E isso nunca lhe fez mossa, fosse lá o que fosse. Ele talvez o
reconhecesse, ou o ignorasse, ou o jogasse no chão, ou fizesse qual
quer óutra coisa, mas nunca se levantou para sair. Ã s vezes ficava
muito zangado, às vezes chorava, às vezes ria-se, o certo é que reagia.
Tudo o que eu fizesse provocava nele uma reação, mas ele não saía.
E eu não chegava a compreendê-lo, porque não conhecera outra coisa.
E tentava descascar outra camada, para colocar em cima da primeira.
Recebia uma verdadeira reação dele, ora boa, ora menos boa, mas
o caso é que ele ficava e isso era importante.
Depois de vários meses, foram as crianças que o levaram para
casa! E durante algum tempo, de manhã, ele saltava da cama e ia
dormir nó sofá, ou scúa e voltava para a casa dele às quatro ou cinco
horas da madrugada — estacionando o carro um ou dois quarteirões
mais adiante, e coisas assim. E quanto mais forte e verdadeiro se
tornava o nosso relacionamento, tanto maior coragem tínhamos para
deixar que o mundo nos visse vivendo juntos. Importava muito me
nos o juízo que jaziam de nós que d maneira como nós nos sentíamos.
Veio’, em seguida, um ponto realmente decisivo, uma estranha ex
periência. Estávamos juntos havia quase um ano, o que me parecia ina
creditável. Como foi que isso funcionou naquela vizinhança eu não sei,
mas sei que funcionou. E muita coisa se deveu à maneira como eu me
sentia a respeito de mim mesma. E à maneira como nós nos sentíamos
a respeito de nós mesmos. O certo é que Joe saíra da cidade —- ele
viajara a negócio e eu ficara em casa — as crianças estàvam dor
mindo e eu, fia sala de estar, via televisão. O aparelho estava diante
de mim, do outro lado da sala, e perto dele havia uma janela, uma
janela grande, de correr. Normalmente, eu mantinha as cortinas cer
radas mas, naquela noite, não as fechara, de modo que, aò olhar para
a TV, vi o meu reflexo na janela. E tive uma espécie de conversa co
migo mesma, uma conversa muito importante para mim. Não sei
se você pode ouvir o que estou dizendo, mas foi niais ou menos assim:
“Alô! A í está você, com trinta e quatro anos de idade, levando uma
vida muito diferente daquela que esperava”. Eu sempre tivera da
vida uma imagem muito irreal. Queria casar, instalar-me, ter seis fi
lhos, Deus me livre!, criá-los e viver feliz para sempre. Parecia um
sonho simples e perfeitamente razoável. Na realidade, porém, as coi
sas tinham sido bem diversas. Eu conhecera um homem, e pensava
tê-lo amado;% pensava ter sido correta, franca e sincera, e a coisa, na
verdade, não funcionara. Houvera tanta infelicidade! Eu tivera muitas
doenças, uma porção de problemas com meus filhos, não fora capaz
de enfrentar a vida. Eu ignorava tudo a respeito dela e essa igno
rância, sem dúvida, fora devastadora. Â vida, para mim, se parecera
muito còm um inferno.
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