes tutores fantasmagóricos colaram
na minha pele seus rótulos e conceitos para que eu não saísse nunca mais do
mesmo lugar, mas, romper as grades dessas prisões é a delicia das delicias! É
impossível prender o criador na jaula do criado, portanto, deixe-me lhe oferecer
estas mal compostas que me ocorrem agora:
De repente um estrondo, uma explosão!
Treme Céu e treme Chão
É pânico na multidão!
Mas ouça... aos poucos se acalma
E vai virando canção
Mas, não se assuste não
É só minha imaginação, num momento de criação
É só o que não era...
Assustando as coisas...
Que já são...
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Tito olhava para Epaminondas como que hipnotizado. As danças de ciganas
daquelas palavras embriagadas acalmaram a angústia do rapaz, que se sentia
totalmente oco. Tito sentia uma espécie de catarse e vergonha, não sabia ao certo
por que, porém sentia-se envergonhado por não poder oferecer alguma troca com
Epaminondas. Não era também de estranhar que o negrão se exaltasse algumas
vezes com ele, pois parecia realmente meio patético e fez colocações patéticas, era
um sóbrio, agora tinha certeza disso, e esta verdade crua o incomodava, não queria
sê-lo! Porém, por mais que olhasse para dentro de si não encontrava nada. Um
demônio quem sabe? Unzinho! Até mesmo meio inofensivo, qualquer coisa afinal,
mas não, nada! Sentia que era e não era; quem é Tito? Pensava. A sensação que
experimentava era de um bonifrate que de repente dá-se conta das cordas que
provocam seus movimentos e também de que se as cortasse cairia no chão feito
um amontoado inútil de ripas de madeira. Agora, a força da presença do velho
diabo quase o esmagava contra a parede da razão sóbria. Perdido, começava a
sentir um leve bafejar de desespero: quem é Tito? O que fazia ali? Por que estava
ali? Epaminondas acendeu serenamente um charuto, colocou seu chapéu na
cabeça e deu uma profunda baforada – Não bebe mais, irmão? Este vinho está
delicioso – Tito rejeitou com um sinal negativo qualquer, estava enjoado e
totalmente perdido, a bebida só complicaria mais as coisas. O negrão então
continuou: - Logo mais realizarei algumas práticas infernais, mas gostaria que você
não estivesse presente, desta vez não, você não está em condições, não encontro
mais aquela alegria instintiva em seus olhos. A tristeza e a melancolia não são bem
vindas aqui, porém, não vou ser cruel, pois a crueldade do diabo é puro
preconceito, he,he... se não tivessem lhe embaçado a visão com seus preconceitos,
talvez você tirasse de letra essa depressão. Mas não é o caso, como eu disse, você
é um sóbrio da gema, é um produto finalizado para ser função, nem demônios
têm, caralho! É asséptico, tem alma, é branco e meio transparente por dentro. Eu
não! Sou feito de sangue e carne! Sou carne! Amo o cheiro da carne! Do sangue!
Cuspo, ejaculo, defeco, mijo, peido, tenho excreções corporais, transpiro pra
caralho, irmão! Tenho bafo de trago, tenho cheiro de humano, sou Natureza, tenho
fome, sede – e como! – gosto da embriaguez dos sentidos; adoro sexo, adoro o
cheiro das carnes generosas e transpirantes de perfumes excitados, amo a vida,
amo estar vivo, amo o aqui e o agora. Sou o causador, o mentor, o demolidor, o
pensador de mim mesmo! Também o criador de mundos, o engolidor de
demônios brincalhões, o festeiro, o homem que celebra; amo as orgias, amo os
sátiros e as ninfas! Amo o vinho, sangue da existência embriagada! Tenho pêlos,
tenho dentes caninos, tenho orgulho de ser irmão dos animais! Sou um animal e
grito isso aos quatro ventos! Sou um animal caçador, destruidor e criador ao
mesmo tempo. Crio rituais para meu deleite, me divirto muito! Crio meu
misticismo. Adoro rir, rio muito! Crio eventos para meu prazer, sou um hedonista
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incorrigível! Delicio-me com meus pensamentos, vou a lugares inimagináveis, crio
cenários incomparáveis, sou um artista! Crio tudo, não há nada que eu queira que
não possa achar em mim mesmo! E se você, sóbrio, quer conhecer minha alma eu
lhe mostro – ato continuo, levantou-se, não sem alguma dificuldade, agarrou sua
imensa pica e sacudiu na frente de um assustado Tito – esta é a minha alma! Eu
pego nela, posso tocar nela, está aqui! Cadê a sua, branquelo? Mostre-me a sua,
pegue nela, toque nela, vamos! Cadê sua alma sóbria? Está ai dentro? Dentro do
seu corpo, é isso? Onde? Quem sabe escondida atrás de seu esqueleto! Mas não há
nada por dentro de seu corpo! Queria que se olhasse no espelho agora, você é um
farrapo humano, assustado, seus olhos não dizem nada! Estão mortos! Você está
com medo, estático, sem atitude, abatido, é isso uma alma? Ser oco é ter uma
alma? Vocês sóbrios são patéticos. Veja, o animal em você está morto, de onde
você vai tirar sua força? Ou você não precisa ser forte para nada? Ou mesmo, quem
sabe, procurará encontrá-la nas ‘sábias palavras’ de algum sóbrio picareta. Ah, sim,
me esqueci, você é um civilizado e os civilizados não precisam mais do animal; têm
até vergonha dele! Lembro-me muito bem do quanto não precisam! Olho para
você e meus instintos assassinos afloram, porque sinto o cheiro do medo e isso me
excita – Tito olhava inerme para o negrão, sentia agora um medo terrível, achou
melhor apenas calar e esperar passar a fúria verborrágica de Epaminondas, porém,
já imaginava alguma forma de defender-se de uma possível investida – olhe para
você: patético! Se eu o matasse ninguém ficaria sabendo, você está agora na boca
do demônio, decidi: depende da minha vontade se você vive ou não; é assim que
se sentiu quando atirou no vagabundo? Mas eu não sou você... não sou piedoso,
não tenho remorsos e detesto fraqueza. Quanto mais débil lhe percebo mais
vontade tenho de matá-lo, e se não parar de decair vou fazê-lo, pode acreditar, eu
não minto. Vamos fazer uma brincadeira, pode chamar de brincadeirinha do diabo,
dependerá de você morrer ou não, se demonstrar que pode ser mais forte do que
esse sujeito com cara de idiota no qual se transformou, irá recuperar meu respeito
e estará salvo, do contrário, já era, irmão! – Tito não sabia o que fazer,
Epaminondas havia lhe quebrado o espírito e a agora queria perseguir e pisar no
que sobrou. Precisava de um plano, temia realmente por sua vida, sabia que aquele
homem era totalmente imprevisível e precisava reagir, demonstrar tranqüilidade e
equilíbrio, então pela primeira vez lembrou-se de Nina e no que ela havia dito
sobre brincar com fogo. Olhou para o chão e avistou a taça de crânio que havia
jogado contra a parede, tomou fôlego, levantou-se, apanhou-a, foi à mesa e a
encheu, tudo isso sob o olhar curioso do velho diabo. Tremia de medo, mas
disfarçava relativamente bem, embora a Epaminondas não escapasse nada.
Retornou ao sofá e num frêmito de coragem ergueu a taça para o negrão – Um
brinde, amigo, reconheço meus pecados, já estou melhor! – disse, fingindo
segurança.
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- Começou bem e cagou no final – disse Epaminondas, em tom de deboche –
seu esforço é louvável, porém aqui não se fala em ‘pecado’, esta palavra
desagradável é evitada em meus domínios. Esta palavra fede, e não quero outros
odores por aqui além dos oriundos dos incensos; então seja gentil com seu
anfitrião e evite exalar o mau hálito de certos conceitos. No mais está bom, vá lá!
Até sua cor está voltando. Agora há pouco você estava da cor da sua alma,
há,há,há... – o rapaz bebeu avidamente no crânio e limpou o canto da boca com as
costas da mão, então olhou para seu anfitrião com algum desânimo.
- Diga-me, eu preciso saber, quem afinal sou eu?
-Você não é você, você ‘é’ todos. Esse é o truque mais moderno para acabar
com a individualidade de alguém. Há bem pouco tempo eles eram ‘massa’, uma
besta sem cabeça que sempre assustou os picaretas. Mesmo as melhores
pinceladas de civilização não são suficientes para deter esse monstro quando está
em seu elemento; muitos conceitos e fantasmas foram criados para manter essa
besta dormindo, mas não é fácil. Quando em seu elemento natural é violenta,
assassina e acéfala, vai para o lado que bater o vento destruindo tudo por onde
passa; é realmente uma arte conservá-la desmembrada. Os antigos romanos lhe
davam sangue, seu alimento natural, para mantê-la dócil e subserviente, mas agora
na pós-modernidade está apenas caramelada com o tênue verniz da civilidade,
sem se alimentar regularmente. É um vulcão que dorme. Os picaretas sabem que
precisam fazer muita mímica para distraí-la, dar-lhe divertimentos, de preferência
os mais estúpidos e idiotas, pois a massa detesta qualquer indício de inteligência.
Não abrem mão também, os picaretas, do ilusionismo político, artimanha esta que
os mantém no topo para melhor chupar-lhes o sangue. Quando fora de seu
elemento natural é de se ver com que dificuldade suas unidades, ou fragmentos
isolados do monstro, - eu os chamo de ‘ogros’ - se comportam ‘civilizadamente’
pois não têm autonomia, individualidade, são ‘massa’ nada mais, precisam do
censo comum, precisam estar juntos para formarem a besta da qual fazem parte,
só assim encontrando a felicidade ruidosa de seu estado natural. Remova um
pouco desse verniz e sinta o cheiro do que se encontra por baixo. Não é mole
irmão! Mas a estes, todos toleram porque são gregários, enquanto não puderem
formar seu grande e acéfalo corpo, tudo estará a salvo, pensam os picaretas. Mais
que isto, eles até praticam suas pantomimas e suas mentiras só para ela, sempre
com bons dividendos, pois sabem que a massa é crédula por natureza. Para
adocicá-la, atualmente guindaram-na ao status de consumidores, mesmo que aí
haja a predominância burguesa, é um nome mais pomposo, mas a merda é a
mesma. Abrindo sua imensa bocarra para abocanhar tecnologia e os estereótipos
que acompanham essa porra toda, se satisfazem distraindo-se com novos
brinquedinhos e vestindo comportamentos planejados se transformam em massa
mansa, verdadeiros exércitos de autômatos. Porém, há sempre os descontentes, e
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aí pode estar o perigo, quem consome muito menos, ou pior, não consome. Mas a
estes lhes costuraram as bocas, embora reclamem de seus tiros mortais. Raciocine
e me diga: como se poderia exercer domínio se não houvesse pensamento
planificado? Quanto mais pessoas pensarem com a mesma cabeça, mais fácil o
controle você não acha? Para isso as mentes têm de estarem ocas, só assim são
condicionadas para o pensamento sóbrio. Pois é, este é o seu caso, irmão. O
imenso vazio que sente agora nada mais é do que este funesto resultado: de dar
de cara consigo mesmo e não encontrar ninguém; você não foi planejado para esse
encontro. Você é um produto pensado para ser ‘livre’! He,he... livre para obedecer
as ordens surdas e sorrateiramente coloridas que fazem você caminhar na direção
que lhe é indicada. Aí é que está, se você fosse mais animal e não ficasse lavando
seus odores corpóreos com o sabonete da alma, hoje não estaria com essa cara de
bunda na minha frente. Porra, às vezes me surpreendo comigo, nunca imaginei que
estaria aqui, trocando fralda de sóbrio. Pelo menos percebo que o vinho melhorou
seu aspecto; é bom, porque você não sabe do que sou capaz quando sinto cheiro
de fraqueza, já lhe disse que não sou piedoso; isso você tem de procurar entre os
seus pares lá na parca luz, não aqui na escuridão do meu reino. Aqui não é lugar
para fracos! Se você quer ser forte e poderoso aprenda uma coisa definitivamente:
não se afia a espada no mel. Quer colo? vá para os sóbrios! Este é o reino da
embriaguez e da loucura! Da força dos sentidos, da desmesura! Dos paus duros e
bocetas molhadas! Dos cantos e danças de alegria! Das libações com vinho de
sangue! E o que você me traz? Que oferenda me traz? Traz a sua debilidade, sua
anemia existencial. É com esse presente que você pensa agradar seu anfitrião? No
mínimo você me deve um pouco de vivacidade! É certo que não tem nada para
trocar comigo, paciência... não posso culpá-lo, não há nada em seu mundo que eu
não conheça, este escambo é impossível. Porém, quando não se tem nada a dizer,
oferecer um pouco de alegria não é de todo mau. Você por acaso já reparou que
veio até aqui sem nada e quis levar tudo? Não tendo um mundo para oferecer,
quis adotar o meu, levá-lo nas costas tal qual uma lesma carrega seu caramujo!
Com isso demonstrou toda a sua patetice sóbria. Você ainda tem a cara de pau de
me perguntar quem é você, me tirando para psicólogo ou coisa que o valha!
Enquanto não tirar algum proveito você não desiste, é isso? Bem, como estou de
bom humor vou lhe dizer: você bem poderia ser uma pulguinha azul que pulou
para o escuro, picou, encheu o bucho de sangue e descobriu que isso era bom.
Quando voltou para a luz percebeu que o alimento sanguinolento ia terminando,
então voltou e pulou para o escuro novamente, picou, viu que isso era bom e
quando saia para a luz percebeu que o alimento logo estaria consumido, então
pensou: - Caralho! Não posso ficar neste vai e vem eternamente. Tive uma idéia! –
retornou então e quis levar o escuro consigo. Descobriu que se tratava de uma
tarefa impossível, e entrou em depressão porque não tinha seu próprio escuro.
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Moral da história: quem não tem tamanho para fazer sombra, que vá picar o Sol! E
tenho dito! Vejo que você esboça um pequeno sorriso; ótimo, está salvando a sua
vida, mas precisa melhorar mais, embora o cheiro de medo já tenha desaparecido.
Ah... agora é só este cheiro maravilhoso de incenso e este sangue que a videira nos
oferece em holocausto! Hum... que vinho bom. Sinto que serpentes douradas e
indolentes enroscam-se em meus neurônios, meu fogo interno ilumina esta orgia
que se ensaia em minha mente – Epaminondas recostou-se fechando lentamente
os olhos – sim, já vejo dragões em seu vôo calmo trazendo a coroa de hera para
seu Rei. – Tito que a tudo escutara com silencio respeitoso, mantinha uma postura
tranqüila, mas realmente seu medo quase havia descambado para o pânico, sentiu
que sua vida correu sério risco. Agora apenas acompanhava com curiosidade o
negrão, porém, continuava com o incômodo vazio e queria em momento oportuno
retomar o assunto.
- Haaa... Estes portais de altura infinita, estes capitéis de sonho – prosseguiu o
embriagado – estes demônios dançarinos em êxtase ao redor da minha fogueira.
Que delicia, meu irmão, que delicia... como é bom ser o centro, tudo gira em minha
órbita, mulheres aladas agora me trazem oferendas: trazem nas mãos alvas, águas
incrivelmente cristalinas retiradas de meu poço. Tudo brilha sob a luz serena destas
luas, reflexo amoroso do meu sol, o sol risonho que nasce das entranhas da minha
sombra – o rapaz não pôde deixar de sentir inveja do que via; sim, Epaminondas
mergulhava calmamente em seu mundo íntimo, e por já ter estado lá a convite,
Tito sabia da sensação etérea que aquilo tudo provocava, mas não podia
demonstrar fraqueza, pois estava sentado no fio da navalha criada pelo velho
diabo; tinha que continuar sereno, sem demonstrar medo. Neste momento
observou que a porta abriu e o ajudante forte e sério do negrão entrou postando-
se atarás do trono, cruzando os braços e sem mover um músculo de sua face de
pedra, cravou seu olhar de aço em Tito. Estava claro que chegara ali para velar pela
‘viagem’ que se iniciava na mente de Epaminondas. Este ainda abriu os olhos com
alguma dificuldade e se dirigiu ao rapaz: - Você já não deveria estar aqui, paciência.
Compromissos inadiáveis no meu interior aguardam pela minha chegada. - sua voz
agora era extremamente arrastada, e os seus olhos de sapo estavam em uma
vermelhidão assustadora; em seguida se deixou cair em seu profundo abismo com
um sorriso de gozo nos imensos lábios. Tito ficou extremamente excitado,
precisava ir novamente para aquele mundo fantástico. Sentia-se como uma criança
na qual lhe bateram a porta de uma festa na cara. Olhou então para o recipiente no
qual apagara o charuto. Observou atento o soldado e anjo protetor do anfitrião e
apontou o dedo para o recipiente, olhando em seus olhos à procura de um salvo-
conduto para o que intentava fazer, porém, o homem mantinha-se imóvel. O rapaz
então, não sem receio, levantou-se e foi ao recipiente, apanhou o enorme charuto
e acendeu-o na chama de uma vela; em seguida, encaminhou-se à garrafa e serviu
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sua taça de crânio, sentou-se e observou o valete, que se mantinha impassível.
Epaminondas jazia de maneira assustadora, parecia um defunto com os olhos
semi-serrados expondo sua conjuntiva vermelha; as pupilas pareciam
definitivamente estarem fitando para o interior escuro do homem. Tito fumava e
bebia, à procura da liga fantástica entre aqueles dois elementos. As luzes das velas
brincavam nas carrancas demoníacas das paredes; observou então com mais calma
aquelas expressões alegres e ruidosas que agora já lhe eram familiares. Eram
máscaras pagãs maravilhosas, com seus cornos fantásticos, alguns enrolados como
os de bode; lembrou-se de que alguém alguma vez lhe dissera que os cornos, na
antiguidade eram sinônimos de força e poder, e era realmente a sensação que lhe
passava aquelas estranhas máscaras. Começou a sentir sua mente aos poucos se
desmembrar em deliciosa algazarra, mirou então na bocarra de um dos demônios
e mergulhou ali, naquela escuridão, sua mente excitada.
***
Tito caminhava sob um intenso negrume, em direção a uma luz que, tal qual o Sol,
parecia nascer atrás do que poderia ser a silhueta de enormes montes. O que lhe
impressionava era aquela escuridão intensa, temia desabar em algum abismo, pois
não tinha condições de enxergar absolutamente nada que não fosse aquela
distante luz. Pela primeira vez decidiu que não sentiria medo, queria muito tudo
aquilo e seguiria adiante acontecesse o que acontecesse, porém, desta vez estava
só, sem Epaminondas, seu anfitrião. Aos poucos percebeu vozes que lhe
acompanhavam pelo escuro, risadas e deboches que se somavam à sua caminhada
e cada vez estavam mais perto. Sentiu um frio na espinha, mas prosseguiu
impassível; aos poucos reparou no alarido de uma multidão de seres em completa
algazarra, já estava quase ensurdecedor tudo aquilo quando a luz inofensiva que
lhe servia de guia, explodiu num estrondo fenomenal! Uma gigantesca bola de
fogo subiu aos céus das trevas iluminando tudo ao seu redor. Pôde perceber então
uma multidão de seres bizarros e disformes, verdadeiramente apavorantes, que
copulavam ruidosamente, um deles ao passar por Tito comentou, como que
querendo lhe orientar: - Este aqui é o mar de trevas, quando o diabo mergulha
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para seu banho diário, ilumina estas profundezas, é normal; mas você não parece
um demônio, está assustado! Se continuar assim vai se dar mal! – o rapaz então
apenas prosseguiu, mas não foi sem apreensão que percebeu todo o horizonte
começando a ficar delineado, e onde sua vista podia alcançar, via uma claridade
amarelada que aos poucos ia tomando uma tonalidade vermelha; para seu horror,
percebeu tratar-se de chamas que aumentavam assustadoramente de altura até
clarear novamente tudo. O calor se tornou insuportável e as chamas atingiram
altura inimaginável, quase cegando um apavorado Tito. O diabrete insolente
aproximou-se de novo – E esse que aí vem, deixe que lhe apresente, é o mar de
fogo! - sim, não havia dúvidas, as terríveis e gigantescas chamas começavam a
descer lentamente sobre a multidão exultante de seres sinistros, como uma gigante
onda marítima que quebra na praia. Apavorado Tito corria para qualquer lugar,
como se fosse realmente possível encontrar algum abrigo. Seus pés nus agora
queimavam naquela areia escaldante em que se transformara o piso; tudo isso sob
os olhares, risos e deboches daqueles seres, e o rapaz em pânico, clamou por um
segundo, um átimo de segundo, um buraco de tempo em que pudesse mergulhar
para escapar daquele fogo que desabava das alturas, mas foi em vão, a massa
compacta de chamas inundou tudo. Tito deu um grito lancinante do mais profundo
pavor! Sentiu o impacto tenebroso! Estava agora sendo devorado pelas chamas e
se debatia ardendo em dor infinita em meio ao amarelo intenso, sem chances de
mais nada, só a angustia gritante da morte na dor inclemente! Era o que estava
acontecendo, sua mente se retorceu na dor, pôde ainda ver, em meio ao
holocausto, algumas partes do que antes tinha revestido com carne em seu corpo,
agora podia divisar vagamente, entre labaredas, seu esqueleto sendo calcinado,
que se debatia automaticamente, mesmo sem os nervos e músculos, no desespero
de uma morte nas chamas. De repente tudo cessou. Só escuridão. Morte. De
chofre, foi cuspido ao infinito. Não contava com aquilo, pensou que estivesse
morto, deliciosamente morto. A morte fora um alivio para seu martírio, no entanto,
a sensação balsâmica durou pouco; não morrera, agora percebia espantado que
sua saga continuava; caia no nada, numa sensação deliciosa de desabar no que não
existe, sentiu que estava em um carrossel estonteante de acontecimentos bizarros.
Foi quando se deu conta de que dois demônios se materializaram, e voando com
suas imensas asas de morcego lhe pegaram, cada um em um braço e começaram a
conduzi-lo, tal qual anjos das trevas; neste momento deu-se conta com pavor,
olhando para seus braços, de que havia se transformado em um esqueleto
queimado; era o que lhe sobrou das chamas. Não agüentando mais, quis acabar
com aquilo: - Qnde está Epaminondas? – gritou alucinado – Onde está? Não
agüento mais, foi um erro segui-lo em seu mundo! Admito! Não farei mais! Onde
está Epaminondas? – um dos diabos alados olhou calmamente para o rapaz e
respondeu: - Está em todos os lugares, ou você já esqueceu onde está? – Tito
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percebeu o olhar do velho diabo no olhar daquele demônio, realmente, tudo ali
tinha as ‘impressões digitais’ de Epaminondas. Os demônios então pararam,
batendo suas imensas asas, à frente de um espelho gigantesco com uma moldura
vermelha estilo rococó. Tito ficou então frente a frente com o que sobrou de seu
corpo e soltou um terrível grito de pavor! Era um esqueleto preto, totalmente
calcinado pelas chamas, mas ainda mantinha seus olhos mesmo que queimados.
Veja – disse um dos demônios – você nem deveria estar falando, não tem
terminações nervosas, carnes, músculos, cérebro, não tem nada além de ossos
queimados; você só o faz por licença poética do criador! Então não reclame tanto;
não pergunte onde está Epaminondas, ele está em todos os lugares, ele é tudo que
acontece. Entre de boa nesta dança, amigo, pois agora não tem mais volta! – dito
isto, os diabos seguiram em seu vôo levando o horrendo esqueleto. Tito entrou e
saiu de galerias bizarras, de tamanhos que julgou infinitos, nada do que conhecera
até então podia emprestar alguma similitude para a avaliação consciente daqueles
lugares, voava através de um mundo novo com formas novas, sua mente foi
ficando cada vez mais retorcida por tudo aquilo, ficou sem nenhuma noção das
coisas, a ponto de esquecer as palavras. Sem saber o que dizer e o que pensar,
virou algo amorfo, carregado por demônios com imensas asas de morcego,
demônios da escuridão. Entrou em breus extremos e saiu destes para imensidões
impensáveis, apenas se deixava levar, morto, diante de tanta vida que explodia em
erupções de infinitas cores. Mares transparentes eram acariciados por calmas luzes
prateadas onde uma infinidade de seres submersa copulava alegremente, peixes
imensos saudavam esta orgia aquática com saltos alegres em que se retorciam nos
ares antes de caírem novamente naquelas águas cristalinas. Alguns destes tinham
asas e acompanhavam por algum tempo os demônios e o esqueleto, formando
uma alegre comitiva prateada. No topo de montanhas, imensas fogueiras
clareavam tudo ao redor delas e deixavam às claras bacanais infernais embalados
por muita musica advinda de flautas ruidosas; seres dos mais diversos exerciam
suas incontidas alegrias instintivas. Tudo isto passava diante dos olhos abertos,
porém, de janelas fechadas do esqueleto. Finalmente se aproximaram de uma
fogueira, a maior de todas, tão imensa que podia iluminar possivelmente num raio
de centenas de quilômetros. Os demônios então soltaram o esqueleto,
despencando este de uma altura espetacular, vindo a espatifar-se contra o solo,
voaram ossos para todos os lados atingindo distancias imensas. No centro do
descomunal fogaréu, um homem de complexão gigantesca que parecia ser feito de
larva incandescente, gargalhava sentado; suas gargalhadas faziam estremecer tudo
ao redor; ele então se curvou para melhor divisar aquele ínfimo punhado de ossos
espatifados. Tinha chifres gigantescos e presas assustadoramente proeminentes,
eram as feições de Epaminondas num rosto exótico e extremamente belo. Só a
caveira do esqueleto sobrou na frente do diabo; o rapaz então aos poucos foi
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retomando a consciência e enxergou pasmado o gigantismo daquele ser, entrando
em seguida em pânico ao perceber que sua cabeça estava caída no solo, e não
passava de uma reles caveira. O gigante fez um sinal qualquer e uma estranha e
assustadora figura com rabo de dragão aproximou-se trazendo nas mãos o que
parecia ser uma imensa lança, em seguida pegou a caveira cravou-a na ponta
afiada da lança trespassando-lhe o crânio e a outra ponta cravou nas areias
escaldantes, afastando-se em seguida. O rapaz, ou o que sobrou dele, sentia-se
meio morto, meio vivo, e os farelos de memória que pode ainda ajuntar formaram
o quadro do arrependimento. Era agora apenas um crânio estaqueado no chão. Já
não podia falar, era só um pedaço de osso, só restava esperar a hora fatal. Quem
era ele? O que fazia ali? Como fora parar naquele lugar? Uma coisa não deixava
duvidas, estava na frente do diabo! E este se curvava em sua direção, queria falar-
lhe. E falou: - Você é um grande cabeça dura, não? Dei-lhe uma amostra do meu
lar, mas você, impertinente, quis mais. – a caveira não sabia do que o diabo estava
falando, e este prosseguiu – Agora veja! É o que dá vir aqui sem ser convidado,
entrar pela porta dos fundos. Isto aqui não é qualquer brincadeira! Quando lhe
trouxe, sabia até onde podia levá-lo sem que se machucasse – a caveira não sabia
do que ele estava falando – agora me diga, como se sente sem seu corpo? – a
caveira não sabia do que ele estava falando – veja que falta faz a carne! Digo-lhe,
na minha opinião não são quatro, mas cinco, os elementos da Natureza; a saber:
Fogo, Água, Terra, Ar e... Carne! Por que esqueceram da Carne? Por que odeiam
tanto a Carne? Olhe para você! O que restou? Digo-lhe o que restou: restou a
mortalha de sua ‘eternidade’; sim, eis o que é seu e seguirá pelos longos tempos
vindouros, esse seu crânio patético que jaz empalado na minha frente. Mas quero
dar-lhe as minhas boas vindas, pois tenho a intenção de ser bom anfitrião. – o
diabo fez um sinal, e uma mulher de longos cabelos negros, linda e estonteante em
sua silhueta de contornos voluptuosos, saiu do meio daqueles seres e nua,
começou a dançar danças sensuais à frente da caveira estaqueada. Retirou o crânio
da estaca e o segurando com uma das mãos, a acariciava com a outra; caricias
sensuais que iam aumentando assim como o ritmo frenético daquela dança. A
mulher então se deitou naquelas areias brancas que dançavam ao crepitar da
imensa fogueira, abriu suas pernas e enfiou a caveira entre elas, começou a
esfregar sua boceta no macabro artefato que, indefeso, transformara-se em objeto
de fetiche e gozo na lascívia da dançarina. Agora a mulher parecia um ‘frango
assado’, esfregando o crânio em sua xoxota extremamente molhada, a excitação
fazia com que soltasse ganidos agudos e revirasse os olhos se contorcendo no
chão. Uma multidão de seres bizarros acompanhava em volta copulando e se
masturbando ruidosamente; urros, gritos e gargalhadas acompanhavam uma trilha
sonora composta por alegres flautistas que dançavam e pulavam ao redor da cena.
O demônio acompanhava tudo sentado em seu trono de fogo e também
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caprichava numa punheta dos infernos! Finalmente a mulher atingiu o êxtase,
emitindo gritos alucinados e realizando movimentos frenéticos com o objeto
morto, parecia mesmo que queria agora enfiá-lo inteiro em sua boceta empapada.
Enquanto gozava, a dançarina era atingida por centenas de jorros de prazer,
ejaculados em oferenda, por assistentes ensandecidos na mais alegre volúpia!
Mulheres rolavam pelo chão, esfregando-se e produzindo uma sinfonia de gritos e
gemidos. De repente, a garota levantou-se, atirou a caveira para longe e saiu
correndo, no que foi acompanhada por todos os participantes da orgia numa
interrupção abrupta da satisfação, abrindo uma imensa clareira como se já
soubessem que algo estava para acontecer, algo habitual e conseqüente, resultante
daquela viva festa. Ato contínuo, o gigante incandescente levantou-se com seu
descomunal pênis na mão punheteira e com gestos cada vez mais rápidos e
determinados atingiu um gozo infernal! Urrou como um leão lascivo, expelindo
extensos jorros de fogo que voavam para longe e clareavam como relâmpagos o
horizonte de trevas onde eles caiam como mísseis; mas mísseis de alegria, pois era
possível escutar ao longe a algazarra e festa das multidões de demônios que eram
agraciadas com seu sêmen incandescente e criador. A caveira por sua vez, atirada a
esmo, a tudo observava sem saber nada, escutava, mas não ouvia, enxergava, mas
não via, apenas presenciava aquelas orgias e folguedos, quieta em algum lugar, de
olhos abertos, queimada, lambuzada e... morta. A gigantesca entidade de fogo
então se agachou e olhando zombeteira para o ínfimo objeto de osso inerte no
chão, deu uma grande gargalhada e disse: - Vai, meu filho, vai... volte para sua
prisão ou aprenda a ser diabo! Encarna! Encarna! Encarna! filho da puta!Leva o mel
dessa boceta consigo, o mel da vida! Encarna! Caveira de merda! Caveira inútil!
Ossos mortos! Veste a vida! – deu então um pequeno peteleco no crânio, e este
voou como um grão de areia atirado ao infinito.
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A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 07 ARMADILHAS QUE JÁ NÃO FUNCIONAM
Tito acordou de supetão, dando um grito. Com olhos pregados no teto, começou a
tatear-se e em seguida removeu a coberta e conferiu aliviado que seu corpo estava
intacto; apalpou então a barriga, os braços, pernas, o rosto e soltou uma
gargalhada de alegria. – Minha carne! Minha carne! Sentou-se na cama e conferiu
suas mãos e braços. Tudo intacto. Levantou-se e olhou-se no espelho, seu rosto
pálido e descomposto juntamente com o cabelo em desalinho criavam a imagem
de uma figura fantasmagórica, -Foda-se! – exclamou - estou vivo, e muito vivo!
Porém, foi acometido de uma repentina e profunda náusea, não resistiu e correu
ao vaso sanitário, vomitando ruidosamente o vinho ingerido na madrugada. Tirou
sua roupa com alguma dificuldade e cambaleou até o chuveiro, o abrindo e
atirando-se ao chão sob a água morna daquela ducha, vencido por reminiscências
e torpores estranhos. Ficou um tempo ali estatelado e imóvel, procurando montar
o quebra-cabeça de sua aventura na mente do velho diabo; por que Epaminondas
não o liquidou de uma vez? Sentia-se agradecido por nada pior lhe ter acontecido;
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aprofundando um pouco mais seu raciocínio chegou à conclusão de que fora
realmente irresponsável ao penetrar no ‘lar’ do negrão sem seu consentimento;
nunca vira nada tão incrível e assustador. Bateu então em sua cabeça, dando-lhe
pequenos socos: - Você está aí, não é? caveira morta do caralho! Vamos estar
juntos ainda por muito tempo, espero, oh minha caveira de estimação! Espero
preenchê-la com os melhores vinhos do meu pensamento, oh, minha morta de
estimação! Tão dura e obediente! Inerte e dócil! Apenas esgarçarei meus lábios
para descortinar seu sorriso sardônico; a vida em ebulição da carne brincalhona
abre, então, as janelas e deixa à mostra sua irmã morta, no alegre abraço de vida e
morte, sol e sombra, de que somos feitos. Sim, agora percebo. Meu esqueleto!
Parte morta da minha vida, defunto silencioso, solícito, que a carne, esta eterna
criança impertinente, carrega feliz para a cumplicidade compulsória de sua lúdica
exuberância! Meu esqueleto! Defunto refém da vida! Companheiro de jornada!
Sim, lhe levarei ainda por muitos lugares, companheiro morto que sustenta a vida!
Neste eterno abraço de osso e carne, donde nascem os pensamentos ardentes;
sustentáculo de alegrias e de dores! – Tito começou a sentir uma imensa sensação
de felicidade, uma volúpia existencial que nunca antes sentira, e chorou. Chorou de
felicidade, deitado sob a ducha morna. Suas lágrimas se confundiam com a água, e
ele então disse: - Isto, elemento água, junte-se a mim, não tenha medo, sou seu
irmão, elemento carne! Somos Natureza, irmãzinha, Natureza! E sabe que mais, eu
acho que amo o diabo! Eu não tinha nada, e agora... bem, acho que agora tenho
esta paixão... paixão de estar vivo! – Tito então pensou nesta questão: sempre
cuidara para se sair bem profissionalmente, também em suas inter-relações e
procurara ser ‘feliz’. – Caralho! – pensou. - Eu não vivo, eu represento um scritp! E
não fui eu quem o escreveu! Como poderia? Cheguei apenas a vinte e poucos anos
por aqui! Realmente o Homem tem razão, se não assumirmos o protagonismo de
nossa vida apenas representaremos o papel que nos apresentam. É muito pouco!
Quero mais! – escutou então o despertador em seu quarto avisando-o que sua vida
diária estava para recomeçar. Ao contrário do que fazia costumeiramente, deixou o
relógio estrebuchar, e se dedicou a uma lasciva masturbação. Uma celebração à
vida, bem ao jeito daqueles demônios alegres e impertinentes com quem convivera
ultimamente. Uma festa de carne, ossos, nervos, músculos e cérebro.
***
85

- E aí meu anjo, como foi sua noite? – Tito mal havia posto os pés na delegacia e
Nina, curiosa, fez o cerco puxando-o para um canto no corredor.
- Se eu lhe contasse você não acreditaria, portanto, esqueça. Diga-me, como foi
a sua?
- Bem, pensei em você por um bom tempo. Estou preocupada. Quero lhe dizer
que acredito em tudo que me disse, mas me preocupo, você tem se olhado no
espelho? Está mais magro e com umas olheiras que lhe dão um ar sinistro, parece
um vampiro. Devo começar a me preocupar quando você aproxima sua boca do
meu inocente pescoço? Ou você vai poupar sua amada de seus caninos assassinos?
– Tito observava Nina com um ar de sarcasmo. E esta reparou em algo que lhe
pareceu incômodo; acostumara-se com o olhar escorregadio do rapaz, o que lhe
instigava a brincar com algumas provocações, no entanto, Tito pousava agora na
garota seus olhos negros com vivacidade e firmeza, era um olhar penetrante, quase
duro. Parecia que queria trespassar aquilo que ela lhe apresentava como máscara
diária. Nina inquietou-se um pouco, algo havia mudado na fisionomia neutra de
Tito. Realmente, esta conclusão corroborava com as histórias do rapaz; dificilmente
estas mudanças poderiam se realizar durante repousantes noites de sono. Algo
estava acontecendo, algo na calada da noite; um mistério sombrio se apresentava à
garota. Gostava do Tito tímido e sério, e não poderia prever as conseqüências de
uma mudança tão rápida como esta que se descortinava à sua frente. Nina achou
melhor não alimentar muita conversa naquele momento, precisava pensar mais
sobre isto antes de dizer qualquer coisa que desagradasse o colega. – Bem, –
prosseguiu - por aqui as coisas não andam tão emocionantes quanto suas
aventuras, aliás, quero saber tudo, tudinho, sobre suas andanças pelo inferno. - Tito
deu um sorriso ruidoso – Claro, querida, logo beberemos uma cerveja e lhe
contarei tudo. Agora me dê licença, o Fidelis me ligou quando eu estava a caminho
da delegacia; o home quer falar comigo, depois conversaremos. – a garota então
deu um rápido beijo na face do novato, sorriu e foi tratar de seus afazeres. Tito
dirigiu-se à sala do delegado. Ao chegar em frente à porta parou, deu uma rápida
ajeitada na gola de sua blusa e bateu.
– Entre – uma voz forte e autoritária concedeu o passe ao moço. Sentado atrás
de uma grande mesa estava um homem forte de meia idade, com cabelos
grisalhos e bem cortados que serviam de moldura a um rosto duro.
– Sente-se – sentenciou, sem desviar o olhar que, filtrado por óculos de grossas
lentes, mantinha-se nos relatórios. Tito obedeceu. O homem então olhou
finalmente para o jovem policial. Este não podia encarar o delegado Fidélis sem
sentir uma pronta vontade de rir. No rosto sério e bem tratado do homem, aqueles
óculos fundos de garrafa humilhavam e desafiavam a autoridade daquele olhar
sério e superior. Os olhos miúdos pareciam os de um pequenino duende
brincalhão que teimava em espiar sorrateiramente através das grossas vidraças
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daquela janela, dando àqueles olhos cinzentos uma hilaridade que de modo algum
combinava com a seriedade e caráter do delegado.
- Já está melhor? – perguntou o superior ao novato.
- Sim senhor, acho que já está passando.
- Bem, acontece. Mas tenho de admitir que fiquei surpreso com você e sua
atitude; quando chegou aqui na delegacia não passava de um menino assustado e
deslumbrado. Nunca poderia imaginar que você pudesse fazer um presunto tão
rápido. Tudo bem. Às vezes nos enganamos com as aparências e talvez eu tenha
subestimado suas capacidades; vejo em seu relatório que decidiu eliminar aquele
elemento porque ele estava em posição privilegiada para atingir nosso pessoal;
ótimo. Fez o que tinha de ser feito. Mas veja, de uma próxima vez avalie as
conseqüências do ato. Perdemos um ótimo policial nessa operação; é bem verdade
que ele não agiu corretamente expondo-se ao revide dos vagabundos, mas saiba
que quando alguém tombar, seja de que lado for, haverá represálias. Nada neste
confronto sai de graça. – Tito desconfiou que Fidelis possivelmente estivesse ‘com
todo o carinho’ colocando a morte do colega ‘na sua conta’. Tivessem tido esta
conversa ontem, provavelmente ficaria bem abalado, porém, acordara sentindo-se
muito bem, num afã vital que há muito não sentia, ou talvez nunca sentira.
Lembrou-se de repente das palavras do demônio, em seu devaneio: volte para sua
prisão ou aprenda a ser diabo! Realmente, uma sensação estranha se apossou dele
pela primeira vez; parecia que Fidelis era agora um diretor de presídio fazendo
rodeios para enviar o presidiário à sua frente para a solitária. ‘A solitária do
remorso’ pensou Tito. Concluiu então, que para conforto do superior, deveria
sacrificar sua consciência ao confinamento penoso no chão úmido da cela escura
da culpa. Foi acometido por um pensamento vivo! A escuridão dessa solitária de
Fidelis não era a mesma escuridão livre e ébria do mundo de Epaminondas, onde
estas coisas não existiam. O delegado era sutil em lhe imputar o débito pelo
ocorrido. Pensou então em quantos tapinhas nas costas recebeu a título de
consolo, mas que no fundo eram dissimilações profissionais para pensamentos tais
como: foda-se filho da puta! Onde poderia estar escondido o conceito de
‘maldade’? No homem ‘bom’ Fidelis ou no homem ‘mau’ Epaminondas? ‘Oh
filhos do bem e do mal’ sempre diz o velho diabo; sim, Tito começava a enxergar.
Via com clareza o ardil insidioso nas palavras ‘reconfortantes’ do superior. O
delegado prosseguiu: - Você é um rapaz solteiro, posso entender seus arroubos,
mas veja, crianças ficaram sem pai, é necessário que raciocine muito sobre sua
atitude. Quero que pense nisso. – Fidelis começava a impacientar-se com o olhar
de ferro que recebia em contrapartida a seus conselhos. Definitivamente o rapaz à
sua frente não era aquele tímido e ingênuo que há bem pouco tempo prestava-se
a algumas brincadeiras maldosas, quando de sua chegada àquela divisão policial.
A agudeza daqueles olhos pretos desconsertou o delegado e este então preferiu
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encerrar a conversa antes que restasse comprovado seu mal estar – Bem, me
parece que você está amadurecendo bem depressa, não? Pense nisto que eu lhe
disse. Pode ir.
- Pensarei. – Tito disse isto quase com desdém. Levantou-se e saiu da sala mal
disfarçando sua irritação – Amadurecendo depressa... – pensou lá com seus botões
– sim delegado, mais depressa do que o senhor imagina. – tivera uma idéia quando
no caminho para a delegacia, queria experimentar aquele êxtase xamânico sozinho.
Pensou que talvez em sua dimensão mental, bem menor da que do velho diabo,
pudesse realizar alguns rituais visando seu interior. Queria revirar sua própria
sombra atrás de demônios que tivessem seu DNA. Era-lhe penoso pensar que não
os possuísse, que fosse um sóbrio da ‘gema’, um estereótipo pensado por
picaretas que tinham interesse em seu comportamento comprometido; queria
nascer definitivamente e crescer. Queria descobrir as raízes plantadas na escuridão
de si mesmo. Queria também, atingir um tamanho que lhe possibilitasse enxergar
toda a sociedade sóbria e divertir-se com o dedo enfiado nela, observando as
pequenas sanguessugas se banquetearem no vínculo obrigatório do qual não
poderia escapar. Queria nascer para dentro, para fora já estava resolvido; tinha sua
profissão e os comportamentos exigidos pela sociedade sóbria. O problema é que
se dava conta de que sempre fora só isto. Não tinha ‘dentro’. Não era ninguém,
apenas sua profissão e os comportamentos exigidos; se não tivesse conhecido
Epaminondas talvez nunca abrisse os olhos para seu interior, para esse mundo
infinito de possibilidades, e seguiria sendo uma pedra humana. Constatara com
horror de que não usava uma máscara... era a própria máscara! Isto era de uma
pobreza existencial franciscana... tudo começava aos poucos a clarear em sua
frente e ele queria celebrar este momento. Queria realizar um pequeno ritual, um
ritual ‘com suas impressões digitais’ e para isso precisava de algumas drogas,
embora não tivesse a mínima idéia da combinação explosiva que o negrão fazia
com aquele charuto de estranhas ervas e o vinho. Por isso, o negócio era apelar
para Black. Black era um cara de que gostava muito, era meio desligado, meio
alheio a tudo, não levava as coisas mais a sério do que mereciam, e tinha sempre
coisa boa! Dirigiu-se ao pátio da delegacia. Black estava atirado no banco traseiro
da viatura com seus inseparáveis fones de ouvido; o aparelhinho lhe mantinha
permanentemente alienado de tudo à sua volta, que era tudo que ele queria.
- Black, meu irmão! – Tito falou isto com a cara enfiada pela janela traseira do
veiculo, fazendo com que o rapaz desse um pulo – Porra, caralho! Que susto! Não
se pode descansar mais nesta merda? - exclamou o dorminhoco.
- Pode sim, meu velho. Mas antes quero saber se pode me ajudar nuns negócios
aí...
- Hummm.... pedir ajuda para mim, compadre? Tô te entendendo não...
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- Já vai entender. Preciso de uns bagulhos aí... umas coisas boas pra viajar
muito. Sei lá, cocaína, maconha e o que mais você tiver, compro tudo.
- Você hein? Quem diria, eu lhe tirava para um baita caretão. Diga-me, de que
tipo de ‘viagem’ você está falando; sim, porque conforme o que você pretende
fazer, posso lhe indicar o melhor. Vai trepar? Recomendo-lhe maconha com uma
pitada de cocaína; não muito pó, se não, vai ser um fiasco. Maconha sim, vai com
tudo. Se vai a uma festa, quer ficar ligado, bem aí o negócio é inverter, cheira mais,
fuma menos.
- Não, nem uma coisa nem outra. Quero uma viagem de verdade, porra!
Alucinógena! Quero mergulhar no meu inconsciente, irmão. O que você me
recomendaria para isto? – Black abriu um sorriso entre desconfiado e zombeteiro,
então respondeu:
- O que você quer encontrar por lá? Essas são viagens perigosas, sabe-se lá o
que encontramos. Eu nunca fiz isso, sempre tive medo de dar de cara com o diabo!
Só de pensar, olha aqui, fico todo arrepiado. – Tito riu e emendou:
– E quem sabe não é isso que eu quero? Bem, você pode me ajudar ou não?
- Posso, claro. Você sabe que jamais deixaria um parceiro na mão. Venha aqui no
pátio às sete, trarei bem certinho o que você precisa, fica frio, é cortesia. – Tito deu
um abraço no colega e retornou ao interior do prédio; estava radiante, imaginava
que encontraria muitas respostas se pudesse mergulhar tranqüilo dentro de si
mesmo. Era uma viagem solitária, teria de ter coragem para não voltar atrás e uma
vez iniciada teria de seguir até o fim.
***
Durante o restante do dia nada ocorreu de anormal, a não ser os olhares velados
de Nina. Tito sentia que a garota sempre acompanhava seus passos quando estes
estavam em seu campo de visão e isto começava a incomodá-lo. Não fosse uma
rápida saída para realizar uma blitz em um botequim das redondezas, ‘apalpar
saco de vagabundo’, teria passado o dia apenas com envolvimentos burocráticos.
Quando, enfim, chegou na tão esperada hora, o rapaz encerrou seus afazeres e
dirigiu-se para a porta de acesso ao pátio.
- Espera malandro! - sentiu a voz de Nina como um puxão de gancho no
pescoço. Já estava saindo para apanhar as drogas com Black e não queria nenhuma
interrupção; fosse de quem fosse, não podia atrasá-lo; sua cabeça já estava em
89

outro lugar. Parou e virou-se para a colega esboçando um sorriso de pedra,
deixando claro seu desconforto pela interrupção abrupta daqueles seus passos
certeiros.
- Porra que cara é essa, meu? – surpreendeu-se a policial – não combinamos de
beber umas e outras? Você não ia me contar sobre suas aventuras noturnas? O que
há? Mudou de idéia e não ia me dizer nada? Puxa, você está estranho, cara!
Sempre foi educado e agora ia me dar o cano saindo assim, de fininho?
- Você tem razão, me desculpe – Tito sentiu-se realmente envergonhado, havia
esquecido das tais cervejas com Nina, mas isso podia ficar para amanhã, pensou,
sem nenhum prejuízo para sua relação. O importante hoje era executar seu plano
solitário. Tinha de se desvencilhar com delicadeza do compromisso sem ferir
nenhum sentimento da garota.
- Não posso lhe dizer nada agora, confie em mim, amanhã prometo que
conversaremos e lhe conterei tudo, afinal, você é a minha confidente. Tenho um
assunto urgente que preciso tratar sozinho. – Tito olhou para os lados certificando-
se de que ninguém os via e deu um rápido beijo na boca de Nina, mas esta não
parecia convencida.
- Sei não, garoto. Você está muito estranho, tomara que esteja conseguindo lidar
com aquele demônio. De minha parte, sinceramente, temo pela sua integridade
física e mental; mas você já é grandinho e sabe o que faz, espero. Falamos amanhã.
- Falamos. – Tito então saiu apressado e encontrou Black em sua viatura,
cantarolando alheio.
– Fala, Black! O que conseguiu para mim? – Black tirou os pequenos fones dos
ouvidos e olhou para os lados - Tá limpo? Tá limpo. Pegue isto. – tirou de um dos
bolsos de suas calças largas um grande pacote e entregou a Tito com a seguinte
recomendação: - Faz um chá.
- Um chá?
- Um chá.
- Quem sabe você me fornece também as bolachinhas, caralho! – bricou.
- Não enche, porra! Faz um chá com estas flores e boa viagem! Recomendo
fechar bem as portas e as janelas, com isto você vai garantir sua segurança caso
queira sair voando pela janela.
- Era disto mesmo que eu precisava. Um chá então? Beleza! Acho que vai ser
bom.
- Bem, Tito, acho que a dose que lhe dei já basta, não é preciso mais que isso.
Boa viagem!
- Obrigado, irmão. Darei recomendações suas ao diabo, he,he...
- Uau! Longe de mim! – riram e Tito se afastou, entrou em seu carro e rumou
para sua casa preparando o espírito para sua grande aventura.
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A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 08 OS HOMENS- ESQUELETO E SUAS CARNIÇAS
Ao chegar em casa Tito colocou o pacote sobre a mesa. Só agora iria abri-lo, e o
fez como quem desembrulha uma bomba, não tinha idéia do que iria encontrar.
Experimentava uma espécie de repulsa pelo objeto desconhecido. Abriu-o com
cuidado e um perfume inebriante subiu do pacote; nele havia também um bilhete,
mas o que lhe chamou de imediato a atenção foram as flores claras desmaiadas
sobre aquele papel amassado. Era um punhado de flores estranhas, de forma
tubular e cor creme-esverdeada; lhe incomodava um pouco vê-las sem vida,
amontoadas como cadáveres em uma cova rasa. Porém, o plano deveria continuar;
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apanhou o pequeno bilhete e leu: Meu caro amigo, apresento-lhe uma amiga
perigosa, porém, muito amorosa quando bolinada com carinho. Ela é uma dama,
Dama da Noite é seu nome. Também é conhecida por ‘Cestrum Nocturnum’. Tenho
certeza de que poderá lhe acompanhar em sua viagem e mais do que isto: poderá
levá-lo sempre ainda mais longe, mas cuidado, ela é uma dama que não conhece
limites. Boa sorte, Black. Tito sorriu e percebeu a preocupação contida naquele
bilhete. Black o advertia para os perigos daquela viagem a um neófito; porém, se
julgava preparado para tudo, tudo que pudesse advir da experiência solitária. Tito
botou a água a ferver, e como já havia anoitecido, acendeu alguns círios que havia
comprado para o evento e apagou as luzes de seu apartamento. Desligou também
o celular, não queria ser perturbado por nada do mundo exterior; foi à cozinha e
iniciou a infusão com as flores – Agora é só esperar – pensou ansioso. Enquanto
esperava o chá ficar pronto, trocou suas roupas por um confortável roupão
atoalhado, não fazia muito frio naquela noite. Ele então trancou as janelas e a
porta, deixando a chave em uma gaveta; não julgou necessário maiores cuidados,
pois dificilmente se tivesse algum surto alucinógeno, lembraria de procurar chaves
em gavetas. Foi à cozinha e bebeu o chá de gosto bizarro. Apanhou uma garrafa
de vinho tinto, abriu-a, pegou uma taça e dirigiu-se ao seu quarto. Atirou-se na
cama embalado pelas chamas companheiras das velas, aquelas chamas que
conhecia tão bem; elas faziam toda aquela escuridão ao redor dançar num ritmo
estonteante de luzes e sombras. Uma alegre, ruidosa e deliciosa dança. Bebeu
vinho – O delicioso sangue da videira! Há,há,há... – riu-se imaginando
Epaminondas. Então de repente parou e perdeu o olhar em algum ponto nas
sombras. - Vamos ver, meu amigo diabo! Vamos ver o que encontro olhando para
dentro – disse absorvido pelas imagens negras e douradas. Eram demônios
amarelos e negros em dança frenética, podia ouvir-lhes os risos; sentia-se em
momentos alternados em espaços amarelados e negros, depois, foi ficando mais
tempo nesses espaços até cair para dentro de um amarelo.
Encontrou-se repentinamente diante de uma imensa porta de cor dourada, porém
era de um dourado bastante fraco, era uma cor mortiça. Empurrou a porta e saiu
em um imenso campo relvado e embora não houvesse sol, uma tênue claridade
iluminava o campo, como num tempo nublado em que o sol trespassasse as
nuvens timidamente. Constatou então que havia milhares de cruzes espalhadas
pelo campo, elas estavam longe, ele então se aproximou e começou a entrar em
estado de pavor. Na realidade tratava-se de esqueletos que jaziam de pé com os
braços abertos e as pernas juntas; crucificadas neles, carcaças de corpos
desossados pendiam já em estado de putrefação. O fedor era insuportável e o
zumbido de moscas era ensurdecedor. Tito então quis correr para longe da visão
assustadora, mas antes de empreender a fuga percebeu que os esqueletos
começaram a se mover e constatou espantado que cada um deles vestia sua
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respectiva carcaça apodrecida. Tito quis sair rápido da presença dos sinistros
monstros, mas faltaram-lhes as pernas e o máximo que conseguiu foi sair
caminhando lentamente deixando pegadas de chumbo. A horda terrificante
começou a segui-lo e dizia frases desconexas através de vozes terrosas formando
uma sinfonia macabra. O rapaz então procurou uma sombra na qual pudesse se
refugiar, mas a claridade era insuficiente para gerar sombra; então repentinamente
parou, botou as mãos na cabeça e fechou os olhos; foi em vão, não encontrou
nada e os abriu novamente, estava então totalmente cercado pelos mortos-vivos
apodrecidos. Estes foram lentamente abrindo caminho para uma figura horripilante
que surgia em meio à horda e veio postar-se à sua frente. Este tinha um grosso e
encebado livro nas mãos descarnadas e um dos olhos, o esquerdo, pendia de sua
caveira amarelecida; também mantinha um manto púrpuro esfarrapado sobre os
ombros. Um forte odor exalava daquelas carnes mortas ali tão próximas, e o
espectro falou, exalando seu hálito podre:
- Procuras a sombra? Ingrato. Veja! Está aqui! – o monstro batia no livro – Está
aqui! Quem é dos nossos seguirá sendo dos nossos! Você tem uma alma, meu
filho, está aqui, está escrito! O que procuras no sub-mundo escuro? O diabo? Por
que queres ter com o diabo? Acaso te desagrada esta serena luz? Para que servem
as sombras? Diga-me? Pois eu lhe digo, só servem para semear a dúvida! Por que
preferir a dúvida se lhe oferecemos a certeza? Qual a vantagem de não escolher o
descanso? Para que pensar, se está tudo no livro? Veja, estamos vivos, somos
eternos, está no livro! Somos puros, está no livro! Não seja insolente, venha para o
livro! Venha para o que está escrito, é bom! – neste momento todos em volta
assentiram repetindo automaticamente em uníssono – É bom, é bom – suas vozes
horríveis soavam patéticas e decoradas. – Viu? Todos concordam, é bom! – É bom,
é bom – repetiram. – Veja, filho, é simples. Basta abrir os braços em forma de cruz,
junte bem as pernas para dar mais veracidade à imagem, retire sua carcaça e
crucifique-a em seu esqueleto. Ah, sim, sim, creio que deves imaginar que por sua
carne ser viçosa ainda, deves-te privar do ritual. Não, não, não, estás enganado,
meu filho; quanto antes melhor, assim te adaptas bem cedo à Eternidade. Não te
preocupes, ó meu filho! Vamos ajudá-lo a desvestir essa carne concupiscente,
desejosa e desejada! Lúbrica e mundana! Ajudem-me a arrancar essa fonte viva de
luxúria e maus pensamentos! – Tito sentiu então aquelas mãos horrendas lhe
cravarem as unhas e gritou de pavor – mas o monstro-chefe prosseguiu:
- Calma, meu filho! Está no livro! Está no livro! O que está no livro é bom! – e os
mortos-vivos repetiam automaticamente – É bom, é bom. Tito, apesar dos gritos e
protestos, foi levado para o topo de um monte. Durante o percurso, foi festejado,
apalpado, e mesmo tocado com alguma histeria em partes mais íntimas por mãos
ossudas recobertas parcamente por carnes podres. Cercado pela turba sinistra e
fedorenta, pressentiu o pior: aqueles seres monstruosos tinham a intenção de lhe
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descarnar com as unhas! Postaram-nas de prontidão por todo seu corpo que a esta
altura já estava totalmente despido, e aguardavam ávidos a ordem do morto-vivo
mor para dar-lhes a ordem fatal; este então, se pronunciou: - Veja, meu filho! É
aqui que ficarás crucificado pela eternidade! Estarás conosco, não precisarás temer
o Mal! Aqui não existem sombras, o diabo não nos alcança, tudo é puro, está no
livro! Não temeis irmão, vamos arrancar-lhes o motivo de tuas angustias, essa
carne libidinosa! Essa carne impura e purulenta! Inimiga da alma! Inimiga da
Eternidade! Peso vivo que a alma pura tem de carregar! – o rapaz olhou para o
horizonte, e até onde a vista alcançava podia perceber a multidão de mortos-vivos
que convergiam para o evento macabro; estava morto de medo, mas tinha de fazer
alguma coisa. Entrara sozinho nessa, e tinha a responsabilidade de sair, e bem. Foi
quando se lembrou de suas conversas com Epaminondas; este sempre falara em
individualidade e no poder imanente desta. O negrão sempre deixara clara a
importância de assumir o protagonismo da própria existência antes que outros o
façam: ‘ou você se assume ou os picaretas o farão’. Tito procurara aquela situação
para descobrir seus demônios interiores, se é que eles existiam; agora percebia que
estes seres sempre estiveram submersos em seu inconsciente, e queriam
desesperadamente continuar. O poder invisível que habita o porão se mostra de
maneiras várias e mais chocantes visando evocar a força que lhes permita a
continuidade assombrada de suas ações transparentes. Tito pensou que sempre
encarnou o que não via, e o que nunca viu agora podia ver na forma daquele
teatro macabro, armado para lhe inculcar medo. Medo: ‘o apanágio do sóbrio!’. A
hora era agora! Se quisesse realmente resolver suas questões internas não poderia
fraquejar, se fraquejasse estaria tudo acabado, ‘eles vencerão’, pensou. Não. Não
chegara até este ponto para isto, estava bem consciente quando decidiu dar este
mergulho em si mesmo, então era chegada a hora de assumir a responsabilidade
de seu protagonismo. Aquelas imagens derivavam de seus arquétipos interiores,
porém, expressavam em voz alta uma dominação da qual nunca pudera tomar
ciência – Por ser um sóbrio, talvez? – achou então que tinha de encarnar a si
mesmo neste palco do inconsciente. Uma estranha e descomunal força começou a
se apossar de seu corpo, seus olhos ficaram subitamente injetados e ele encarou os
monstros com tamanha intensidade que estes se afastaram visivelmente
assustados. De repente Tito soltou uma ensurdecedora gargalhada e acompanhou
com olhos zombeteiros a debandada de esqueletos com carnes apodrecidas. O
esqueleto chefe parou sua corrida e apontou para Tito interrogando:
- Por que, demônio? Por que nos aplicar essas peças? Era você o tempo todo!
Fazer-se de menino frágil para se divertir a nossas custas? – o espectro disse isto,
virou-se e saiu andando cabisbaixo, havia perdido sua autoridade amedrontadora,
era agora uma figura patética e sem nenhuma serventia para seus agentes, ou seja,
os fantasmas sanguessugas da estrutura psíquica de Tito.
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– Espere! – gritou este. – Quer trabalhar para mim?
- Trabalhar para o senhor? O Senhor das Trevas? – disse o esqueleto, voltando-
se para o diabo com surpresa.
- Sim, para mim. Você é forte, tem poderes que podem me fortalecer muito.
Trabalhe para mim. - Tito observou que emitia uma imensa sombra a partir de
onde estava, no cume da colina; sua sombra era imensa e ostentava grandes
chifres. Sentiu uma sensação de felicidade inebriante, mais ainda quando percebeu
o morto-vivo sob sua escuridão. – Quero que você seja demônio meu! E não
fantasma de agentes externos. Não posso cogitar de perder sua força por aí, pelos
labirintos de meu mundo interno, neste mundo infinito da escuridão. Quero
transformar isto aqui numa bagunça do caralho! Quero muitos demônios, quero
brincar muito. A partir de hoje, essa sua seriedade podre vai se transformar em
pura alegria, quero agentes alegres, só estes podem carregar consigo meu DNA!
- Mais que isso, Senhor! Convocarei o exército de ‘cruzes-esqueletos’ para
coloca-lo a seu dispor; basta que os transforme em demônios, e a mim também. O
Senhor terá um arsenal dos diabos! Será muito poderoso, lhe garanto.
- É o meu desejo! E nada mais de mortos-vivos, não quero nada morto por aqui,
exijo ver vocês todos muito vivos! Preciso de entes de fogo! Vocês serão
incorporados à minha força, ao meu poder! Quero que aprendam a dançar, quero
que dancem muito, quero danças infernais. – percebeu então, que uma imensa e
escura noite havia descido sobre aquele vasto cenário, iluminada pelo fogo que
crepitava alto atrás de si. Eram mudanças que não conseguia acompanhar, mas elas
o deixavam envolto em uma embriaguez etérea para a qual ainda não podia
encontrar as palavras que pudessem descrevê-la. Repentinamente, o esqueleto-
chefe bradou:
- Viva o Imperador! – e uma visão deslumbrante surgiu à sua frente. Centenas de
milhares de esqueletos se incandesceram a um só tempo, numa autocombustão
fantástica, iluminando aquela escura noite.
– Viva o Imperador! – repetiu a multidão demoníaca, fazendo a inflexão
respeitosa ante a presença de seu soberano. Tito constatou com alegria que os
esqueletos haviam substituído suas carnes podres por fogo! Eram esqueletos que
pegavam fogo! A visão era tão fantástica que o rapaz ria sozinho. O esqueleto-mor
aproximou-se respeitosamente trazendo em suas mãos de ossos ardentes uma
imensa coroa de fogo, seu livro havia virado cinzas; Tito inclinou-se dando o topo
de sua cabeça chifruda para o chefe de seu exército e este então coroou seu Rei,
para júbilo e algazarra daquela multidão. Não contendo a alegria gritou:
- Dancem! Quero dança! – e então todos começaram uma balbúrdia dos
infernos, numa grandiosa festa de fogo e escuridão. O preto e o dourado em festa
infernal. - Encarna! Encarna! Encarna! – bradou o diabo, e a alegre multidão
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transformou-se em seres bizarros; íncubos e súcubos iniciaram então uma suruba
dos infernos!
***
Tito despertou lentamente. O Sol entrava em seu quarto através de pequenas
frestas de suas venezianas, e anunciavam mais um dia no ramerrão ordinário da
vida sóbria. Era desencorajador para o rapaz dar de cara com o seu dia a dia
descolorido, após a edificante aventura interior que acabara de viver. Porém,
sabia que o carrossel ao Sol não parava nunca, e era nesta roda de moto
contínuo que tinha seu lugar e havia de preservá-lo. Sabia também, de que sua
aventura não poderia ter nenhum caráter alienante; não, não era para isso que
se dispusera a este empreendimento. Levantou-se meio cambaleante,
percebendo através de sua vista confusa, pequenos diabinhos que corriam a se
esconder debaixo de sua cama; alegres reminiscências oníricas que fugiam da
repentina claridade. A claridade arbitrária dos horários e compromissos, da
labuta, da remuneração, do reconhecimento de terceiros, da escala de valores,
dos lazeres politicamente corretos, enfim, amanhecera o dia a dia. Pensou por
um momento, ao lembrar dos eventos fantásticos da sua aventura, em todos os
personagens relegados ao inconsciente de uma pessoa comum, e pior,
acondicionados lá por mãos habilidosas e invisíveis; personagens que nortearão
toda uma vida, impedindo com suas doutrinas mortas o resplandecer dourado
do fogo criador da individualidade. Tito sentiu então uma imensa compaixão
por todos aqueles que iriam morrer sem realizar este magnífico encontro
mágico consigo mesmo. Das multidões escravizadas que jamais conhecerão a
delícia deste misticismo inominável, este misticismo nascido das próprias raízes
do ser. E para tanto, pensou ele, basta ter coragem! Nada mais. Coragem para
este mergulho alucinante de mãos dadas com o diabo! Até as profundezas mais
inóspitas onde então tiramos as mascaras para o beijo cósmico onde nos
fundimos e fundamos finalmente nosso poderoso microcosmo, nosso mundo!
Pensou de como pôde ficar tanto tempo longe das delicias desta descoberta,
distraído pelos ruídos insossos da vida diária. Nada pode ser mais forte do que
estarmos em nós mesmos. Descobria agora, que estava adquirindo uma força
descomunal e alegre, as forças adquiridas das próprias profundezas; lembrou-
se de que estas profundezas outrora receberam o nome de inferno, para que os
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escravos existenciais não se aproximassem de si mesmos, e não descortinassem
este poder! Fodam-se, pensou. Que cada um arque com o peso de seus
grilhões. O que ninguém poderá impedir, é que eu arrebente os meus! Concluiu
que todos podem escolher suas máscaras diárias, escolhera a sua, mais que isto,
até então julgava ser a própria máscara. Nunca encontrara nada por detrás; foi
mais longe, nem imaginara que houvesse por detrás da máscara. Agora chegava
a uma conclusão: é preferível ter um leão por detrás do que um cordeiro, até
porque os cordeiros usam máscaras de cordeiro; são as que despertam a
compaixão alheia com mais rapidez e eficiência. Os cordeiros precisam da
compaixão, é o que faz com que os leões não os devorem, este é o pensamento
ingênuo deles. Tito aprendia agora uma intrincada arte, a arte de ser leão. Um
leão negro e noturno, talvez com imensas asas de morcego, assustadoras
presas de aço, olhar sanguíneo e muita fome. Devorador de seus próprios
demônios, na caça alegre de seu alimento vital. A vida explodia dentro de Tito
com tamanha força e intensidade que teve de dançar. Rir e dançar.
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A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 09 ROMPENDO COM OS PENSAMENTOS DE ESTIMAÇÃO
Conte-me tudo, – disse Nina enquanto servia o prato de Tito. A moça adorava
ver o jovem policial sentado à sua mesa e reservava-lhe a cabeceira como que
num agradecimento inconsciente pela sua presença. Gostava de vê-lo em sua
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casa, talvez acusando um certo desgaste em sua solidão; começava a criar
certas expectativas secretas, embora não quisesse alimenta-las muito, de dividir
sua vida com a do rapaz. Estava realmente sentindo algo mais forte, embora
relutasse em aceitar um sentimento que pudesse não ser correspondido, pois
Tito parecia um mutante, e ela não tinha a mínima idéia de como iria terminar a
pintura desse quadro. Por isso agora sondava: - Conte-me, você parece bem
disposto, nem parece aquele rabugento que esnobou minha comida outra
noite; para quem estava tão mal, sua melhora é espantosa.
- Hummm... esta carne está deliciosa! – disse o policial mastigando um
pedaço da carne de panela que a garota servira. – Nunca pensei que gostasse
tanto de carne! Acho que estou me transformando num predador!
- Devo me preocupar? – brincou a garota.
- Deve. – Tito olhava para Nina com veneno nos olhos, e esta sentia a força
instintiva daquele predador, que a deixava nua com os olhos; não porque estes
percorressem indiscretos pelo seu corpo; não, ela recebia a acuidade daqueles
olhos diretamente nos seus. Aquilo a excitou de tal maneira que sentiu sua
calcinha molhar. Sempre fora sensível a este tipo de abordagem silenciosa,
achava mesmo, que às vezes as palavras até atrapalhavam os momentos mais
sedutores. Porém, avaliou que se escancarasse um sinal verde naquele
momento poderia estar fazendo o jogo de seu convidado; estava morta de
vontade, mas queria espreitar mais as atividades secretas de Tito, e este,
poderia estar se esquivando de lhe dar maiores detalhes. O sexo naquele
instante seria a melhor das desculpas para não falar sobre o assunto. Nina
então se desvencilhou daquela teia invisível, como uma pequena mosca que
consegue livrar-se no último instante, de uma aranha faminta.
- Vamos, não faça onda! – insistiu a garota - Por onde andaram esses olhos!
Em que lugares assustadores eles passaram? Que demônio lhes roubou a
doçura?
- Ora, talvez nenhum demônio tenha lhes roubado a doçura, quem sabe
estes olhos tenham encontrado finalmente seu verdadeiro rosto! Por que,
minha querida, uma mudança tem de ser necessariamente para pior? Não lhe
passa pela cabeça de que posso estar encontrando minha verdadeira
fisionomia? Ou quem sabe você não está gostando porque não me deixo
delinear; sim, as pessoas detestam o que não tem contorno, detestam o que
não se pode mensurar. Eu sou seu queridinho na medida em que uma nuance
de minha personalidade lhe pode ser dócil, estou errado? Mas nunca assumi o
compromisso de permanecer o mesmo, vou mais longe, estou descobrindo a
delícia de andar, como um bebezinho! Você tem me olhado de maneira
estranha, tenho notado, estou diferente aos seus olhos, não é? Pode ser, não
posso fazer nada, adoro você, mas preciso continuar andando. Se quiser vir
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comigo, terá de ter em mente que aquele Tito que você conheceu, morreu. Sou
um homem renascido, não sei se sou melhor ou pior aos olhos alheios, sei que
estou forte e feliz!
- Não sei o que dizer Tito, - a garota o olhava com ar de indisfarçável
preocupação – o que sei, é que eu adorava aquele que conheci. Diga-me com
toda a sinceridade... como você pode saber que aquele homem não é o
verdadeiro Tito? De onde você tira essa certeza? Você pode muito bem estar
hipnotizado por idéias que não são suas, pode estar construindo uma escada
no ar e o tombo pode ser grande, meu querido novato.
- He,he... escada no ar? Não querida, nada de escadas... sinto pela primeira
vez meus pés bem plantados no chão. Não seriam escadas no ar, algumas
crenças que nos fizeram engolir? Aquele novato que você conheceu não
conhecia a si mesmo; me dei conta de que meu ser havia sido confinado em um
pequeno espaço de mim; justamente o pedaço que se prestava ao controle,
mas sou muito maior, infinitamente maior. Não fique triste, é que me sinto
como um pássaro que descobriu para que servem as asas, acho que é difícil de
explicar.
- Bem, e essas asas vão lhe levar aonde?
- A qualquer lugar, quero é voar! Você não gostaria? Porra, Nina, não
acredito que você seja tão conformista!
- Talvez porque eu não reclame tanto da minha situação; aliás, você também
não reclamava. Vivo no mundo real, e gostaria de continuar nele...
- Você não reclama! – interrompeu Tito – meu amor, como um pássaro
criado em uma gaiola pode reclamar seu vôo? Como um leão criado em um
circo pode reclamar pela savana? Como uma pessoa criada entre as paredes do
‘real’, com seus pensamentos de estimação, pode ter noção do poder infinito
da liberdade de sua individualidade? Se você nunca passou por essa
experiência, como pode julgar os que tiveram essa aventura libertadora? Mas o
que é o real, Nina? Porra, mulher! O real é uma série de injunções que nos
levam a caminhar sempre na mesma direção, talvez uma confortável caminhada
pelas coisas já decididas, já pensadas, já testadas; o real é a estrada repisada do
cotidiano. É confortável, mas não tem vida! Quando alguém decide andar com
seus pés descalços por caminhos novos, acontece isso, pessoas conformistas
como você não entendem absolutamente nada! Diga-me, com toda sua
sinceridade, alguém, seja quem for, tem realmente o direito de dar conselhos
quando outra pessoa lhe diz que está feliz? Falar de escadas no ar? Ah, sim, sim,
você poderá dizer: ‘é que gosto de você e não quero vê-lo sofrer amanhã’. Mas
aí eu lhe pergunto: por que tipo de estabilidade emocional eu deveria sacrificar
minha alegria de hoje? Em que altar eu deveria oferecer em oferenda a minha
individualidade? Este sacrifício agradaria a que deuses? Com certeza nenhum
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deus pagão! Não meu amor, não consigo enxergar que vantagem eu poderia
ter, abrindo mão de mim.
- Incrível não é? – retrucou Nina um pouco irritada – você viveu quase trinta
anos sem perceber tudo isso! Agora, assim, num estalar de dedos, surge o
super Tito! Homem valente! Com uma visão única do mundo, quase um filósofo
eu diria... caramba, véio! Nunca vi ninguém mudar tão rápido! Sim, querido,
vivemos no mundo real, o que fazer? Você vai fazer a revolução de um homem
só? Vai ser um out-sider de agora em diante? Diga-me? – Tito sorria com um
sorriso sarcástico. Ela percebeu de que antes o rapaz se irritaria com aquilo,
porém, aquela segurança de Tito agora chegava a assustá-la. Ele então
respondeu com voz serena:
- Minha flor, quero apenas espiar por detrás da mascara diária, e que esta
seja o que o mundo mereça de mim. Não odeio o mundo Nina, pelo contrário,
vejo hoje que só podemos amar verdadeiramente algo se ‘transbordarmos’
para fora de nós mesmos, pois não podemos dar o que não temos. Quantas
pessoas se matam em seus relacionamentos pelo simples fato de não
encontrarem em si nada para dar e sendo assim, só querem tomar, tomar e
tomar; até mesmo a vida do objeto amado se for o caso, para em seguida
legitimar sua fraqueza em relação ao outro, suicidando-se? Puxa, na policia
cansamos de ver isso! Pois é, a fraqueza existencial prejudica até os
relacionamentos amorosos, querida. De minha parte, só quero transformar
minha vida numa grande aventura, só isso. O que acontecia é que eu não via,
mas agora vejo. Quase me deixei levar por essa onda invisível e sem graça das
coisas criadas, mas agora preciso criar, é chegada a hora, criar a mim mesmo!
Talvez esta seja a aventura mais excitante e fantástica que um ser humano pode
realizar. Um brinde! – Tito ergueu a taça de vinho e brindou com uma Nina
meio contrariada. – Ah... que delicia de vinho! – prosseguiu – temos de estar em
nosso próprio tamanho, seja para amar, seja para matar, seja para cometer
qualquer crime. Hoje entendo aquela indignação de Epaminondas com aquele
sujeito, o Irineu, lembra? Pois é. É patético não assumir os próprios atos, pior
ainda é incriminar a outros, isso tudo é coisa de covardes, de seres que se
arrastam pela vida, vermes da existência. Isso porque não estão à altura do ato,
mesmo de um ato criminoso.
- Estava demorando! – disse a garota, agora ela, com um sorriso sarcástico –
Você até então não havia falado no seu grande amor, Epaminondas. Este, enfim,
o mentor de tudo! Diga-se de passagem, que lhe convidei para vir jantar e
contar suas aventuras, mas sua veia filosófica explodiu antes disso; tudo bem,
mas que o negrão tinha de estar por trás eu não tinha dúvidas.
- Se você quer me ofender, insinuando de que eu não posso ter minhas
próprias idéias, lhe informo: não vai conseguir. Já não me deixo atingir tão
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facilmente, e pode ter certeza, gosto profundamente de Epaminondas; com ele
aprendi a ver o que uma vida inteira não conseguiu me mostrar: o meu retrato.
Por muito pouco não fico confinado naquilo que eu era! Ufa! Foi por pouco.
Nos acostumamos a olhar-nos em espelhos distorcidos, espelhos sóbrios, diria
o negrão, ele apenas me mostrou que eu não havia nascido, só isso!
- Diga-me, você vai começar a beber adoidado também?
- Há,há,há... – Tito desabou em incontrolável gargalhada, e ao se recompor,
prosseguiu – Ai... você me mata meu amor... não, não necessariamente,
Epaminondas não ensina doutrinas, pelo contrário, tem nojo disso. Diz que
ensinar doutrina é coisa de picareta! Ele afirma que devemos seguir nossos
próprios instintos, devemos crescer por conta própria, este é o único
crescimento que pode nos dar consistência, tamanho e poder! Aqueles instintos
que brotam de nossas fontes mais negras. Ele não quer que ninguém se pareça
com ele, mas espera que cada um se pareça consigo mesmo. Ele diz, com razão
ao meu ver, que os sóbrios livram-se de seus demônios como coisa ruim, algo a
ser evitado a todo custo porque ali repousa toda a fonte de poder! E os
picaretas precisam seres débeis aos quais possam governar. Analise, Nina, como
você pode refutar isso? Como você pode duvidar de que sempre fomos
doutrinados a nos ajoelharmos diante de nossas dificuldades e catástrofes
pessoais, ao invés de incorpora-las e transformá-las em motivo de crescimento,
em fonte de poder? Nossos demônios são nossos melhores amigos, mas os
sóbrios são cegos para esta incrível força. Hoje eu vejo com clareza por que
todos sempre reclamam das dores do peso da existência; reclamam porque
andam de joelhos! Como não poderiam reclamar da dor? Sim, os vejo
aproximando-se em multidões de ajoelhados com seus joelhos esfolados e
sangrentos e suas mãos esticadas na minha direção. Vejo seus rostos doloridos
e olhos chorosos em sua infinita piedade: - Venha querido, ajoelhe-se e ande
conosco, todos juntos, assim nos consolaremos destas dores. Você não as sentirá
tão gravemente porque nós lhe daremos o conforto dos consolos, todos os
consolos do mundo, deste e do outro, o verdadeiro. – eu então lhes diria que não
ando de joelhos, que gosto de andar de pé, que aprendi a correr e dançar; mais
que isto, lhes diria que não gosto dos que andam de joelhos e que não quero
fazer parte desta multidão de pedintes rastejantes. Eles então diriam:
- Blasfemo! Herege! Você tem parte com o diabo! Onde já se viu? Andar de pé?
Acaso você quer ser o diferente? Não somos bons o suficiente para você? Seus
joelhos por acaso não foram feitos para esfolarem-se no contato com o chão?
Que ardam no inferno os que andam de pé! Eu daria minha melhor gargalhada,
e todos então evocariam seus símbolos-consolo e diriam em uníssono – É o
diabo! É o diabo! Uma incrível emoção e felicidade tomariam conta de mim e eu
diria à multidão: - Sim! Sou eu mesmo! O diabo! Sumam daqui com essa
102

pieguice do caralho! E seus joelhos sangrentos! Levem também seus olhares
desbotados! Vocês são capazes de arrebentar o saco de qualquer um que tenha
neurônios um pouco mais valentes e alegres! – Nina escutara uma boa parte do
que Tito lhe dissera com o garfo suspenso e a boca aberta, como que
hipnotizada. Enfim, botou na boca o pequeno pedaço de carne e perdeu seu
olhar em algum lugar da sala enquanto mastigava. Tito aproveitou a pausa para
comer, também.
- De onde – começou Nina, sem tirar os olhos do nada – de onde você tirou
toda essa eloqüência? Você não era muito afeito a discursos. Agora, para
justificar seu ponto de vista, parece o pregador do diabo. – o policial limpou a
boca com o guardanapo e tomou um gole de vinho.
- Não é incrível? – respondeu – eu tinha esta bagagem guardada em algum
lugar bem escuro. Porém, nunca soube encontrá-la, aliás, nunca me preocupei
em encontrá-la. Por que será que certas coisas são melhores esquecidas no
escuro? Acho que para acreditarmos que não as possuímos. Creio que tenho
muitas palavras amordaçadas com as cordas do esquecimento, jazendo no
Hades, diria Epaminondas. O que boto para fora agora não foi inventado de
uma hora para outra, acredite, eu não teria criatividade para tanto; não são
palavras vazias, o que digo sempre foi varrido inconscientemente para trás da
minha garganta, hoje descubro que não sou o molusco mudo de ontem; não,
estou feliz por ter algo a dizer. Sinto que esta minha condição de mudo
existencial vai descongelando lentamente; bem, se isso lhe desagrada,
paciência, agora já não posso parar esta locomotiva sem trilhos que inicia sua
viagem. Gostaria realmente que você conseguisse enxergar tudo isso. – Tito
colocou sua mão sobre a de Nina – Gosto de você, Nina, gostaria apenas que
abrisse seus olhos, mas se não for possível, tudo bem, gosto assim mesmo, mas
é preciso que entenda, quando vi Epaminondas pela primeira vez senti que meu
destino estava selado! Você mesma estranhou minha fascinação pelo negrão,
hoje sei porque. Sei também por que todos aqueles policiais adoram os
resultados de suas deduções, porém, não vão adiante nesse grande enigma
chamado Epaminondas. Eu não, aquela embriaguez tocou a minha, e eu nem
pensei que tivesse algo em mim que se prestasse à embriaguez. Foi irresistível,
amor à primeira vista! Instintos mais fortes de que meu lado óbvio falaram mais
alto; hoje percebo porque não poderia passar sem conhecê-lo de perto. Foi a
melhor coisa que aconteceu na minha vida, porque eu descobri que tinha uma!
Os sóbrios se cagam de medo dele porque não têm a mínima condição de
escutarem as nuances de sua canção muda, que é realmente muito sutil, mas eu
me senti arrebatado por aquele chamado invisível. Não, Nina, não há nada em
mim que já não estivesse comigo; esse à sua frente é o verdadeiro Tito, pode
ter certeza. – apertou a mão da garota – olhe nos meus olhos e me diga que
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não gosta de mim, vamos coragem meu amor. Diga que este homem
ressuscitado que você vê não é o garotinho ingênuo de que gosta. Diga-me
para ir embora para nunca mais voltar, porque tenho parte com o diabo. Diga
qualquer coisa...
- Nina correspondeu ao aperto, e suas mãos seguram-se firmes – os olhos de
ambos ficaram paralisados em uma mútua leitura muda, como se um quisesse
encontrar no outro algum vestígio da antiga cumplicidade, legitimando assim o
seguimento natural daquelas vontades explosivas e a muito custo represadas. A
animosidade amena do debate cedeu rápido ante aos instintos de fogo que
jogavam agora aquelas bocas secas de tesão ao encontro uma da outra,
legitimadas pela cegueira da paixão. Agarraram-se com uma sofreguidão que
denunciava uma fome gerada por contatos adiados e toques que há muito
aguardavam por instintos poderosos e imorais. Roupas eram atiradas ao chão
tratadas como inimigas mortais de uma nudez urgente e açodada. Tito então
pegou Nina já nua, sentando-a na mesa do jantar e ergueu suas coxas, em
seguida ajoelhou-se e enfiou a cara entre elas; Nina sentiu a língua quente e
úmida do rapaz brincar com habilidade em seu clitóris; sentia também as
estocadas desta invasora no interior de sua caverna encharcada. Agarrou os
cabelos de Tito com suas mãos trêmulas de tesão, e em gestos cegos por
instintos da mais pura lascívia, tentava inconscientemente botar a cabeça do
amante para dentro de sua boceta inchada e insaciável. Tito se masturbava
enquanto Nina oferecia à sua língua o mel daquele frenesi incontrolável,
gemendo e emitindo gritos intermitentes que excitavam mais a libido explosiva
do policial. Tito levantou-se e agarrou com força as coxas de Nina, resvalando
sua pica, dura como aço, para dentro daquela xoxota empapada, fazendo a
garota estremecer; ela então se deixou cair de costas naquela mesa que até a
pouco, era apenas uma coadjuvante bem comportada de um inofensivo jantar.
Tito, num gesto brusco, puxou-a da mesa deixando-a de pé, virou-a com
alguma violência, e curvando-a sobre o prato principal, a carne de panela, fez
com que seus peitos fossem encontrar o conforto quente daquele molho
preparado com tanto esmero. Nina sentiu a excitação daquele calor em seus
seios lambuzados. De repente sentiu a dureza do pau de Tito em seu cu que
estava escancarado para o rapaz. Ela agora percebia o porquê da manobra
brusca. Protestou:
- Na bunda não! – mas Tito não ligou para seu apelo e seguiu seu intento,
agora com mais força. – Não, aí não, Tito, não gosto! Pára! – mas seus protestos
pareciam enlouquecer mais ainda o violador. Nina resolveu dar um fim naquilo
e tentou desvencilhar-se, foi quando sentiu em sua nuca o toque frio do aço da
pistola do agressor e o toque frio do aço de sua voz:
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- Quieta! Juro que te mato! Vou até o fim, não agüento mais de tesão, se
tentar escapar eu atiro! – Nina sentiu seu mundo desmoronar em um segundo;
seu amado lhe violentava de maneira covarde, o cano da arma machucava seu
pescoço, o pau de Tito lhe machucava o ânus, e o acontecimento machucava
uma paixão que se despedaçava a olhos vistos. A mulher agüentava a dores
todas geradas pelo ato, com lágrimas nos olhos e uma crescente raiva, que,
esperava ela, logo se transformasse em ódio! Tito bufava e urrava de tesão!
– Meu amor, que tesão! Meu amor, que tesão! – dizia enquanto se acabava
alucinadamente, babando-se e revirando os olhos. Nina agüentou tudo sem
gritar. Estava humilhada e envergonhada, Tito agora era um total estranho em
sua casa. Conseguiu raciocinar de que deveria manter seu controle, não poderia
desabar agora, porém não conseguia virar-se para o homem; foi quando este a
virou delicadamente e a olhou nos olhos, estava banhado em suor. Puxou-a
para si e beijou-a apaixonadamente, mas não foi correspondido em nada, Nina
parecia um cadáver, ele então disse: - Acho que me apaixonei por você. – Nina
franziu o cenho e manteve os olhos cravados nos olhos amistosos de Tito. Ato
contínuo desferiu uma bofetada no rosto do rapaz.
– Saia – disse. O policial leu o ódio estampado naqueles olhos lacrimejantes,
porém, preferiu tentar explicar.
- Nina, escute com atenção. Eu sempre quis realizar esta fantasia de estupro.
Foi maravilhoso! Eu nunca havia feito isto antes! Você é maravilhosa, nunca
senti tanto tesão; sim, eu sabia dos riscos que eu correria, e o pior de todos:
perder você. Mas tinha que fazer.
- Tinha que fazer? – disse Nina enquanto apanhava sua arma. Tirou-a do
coldre, postou-se à frente de Tito e num gesto enérgico apontou a pistola para
o rosto do rapaz. – Acho que também tenho de fazer uma coisa, seu filho da
puta! Dar um tiro nessa sua cara safada! – o policial olhava para a garota com
seu recém adquirido ar de sarcasmo. Isto a irritou a ponto de desferir um soco
com potência suficiente para que ele caísse deitado no sofá. Nina em seguida
foi para cima do amante mantendo a arma apontada para sua cabeça e
desavisadamente, no furor de sua raiva, sentou com a boceta colada no pau de
Tito, então um frêmito de calor subiu pelo seu corpo. O rapaz tinha sangue
correndo pelo canto da boca, mas não tirava o ar zombeteiro de seu semblante,
mais que isso, agora agarrava com força as coxas da policial; ele então sentiu,
na umidade repentina daquela boceta, o aviso involuntário do tesão súbito da
garota. A raiva aos poucos desaparecia do rosto de Nina, e um olhar entre
lascivo e desesperado assumia o controle daquela arma apontada para os
miolos da vítima. O pau de Tito começou a crescer enquanto seus olhares
travavam uma batalha de vida ou morte; então, um tesão nunca sentido
assumiu o corpo nu da moça e ela já não mais conseguindo mentir para si
105

mesma, enfiou o pau do agredido em sua boceta, enquanto com a outra mão,
mantinha a pistola apontada para sua cabeça. Começou a cavalgar
alucinadamente aquela ereção descomunal e atemporal que havia despertado
no indefeso. Tito viu os olhos da garota abandonar suas órbitas enquanto uma
baba desabava timidamente pelo canto da boca; aproveitou aquele desvario
alucinado para retirar delicadamente a arma da mão de Nina, que não percebeu
nada, continuando apontando sua mão vazia como se segurasse uma pistola
invisível. Tito então se sentou, enfiado entre as pernas da amante que agora
gritava: - Bandido filho da puta! Bandido filho da puta! Vou gozar! Vou gozar! –
ele a abraçou forte, enquanto Nina, histérica, o agarrava pelos cabelos e beijava
com sofreguidão, espalhando sangue por ambos os rostos suados. Os dois
gozaram freneticamente e depois permaneceram abraçados, enquanto Nina
tinha uma crise de choro. Tito removeu a moça com carinho e sem dizer
palavra, vestiu-se. Abriu a porta para sair, mas antes de partir olhou pra a
garota, encolhida no sofá, com os olhos vermelhos de choro pousados no nada
e o rosto lambuzado de sangue. Nem ligou para o fato de sair com seu rosto
também ensangüentado, apenas disse: - Cínica. – e se foi.
106

A FILOSOFIA DO DIABO
Cap 10 PARA AS LUZES ELÉTRICAS O FOGO DA VELA É LOUCO
Tito chegou em casa com uma estranha sensação de alegria. Mesmo a despeito de
toda a animosidade de Nina, tinha um sentimento de dever cumprido; um
delicioso dever nascido de suas mais íntimas fantasias. Desde que conhecera a
colega, fantasiara aquele estupro. Aliás, já com outras namoradas mantinha esta
fantasia sexual, porém, sempre a mantinha bem guardada nas gavetas do
subconsciente. Não foram poucas as vezes que estas idéias o excitaram em
momentos solitários, realmente solitários, quando a salvo de sua própria vigilância
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moral; vigilância esta que guardava nestas mesmas gavetas quando retirava suas
fantasias para estendê-las ao Sol. Uma troca justa, uma vez que em seus assuntos
de prazer as duas não poderiam coexistir concomitantemente. Desde que isso
começou, já se perguntava sobre os prós e contras da mímica moralista; porém,
sempre cedera a esta. Sempre se orgulhou de ser um rapaz bem comportado,
nunca quis se complicar, imagine! Se teria coragem de propor tais fantasias às suas
amantes? Tinha vergonha, vergonha moral. O que iriam pensar dele? Deixá-lo
encostar sua arma carregada no pescoço enquanto em posição submissa se
deixassem ser estocadas violentamente pela sua perigosa bestialidade? E se num
frêmito de tesão, querendo ir mais longe naquele teatro de luxuria desenfreada,
desse um tiro na cabeça da parceira? Sim, era uma proposta complicada, mas
hoje ele havia cansado, chega! Cansou de abrir mão das alegrias espontâneas e
urgentes do agora pela boa reputação de amanhã! Paciência! – pensou - Está feito!
Nina há de entender. Além do mais, ela mesma deu vazão a estranhos gozos,
assaltada de supetão pelas forças invisíveis de pulsões traiçoeiras e tesudas
incontroláveis. Ora vejam só! Vai saber do tesão de cada um? Acho que podemos
nos dar muito bem! – concluiu rindo. Incrivelmente, não sentia nenhum traço de
remorso. Por isso mesmo nunca intentara realizar isso antes, não se sentia seguro o
suficiente para agüentar as conseqüências em sua cabeça e fora dela. Fosse antes,
sua mente agora estaria formigando com as incômodas mordidas da culpa. Agora
não, não havia o que temer, sabia simplesmente que podia realizar o ato; e o fez.
Era sincero nisto, como era sincero em admitir que estava apaixonado pela colega,
sem problema nenhum. Começou a desvencilhar-se de suas roupas enquanto
caminhava rumo ao banheiro, e já chegando nu, olhou-se no espelho; encarou com
naturalidade o sangue ressequido em seu rosto e deu um sorriso. Depois, ficou um
bom tempo aproveitando uma ducha de água quente em seu corpo. Mais adiante,
depois de comer qualquer coisa, desabou na cama exausto, espreguiçou-se
malevolente e afundou sereno no sono.
***
Foi com uma alegria incontida que Tito abriu seus olhos no cenário sombrio e
alegre que tanto lhe agradava. Lá estavam todos aqueles personagens de sempre,
os odores de sempre, o sereno deslumbramento de sempre. Suas pálpebras
pesadas abriram-se acompanhadas de um riso que lhe saia das entranhas mais
108

profundas, um riso da mais pura alegria. Epaminondas estava em seu trono,
trepando freneticamente. A sua maravilhosa mulata oferecia a este sua suculenta
bunda enquanto o velho diabo, embora sentado, a puxava para si em gestos
bruscos e rápidos. A mulher gritava alucinadamente e o negrão arfava e gemia de
incontrolável prazer. Os seios fartos da mulher balançavam livres naquele frenesi,
oferecendo ao visitante uma deliciosa e voluptuosa visão. Epaminondas cravou
então seus olhos embriagados na bunda da amante e segurando-a com firmeza,
puxou-a para si em gestos firmes, entregando-se à loucura de um gozo
escandaloso, através do qual, podia-se calcular a desmesura do prazer que ele
atingira. Tito ficou quieto observando os dois personagens à sua frente; depois de
rápidos cochichos e algumas beijocas, a moça levantou-se, estava inteiramente
nua, e partiu serena, deixando seu amante totalmente ofegante e banhado em
suor. Epaminondas levantou-se, também estava inteiramente nu, e com a
dificuldade dos embriagados, vestiu seu imenso roupão negro de seda que
apanhara em um criado mudo. Retornou, desabando sentado sobre o trono,
serviu-se de vinho em uma vistosa taça de prata com estranhos arabescos que o
rapaz não pode decifrar; havia outra igual àquela ao seu lado; reparou também de
que a pira da mesa redonda central estava acesa. Na mesa das bebidas estavam o
crânio com a vela acesa no topo, e do lado apenas um crânio virado em forma de
taça. Epaminondas, percebendo que Tito olhava fixamente para estes dois objetos,
observou: - O que você vê é uma bela metáfora, não? – o rapaz continuou olhando
e o velho diabo prosseguiu – Dois crânios, dois destinos! Bem distintos, diga-se de
passagem. E então, meu amigo! Fez boa ‘viagem’, he,he... resolvi lhe aguardar
dando uma bela trepada, essa mulher tem uma bunda fantástica! Só de pensar nela
já fico doidão, meu irmão! Viu aqueles peitos? Hummm... delícia! Sou o homem
mais feliz do mundo, lhe garanto, e ademais, às vezes você demora um pouco a
recobrar os sentidos.
- Ah, - disse Tito rindo – vou lá saber que tipo de droga você usa para me
transportar ‘morto’ para cá?
- Ah, bom, – respondeu um Epaminondas brincalhão – você não vai querer que
lhe revele meus truques xamânicos, vai? Deixe o velho aqui com seus macetes e
aprenda os seus, porra! Bem, precisava realmente falar com você. Mas, sirva-se de
vinho! Convidados que não bebem me deixam nervoso. Em casa de embriagado,
manter-se sóbrio é uma desfeita imperdoável, há,há,há... beba, meu filho. – Tito
serviu-se de vinho e sentou-se no sofá. Deu um longo gole naquele néctar sereno
e comentou: - Adoro estar aqui, ah... estes nossos encontros! Esta embriaguez!
Estes aromas, esta visão, estes demônios maravilhosos e alegres! Quanta alegria,
amigo, quanta alegria!
- Pois é, meu velho, é sobre estas coisas que quero lhe falar. Ontem liguei para o
Santos, e o comuniquei de que meu telefone não estará mais disponível. Não irei
109

mais aos locais de crimes, nem porra nenhuma!É chegada a hora de parar. A partir
de agora vou me dedicar somente aos meus ofícios mais prementes, ou seja, meus
prazeres. Aliás, há muito eu já devia dedicar minha total atenção às coisas que
realmente me interessam; caralho! Canso muito nestas idas e vindas à superfície;
ter de submeter estes meus olhos acostumados à escuridão e às luzes dos círios, à
sombra e ao fogo, ter de submete-los à parca luz! Àquela luz artificial e anêmica!
Luz que não é luz! Não acredito que luzes sem fogo possam iluminar alguma coisa.
Até mesmo os seres sem graça que transitam sob essa claridade enganosa não me
divertem mais, se tornaram toscos demais, se fizeram mortos cedo demais. Não há
nada que possa me interessar no mundo dos sóbrios. É-me cada vez mais difícil
encontrar divertimentos fora do meu reino e o que não me causa riso não me
interessa!
- Ora, sábia decisão! – exclamou Tito, na esperança de que agora Epaminondas
pudesse dedicar-se com mais afinco àquela amizade que prezava tanto. Pensou em
festas infernais, em grandes orgias, em impagáveis bebedeiras cercados apenas por
seus exércitos de alegres demônios. Sentia a sensação de um egoísmo nutritivo, de
um egoísmo de demônios, que se reconhecem e que se deliciam com trocas de
presentes coloridos pelo Sol nascido de suas respectivas entranhas. Uma sensação
de felicidade tomou conta do jovem policial, mas esta não foi muito longe.
- Tem mais uma coisa, - disse Epaminondas – este é nosso último encontro. – o
rapaz sentiu de imediato, ruir toda sua empolgação. Não contava com aquilo,
embora soubesse que o negrão era alguém totalmente imprevisível; mesmo assim,
foi como se tivesse levado uma pedrada no coração. Decidiu que não iria fraquejar.
Epaminondas detestava isso, e seria uma homenagem ao velho diabo fazer uma
demonstração de força; mais que isto, sentia-se realmente mais poderoso e
embora triste, deveria compreender as razões do amigo. Apenas calou-se. – Veja, -
prosseguiu o negrão – quero apenas ficar só, não é nada pessoal. Além do mais,
você não se parece mais com aquele sóbrio ingênuo que eu trouxe aqui pela
primeira vez; consigo ver que deu o pontapé inicial nesse jogo fascinante da
autodescoberta. Mas é só o começo, há um mundo escondido em seus recantos
mais escuros, mais negros; só você pode chegar lá, mais ninguém. É preciso ter
coragem e você tem. Sei que iniciou viagens rumo ao desconhecido, parabéns!
Serão grandes encontros lhe garanto. No início, terrificantes, mas você terá sempre
de deixar claro quem manda no campinho! É o seu reino, meu irmão, reine! Todas
as forças da escuridão deverão vergar-se diante do Rei; e saiba, elas são
profundamente poderosas! Uma vez dominadas essas forças e transformadas em
poderes, o mundo é seu, meu velho! Há,há,há... um brinde! Ao mais novo demônio
na Terra! – os dois brindaram e beberam. Tito queria apenas prestar atenção ao
velho diabo, se era a última vez que se veriam, queria sorver tudo o que pudesse
de Epaminondas. E este prosseguiu – Você vai perceber rapidamente certos
110

truques que sempre estiveram aí, mas lhe eram invisíveis; o mais escancarado é
este: os sóbrios são adestrados para serem ingênuos, portanto, se deixam delinear
por idéias alheias, são desenhados por canetas que não são as suas próprias;
conheça as canetas e você conhecerá a intimidade das ‘almas’ deles todos. Quem
se deixa ler, não tem poder; é um óbvio. É só forma sem conteúdo! O ‘diabo’,
‘demônio’, ‘satã’ são as nomenclaturas com que eles coroam os singulares. Ser
singular é ser enigmático. Como se poderia ler esta criptografia íntima das pessoas
profundas e essenciais? Se elas mesmas costumam demorar muito tempo na
hermenêutica de si mesmas? Os óbvios não podem ler o que não compreendem,
então colam seus rótulos. Bem, pelo menos tentam. Mas você é um diabo, um
demônio, um satã! Saiba, essas pessoas foram algemadas há muito tempo por
argolas que prendem seus braços, o direito ao esquerdo, mantendo-os manietados
para que não saiam por aí pegando coisas; essas algemas chamam-se o ‘Bem’ e o
‘Mal’. Elas amam ficar manietadas e beijam essas algemas, mais que isso: idolatram
seus grilhões. Lembre-se também, que os sóbrios são frágeis, e as pessoas frágeis
tornam-se violentas com facilidade, principalmente se estão em bando. Enfim,
tome estas coisas que lhe digo apenas como conselhos, pois repito que não tenho
nenhum pendor para picareta.
- Pode ter certeza, – Tito experimentava um sentimento estranho, entre alegre e
decepcionado – você não tem idéia do que seus conselhos representam para mim.
Já percebi, pode acreditar, das dificuldades que me esperam, mas não as temo,
pelo contrário, as quero! Preciso muito, realmente, descobrir os meus demônios e
arregimentá-los à minha força. Já comecei a vasculhar minha sombra atrás destes
amigos terríveis, e lhe garanto, estou fascinado com o manancial de poder que eles
representam. Caramba! Estou realmente muito feliz! Nunca poderei me arrepender
de tê-lo conhecido, sei lá porque cargas d’água, eu senti esta necessidade maluca
de conviver com você, mas hoje percebo que algo na sombra gritou no momento
que o vi. Algo inconsciente, porém, com força suficiente para que eu enfrentasse
tudo e todos para conhecê-lo. Sim, tenha certeza, amigo, seus conselhos são ouro
para mim.
- Então beba, filhote! Porque o vinho é a eternidade da uva! E uva é a raiz da
embriaguez! Que delícia! Saiba meu caro diabo, não serão poucos os que tentarão
lhe persuadir com conversas fiadas, tais como: ‘nós não somos nada, somos um
ínfimo grão de areia neste universo’; é verdade, mas só a nós cabe escolher sermos
o grão ou a areia. Pense nisso. O que há de pensamento coletivo em você
rapidamente se transformará em seres fantasmagóricos e bizarros. A batalha
travada na sombra não é fácil, porém a vitória é o vinho dos vinhos! A força desses
seres é tremenda, mas quando você deixar bem claro quem manda, eles se
subtrairão respeitosos ao seu cetro! Lembre-se seu trono tem nome, chama-se
Centro. Nada poderá atingi-lo quando você assumir seu lugar em você! E essa
111

multidão de entidades anãs, convertida em alegres demônios, encontrará
finalmente sua razão natural, ou seja: servir ao seu Dono. Uma multidão alegre,
saída das sombras só para lhe servir. Sim, será um belo patrimônio, meu jovem, um
demoníaco e poderoso patrimônio! Basta observar os exemplos que a Natureza
nos oferece; veja uma árvore frondosa e sólida: ficamos admirados com seu
tamanho, solidez e beleza; nos deliciamos com seus suculentos e coloridos frutos, e
então nos perguntamos como essa majestosa irmã resistiu à todas as muitas
intempéries, de pé! Mas em seguida lembramo-nos de suas poderosas raízes!
Invisíveis a nossos olhos, porém firmes, agarradas ao solo nutridor. Todos a vêem,
porém, a fonte invisível de seu poder permanece oculta. As árvores sem raízes,
aquelas que caem com o vento feito paus secos, costumam ocultar machados,
talvez para usarem em momentos apropriados contra as ‘portadoras de anomalias’.
Você deverá ser muito esperto, muitas são as armadilhas no caminho, lembre-se:
de nada adianta estarmos livres, se nossos passos foram reduzidos ao tamanho de
nossa antiga cela! Desaparecem as paredes, mas não saímos do mesmo espaço
exíguo; então o conceito de ‘liberdade’ será apenas algo vazio, manobrado por
picaretas. Ser livre, na minha opinião, é andar e aprender que não há caminhos
para seguir, os únicos caminhos que podemos reconhecer como nossos, são os
deixados por nossas pegadas. Seremos então, agraciados por um vento fantástico,
fresco e louco! O vento das coisas incriadas, que vão querer encarnar-se através de
nossa imaginação. Nós, demônios, somos magos! Magos de nós mesmos! A
ninguém permitimos qualquer tipo de ilusionismo que tenha como finalidade
desviar-nos deste caminho alegre e lascivo, criado por nós e que conduz ao
encontro com a fonte criativa de nosso centro. Saiba, garoto! É um mundo de
delícias que o aguarda, faça tudo que tiver vontade! Dê vazão à sua carnalidade e
tenha muito tesão! A vida sem tesão não vele a pena, e lembre-se: desconfie do
que não lhe dá prazer. Meça as coisas pelo grau de sacrifício que exigem de sua
alegria! E nunca... nunca se acovarde ante as opiniões de sóbrios. Os sóbrios
querem lotar os seus cárceres para sentirem-se aliviados em suas dores, são
fervorosos adeptos do quanto mais, melhor. Mas somos os alquimistas da
existência! Nossas dores se transmutarão em demônios e estes em fonte de poder!
De prazer! De vida! Nosso ouro! Viaje muito, meu irmão! Use sua imaginação. Volte
no tempo, visite o futuro! Nada é impossível para uma imaginação poderosa! A
própria História se rende ao viajante, e oferece suas versões ocultas só reveladas
àqueles que as surpreendem através de seus porões. São experiências inenarráveis,
verdadeiras delícias que você terá de descobrir por conta própria, até porque, as
coisas narradas são os defuntos dos acontecimentos. Só a você cabe a fantástica
aventura! Há,há,há, bebamos vinho! Hummm... outro conselho: procure remover
com inteligência os obstáculos que por ventura venham a atrapalhar seus intentos.
A inteligência é uma espada afiada da qual não podemos abrir mão, aliada aos
112

instintos é uma arma poderosíssima! Quase sempre fatal! E saiba, muitas serão as
armas de que poderá dispor, desde que saiba onde encontrá-las. Dificilmente você
conseguirá alguma coisa seguindo ‘doutrinas’, ao fazê-lo você estará permitindo
que escrevam em seu espelho; e saiba, onde nos olhamos todos os dias não é nada
agradável encontrarmos uma caligrafia que não seja a nossa. Que os que não
sabem escrever adorem isso, tudo bem, são analfabetos de si; então qualquer
garrancho é letra! Mas você não poderá permitir que contaminem a fonte
permanente de vida, que tem o seu rosto, com o reflexo de rostos e palavras
mortas; você tem idéia do perigo de ingerir água contaminada por um cadáver? É
fatal. Por isso vemos a multidão de mortos em torno de nós, e não queremos nos
parecer com eles, somos demônios, caralho! Somos fogo! Somos carne! Carne
tesuda! Somos a nossa lascívia! Somos singulares! Somos embriagados! Somos
pensadores ardentes! Somos criadores insaciáveis! Somos os artistas do
impensado! Escultores de mundos! De mundos alegres e livres; mundos instintivos,
insanos, nutridos com o vinho de nosso próprio sangue! Não temos ‘alma’, temos
veias que pulsam vida! Não conhecemos o ‘bem’ nem o ‘mal’, detestamos a ‘moral’
e todos os seus deuses arautos, não usamos os sapatos apertados que nos
impedem de dançar! Não temos calos nos dedos, e adoramos pisar em terras
virgens, mergulhamos alegres em nossa própria sombra; o que assusta os mortos é
néctar para os vivos! Que os sóbrios curvem definitivamente suas cervizes ante a
vastidão do escuro, que se apeguem às luzes artificiais e fracas, exauridas há muito.
Assim prestam reverência ao que não compreendem, e se mantêm com suas
preferências mórbidas bem longe de sítios totalmente sãos. Esses pobres coitados
e suas mentes estagnadas na banalidade, mas sempre com suas pedrinhas nas
mãos para atirar em loucos, em artistas da vida, em escultores de futuros
impensados. Os sóbrios, sempre tão corretos, tão decoradinhos, tão ensaiadinhos,
tão iguaizinhos, tão desbotadinhos, tão coitadinhos e cotidianos; eles e suas
cartilhas, para que todos sigam esses seus predicados para sempre! De minha
parte, cansei, meu velho! Vão se foder! Larguei, estão ficando tão iguais e sem
graça esses sujeitos que nem me divertem mais! Assim não vale! He,he.Vou lhe
contar, houve uma época quando eu era menino ainda, que estava passando por
aquela fase de arregimentação do futuro adulto pelo medo. Cercaram-me com
seus fantasmas, não deixando espaço para que eu expandisse minha
individualidade; até aí tudo normal, como sempre acontece, porém, tão logo eu
decifrei as idéias que estavam por trás daqueles avatares invisíveis, caí na risada, e
olhe que eu era um garoto! Cercaram minha área de atuação mental com os
soldadinhos de chumbo imaginários de sempre, mas não funcionou, há,há,há... não
comigo, meu velho! Tentaram então, diante de minha insubordinação, enfiar minha
mente à força naquele capacete apertado chamado ‘Céu’, tentaram também
mortificar meus pensamentos com a camisa de força do dogma; mas tudo isso só
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serviu para me causar mais riso! Isso enfureceu mais ainda meus catequistas
sóbrios; foi então que esses tutores reducionistas escarafuncharam em sua sacola
religiosa e achando a pedra que julgaram mais injuriosa, me atiraram com raiva! Ela
tinha um nome: diabo! Foi amor à primeira vista! Desde esse dia eu percebi o que
essa máscara mística ocultava, ocultava a mim! Acho mesmo que nasci nessa hora.
É indescritível a alegria que senti; pensei: então é isso! Sou um diabo! Acho que
meus neurônios entraram em festa, porque passei dias e dias em alegria
incontrolável; é impressionante quanto uma criança fica feliz quando sua
identidade em formação, precocemente independente dos dogmas, encontra a
palavra certa para definir esta sensação de liberdade. Raivosos, os sóbrios me
atiraram suas setas envenenadas, embebidas nas mais terríveis maldições e
ameaças! Para isto, lhe garanto, suas imaginações funcionam! Para ameaçar seus
apóstatas são capazes de qualquer coisa, e ao fazê-lo, deixam à mostra o imenso
rabicho que carregam, confeccionado através de um mosaico sinistro, formado por
aspectos espantosos de maldições e danações eternas! Tentaram forçar a barra,
dando a entender que essas pestilências existenciais passavam ao natural, quase de
maneira atávica, mas comigo não colou! Que eles amem chafurdar nessas idéias
morais, o problema é deles, que vivam sob o jugo dos grilhões invisíveis, também;
só não venham esfregar suas doenças na minha saúde! Bem, resultou disso tudo
que me transformei em um cara muito risonho, em tudo achava motivos para a
graça e a piada, e isso é imperdoável numa sociedade tão séria. A seriedade é o
contrato social de maior valia entre os sóbrios. Sem o conceito de ‘seriedade’ tudo
ruiria, esse realmente é o golpe de misericórdia na verdadeira liberdade de
pensamento! As pessoas para serem importantes têm de ser ‘sérias’, até o humor
tem de ser feito com ‘seriedade’, todos precisam achar graça afinal. A verdadeira
risada, a demolidora, bota abaixo em um segundo este mundo organizado com
tanto esmero. É por isso que atribuem a gargalhada ao diabo! Porra, meu! Os
sóbrios são a raça mais cínica que já pisou sobre face da Terra! São o tipo de gente
que não hesita em matar, criar guerras, cruzadas, enfim, tudo em nome do ‘Bem’,
afinal são guerras ‘sérias’. Sob elevados valores duvidosos, os picaretas conseguem
convencer ingênuos a lutarem batalhas encarniçadas travestidas das mais ‘nobres’
e ‘altas’ aspirações patrióticas ou religiosas! O que esses pobres cegos não podem
ver, é que estão matando e morrendo pelos negócios de seus donos! Agem como
galos de rinha, inocentes úteis que pagam com sangue as fichas apostadas. E não
são poucas! Ora, meu amiguinho, me responda, que tipo de feitiço os picaretas
usam para convencer alguém de que sua carne, seu pensamento, sua vida, estarão
mais bem guardados sob as ideologias deles, picaretas, do que com os próprios
donos naturais dos corpos? É que esses corpos têm dono, e não são os seus
habitantes naturais. Do contrário, tenha certeza, não haveria contingente suficiente
para suas guerras. Há muito também, governos ‘sérios’ já teriam sido tirados a
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tapas de seus pedestais. Se cada um fosse dono de si, teria de haver uma grande
reengenharia social e todos teriam de conviver finalmente com as diferenças. Ia ser
um rebuliço do caralho! Só aí, creio eu, poderiam surgir ideólogos e seus
seguidores por decisão livre! De minha parte, detesto esse negócio de doutrina,
acho um perigoso moedor de carnes, se perde o homem, mas ganha-se o
seguidor! Porra, vão pra puta que pariu! A vida é extremamente valiosa para
tornar-se sóbria! Para entregarmos na palma da mão de picaretas! Eu não! Se um
picareta me agarrasse na palma da mão e a fechasse com força para que eu não
fugisse, se arrependeria amargamente, receberia um tiro na mão. Não se aperta um
homem com instintos assassinos. Um demônio! Um diabo! Digo-lhe tudo isto para
reforçar de que nada vale escorrer sua vida pela parca luz, se seu sangue não for
seu! Muitas são as tentativas de chupar nosso sangue, procuram qualquer coisa
exangue em nós para rotular de ‘alma’, pois então que o sangue do diabo seja
veneno para os não iniciados! Perscrutam nosso comportamento cutucando-nos
com suas varinhas de condão atrás dos vestígios que possa permitir com que se
apossem de qualquer coisa nossa; é difícil para eles entenderem algo que não
tenha réplica, que não se preste a ser planificado. Nunca ceda, porém não seja
intolerante, é sempre possível fazer troca com sóbrios, desde que se pese bem o
que entra e o que sai. É bom também que fale com sua voz, tudo o que é dito em
coro assume melodia, mas não diz nada que o corifeu não queira. Porra, irmão!
Fiquei com a boca seca! Tenho de beber, ufa! – levantou a taça para Tito – Tenho
certeza de que você vai curtir muito essa caminhada! E se não estiver divertida é
porque há algo errado. Saúde!
- Saúde! – Tito saudou em retribuição – ficara este tempo todo sorvendo os
conselhos do amigo, sentia-se seguro e alegre. No entanto, não tinha nada para
falar, queria apenas escutar o que o experiente demônio tinha a dizer. Sabia
realmente das delicias e perigos de andar com as próprias pernas e estava
convencido dos tesouros enterrados em seu inconsciente, e também das
maravilhas infindáveis que as futuras descobertas lhe proporcionariam. Tudo o que
pudesse levar deste último encontro era puro ouro para Tito. Epaminondas então,
bateu palmas duas vezes e voltando-se para o rapaz, falou: - Quero lhe dar um
presente, que tenho certeza, será muito útil quando você realizar seus rituais.
Lembre-se, não existem regras, os rituais devem nascer de sua livre e espontânea
vontade, se não, é imitação, e imitação é coisa decorada, não tem valor. Já lhe falei,
rituais são teatros, dramatizações, que representam a alegria de estarmos vivos,
muito vivos! São evocações e incorporações de nossas forças profundas, faça
sempre como achar melhor. – nisso, entrou o valete de Epaminondas trazendo
uma maravilhosa espada, entregando-a diretamente a Tito. Este exibiu então um
intenso brilho nos olhos e um sorriso incontinenti lhe brotou nos lábios, parecia
uma criança diante do presente sonhado. - É linda! – disse, mal disfarçando a
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agradável surpresa, pegou o mitológico objeto como se fosse feito do mais puro
ouro, não conseguia tirar os olhos da oferenda e o sorriso do rosto.
- O que acha? – perguntou o velho diabo, sorridente e satisfeito – me foi muito
útil, lhe garanto. Foi com ela que realizei minhas danças mais loucas, cortando os
véus que insistiam em pairar sobre minha liberdade de pensar. Com ela, rasguei os
céus que não eram os meus, e depois os meus, e depois despedacei qualquer coisa
que se interpunha entre eu e minhas fontes vitais e criativas; com ela derrotei
todos os exércitos que não empunhavam a bandeira com meu brasão! Com essa
espada fiz rolar as cabeças de seres insurgentes, que ainda teimavam em interpor
seus ‘nãos’ ao meu imenso e poderoso ‘sim’. Esse fantástico objeto possui um
imenso poder, o poder de simbolizar nossa força. Manuseie-a com ardor, um ardor
vital. Eu chamo essa arma de Espada da Vontade e do Poder! Uma vez empunhada
nada pode ficar à nossa frente, nada que seja obstáculo para nossos intentos. Ela
fere de morte nossos inimigos! Manuseie-a do seu próprio jeito, pois só assim
poderá chamá-la de sua! Aconselho-o a fazê-lo enquanto dança, dance do seu
jeito, faça da maneira que lhe proporcione maior alegria! De minha parte eu
adorava realizar minhas danças inteiramente pelado, era a metáfora que me
proporcionava mais alegria, mais leveza, era uma encenação mais condizente
comigo. Porém, faça como se sentir melhor, não existem regras, essa espada
despedaçou-as todas. Quando você dançar, perceberá que seus demônios entrarão
em festa, diabo adora a dança! Estarão todos com você, oferecendo-se alegres ao
empreendimento ao qual você se propõe, seja lá qual for! Ou simplesmente
dançar, não importa. Não existem outras vontades, existe somente a sua! Então...
bravo! Há,há,há, bebamos! Bebamos com alegria! – e ambos beberam alegres. Tito
estava exultante, não esperava aquela prenda fantástica! Epaminondas realmente
era um sujeito totalmente imprevisível. O policial procurou as palavras certas para
agradecer ao amigo, mas não as encontrando, fez aquilo que o velho diabo mais
gostava, falou com o coração.
- Não sei o que dizer... é o maior presente que ganhei na minha vida! – disse,
enquanto empunhava a espada e a erguia admirando pelo maravilhoso objeto; o
reflexo do crepitar do fogo dos círios dava vida à comprida e afiada lâmina, Tito
reparou também nos arabescos fantásticos da imensa guarda que lembrava algo
medieval, e o como da empunhadura ostentava a cabeça de um demônio risonho.
– Sim – disse Tito – muitos véus serão rompidos com esta maravilhosa lâmina!
- Mas atenção! – interrompeu Epaminondas – tenha cuidado para não
escorregar para palavras vãs e rituais vazios. Lembre-se: só é verdadeiro o que
nasce a partir de seus instintos mais profundos! Essa espada é um símbolo, cuide
para que não simbolize sentimentos vazios. Entenda ‘sentimento vazio’ como
qualquer um que não seja seu, não importando que carimbos recebam da vida
corriqueira! Que essa arma reduza a pó tudo o que não esteja de acordo com sua
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alegria ou com a consecução desta! É uma espada egoísta, não se presta a ser
compartilhada, nunca se esqueça disto; você pode oferecer tudo o que lhe sobra,
mas não pode compartilhar a estrada íntima que se dispõe a construir com seus
passos. Até porque, lhe garanto, você não conseguirá amortalhar nas palavras
cotidianas os sentimentos e aventuras etéreas que a solidão mística proporciona ao
viajante de si mesmo. Muitas revelações aguardam que você remova as pedras
azuis e cinzas que malandramente foram colocadas no início dessa jornada,
ocultando os caminhos para abismos negros que devem ser reclamados como
parte de seu reino. Jazem nesses abismos, as fontes de todo o poder! Que os
sóbrios os evitem e os temam, é problema deles, mas um demônio os ama! Veja:
para as luzes elétricas, o fogo da vela é louco! Para os supérfluos, o essencial é
dispensável. Cuidado também meu filho, com outra armadilha insidiosa, a
armadilha do ‘porque’. A imensa maioria faz as coisas ‘porque’. Lembre-se, colar
esta palavra nas atitudes é enfraquecê-las. Não caia nessa! Atrás de um porque
existem as explicações mais estapafúrdias e fantasmagóricas que se pode imaginar;
atrás de um porque existe toda uma cadeia de dominós unidos pelos mais
espantosos sentimentos e símbolos de fraqueza, fazendo com que as pessoas
atirem sob as costas das circunstâncias os motivos de seus fracassos e atitudes,
quando estas saem dos trilhos sóbrios. Elas diriam: - só cometi este ato ‘porque’
sou uma pessoa supérflua. Se eu fosse essencial, praticaria o ato como produto da
minha vontade, e esta seria toda a explicação a ser dada. Arrebente, garoto!
Arrebente com essa espada todos os porquês! Aja como Homem, faça; e assuma as
conseqüências do feito. E se for para existir um ‘porque’, que seja o ‘porque eu
quis!’. Enfim, que esse presente lhe seja de grande utilidade para romper com
muitas coisas e matar muitos fantasmas. E trepe muito meu filho, é a melhor
maneira de homenagear a vida! - Tito olhava atento para Epaminondas e
inconscientemente alisava a espada que estava em seu colo. – Você está livre, meu
irmão! – continuou o negrão – Faça o que quiser! Como quiser! He,he, façamos
uma libação a Dionísio, meu amado deus da embriaguez! – ergueu a taça no que
foi acompanhado pelo rapaz – E que você embriague sua mente do jeito que
quiser, se lhe der prazer, fará feliz a esse maravilhoso deus pagão!
- Sei lá... gostaria de lhe dizer tanta coisa – disse Tito depois de dar um gole no
delicioso vinho, sentia uma emoção diferente. Ser agraciado com a espada de
Epaminondas, juntamente com o fato de não vê-lo nunca mais lhe causavam um
sentimento híbrido, mistura de alegria e tristeza.
- Não diga nada, filhote! He,he... você terá muito o que dizer daqui por diante.
Porém é importante lembrá-lo de que demônios são metáforas de nós mesmos, os
livres, cuidado para não se exceder para fora disso e cair em teorias pueris. As
metáforas estão aí para que nos apossemos delas, só assim nos tem valor e
serventia, e não ao contrário, como acontece no mundo sóbrio. Fuma? – disse o
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velho diabo, oferecendo seu famoso charuto ao rapaz, que assentiu com alegria –
Epaminondas acendeu então o imenso charuto, dando em seguida grandes
baforadas preguiçosas; a fumaça misturava-se lentamente com a dos incensos,
realizando uma lenta dança espiralada, como se a fumaça perfumada dos incensos
estivesse há muito esperando por aquele encontro no ar saturado daquela sala,
iluminada por tantos fogos alegres e dançantes. Epaminondas esticou o braço até
Tito para que este apanhasse o charuto, o que o rapaz fez com indisfarçável
alegria. Fumou também. Enquanto isso Epaminondas levantou-se com imensa
dificuldade – Porra! que embriaguez do caralho, há,há,há... – comentou alegre. Em
seguida dirigiu-se à parede das máscaras de demônios e apanhou uma. Era uma
terrível máscara de um diabo risonho e assustador, seus imensos cornos pareciam
ser de ouro e eram muito brilhantes sob aquelas luzes vivas dos círios, em seguida
colocou-a em Tito, que permaneceu imóvel. Voltou a sentar-se em seu trono e
olhando para o rapaz mascarado exclamou: - Salve diabo! – e caiu em sonora
gargalhada. Tito começou a rir também, numa sensação crescente de alegria e de
incontido prazer. Epaminondas vestiu também uma máscara cornuda e os dois se
esvaíram em gargalhadas oriundas da mais pura alegria.
***
Foi um mergulho fascinante no escuro! Tito podia ouvir as gargalhadas de
Epaminondas durante a queda livre rumo àquele mundo fascinante do anfitrião.
Em seguida os dois já se encontravam em um local estupendo. Caminhavam em
um imenso deserto de areias azuis, iluminados pela claridade serena de uma
infinidade de luas, dos mais variados tamanhos; a maior brilhava feito um sol
sereno. Refletia a claridade do Sol de Epaminondas; este poderoso Sol, que se
mantinha escondido na vasta escuridão invisível daquele velho diabo negro. Tito
reparou nos poderosos cornos que seu amigo ostentava, maravilhosos cornos
pagãos que brotavam de sua cabeça negra iluminada por olhos de fogo! Percebeu
que ele próprio também portava belos e compridos chifres. Os dois andavam sob
aquela luz serena, caminhando inteiramente nus, e a sensação daquelas areias nas
solas dos pés lhe proporcionava uma etérea paz e aquela alegria só conseguida
quando se trilha por novos caminhos. Circundaram uma pequena montanha e
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depararam-se com uma cachoeira de águas negras cuja nascente parecia ser em
algum lugar naquele céu claro e sereno. Ela apenas desabava seu jorro como que
oriundo do nada, e esta torrente despencava de uma altura que parecia ser infinita.
Formava naquela areia azul, um profundo poço de águas escuras. Chegaram então
quase embaixo da queda e o diabo perguntou: - Sabe o que é isso, meu filho? –
Tito apurou o olfato e surpreso, exclamou:
- É vinho, caralho! vinho! Há,há,há.... – os dois riram e Epaminondas emendou:
- Vamos celebrar! Hoje é dia de celebração! – em seguida correu e mergulhou
ruidosamente naquele poço de delícias. O rapaz o imitou. Ambos então,
mergulhavam, saltavam, riam, bebiam daquela fonte com alegria. Ao redor,
formou-se uma pequena multidão de demônios risonhos e alegres, muitos deles
voando ao redor dos brincalhões. Aos poucos aquele povo foi aumentando até o
local se transformar na sede de uma balbúrdia infernal, lasciva e ruidosa; tudo
agora era uma grande festa. Belíssimas mulheres negras, brancas, vermelhas e
azuis abraçavam-se aos festeiros numa ciranda frenética de bocas, paus, bocetas,
dedos e línguas; transformando aquele vinho no néctar dos sentidos em êxtase!
Uma multidão de seres trepava, dançava e cantava em estonteante balbúrdia. Tito
se afogava em gozos e a inebriante gargalhada do velho diabo incendiava de
alegria aquela multidão alucinada. O rapaz sentiu-se embriagado como nunca
antes estivera, e só então, quando saciado de tantas alegrias, retirou-se
cambaleante indo sentar ao pé de um alto monte também formado por areias
azuis. Agora, apenas assistia sorrindo a grande festa; os imensos chifres de
Epaminondas destacavam-se dentre a multidão de seres infernais, era um demônio
lascivo e insaciável trepando sem parar, imerso naquelas águas mágicas e escuras.
Tito percebeu que realmente era difícil encontrar palavras para descrever aquele
tipo de sensação absolutamente fantástica e aquela paz que agora experimentava
sob aquela luz serena das luas. Também imaginou a dificuldade de fazer Nina
entender tudo aquilo. Talvez, seja impossível a um sóbrio entender esta
embriaguez desmesurada, portadora da alegria das alegrias; talvez os olhos
cotidianos não possam nunca atingir a distância da desintegração das coisas
criadas para brincar na construção das novas. Talvez nunca possam provar do
sabor deste riso desmedido que quando termina deixa este gosto de eternidade na
boca, a eternidade do aqui e agora conquistada pela nossa mais profunda alegria.
Alegria que mata a morte, porque ela gargalha que estamos vivos! Muito vivos! A
gargalhada de Epaminondas vinda daquela cascata de embriaguez juntamente
com os risos ruidosos, alucinados e alucinantes dos demônios lhe falavam mais do
que tudo o que já escutara em toda sua vida sóbria. Cantavam sobre a alegria
desta aventura inquietante, imprevisível, por vezes dolorosa, por vezes inebriante,
por vezes angustiante, mas sempre fascinante de estarmos vivos. Entregou-se
então ao cansaço, mas antes de desaparecer definitivamente do mundo de seu
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amigo diabo, sentiu tudo tremer. Tudo tremeu, abalado pela ruidosa alegria da
gargalhada do negrão.
FIM
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