poderá usar a palavra excremento (apesar de, todo o apelo que a rima possa ter). É
sempre bom observar essa pequena, porém importante, formalidade da escrita. Parte III:
Pontuação. Nesta altura o futuro autor já tem consigo um bom número de palavras,
harmoniosamente divididas entre curtas, médias e longas, anotadas em alguma superfície
de celulose ou cristal líquido. Chegou a hora de condimentar essas palavras. Os pontos
são no texto o que os temperos são para a sopa, e é importante saber usá-los. Para cada
cinco palavras, em média, o autor deverá ter uma vírgula. Para cada dez, um ponto. Para
cada 15, uma interrogação e/ou uma exclamação. Algumas dicas: para um texto mais
picante, acrescente muitas exclamações. Nunca use muitas interrogações se o texto se
destina a um grande público. Por último, evite as crases, os tremas e o ponto-e-vírgula,
pois são de sabor muito forte e devem ser usados com parcimônia, assim como o gengibre
ou o curry na culinária. Parte IV: Prosa e poesia. Tendo os ingredientes e os temperos
todos à frente, é chegado um momento muito importante, a hora de se decidir que tipo de
texto se quer escrever. Há somente dois, prosa e poesia. É muito fácil diferenciar um do
outro: os de poesia são fininhos e as frases se colocam umas sob as outras, formando
pequenos blocos. Ao final de cada um desses tijolinhos, pula-se uma linha e começa-se
um novo. Os textos de prosa são mais consistentes, e as linhas ocupam toda a extensão
da página, desde a margem esquerda até a direita. Se o autor é preguiçoso ou está
terrivelmente atrasado para algum compromisso, convém fazer uma poesia. Nesse caso,
vale a pena seguir alguns passos. 1 — Volte ao dicionário e busque algumas interjeições
como Oh! e Ah!. Não economize também nas reticências, exclamações e interrogações.
São pequenos detalhes, mas muito úteis. Mesmo a mais simples das frases, se antecipada
por uma dessas palavrinhas e seguida por esses pontos, ganhará um novo alento, uma
vaguidão que facilmente será confundida com profundidade, como você pode comprovar
no exemplo a seguir: Antes: Havia casas azuis. Depois: Oh! Havia casas... Azuis?! Caso o
futuro autor disponha de mais tempo e motivação, e deseje escrever um texto em prosa,
não encontrará grandes dificuldades. Basta pegar todas as palavras previamente
selecionadas e dispô-las sobre a página. Não é preciso lavá-las nem deixá-las de molho.
Tente sempre mesclar as pequenas, médias e grandes. Lembre-se de que os pontos, as
exclamações e interrogações vão sempre ao final das frases, e os acentos em cima das
palavras. A cada seis ou sete linhas, termine uma frase no meio da folha e comece outra
embaixo, depois de um espaço. Isso se chama parágrafo. Os antigos pergaminhos da
Checoslováquia demonstram alguma preocupação quanto à importância do sentido e da
clareza em um texto. As últimas pesquisas norte-americanas, no entanto, provam que
essas questões são absolutamente irrelevantes. Uma rápida visita a uma biblioteca
demonstrará que há textos dos mais absurdos impressos por aí, e que nem a clareza nem
o sentido são as características que fazem deles clássicos ou novelinhas baratas,
exemplares da Academia Brasileira de Letras ou calço para mesas. Por último, cabe
destacar que um texto, ao contrário de uma sopa, não alimenta, não esquenta, nem pode
ser servido com conchas. Assim como até hoje não tive notícias de nenhuma ONG ou
instituição beneficente que saia pelas madrugadas frias distribuindo textos e cobertores
para mendigos (embora não seja uma má idéia). Não podemos deixar de mencionar que
um texto resulta mais prático que uma sopa, pois pode ser guardado na estante da sala e
não precisa ser resfriado nem muito menos congelado. Apesar das considerações
anteriores, é impossível provar a superioridade de um texto sobre uma sopa ou vice-versa.
Mesmo porque, é possível encontrar tanto letras em boas sopas, quanto sopas nas boas
letras. Assim sendo, vamos ficando por aqui. Afinal, os textos e as sopas, os mercados e
os dicionários, as palavras grandes, os ingredientes, eu, você, os cientistas norte-
americanos e os pergaminhos da Checoslováquia nos assemelhamos numa única coisa:
todos, em algum momento, chegamos ao fim.” Antônio Prata