71
perdoadas, nossos pecados são cobertos e nosso pecado o Senhor jamais leva em conta (7-8). Ao
invés de levar em conta os nossos pecados e voltá-los contra nós, Deus os perdoa e cobre.
Agora nós já podemos juntar todas as peças deste rico vocabulário. O que Paulo tem
em mente não se limita a uma única expressão ou a uma simples ilustração. Ele deixou
claro que a justiça de Deus (ou que provém de Deus), que é revelada no evangelho (1.17;
3.21s.), reside no fato de ele justificar justamente o injusto. Assim, na segunda parte do
capítulo 3 ele continua usando o verbo "justificar" (por exemplo, 3.24, 26, 28, 30). E
continua utilizando-o também no capítulo 4 (4.2, 5, 25), assim como o fará no capítulo 5
(5.1, 9, 16, 18). Ele descarta a possibilidade de Abraão ter sido justificado pelas obras (2). Mas
ao afirmar, agora positivamente, como Deus justifica o ímpio (5) ele passa a utilizar novas
expressões. Primeiro, Deus nos credita fé como justiça (3, 5, 9, 22s.). Segundo, ele nos
credita justiça independente de obras (6, 11, 13, 24). E, terceiro, ele recusa-se a creditar os
nossos pecados contra nós, mas, em vez disso, ele os perdoa e cobre (7-8). Ninguém pode
afirmar que estas três expressões sejam sinônimos exatos; quando, porém, se trata da
justificação, as três coisas andam juntas. Justificação implica um cálculo, crédito ou
cômputo duplo. Por um lado, negativamente falando, Deus nunca leva em conta os nossos
pecados contra nós. Por outro lado, falando em termos positivos, Deus deposita em nossa
conta um crédito de justiça, como uma dádiva de graça, pela fé, completamente
independente de nossas obras.
Isto nos faz lembrar uma outra declaração de Paulo, até certo ponto similar, em que
ele diz que Deus "estava reconciliando consigo o mundo, não lançando em conta os
pecados dos homens", pelo contrário "tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado,
para que nele nos tornássemos justiça de Deus".
72
Cristo se fez pecado com os nossos
pecados, a fim de que nós pudéssemos tornar-nos justos com a justiça de Deus.
Tanto na ARC como na ARA vemos que o verbo logizomai é às vezes traduzido, não
como "creditar, calcular ou computar", mas como "imputar". Por exemplo: " Bem-
aventurado o homem a quem o Senhor jamais imputará pecado" (ARA, 8), ou melhor, a
pessoa "a quem Deus imputa a justiça sem as obras" (ARC, 6). A imagem do cálculo e do
crédito é financeira; a da imputação, porém, é legal. Ambas significam "computar alguma
coisa como pertencente a alguém", só que no primeiro caso trata-se de dinheiro, e no
segundo, seria inocência ou culpa.
73
Essa linguagem ganhou importância no século XVI,
quando surgiu o debate sobre se, no ato da justificação, Deus "infunde" justiça a nós (como
ensinava a Igreja Católica Romana), ou se ele a "imputa" a nós (como insistiam os
reformadores protestantes). Os reformadores por certo tinham razão ao dizerem que
quando Deus justifica os pecadores ele não os torna justos (pois esse é o processo
resultante da santificação); pelo contrário, ele os declara justos, isto é, imputa-lhes justiça,
considerando-os e tratando-os como (legalmente) justos. C. H. Hodge esclarece isso para
nós. 'Imputar pecado é lançar o pecado na conta de alguém e tratá-lo de conformidade
com isso." De semelhante forma, "imputar justiça é lançar justiça na conta de alguém, e daí
tratá-lo de conformidade com isso."
74
Assim, Paulo escreve em Romanos 4 a respeito das
duas coisas: o fato de Deus não imputar pecado aos pecadores, embora eles tenham
pecado, e o fato de ele nos imputar justiça, embora não sejamos justos.
75
O que Paulo está
dizendo é que "foi pela mediação da fé que Abraão veio a ser I ratado como justo, e não
que a fé foi considerada um substituto para a perfeita obediência."
76
Uma outra questão é se a justiça que Deus imputa graciosamente a nós pode ser
considerada a justiça de Cristo, se nós podemos falar com legitimidade em sermos
"vestidos com o manto imaculado da justiça de Cristo" e se Zinzendorf estava certo ao
escrever: