Dilemas da representatividade _ sobre tecnocracia e diversidade de saberes.pdf

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About This Presentation

A água, reconhecida como bem comum e direito fundamental, é elemento vital para a vida e para o desenvolvimento sustentável. No Brasil, a Política Nacional de Recursos Hídricos instituiu os Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs) como espaços colegiados de gestão participativa, baseados nos pr...


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DILEMAS DA REPRESENTATIVIDADE NOS COMITÊS DE BACIA
HIDROGRÁFICA BRASILEIROS: SOBRE TECNOCRACIA E DIVERSIDADE DE
SABERES


Fernanda Matos, Pesquisadora vinculada ao NEOS/UFMG. Doutora e Pós-Doc em
Administração (UFMG). Professora. Consultora Técnica. PCPP-IV na Fundação João Pinheiro
[email protected]


Resumo

A água, reconhecida como bem comum e direito fundamental, é elemento vital para a vida e
para o desenvolvimento sustentável. No Brasil, a Política Nacional de Recursos Hídricos
instituiu os Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs) como espaços colegiados de gestão
participativa, baseados nos princípios de descentralização, integração e representatividade.
Entretanto, questiona-se em que medida a composição desses colegiados reflete a diversidade
social necessária à governança democrática das águas. O objetivo deste estudo foi analisar o
perfil dos representantes dos CBHs no Brasil, considerando gênero, faixa etária, escolaridade,
área de formação e renda, problematizando como essas características influenciam a
representatividade e a qualidade democrática das decisões. Metodologicamente, a pesquisa
baseou-se em levantamento nacional de dados junto aos 203 comitês implementados,
utilizando survey eletrônico aplicado a 12.004 representantes entre titulares e suplentes. Os
resultados revelam a predominância de homens, engenheiros e indivíduos acima de 50 anos,
o que limita a pluralidade de olhares e reforça desigualdades de gênero, geração e
conhecimento. Argumenta-se que a ampliação da participação é imperativa para consolidar a
diversidade de conhecimentos e saberes e fortalecer a gestão democrática e sustentável da
água no país.

Palavras-chave: governança hídrica, diversidade, participação social, recursos hídricos

Introdução

A água, elemento vital para a manutenção da vida e para o equilíbrio dos ecossistemas,
assume papel central nas discussões sobre desenvolvimento sustentável, justiça social e
governança ambiental. No Brasil, a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº
9.433/1997) estabeleceu os Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs) como instâncias
colegiadas de decisão, fundadas nos princípios da descentralização, da integração e da
participação social. Esses espaços, conhecidos como “Parlamento das Águas”, foram
concebidos para articular múltiplos atores e setores, incorporando diferentes visões e
interesses no processo de gestão. Contudo, as evidências demonstraram que a composição
desses colegiados ainda está marcada por desigualdades de gênero, geração e formação

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acadêmica, o que pode comprometer sua efetividade como arenas democráticas de governança
(Matos, 2020).
Diante desse cenário, coloca-se a seguinte questão: em que medida a composição dos
CBHs no Brasil reflete a diversidade necessária à gestão democrática das águas? Para
respondê-la, este ensaio tem como objetivos: abordar o perfil dos representantes dos Comitês
de Bacia quanto à formação acadêmica, faixa etária, sexo, nível de escolaridade e renda;
discutir como tais características podem influenciar a representatividade e as discussões para
o processo decisório; e problematizar a necessidade de ampliar a inclusão de diferentes grupos
sociais — mulheres, jovens, comunidades indígenas e tradicionais — como condição para
fortalecer a governança hídrica.
A justificativa para esta proposição reside na compreensão de que a crise hídrica não
é apenas técnica, mas também política, ética e social, como apontado por Selborne (2001).
Enfrentá-la requer múltiplos olhares que articulem conhecimentos técnicos, científicos,
culturais e comunitários. Nesse sentido, examinar a composição dos CBHs não significa
apenas levantar dados descritivos, mas refletir sobre quem tem voz e poder de decisão nos
processos que afetam o acesso e o uso da água, direito fundamental e bem comum. Buscar-se
a diversidade de conhecimentos e saberes e de atores nesses espaços é, portanto, necessário
no intuito de garantir uma gestão hídrica mais justa, inclusiva e sustentável, em consonância
com os princípios da equidade e da participação democrática.


Água como bem cultural, simbólico e político


Para os povos andinos, a água é muito mais que um recurso hídrico: é um ser
vivo, que dá vida e ânimo ao universo; provem de Wirakocha, deus criador do
universo, que fecunda Pachamama (a Mãe Terra), e permite a reprodução da
vida; a água é um elemento de reciprocidade e complementaridade, pois
possibilita a integração dos seres vivos, a articulação da natureza e da sociedade
humana; a água é um direito universal e comunitário, pois “é de todos e de
ninguém”; a água se comporta de acordo com os ecossistemas, as circunstâncias
e as conjunturas, sem seguir normas rígidas; a água é um ser criador e
transformador, que segue leis naturais, conforme os ciclos das estações e das
condições do território; a água é a recreação na diversidade do espaço e do
tempo, nas organizações comunitárias, na participação da população, permitindo
a autodeterminação das comunidades, em discussão e diálogo permanente com
a natureza. (Iriarte e Prado, 2009, p. 41, citando Condesan, 2004)



A epígrafe escolhida para este tópico chama à atenção para as múltiplas dimensões que
envolvem o tema água, tanto materiais, quanto simbólicos. Embora esteja ancorada na
cosmovisão dos povos andinos, sua mensagem ressoa em diferentes culturas e contextos,
revelando um caráter universal que extrapola fronteiras geográficas e históricas.
Nesse sentido, Basualto et al. (2009, p. 95) recordaram que, ao longo da história, “a
fonte de água significou o núcleo, o ponto de encontro, de convivência e comunicação dos
povos”. A centralidade da água como elemento agregador não apenas assegurou a
subsistência, mas também viabilizou o florescimento das civilizações, servindo de base para a
organização agrícola, urbana e cultural.

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As representações culturais da água, contudo, assumem formas variadas, influenciadas
pela religião, pelo habitat e pela sazonalidade. Comunidades ribeirinhas e pantaneiras, por
exemplo, estruturam suas práticas de vida em função das cheias e vazantes, enquanto no
espaço urbano a água se inscreve em chafarizes, aquedutos, fontes e lagos artificiais,
simbolizando a incorporação do elemento natural ao ambiente construído. Entretanto, a
apropriação excessiva e utilitarista da água nas cidades e indústrias tem conduzido à
degradação dos ecossistemas hídricos, resultando em poluição e perda de funções. Esses são
fatos que evidenciam a necessidade premente de implementação da agenda de
desenvolvimento sustentável (ODS 6.3), que diz respeito à melhoria da qualidade da água e
redução da poluição (UN, 2015). Assim, voltando ao tema central deste trabalho, pode-se
considerar que o planejamento e a gestão dos recursos hídricos trazem consigo a complexa
relação de natureza intersetorial, interdisciplinar e transdisciplinar.
Esse quadro suscita reflexões inquietantes, como aponta Selborne (2001): se a
sobrevivência da humanidade depende da água, como explicar que apenas mais recentemente
a sociedade tenha se dedicado a pensar sobre sua evolução e destino? Ainda mais grave é
constatar que, em 2025, uma em cada quatro pessoas no mundo, ou 2,1 bilhões, ainda não tem
acesso à água potável. Sendo que pessoas que vivem em países de baixa renda, contextos
frágeis, comunidades rurais, crianças, grupos étnicos minoritários e indígenas enfrentam as
maiores disparidades (WHO, Unicef, 2025).
É nesse ponto que a água, além de símbolo universal respeitado por religiões e culturas,
converte-se também em emblema da equidade social. A crise hídrica, como enfatizou Selborne
(2001), não decorre apenas da escassez absoluta, mas de desigualdades de acesso, da
concentração de recursos e do déficit de governança. Assim, não se refere apenas a uma
questão ambiental isolada, mas um processo histórico, global e cumulativo, resultado direto
de escolhas políticas, econômicas e sociais que moldaram o mundo em que vivemos. Do
mesmo modo, os dilemas contemporâneos da água estão intrinsecamente ligados a problemas
de justiça social, exigindo que se reconheçam princípios éticos comuns capazes de orientar a
ação em diferentes contextos geográficos e socioeconômicos.
Os anos 1960 e 70 foram marcados por um modelo de desenvolvimento dos recursos
hídricos no qual a água era um recurso a ser explorado no qual a ênfase era a abordagem do
“prever e fornecer” oportunizada pela construção de grandes obras de engenharia hidráulica
(HERMANN, 1971; SAVENIJE e VAN DER ZAAG, 2008). As primeiras discussões
internacionais chamando a atenção para a modernização da gestão dos recursos hídricos
ocorreram na Conferência das Nações Unidas sobre a Água, realizada em 1977, marcando,
assim, o início da discussão sobre a importância desse recurso. Dentre os vários apontamentos,
o Plano de Ação resultante desta Conferência foi o reconhecimento da água como um direito
ao se declarar que “todos os povos, seja qual for o seu estágio de desenvolvimento e as suas
condições sociais e econômicas, têm direito a ter acesso a água potável em quantidade e
qualidade igual às suas necessidades básicas” (UN, 1977). Depois dessa Conferência, o debate
sobre questões relacionadas à crise da água e suas possíveis consequências ao longo dos anos
foi difundido. Ocorreram também a criação de programas internacionais de cooperação técnica
e científica sobre recursos hídricos, o surgimento de ministérios de recursos hídricos em
diversos países e a ampliação de pesquisas sobre o tema.
Desde a conferências como Mar del Plata (1977), Dublin (1992), a Rio-92 e os
Relatório Mundial da ONU sobre o Desenvolvimento da Água (Un-Water) tem-se destacado
a necessidade de um compromisso ético com o suprimento universal da água. Ao relacionar a
política hídrica à ética ambiental e social, essas iniciativas revelam a insuficiência das

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abordagens exclusivamente técnicas de engenharia, que, embora necessárias, não são
suficientes para enfrentar a complexidade dos desafios contemporâneos. Essas diretrizes éticas
reafirmam que a água, mais que um recurso natural, é um bem cultural, simbólico, político e
vital, cuja gestão exige múltiplos olhares, em consonância com a perspectiva interdisciplinar
e transdisciplinar que orienta este ensaio.

Governança das águas e os Comitês de Bacia

A água potável e limpa constitui uma questão de primordial importância, por ser
indispensável à vida humana e ao equilíbrio dos ecossistemas terrestres e aquáticos. As fontes
de água doce abastecem os setores sanitário, agropecuário e industrial, sustentando atividades
vitais para a sociedade. Durante muito tempo, a disponibilidade de água manteve-se
relativamente constante; entretanto, em diversas regiões, a demanda passou a superar a oferta
sustentável, gerando consequências graves de curto e longo prazo (Papa Francisco, 2015).
No Brasil, o marco jurídico inicial para a regulação do uso da água foi o Código das
Águas (Decreto nº 24.643/1934). Essa legislação estabeleceu os direitos de propriedade de uso
dos recursos hídricos para fins de abastecimento, irrigação, navegação, usos industriais e
geração de energia, além de normas para a proteção da qualidade das águas territoriais.
Embora considerado avançado para sua época, o Código não chegou a ser plenamente
implementado, resultando, na prática, em instrumento de apoio ao setor elétrico. Como
observa Yassuda (1993), ao analisar a concessão de exploração hidroelétrica, o Código
funcionou como mecanismo de segurança jurídica para empresas concessionárias, reforçando
a centralização do planejamento do setor.
No período pós-Segunda Guerra Mundial, o domínio do setor elétrico sobre os rios
brasileiros se intensificou. A criação da Eletrobrás, em 1961, e a centralização promovida pelo
regime militar a partir de 1964 consolidaram um modelo de industrialização que ampliou os
impactos socioambientais. Entre 1967 e 1973, esse padrão desenvolvimentista resultou em
poluição, degradação de recursos naturais e aprofundamento da pobreza em várias regiões
(SÁNCHES, 2008). De modo semelhante, no campo do saneamento, até os anos 1970 os
serviços eram prestados principalmente por municípios, por meio dos Serviços Autônomos de
Água e Esgoto (SAAEs). Contudo, o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANASA),
criado em 1971, promoveu a centralização, transferindo a gestão à esfera estadual, por meio
das Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs), que assumiram a operação em
grande parte dos municípios (BARBOSA, 2008).
No cenário internacional, a década de 1970 foi marcada por uma crescente consciência
ambiental nos países desenvolvidos, resultando em legislações voltadas para o controle da
poluição e a proteção da natureza. No Brasil, entretanto, o modelo desenvolvimentista seguiu
centrado em grandes obras de infraestrutura, como as hidrelétricas de grande porte, criticadas
na Conferência de Estocolmo (1972). Em resposta à pressão internacional, o governo criou a
Secretaria Especial do Meio Ambiente (Decreto nº 73.030/1973), com a prerrogativa de
promover o uso racional dos recursos naturais e a conservação ambiental.
A partir daí, o interesse por questões ambientais expandiu-se entre setores técnicos,
acadêmicos e políticos, intensificando debates sobre a gestão dos recursos hídricos (Luchini,
2000). Nesse contexto, em 1978, foi criado o Comitê Especial de Estudos Integrados de Bacias
Hidrográficas (CEEIBH), fruto de um acordo entre o Ministério de Minas e Energia e o
governo de São Paulo. O CEEIBH tinha por finalidade classificar cursos d’água da União e
promover o aproveitamento múltiplo dos recursos, buscando reduzir impactos ecológicos.

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Embora pioneiros, os comitês vinculados ao CEEIBH possuíam caráter apenas consultivo e
restrito a órgãos governamentais, limitando sua efetividade (Bursztyn; Assunção Neta, 2001).
Na década de 1980, outras iniciativas avançaram. Destacam-se a criação da Política
Nacional de Irrigação (Lei nº 6.662/1979), a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº
6.938/1981), que instituiu instrumentos como o Estudo de Impacto Ambiental (EIA), e as
diretrizes do III Plano Nacional de Desenvolvimento, que incluíram a formulação de uma
Política Nacional de Recursos Hídricos. No Ceará, por exemplo, a escassez de chuvas entre
1979 e 1983 motivou a criação de um sistema estadual de gestão hídrica, consolidado em
1987. Essas experiências evidenciam como crises climáticas e pressões sociais estimularam a
descentralização e a busca por novos arranjos institucionais (ANA, 2002, Young, 2004).
A redemocratização do país intensificou esse movimento. A Constituição Federal de
1988 alterou a dominialidade da água, reconhecendo-a como bem público e estabelecendo
competência compartilhada entre União e estados. Esse marco constitucional abriu caminho
para a formulação de uma política descentralizada de recursos hídricos, consolidada com a
sanção da Lei nº 9.433/1997, a chamada Lei das Águas. Essa lei instituiu a Política Nacional
de Recursos Hídricos (PNRH), que introduziu princípios fundamentais, como: i) o
reconhecimento da água como um bem de domínio público, objetivando, assim, assegurar à
atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade
adequados aos respectivos usos; ii) considerar a água como um recurso finito e vulnerável,
dotado de valor econômico, o que requer uma utilização racional e integrada dos recursos
hídricos com vistas ao desenvolvimento sustentável; iii) a adoção da bacia hidrográfica como
unidade de planejamento, visando à adequação da gestão de recursos hídricos às diversidades
físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais da de cada região e iv) a adoção
da gestão descentralizada e participativa, para a articulação do planejamento de recursos
hídricos com o dos setores usuários e com os planejamentos regional, estadual e nacional
(BRASIL, 1997).
Nesse arranjo, os Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs) surgiram como organismos
colegiados consultivos e deliberativos, conhecidos como “Parlamento das Águas”. Os
Comitês são compostos por membros titulares e suplentes, sendo sua estrutura paritária. Esses
fóruns se consolidaram como arenas de decisão capazes de articular diferentes setores —
poder público estadual e municipal (cujos territórios integram a bacia, ainda que
parcialmente), usuários da água e entidades civis com atuação comprovada. Em bacias com
presença de terras indígenas, a legislação prevê ainda a inclusão de representantes da FUNAI,
bem como de comunidades indígenas residentes ou que tenham interesses diretos na região.
As competências atribuídas aos Comitês expressam essa lógica de pluralidade. Entre
suas principais funções, destacam-se: i) promover o debate das questões relacionadas a
recursos hídricos e articular a atuação das entidades intervenientes; ii) arbitrar, em primeira
instância administrativa, os conflitos relacionados aos recursos hídricos; iii) aprovar o plano
de recursos hídricos da bacia; iv) acompanhar a execução do plano de recursos hídricos da
bacia e sugerir as providências necessárias ao cumprimento de suas metas; v) propor ao
conselho nacional e aos conselhos estaduais de recursos hídricos as acumulações, derivações,
captações e lançamentos de pouca expressão, para efeito de isenção da obrigatoriedade de
outorga de direitos de uso de recursos hídricos, de acordo com os domínios destes; vi)
estabelecer os mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e sugerir os valores a
serem cobrados; ix) estabelecer critérios e promover o rateio de custo das obras de uso
múltiplo, de interesse comum ou coletivo. Trata-se, portanto, de espaços institucionais que
materializam a lógica da gestão integrada e participativa.

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Essa estrutura conecta-se diretamente às discussões globais que articulam ética, ciência
e governança. O documento da UNESCO, “A ética do uso da água doce” (SELBORNE, 2001)
já alertava, no início do século XXI, para a necessidade de construir um novo modelo científico
que fosse ao mesmo tempo transdisciplinar e sustentado por valores éticos. Esse modelo
deveria ser capaz de integrar, em diálogo constante, os aportes das ciências sociais, da
economia, da filosofia moral e das engenharias, rompendo com visões fragmentadas e
tecnicistas. A proposta, portanto, reforça a compreensão de que a crise hídrica não pode ser
reduzida a um problema exclusivamente técnico ou de engenharia: trata-se de um fenômeno
global, complexo e multidimensional, que exige múltiplos olhares e a articulação permanente
entre diferentes campos do conhecimento.
Sob essa perspectiva, as instituições de governança hídrica mais adaptativas e eficazes
são aquelas que conseguem equilibrar tradição e inovação, apropriando-se de tecnologias
contemporâneas sem desconsiderar práticas já consolidadas que se mostraram historicamente
eficazes. São instituições que asseguram a transparência dos processos decisórios, ampliam o
acesso público à informação e promovem formas de participação social realmente efetivas.
Nesse contexto, a inclusão das mulheres nas instâncias de decisão emerge como um imperativo
ético, político e democrático. Mais do que uma questão de equidade formal, trata-se de
reconhecer o impacto positivo que sua participação ativa tem para a diversificação de
perspectivas, a democratização das políticas e a construção de arranjos mais justos na gestão
da água (SELBORNE, 2001).
De igual modo, o envolvimento dos povos e comunidades tradicionais se revela
indispensável. Esses grupos, por meio de suas experiências sociais, culturais e produtivas,
desenvolveram ao longo do tempo um rico arcabouço de saberes e práticas em estreita relação
com os biomas onde vivem. Seus conhecimentos, que articulam manejo sustentável,
espiritualidade e relação simbiótica com a natureza, oferecem referências fundamentais para
a formulação de soluções inovadoras. São contribuições que não apenas favorecem a
mitigação dos impactos da crise hídrica, mas, sobretudo, ampliam a capacidade de adaptação
às mudanças climáticas, recolocando a Terra e seus ciclos naturais no centro do planejamento
urbano e territorial. Esse diálogo entre diferentes formas de saber é condição essencial para a
formulação de políticas públicas mais inclusivas, consistentes e sustentáveis, capazes de
responder à complexidade da governança das águas.
Nessa perspectiva, a definição de princípios diretivos para a governança da água não
deve ser entendida como fim em si mesma, mas como compromisso permanente com a ação.
É necessário fomentar e compartilhar pesquisas avançadas que consolidem um modelo de
ciência ético, transdisciplinar e comprometido com a vida, capaz de articular engenheiros,
cientistas sociais, economistas e filósofos morais em diálogo permanente. Apenas dessa forma
será possível enfrentar a complexidade da crise hídrica e fortalecer a governança democrática
das águas no Brasil.

Aspectos Metodológicos

Esse olhar para quem atua nas esferas da participação política é importante, pois
impacta diretamente a formulação e a implementação de políticas públicas, estando
intrinsecamente conectado à noção de governança. Afinal, “quem participa” dos espaços de
decisão influencia não apenas a qualidade, mas também a legitimidade e a eficácia das
políticas adotadas (Chhotray e Stoker; 2009; Matos, 2020);
A postura epistemológica adotada para o desenvolvimento deste estudo é de natureza
interpretativa, reconhecendo que a compreensão da governança das águas exige a valorização

7
de diferentes olhares e experiências. Partiu-se do pressuposto de que os arranjos de governança
não se esgotam em suas regras formais, mas dependem, em grande medida, da composição
social de seus membros e da diversidade (ou ausência dela) nos processos deliberativos.
É importante ressaltar que a análise apresentada neste ensaio corresponde a um
fragmento de um projeto de pesquisa mais amplo, estruturado a partir de quatro categorias
analíticas principais: i) composição e representação; ii) perfil socioeconômico dos
representantes; iii) percepção sobre o processo decisório; e iv) percepção dos representantes
sobre os organismos colegiados. O recorte aqui explorado privilegia parcialmente a primeira
e a segunda categorias, contribuindo para a reflexão acerca da representatividade nos Comitês
de Bacia Hidrográfica, em diálogo com os dilemas entre tecnocracia e diversidade.
A primeira etapa da pesquisa consistiu no levantamento da quantidade de Comitês de
Bacia Hidrográfica existentes em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal, bem como
do número de membros que compõem cada organismo. À medida que esses dados foram sendo
obtidos, procedeu-se ao contato direto com os Comitês Estaduais e ao envio do questionário
estruturado aos seus representantes. Toda a coleta de informações foi realizada por meio
eletrônico, favorecendo a abrangência territorial da pesquisa e a uniformidade no registro das
respostas.
O survey foi conduzido entre novembro de 2017 e novembro de 2019, abrangendo o
universo de 12.004 representantes — entre titulares e suplentes — distribuídos em 203
Comitês de Bacia Hidrográfica já criados e implementados no país. No processo de análise,
foram excluídas respostas duplicadas ou incongruentes, resultando em uma amostra final
correspondente a 35% do total de assentos. Embora o percentual de retorno possa ser
considerado relativamente baixo, o número de respostas válidas superou o tamanho mínimo
necessário da amostra (1.976) para garantir um nível de confiança de 95% e margem de erro
de 2%.
Ainda que os dados não sejam recentes, sua relevância permanece significativa, uma
vez que se trata de um levantamento nacional inédito em sua escala e detalhamento. Além
disso, os padrões identificados refletem estruturas históricas e institucionais da política de
recursos hídricos que não se alteram substancialmente em curto prazo. Nesse sentido, mesmo
diante de mudanças ocorridas desde 2019, os resultados aqui apresentados continuam sendo
relevantes para compreender tendências persistentes e subsidiar reflexões atuais sobre
inclusão, diversidade e tecnocracia na governança das águas.

Análise e discussão dos dados

Os Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs) são instâncias colegiadas criadas para
deliberar sobre a gestão dos recursos hídricos em determinada bacia. Seu funcionamento é
regulado por regimentos internos, aprovados em plenária, que definem o número de
representantes e as regras de participação. As plenárias, abertas e públicas, permitem a
qualquer interessado acompanhar as discussões e opinar sobre os temas em pauta, reforçando
o caráter participativo desses espaços.
O levantamento realizado identificou mais de 12 mil assentos disponíveis nos comitês
estaduais de bacia hidrográfica no Brasil. O primeiro olhar voltou-se aos protagonistas que
ocupam esses assentos, pois são eles os responsáveis por coordenar os múltiplos usos da água
e articular políticas públicas com forte interface hídrica. Independentemente do estágio de
implementação da política em cada estado, entende-se que a atuação desses representantes é
decisiva para a sustentabilidade da gestão da água como bem comum.
A análise quantitativa do survey permitiu observar a distribuição dos representantes no

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interior dos CBHs: 74% eram titulares e 26% suplentes. Embora os suplentes não tenham
direito a voto, possuem voz nas plenárias, participando ativamente das discussões. A figura
do suplente, sua quantidade e modo de substituição variam entre comitês, mas, em geral, há
previsão de vínculo direto com o titular. Em alguns casos, sobretudo onde ainda não há
mecanismos de cobrança pelo uso da água, identificou-se elevado número de assentos vagos.
Entre os índices mais expressivos de vacância destacaram-se: Rio Grande do Sul (46%), Piauí
(44%), Mato Grosso (40%), Pernambuco (36%), Paraná (31%), Bahia (30%), Alagoas (27%),
Rio de Janeiro (28%) e Rio Grande do Norte (26%). Embora tais dados não tenham sido
analisados em profundidade, revelam fragilidades na efetividade da participação e na própria
institucionalidade dos colegiados.
No que se refere ao perfil de gênero, os resultados evidenciavam uma composição
marcadamente masculina: 69% dos respondentes eram homens, enquanto apenas 31% eram
mulheres. Tal cenário expõe a persistência de barreiras estruturais que dificultam o acesso e a
permanência das mulheres em instâncias decisórias, confirmando a ausência de paridade nos
espaços de governança hídrica. Mais do que uma questão numérica, essa desigualdade
compromete a pluralidade de visões e experiências que deveriam orientar a formulação de
políticas públicas nesse campo. Isso conduz à necessidade de adoção de mecanismos
institucionais que ampliem a presença feminina nos Comitês, de forma a fortalecer a
representatividade, garantir diversidade de perspectivas e promover processos decisórios mais
justos e inclusivos. Como observou Phillips (2001, 273), a “representação adequada é, cada
vez mais, interpretada como implicando uma representação mais correta dos diferentes grupos
sociais que compõem o corpo de cidadãos”, o que a autora denominou de uma política de
presença.
A distribuição etária (Gráfico 1) também merece destaque. O maior percentual de
representantes concentra-se na faixa entre 51 e 60 anos (28%), enquanto apenas 9% se
enquadram na faixa considerada jovem. Ao todo, 46% dos membros possuem mais de 51 anos,
o que revela uma participação expressiva de pessoas com trajetórias consolidadas e ampla
experiência acumulada. Esse dado, contudo, chama atenção para a necessidade de políticas
que incentivem a entrada e a formação de novas lideranças, especialmente entre jovens, de
modo a garantir a renovação geracional e a continuidade da governança democrática da água.
A coexistência de diferentes gerações nos Comitês pode favorecer a complementaridade entre
experiência e inovação, fortalecendo os processos decisórios e ampliando a capacidade de
resposta aos desafios contemporâneos da gestão hídrica.

Gráfico 1 - Distribuição dos representantes por idade

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Fonte: Dados de pesquisa

Outro aspecto relevante diz respeito à escolaridade. Do total de respondentes, 87,3%
concluíram o ensino superior, 4,5% estavam cursando graduação e quase 60% ingressaram
em cursos de pós-graduação. Nos extremos, identificou-se 0,9% com apenas o ensino
fundamental completo e 8,5% com doutorado. Esse panorama revela um perfil de alta
qualificação acadêmica, mas marcado por uma distribuição desigual, que reforça a
concentração de capital educacional em determinados grupos sociais. Tal cenário evidencia a
distância entre os representantes dos Comitês e a média da população brasileira, levantando
questões sobre a reprodução de hierarquias sociais e sobre a efetiva democratização da
participação nesses espaços de governança hídrica.
Outro aspecto observado, foi a concentração por área de formação. Ao ser eleito para
participar de comitê, o representante deve estar preparado para defender os interesses do
segmento e da organização que representa. Assim, buscou-se conhecer a área de formação
desses atores. Após análise dos dados dos questionários de pesquisa, percebeu-se que os
comitês de bacias são espaços em que predomina a concentração dos respondentes em certas
áreas de formação, destacando-se os cursos de Engenharias (26,9%), distanciando-se da
segunda área mais indicada, que é das Ciências Sociais Aplicadas (Administração Pública e
de Empresas, Contábeis e Turismo Arquitetura, Urbanismo e Design, Comunicação e
Informação, Direito, Economia, Planejamento Urbano e Regional, Demografia e Serviço
Social), com 19,2% das indicações. Na sequência, foram indicadas as áreas de Ciências
Agrárias (Ciências de Alimentos, Ciências Agrárias, Veterinária e Zootecnia), com 17,5%;
Ciências Biológicas (Biodiversidade e Ciências Biológicas), com 12,7%;
Antropologia/Arqueologia, Ciência Política e Relações Internacionais, Educação, Filosofia,
Geografia, História, Psicologia, Sociologia e Teologia, com 7,7% das indicações; Ciências
Exatas e da Terra (Astronomia/ Física, Ciências da Computação, Geociências,
Matemática/Probabilidade e Estatística, Química), com 7,5%; multidisciplinar (Biotecnologia
e Ciências Ambientais), com 6,3%; Ciências da Saúde (Educação Física, Enfermagem,
Farmácia, Medicina e Nutrição), com 1,3%, e Linguística, Letras e Artes (Artes/Música e
Letras/Linguística), com 0,9% das indicações. Essa configuração indica que a tecnocracia
ainda ocupa posição central nos CBHs, limitando a incorporação de perspectivas sociais,
culturais e simbólicas no processo decisório.
Esse conjunto de dados reforça a necessidade de abordagens interdisciplinares e
transdisciplinares na gestão das águas. Sommerman (2005) e Bignardi (2011) destacam que
tais perspectivas permitem superar fronteiras disciplinares, integrando saberes práticos e
existenciais. Sehume (2013) acrescenta que esse tipo de abordagem busca consensos coletivos,
fundamentais para lidar com a complexidade dos fenômenos hídricos. Denota que a gestão
hídrica não pode circunscrever apenas a soluções setoriais ou tecnocráticas, sendo
necessariamente intersetorial, interdisciplinar, transdisciplinar e, sobretudo, pluriepistêmica.
Ao adotar essa perspectiva, entende-se que a governança das águas não pode se apoiar
exclusivamente em um regime único de conhecimento — como o técnico ou o científico —,
mas deve integrar diferentes epistemologias, incluindo saberes comunitários, tradicionais,
ancestrais, acadêmicos e simbólicos. Essa abordagem amplia a compreensão dos fenômenos
hídricos, pois reconhece que cada forma de conhecimento traz elementos específicos para a
leitura da realidade e para a formulação de soluções sustentáveis.
A análise de renda (gráfico 2) reforça o quadro de concentração socioeconômica nos
CBHs. Cerca de 33% dos representantes declararam renda familiar entre R$ 4.001 e R$ 8.000,

10
enquanto 72,5% situavam-se acima de R$ 4.001. Dentro desse grupo, 19% afirmaram ganhos
superiores a R$ 12.000. À época da coleta (2018), tais valores já superavam amplamente a
média nacional, quando o salário-mínimo era de R$ 954 e o rendimento domiciliar per capita
nominal atingia R$ 2.112 (IBGE, 2018).

Gráfico 2: Renda familiar média dos respondentes


(em%, salário-mínimo base de 2018 - R$ 954)
Fonte: Dados de pesquisa


Para efeito de atualização, em 2025 o salário-mínimo brasileiro foi fixado em R$
1.518, e o rendimento domiciliar per capita nominal médio do país, calculado para 2024,
alcançou R$ 2.069 (valor consolidado e divulgado em fevereiro de 2025). Esses dados
confirmam que os rendimentos declarados pelos representantes dos CBHs permanecem
significativamente acima da realidade média nacional em 2025. Essa correlação evidencia que,
mesmo após atualização monetária, a composição dos CBHs é fortemente elitizada em termos
de renda, reforçando a análise de Santos Júnior et al. (2004). Para os autores, os representantes
configuram uma “elite de referência” ou uma “comunidade cívica portadora de cultura
associativa”, caracterizada por melhores condições socioeconômicas, maior escolaridade e
elevado grau de informação e capacitação técnica, em contraste com a média da população.
Essa desigualdade também se expressava no cruzamento entre renda e gênero. Dos
representantes com rendimentos mais elevados (acima de R$ 8.001,00), apenas 9% eram
mulheres. Além de minoria, elas concentram-se nos grupos de menor renda familiar, revelando
a persistência de barreiras estruturais à igualdade de gênero.
A desagregação por setor de representação aprofunda essa análise (Gráfico 3), observa-
se que os representantes do segmento do Poder Público Federal concentravam-se nas duas
categorias de rendimentos mais elevados (acima de R$8.001,00). Nota-se também que, dos
27,5% dos representantes inseridos na categoria daqueles com renda familiar até R$ 4.000,00,
13% eram provenientes da sociedade civil e 10%, do poder público municipal. Esses dados
revelam a existência de hierarquias econômicas e institucionais que atravessam os próprios
segmentos representados, limitando a equidade nos espaços decisórios e reforçando os dilemas
de tecnocracia e exclusão nos CBHs.
Nesse sentido, Morin (2001), citado por Sommerman (2005), recorda que o conceito
de complexus significa “o que é tecido junto”, articulando elementos concorrentes e
contraditórios em uma mesma trama. Tal concepção remete diretamente à governança hídrica,
atravessada por fatores técnicos, políticos, econômicos e culturais, e que envolve distintos
níveis governamentais, usuários da água e sociedade civil. Bignardi (2011) define a

11
transdisciplinaridade como atitude científica que, reconhecendo a complexidade, busca
soluções sustentáveis a partir do respeito à diversidade e da interação entre saberes. Sehume
(2013) complementa que essa abordagem valoriza a interconectividade dos conhecimentos,
orientando-os à melhoria da condição humana. Aplicada à água, tal perspectiva reafirma sua
condição vital e insubstituível, enquanto direito fundamental e bem comum, convocando o
diálogo pluriepistêmico como fundamento para a construção de arranjos de governança mais
justos e inclusivos.

Gráfico 3: Renda familiar mensal dos respondentes, por setor de representação


em%, salário-mínimo base de 2018 - R$ 954
Fonte: Dados de pesquisa


O documento final da Rio+20 (2012) já reconhecia que “a água está no centro do
desenvolvimento sustentável”, mas alertava para as pressões geradas pelo crescimento
econômico e seus impactos sobre a segurança hídrica. Tal constatação evidencia que a questão
não se limita a sistemas locais, mas atravessa múltiplos setores usuários e diferentes escalas
de decisão, envolvendo disputas de poder, assimetrias de acesso e distintas formas de
apropriação do recurso.
A decisão coletiva, nesse contexto, exige uma interdisciplinaridade “forte”
(Sommerman, 2005), que não se limite à justaposição de discursos, mas promova efetivos
diálogos entre especialistas e atores sociais. Isso implica reconhecer nos membros dos CBHs
não apenas saberes técnicos, mas também práticos e existenciais, valorizando trocas
intersubjetivas e a construção coletiva de soluções. A governança hídrica, nesse sentido,
demanda uma perspectiva pluriepistêmica, que integre conhecimentos técnicos, científicos,
comunitários e tradicionais, reconhecendo sua complementaridade na formulação de políticas
mais justas e sustentáveis.
Diante desse cenário de representatividade, escolaridade e predominância técnica,
surge uma questão crítica: até que ponto a elevada qualificação, concentrada sobretudo nas
engenharias, não estaria restringindo a inclusão de interesses e demandas de grupos sociais
historicamente invisibilizados? A ausência de vozes de pescadores, quilombolas, comunidades
indígenas, pequenos agricultores e outros segmentos populares evidencia lacunas de justiça
social e ambiental. Enfrentar essas lacunas é condição indispensável para que a governança

12
das águas se consolide como democrática, inclusiva e efetivamente comprometida com o
direito à água como bem comum.

Considerações finais

O estudo realizado evidenciou que a composição dos Comitês de Bacia Hidrográfica
(CBHs) no Brasil estava fortemente marcada por desigualdades de gênero, geração, renda e
formação acadêmica, revelando a persistência de uma lógica tecnocrática que se sobrepondo
à promessa de participação plural estabelecida pela Política Nacional de Recursos Hídricos.
Embora concebidos como “Parlamentos das Águas” — instâncias descentralizadas,
consultivas e deliberativas —, os dados demonstraram que esses colegiados, no período de
realização da pesquisa, permaneciam distantes desse ideal democrático. A predominância de
homens, majoritariamente engenheiros, com idade superior a 51 anos e situados em faixas de
renda muito acima da média nacional, pode limitar a diversidade de olhares e experiências,
comprometendo a efetividade desses fóruns como arenas de governança democrática.
Nas esferas da participação política em geral — seja no Congresso Nacional, no poder
executivo ou nos organismos colegiados de gestão das águas —, a presença das mulheres
permanece desproporcionalmente reduzida em comparação à dos homens. Tal desequilíbrio
não decorre apenas de escolhas individuais, mas é resultado de um conjunto de barreiras
estruturais: culturais, que reforçam estereótipos de gênero; institucionais, que dificultam o
acesso a espaços de decisão; e econômicas, que limitam os recursos necessários à participação.
Esses obstáculos, quando combinados, produzem um sistema persistente de exclusões e
desvantagens difícil de ser desarticulado, repercutindo diretamente sobre a legitimidade e a
qualidade das políticas públicas.
A baixa presença de mulheres, jovens e outros públicos, e a concentração em
formações técnicas e exatas reforçam assimetrias históricas de poder e exclusão. Torna-se,
portanto, necessário ampliar os mecanismos de mobilização e inclusão, incorporando não
apenas conhecimentos técnicos, mas também saberes comunitários, científicos, culturais e
simbólicos. A valorização dessa diversidade pode permitir enfrentar a crise hídrica de modo
justo, sustentável e coerente com o reconhecimento da água como direito fundamental e bem
comum.
Outro aspecto revelado pelos dados foi a concentração de representantes oriundos das
engenharias. Essa predominância, pode ainda ser um reflexo da herança histórica da política
hídrica brasileira, estruturada sob um paradigma tecnocrático que privilegia soluções
infraestruturais — como barragens, adutoras e sistemas de controle — em detrimento da
consideração de dimensões sociais, culturais e ambientais. Embora o conhecimento técnico
seja indispensável, sua supervalorização homogeneíza o debate e invisibiliza saberes que
poderiam enriquecer o processo decisório. Cabe lembrar que os representantes — titulares e
suplentes — são eleitos entre seus pares em cada segmento (poder público, usuários e
sociedade civil). Nesse sentido, a ênfase em perfis técnicos revela também como os próprios
grupos legitimam determinados padrões de representação, reproduzindo hierarquias e
desigualdades no interior do processo eleitoral.
Além disso, a baixa participação de profissionais de áreas como ciências sociais,
direito, educação, saúde e humanidades pode comprometer a capacidade dos CBHs de
refletirem sobre os usos múltiplos da água em sua totalidade. Essas formações poderiam
oferecer subsídios essenciais para compreender a água como bem coletivo, direito humano e
elemento estruturante da vida comunitária. A ausência desses olhares amplia a tendência de

13
construção de políticas fragmentadas, que privilegiam usuários de maior poder econômico e
político, ao mesmo tempo em que marginalizam populações ribeirinhas, quilombolas,
indígenas e pequenos agricultores. A eleição entre pares, nesse contexto, acaba reforçando
uma espécie de “círculo fechado”, em que os mesmos perfis são reiteradamente legitimados,
consolidando uma tecnocracia participativa que, embora formalmente democrática, limita a
diversidade e enfraquece a justiça social nos arranjos de governança.
A reflexão sobre “quem participa” dos espaços decisórios é, portanto, central para
pensar a governança hídrica, como evidenciado nos estudos de Chhotray e Stoker (2009) e
Matos, 2020. A presença ou ausência de determinados grupos impacta não apenas a
formulação e a implementação das políticas públicas, mas também a legitimidade e a
efetividade dessas políticas. A qualidade das decisões depende diretamente da diversidade de
vozes presentes nos debates. Olhar as instituições e os arranjos de governança pela lente da
diversidade deve ser entendido como um exercício permanente, que desafia estruturas
consolidadas e exige novos compromissos éticos e políticos.
Diversidade e inclusão, nesse sentido, não são princípios abstratos, mas condições
práticas para a formulação de políticas mais eficazes, justas e representativas. Como
demonstram Borba e Lüchmann (2007; 2010), os mecanismos de fixação de assentos em
conselhos gestores tendem a privilegiar setores que detêm maior “legitimidade de
representação”, produzindo um efeito de filtragem que resulta na formação de uma “elite
participativa”. Esse processo, ainda que formalmente democrático, restringe a entrada de
novos atores e reduz a capacidade de renovação e pluralização dos espaços de governança.
A literatura sobre governança (Kooiman, 2003, 2008; Chhotray e Stoker, 2009) reforça
que ela emerge como resultado da interação entre múltiplos atores sociais e políticos, em um
sistema de regras que organiza práticas, poderes e responsabilidades. No caso brasileiro, a
criação da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997) formalizou esse arranjo,
estabelecendo as funções e competências do Sistema Nacional de Gerenciamento dos
Recursos Hídricos (SINGREH), incluindo os Comitês de Bacia. Contudo, a existência de
regras formais não garante, por si só, a efetividade da governança: é necessário que os atores
que compõem esses espaços tenham condições de influenciar as decisões, expressando de fato
os interesses e objetivos dos grupos que representam.
Dessa forma, a gestão integrada de recursos hídricos deve incorporar a segurança
hídrica como referência multidimensional, orientando a tomada de decisão e a formulação de
políticas. Isso significa reconhecer a água não apenas como insumo técnico, mas como bem
vital, cultural, simbólico e político (Matos, 2024), cujo acesso e uso refletem disputas de
poder, desigualdades sociais e distintos regimes de conhecimento. A governança das águas,
ao assumir essa complexidade, precisa ser capaz de transformar a diversidade em potência,
assegurando um futuro em que justiça social, sustentabilidade e direito à vida caminhem
juntos.
É importante destacar, por fim, as limitações deste estudo. Os dados analisados
referem-se ao período de 2017 a 2019 e, embora revelem tendências estruturais persistentes,
não capturam possíveis mudanças recentes nos CBHs. Além disso, o ensaio corresponde
apenas a um recorte de um projeto de pesquisa mais amplo, que abrange quatro categorias
analíticas principais: (i) composição e representação; (ii) perfil socioeconômico dos
representantes; (iii) percepção sobre o processo decisório; e (iv) percepção dos representantes
sobre os organismos colegiados. O foco dado neste trabalho privilegiou apenas parte desse
universo.

14
Essas limitações, entretanto, reforçam a relevância do tema e abrem caminhos para a
continuidade das investigações. Novos levantamentos nacionais, atualizados, podem permitir
a comparação entre diferentes períodos, identificando avanços ou retrocessos em termos de
inclusão e diversidade. Estudos qualitativos, com entrevistas em profundidade, também
podem enriquecer a compreensão sobre as experiências dos representantes, especialmente
aqueles pertencentes a grupos sub-representados. Além disso, uma agenda de pesquisa
promissora consiste em examinar o dilema da representatividade substantiva. Ou seja, em que
medida a diversidade descritiva se converte em diversidade substantiva no interior dos CBHs
(se traduz em diversidade de vozes, agendas e decisões)? Como alerta a literatura sobre
representação (Phillips, 2001), a inclusão numérica, embora necessária, não é suficiente. Essas
indagações não diminui a necessidade de se ampliar a presença desses grupos, mas reforça a
necessidade de criar condições institucionais e políticas que busquem assegurar que sua
participação seja efetiva, e não apenas simbólica. Mulheres, jovens ou representantes de
minorias, por exemplo, podem conquistar assentos nos Comitês de Bacia Hidrográfica e, ainda
assim, ter suas vozes silenciadas, suas pautas sistematicamente preteridas em face de interesses
mais consolidados ou mesmo não conseguir transpor para o espaço deliberativo as demandas
que atravessam suas histórias, experiências e necessidades. Nesse cenário, sua presença corre
o risco de não se converter em incidência efetiva sobre as políticas públicas. Isso direciona
para a necessidade de analisar os mecanismos institucionais capazes de assegurar que a
presença numérica se traduza em voz ativa, influência real e transformação das agendas
políticas. Sendo, portanto, necessário fortalecer os processos de formação e ampliar redes de
apoio. Sem transformações estruturais, a inclusão corre o risco de permanecer restrita ao nível
formal, sem produzir os efeitos substantivos indispensáveis para democratizar a governança
da água.


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