Coletânea Carlos Drummond

izabellemoreno315 2,267 views 14 slides May 04, 2017
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About This Presentation

Vários textos de Drummond selecionados.


Slide Content

1. VÓ CAIU NA PISCINA

Noite na casa da serra, a luz apagou. Entra o garoto:
– Pai, vó caiu na piscina.
– Tudo bem, filho.
O garoto insiste:
– Escutou o que eu falei, pai?
– Escutei, e daí? Tudo bem.
– Cê não vai lá?
– Não estou com vontade de cair na piscina.
– Mas ela tá lá...
– Eu sei, você já me contou. Agora deixe seu pai fumar um cigarrinho descansado.
– Tá escuro, pai.
– Assim até é melhor. Eu gosto de fumar no escuro. Daqui a pouco a luz volta. Se não voltar, dá no mesmo.
Pede à sua mãe pra acender a vela na sala. Eu fico aqui mesmo, sossegado.
– Pai...
– Meu filho, vá dormir. É melhor você deitar logo. Amanhã cedinho a gente volta pro Rio, e você custa a
acordar. Não quero atrasar a descida por sua causa.
– Vó tá com uma vela.
– Pois então? Tudo bem. Depois ela acende.
– Já tá acesa.
– Se está acesa, não tem problema. Quando ela sair da piscina, pega a vela e volta direitinho pra casa. Não
vai errar o caminho, a distância é pequena, você sabe muito bem que sua avó não precisa de guia.
– Por quê cê não acredita no que eu digo?
– Como não acredito? Acredito sim.
– Cê não tá acreditando.
– Você falou que a sua avó caiu na piscina, eu acreditei e disse: tudo bem. Que é que você queria que eu
dissesse?
– Não, pai, cê não acreditou ni mim.
– Ah, você está me enchendo. Vamos acabar com isso. Eu acreditei. Quantas vezes você quer que eu diga
isso? Ou você acha que estou dizendo que acreditei mas estou mentindo? Fique sabendo que seu pai não
gosta de mentir.
– Não te chamei de mentiroso.
– Não chamou, mas está duvidando de mim. Bem, não vamos discutir por causa de uma bobagem. Sua avó
caiu na piscina, e daí? É um direito dela. Não tem nada de extraordinário cair na piscina. Eu só não caio
porque estou meio resfriado.
– Ô, pai, cê é de morte!
O garoto sai, desolado. Aquele velho não compreende mesmo nada. Daí a pouco chega a mãe:
– Eduardo, você sabe que dona Marieta caiu na piscina?
– Até você, Fátima? Não chega o Nelsinho vir com essa ladainha?
– Eduardo, está escuro que nem breu, sua mãe tropeçou, escorregou e foi parar dentro da piscina, ouviu?
Está com a vela acesa na mão, pedindo para que tirem ela de lá, Eduardo! Não pode sair sozinha, está com a
roupa encharcada, pesando muito, e se você não for depressa, ela vai ter uma coisa! Ela morre, Eduardo!
– Como? Por que aquele diabo não me disse isto? Ele falou apenas que ela tinha caído na piscina, não
explicou que ela tinha tropeçado, escorregado e caído!
Saiu correndo, nem esperou a vela, tropeçou, quase que ia parar também dentro d’água.
– Mamãe, me desculpe! O menino não me disse nada direito. Falou que a senhora caiu na piscina. Eu pensei
que a senhora estava se banhando.
– Está bem, Eduardo – disse dona Marieta, safando-se da água pela mão do filho, e sempre empunhando a
vela que conseguira manter acesa. – Mas de outra vez você vai prestar mais atenção no sentido dos verbos,
ouviu? Nelsinho falou direito, você é que teve um acesso de burrice, meu filho!

ANDRADE, Carlos Drummond de. Vó caiu na piscina. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1996.

2. CONSELHOS DE UM VELHO APAIXONADO

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos,
preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento, houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta:
pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d'água neste
momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.
Se o 1º e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a
apertar o coração, agradeça: Algo do céu te mandou um presente divino : O AMOR.
Se um dia tiverem que pedir perdão um ao outro por algum motivo e, em troca, receber um abraço,
um sorriso, um afago nos cabelos e os gestos valerem mais que mil palavras, entregue-se: vocês foram
feitos um pro outro.
Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu
sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar
com ela em qualquer momento de sua vida.
Se você conseguir, em pensamento, sentir o cheiro da pessoa como se ela estivesse ali do seu lado...
Se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo ela estando de pijamas velhos, chinelos de
dedo e cabelos emaranhados...
Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a
noite...
Se você não consegue imaginar, de maneira nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado... Se você
tiver a certeza que vai ver a outra envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo
louco por ela...
Se você preferir fechar os olhos, antes de ver a outra partindo: é o amor que chegou na sua ida.
Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor
verdadeiro.
Às vezes encontram e, por não prestarem atenção nesses sinais, deixam o amor passar, sem deixá-lo
acontecer verdadeiramente. É o livre-arbítrio.
Por isso, preste atenção nos sinais.
Não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: o AMOR !!!
Ame muito...muitíssimo...


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

3. VIÚVA LOURA

- "Viúva, 21 anos..."
- Tadinha. A vida é isso.
- "Loura..."
- Melhorou.
- "Fazendeira, rica..."
- Epa, muda completamente de figura.
- "Pertencente a tradicional família mineira..."
- Corta essa!
- "Recém-chegada do interior..."
- Então, não custa sondar a barra.
- "Procura companhia masculina..."
- Ainda bem que é masculina. Tou às ordens.
- "Que seja jovem..."
- Você acha que 38 anos está na pauta?
- "Bem intencionado..."
- Nunca fui outra coisa na vida.
- "De fino trato..."
- Não é por me gabar, mas...
- "Conhecedor dos pontos pitorescos do Rio..."
- Que é que ela entende por pontos pitorescos? Eu
prefiro pontos estratégicos.
- "Para passeios e ..."
- Etc., lógico.
- "Futuro compromisso matrimonial..."
- Corta! Corta!
- É mesmo.
- Aliás, eu não tenho mais de 38. Tinha, semana
passada.
- E rica... Rica de que? Talvez de predicados apenas.
- Poxa, até parece que você está querendo a viúva
pro seu bico. Pera aí, mau- caráter.
- Eu? Vê lá se eu vou nessa onda de anúncio. Tou
prevenindo pra você não se grilar. Viúva, mineira,
loura... Se é mineira, não deve ser loura. Se é loura. É
artificial. Se é artificial...
- Deixa a viuvinha ser loura e mineira, deixa.
- Olha, eu conheci uma loura que, além de outros
negativos, era careca.
- Ora, peruca resolve.
- Sei não, mas tudo isso junto- mineira, viúva, loura,
21 anos, rica...
- Que é que tem?
- É exagero. Não precisava Ter tantas qualidades.
- Foi uma graça de Deus.
- Você não merece tanto.
- Será outra graça de Deus.
- Deus não deve ser assim tão desperdiçado com
suas graças.
- Lá vem você querendo dar instruções ao Altíssimo.
Perde essa mania.
- Bom, mas você não sabe que mineiro esconde
milho até de monjolo?
- Continua.
- "Cartas com sigilo absoluto..."
- Evidente.
- "Indicações pessoais..."
- Minha ficha é mais limpa do que caixa d'água de
edifício quanto o síndico vai ao terraço.
- "E fotos..."
- Arrgh! Só tenho 3x4, muito fajuta. Mas tiro de
calção, frente, perfil e fundos.
- "Para a portaria desse jornal, sob n° 019 834."
- Pera aí. Tou anotando. 019?
- 834.
- Legal. 834 é o número de meu edifício, 19 é pavão,
que tem a perna dourada. Lê mais.
- Já li tudo, ué.
- Lê outra vez. Repete.
- Vai decorar?
- Vou gravar melhor na nuca, vou raciocinar em
bloco, vou...
- Se habilitar, né?
- Correto.
- Calma, rapaz. Sabe lá que espécie de viúva é essa?
- Vou ver pra conferir.
- Pode nem ser viúva.
- E daí?
- Diz que tem 21 anos, mas quem garante que não é
modéstia? Às vezes tem três vezes 21.
- Então você admite que ela é mineira.
- E que cria galinha sem ração, na base da
parapsicologia?
- Também sou mineiro, uai.
- E nunca me confessou. Eu jurava que você fosse
capixaba.
- Fui. Questão de limites, minha terra passou pra
banda de cá. Não espalha, sim?
- Me tapeou esse tempo todo.
- Esquece.
- Vai ser dura a parada: mineira loura versus mineiro
mascarado.
- Fica em família, né?
- A tradicional?
- As duas. Eu na minha, ela na dela.
- Agora sou eu que digo: tadinha.
- Por quê? Se ela botou anúncio, quer transar. Eu
transo. No figurino.
- É verdade que tem muito carioca por aí, muito
paulista, muito nortista, espiando maré. Talvez você
chegue tarde.
- Duvido. Você sabe que nessas coisas sou meio
Fittipaldi. Comigo é Fórmula-1.
- Mineiro contando prosa? Nunca vi isso.
- Bem, mineiro é capaz de contar prosa só pra
esconder que é mineiro...
- Chega, amizade, você já ganhou a viuvinha com
fazenda e tudo, podes crer!
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

4. COMO COMECEI A ESCREVER

Aí por volta de 1910 não havia rádio nem televisão, e o cinema chegava ao interior do Brasil uma vez por
semana aos domingos. As notícias do mundo vinham pelo jornal, três dias depois de publicadas no Rio de Janeiro.
Se chovia a potes, a mala do correio aparecia ensopada, uns sete dias mais tarde. Não dava para ler o papel
transformado em mingau.

Papai era assinante da Gazeta de Notícias, e antes de aprender a ler eu me sentia fascinado pelas gravuras
coloridas do suplemento de Domingo. Tentava decifrar o mistério das letras em redor das figuras, e mamãe me
ajudava nisso. Quando fui para a escola pública, já tinha a noção vaga de um universo de palavras que era preciso
conquistar.

Durante o curso, minhas professoras costumavam passar exercícios de redação. Cada um de nós tinha de
escrever uma carta, narra um passeio, coisas assim. Criei gosto por esse dever, que me permitia aplicar para
determinado fim o conhecimento que ia adquirindo do poder de expressão contido nos sinais reunidos em
palavras.

Daí por diante as experiências foram se acumulando, sem que eu percebesse que estava descobrindo a
leitura. Alguns elogios da professora me animavam a continuar. Ninguém falava em conto ou poesia, mas a
semente dessas coisas estavam germinando. Meu irmão, estudante na Capital, mandava-me revistas e livros, e me
habituei a viver entre eles. Depois, já rapaz, tive sorte de conhecer outros rapazes que também gostavam de ler e
escrever.

Então começou uma fase muito boa de troca de experiências e impressões. Na mesa do café-sentado ( pois
tomava-se café sentado nos bares, e podia-se conversar horas e horas sem incomodar nem ser incomodado ) eu
tirava do bolso o que escrevera durante o dia, e meus colegas criticavam. Eles também sacavam seus escritos, e eu
tomava parte nos comentários. Tudo com naturalidade e franqueza. Aprendi muito com os amigos, e tenho pena
dos jovens de hoje que não desfrutam desse tipo de amizade crítica.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

5. MARGARIDA

A garota em êxtase brandiu o postal que recebera do namorado em excursão na Grécia :
- Coisa mais linda! Olha só o que ele escreveu: "Eu queria desfolhar teu coração como se ele fosse a mais
margarida de todas as margaridas. "Marquinhos é genial, o senhor não acha?
- Pode ser que seja, não conheço Marquinhos. Se bem que antes da era Pierre Cardin, genial era Dante, Da Vinci,
Einstein, outros assim. Mas essa frase não é de Marquinhos.
- Não é de Marquinhos?! Tá com a letra dele, assinada por ele.
- Estou vendo que assinou, mas é de Darío.
- Quem? O Darío, do Atlético Mineiro? Sem essa.
- Não minha florzinha, Darío, Rubén Darío, o poeta da Nicarágua.
- Não conheço. Então Rubén Darío falou para Marquinhos e Marquinhos
- Achou bacana e pediu emprestado a ele?
- Tenho a impressão que o Marquinhos não pediu nada emprestado a Rubén Darío. Tomou sem consultar.
- Como é que o senhor sabe?
- É muito difícil consultar o Darío.
- Por quê? Ele não dá bola para gente? Não gosta da mocidade? É careta?
- Não é nada disso. O Darío não é encontrado em parte alguma.
- Ah, ele gosta de bancar o invisível, né?
- Não creio que goste, mas é exatamente o caso dele: invisível.
- Não dá para entender.
- Vai entender logo. Ele morreu em 1916.
- Ah! E como é que o Marquinhos descobriu essa margarida, me conte!
- Simples. Leu num livro de poemas de Rubén Darío.
- Marquinhos não é ligado a leitura. Duvido.
- Se não leu no livro, leu em alguma revista, em alguma parte.
- Hã...
Ficou tão triste- os olhos, a boca, a testa franzida- que achei de meu dever confortá-la:
- Que importância tem isso? A frase é de Darío, é de Marquinhos, é de toda pessoa sensível, capaz de assimilar o
coração à margarida... Desculpe: à margarida.
Muxoxo:
- Se é de todos, não é de ninguém, não vale nada.
- Pelo contrário. Fica valendo mais, torna-se sentimento universal.
- Ah, o senhor está por fora. Eu queria a margarida só para mim. Copiada não tem graça. A graça era imaginar
Marquinhos, muito sério, desfolhando meu coração transformado em margarida, para saber se eu gosto dele, um
pouquinho, bastante, muito loucamente, nada. E a margarida sempre com uma pétala escondida por baixo da
outra, entende? Para ele não ter certeza, porque essa certeza eu não dava... Era gozado.
- Continue imaginando.
- Agora não dá pé. Marquinhos roubou a margarida, quis dar uma de poeta. Não colou.
- Espere um pouco. Eu disse que a margarida era de Rubén Darío? Esta cabeça! Esquece, minha filha. Agora me
lembro que Rubén Darío nem podia ouvir falar em margarita, começava a espirrar, a tossir, ficava sufocado, uma
coisa horrível. Alergia- que no tempo dele ainda não estava batizada. Pois é. Garanto a você, posso jurar que a
margarida não é de Darío.
- De quem é então?
- De Marquinhos, ué.
- Tem certeza que nunca ninguém antes de Marquinhos escreveu ä mais margarida de todas as margaridas"? o
senhor lê milhões, pode me responder. Tem certeza?
- Absoluta. Marquinhos é genial, reconheço. Mas, por via das dúvidas, continue escondendo uma pétala de
reserva, sim?
- Pode deixar por minha conta. Puxa, quase que eu parava de transar com o Marquinhos por causa do senhor.
Agora tá legal, tchau, vovô!
Vovô: foi assim que ela me agradeceu a mentira generosa, a bandida.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

6. A incapacidade de ser verdadeiro


Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo
dragões - da – independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas. A mãe botou-o de castigo,
mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo
cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo.
Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa, como foi proibido de jogar futebol durante
quinze dias. Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da terra passaram pela
chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo para o sétimo
céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico.
Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça: -Não há nada a fazer, Dona Coló. Esse
menino é mesmo um caso de poesia.

Carlos Drummond de Andrade



Maneira de amar

O jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. Passava manhãs
contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio. O girassol não ia
muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos
de natureza.
Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol chegava a voltar-se
contra a luz par não ver o rosto que lhe sorria. Era uma situação bastante embaraçosa, que as
outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou se regar o pé de girassol
e de renovar-lhe a terra, na ocasião devida.
O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo diante dos canteiros,
aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de
trabalho.
Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram tristes e censuravam-se porque não
tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era o girassol, que não se
conformava com a ausência do homem. “Você o tratava mal, agora está arrependido?” “Não,
respondeu, estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É a minha maneira de amar, ele
sabia disso, e gostava”.
Carlos Drummond de Andrade

7. A estranha e "eficiente" linguagem dos namorados
– Oi, meu berilo!
– Oi, meu anjo barroco!
– Minha tanajura! Minha orquestra de câmera!
– Que bom você me chamar assim, meu pessegueiro-da-flórida!
– Você gosta, minha calhandra?
– Adoro, meu teleférico iluminado!
– Eu também gosto muito de ser tudo isso que você me chama!
– De verdade, meu jaguaretê de paina?
– Juro, meu cavalinho de asas!
– Então diz mais, diz mais!
– Meu oitavo, meu décimo, décimo quinto pecado capital, minha janela sobre a Acrópole, meu verso de Rilke,
minha malvasiara, meu minueto de Versailles...
– Mais, agapanto meu, tempestade minha!
– Minha follia con variazoni, de Corelli, meu isto-e-aquilo enguirlandado, meu eu anterior a mim, meus diálogos
com Platão e Plotino ao entardecer, minha úlcera maravilhosa!
– Ai que lindo, liiiiindo, meu colar de cavalheiro inglês num retrato de Ticiano! Meu fundo-do-mar, você me põe
louca, louca de amar as pedras, de patinar nas nuvens!
– E eu então, minha górgone, minha gárgula de Notre Dame, e eu, minha sintaxe de Deus?
– Você fala como falam os balões de junho de Portinari, as joias da coroa do reino de Samarcanda, você, meu
imperativo categórico, você, minha espada maçônica, você me mata!
– E você também me trucida, me degola, me devolve ao estado de música, meu tambor de mina!
– Todos os incentivos oficiais reunidos e multiplicados não valem a tua alquimia, meu ministro do fogo!
– Tuas paisagens, teu subsolo infernal, teus labirintos são superiores em felicidade a qualquer declaração dos
direitos do homem!
– A primeira vez que eu vi você naquele bar do crepúsculo eu senti que as pirâmides e as cataratas não valiam a
tua unha do dedo mindinho!
– Porque você é o Banco das Estrelas, e pode comprar todas as coisas do mundo, inclusive as águas e os animais,
para restituí-los à vida em liberdade!
– Como posso ouvir outras palavras senão as tuas, meu almanaque do céu? Minha ciência do insabível? Meu
terremoto, meu objeto voador identificado?
– Não nascemos um para o outro, nascemos um no outro, e estamos nessa desde antes do começo dos séculos,
meu nenúfar!
– E estaremos mesmo depois que os séculos se evaporarem, ó meu desenho rupestre, meu formigão atômico!
– Mandala, raio laser, sextina! Tudo meu, é claro!
– Pomba-gira!
– Clepsidra!
– Sequóia minha minha minha!
Diálogo aparentemente louco, mas que dois namorados de imaginação mantêm todos os dias, com estas ou
outras palavras igualmente mágicas. Não inventei nada. Apenas colecionei expansões ouvidas aqui e ali, e que me
pareceram espontâneas, isto é, ninguém deve ter preparado antes o que iria dizer, de tal modo as palavras saíam
entrecortadas de risos, interrompidas por afagos, brotando da situação. O amor é inventivo e anula os postulados
da lógica. Ele tem sua lógica própria, tão válida quanto a outra. E os amantes se entendem sob o signo do absurdo
– não tão absurdo assim, como parece aos não-amorosos. Já ouvi no interior de Minas alguém chamar seu amor
de “meu bicho-do-pé” e receber em troca o mais cálido beijo de agradecimento.

Esta coletânea de frases de amor está aqui como introdução ao projeto não-comercial de comemorações do Dia
dos Namorados. Não para que elas sejam repetidas mecanicamente. Todo namorado que se preze deve inventar
as besteiras líricas e deliciosas que a gente não diz para qualquer pessoa, só para uma, e só em momentos de pura
delícia. Funciona? E como!



Carlos Drummond de Andrade

8. O padeiro

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a
porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de
ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é
bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno;
acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei
bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto
tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha
deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os
moradores, avisava gritando:

- Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?

"Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe
acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa
qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que
o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo
que não era ninguém...

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo
para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo
eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a
redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já
levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina,
como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque
no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia
uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de
cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos
útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.



Carlos Drummond de Andrade

9. TELEFONE
– O senhor é que é o senhor mesmo?
– Como?
– Estou perguntando quem é o senhor, afinal.
– Evaristo Pestana de Matos, seu criado.
– Isso estou vendo na carteira de identidade. Mas o talão de inscrição diz Abel Setembrino de Matos.
– É meu avô paterno.
– Então fala pra seu avô vir ele mesmo, trazendo a carteira.
– Isto eu não posso falar não senhor.
– Não pode por quê?
– Porque ele já é falecido desde 1952.
– Se já é falecido, nada feito. A inscrição está cancelada.
– Cancelada como, se ele foi chamado pela Companhia no jornal de hoje?
– Olha, moço, a Companhia chamou na suposição dele estar vivo. Não estando, fica sem efeito a
chamada. Compreendeu?
– Compreendi não. A Companhia chamou, tá chamado. Eu vim em nome de meu saudoso avô pagar a
primeira cota do telefone que ele pediu há 24 anos, quando eu era menino de colo, aliás afilhado dele.
– O senhor está é brincando. Seu avô não precisa mais de telefone.
-Mas preciso eu, que sou neto dele, será que o senhor também não mora? Este talão aqui foi
conservado pela família durante um quarto de século. Meu avô, sentindo uma dor do lado esquerdo,
chamou meu pai e disse: “Etelberto, tira da gavetinha do criado-mudo minha inscrição de telefone e
guarda ela com cuidado. Não pude deixar um aparelho para você, mas deixo essa esperança. Não vende
a inscrição por dinheiro nenhum, meu filho. Satisfaz minha última vontade.” Disse e morreu.
– É comovente, mas…
– Espera aí. Tem mais. Meu pai guardou o papel 13 anos e também embarcou, coitado. Na hora da
despedida, me fez a mesma recomendação. Estou cumprindo um mandado de família, uma coisa
sagrada para mim. Já lhe dei o talão. Me dá meu telefone, cidadão.
– Esse talão é de Abel Setembrino de Matos, ô homem!
– Eu sei. Meu avô, pai de meu pai. Me tocou como bem de família.
-Tocou como? Por acaso entrou em inventário, o senhor tem formal de partilha provando isso?
– Formal eu não tenho, mas tenho o talão. Quem mais senão eu podia ficar com o talão se sou filho
único de filho único de meu avô?
– Eu sei lá se o senhor é único ou se faz parte de escadinha. Nem interessa à Companhia saber quem é
filho único de quem. Sabe que mais? A conversa já esticou demais. Vou chamar o próximo.
– Me atenda antes, por favor. Não vai me obrigar a ir para a televisão reclamar o direito de meu avô,
nem contratar advogado. Pois eu vou, eu contrato.
– Faça o que quiser.
– O que eu quero é o telefone de meu avô, pedido em 1943!
– Retire-se, o senhor está enchendo!
– Hein?!
– Está enchendo, já disse!
– Estou é me sentindo mal… Uma coisa do lado esquerdo… uma nuvem… uma vertigem… A gente
esperando desde a Segunda Guerra Mundial, e na hora de receber o telefone, ah meu Deus, o Senhor
me chama para o seu seio… Não faz isso comigo, deixa pelo menos eu tomar um táxi, ir em casa
entregar a meu filho Tonico este talão… Quem sabe se ele um dia… Cai.



Carlos Drummond de Andrade

10. Presente para a Senhora
Percorro as listas de presentes possíveis para o Dia das Mães, e sinto a dificuldade do problema.
Tanta coisa! Até parece que a mamãe, coitada, não tem objeto algum em casa, desprovida de geladeira,
armários, lenços, liquidificador, porta-notas, tigelas de cerâmica, fogão, secador de cabelo, batas...
Não, mamãe tem geladeira sim, claro que tem. Não é desse eletrodoméstico fundamental que saem
os refrigerantes, os cremes, as coisas gostosas que ela reservou para o paladar do filhinho? O filhinho
hoje é executivo, mas sempre que vai visitar mamãe, sabe que ela guardou para ele um sorvete especial
na caverna do congelador. É, mas a geladeira deve ter envelhecido mais depressa que mamãe. Não tem
esses babados modelo 75, sugerido para presente a mães classe A.
- Filhinho, que exagero!
- Que nada, mãe, a senhora merece muito mais.
- Você devia ter deixado seu pai fazer esta despesa.
- Papai lhe deu um carro novo, não deu? Vi na calçada.
- Não. O carro eu ganhei do seu irmão Tavinho, que esteve aqui agora mesmo para me entregar as
chaves.
- E papai, nada?
- Bom, seu pai me deu... O que foi mesmo que seu pai me deu? Ando com a cabeça tão distraída. Ah,
sim, uma lancha de passeio.
- Se ele deu a lancha, não ia dar a geladeira.
- Ora, você sabe que seu pai vai casar com aquela loura de São Paulo, e tem procurado ser gentil
comigo de todas as maneiras, enquanto não chega o divórcio.
O filhinho sai de queixo triste. Dera o presente mais insignificante. Ano que vem terá mais cuidado,
consultará mais atentamente o rol de regalos. Dia das Mães provoca frustrações assim.
Se pensam que nas classes B e C a coisa é fácil, enganam-se. Pior. Mamãe ganhou tantos pares de
meia que dava para abrir uma casa-olga. Precisava ter recebido um ou dois pares de sapatos para usar
aquele monte de meias, mas filho não sabe nunca o número do pé de mamãe. A nora, chamada a
opinar, vai dizendo, de cabeça leve: 40. Ou 35. A mãe calça 37. Vai trocar na loja, a loja tem 37 daquele
modelo? Pois sim. O excesso converte-se em carência. Poucas mães conseguem
o presente exato. A coleção de talcos que mamãe guardou no armário do banheiro, no armário do
quarto e na mala, para dar de presente às amigas que fazem anos, tem origem no segundo domingo de
maio. Mas o talco de sua predileção, esse ela tem de comprar na drogaria distante.
- Posso escolher meu presente do Dia das Mães, meu fofinho?
- Não, mãe. Perde a graça. Este ano, a senhora vai ver. Compro um barato.
- Barato? Admito que você compre uma lembrancinha barata , mas não diga isso a sua mãe. É fazer
pouco de mim.
- Ih, mãe, a senhora está por fora mil anos. Não sabe que barato é o melhor que tem, é um barato!
- Deixe eu escolher, deixe...
- Mãe é ruim de escolha. Olha aquele blazer furado que a senhora me deu no Natal!
- Seu porcaria, tem coragem de dizer que sua mãe lhe deu um blazer furado?
- Viu? Não sabe nem o que é furado. Aquela cor já era, mãe, já era!
Pelo visto, todos damos presentes errados: os filhos às mães, as mães aos filhos. Maridos,
namorados, idem. Sábia foi Dona Lucrécia que chamou os cinco filhos e comunicou-lhes:
- Não precisam tomar trabalho comigo. Nem fazer despesa. Fico muito grata a vocês pela intenção.
Basta cada um me trazer um pacotinho de paz, ouviram?
- Onde a gente arranja isso, mãe?
- Sei lá. O melhor é não procurar muito. Tragam pacotinhos vazios. A paz deve estar lá
dentro.


Carlos Drummond de Andrade

11. NO AEROPORTO

Viajou meu amigo Pedro. Fui levá-lo ao Galeão, onde esperamos três horas o seu
quadrimotor. Durante esse tempo, não faltou assunto para nos entretermos, embora não
falássemos da vã e numerosa matéria atual. Sempre tivemos muito assunto, e não deixamos de
explorá-lo a fundo. Embora Pedro seja extremamente parco de palavras, e, a bem dizer, não se
digne de pronunciar nenhuma. Quando muito, emite sílabas; o mais é conversa de gestos e
expressões pelos quais se faz entender admiravelmente. É o seu sistema.
Passou dois meses e meio em nossa casa, e foi hóspede ameno. Sorria para os
moradores, com ou sem motivo plausível. Era a sua arma, não direi secreta, porque ostensiva.
A vista da pessoa humana lhe dá prazer. Seu sorriso foi logo considerado sorriso especial,
revelador de suas boas intenções para com o mundo ocidental e oriental, e em particular o
nosso trecho de rua. Fornecedores, vizinhos e desconhecidos, gratificados com esse sorriso
(encantador, apesar da falta de dentes), abonam a classificação.
Devo dizer que Pedro, como visitante, nos deu trabalho; tinha horários especiais,
comidas especiais, roupas especiais, sabonetes especiais, criados especiais. Mas sua simples
presença e seu sorriso compensariam providências e privilégios maiores.
Recebia tudo com naturalidade, sabendo-se merecedor das distinções, e ninguém se
lembraria de achá-lo egoísta ou importuno. Suas horas de sono - e lhe apraz dormir não só à
noite como principalmente de dia - eram respeitadas como ritos sagrados, a ponto de não
ousarmos erguer a voz para não acordá-lo. Acordaria sorrindo, como de costume, e não se
zangaria com a gente, porém nós mesmos é que não nos perdoaríamos o corte de seus sonhos.
Assim, por conta de Pedro, deixamos de ouvir muito concerto para violino e
orquestra, de Bach, mas também nossos olhos e ouvidos se forraram à tortura da tevê.
Andando na ponta dos pés, ou descalços, levamos tropeções no escuro, mas sendo por amor de
Pedro não tinha importância.
Objetos que visse em nossa mão, requisitava-os. Gosta de óculos alheios (e não os
usa), relógios de pulso, copos, xícaras e vidros em geral, artigos de escritório, botões simples ou
de punho. Não é colecionador; gosta das coisas para pegá-las, mirá-las e (é seu costume ou sua
mania, que se há de fazer) pô-las na boca. Quem não o conhecer dirá que é péssimo costume,
porém duvido que mantenha este juízo diante de Pedro, de seu sorriso sem malícia e de suas
pupilas azuis — porque me esquecia de dizer que tem olhos azuis, cor que afasta qualquer
suspeita ou acusação apressada, sobre a razão íntima de seus atos.
Poderia acusá-lo de incontinência, porque não sabia distinguir entre os cômodos, e o
que lhe ocorria fazer, fazia em qualquer parte? Zangar-me com ele porque destruiu a lâmpada
do escritório? Não. Jamais me voltei para Pedro que ele não me sorrisse; tivesse eu um impulso
de irritação, e me sentiria desarmado com a sua azul maneira de olhar-me. Eu sabia que essas
coisas eram indiferentes à nossa amizade — e, até, que a nossa amizade lhe conferia caráter
necessário de prova; ou gratuito, de poesia e jogo.
Viajou meu amigo Pedro. Fico refletindo na falta que faz um amigo de um ano de
idade a seu companheiro já vivido e puído. De repente o aeroporto ficou vazio.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Cadeira de balanço. Reprod. Em: Poesia completa e
prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1973. p.1107-1108

12. O carro, a jardineira, a calçada

No momento, a situação nas calçadas de Copacabana está mais ou menos refletida neste diálogo de mil vozes:
— Ei, tira essa jardineira daí.
— Pra botar cano no lugar dela?
— Tira também o carro, ué.
— Pra botar aonde? Noutra calçada?
— Melhor deixar a jardineira e o carro, cada um na sua fatia de calçada.
— E o pedestre?
— Esse já foi tirado há muito tempo.
— E por que não o carro, a jardineira e o pedestre, com lugares marcados?
— Precisa deixar espaço pros carrinhos de bebê. Bebê ainda não é pedestre.
— Mas babá é.
— Então vamos repartir a calçada entre o carro, a jardineira, o pedestre, o bebê e a babá.
— Deixando uma área pras cadeiras dos bares de praia, no calçadão.
— Assim não dá. Só se houver revezamento.
— E meu pequinês, onde é que meu pequinês vai parar quando tiver necessidade?
— Afinal de contas, a calçada é ou não é do povo?
— Não. É dos bacanas que moram nos edifícios e não deixam a gente estacionar na calçada.
— Mas o cano também é dos bacanas.
— Só que de outros bacanas que não moram nos edifícios daquela calçada.
— Então é uma guerra entre bacanas.
— Eu não sou bacana. Sou povo e estou pagando meu carro financiado. Onde é que eu vou estacionar?
— Em cima das flores.
— O senhor parece que não gosta de flor. Prefere gasolina.
— Ora, meu amigo, quem gosta de flor plante elas no vaso, dentro de casa. Eu também gosto de música, mas não
vou curtir meu som na calçada.
— A jardineira é medonha, o cano é funcional.
— Sem essa. O cano polui, e toda planta é legal.
— Bobagem, a Celurb apreender as jardineiras. Os próprios canos liquidam com elas.
— Se fosse só com as jardineiras. Um deles, em cima do passeio, mandou minha tia para o hospital.
— Eu não digo que calçada é muito perigoso? O mais seguro é não sair de casa, sob pretexto algum.
— É, mas cano na calçada tem uma vantagem. Não deixa bicicleta atacar. Bicicleta é fogo: olha só esta cicatriz na
minha canela.
— Não estou interessado na sua canela. Quero saber é quem vence esta parada: a maquina ou o homem?
— A máquina também faz parte do homem, é prolongamento dele, do corpo dele. O homem está dos dois lados,
brigando, chateando-se.
— Não terá um terceiro lado, o lado da paz?
— Tem sim, vovó. Tem a Praça da Paz, que fica em Ipanema.
— Engraçadinho. Vê lá se tem paz na Praça da Paz. Tem é cano.
— Viu? Foi a conta de fundir o Estado do Rio com o Rio, e carros de Barra do Piraí vem atochar nossas
calçadas. Só carioca é que não tem direito.
— Separatista! As calçadas também devem ser fundidas!
— Ah, meu Deus! Eles estão roubando nossas jardineiras! Essas folhagens! Nossos miniespaços verdes!
— Numa hora dessas, com o rapa levando as jardineiras, médico nenhum é bobo de aparecer!
— As jardineiras estão impedindo o progresso do País!
— Amanhã plantarão bosques na calçada e botarão leões e tigres, jacarés e cascavéis lá dentro, pra devorar a
gente!
— Sempre achei que esse negócio de flor na calçada é sabotagem contra a indústria automobilística nacional!
— Perdão, mas alecrim e espada-de-são-jorge são muito mais nacionais do que os automóveis fabricados por aí!
— Pelo visto, a confusão é geral.
— A confusão já era. Isto é a superconfusão.
— Qual, o Rio de Janeiro não existe.
— Agora é que você percebeu isso?

Carlos Drummond de Andrade
Texto extraído do livro “Boca de luar”, Ed. Record – Rio de Janeiro (RJ), pág. 37.

13. Depois do jantar
Também, que ideia a sua: andar a pé, margeando a Lagoa Rodrigo de Freitas, depois do jantar.
O vulto caminhava em sua direção, chegou bem perto, estacou à sua frente. Decerto ia pedir-lhe um auxílio.
— Não tenho trocado. Mas tenho cigarros. Quer um?
— Não fumo, respondeu o outro.
Então ele queria é saber as horas. Levantou o antebraço esquerdo, consultou o relógio:
— 9 e 17... 9 e 20, talvez. Andaram mexendo nele lá em casa.
— Não estou querendo saber quantas horas são. Prefiro o relógio.
— Como?
— Já disse. Vai passando o relógio.
— Mas ...
— Quer que eu mesmo tire? Pode machucar.
— Não. Eu tiro sozinho. Quer dizer... Estou meio sem jeito. Essa fivelinha enguiça quando menos se espera. Por
favor, me ajude.
O outro ajudou, a pulseira não era mesmo fácil de desatar. Afinal, o relógio mudou de dono.
— Agora posso continuar?
— Continuar o quê?
— O passeio. Eu estava passeando, não viu?
— Vi, sim. Espera um pouco.
— Esperar o quê?
— Passa a carteira.
— Mas...
— Quer que eu também ajude a tirar? Você não faz nada sozinho, nessa idade?
— Não é isso. Eu pensava que o relógio fosse bastante. Não é um relógio qualquer, veja bem. Coisa fina. Ainda não
acabei de pagar...
— E eu com isso? Então vou deixar o serviço pela metade?
— Bom, eu tiro a carteira. Mas vamos fazer um trato.
— Diga.
— Tou com dois mil cruzeiros. Lhe dou mil e fico com mil.
— Engraçadinho, hem? Desde quando o assaltante reparte com o assaltado o produto do assalto?
— Mas você não se identificou como assaltante. Como é que eu podia saber?
— É que eu não gosto de assustar. Sou contra isso de encostar o metal na testa do cara. Sou civilizado, manja?
— Por isso mesmo que é civilizado, você podia rachar comigo o dinheiro. Ele me faz falta, palavra de honra.
— Pera aí. Se você acha que é preciso mostrar revólver, eu mostro.
— Não precisa, não precisa.
— Essa de rachar o legume... Pensa um pouco, amizade. Você está querendo me assaltar, e diz isso com a maior
cara-de-pau.
— Eu, assaltar?! Se o dinheiro é meu, então estou assaltando a mim mesmo.
— Calma. Não baralha mais as coisas. Sou eu o assaltante, não sou?
— Claro.
— Você, o assaltado. Certo?
— Confere.
— Então deixa de poesia e passa pra cá os dois mil. Se é que são só dois mil.
— Acha que eu minto? Olha aqui as quatro notas de quinhentos. Veja se tem mais dinheiro na carteira. Se achar
uma nota de 10, de cinco cruzeiros, de um, tudo é seu. Quando eu confundi você com um, mendigo (desculpe, não
reparei bem) e disse que não tinha trocado, é porque não tinha trocado mesmo.
— Tá bom, não se discute.
— Vamos, procure nos... nos escaninhos.
— Sei lá o que é isso. Também não gosto de mexer nos guardados dos outros. Você me passa a carteira, ela fica
sendo minha, aí eu mexo nela à vontade.

— Deixe ao menos tirar os documentos?
— Deixo. Pode até ficar com a carteira. Eu não coleciono. Mas rachar com você, isso de jeito nenhum. É contra as
regras.
— Nem uma de quinhentos? Uma só.
— Nada. O mais que eu posso fazer é dar dinheiro pro ônibus. Mas nem isso você precisa. Pela pinta se vê que
mora perto.
— Nem eu ia aceitar dinheiro de você.
— Orgulhoso, hem? Fique sabendo que tenho ajudado muita gente neste mundo. Bom, tudo legal. Até outra vez.
Mas antes, uma lembrancinha.
Sacou da arma e deu-lhe um tiro no pé. Carlos Drummond de Andrade
Texto extraído do livro "Os dias lindos", Livraria José Olympio Editora — Rio de Janeiro, 1977, pág. 54.
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