176 A POÉTICA DO DEVANEIO
do olhar vivo, devaneio que se anima num orgulho de ver, de
ver claro, de ver bem, de ver longe, e esse orgulho de visão é
talvez mais acessível ao poeta que ao pintor: o pintor deve pintar
essa visão mais elevada, o poeta se limita a proclamá-la.
Quantos textos não poderíamos citar que afirmam ser o olho
um centro de luz, um pequenino sol humano que projeta a sua
luz sobre o objeto observado, bem observado, numa vontade de
ver claramentel
Um texto assaz curioso de Copérnico pode, por si só, ajudar-
nos a propor uma cosmologia da luz, uma astronomia da luz.
Sobre o Sol, Copérnico, esse reformador da astronomia, escreve:
"Alguns o chamaram a pupila do mundo, outros o Espírito (do
mundo), outros ainda o seu Reitor. Trismegisto chama-o Deus
visível. A Electra de Sófocles denomina-o onividente."19 Assim,
os planetas giram ao redor de um Olho de Luz, e não de um
corpo que os atrai pesadamente. O olhar é um princípio cósmico.
Mas nossa demonstração será talvez mais decisiva se utilizar-
mos textos mais recentes, mais nitidamente marcados pelo orgu-
lho de ver. Numa Oriental de Mickiewicz, um herói da visão excla-
ma: "E eu fixava com altivez as estrelas que fixavam em mim
seus olhos de ouro, pois naquele deserto elas só viam a mim."20
Num ensaio de juventude, Nietzsche escreve: "... a aurora
brinca no céu ornada de múltiplas cores... Meus olhos têm um
brilho totalmente diverso. Receio que eles façam buracos no
céu"21.
Mais contemplativa, menos agressiva é a cosmicidade do olho
em Claudel: "Podemos", diz o poeta, "ver no olho uma espécie
de sol reduzido, portátil, portanto um protótipo da faculdade
de estabelecer um raio que vai dele a qualquer ponto da circunfe-
rência."22 O poeta não podia deixar a palavra raio à tranqüilidade
geométrica. Precisava dar-lhe sua realidade solar. Então um olho
de poeta é o centro de um mundo, o sol de um mundo.
19. Copérnico, Des révolutions des orbes celestes, introdução, tradução e notas
de A. Koyré, Paris, Alcan, p. 116.
20. Mickiewicz, op. cit., t. I, p. 82.
21. Richard Blunck, Frédéric Nietzsche. Enfance et jeurusse, trad. francesa de
Eva Sauser, Paris, Corrêa, 1955, p. 97.
22. Paul Claudel, Art poétique, p. 106.