11. Onde então estavas para mim e quão distante? Peregrinava longe de Vós,
excluído até das bolotas dos animais imundos, com que eu os alimentava
102. Quanto
melhores na verdade eram as fábulas dos gramáticos e poetas do que aqueles enganosos
laços !
Com efeito, os versos, o canto e o "vôo de Medéia" são certamente mais úteis que
os cinco elementos do mundo
103, coloridos de mil modos, em razão dos cinco antros de
trevas, que, além de não existirem, matam a quem neles acredita. Porém à poesia e ao
verso transformo-os em delicioso alimento do meu espírito. Além disso, ainda que
cantasse o "vôo de Medéia", contudo, não afirmava a sua autenticidade, e, mesmo ao
ouvi-lo cantar, não lhe dava crédito. Mas — ai! ai de mim! — acreditei nos erros dos
maniqueístas
104. Por que passos ia descendo até ao profundo do inferno, trabalhando e
consumindo-me com a falta da verdade, quando eu Vos procurava!
Meu Deus, a Vós o confesso, a Vós que de mim Vos compadecestes quando
ainda Vos não conhecia, quando Vos buscava não segundo a compreensão da inteligência,
mas segundo o raciocínio da carne.
Vós, porém, éreis mais íntimo que o meu próprio íntimo e mais sublime que o
ápice do meu ser
105! Encontrei aquela mulher audaz e desprovida de prudência, enigma de
Salomão, assentada à porta numa cadeira, a dizer:
"Comei à vontade o pão tomado às escondidas e bebei a doçura da água
roubada
106". Ela me seduziu, porque me encontrou fora de mim, a habitar nos olhos da
minha carne e a ruminar o que por eles tinha devorado.
102
Alusão à parábola do filho pródigo. (N. do T.)
103
Os cinco elementos eram: fumo, trevas, fogo, água e vento. Do fumo nasceram os bípedes; das trevas, as serpentes; do fogo, os
quadrúpedes; da água, os animais que nadam; e do vento, as aves. (Santo Agostinho, De Haeresibus, cap. XLVI, Opera Omnia, tomo X, 3.
a
edição de Veneza, 1797.)
104
O maniqueísmo espalhou-se principalmente pela Pérsia. Egito, Síria, África do Norte e Itália. Esta seita foi fundada por Maniqueu (ou
Manés), o qual , perseguido pelo rei e magos do seu país, a Pérsia, teve de refugiar-se na Mesopotâmia. Voltou à pátria, onde foi esfolado e
atirado às feras.
O maniqueísmo misturava as doutrinas de Zoroastro com o cristianismo. Eis os pontos principais da sua doutrina: Desde toda a
eternidade existem dois princípios, o do bem e o do mal. O primeiro, que se chama Deus, domina o reino da luz, e Ele mesmo é luz
imaculada, que só pela razão e não pelos sentidos se pode perceber. O segundo chama-se Satanás, rei das trevas, e é mau quanto à sua
natureza, pois é matéria infeccionada.
Ambos comunicam a sua substância a outros seres, que são bons ou maus conforme a sua origem. Houve luta entre os reinos da
luz e das trevas. Os demônios arrebataram partículas de luz. Satanás gerou Adão e comunicou-lhe essas partículas, que seriam as almas dos
homens.
Deus, para libertar a luz do cativeiro da matéria, criou, por intermédio dos espíritos antagonistas dos demônios, o Sol e a Lua, os
astros e a terra. Esta é de matéria inteiramente corrompida.
O homem compõe-se de três partes: de corpo, oriundo do mal, de espírito, oriundo de Deus, e de alma insensível, cheia de maus apetites e
dominada por Satanás. Deus enviou Cristo para salvar os homens. O Espírito Santo, menor que o Filho, também de substância puríssima,
age beneficamente, ao contrário dos demônios, que só provocam calamidades. Cristo tomou um corpo aparente, e por isso a sua mor te não
foi verdadeira. Maniqueu dizia-se o enviado de Deus para completar a obra de Cristo. Os maniqueístas acreditavam na purificação das
almas através de diversos corpos. Deviam castigar o corpo e abster-se, quanto possível, da matéria. Mas os vícios pululavam entre eles... A
seita maniqueísta, para imitar o Colégio Apostólico, tinha à frente um chefe, seguiam-se-lhe doze ministros, setenta e dois bispos, e, por fim,
os diáconos e presbíteros. Celebravam missa sem vinho, festejavam o domingo,Sexta-Feira Santa e o dia de aniversário da morte de Manes.
(Cf. De Haeresibus, cap. XLVI). (N. do T.)
105
Admire-se esta síntese genial acerca da presença de Deus na nossa atividade psicológica. A estas metáforas que Santo Agostinho
emprega para sugerir a idéia do Transcendente alude o filósofo Blondel em L'Action, T. II, Paris, 1936. p. 515. (N. doT.)