126 CRÍTICA,DA NÃO-LIBERDADE
das, poderão ser reconciliadas novamente; se a Razão,
enriquecida mas mudada por dois séculos de explosão
científica, poderá agora reivindicar o seu poder crítico
e a sua potência para realizar a emancipação do homem.
O próprio êxito das ciências positivas, o aumento tre-
mendo na capacidade técnico-instrumental da humani-
dade, manifestou-se no surgimento de uma civilização
tecnológica a qual, construída por unidades altamente
especializadas e autônomas, se separou da sua fonte: a
atividade humana informada e objetivada; e que não pre-
cisa, para a sua sobrevivência e crescimento, de ser pene-
trada no seu todo pela consciência humana e refletida
num conhecimento universalmente distribuído. Tornou-se,
portanto, "como" a natureza, no sentido de ser indepen-
dente do conhecimento humano e da consciência — ao
menos um conhecimento e uma consciência que se refle-
tem diretamente sobre ela como uma totalidade, a fim
de orientar a sua atividade. A ciência positiva, contri-
buindo para a habilidade técnico-instrumental especiali-
zada, só pode colocar novos tijolos no muro cognitivo que
separa o sistema autônomo da civilização dos homens que
dependem cada dia mais dela para a sua existência. O
positivismo, lutando por assegurar para tal ciência a po-
sição de conhecimento monopolístico, concorre ainda
mais para a dependência humana, combatendo feroz-
mente todas as tentativas para tornar esse muro pene-
trável ao olho humano. Parece, portanto, que o interesse
da emancipação humana, o desejo de controlar conscien-
temente o curso da história humana, pode não ser ade^
quadamente servido se a atitude, cognitiva, positivista-
mente informada, retiver o seu monopólio. Nas palavras
de Habermas:
isto só pode ser alterado por meio de uma mudança no
estado da própria consciência, por meio do efeito prático
de uma teoria que não promova a manipulação das coisas
e das reificações, mas que, ao invés, promova o interesse
da razão no estado adulto do homem, na autonomia da
ação e na libertação de todo dogmatismo. Isto só pode
ser atingido por meio das idéias penetrantes de uma crí-
tica persistente.
A questão consiste, porém, em saber como tal crítica
pode legitimar-se a si mesma, dentro da civilização infor-
mada pela linguagem positivista em ascensão.
RAZÃO E TÉCNICA EMANCIPADORA 127
Mais uma vez, como nos tempos do iluminismo, a
razão que se propõe ser crítica e, portanto, apoiar e promo-
ver o processo da emancipação, tem que enfrentar o sens®
comum como o seu adversário mais poderoso. Com o senso»
comum, refletindo a falta de autonomia que define ai
existência diária, é a razão, aspirando a uma responsa-
bilidade adulta e à libertação da ação humana, que estás
sujeita ao ridículo e à refutação no campo da evidência.
Há pouco na experiência do senso comum que possa ga-
rantir esperança. Pelo contrário, a totalidade da rotina
diária parece expor a sua ingenuidade e desacreditar as
suas promessas. À razão emancipadora, desde o princípio;,
é negado o benefício de uma evidência não organizada,,
espontânea, comparável à que desfruta o senso comum.
Parece, portanto, infundada, desenraizada, achacada por
todas as fragilidades que o senso comum, articulado na?
positivismo, põe como o mais odioso dos pecados que DÍ
conhecimento pode cometer — a fantasia, o utopismo, o»
irrealismo. Na verdade, para legitimar as suas pretensões,,
esta razão tem que avançar para além do senso comum
e desafiar a própria existência diária que torna o sensoi
comum tão placidamente, senão tão nesciamente, segura
da sua legitimidade. A razão emancipadora não compete;
simplesmente com outras teorias, as quais, como a ciência,
da não-liberdade, ou a sua crítica, tentam somente arti-
cuíar o que a experiência do senso comum já de si dá,
aos homens. Nega temerariamente a validade da própria
informação, apresentando-a como inconclusiva, parcial»
historicamente limitada, como o reflexo de uma existên-
cia mutilada, truncada. Sua luta não é com o senso-
comum mas com a prática, chamada realidade social, que
lhe está subjacente. A razão proclama a realidade mesma»
como não verdadeira. Sua luta contra o senso comum é,,
portanto, não que o senso comum erra Co senso comunis
nada tem contra ser corrigido; também ele procura ser
coerente e gosta da sensação de ser um só com a lógica),,
mas que na verdade transmite uma experiência que, emi
si mesma, é falsa, uma vez que nasceu, tal como é, da.
supressão do potencial humano. A consciência do senso»
comum, considerada como tal, não é falsa; mas reflete-
fielmente a existência que desfigura o potencial humano
genuíno. Daí que a razão emancipadora vá além de uma,
crítica meramente epistemológica do senso comum.