"Tento ser paciente, Filo - respondeu Maria. - De que adianta viver
reclamando, querendo ser o que não somos? Aprendo muito nessa senzala, com
essa vida".
"Você, Maria, sempre fala esquisito. Aprende! O que pode aprender como
escrava? A carpir, lavar roupas, ter filhos?" - Indagou Filo.
"É verdade, Maria - falou Jacinta. - Você fala muitas coisas esquisitas que
não entendo. É tão boa e conformada".
"Não falo nada de estranho - replicou Maria- É que sonho sempre..."
"Sonhos esses bem estranhos" - falou Filo.
"Também os acho estranhos - repetiu Maria. - Sonho sempre que já fui
uma sinhá, passei a vida toda sem fazer nada, nem de bom, nem de mau, uma
preguiça só. Esqueci de trabalhar, ser útil, e sofri por isso. Agora, como negra e
escrava, trabalho, ajudo os outros, os doentes, benzo, faço chás que são remédios
que curam, sinto-me útil e não temo a morte, estou tranqüila. Aprendo sim, Filo,
mesmo forçada, trabalho muito".
"Se seus sonhos são verdadeiros, você já foi uma sinhá. E agora prefere ser
escrava. Quer continuar sendo uma?" -Perguntou Filo, confusa.
"Não sei explicar direito - respondeu Maria. - Certamente que eu queria ser
uma sinhá, ter roupas bonitas, me alimentar bem, ter um quarto só para mim. Mas
sinto que já fui uma e que tudo passou, que todo o conforto que tive não me serviu
de nada. A morte é para todos e quando ela vem modifica tudo. Morre pobre,
morre rico. Nosso ex-sinhô não morreu? Meu pai escravo não morreu? Tudo o que
nasce morre, temos uma alma e vamos com certeza continuar vivendo. E acho que
aquele que é preguiçoso, nada fez de útil, sente-se vazio, triste e aborrecido, logo,
infeliz. Já aquele que foi útil sendo sinhô ou escravo está contente, esse
contentamento vem lá do íntimo, da alma. É o que sinto nos meus sonhos, eu,
como sinhá, tinha tudo, mas era infeliz, vazia, e agora que nada tenho estou
satisfeita comigo, tranqüila, e sei que serei feliz".