Drama das Escrituras, O.pdf

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About This Presentation

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Slide Content

O drama das Escrituras é um primor de erudição bíblica, integrando métodos
críticos sólidos com uma disposição de fé que está aberta à revelação do Deus
vivo por meio de sua Palavra. Esse livro envolvente torna acessível aos
estudantes a visão panorâmica da Bíblia que tem sido obscurecida por séculos
de batalhas confessionais e foi fragmentada pelo racionalismo do Iluminismo.
[Essa obra] consegue tornar o mundo bíblico verdadeiramente habitável,
servindo assim de ponte entre a Bíblia e a experiência cristã.
Mary E. Healy, da Notre Dame Graduate School of Christendom College
Esse panorama breve e ainda assim penetrante e cativante da dramática
mensagem bíblica da Criação, Queda e redenção — de Gênesis a Apocalipse
— se tornará uma leitura obrigatória não somente para estudantes que estão
iniciando seus estudos teológicos, mas para todos que desejam ver a floresta
bíblica e não apenas suas árvores.
Max Turner, professor de Estudos do Novo Testamento
da London School of Theology
A redescoberta do significado da história é uma das mais importantes
descobertas recentes na intepretação bíblica. Esse livro magistral é uma
excelente introdução para o estudante dedicado, combinando o compromisso
evangélico com a autoridade normativa das Escrituras com uma profunda
compreensão da erudição contemporânea. Bartholomew e Goheen prestaram
um excelente serviço à comunidade cristã ao esclarecer a história bíblica de
um modo que pode ser vivida no mundo de hoje.
Trevor Cooling, da University of Gloucestershire
Em O drama das Escrituras, Bartholomew e Goheen fornecem uma
intepretação cristã da história bíblica de Gênesis a Apocalipse. Eles fazem
isso de um modo que visa a lembrar os cristãos contemporâneos de que eles
também habitam essa mesma história e precisam viver dentro dela, dando
continuidade às obras e palavras de Jesus no mundo atual. O resultado é um
desafio para recuperar as Escrituras como uma base não somente para a igreja

e a teologia, mas também para a própria vida.
Raymond Van Leeuwen, professor de Estudos Bíblicos da Eastern
University
Esse livro chegou no momento certo. Bartholomew e Goheen produziram
uma apresentação breve e acessível de toda a história bíblica ressaltando
tanto a unidade das Escrituras quanto sua profunda relevância cultural atual.
Para leitores que consideram a Bíblia uma sucessão de fragmentos
devocionais desconexos destinados principalmente à moralidade e à
espiritualidade individuais, esse livro chegará como um choque salutar, um
lembrete de que as Escrituras canônicas centradas em Cristo constituem uma
Palavra de Deus coerente que desafia a direção religiosa fundamental da
civilização ocidental. Baseado em estudos eruditos profundos e amplos, mas
escrito de modo envolvente para um grande gama de leitores, O drama das
Escrituras promete ser uma ferramenta indispensável para muitos cristãos
que foram despertados para o chamado de Deus a um envolvimento cultural
sério, em nome de Cristo, com um mundo pós-cristão escravo dos ídolos
tanto do modernismo quanto do pós-modernismo.
Albert M. Wolters, autor de Criação restaurada: base bíblica para uma
cosmovisão reformada (Cultura Cristã)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Bartholomew, Craig G.
O drama das Escrituras : encontrando o nosso lugar na história bíblica / Craig G.
Bartholomew e Michael W. Goheen ; tradução de Daniel Kroker. -- São Paulo : Vida Nova,
2017.
288 p.
ISBN 978-85-275-0754-7
Título original: The drama of Scripture: finding our place in the biblical story
1. Bíblia 2. Histórias bíblicas I. Título II. Goheen, Michael W. III. Kroker, Daniel
17-0522 CDD 230.041
Índices para catálogo sistemático:
1. Histórias bíblicas

©2004, de Craig G. Bartholomew e Michael W. Goheen
Título do original: The drama of Scripture: finding our place in the biblical story,
edição publicada pela BAKER ACADEMIC (Grand Rapids, Michigan, EUA).
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por
SOCIEDADE RELIGIOSA EDIÇÕES VIDA NOVA
Rua Antônio Carlos Tacconi, 75, São Paulo, SP, 04810-020
vidanova.com.br | [email protected]
1.
a edição: 2017
Proibida a reprodução por quaisquer meios,
salvo em citações breves, com indicação da fonte.
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram traduzidas diretamente da New International
Version (NIV). As citações com indicação da versão in loco foram traduzidas diretamente da New
Revised Standard Version (NRSV) e da King James Version (KJV) ou extraídas da Nova Versão
Internacional (NVI).
DIREÇÃO EXECUTIVA
Kenneth Lee Davis
GERÊNCIA EDITORIAL
Fabiano Silveira Medeiros
EDIÇÃO DE TEXTO
Arthur Wesley Dück
REVISÃO DA TRADUÇÃO E
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Ingrid Neufeld de Lima
REVISÃO DE PROVAS
Ubevaldo G. Sampaio
GERÊNCIA DE PRODUÇÃO
Sérgio Siqueira Moura
DIAGRAMAÇÃO
Claudia Fatel Lino
CAPA

Souto Crescimento de Marca

Para Doug Loney,
pelo seu sacrifício e dom de escrever.
Para Al Wolters,
por sua influência formativa em nós dois.
Para Gordon Wenham,
por seu fiel trabalho acadêmico
nas Escrituras ao longo de muitos anos.

SUMÁRIO

Lista de figuras
Prefácio
Prólogo: A Bíblia como uma grande história
Ato 1.Deus estabelece seu reino: Criação
Ato 2.Rebelião no reino: Queda
Ato 3.O Rei escolhe Israel: redenção iniciada
Interlúdio.
Um relato do reino aguardando um desfecho: o período
intertestamentário
Ato 4.A vinda do Rei: redenção realizada
Ato 5.Propagando a notícia do Rei: a missão da igreja
Ato 6.A volta do Rei: redenção concluída

1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
22.
23.
24.
25.
LISTA DE FIGURAS
A raposa e o corvo
A raposa e o corvo reconsiderada
Percival e Abigail
Planta baixa de uma catedral
Mitos pagãos versus Gênesis 1
Uma compreensão bíblica da humanidade
Uma compreensão bíblica da humanidade — os efeitos do pecado
Jornadas de Abraão
O Êxodo
Impérios Hitita e Egípcio, c. 1500 a.C.
Peregrinações no deserto
Estrutura da aliança
Conquista da terra
Distribuição da terra entre as doze tribos
Ciclos de juízo
Impérios de Davi e Salomão
Reino dividido
Impérios mundiais
Impérios Ptolemaico e Selêucida, c. 240 a.C.
Palestina na época de Jesus
Asno em uma cruz
Primeira viagem missionária de Paulo
Segunda viagem missionária de Paulo
Terceira viagem missionária de Paulo
Cumprimento nos Evangelhos

26.Expectativa judaica

PREFÁCIO
Este livro originou-se do encontro entre Mike Goheen e Craig Bartholomew
em Birmingham, Inglaterra, no verão de 2000. Precisando de um livro-texto
para a disciplina de teologia bíblica que ensinava, Mike abordou Craig (um
versado biblista) e pediu a ele que o escrevesse. Craig propôs que os dois
trabalhassem juntos no livro, para mantê-lo cônscio dos estudos bíblicos
acadêmicos (ponto forte de Craig), bem como dos estudos missiológicos e de
cosmovisão (foco de Mike). É sabido que se você quiser estragar uma
amizade, escreva um livro com um amigo! Temos a alegria de informar que
tendo chegado ao fim desse projeto ainda somos bons amigos. Na verdade, o
projeto foi mutuamente enriquecedor.
O drama das Escrituras foi escrito tendo em mente alunos universitários
de primeiro ano. Ele foi elaborado como livro-texto para uma disciplina
introdutória de teologia bíblica lecionada na Redeemer University College
em Ancaster, Ontário, Canadá. Como universidade cristã, a Redeemer está
comprometida com um estudo acadêmico claramente cristão moldado pela
Bíblia. Queremos que nossos alunos primeiro entendam a verdadeira natureza
das Escrituras: elas são a história de Deus, a história verdadeira do mundo.
Somente quando são compreendidas pelo que são, elas podem se tornar o
fundamento para a vida humana, incluindo a vida do acadêmico. Nosso
segundo objetivo para os estudantes é que aprendam a articular uma
cosmovisão completamente bíblica ao desenvolver as categorias mais
abrangentes do enredo da Bíblia: Criação, pecado e redenção. Este livro foi
escrito para atingir o primeiro objetivo, ele estabelece a base para o segundo e
de modo bastante natural conduz a ele.
O drama das Escrituras conta a história bíblica da redenção como uma
narrativa unificada e coerente da obra contínua de Deus em seu reino. Depois
que Deus criou o mundo e a rebelião humana o desfigurou, ele passou a

restaurar o que havia feito: “Deus não deu as costas para um mundo
destinado à destruição; voltou-se a ele com amor. Iniciou a longa jornada de
redenção para restaurar os perdidos como seu povo e o mundo como seu
reino”.
1 A Bíblia conta a história da jornada de Deus nesse longo caminho de
redenção. É um drama unificado e que se desdobra de modo progressivo a
respeito da ação de Deus na história para a salvação do mundo todo. A Bíblia
não é uma mera junção aleatória de história, poesia, lições morais e
teológicas, promessas confortantes, princípios de orientação e ordens; em vez
disso, ela é essencialmente coerente. Todas as partes da Bíblia — cada
acontecimento, livro, personagem, ordem, profecia e poema — precisam ser
compreendidas no contexto do enredo único.
2
Muitos de nós temos lido a Bíblia como se fosse apenas um mosaico de
pequenas partes: partes teológicas, partes morais, partes histórico-críticas,
partes de sermão, partes devocionais. Mas quando lemos a Bíblia de um
modo tão fragmentado, ignoramos a intenção de seu autor divino em moldar
nossa vida por meio da história que ela conta. Todas as comunidades
humanas existem a partir de alguma história que fornece um contexto para
entender o significado da história e que molda e direciona sua vida. Quando
permitimos que a Bíblia se torne fragmentada, há o perigo de ela ser
absorvida em qualquer outra história que esteja moldando a nossa cultura e
ela, assim, deixará de moldar nossa vida como deveria. A idolatria distorceu a
história cultural dominante do mundo ocidental. Se como cristãos
permitirmos que essa história (e não a Bíblia) seja a base de nosso
pensamento e ação, então nossa vida manifestará não as verdades das
Escrituras, mas as mentiras de uma cultura idólatra. Logo, a unidade das
Escrituras não é uma questão secundária: uma Bíblia fragmentada pode na
verdade gerar adoradores de ídolos teologicamente ortodoxos, moralmente
íntegros e fervorosamente piedosos!
A fim de que nossa vida seja moldada pela história das Escrituras,
precisamos entender bem duas coisas: primeiro, a história bíblica é uma
unidade convincente da qual podemos depender; segundo, cada um de nós
tem lugar nessa história. Este livro é a narração dessa história. Convidamos
os leitores a torná-la a sua história, encontrar nela o seu lugar e vivenciá-la

como a verdadeira história de nosso mundo.
Há três ênfases importantes neste livro. Em primeiro lugar, enfatizamos o
escopo abrangente da obra redentora de Deus na Criação. A história bíblica
não avança para a destruição do mundo e do nosso próprio “resgate” ao céu.
Em vez disso, ela culmina na restauração de toda a Criação à sua virtude
original. O escopo abrangente de Criação, pecado e redenção está evidente
em toda a história bíblica e é central para uma cosmovisão bíblica fiel.
Em segundo lugar, enfatizamos o próprio lugar do cristão na história
bíblica. Alguns se referem a quatro perguntas fundamentais em uma
cosmovisão bíblica: “Quem sou?”, “Onde estou?”, “O que está errado?”,
“Qual é a solução?”. Tom (N. T.) Wright acrescenta uma quinta pergunta
importante: “Que horas são?”.
3 Com isso, nos pergunta: “Onde nós nos
encaixamos nessa história? Como ela molda a nossa vida no presente?”.
Como parte de nossa narrativa da grande história da Bíblia, exploraremos as
respostas bíblicas a essas cinco perguntas.
Em terceiro lugar, ressaltamos a centralidade da missão na história
bíblica.
4 A Bíblia narra a missão de Deus de restaurar a criação. A missão de
Israel decorre disso: Deus escolheu um povo para concretizar novamente os
propósitos criacionais que Deus tinha para a humanidade e, assim, ser luz
para as nações, e o Antigo Testamento narra a história da resposta de Israel
ao seu chamado divino. Jesus entra em cena com a missão de assumir para si
próprio a vocação missionária de Israel. Ele encarna o propósito de Deus para
a humanidade e conquista a vitória sobre o pecado, abrindo o caminho para
um novo mundo. Quando seu ministério terreno termina, ele deixa a sua
igreja com o mandato de continuar nessa mesma missão. Em nossa própria
época, localizada entre o Pentecostes e a volta de Jesus, nossa tarefa central
como povo de Deus é testemunhar acerca do governo de Jesus Cristo sobre
toda a vida.
Além disso, apropriamo-nos da útil metáfora de Tom Wright, a qual
retrata a Bíblia como um drama.
5 Mas enquanto Wright fala de cinco atos
(Criação, pecado, Israel, Cristo, igreja), nós contamos a história em seis atos.
Acrescentamos a vinda da nova criação como elemento final e singular do

drama bíblico. Também acrescentamos um prólogo. Esse prólogo trata de
modo preliminar do que significa dizer que a vida humana é moldada por
uma história.
Se você está usando este livro para uma disciplina ou estudo bíblico, você
pode acessar recursos em língua inglesa em nosso site
www.biblicaltheology.ca que ajudará no uso deste livro: uma ementa da
disciplina, slides de PowerPoint, um plano de leitura para uma disciplina de
treze semanas, leituras complementares e muito mais.
Projetos com essa abrangência e tipo, além dos autores, sempre envolvem
contribuições de muitas pessoas, e há várias a quem expressamos aqui a
nossa gratidão. Em primeiro lugar, agradecemos aos muitos estudantes da
Redeemer University College que leram o manuscrito em vários estágios e
ofereceram comentários pertinentes, especialmente Elizabeth Buist, Elizabeth
Klapwyk, Ian Van Leeuwen e Dylon Nofziger. Apreciamos a ajuda que
Dawn Berkelaar forneceu em uma pequena seção do livro. Para os diagramas
e desenhos no livro, somos gratos a Ben Goheen pelo talento artístico. Fred
Hughes, ex-diretor da School of Theology and Religion na University of
Gloucestershire, tem apoiado este projeto desde o início, leu todo o
manuscrito de uma versão anterior e ofereceu muitas sugestões úteis. Ele
também proporcionou a oportunidade de Mike e Craig trabalharem juntos,
convidando Mike como acadêmico visitante no International Centre for
Biblical Interpretation da University of Gloucestershire durante o verão de
2002, quando escreveu a maior parte do manuscrito. Também somos gratos
pelo apoio da Redeemer University College, que desde o início do projeto
ofereceu apoio e assistência de muitos tipos. Estamos endividados para com
nossos amigos e colegas Gene Haas e Al Wolters no Religion and Theology
Department da Redeemer e Wayne Kobes no Theology Department do Dordt
College, Sioux Center, Iowa. Tanto Gene quanto Wayne também lecionam
disciplinas de teologia bíblica no primeiro ano do curso e deram sugestões
úteis. Al foi um mentor dos dois autores e apreciamos grandemente o seu
sábio conselho e incansável apoio.
No Reino Unido, Alan Dyer e Mark Birchall sempre apoiaram este projeto
e fizeram muitos comentários úteis em suas repetidas leituras do manuscrito.

Infelizmente, mais ou menos na época em que entregamos o manuscrito ao
editor, Mark partiu para estar com o Senhor. Sentiremos imensamente sua
falta. Na África do Sul, Wayne Barkhuizen fez comentários preciosos sobre o
manuscrito.
Jim Kinney, gerente da Baker Academic, foi muito solícito e encorajador.
Ele e alguns de seus colegas leram um esboço inicial e ofereceram crítica e
conselho perspicazes que moldaram significativamente o manuscrito final.
Sem dúvida alguma, aquele com quem estamos mais em dívida é Doug
Loney, nosso colega na Redeemer, deão de artes e humanidades e membro do
departamento de língua inglesa. Doug forneceu a este projeto muito tempo e
habilidade como escritor, pegando nosso manuscrito em suas duas versões e
o transformando no que acreditamos ser um texto empolgante e coerente.
Também agradecemos à esposa de Doug, Karey, e à esposa de Mike, Marnie,
por sua paciência e apoio. Dedicamos este livro a nossos colegas na
Redeemer, Doug Loney e Al Wolters, e a Gordon Wenham da University of
Gloucestershire, cujo empenho fiel em estudos do Antigo Testamento durante
muitos anos tem sido uma bênção para nós dois.
1 Contemporary Testimony Committee of the Christian Reformed Church, Our world belongs to
God: a contemporary testimony (Grand Rapids: CRC, 1987), parágrafo 19.
2 Estamos cientes dos vários argumentos que estudiosos da Bíblia levantaram contra a unidade das
Escrituras. Tratamos de algumas dessas preocupações e de várias questões hermenêuticas de modo
mais acadêmico em “Story and biblical theology”, in: Craig Bartholomew et al., orgs., Out of Egypt:
biblical theology and biblical interpretation (Grand Rapids: Zondervan, 2004).
3 N. T. Wright, Jesus and the victory of God (London: SPCK, 1996), p. 443, 467-72.
4 Para duas boas discussões a respeito de uma ênfase emergente na centralidade da missão para a
história bíblica, veja Richard Bauckham, Bible and mission: Christian witness in a postmodern world
(Grand Rapids: Baker, 2003); e Christopher Wright, “Mission as a matrix for hermeneutics and biblical
theology”, in: Bartholomew, Out of Egypt.
5 N. T. Wright, “How can the Bible be authoritative?”, Vox Evangelica, n. 21 (1991): 7-32; idem,
The New Testament and the people of God (London: SPCK, 1992), p. 139-43.

PRÓLOGO
A Bíblia como uma grande história
Observe atentamente esta figura. O que você acha que está acontecendo?
Figura 1: A raposa e o corvo
Se você tiver uma imaginação fértil, será capaz de inventar alguma
história sobre a raposa e o corvo, ou até mais de uma história. Mas todos os
leitores criteriosos sabem que, a não ser que se possa situar o evento
esboçado nessa figura no contexto de sua história de origem, é difícil para

qualquer leitor ter certeza do significado que o autor (ou artista) tem em
mente.
Agora observe a imagem novamente, com a inclusão de mais
informações:
Figura 2: A raposa e o corvo reconsiderada
Você pode entender o que acontece entre essa raposa e esse corvo
somente se tiver algum conhecimento de toda a história que envolve esse
episódio. Quando é revelado que há uma fome na floresta e que animais
espertos como a raposa usam todos os tipos de estratégias desonestas para
conseguir comida, você começa a perceber por que a raposa poderia estar
reduzindo o corvo. Primeiro você precisa saber algo sobre o início, o meio e
o fim da história. Somente depois disso, poderá entender qualquer um dos
episódios dela. Isso não se aplica somente a histórias fictícias com essa, mas
também à vida: precisamos de alguma percepção da “grande história” do

mundo antes do significado de qualquer acontecimento em nossa vida fazer
sentido.
Isso nos leva a mais um exemplo, uma história que talvez esteja mais
próxima de nossa própria experiência de vida uma fábula sobre raposas
sedutoras e corvos fabricados:
Figura 3: Percival e Abigail
Percival e Abigai estão sentados à mesma mesa durante um encontro após
o culto para recém-chegados na igreja. Enquanto tomam café e comem
sanduíches, começam a falar sobre várias coisas. Chega um determinado
momento em que os outros à sua mesa já haviam saído e alguém
intencionalmente remove suas xícaras de café e começa a empilhar cadeiras.
Contudo, Percival e Abigail mal notam essas coisas. Cada um está
começando a pensar que poderia valer a pena conhecer essa outra pessoa um
pouquinho melhor. Assim, eles combinam de se encontrarem novamente, em
um café tranquilo, para um doce e, claro, mais café. Mas a verdadeira razão
para o encontro ali é que é um lugar muito mais adequado para uma conversa
particular do que aquele salão da igreja cheio de pessoas. (Em respeito à
privacidade desse jovem casal, decidimos não incluir mais uma ilustração
aqui.)
Ao retomarem a conversa, Abigail e Percival aos poucos se dão conta de
que estão compartilhando detalhes da vida particular de cada um: eles
começam a contar as histórias de sua vida. De que ele é o mais novo de
quatro e o único menino, extremamente mimado por três irmãs corujas. Que
ela nasceu em Nova Deli, enquanto seus pais estavam servindo no consulado

e passou seus anos de ensino médio em quatro países diferentes. Aos poucos,
eles lançam as linhas gerais do enredo e começam a preencher as lacunas:
Percival mal se afastou mais de 300 quilômetros da fazenda da família
(embora tenha muita vontade de viajar). Abigail fala quatro idiomas e pode
entender mais alguns. Durante a infância, ele passava os feriados com uma
multidão de primos na casa de campo de seus avós em Muskoka. Uma vez
ela celebrou a virada do ano mergulhando em Mauri Bay (África do Sul). E
assim prosseguem, percorrendo as memórias das crenças e medos da
infância, primeiro emprego de verão, planos para a formação profissional e
expectativas para o futuro.
A única resposta apropriada a “Conte-me sobre você” é contar uma
história ou uma série de histórias. Ao compartilhar essas narrativas pessoais,
passamos a conhecer uns aos outros. Não queremos entender somente o que a
outra pessoa é agora, neste momento, mas também como ela veio a ser assim.
Quais são as experiências, ideias e pessoas que moldaram sua vida? Suas
histórias pessoais fornecem o contexto e explicam muito a respeito de sua
vida. Contudo, à medida que continuam a conversa, elas poderiam perguntar:
para dar sentido à nossa vida, devemos nos basear apenas em nossas histórias
pessoais? Ou há uma história verdadeira que é maior do que nós dois, por
meio da qual podemos entender o mundo e encontrar significado para a nossa
vida? Será que as nossas histórias pessoais — quer separadas, quer juntas —
fazem parte de uma história mais abrangente?
A fim de entender nosso mundo, dar sentido à nossa vida e tomar as
decisões mais importantes sobre como devemos viver, dependemos de
alguma história. Na verdade, entre alguns filósofos, teólogos e estudiosos da
Bíblia, há um reconhecimento crescente de que “uma história […] é […] o
melhor modo de falar sobre como o mundo realmente é”.
1 Assim como é
difícil entender a primeira figura sem um enredo, também o é nos detalhes
isolados de nossa vida. Percival precisa saber algo sobre o contexto da vida
de Abigail a fim de entender o que é importante para ela. Do mesmo modo,
precisamos de uma grande história como pano de fundo se quisermos
entender a nós mesmos e o mundo em que nos encontramos. Experiências
individuais fazem sentido e adquirem significado somente se vistas no

contexto ou na estrutura de uma história que acreditamos ser a verdadeira
história do mundo: cada episódio das histórias de nossa vida encontra seu
lugar ali.
Isso não significa que toda história é tão importante quanto qualquer
outra. Há uma grande variedade de histórias. Algumas meramente nos
entretêm; outras nos ensinam o que é certo e bom ou nos advertem de perigo
e do mal. Mas também há histórias que são básicas ou fundacionais: elas nos
fornecem uma compreensão de todo o nosso mundo e do nosso lugar nele.
Essas histórias abrangentes nos proporcionam o significado da história
universal. Elas foram chamadas de “grandes narrativas”, “grandes histórias”
ou “metanarrativas”. Cada um de nós (quer estejamos conscientes disso ou
não) tem uma. Para estruturar e dar forma e significado à nossa experiência
de vida, todos dependemos de uma história em particular.
Lesslie Newbigin trabalhou como missionário na Índia durante muitos
anos e escreveu extensamente sobre a importância dessas grandes narrativas
para entender nossa vida. Ele traça a conexão entre história e compreensão:
“O modo de compreendermos a vida humana depende de que concepção
temos da história humana. Qual é a história verdadeira da qual a minha vida
faz parte?”.
2 O filósofo Alasdair MacIntyre concorda, afirmando que nossas
decisões que dão rumo à vida são moldadas e reguladas pela nossa percepção
de como elas se encaixam nesse contexto maior: “Somente posso responder a
pergunta: ‘O que devo fazer?’ se puder responder à pergunta anterior: ‘De
que história creio que faço parte?’”.
3 Esses dois pensadores presumem
corretamente que há mais de uma história básica competindo em nossa
cultura por aceitação e por uso para dar sentido atualmente à nossa vida.
Qual história uma pessoa vive faz uma enorme diferença em como ela
interpreta os acontecimentos na vida. Tomemos o divórcio como exemplo.
Até quando o divórcio é necessário e a coisa certa para uma pessoa fazer,
cristãos sempre verão o divórcio como muito longe do ideal que Deus tem em
mente para um homem e uma mulher unidos no casamento. Logo, ele é uma
tragédia. O divórcio não se encaixa na história bíblica de como a nossa vida
deve ser vivida uns com os outros e diante de Deus. Mas essa perspectiva é
radicalmente diferente da que muitas pessoas possuem em nossa cultura.

Uma vez que o individualismo e o consumismo são elementos centrais na
história cultural ocidental, muitas vezes o divórcio é apresentado como algo
bastante positivo: nenhuma tragédia, antes um passo corajoso de crescimento
pessoal. Podemos perceber que essas duas visões de divórcio não procedem
de uma discordância trivial. Suas raízes vão ao fundamento das respectivas
histórias que deram às diferentes visões a sua forma e essência.
Enquanto Newbigin vivia e trabalhava entre os hindus e muçulmanos da
Índia, ele se debatia com o significado das histórias fundamentais
compartilhadas nessas culturas e como essas histórias poderiam se relacionar
ao cristianismo. E, de modo parecido, quando se aposentou e voltou à
Inglaterra, Newbigin se esforçou sinceramente para compreender justamente
qual história de vida estava refletida em sua própria cultura (ocidental e
europeia) e como ela também poderia se relacionar à outra história
abrangente com a qual estava comprometido: a Bíblia. O que ele passou a
perceber é que a história básica pressuposta em grande parte da cultura
ocidental moderna é humanista e tem suas raízes no Iluminismo europeu dos
séculos 17 e 18. A crença de que a razão humana é a medida de todas as
coisas e de que “conhecimento é poder”
4 permeava a sociedade europeia. As
pessoas acreditavam que somente por meio da ciência e da tecnologia, e
totalmente à parte de Deus, a humanidade poderia construir um mundo
perfeito.
Newbigin sustenta categoricamente que essa história abrangente é inútil e
falsa. Visto que ela se tornou o fundamento para a vida humana, ela também
é perigosa. Ela é uma história falsa, em absoluta contradição com a verdade
da história bíblica. Desde o Iluminismo, o pensamento e a vida humanos no
mundo ocidental têm se adequado a essa falsa visão, muitas vezes produzindo
efeitos desastrosos. Mas como Alasdair MacIntyre insiste que reconheçamos,
temos sim uma escolha. A cosmovisão ocidental moderna não é a única
grande história desse tipo que está disponível. Há um outro modo melhor e
mais verdadeiro de ver o nosso mundo.
Ser humano significa adotar alguma história básica desse tipo por meio da
qual entendemos nosso mundo e traçamos nosso caminho nele. Isso não
significa que indivíduos estão necessariamente conscientes da história em que

se baseia a vida deles ou do efeito moldador que uma história desse tipo tem
tido sobre seus pensamentos e ações.
5 Por exemplo, muitos estudantes de
faculdade e universidade de nossa época estão levando uma vida sexualmente
promíscua. Eles podem viver assim sem pensar muito sobre por que fazem
isso. Logo, é muito pouco provável que chegarão a ver que a história em que
essa conduta é aprovada se deve em grande parte a Jean-Jacques Rousseau,
Sigmund Freud e outros pensadores desse tipo de séculos passados. Suas
visões do casamento e da pessoa humana subjazem as mudanças de atitude
em relação à sexualidade que ocorreu na década de 1960 e daí em diante.
6
Todos têm uma história básica. Como devemos relacionar a história
bíblica e a história humanista da cultura ocidental? Em suas diferentes
versões, a história ocidental moderna tem sido tão dominante e asseverado
tão fortemente seu direito de ser a história que muitas vezes se pressupõe que
devemos usá-la para entender a grande narrativa das Escrituras. Mas o
cristianismo bíblico afirma que somente a Bíblia conta a verdadeira história
de nosso mundo.
Newbigin identifica corretamente quanto está em jogo aqui: “A pergunta é
se a fé que encontra o seu foco em Jesus é a fé com a qual buscamos entender
toda a história ou se limitamos essa fé a um mundo particular de religião e
entregamos a história pública do mundo a outros princípios de explicação”.
7
Será que de fato faz uma diferença se usamos a história ocidental moderna
como base para entender a história bíblica ou se tentamos entender a história
ocidental a partir da história bíblica? Faz uma profunda diferença!
Construção alguma pode ter mais de um fundamento. Não podemos ter mais
de uma história fundamental como base do que pensamos e de como agimos.
Uma vez que você torna uma história parte de outra, a natureza da primeira
como “básica” é destruída. O ponto fundamental de uma história básica ou
dessas grandes narrativas é dar sentido à vida como um todo e essas grandes
narrativas não podem ser misturadas facilmente umas com as outras.
Histórias básicas são, em princípio, normativas — elas definem pontos de
partida, modos de ver o que é verdade — e elas são abrangentes, uma vez
que fornecem um relato do todo.
8 Como N. T. Wright afirma: “O ponto
fundamental do cristianismo é que ele oferece uma história que é a história de

todo o mundo. Ele é verdade pública”.
9
Pense, por exemplo, sobre a pergunta a respeito do que significa ser
humano. Essa é uma questão realmente importante, de que todas as histórias
tratam. No século 21, muitos de nós lidam com questões a respeito de quem
somos e há muito em jogo em chegar à resposta correta. Repetidamente
ouvimos uma resposta a essa pergunta de muitas direções diferentes e em
muitas vozes: “Você não é nada mais do que um produto aleatório do tempo
e do acaso”. Mas essa resposta provém de uma história que nega a própria
existência de Deus. A resposta da história bíblica é completa e radicalmente
diferente, como veremos. Da Bíblia aprendemos que somos obra de Deus e o
ápice de sua criação, sendo feitos à sua imagem. À medida que buscamos a
verdade acerca de quem somos, precisamos decidir qual dessas histórias
básicas é verdadeira. Claramente as duas não podem ser verdadeiras. Elas
fornecem respostas verdadeiramente diferentes às perguntas mais importantes
que temos e precisamos escolher uma delas.
Acreditamos que N. T. Wright está correto em afirmar que a Bíblia
apresenta uma história que é a verdadeira história de todo o mundo.
Portanto, a fé em Jesus deve ser o meio pelo qual um cristão tenta entender
toda a vida e a totalidade da história. A razão disso não é somente pelo fato
de que a história bíblica é abrangente ou por ser a história que herdamos ou
ainda por ser a história que funciona para nós. Precisamos levar a história
cristã a sério desse modo por que é verdade e nos conta de modo verdadeiro a
história de toda a história, começando com a Criação e terminando com a
Nova Criação. É assim que o mundo é e os cristãos precisam assegurar que a
história da Bíblia é a base de sua vida. Mas o que exatamente é a história
bíblica e como é que a compreendemos?
Há várias maneiras de deparar-se com a história cristã. A liturgia
eclesiástica (quer do tipo carismático livre ou do tipo mais tradicional) nos
lembra constantemente da história que deve moldar a nossa vida. Hinos e
canções de louvor a celebram. Os credos a recitam quando confessamos
nossa fé em Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Sermões explicam sua
importância para nossa vida semanalmente. Mas a fonte imbuída de
autoridade para a história cristã é a própria Bíblia.

O cristianismo ortodoxo sempre afirmou que as Escrituras são a norma
para a fé e para a vida, a grande regra e fonte de orientação. Todas as grandes
confissões cristãs certamente dizem isso. No entanto os cristãos nem sempre
concordam sobre como as Escrituras funcionam para dirigir a fé e a vida. Às
vezes, os cristãos trataram a Bíblia como se fosse uma lista sistemática de
proposições como as Confissões de Westminster ou Belga. Mas, embora a
Bíblia seja a fonte suprema desses importantes documentos, ela claramente
não está escrita do mesmo modo, como uma série de verdades proposicionais,
e nem possui o mesmo propósito. No decorrer das últimas décadas, um dos
desenvolvimentos mais empolgantes nos estudos acadêmicos da Bíblia tem
sido o reconhecimento crescente entre alguns estudiosos de que a Bíblia tem
a forma de uma história, de que é “uma narrativa imensa, heterogênea e
abrangente”.
10 Ela funciona como a Palavra de Deus imbuída de autoridade
para nós quando se torna a única história básica por meio da qual entendemos
nossa própria experiência e pensamento e o fundamento sobre o qual
baseamos as nossas decisões e ações.
Em outras palavras, a Bíblia nos fornece a história básica de que
precisamos a fim de entender o nosso mundo e viver nele como povo de
Deus. Sabemos que uma coisa é confessar a Bíblia como a Palavra de Deus,
mas muitas vezes outra bem diferente é saber como interpretar a Bíblia de um
modo que permita que ela influencie a totalidade de nossa vida. Facilmente
pode haver uma lacuna entre o que dizemos crer e como vivemos. Se Deus
deliberadamente nos deu a Bíblia na forma de uma história, então somente à
medida que prestarmos atenção nela como história e nos apropriarmos
ativamente dela como a nossa história sentiremos o pleno impacto de sua
autoridade e iluminação em nossa vida.
Há, desse modo, muito em jogo em como entendemos que a Bíblia está
falando a nós. Se a vermos como uma única história se desenrolando, ela
pode ser tremendamente empolgante. Essa história nos convida — nos
compele — a nos envolver. Pense novamente em Abigail e Percival, dois
jovens que contam um ao outro suas narrativas pessoais para averiguar se
poderia haver lugar para cada um deles na história de vida do outro. Se tudo
der certo para esses dois, eles descobrirão uma história maior e mais básica.

Suas vidas como indivíduos adquirirão novo significado como partes de uma
vida inteira que vivem juntos na história de Deus. À medida que nos
aprofundarmos na história da Bíblia, Deus será revelado a nós. Também nos
veremos chamados a fazer parte na missão de Deus e de seus propósitos com
a criação. Neste livro, nosso propósito é analisar a Bíblia atentamente como
uma história que se desenrola e ver o que uma interpretação desse tipo
produz. Afinal, a Bíblia afirma não ser nada menos que a própria história
verdadeira de Deus acerca de nosso mundo e nos chama a nos apropriarmos
pessoalmente dessa história.
A Bíblia é o desdobramento de uma única história?
Talvez você tenha ouvido a antiga fábula hindu em que seis homens cegos
encontram um elefante pela primeira vez. Cada um por sua vez o descreve de
modo distinto aos outros: o animal é como um muro, uma cobra, uma lança,
um ventilador, uma corda ou uma árvore. Embora haja um só elefante, cada
homem tem uma percepção completamente diferente, dependendo se, ao
aproximar-se do animal, tocou o seu lado, a tromba, a presa de marfim, a
orelha, o rabo ou a pata. A história nos lembra que muitas vezes é difícil ter
certeza de que nossa experiência isolada nos forneceu o retrato completo de
algo complexo. Tentar compreender a perspectiva e forma gerais da Bíblia
pode ser semelhante a isso. Dependendo de onde primeiro tocamos as
Escrituras, pode não ficar imediatamente claro que elas como um todo têm a
forma de uma história. Assim, o leitor que abre o Novo Testamento em
1Coríntios se vê lendo uma carta de um missionário a uma igreja nova com
problemas e se perguntando: como é que isso faz parte da grande história? Ou
considere a poesia de Salmos ou as imagens fantásticas de Apocalipse: como
e onde elas se encaixam na grande história?
Pode ser útil pensar na Bíblia — sendo um livro tão extenso e variado
quanto obviamente é — não como se fosse um elefante, mas algo ainda
maior: como um prédio enorme, uma catedralmercado.
Se você alguma vez visitou uma dessas igrejas magníficas, como a
Catedral Nacional de Washington (D.C.), a de Notre-Dame, em Montreal (ou

sua ainda mais famosa irmã mais velha em Paris), ou a de St. Paul, em
Londres, sabe que pode passar dias explorando cada uma delas. Há muitos
ângulos diferentes a partir dos quais se pode analisar uma catedral. Dentro
dela há muitas capelas secundárias e principais para explorar, repletas de
vitrais, pinturas, esculturas e outros tesouros. O que inicialmente parece ser
um enorme espaço único, na verdade é constituído de inúmeras salas e
corredores, torres e galerias, escadarias e passagens secretas. E isso é somente
o que as pessoas veem. Se obtiver permissão do deão, o diretor da catedral,
para explorar a grande igreja como um todo, descobrirá maneiras bem
variadas, além das tradicionais, de entrar e sair do prédio e muitos pontos de
observação diferentes a partir dos quais é possível vê-lo.
Figura 4: Planta baixa de uma catedral
Imagine a Bíblia com os seus sessenta e seis livros, escritos por dezenas
de autores humanos ao longo de mais de mil anos, como uma grande catedral
com muitas salas e andares e uma variedade de entradas. Você pode, por
exemplo, entrar na Bíblia por meio de um dos Evangelhos. De fato, muitas
pessoas são encorajadas a começar lendo a Bíblia com o Evangelho de
Marcos ou o Evangelho de João. Muitos cristãos começam a explorar o
Antigo Testamento relativamente tarde em sua jornada de fé. Poucos se veem

atraídos repetidas vezes às genealogias no início de Crônicas ou às longas
listas de leis alimentares em Levítico.
Se quisermos obter uma percepção da catedral como um todo, precisamos
responder a uma pergunta importante: qual é a entrada principal, o lugar a
partir do qual podemos nos orientar para o todo? Uma catedral tradicional
normalmente tem uma entrada principal pela porta ocidental, da qual
podemos observar a longa nave que chega até o fim do prédio, na parte
oriental, onde se encontra o altar. No Ocidente, essas igrejas sempre foram
construídas com o altar voltado para o Oriente, para Jerusalém (o que
originou a palavra “orientado”, agora também significando de modo mais
geral “fornecer um senso de direção”). A “catedral” da Bíblia tem muitos
temas. Já se propuseram vários temas abrangentes da Bíblia e eles são portas
diferentes a partir das quais podemos obter uma perspectiva sobre toda a
impressionante revelação de Deus.
Em nossa opinião, “aliança” (no Antigo Testamento) e “o reino de Deus”
(no Novo Testamento) apresentam uma forte reivindicação de ser a porta
principal pela qual podemos começar a entrar na Bíblia e a e enxergá-la como
uma grande e ampla estrutura. No Antigo Testamento, Deus estabelece uma
aliança com Noé, Abraão, Israel e o rei Davi; em Jeremias, Deus fala sobre
uma nova aliança que fará no futuro. Nos Evangelhos, está claro que o tema
principal no amplo ministério de ensino de Jesus é o reino de Deus. Marcos
(1.14,15) assim resume o ministério de Jesus: “Depois que João foi colocado
na prisão, Jesus foi para a Galileia, pregando as boas-novas de Deus. O
tempo chegou, ele afirmou. O reino de Deus está próximo. Arrependam-se e
creiam nas boas-novas!”. Considerar a aliança e o reino como entrada
principal à Bíblia não significa negar que há outras entradas. Leitores têm
sugerido muitas outras entradas como as melhores para obter uma visão do
todo: entradas como “promessa” e “presença”. Todas elas são úteis, mas são
um pouco como capelas secundárias ou entradas laterais e não a entrada
principal. Certamente temos um vislumbre da catedral a partir delas, mas não
obtemos a mesma visão geral do todo que obtemos a partir de aliança e reino.
Você pode perguntar: aliança e reino são a mesma entrada ou duas
diferentes? Essa é uma pergunta importante. O reino de Deus, como


explicamos abaixo, diz respeito ao governo de Deus sobre o seu povo e por
fim sobre toda a criação. A aliança se refere especificamente ao
relacionamento especial que Deus estabelece com seu povo à medida que
realiza seus planos na história. Na verdade, alianças eram relacionamentos
que reis estabeleciam com os povos sujeitos a eles. Quando o povo de Deus
entra em um relacionamento de aliança com ele, tem a obrigação de ser seu
povo subordinado e viver sob seu governo. Como logo veremos, a aliança
também insiste em que levemos a sério os propósitos divinos para com toda a
criação. Assim, aliança e reino são como dois lados da mesma moeda,
evocando a mesma realidade de modos ligeiramente diferentes.
Depois de todo o nosso estudo, constatamos que reino e aliança são a
porta dupla da mesma entrada principal à catedral bíblica, evocando a mesma
realidade. É por isso que usamos “reino” para estruturar este livro. As duas
coisas nos alertam sobre Deus como o grande Rei sobre tudo, que quer ter um
povo vivendo sob o seu reinado e espalhando a fragrância de sua presença
por toda a sua criação. Ambas também nos alertam sobre o fato de que esse
sempre foi o plano de Deus desde o início, mas que as coisas deram muito
errado. Agora Deus está realizando trabalho corretivo para restaurar seu
projeto e exercer suas intenções originais e permanentes. Nas alianças do
Antigo Testamento, o foco é restrito a Israel e, mesmo assim, sempre para
que Israel seja luz para as nações. No Novo Testamento, “o reino de Deus”
claramente tem em vista todas as nações e toda a criação. De qualquer modo,
quando entramos na Bíblia por essa porta dupla, aliança e reino nos alertam
sobre a importância do enredo da Bíblia. Este inicia com a criação e
prossegue a partir desse ponto. Essa entrada nos fornece a perspectiva correta
para compreender o que Deus está fazendo e o que está dizendo para nós
hoje.
Podemos não começar lendo a Bíblia em Gênesis e talvez nunca gastemos
muito tempo nas genealogias de Crônicas e nas leis de Levítico e Números.
Mas se entramos na Bíblia pela aliança e pelo reino, logo nos descobrimos
fazendo perguntas como estas:
Como a aliança de Deus com Abraão se relaciona com os seus




propósitos para toda a sua criação?
Se Jesus é o nosso Rei, o que dizer sobre o restante da criação?
Se este é o mundo de Deus, o que deu errado com ele? Como é que
Deus perdeu o controle sobre ele?
Como a igreja se encaixa nos propósitos do reino de Deus para toda a
criação?
O único modo de responder a essas perguntas é voltar ao início da Bíblia e
ler a história à medida que ela se desenrola em seus vários atos, começando
com “No princípio…”. E isso é o que faremos neste livro. Portanto, sim,
contanto que não entendamos a questão de uma maneira simplista, a Bíblia
certamente é uma única história que se desenrola. E neste livro contaremos
essa história.
O drama bíblico
No segundo século d.C., o dramaturgo Terêncio começou a escrever peças
em cinco “atos” distintos para espetáculos em teatros romanos. Desde então,
a tradição ocidental de narrativa dramática veio a reconhecer essa estrutura de
cinco atos como especialmente adequada ao desenvolvimento meticuloso de
uma história longa e importante. Os cinco atos são geralmente organizados
deste modo: (1) O primeiro ato nos fornece informação contextual essencial,
apresenta os personagens importantes e estabelece a situação estável que será
interrompida pelos acontecimentos que estão prestes a se desenrolar. (2) A
primeira ação começa, geralmente com a introdução de um conflito
significativo. O meio da peça (3) é a parte em que a ação principal do drama
ocorre. Aqui o conflito inicial se intensifica e se torna cada vez mais
complicado até (4) o clímax, ou o ponto de maior tensão, após o qual o
conflito precisa ser resolvido, de um modo ou de outro. Após o clímax vem
(5) a resolução, em que as implicações do ato do clímax são elaboradas para
todos os personagens do drama e a estabilidade é restaurada.
Essa é a estrutura que Wright tem em mente quando descreve a história
bíblica como uma peça de cinco atos, da qual uma grande parte do quinto ato

está faltando.
11 Os atores (nós) precisam improvisar uma segunda cena
adequada no ato 5, preparando para a conclusão que Deus revelou, para a
qual a nossa peça precisa se dirigir.
12
A aplicação de Wright da estrutura de cinco atos do drama à história
dramática da Bíblia é muito útil e é por isso que adotamos (em sua maior
parte) essa estrutura para a nossa própria versão da história bíblica. O ato 1,
que você está prestes a ler, fornece informação essencial sobre Deus, sobre a
humanidade e a respeito do mundo. Descreve uma situação estável, uma
criação muito boa. Os atores humanos iniciam o seu trabalho no jardim e a
história começa. No ato 2, o conflito é introduzido ao depararmos com um
inimigo misterioso do plano de Deus. Aqui o problema fundamental em
nosso mundo tem sua origem. No ato 3, o conflito (entre o pecado humano e
os bons propósitos de Deus para a criação) se intensifica e complicações
aparecem. O ato 4 é a narrativa de como a história das condutas graciosas de
Deus com suas criaturas rebeldes chega a um clímax na morte e na
ressurreição de Jesus Cristo. No ato 5, vemos as implicações do grande ato de
redenção de Cristo terem efeito nas vidas de sua comunidade.
E é aqui que, neste livro, nos afastamos da tradição de cinco atos (e do
modelo de Wright). Está claro que a história bíblica não termina
simplesmente na conclusão do quinto ato. O desdobramento do ato 5 também
não é caracterizado por uma resolução fácil. Embora a resolução tenha
ocorrido em Cristo, o conflito continua e na verdade se intensifica. O
propósito de Deus é nada menos que reconciliar toda a criação consigo, um
propósito realizado de uma vez por todas na morte e na ressurreição de seu
Filho cerca de dois mil anos atrás. Temos a própria promessa tremenda de
Deus de que o seu grande propósito para sua criação é contínuo e ainda não
terminou em nosso mundo. Há muito mais por vir na história de Deus. Ele
preparou mais um ato, que ainda será revelado, um ato diferente de qualquer
coisa que vimos ou imaginamos até aqui e sobre o qual a cortina da história
nunca se fechará. Assim, incluímos esse ato 6 em nossa narrativa da história
bíblica. Usando o reino de Deus como o nosso tema abrangente e a estrutura
de seis atos, identificamos os seguintes atos principais no drama bíblico:

Ato 1:Deus estabelece o seu reino: Criação
Ato 2:Rebelião no reino: Queda
Ato 3:O Rei escolhe Israel: a redenção é iniciada
Cena 1: Um povo para o Rei
Cena 2: Uma terra para seu povo
Interlúdio:
Um relato do reino aguardando um desfecho: o período
intertestamentário
Ato 4:A vinda do Rei: redenção realizada
Ato 5:Propagando a notícia do Rei: a missão da igreja
Cena 1: De Jerusalém até Roma
Cena 2: E a todo o mundo
Ato 6:A volta do Rei: redenção concluída
1 N. T. Wright, The New Testament and the people of God (London: SPCK, 1992), p. 40, grifo dos
autores.
2 Lesslie Newbigin, The gospel in a pluralistic society (Grand Rapids: Eerdmans, 1989), p. 15
[edição em português: O evangelho em uma sociedade pluralista, tradução de Valéria Lamim Delgado
Fernandes (Viçosa: Ultimato, 2016)].
3 Alasdair MacIntyre, After virtue (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1981), p. 216
[edição em português: Depois da virtude, tradução de Jussara Simões (São Paulo: EDUSC, 2001)].
4 Scientia potestas est. A expressão vem de Francis Bacon (1561-1626).
5 Fazemos uma distinção entre ter uma história que molda nossa vida e articular essa história.
6 Se uma história básica é similar a uma cosmovisão, então é intrigante ver que James Sire sugere
que um ministério cristão pode servir para ajudar pessoas a se tornarem conscientes de sua cosmovisão,
a chamar a atenção para o que está presente, mas do que elas podem não estar conscientes (The
universe next door: a basic worldview catalog, 3. ed. [Downers Grove: InterVarsity, 1997]) [edição em
português: O universo ao lado: um catálogo básico sobre cosmovisão, tradução de José Fernando
Cristófalo (São Paulo: Hagnos, 2009)]. Nick Pollard, um evangelista inglês que trabalha com
estudantes do ensino médio e da universidade, conta uma história encantadora relacionada a isso. A
abordagem evangelística de Nick tem em vista ajudar estudantes a ficar conscientes de sua história
básica ou de sua cosmovisão, de modo que possam perceber como isso se relaciona ao cristianismo.
Nick relata a respeito de um jovem que vai para casa empolgado em contar à sua mãe que havia
descoberto que é um hedonista epicureu!
7 Lesslie Newbigin, Foolishness to the Greeks: the gospel and Western culture (Grand Rapids:
Eerdmans, 1986), p. 61.
8 “A Palavra de Deus […] é uma história ampla, que alcança e engloba tudo: uma meta-história”
(Eugene Peterson, “Living into God’s story”). Esse artigo orginalmente apareceu no site “The ooze:
conversation for a journey” (www.theooze.com). O artigo está disponível em:
https://secure.electricurrent.com/freshresource/articles/index.cfm?

task=detail&ID=1081&bSHOW=no&navResources=2.
9 N. T. Wright, The New Testament and the people of God, p. 41-2.
10 Peterson, “Living into God’s story”.
11 A analogia de Wright de uma peça de cinco atos é analisada em mais detalhes nas páginas 238 e
239.
12 N. T. Wright, “How can the Bible be authoritative?”, Vox Evangelica, n. 21 (1991): 7-32; idem,
The New Testament and the people of God, p. 139-43. Alteramos ligeiramente a ilustração, sugerindo
seis atos e não cinco.

Deus estabelece seu reino
Criação
Os primeiros cinco livros da Bíblia são conhecidos como Torá ou Lei de
Moisés. Embora isso não signifique necessariamente que Moisés escreveu
todas as palavras, a maioria delas veio por meio dele e certamente ele é a
figura central na história que contam. O livro, Êxodo, narra o nascimento de
Moisés e sua ascensão como o líder por meio de quem Deus opera para tirar
os israelitas do Egito. Depois, Moisés está em quase todos os capítulos até o
fim de Deuteronômio. Mas isso reflete somente quatro dos cinco primeiros
livros. De onde veio o primeiro livro e por que está incluído como parte da
Lei de Moisés ao contar uma história que aconteceu muito antes do próprio
Moisés ter nascido?
Quem é o “SENHOR Deus”?
Provavelmente não tem muita importância para você que “Michael” é um
nome hebraico que significa “(Aquele) que é como Deus” ou que “Craig” é
um nome gaélico que significa “um afloramento rochoso”. Embora em nossa
cultura nomes sejam importantes, não é comum atribuirmos significado
especial a eles. Entretanto no mundo do Antigo Testamento que estamos nos
preparando para visitar no ato 1, o significado de nomes muitas vezes tem
grande importância. E não há nomes mais importantes do que aqueles que
identificam a Deus em Gênesis e nos outros livros do Antigo Testamento.
Em Gênesis 1, a palavra hebraica Elohim (traduzida simplesmente por
“Deus” nas versões bíblicas em português) é o nome comum para Deus,
usado em todo o antigo Oriente Próximo. E a Bíblia afirma que “Deus” traz
toda a criação à existência a partir do nada. Mas em Gênesis 2.4 outro nome
começa a ser usado. “Deus” é agora chamado de “o SENHOR Deus” (Yahweh

Elohim). Esse é um modo extremamente incomum de se referir a Deus e tem
o objetivo de revelar algumas coisas importantes sobre quem ele é.
Duas passagens fundamentais no Antigo Testamento (Êx 3; 6.1-12)
lançam luz sobre o misterioso nome Yahweh
1 (ou Jeová, em algumas versões
mais antigas da Bíblia).
2 Esses textos relatam a forma de Deus se revelar a
Moisés como Yahweh ao chamá-lo para tirar o povo de Israel da escravidão
no Egito. O nome Yahweh é o título que Deus escolhe para identificar a si
mesmo como o Redentor divino, o Deus que resgata seu povo da escravidão e
se encontra com ele no monte Sinai (Êx 19.4).
Quando os nomes Yahweh (SENHOR) e Elohim (Deus) são unidos
conforme Gênesis 2.4, a implicação pujante é de que o mesmo Deus que
resgata Israel da escravidão é o Deus que criou todas as coisas, o Criador do
céu e da terra.
3 “Yahweh, o Deus dos hebreus, é também o Deus de toda a
terra sobre a qual seu senhorio brilha por meio do granizo e do trovão”.
4 Os
israelitas primeiro passam a conhecer a Deus (por meio de Moisés) como seu
Redentor; somente mais tarde tomam conhecimento do seu papel como o
Criador. E isso não é muito diferente para nós, ainda que estejamos muito
mais adiante na história bíblica. Quando passamos a conhecer a Deus por
meio da obra salvífica de seu Filho, Jesus, o encontramos primeiro como
nosso Salvador e Redentor, todavia Deus continua sendo o Criador de tudo o
que era ou é ou será: ele é o único SENHOR Deus eterno, Yahweh Elohim.
Portanto, no instante em que começamos a testemunhar acerca de nossa fé e
contar a história cristã (e não somente a nossa história pessoal), somos
inevitavelmente levados de volta ao início de tudo: à própria Criação. “No
princípio, Deus…”.
Uma fé para Israel
A primeira cena de qualquer história merece nossa atenção e a primeira cena
da história bíblica não é exceção. Os primeiros capítulos de Gênesis, que
contam a história da criação, foram escritos para os israelitas há muito tempo
em uma cultura bastante diferente da nossa. Embora alguns aspectos das
histórias da criação em Gênesis 1 e 2 possam nos parecer estranhos,

precisamos lembrar que faziam sentido para o povo de Israel quando as ouviu
pela primeira vez. A razão disso é que o autor está usando imagens e
conceitos familiares aos seus próprios ouvintes. Quando lemos os primeiros
capítulos de Gênesis considerando o contexto do mundo antigo em que foram
escritos, começamos a perceber o poder da mensagem que essa história
almeja comunicar.
Vários estudiosos mostraram um forte aspecto de disputa ou
argumentativo em Gênesis 1 e 2. O antigo Oriente Próximo tinha muitos
relatos rivais de como o mundo surgiu. Essas histórias eram comuns no Egito
quando Israel estava cativo e em Canaã quando Israel começou a conquistá-la
como sua terra. Teria sido extremamente fácil para os israelitas adotarem as
histórias daqueles que viviam na terra antes deles ou ao lado deles e que
(afinal de contas) supostamente conheciam a terra muito melhor do que eles
mesmos. Muitos dos deuses adorados pelos cananeus estavam fortemente
associados à fertilidade da terra. Os recém-chegados, tendo dificuldades para
aprender a cultivar a terra, ficariam tentados a pedir ajuda a esses “deuses” e
não ao SENHOR Deus.
Temos muita informação sobre o tipo de histórias da criação que
circulavam no mundo antigo. É fascinante ver como a história contada em
Gênesis 1 e 2 contradiz deliberadamente alguns componentes importantes
delas. Por exemplo, observe como Gênesis 1.16 descreve o sol e a lua. O
texto não se refere ao sol pelo seu nome hebraico usual, mas em vez disso
meramente como “o luminar maior”, que Deus criou para o dia. De modo
similar, ele chama a lua de “o luminar menor”. Por quê? Provavelmente
porque o sol e a lua eram adorados como deuses com tanta frequência pelas
pessoas entre as quais os israelitas agora viviam. Na história de Gênesis, os
leitores não podem confundir o sol como uma divindade a ser adorada. As
Escrituras claramente descrevem o sol como algo criado, um objeto colocado
nos céus com o simples propósito prático de prover luz. Assim, toda a
atenção está dirigida àquele que criou essa luz maravilhosa, aquele cujo poder
é tão imenso que ele pode simplesmente dizer uma palavra e todo um
universo passa a existir. Nenhuma simples “luz” nos céus merece ser
reverenciada. Somente Deus é divino; somente ele deve ser adorado. Embora

toda a criação seja “muito boa” (Gn 1.31), ela é assim porque aquele que a
criou é infinitamente superior a qualquer coisa que criou.
E esse Criador transcendente não é como os deuses caprichosos descritos
na história da criação babilônica (o Enuma Elish), que criam a humanidade
meramente para atuar como servos dos deuses, estar à sua disposição e
mantê-los contentes. Em Gênesis, o Deus que criou o mundo coloca homens
e mulheres nele como o ápice do que trouxe à existência. A própria criação é
descrita como um lar maravilhoso preparado para a humanidade, um lugar
em que ela pode viver, prosperar e desfrutar da presença e companhia íntimas
do próprio Criador.
Que tipo de literatura é Gênesis 1?
As histórias da criação de Gênesis são, desse modo, argumentativas. Elas
afirmam contar a verdade sobre o mundo, contradizendo completamente
outras histórias desse tipo, comuns no mundo antigo. Israel era
constantemente tentado a adotar essas outras histórias como base para sua
cosmovisão, em lugar da fé no SENHOR Deus, que criou os céus e a terra. No
entanto, a narrativa da criação de Gênesis é mais do que uma disputa. Ela
também visa a nos ensinar de modo positivo o que a fé em Deus significa
para a maneira de pensar o mundo que ele criou e de como viver nele. Ela faz
isso na forma de história. E é precisamente a essa forma de história que
precisamos estar atentos para não interpretá-la equivocadamente.
Para entender a história da criação de Gênesis, precisamos antes entender
algo sobre o tipo de composição literária que ela é. Os próprios estudiosos
têm dificuldade em descrevê-la. Von Rad a vê como “doutrina sacerdotal” tão
rica em significado que “não se pode exagerar facilmente sua interpretação
teológica”.
5 Blocher vê o relato da criação como um exemplo de literatura de
sabedoria cuidadosamente elaborada.
6 Mas o que os estudiosos concordam é
que a história contada nos primeiros capítulos de Gênesis foi redigida de
modo muito cuidadoso: a evidência de habilidade na narração é clara. Logo,
precisamos nos concentrar tanto no modo com que a história é contada
quanto nos próprios detalhes e ponderar se esses detalhes devem ou não ser

interpretados conforme um historiador ou cientista contemporâneo os
interpretaria. De fato, essa é uma pergunta difícil: a história contada aqui é da
inauguração misteriosa da própria história. Mas as linhas gerais da história de
Gênesis estão certamente tão claras para nós quanto estavam para aqueles que
primeiro a ouviram. Deus é a fonte divina de tudo que existe. Ele está
separado de todas as outras coisas na relação especial de Criador para com a
criação. A formação da humanidade realizada por Deus tinha a intenção de
ser o ápice de todo esse trabalho de criar e formar. E Deus tinha em mente
um relacionamento muito especial entre ele próprio e essas que foram criadas
por último dentre todas as suas criaturas.
Nestes capítulos, a história da criação nos é contada, mas não para
satisfazer a nossa curiosidade do século 21 quanto aos detalhes de como Deus
criou o mundo. Por exemplo, indagamos se Deus criou durante um longo
período de tempo ou fez com que tudo que criou surgisse instantaneamente.
Contudo, a história de Gênesis é fornecida para que possamos ter uma
compreensão verdadeira do mundo em que vivemos, de seu autor divino e de
nosso próprio lugar nele. Como John Stek corretamente declara sobre os
relatos em Gênesis:
A intenção […] de Moisés era proclamar o conhecimento do verdadeiro Deus, como ele revelou a si
mesmo em suas obras de criação, proclamar um entendimento correto da humanidade, do mundo e
da história que o conhecimento do verdadeiro Deus acarreta e proclamar a verdade a respeito dessas
questões em face das noções de falsas religiões que eram predominantes em todo o mundo de sua
época.
7
Contra noções religiosas pagãs que predominavam no Egito e em Canaã,
Gênesis 1 proclama a verdade sobre Deus, sobre a humanidade e sobre o
mundo. Quando contrastado com os mitos do antigo Oriente Próximo, a
descrição de Deus, da humanidade e do mundo torna-se clara. Esse ato
introdutório nos apresenta os atores principais na peça — Deus e a
humanidade — e o mundo no qual a história bíblica se desenrola.
Mitos pagãosGênesis 1
deuses Deus
humanidadehumanidade
mundo mundo

Figura 5: Mitos pagãos versus Gênesis 1
O Deus que traz à existência todas as coisas
Ler o primeiro capítulo de Gênesis é em parte similar ao que poderia
acontecer com você em uma exposição de arte realmente significativa.
Imagine que você está sentado tranquilamente, estupefato com a beleza e o
poder das magníficas pinturas. Então alguém se aproxima de você e diz:
“Gostaria de conhecer o artista?”. Gênesis 1 é uma apresentação do Artista. E
que apresentação! As primeiras três palavras da Bíblia hebraica podem ser
traduzidas: (1) “no princípio”, (2) “[ele] criou”, (3) “Deus” (sujeito da ação).
Por meio de três palavras hebraicas curtas somos transportados de volta à
origem de tudo, à Fonte misteriosa e pessoal de tudo o que existe: o Deus
eterno e incriado. Esse Deus, sem início e sem fim, meramente profere uma
palavra de ordem a fim de trazer à existência todo o restante que existe.
A ideia de criação pela palavra preserva antes de tudo a distinção mais
radical entre Criador e criatura. A criação nem mesmo remotamente pode ser
considerada uma emanação de Deus. Ela não é de algum modo um
transbordar de seu ser, sua natureza divina. Em vez disso, é um produto de
sua vontade pessoal. A única continuidade entre Deus e sua obra é a sua
palavra.
Gênesis 1 nos apresenta Deus como a pessoa infinita, eterna e incriada que
pelas suas ações criativas traz toda a criação à existência. Os “céus e a terra”
(Gn 1.1) se referem à totalidade da criação. Luz e escuridão, dia e noite, mar,
céu e terra, plantas, animais e a humanidade — tudo isso vem desse Deus, de
sua atividade criadora poderosa e boa. Von Rad afirma: “A ideia de criação
pela palavra expressa o conhecimento de que o mundo inteiro pertence a
Deus”.
8
Isso é de fato um dos aspectos pelos quais a lógica mal consegue vadear,
ao passo que a fé consegue nadar. “O lugar onde a Bíblia começa é onde as
nossas mais fervorosas ondas de pensamento se quebram, são jogadas de
volta sobre si mesmas e perdem sua força em gotas e espuma.”
9 No livro de
Apocalipse, uma das razões mais fortes para a adoração contínua de Deus é

sua obra na criação:
Tu és digno, nosso Senhor e Deus
de receber glória, honra e poder,
porque tu criaste todas as coisas
e por tua vontade elas foram criadas
e têm a sua existência (Ap 4.11).
Esse hino de louvor no último livro da Bíblia ocorre na própria sala do
trono do céu. Isso é apropriado, pois ecoa uma verdade acerca de Deus
subentendida desde o início do relato da criação em Gênesis. Ao fazer a
criação surgir pela sua palavra de poder, Deus a estabelece como seu próprio
vasto reino. Dessa forma ele estabelece a si mesmo como o grande Rei sobre
toda a criação, sem limites de qualquer tipo, e digno de receber toda glória,
honra e poder por meio da adoração do que ele criou.
No antigo Oriente Próximo, as pessoas conheciam muito bem o que é
autoridade. Entre elas, o poder até mesmo de líderes tribais ou nacionais era
quase absoluto. E de vários modos em Gênesis 1, Deus é descrito como o
Monarca, a figura real cuja soberania se estende por direito e por poder sobre
toda a sua criação. A palavra mais insignificante de um rei mortal no mundo
antigo precisava ser entendida como uma ordem por qualquer pessoa que a
ouvisse. Mas esse Rei imortal fala e por sua ordem divina toda a criação
passa a existir exatamente como ele tenciona. À medida que Deus cria, ele dá
nome ao que cria e isso novamente é uma expressão de sua soberania. “O ato
de dar um nome significava, acima de tudo, o exercício de um direito
soberano […] Assim, a nomeação disso e de todas as obras de criação
subsequentes mais uma vez expressa vividamente a reivindicação divina de
senhorio sobre as criaturas.”
10
Em Gênesis 1, a palavra divina de ordem — a expressão repetida “Haja”
— traz à existência uma criação caracterizada por precisão, ordem e
harmonia:
Assim como Deus é aquele que coloca o tempo em movimento e estabelece o clima, ele também é
responsável por estabelecer todos os outros aspectos da existência humana. A disponibilidade de
água e a capacidade de a terra produzir vegetação; as leis da agricultura e os ciclos sazonais; cada
uma das criaturas de Deus, criadas com um papel a desempenhar — tudo isso foi ordenado por

Deus e era bom, não tirânico ou ameaçador.
11
A criação de Deus é “boa” e a virtude de sua criação só realça as
incomparáveis bondade, sabedoria e justiça do próprio Criador. Somente ele
é o Rei sábio sobre o grande reino de tudo que existe.
No entanto, na posição de Rei, Deus não se mantém distante de sua
criação. Ele não é o tipo de monarca que governa de longe sem interesse
algum em seus territórios e súditos. Tendo construído seu reino, Deus reina
sobre ele de modo profundamente pessoal. Gênesis 1 e 2 descrevem Deus
como altamente relacional. Ele fala, não somente para dar ordens, mas
também para expressar o seu próprio envolvimento na criação do cosmo. Há
a expressão misteriosa “Façamos…” em Gênesis 1.26 (que interpretamos
como Deus se dirigindo ao conselho celestial de anjos). Isso chama a atenção
para a pessoa de Deus e sua vontade de que haja outras entidades distintas de
(e, ainda assim, relacionadas a) si mesmo.
12 Contudo, de forma mais
dramática, quando Deus cria a humanidade, ele a abençoa e fala a ela
diretamente: “Sejam férteis e multipliquem-se; encham e subjuguem a terra”
(Gn 1.28). Há um relacionamento pessoal entre o Rei divino e seus súditos
humanos. Deus tem uma tarefa específica e os convida para participar com
ele, enchendo e ordenando o mundo, que ele lhes deu como seu lar. Gênesis 2
e 3 mostram a natureza pessoal de Deus ainda mais claramente. O SENHOR
Deus (Yahweh Elohim) caminha no jardim com Adão e Eva e mostra o
interesse mais íntimo e pessoal neles, em suas necessidades e em suas
responsabilidades.
A humanidade como a imagem de Deus
O ápice da história da criação em Gênesis é a criação da humanidade (1.26-
28). Na Bíblia, um homem ou uma mulher é uma criatura concebida e criada
por Deus como parte do mundo de Deus. Não importa como relacionamos a
atividade divina de criação a teorias científicas,
13 se formos fiéis ao que a
Bíblia tem a dizer sobre quem somos, não podemos nos considerar
meramente produtos aleatórios do tempo e do acaso (como fazem os
defensores da evolução ateísta). A humanidade é criada e, de acordo com

Gênesis (e o restante da Bíblia), cada ser humano realmente é, além do ser
criado, uma criatura especial.
Em Gênesis 1 e 2, o ensino sobre a humanidade é rico e variado. Singular
entre as criaturas que Deus cria, a humanidade é pessoal. Deus se dirige
somente ao homem e à mulher: eles desfrutam de um relacionamento pessoal
ímpar com Deus. Como Agostinho observou há muito tempo em suas
Confessions, fomos criados para Deus e o nosso coração está inquieto
enquanto não encontramos nosso descanso nele.
14 Gênesis 3.8 evoca de
modo impressionante esse relacionamento entre o Deus criador e suas
criaturas humanas. Deus tem o hábito de “andar pelo jardim no frescor do
dia” e se encontrar com o homem e a mulher que colocou ali. Gordon
Wenham observou como Gênesis descreve o jardim de um modo semelhante
ao tabernáculo, no qual Deus habita entre o seu povo.
15 Homens e mulheres
são criados para um relacionamento íntimo com Deus e nossa natureza
terrena não é obstáculo algum para esse relacionamento. Deus caminha com
regularidade com Adão e Eva no enorme jardim que separou para eles.
Discute com eles como esse grande parque está se desenvolvendo, como suas
plantas estão crescendo sob o seu cuidado e como está a harmonia entre os
animais.
Estudiosos modernos muitas vezes se referem a duas histórias da criação
em Gênesis, enxergando uma distinção entre o que é narrado em 1.1—2.4a e
2.4b-25. Isso é um pouco enganoso. Embora essas duas seções sejam
distintas, elas estão estreitamente relacionadas. Gênesis 1 examina a
humanidade em seu relacionamento com o mundo. Gênesis 2 concentra-se no
homem e na mulher em seu relacionamento um com o outro e com Deus. As
duas passagens usam imagens e metáforas diferentes, pois estão colocando
em foco aspectos diferentes do que significa ser humano.
Em Gênesis 1.26-28, Deus cria a humanidade à sua imagem, conforme a
sua semelhança. Note que as palavras “imagem” e “semelhança” enfatizam a
mesma ideia. Embora Deus seja o Criador infinito e a humanidade
meramente sua criação finita, há algo essencialmente semelhante entre eles.
“Imagem” é uma metáfora. À medida que a destrinçamos, precisamos ter em
mente que sua função como metáfora é chamar a nossa atenção para uma

semelhança notável entre seres humanos e Deus, ao mesmo tempo em que de
forma alguma nega que somos radicalmente diferentes de Deus.
Anteriormente, reconhecemos que Deus como Criador é radicalmente
diferente de tudo que criou: o que nos inclui. Mas se a humanidade é criada
“à imagem de Deus”, então de algum modo somos como aquele que nos
criou. Os versículos seguintes esclarecem essa semelhança.
Em Gênesis 1.26, Deus afirma: “Façamos o homem à nossa imagem […]
Domine ele […] sobre toda a terra”. Ele então diz aos seres humanos que
criou: “Sejam férteis e multipliquem-se; encham e subjuguem a terra.
Dominem sobre…” (1.28). A partir disso, deve estar claro que a semelhança
fundamental entre Deus e a humanidade é a vocação singular da humanidade,
seu chamado ou comissão feitos pelo próprio Deus. Sob Deus, a humanidade
deve dominar sobre as partes não humanas da criação na terra, no mar e no
ar, do mesmo modo que Deus é o dominador supremo sobre tudo. Como von
Rad explica:
Do mesmo modo que poderosos reis terrenos, para indicar sua reivindicação de domínio, erigem
uma imagem de si mesmos nas províncias de seu império em que não aparecem pessoalmente,
também o homem é colocado na terra à imagem de Deus como emblema soberano dele. Ele na
realidade é somente o representante de Deus, convocado para manter e impor a reivindicação divina
de domínio sobre a terra. A questão crucial na semelhança do homem a Deus, portanto, está em sua
função no mundo não humano.
16
No reino de Deus, o qual estabeleceu criando-o, o papel especial que ele
atribuiu à humanidade é que devemos servir como seus “sub-reis”, vice-
regentes ou administradores. Devemos dominar sobre a criação a fim de que
a reputação de Deus seja realçada em seu reino cósmico.
Gênesis 1.26-28 se tornou notório em alguns círculos ambientalistas por
causa do argumento de Lynn White de que esse ensino foi usado para
justificar grande parte da destruição ambiental que caracteriza o mundo
contemporâneo.
17 Essa passagem entende que a vocação da humanidade é
para governar ou dominar, mas é incorreto interpretá-la como se legitimasse o
senhorio implacável sobre a natureza e sua exploração. Na própria obra
criacional de Deus, ele age para o bem do que criou e não para o seu próprio
prazer egoísta. Por exemplo, ele cria um lar perfeito para a humanidade. Em

todas as etapas da obra divina nessa lar, a criação é descrita como “boa” e
“muito boa”. Sobre essa criação Deus chama o “dominador” humano para
servir de administrador ou subsoberano, com o intuito de concretizar o
próprio cuidado e proteção de Deus para com sua boa criação em seu próprio
domínio soberano sobre a terra. Salmos 8.6 expressa isso de modo
maravilhoso: a glória de seres humanos é que Deus os fez “dominadores
sobre as obras das [suas] mãos”. É impossível interpretar esse texto para
justificar que os seres humanos estão livres para fazer o que quiserem com a
obra de Deus. Acima de qualquer coisa, os guardadores humanos prestam
contas ao Criador divino acerca do mundo confiado ao seu cuidado.
Ser humano significa ter liberdade e responsabilidade enormes, responder
a Deus e prestar contas por essa resposta. Assim, a melhor forma de expressar
o conceito de “domínio” da humanidade sobre a criação pode ser afirmar que
somos os mordomos reais de Deus, colocados aqui para desenvolver o
potencial não revelado na criação divina, a fim de que toda ela possa celebrar
a glória de Deus.
Imagine que você é um escultor do século 15 e um dia recebe um e-mail
de Michelangelo lhe perguntando se estaria disposto a vir ao seu estúdio para
concluir uma obra que ele começou. Ele menciona que sua tarefa será
continuar a obra dele de tal modo que o produto final realçará a própria
reputação de Michelangelo! O chamado de Deus a nós para “ter domínio”
sobre a sua criação acarreta esse tipo de elogio ao que somos capazes de
realizar como seus mordomos. Também acarreta uma grande
responsabilidade correspondentemente pelo que resulta dessa mordomia. Se
isso é o que ser “à imagem de Deus” inclui, então claramente nosso serviço
para Deus deve ser tão amplo quanto a própria criação e incluirá cuidar bem
do meio ambiente. A passagem que começa em Gênesis 1.26 muitas vezes é
proveitosamente designada como o “mandato cultural ou criacional”. Ela nos
ordena a usar todos os tipos de atividade cultural a serviço de Deus. De fato,
há um elemento dinâmico “na imagem de Deus”.
O próprio Deus é revelado ou sua imagem “é refletida” em sua criação
precisamente conforme estamos ocupados na criação, desenvolvendo seu
potencial não revelado na agricultura, na arte, na música, no comércio, na

política, no estudo acadêmico, na vida familiar, na igreja, no lazer e assim por
diante, de modo que honre a Deus. Conforme nos apropriamos as ordens
criativas de Deus de “Haja…” e desenvolvemos os potenciais nelas,
continuamos espalhando a fragrância de sua presença em todo o mundo que
ele criou.
Gênesis 1 descreve a humanidade não segundo tiranos que exploram a
terra, mas, sim, conforme mordomos que dominam coram deo, diante da
presença de Deus. A natureza de nossa relação com Deus é expressa em
como cuidamos de sua boa criação. E não fazemos isso meramente como
indivíduos, mas como parceiros.
Em Gênesis 1, os seres humanos são criados “homem e mulher”. Uma
distinção de gênero está fixada na criação de modo que os que portam a
imagem de Deus são sempre macho ou fêmea, homem ou mulher. Isto é,
sempre estamos em uma relação uns com os outros, bem como numa relação
com Deus. Nenhum de nós consegue ser plenamente humano sozinho:
sempre estamos em uma variedade de relacionamentos. Os seres humanos
são criados para Deus. Gênesis 2 se concentra mais fortemente nisso e nos
outros relacionamentos em que seres humanos conduzem sua vida como
resultado do modo como Deus criou o mundo. Gênesis 2.18-25 conta a
história da criação divina de Eva como uma auxiliadora e companheira
adequada para Adão, ilustrando mais uma vez a natureza especial do amor de
Deus por suas criaturas. Deus expressa seu amor provendo o que é melhor
para as próprias pessoas. O domínio de Adão sobre a terra é representado em
sua nomeação dos animais: do mesmo modo que (em Gênesis 1) Deus
nomeou a criação à medida que a formava, também aqui Adão tem a
permissão de nomear os animais que Deus criou. Adão, portanto, tem um
relacionamento com Deus e outro com o mundo animal. Mas Adão também é
criado para a companhia humana. Isso é expresso no nível mais profundo em
seu relacionamento matrimonial com Eva, uma união cuja intimidade é
expressa na observação de que esses dois indivíduos se tornam “uma só
carne” (2.24).
O chamado de Adão e Eva para ter domínio sobre a criação se manifesta
em Gênesis 2 em sua responsabilidade de trabalhar e cuidar do jardim (2.15).

Com base na descrição fornecida em Gênesis 2.8-14, esse “jardim” tem mais
a ver com um grande parque nacional do que com um dos jardins de nossa
casa. Ele é imenso, com rios que o percorrem e muitas árvores e animais.
Assim, Adão e Eva são os primeiros agricultores e agentes encarregados de
zelar pela conservação do meio ambiente. Mais uma vez, vemos que ser
humano significa se relacionar de algum modo com a criação, alguém que
trabalha, explora o seu respectivo potencial e cuida dela. Os seres humanos
são criados para Deus e também uns para os outros e para a criação, a fim de
trabalhar nela. Conforme Salmos 8, é a nossa glória trabalhar e assim
apresentar a imagem de Deus.
Os diferentes relacionamentos em que Gênesis 1 e 2 contemplam a
humanidade podem ser mostrados assim:
Figura 6: Uma compreensão bíblica da humanidade
O mundo como reino de Deus
Embora o cristianismo tenha muitas vezes sido acusado de ser alheio a este
mundo, nesta altura deve estar claro que o início da história bíblica não
encoraja pessoa alguma a se sentir separada dele ou de algum modo superior

a ele: um mundo de espaço, de tempo e de matéria. A Bíblia descreve o
mundo material e criado como o próprio teatro da glória de Deus, o reino
sobre o qual ele reina. Esses capítulos iniciais de Gênesis são muito positivos
em relação ao mundo. Embora seja criado (e, portanto, nunca deve ser
colocado no mesmo nível que o Deus incriado), ele sempre é descrito como
“bom”. Ao longo de Gênesis 1, a repetição da palavra “bom” é um lembrete
de que toda a criação procede de Deus e, que em seu estado inicial, ela reflete
de modo maravilhoso o seu próprio desígnio e plano para ela. A criação tem
grande diversidade: luz e escuridão, terra e mar, rios e minerais, plantas,
animais, aves e peixes, ser humano de sexo masculino e feminino. Essa
liberalidade faz parte da intenção de Deus e sugere uma harmonia
maravilhosa das coisas criadas. À maneira de uma orquestra, ela produz uma
sinfonia de louvor ao Criador. Há uma ordem nessa diversidade; a palavra de
criação divina lhe concede estrutura.
Gênesis também revela que o nosso mundo existe no tempo. Deus é
aquele que cria o dia e a noite: ele os nomeia. Nesses primeiros capítulos,
pouco é dito sobre como Deus quer que a sua criação se desenvolva através
do tempo, mas claramente ele tem em mente o desenvolvimento do que criou.
O homem e a mulher devem produzir filhos de sua união de uma só carne e
essas gerações futuras irão se espalhar para subjugar a terra. A história de
Gênesis 2.4 começa com a expressão: “Este é o relato dos céus e da terra…”,
sugerindo que a história é parte integral da criação.
18 O trabalho de Adão e
Eva no maravilhoso parque criado por Deus marca o início de um longo
processo pelo qual seus filhos e seus descendentes desenvolverão as riquezas
da criação. A mordomia real de Adão e Eva será uma versão pequena do que
Deus quer que aconteça com toda a criação à medida que a história se
desenrola.
1 Neste livro, o nome Yahweh será normalmente traduzido por SENHOR, como em muitas versões
em português.
2 Em uma parte posterior do livro, analisaremos o significado do nome Yahweh.
3 Paulo faz algumas observações semelhantes em Colossenses 1.15-20: Cristo é “o primogênito
sobre toda a criação; porque por meio dele foram criadas todas as coisas […] E ele […] é a cabeça do
corpo, a igreja”.

4 Jean L’Hour, “Yahweh Elohim”, Revue Biblique 81 (1974): 530.
5 Gerhard von Rad, Genesis: a commentary, tradução para o inglês de John H. Marks (Phil-
adelphia: Westminster, 1961), p. 46.
6 Henri Blocher, In the beginning: the opening chapters of Genesis, tradução para o inglês de David
G. Preston (Downers Grove: InterVarsity, 1984), p. 27-38.
7 John Stek, “What says the Scripture?”, in: Howard Van Till et al., orgs., Portraits of Creation:
biblical and scientific perspectives on the world’s formation (Grand Rapids: Eerdmans, 1990), p. 230.
8 Von Rad, Genesis, p. 50.
9 Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall: a theological interpretation of Genesis 1—3, tradução
para o inglês de John C. Fletcher (London: SCM, 1959), p. 25.
10 Von Rad, Genesis, p. 51.
11 John Walton; Victor Matthews; Mark Chavalas, The IVP Bible background commentary: Old
Testament (Downers Grove: InterVarsity, 2000), p. 28 [edição em português: Comentário bíblico Atos:
Antigo Testamento, tradução de Noemi Valéria Altoé da Silva (Belo Horizonte: Atos, 2003)].
12 Para as diferentes interpretações sobre o plural “Façamos…”, veja Gordon Wenham, Genesis 1—
15, word biblical commentary (Waco: Word, 1987), p. 27-8.
13 Veja Bruce Milne, Know the truth: a handbook of Christian belief (Downers Grove: InterVarsity,
1999) [edição em português: Estudando as doutrinas da Bíblia, 3. ed., tradução de Neyd Siqueira (São
Paulo: ABU, 2005)].
14 Augustine, Confessions, tradução para o inglês de Henry Chadwick (Oxford: Oxford University
Press, 1991) 1.1 [edição em português: Confissões, tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros
(Rio de Janeiro: Ediouro, 1993)].
15 Veja mais adiante.
16 Von Rad, Genesis, p. 58.
17 Lynn White, “The historical roots of our ecologic crisis”, Science 155 (1967): 1203-7. Quanto a
um excelente tratamento sobre mordomia, veja Peter De Vos et al., Earthkeeping in the nineties:
stewardship of creation (Grand Rapids: Eerdmans, 1991).
18 O livro de Gênesis é estruturado por dez toledoths: cinco antes de Abraão e cinco depois dele.
Toledoth é uma palavra hebraica que pode ser traduzida por “Esta é a narrativa de…” ou “Este é o
relato de…” ou “Esta é a história de…”. Gênesis 2.4 é a primeira dessas fórmulas toledoth. A narração
da história começa aqui: “Esta é a história dos céus e da terra” (2.4—4.26). Os nove toledoths restantes
são: “Esta é a história da descendência de Adão” (5.1—6.8); “Esta é a história de Noé” (6.9—9.29);
“Esta é a história de Sem, Cam e Jafé” (10.1—11.9); “Esta é a história de Sem” (11.10-26); “Esta é a
história de Terá” (11.27—25.11); “Esta é a história do filho de Abraão, Ismael” (25.12-18); “Esta é a
história do filho de Abraão, Isaque” (25.19—35.29); “Esta é a história de Esaú” (36.1—37.1); “Esta é a
história de Jacó” (37.2—50.26; traduções dos autores).

Rebelião no reino
Queda
Um aspecto central de qualquer história é o conflito central, algo que dá
errado e precisa ser corrigido. Eugene Peterson o descreve assim: “Uma
catástrofe ocorreu. Não estamos mais em continuidade com o nosso bom
começo. Fomos separados dele por um desastre. Também estamos,
obviamente, separados de nosso bom final. Estamos, em outras palavras, no
meio de uma confusão”.
1 E a entrada do pecado no mundo perfeito de Deus é
o conflito cósmico que Gênesis descreve. Essa calamidade vem sobre a
criação logo depois de Deus dar forma a ela, ameaçando corromper a virtude
da própria criação e infectar com o mal todos os acontecimentos depois dela.
Gênesis 3 descreve esse elemento da história bíblica, muitas vezes chamado
(simplesmente e ominosamente) a história da “Queda”.
De acordo com o primeiro e o segundo capítulo de Gênesis, é importante
explorar o tipo de literatura com a qual estamos lidando. Ao analisar a Queda,
alguns estudiosos com muita rapidez recorrem a termos como “mito” e
“lenda”. Mas essa narrativa faz parte de uma estrutura maior (Gênesis 2.4—
3.24) iniciada com a importante expressão: “Este é o relato de…”, sugerindo
que, para o autor, o que vem a seguir tem relação com o que realmente
aconteceu. Assim, precisamos levar a sério os acontecimentos relatados em
Gênesis 3, mesmo que reconheçamos que os detalhes — incluindo uma
serpente que fala e árvores simbólicas — sejam diferentes daqueles de
qualquer texto histórico que estamos acostumados. Em nossa opinião, o
terceiro capítulo de Gênesis nos conta fidedignamente sobre a origem
misteriosa do mal no mundo de Deus. Ele estava arraigado na revolta do
primeiro casal humano. Eles foram tentados e sucumbiram, com
consequências catastróficas.

Está claro a partir dos primeiros dois capítulos de Gênesis que seres
humanos são bons quando Deus os cria. E até mesmo o nome do jardim em
que Deus coloca Adão e Eva — Éden — almeja evocar prazer e satisfação.
2
O Éden é fértil e rico em minerais. Vários estudiosos observaram que a
descrição do Éden mostra que é um lugar onde o próprio Deus habita. Isso é
confirmado em Gênesis 3.8, que afirma que o SENHOR Deus anda no Éden e
comunga ali com Adão e Eva. Em seu início, a criação tem a fragrância de
shalom, a palavra do Antigo Testamento para paz, significando a inteireza
rica, integrada e relacional que Deus deseja para a sua criação. A vida de
Adão e Eva é a vida de shalom. Eles caminham com Deus, têm um ao outro,
o jardim fornece tudo de que precisam enquanto cultivam seu solo fértil e
podam suas plantas viçosas. Não há nuvem de tempestade alguma neste
horizonte, nem indicação de problemas vindouros. O que poderia dar errado?
Todos sabemos por experiência própria que o mundo em que vivemos está
profundamente ferido, mas qual foi a causa disso? Quando lemos acerca da
vida no Éden, ansiamos por uma vida desse tipo. Por que nossa experiência é
tão diferente? Gênesis 3 responde a essa pergunta, mas talvez sem nos
fornecer todas as informações que gostaríamos de ter. Não ficamos sabendo
de onde a serpente que fala vem ou quem ela é. (Somente depois na Bíblia
aprendemos que essa “criatura” também é conhecida como Satanás; veja Ap
12.9). Como uma criatura dessas pôde sabotar a boa criação de Deus? Essas
perguntas não são respondidas e nos alertam para o mistério que envolve a
origem do mal na criação. Devemos levar esse mistério a sério.
A liberdade de escolha faz parte do que significa ser humano. Até mesmo
na boa criação de Deus, a liberdade que Adão e Eva possuem de amar
significa que também podem optar por não amar; logo, podem experimentar
a tentação. Mas o que a tentação traria para eles? A resposta é encontrada na
misteriosa “árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2.9). A serpente
tenta Eva, e o homem indiretamente, a comerem dessa árvore, contradizendo
o que Deus lhes ordenou que fizessem (2.17; 3.1-5). Mas o que isso
significa? Essa história é o único lugar na Bíblia que menciona uma árvore
desse tipo e é vital perceber que ela representa a tentação de ser autônomo
(das palavras gregas autos, “si mesmo”, e nomos, “lei”).

Adão e Eva podem obedecer a Deus ou desafiá-lo. Podem se submeter à
lei de Deus e desfrutar da vida ou buscar seu próprio caminho à parte de suas
instruções e experimentar a morte. Adão e Eva são seres criados, pleno e
maravilhosamente humanos na vivência de sua liberdade sob o reinado de
Deus, de acordo com a sua regra de vida. A tentação que enfrentam por causa
da serpente é de afirmar a sua autonomia: tornar-se uma lei para si mesmos.
Autonomia significa escolher a si mesmo como a fonte para determinar o que
é certo e errado, em vez de confiar na palavra de Deus para a orientação. A
serpente sutilmente lança dúvidas sobre a palavra de Deus a Eva, e
consequentemente a Adão, e até sobre a bondade inerente a Deus. Ela sugere
que Deus teme que suas criaturas poderiam se tornar iguais a ele se
conhecerem o bem e o mal por experiência, comendo o fruto da árvore. Deus
afirmou que se comerem dela, morrerão, mas a serpente sugere em vez disso
que comer o fruto significa encontrar o caminho à verdadeira vida. À luz
dessa influência, a mulher e o homem enxergam a árvore de modo diferente,
eles pegam o fruto e comem.
De modo inesperado, num primeiro momento, a serpente parece estar
certa: Adão e Eva não morrem imediatamente. Ou será que morrem? Uma
das coisas que essa história deve fazer é nos levar a refletir de modo
demorado e sério sobre o que exatamente significa “morte”. A vida física de
Adão e Eva não cessa no instante em que provam o fruto: essa não é a maçã
envenenada do conto de fadas. Mas algo neles e entre eles de fato morre. Sua
percepção de si mesmos e seu relacionamento um com o outro são
despedaçados. Eles se tornam morbidamente constrangidos e, assim, tentam
apressadamente cobrir sua nudez. Pela primeira vez, sentem vergonha. E (o
que é ainda muito pior) seu relacionamento com o SENHOR Deus também é
destruído: eles se escondem dele com medo e vergonha. Deus confronta Adão
e Eva e declara juízo. A serpente é amaldiçoada, dar à luz para a mulher se
torna muito mais penoso e o próprio solo é afetado, de modo que o trabalho
para o homem se torna difícil e muito menos agradável. Adão e Eva são
expulsos do Éden e a entrada ao jardim é barrada.
Essa história é tão rica em significado que nos fornece muito material para

reflexão. A “Queda” no pecado permanece um mistério, mas a história de
Gênesis 3 lança luz sobre a natureza fundamental do pecado. É uma busca
pela autonomia, um desejo de nos separarmos de Deus. As consequências do
pecado também são demonstradas claramente. Do mesmo modo que Gênesis
2 mostra a humanidade em nossos relacionamentos criados e não caídos,
também Gênesis 3 se concentra no colapso desses relacionamentos após a
revolta humana contra o Rei divino. Nós humanos fomos criados para nos
relacionar, mas o efeito do pecado é nos separar. Acima de tudo, a
humanidade foi criada para desfrutar do relacionamento com Deus, mas o
pecado de Adão e Eva os leva a fugir dele e ficar com medo, vergonha e
sozinhos. Adão culpa Eva, que por sua vez culpa a serpente, e tanto Adão
quanto Eva tentam cobrir sua nudez.
Todas essas ações mostram que o pecado destruiu tanto a percepção de si
mesmo quanto a percepção de pertencer uns aos outros. Os juízos de Deus
sugerem que as dimensões social e de trabalho de sua vida tenham sido
semelhantemente desfiguradas. Embora o homem e a mulher não morram
fisicamente — ao menos de imediato — percebemos a partir dessa história
que “morte” pode significar muito mais do que o fim da vida física. Morte
significa a distorção de relacionamentos em geral e, especialmente, o fim
daquele relacionamento vital com Deus:

Figura 7: Uma compreensão bíblica da humanidade — os efeitos do pecado
Será que a história do mundo terminará tão cedo e de modo tão
deplorável? De modo algum. Até mesmo no relato trágico da entrada do
pecado no mundo, Deus não desiste de seus propósitos para a sua criação e
seu reino. Ainda que Adão e Eva fujam dele, Deus graciosamente toma a
iniciativa de buscá-los. Ao declarar juízo, Deus amaldiçoa a serpente e
promete colocar inimizade entre a descendência da serpente e a da mulher
(Gn 3.15). A descendência da mulher esmagará a cabeça da serpente: Deus
promete extinguir as forças malignas que Adão e Eva desencadearam. Essa é
a primeira promessa bíblica do evangelho: Cristo será a “semente da mulher”
e derrotará Satanás, ainda que a um grande custo para si mesmo, quando este
“lhe ferirá o calcanhar”. Em Gênesis 3.21, Deus faz provisão para a vergonha
de Adão e Eva, vestindo-os com peles de animais. No Antigo Testamento,
remover as roupas de alguém podia significar a privação de sua herança; a
provisão feita por Deus de roupas para Adão e Eva é um sinal de que o
Senhor não desistiu de seus propósitos para eles. Eles ainda serão os
portadores da sua imagem neste mundo. Eles ainda “herdarão a terra”.
3
Quando Adão e Eva saem do Éden, seu futuro parece muito incerto. (É
verdade, eles não morreram imediata e fisicamente quando comeram o fruto.
Ironicamente, nesse único aspecto, a serpente estava certa. Mas em todo o
restaste, ela estava muito errada). A desobediência gerou uma catástrofe. Esse
jardim maravilhoso agora está fechado para eles e um mundo incerto e
perigoso os ameaça. Quão terrível tinha sido enfrentar o SENHOR Deus
quando ele finalmente os encontrara! Quão difícil encará-lo face a face! E, no
entanto, ele lhes deu roupas para vestir. E também há aquela misteriosa
promessa a ser considerada, em que ele falou sobre o descendente de Eva,
que esmagará a cabeça da serpente.
1 Eugene Peterson, Working the angles: the shape of pastoral integrity (Grand Rapids: Eerdmans,
1993), p. 82-3.
2 Gordon Wenham, Genesis 1—15, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1987), p. 61.
3 Como argumentado por Gordon Hugenberger em Marriage as a covenant: a study of biblical law
and ethics governing marriage, developed from the perspective of Malachi (Leiden: Brill, 1994).

O Rei escolhe Israel
Redenção iniciada
Cena 1: Um povo para o Rei
Gênesis: as origens de Israel
O PECADO À SOLTA — E A RESPOSTA DE DEUS
Quando os portões do Éden se fecham atrás de Adão e Eva, eles não deixam
de ser o que Deus criou. O efeito da Queda em todos nós não significa que
deixamos de ser humanos, permanecemos à imagem de Deus (Gn 5.1; 9.6).
Mas nossa rebelião afetou profundamente como somos humanos. Assim,
Adão e Eva permaneceram casados até mesmo depois de seu pecado e Eva dá
à luz dois filhos saudáveis. Esses quatro são uma família, conforme Deus
havia planejado antes da Queda. Mas após a Queda, ao passar à história
narrada em Gênesis 4, a mudança terrível se torna evidente.
Caim e Abel são os primeiros irmãos, mas o nome Abel, com sua alusão a
vaidade (um tema que Eclesiastes explora em detalhes), sugere os problemas
por vir.
1 Caim é agricultor, Abel, pastor de ovelhas. Contudo, em vez de
apreciarem a companhia um do outro e apoiarem um ao outro em suas
diferentes ocupações, Caim fica com inveja de Abel. As coisas atingem o
ponto culminante quando cada um dos irmãos traz uma oferta a Deus. A de
Abel é aceita, mas a de Caim é rejeitada por causa da maldade que há nele.
Deus graciosamente diz a Caim que se ele fizer o que é certo, sua oferta
também será aceita, então o adverte de que se não tomar cuidado o pecado
saltará sobre ele como um animal selvagem e o dominará. Contudo, o
ressentimento de Caim se agrava. Ele convida Abel a caminhar em um de

seus campos e ali assassina seu irmão. O impensável aconteceu. A família
que Deus criou para ser uma fonte de companheirismo e alegria tornou-se
reduto de inveja, ira e assassinato.
O horror desse assassinato é tal que poderíamos presumir que Deus
destruísse tudo imediatamente. Mas ele não faz isso. A boa ordem que Deus
estabeleceu para sua criação permanece. Caim se casa e tem um filho
chamado Enoque; depois disso constrói uma cidade e lhe dá o nome do filho.
Caim e sua família ainda são humanos à imagem de Deus. Mas a história
demonstra claramente que humanos agora, depois da queda no pecado, têm
uma capacidade terrível de desencaminhar sua vida. A vida familiar e outras
dádivas boas de Deus podem se tornar fontes de dor e vingança.
2 É nesse
contexto que precisamos entender os acontecimentos que vêm a seguir: Caim
constrói uma cidade e as pessoas começam a desenvolver a cultura em muitas
direções diferentes (Gn 4.17-22).
“Cultura” é a designação que usamos para atividades organizadas na
sociedade: como compor música, construir casas ou fundar estruturas
econômicas ou políticas. Às vezes Gênesis 1.26-28 é descrito como o
mandato cultural, pois a tarefa humana ali ordenada de exercer mordomia
real sobre a boa criação de Deus inclui desenvolver o potencial não revelado
da criação divina. Dessa maneira, toda a criação pode declarar a glória de
Deus cada vez mais como uma grande sinfonia. A mordomia real, portanto,
inclui explorar e desenvolver o que pode ser realizado na arquitetura, na
agricultura, na arte e na vida familiar. Deus sempre teve a intenção de que
estivéssemos envolvidos nesse tipo de trabalho.
Em Gênesis 4, lemos sobre Caim (que construiu uma cidade chamada
Enoque), Jabal (o predecessor daqueles que moram em tendas e criam
rebanhos), Jubal (o predecessor daqueles que tocam harpa e flauta), Tubal-
Caim (que fabricava todo tipo de ferramentas de bronze e de ferro) e
Lameque (que escrevia poesias). Assim, não devemos pressupor que toda
essa atividade cultural resulta do pecado. Muito pelo contrário, essas
realizações culturais surgem quando homens e mulheres desenvolvem os
potenciais que Deus incluiu em sua criação. Essas aspirações são
essencialmente boas, e não más. Isso é o que Hans Rookmaaker quer dizer

em seu pequeno livro Art needs no justification.
3 Rookmaaker não queria
dizer que devemos acolher a arte pela arte. A justificação para a arte é que
Deus criou o mundo com o potencial humano para a atividade imaginativa e
artística. A atividade cultural é um modo fundamental de podermos servir e
glorificar a Deus.
4 No contexto de Gênesis 4, no entanto, somos lembrados
de que seres humanos pecaminosos usam essas atividades culturais de
maneira imprópria.
Cientes do que sabemos a respeito de Caim, nosso coração se abate
quando pensamos nele construindo e controlando uma cidade, ainda que
construir uma cidade seja uma parte importante de desenvolver potenciais
não revelados na criação. É errado pensar que o propósito divino para a
criação é que esta deveria ser somente um parque prístino e rural. A intenção
de Deus é para que cidades também sejam desenvolvidas. A urbanização não
é necessariamente má: cidades podem ser lugares maravilhosos em que os
seres humanos podem florescer e Deus pode ser glorificado.
5 Mas o fato de
que Caim é aquele que desenvolve a primeira cidade nos alerta para a
possível corrupção da intenção de Deus. Cidades, como muito bem sabemos,
podem se tornar lugares de miséria e opressão. De que maneira a inveja e a
ira de Caim afetará a vida urbana na cidade chamada Enoque e ao redor dela?
6 O desenvolvimento cultural da cidade, assim, começa — em si mesmo,
potencialmente uma realização boa do mandato da humanidade para
desenvolver a criação — mas ele começa com um homem que mostrou o seu
desprezo pelo governo supremo de Deus.
A poesia é uma dádiva extraordinária de Deus, e a Bíblia contém muitos
cânticos e poemas que desenvolvem a beleza e o poder da linguagem em
obediência à ordem divina. Lameque é o primeiro poeta na Bíblia. Mas em
seu poema a extraordinária dádiva divina já foi distorcida, deturpada em um
instrumento para ameaçar com vingança e violência: “Se Caim há de ser
vingado sete vezes, com certeza Lameque o será setenta vezes sete” (Gn
4.23,24, NRSV). Outra vez, uma dádiva boa (poesia) é usada, mas de um
modo que ignora ou nega a regra de Deus para a criação e o seu papel como o
Doador.
Por meio de uma genealogia, o quinto capítulo de Gênesis conta a história

do desenvolvimento da raça humana de Adão até Noé (filho de Lameque).
Noé significa “descanso”, e a grande esperança de Lameque é que Deus por
meio de Noé concederá descanso aos seres humanos das dificuldades do
trabalho na criação caída (5.28,29). Lameque sabe muito bem que a Queda
tem implicações para toda a vida, não menos para o trabalho, e com o
nascimento de Noé ele espera que as coisas melhorem. Mas as coisas não
melhoraram para a criação, ao menos não inicialmente. Gênesis 6—9 conta a
história de Noé e do catastrófico Dilúvio. Embora Lameque anseie por
descanso e alívio, o que vem com o Dilúvio é um terrível juízo.
Gênesis 6.1-4 é um episódio difícil de entender em que “os filhos de
Deus” (talvez algum tipo de criaturas celestiais) têm relações sexuais com as
filhas dos homens e seus filhos são talvez os chamados nefilins: gigantes ou
homens monstruosos de algum tipo.
7 A importância dessa história é que
novamente (como em Gênesis 3) a ordem divina para a criação foi
transgredida de formas catastróficas, o que outra vez traz o juízo de Deus.
Essa extrapolação de limites proibidos (na união de seres humanos com algo
que não é humano) é um sintoma da doença subjacente do pecado, e Gênesis
6.5-8 indica quão séria a situação se tornou. O mal se apoderou da vida
humana.
8
As coisas chegaram a uma situação tão degradante que Deus decide
destruir o mundo por meio de um grande Dilúvio com o intuito de começar
tudo de novo. Noé será como um novo Adão. Ele trará uma nova
possibilidade de descanso à maneira que Lameque ansiava, mas somente
depois de um juízo terrível. O Dilúvio que Deus envia sobre a terra é
catastrófico e universal, uma espécie de “descriação”. Enorme quantidade de
água é desencadeada e vem sobre a terra quando “romperam-se as fontes do
grande abismo” e chove sem parar durante quarenta dias (7.11,12). Mas,
embora o juízo contra o pecado seja terrível, mais uma vez o compromisso
gracioso de Deus com os seus propósitos originais no que diz respeito à
criação são manifestos. Deus diz a Noé o que fará e o orienta a construir uma
arca em que Noé, sua família ampliada e vários de cada tipo de animal na
terra serão livrados do juízo. Esse é uma história de escola dominical tão boa
que muitas vezes deixamos de perceber sua importância para toda a criação.

Por que colocar esses animais na arca? Porque Deus está interessado na
totalidade de sua criação — incluindo os animais. A salvação não está
circunscrita à humanidade: ela inclui toda a criação (veja Rm 8.21).
A salvação e perdição do homem, sua alegria e tristeza serão refletidas na prosperidade e na
adversidade desse ambiente e companhia animais. Não como um parceiro independente da aliança,
mas como um coadjuvante, o animal participará com o homem (o parceiro independente) na
aliança, partilhando tanto da promessa quanto da maldição que obscurece a promessa. Cheio de
pressentimentos, mas também cheio de confiança, ele aguardará junto com o homem pelo seu
cumprimento, respirando livremente de novo quando isso tiver ocorrido provisoriamente e quando
ocorrer de maneira definitiva.
9
Muitas vezes ignoramos essa ênfase nas Escrituras por causa de nossa
visão limitada da salvação.
10
A história do Dilúvio revela um Deus que é tanto um Juiz santo quanto
um Redentor gracioso. Quando Noé e sua família saem da arca, Deus faz
várias promessas a Noé que constituem sua aliança com Noé (Gn 9.8-17).
“Aliança”, a palavra que descreve o relacionamento entre Deus e o seu povo,
é definida de modo proveitoso por O. Palmer Robertson como um “vínculo
de sangue soberanamente administrado”.
11 Analisemos os três elementos
principais nessa definição:
1. Um vínculo. A aliança fala a respeito de um relacionamento
profundamente pessoal entre Deus e seu povo, um relacionamento tão íntimo
que Deus pode ser visto como se ligando ou se amarrando a eles; e eles, a
Deus. Em alianças posteriores com Israel, uma expressão favorita é: “eu serei
o seu Deus, e vocês serão o meu povo” (como em Jr 7.23).
2. De sangue. Uma aliança é um relacionamento sério e legalmente
estabelecido como um casamento (também descrito como uma “aliança” no
Antigo Testamento).
12 A natureza séria e pública de uma aliança é
simbolizada em rituais que envolvem sacrifício e o derramamento de sangue
(como em Gn 8.20-22).
3. Soberanamente administrado. Essa aliança não é constituída de um
relacionamento entre parceiros iguais que elaboram com muito esforço
condições em que há consenso mútuo. Deus é o Senhor soberano e somente

ele pode estabelecer as condições do relacionamento pactual.
Dumbrell acertadamente observa que quando (Gn 6.18) Deus diz a Noé
que estabelecerá a sua aliança com ele, “aliança” aqui se refere a um
relacionamento que já existe.
13 Em Gênesis 9, segundo Dumbrell, Deus está
renovando sua aliança com Noé na criação. A evidência para isso está
relacionada ao modo com que Gênesis 9 retrata Noé como um segundo Adão.
Noé é comissionado do mesmo modo que Adão foi e praticamente com as
mesmas palavras. Deus afirma: “Sejam frutíferos e multipliquem-se, e enchei
a terra” (cf 1.28; 9.1,7, NRSV).
14 Deus está fazendo um novo começo com
Noé, mas os seus propósitos para a sua criação são os mesmos: Noé é
comissionado como um segundo Adão. Além disso, o conteúdo da aliança de
Deus com Noé se estende a toda a criação. Em 8.21, o SENHOR afirma que
nunca mais amaldiçoará a terra ou destruirá toda criatura vivente. Em 9.8-17,
Deus não deixa dúvida ao afirmar que essa aliança é com Noé, seus
descendentes e com toda criatura vivente. O arco-íris é sinal dessa aliança
graciosa estabelecida entre Deus e “toda carne que há sobre a terra” (9.17,
NRSV).
A aliança com Noé, portanto, refere-se ao relacionamento especial que
Deus estabelece com ele e sua família. Subjacente a isso está a aliança de
Deus com a criação. Logo, Deus está realmente agindo em Noé e por meio
dele para cumprir o que sempre foi o propósito do Senhor para a totalidade de
sua criação.
Mas lamentavelmente o novo começo de Deus não traz a plenitude de
descanso que Lameque esperava. Toda a terra é povoada a partir dos três
filhos de Noé: Sem, Cam e Jafé (9.18). Mas o pecado logo se mostra
novamente na vida familiar de Noé e de seus filhos (9.20-28). Mais uma vez
o desenvolvimento cultural é ambivalente. Em certo sentido, a agricultura
avança. Noé é o primeiro a plantar uma vinha e a desenvolver a arte
extraordinária e concedida por Deus de produzir vinho (9.20). O que seria da
vida sem Cabernet Sauvignon, Pinot Gris e Merlot? Mas, embora o vinho em
si e a arte de produzi-lo sejam dádivas boas em si mesmas, eles também
podem ser usados de modo pecaminoso. O primeiro vitivinicultor se

embriaga e desonra a si mesmo e a sua família, deitando-se escancaradamente
nu para recobrar a sobriedade em sua tenda, onde seu filho Cam o encontra. É
difícil saber com certeza qual é o problema na reação de seu filho ao
comportamento de Noé: há uma ofensa sexual envolvida ou a fofoca de Cam
sobre a nudez de seu pai é um ato de desrespeito pecaminoso? De qualquer
modo, há outra ruptura familiar. Noé amaldiçoa Canaã, o filho de Cam (assim
amaldiçoando as pessoas que descenderão nessa linhagem de sua própria
família) e abençoa Sem (de cuja linhagem descenderão os israelitas).
Gênesis 10 conta a história das nações do mundo surgindo a partir dos
filhos de Noé. Isso é um cumprimento positivo da ordem de Deus a Adão,
que então ele repetiu a Noé: “Sejam frutíferos e multipliquem-se, e encham a
terra”. No entanto, nesse estágio na história não ficamos surpresos em
descobrir que esse desenvolvimento positivo — uma grande expansão
populacional e progresso cultural — também tem seu lado negativo. O
capítulo seguinte de Gênesis narra a história da torre de Babel. Esse episódio
na história de Gênesis representa a culminação do pecado até aqui no drama
bíblico. Babel é uma tentativa monumental e comunitária realizada pela raça
de Adão de usurpar mais uma vez a autonomia humana de Deus.
Como já observamos, o impulso de construir uma cidade faz parte do
desenvolvimento cultural normal no mundo de Deus. Mas esse impulso pode
ser direcionado para o lado errado, e na história de Babel temos um
desencaminhamento substancial. À medida que as pessoas migram em
direção ao oriente, elas constroem uma cidade com uma torre enorme. Esse é
o seu modo de asseverar de modo enfático sua própria vontade contra o
desejo divino de que os homens sejam espalhados e dispersados por todo o
mundo (“encham a terra”). A torre que constroem é provavelmente um
zigurate, a parte mais proeminente de um templo dedicado à adoração “dos
deuses” na antiga Mesopotâmia. O nome “Babel” sugere o que essa cidade e
torre em particular têm em mente. Babel significa “portão de Deus”.
15 Na
antiga Mesopotâmia, um zigurate era construído para servir de escadaria pela
qual o deus ou os deuses poderiam descer do céu para uma cidade e abençoá-
la. Em seu topo havia um pequeno cômodo com uma cama, uma mesa e
alimentos frescos para que o deus pudesse revigorar-se em sua descida.

No entanto, enquanto Gênesis 11 relata a respeito de Babel, o narrador nos
lembra que “Babel” está ligada a uma outra palavra hebraica que significa
“desordenado” ou “confuso”. Para o narrador, “o nome ‘Babel/Babilônia’ não
significa ‘portão de deus’, como os babilônios afirmavam, mas ‘confusão’ e
ela evoca as palavras ‘insensatez’ e ‘dilúvio’ com som similar. Longe de ser a
última palavra no que diz respeito à cultura humana, ela é o símbolo supremo
do fracasso do homem quando sozinho decide criá-la em oposição direta ao
seu criador”.
16 Embora Deus tenha ordenado que a humanidade se espalhasse
por toda a terra, esse grupo na Mesopotâmia optou, em vez disso, por
estabelecer para si mesmo um centro seguro a partir do qual poderia controlar
seu próprio ambiente e se proteger. Em vez de uma unidade e identidade
concedida por Deus, buscam um coletivismo falso e autônomo e uma
reputação de invenção própria. Aqui temos uma repetição do ato de comer da
árvore do conhecimento do bem e do mal, mas agora realizado em grande
escala social. Ao construir essa torre, eles arrogantemente desafiam Deus a
descer e abençoar seu esforço.
Em uma afirmação repleta de extraordinária ironia (11.5,6) Deus de fato
desce para ver com o que os rebeldes construtores da cidade estão se
ocupando. Embora considerem sua torre uma realização extraordinária, uma
escadaria ao próprio céu, Deus precisa descer do céu só para conseguir ver a
coisa! Longe de abençoar esse projeto, Deus condena a arrogância que a
inspirou. Ele julga o povo confundindo sua linguagem e espalhando-os em
todas as direções. Deus, assim, força-os a cumprir sua vontade para eles, a se
espalharem pela face da terra.
Babel representa um monumento ao desejo humano perene de construir o
nosso próprio reino à parte de Deus. Mas Deus não tolerará de modo algum
esse falso centro para a existência humana e, assim, espalha os construtores
de Babel. Nome nas Escrituras significa identidade. Com essa cidade e torre,
as pessoas buscaram uma falsa identidade, uma reputação construída sobre a
autonomia humana (11.4). A resposta de Deus é julgar o seu pecado pelo que
ele é e colocar um fim em seu programa de construção ambicioso e idólatra.
Mas como vimos repetidas vezes, o juízo é acompanhado pela misericórdia.
Embora Gênesis 11 assinale um clímax no avanço do pecado humano na

criação, Gênesis 12 sinaliza mais um novo começo à medida que Deus de
modo inabalável persegue seu propósito para a sua criação.
A ALIANÇA ABRAÂMICA: ABENÇOADO PARA SER UMA BÊNÇÃO
Até agora, a história bíblica incluiu a vida e os atos de toda a humanidade.
Mas agora, em resposta à catástrofe de Babel, o nível mais elevado do pecado
na criação de Deus até então, Deus toma a iniciativa mais uma vez e volta à
atenção para um só homem, Abraão. De fato, Abraão e seus descendentes são
o tema principal do restante de Gênesis.
17
Deus chama Abraão para deixar o seu país (Ur), o seu povo e a casa de
seu pai para ir à terra que Deus lhe mostrará (12.1-3). Esse é um chamado
radical. Até mesmo para nós no século 21, com todas as nossas comodidades
de viagem e comunicação, é difícil pensar em se mudar de um país para
outro. Só conseguimos imaginar vagamente o que deve ter significado para
uma pessoa como Abraão o pedido de abandonar absolutamente tudo que
conhece — família, tribo, lar e país — para uma jornada longa e incerta a um
destino misterioso. Abraão é convidado a abrir mão de todos os símbolos de
segurança e de autonomia que os construtores de Babel buscavam para
fortalecer sua própria identidade. Mas de modo admirável, Abraão abre mão
deles para obedecer a Deus. Para ir aonde Deus guiar, ele parte com sua
esposa (Sara), seu sobrinho (Ló) e sua família ampliada.

Figura 8: Jornadas de Abraão
Qual é a intenção de Deus em tudo isso? Ao limitar seu foco a Abraão,
desistiu de todos os outros povos? Os três primeiros versículos de Gênesis 12
descrevem para Abraão o que Deus planeja fazer por meio dele, o plano é
extraordinário. Deus promete (1) fazer de Abraão uma grande nação, (2)
abençoá-lo, (3) engrandecer o seu nome (4), torná-lo uma bênção, (5)
abençoar aqueles que o abençoam e amaldiçoar (ou julgar) aqueles que o
julgam e (6) por fim, abençoar todos os povos da terra por meio dele! Os
povos da terra tentaram fazer um nome para si mesmos com a construção da
torre de Babel, mas Deus rejeitou esse plano ambicioso de fazer as coisas do
seu próprio modo. Agora, no entanto, Deus promete que engrandecerá o
nome de Abraão e fará dele uma grande nação. Os troféus que o povo de
Babel tentou obter para si mesmo — fama, segurança e uma herança para o
futuro — são a dádiva gratuita de Deus a Abraão. Aqui começamos a ver
como Deus responderá ao que deu errado em sua criação. Por meio de
Abraão, trará à existência uma nação, Israel, que deverá ser o próprio povo de
Deus entre todos os outros povos do mundo. E por meio dessa nação, Deus
abençoará todos os outros povos da terra (18.18,19).
Desse ponto em diante na história do Antigo Testamento, o foco da

narrativa se estreita tendo em vista se concentrar em Abraão e seus
descendentes. Mas até mesmo aqui nas promessas muito pessoais de Deus a
esse único homem e sua família, Deus não se esquece de seus propósitos para
todas as nações do mundo. Isso torna-se claro nas palavras escolhidas para as
promessas de 12.1-3. Alguma forma da palavra “abençoar” é usada cinco
vezes e esse é um termo muito significativo nos primeiros capítulos de
Gênesis.
18 A palavra dinâmica “abençoar” expressa o propósito de Deus de
dar às suas criaturas tudo de que precisam para uma vida plena em sua
criação como é a sua intenção para elas.
A palavra “amaldiçoar”, em contraste, expressa o terrível juízo de Deus
sobre suas criaturas quando se rebelam contra seus propósitos para elas. As
palavras de bênção sobre Abraão em 12.1-3 sugerem de modo adicional o
que Deus está planejando fazer por meio desse homem. A repetição quíntupla
da palavra “abençoar” é situada deliberadamente em oposição à ocorrência
quíntupla da palavra “amaldiçoar” em Gênesis 1—11.
19 A maldição ou o
juízo de Deus sobre a humanidade significou sua perda de liberdade (3.14-
16), sua aversão ao solo (3.17-19), seu antagonismo de um para com o outro
(4.11) e sua degradação moral e espiritual (9.25).
20 A repetição de
“abençoar” em Gênesis 12.1-3 afirma que por meio de Abraão, Deus está
agindo para anular o efeito do juízo sobre sua criação. Embora o pecado
tenha trazido a maldição divina sobre a criação, Deus ainda está agindo para
restaurar o seu propósito de bênção para tudo que ele criou, e Abraão será o
instrumento de restauração divina para todo o mundo.
Por meio de Abraão, “todos os povos da terra serão abençoados”.
21 Essa
última oração de Gênesis 12.3 é a conclusão culminante desses versículos e
aponta para o resultado final da escolha divina de Abraão.
22 Deus limita seu
foco redentor a um só homem, uma só nação. Mas o seu propósito final é
trazer bênção redentora a toda a criação. A promessa divina a Abraão é a
resposta de Deus ao pecado, que corrompeu toda a criação: Deus restaurará o
seu mundo. “Gênesis 12.1-3 é a réplica às consequências da Queda e visa a
restauração dos propósitos de Deus para o mundo aos quais Gênesis 1—2
dirigiu a nossa atenção. O que está sendo apresentado nesses poucos
versículos é um projeto teológico para a história redentora do mundo, agora

posta em marcha pelo chamado de Abrão.”
23 Gordon Wenham afirma de
modo proveitoso:
As promessas a Abraão renovam a visão para a humanidade estabelecida em Gênesis 1 e 2. Ele,
assim como Noé, é uma segunda figura adâmica. Adão recebeu o jardim do Éden: a Abraão é
prometida a terra de Canaã. Deus ordenou que Adão fosse fértil e se multiplicasse: a Abraão se
promete descendentes tão numerosos quanto as estrelas do céu. Deus andava com Adão no Éden:
Abraão foi ordenado a andar diante de Deus. Desse modo, o advento de Abraão é visto como a
resposta aos problemas levantados em Gênesis 1—11: por meio dele, todas as famílias da terra
serão abençoadas.
24
Desde o início, o povo de Deus é chamado a ser “missionário”. Ele é
escolhido para ser um canal de bênção para outros.
Gênesis 15 e 17 descrevem o relacionamento de Deus com Abraão como
uma aliança. No capítulo 15, Deus promete que a recompensa de Abraão será
muito grande. Abraão pergunta como isso é possível, já que não possui filhos
para herdar essas bênçãos. Deus promete a Abraão que um dia seus
descendentes serão de fato tão numerosos quanto as estrelas do céu. Também
promete que dará aos descendentes de Abraão a terra. Eles serão estrangeiros
em uma terra estranha durante quatrocentos anos, mas depois Deus lhes trará
de volta para herdar a terra da promessa, Canaã.
25 Quando Abraão questiona
a promessa divina, Deus inicia uma cerimônia de aliança. Abraão corta três
animais ao meio e os dispõe para que haja corredor entre as metades. Deus
passa pelos animais na forma de um fogareiro fumegante. Nessa bem-
conhecida cerimônia de aliança, Deus indica que se não for fiel à sua
promessa, ele será dilacerado membro por membro como esses animais (cf. Jr
34.18-20). Assim, o SENHOR faz uma aliança com Abraão.
Algum tempo depois, Deus aparece novamente a Abraão, que está com
noventa e nove anos de idade e ainda sem filhos. Abraão prostra-se com o
rosto em terra diante de Deus e Deus confirma a sua aliança. Quanto a Deus,
este promete a Abraão que terá muitos descendentes (17.4-6) e uma terra e lar
para seu povo (17.8). Além disso, o próprio Deus será o grande Rei da nação
que descenderá de Abraão (17.7). A aliança de Deus é com Abraão e seus
descendentes, e em Gênesis 17.9 a marca da circuncisão é introduzida para
todos os integrantes do sexo masculino que pertencem à linhagem de Abraão.

No antigo Oriente Próximo, a maioria das nações praticava a circuncisão.
Aqui Deus muda radicalmente o significado comum dessa prática cultural
para o seu próprio povo. Para os israelitas, ela se torna um sinal da aliança
entre Deus e Abraão e seus descendentes. Marcar permanente o corpo desse
modo provavelmente tem o objetivo de denotar a permanência do
relacionamento de Deus com esse povo que descenderá de Abraão.
26
Assim, há três elementos principais na aliança de Deus com Abraão. Deus
promete um relacionamento pessoal, a transformação de uma família em uma
nação e promete a terra. Essas promessas sempre têm em vista abençoar todas
as nações.
27 O restante da história no Pentateuco (os cinco “livros de
Moisés”, Gênesis a Deuteronômio) trata do cumprimento parcial dessas
promessas e a formação do povo de Deus. Clines define de modo proveitoso
o tema do Pentateuco como “o cumprimento parcial — que também implica
o não cumprimento parcial — da promessa aos patriarcas ou a bênção deles.
A promessa ou a bênção é tanto a iniciativa divina em um mundo onde
iniciativas humanas sempre levam ao desastre quanto uma reafirmação das
intenções divinais iniciais para com o homem”.
28
Em Babel, as pessoas tentaram fazer um nome para si mesmas, mas Deus
promete que ele engrandecerá o nome de Abraão e de seus descendentes por
meio de seu envolvimento com ele e de sua dependência dele. Mas como a
história narrada em Gênesis 12—25 demonstra esse senso de confiança em
Deus e de dependência nas promessas de Deus dificilmente é alcançado e
ainda mais dificilmente mantido. Abraão de fato impressiona por sua fé em
Deus ao atentar para o seu chamado de deixar o país e a parentela e ir para a
terra que Deus lhe mostrará (12.1). No entanto, o mesmo anseio por
autonomia que vimos em Gênesis 3 e 11 está presente em Abraão. Ele terá de
experimentar uma reeducação extremamente severa para mudar de atitude.
É dito a Abraão que ele não verá os seus descendentes herdarem a terra
prometida (15.15). Ele precisa aprender a confiar em Deus apesar de
circunstâncias desfavoráveis e, a favor dele, vemos que às vezes ele
realmente confia (15.6).
29 Mas as histórias de Abraão e Sara revelam o quão
difícil é ter essa confiança. Deus fez promessas extraordinárias a Abraão e
Sara a respeito de seus descendentes, da terra e de grandes promessas

vindouras. Mas anos se passam e Sara não está grávida. Por fim, Deus acaba
abençoando-a com o filho da promessa. Nessa época, Abraão já está com
cem anos de idade (21.5). Os testes de fé a que Abraão é submetido chegam
ao seu ápice em Gênesis 22, quando Deus lhe ordena que tome o seu “único
filho, Isaque”, e o sacrifique no monte Moriá. Todos esses anos Abraão e
Sara esperaram por um filho e agora lhe é ordenado que tome Isaque e o
mate. Mas no último instante ele é ordenado a parar e um carneiro é provido
no lugar de Isaque. Kierkegaard escreve de modo comovente sobre esse
acontecimento em Fear and trembling:
Venerável Pai Abraão! Quando foste para casa do monte Moriá, não precisaste de uma homenagem
para confortá-lo pelo que foi perdido, pois ganhaste tudo e ficaste com Isaque, não foi assim? O
Senhor não o tomou de ti novamente, mas vocês se sentaram alegremente juntos à mesa em sua
tenda, como fazem no mundo vindouro por toda a eternidade […] Perdoe aquele que aspirou a
elogiá-lo se não o fez de modo apropriado. Ele falou humildemente, como seu coração exigia; falou
brevemente, como é conveniente. Mas ele nunca esquecerá que precisaste de cem anos para ter o
filho de tua velhice contra toda expectativa, que precisaste sacar a faca antes de ficar com Isaque;
ele nunca esquecerá que em cento e trinta anos não foste além da fé.
30
Não devemos subestimar quão difícil deve ser às vezes para Abraão
confiar em Deus. A confiança de Abraão em Deus por meio desse episódio
notável é recompensada na forte reafirmação que Deus faz da aliança entre
Abraão e ele mesmo (Gn 22.16-18).
ISAQUE, JACÓ E JOSÉ: PATRIARCAS DO POVO DE DEUS
Gênesis 25—36 narra as histórias de Isaque e de seus filhos, Esaú e Jacó. Dos
filhos de Jacó surgem as doze tribos de Israel. Embora o propósito de Deus
ao chamar Abraão fosse trazer bênção a todo o mundo, por enquanto a
história bíblica se concentra na linhagem familiar por meio de quem essa
bênção virá: os doze filhos de Jacó, cujas famílias se tornarão as doze tribos
da nação de Israel.
Três elementos em particular são perceptíveis nessas histórias. O primeiro
é que as promessas divinas a Abraão são reafirmadas ao seu filho e neto, de
modo que Deus passa a ser designado de “o Deus de Abraão, Isaque e Jacó”
(Êx 3.6). Em Gênesis 26.1-4, Isaque deve ter ficado tentado a se mudar para

outro lugar para escapar da fome em Canaã. No entanto, Deus aparece a
Isaque e lhe ordena que não desça ao Egito, mas permaneça na terra de
Canaã. Deus assegura a Isaque de que irá dar essas terras a ele e seus
descendentes, torná-los tão numerosos como as estrelas e por meio dessa
nação abençoar todas as nações da terra. Essa promessa é repetida em 26.23-
25. Isso ocorre de maneira semelhante com Jacó, um personagem complexo
que engana seu pai, Isaque, fazendo com que lhe dê (em vez de a Esaú) a
bênção devida ao filho primogênito (Gn 27). Por causa dessa trapaça, Esaú
odeia Jacó e planeja matá-lo e Jacó precisa fugir para salvar a sua vida.
Apesar dessa manipulação e intriga, Deus se encontra com Jacó em Betel por
meio de um sonho. Nessa jornada, um Jacó cansado usa uma pedra como
travesseiro e enquanto dorme sonha com uma escada ligando o céu e a terra,
com anjos subindo e descendo por ela. Acima dela está o SENHOR, que se
identifica como o Deus de Abraão e Isaque e reafirma a Jacó a promessa de
lhe dar a terra e muitos descendentes. Principalmente, Jacó também é
assegurado de que “todas as famílias da terra serão abençoadas por meio de ti
e da tua descendência” (28.14, A21).
A segunda característica dessas histórias, especialmente aquelas sobre
Jacó e José, é o tema repetido do colapso trágico nos relacionamentos
familiares. A animosidade entre Jacó e Esaú se mostra de várias maneiras e
macula a vida de seus filhos depois deles. José (antes de Benjamim nascer) é
o filho mais novo mimado de Jacó, que provoca a inimizade de seus irmãos
narrando as coisas erradas que eles fazem e lhes contando seus sonhos em
que é servido por eles. Os irmãos vendem José como escravo e depois
simulam a Jacó que José fora assassinado. De todos esses modos, o padrão
catastrófico de colapso nos relacionamentos que iniciou com o pecado de
Adão e Eva se manifesta repetidamente na “linhagem escolhida” da
humanidade. Essas histórias não desculpam esse comportamento, mas nos
confrontam com a dura realidade a respeito do caráter daqueles que Deus
escolhe. Deus trabalhará por meio dessas pessoas para trazer bênção ao
mundo, mas primeiro precisa trabalhar nelas e com elas, para trazer
reconciliação e maturidade. Wenham afirma: “Essencialmente, tanto o ciclo
de Jacó (25.19—35.29) quanto a história de José (37.2—50.26) são histórias

de reconciliações familiares”.
31 Na história de José, observamos seu
desenvolvimento, de um jovem mimado, egoísta e alienado a um líder
político maduro e abnegado, plenamente reconciliado com a sua família.
32
O terceiro elemento comum nessas narrativas é o cuidado providencial de
Deus por seu povo em face dos muitos obstáculos ao seu plano para eles. As
esposas dos patriarcas são estéreis ou são levadas a haréns de outros homens.
Desastres naturais a fome, por exemplo, ameaçam esmagar as famílias.
Repetidamente, a estupidez e o pecado dos patriarcas colocam em risco a eles
próprios e àqueles que vêm após eles — bem como os propósitos de Deus. E,
ainda assim, por meio de todo esse transtorno humano, há uma constante:
Deus permanece fiel às suas promessas a Abraão. Esse tema provavelmente
está relacionado a um dos nomes de Deus nessas narrativas patriarcais: El
Shaddai (17.1; 28.3; 35.11; 48.3; “Deus todo-poderoso” em muitas versões
em português). Em Êxodo 6.3, Deus fala sobre ter se revelado a Abraão,
Isaque e Jacó por esse nome, cujo significado exato é incerto. El Shaddai
provavelmente “evoca a ideia de que Deus é capaz de tornar as estéreis férteis
e cumprir suas promessas”.
33 A providência de Deus é um tema muito
evidente na história de José. Em Gênesis 45.5-7, José reconhece que tudo que
aconteceu a ele foi ordenado por Deus para “preservar [para a descendência
de seu pai] um remanescente nesta terra e para salvar-lhes a vida com um
grande livramento” (NVI). E em 50.20, José tranquiliza seus irmãos após a
morte de seu pai: “Vocês tiveram a intenção de me prejudicar. Porém a
intenção de Deus foi para o bem, para realizar o que agora está sendo feito,
ou seja, salvar muitas vidas”.
No final de Gênesis, a promessa divina a Abraão de que ele teria muitos
descendentes se cumpriu parcialmente (Gn 47.27; Êx 1.6,7). Os filhos de
Jacó agora se tornaram um grupo grande e vigoroso no Egito. Mas “um novo
rei, que não conhecia José, levantou-se sobre o Egito” (Êx 1.8, NRSV). Essa
observação ameaçadora significa o início de uma cadeia de acontecimentos
que levará os israelitas para fora do Egito e à sua própria terra prometida: o
lar que Deus também prometeu a Abraão.

Êxodo: formação de um povo
ISRAEL É FORMADO POR UM ATO PODEROSO DE REDENÇÃO
Quando a história bíblica recomeça no Êxodo quatrocentos anos depois de
Abraão, ainda estamos no Egito. José e seus irmãos morreram, mas seus
descendentes se multiplicaram até serem uma parte considerável da
população do Egito. A promessa divina a Abraão a respeito de um grande
número de descendentes se cumpriu parcialmente. Mas e quanto às outras
promessas de Deus proporcionar um relacionamento consigo mesmo e dar ao
seu povo uma terra própria? Quando a narrativa do Êxodo inicia, parece que
essas promessas estão longe de seu cumprimento. Um novo faraó que não
conhece José se levanta, teme o número dos israelitas, sujeita-os a trabalho
escravo cruel e inicia uma política desumana de matar todos os israelitas
recém-nascidos do sexo masculino. Embora essa opressão pareça ser um
obstáculo ao cumprimento divino das promessas, ela, paradoxalmente, se
torna o ímpeto para a saída dos israelitas do Egito.
34 Quando eles clamam a
Deus em meio ao seu sofrimento e opressão, “Deus ouve os gemidos deles e
[se lembra] de sua aliança com Abraão, com Isaque e com Jacó” (Êx 2.24).
Moisés, aquele que se torna o libertador de Israel, nasce. No desespero,
tentando evitar que ele também seja morto junto com outros bebês israelitas
do sexo masculino, a mãe de Moisés o coloca em uma cesta à prova de água e
o deixa entre os juncos à margem do rio Nilo. A irmã mais velha de Moisés
vigia para ver o que vai acontecer. De modo surpreendente, quando a própria
filha do faraó desce ao rio para se banhar, encontra o bebê e o adota como seu
próprio filho. Assim, ironicamente, Moisés recebe a melhor educação que o
Egito pode oferecer, no âmago da própria família do faraó.
35
Ainda jovem, mas já adulto, Moisés é sensível aos sofrimentos de seu
povo. Em certa ocasião, ele observa um egípcio espancando um israelita.
Tomado de raiva, Moisés mata o egípcio e em seguida precisa fugir, pois a
sua ação não passou despercebida. O faraó procura matá-lo. Moisés foge para
Midiã e se torna um pastor de ovelhas (Êx 2.11-17).
Enquanto pastoreia os rebanhos de seu sogro perto de um monte chamado

Horebe,
36 Moisés tem um encontro inusitado com Deus, que fala com ele do
meio de uma sarça ardente (Êx 3). Embora a sarça queime, ela não é
consumida. Deus ordena a Moisés que tire suas sandálias, pois o lugar em
que ele se encontra é santo, e se identifica a Moisés como o Deus de Abraão,
Isaque e Jacó. Deus informa a Moisés que ouviu o clamor de seu povo
oprimido e agora está enviando Moisés ao faraó para tirar o seu povo do
Egito e levar para a terra que lhes prometeu. Mas Moisés responde com
relutância, indagando como ele poderá convencer os israelitas de que foi
realmente Deus que o enviou. Em resposta a isso, Deus diz a Moisés: “EU
SOU O QUE SOU. É isto que você dirá aos israelitas: EU SOU me enviou a
vocês” (3.14).
Nesse episódio, somos apresentados ao nome mais comum e distintivo
para Deus usado no Antigo Testamento, Yahweh, geralmente traduzido nas
versões em português da Bíblia por “SENHOR”. O nome Yahweh ocorre cerca
de seis mil e oitocentas vezes no Antigo Testamento e muito tem sido escrito
sobre o seu real significado.
37 Muitas traduções e sugestões têm sido feitas
sobre esse nome e sobre a expressão de que ele deriva (em 3.14). Alguns
sugerem que o mistério dessa expressão é que Deus está se recusando a
revelar o seu nome. Mas é difícil relacionar isso à repetição do próprio nome
no texto da Bíblia e à revelação contínua que Deus faz de si mesmo ao seu
povo no Antigo Testamento. Sugestões de traduções alternativas são “Eu
serei quem ou o que serei” ou “Eu causarei o que causarei”. Mas talvez a
melhor tradução dessa expressão seja “Eu serei quem sou”. Entendido desse
modo, o nome Yahweh indica não somente que Deus está presente agora,
mas também que ele “fielmente [será] Deus para [o seu povo] na história que
se seguirá […] Israel não precisa se preocupar com arbitrariedades ou
caprichos divinos. Pode se fiar em Deus: ele será o Deus que é. Israel entende
sua história a partir desse nome e esse nome a partir de sua história. O nome
moldará a história de Israel, mas a história também acrescentará uma
profundidade maior ao nome”.
38
Deus fez promessas a Abraão e agora ele demonstra sua fidelidade àquelas
promessas ao resgatar a nação que descendeu de Abraão, tirando-a da

escravidão e colocando-a na terra que lhes prometeu. Seu nome, Yahweh,
está especialmente ligado a esse ato maravilhoso de libertação da escravidão
no Egito. Êxodo 6.6,7 reúne todos esses elementos quando o SENHOR
comissiona Moisés:
Por isso, diga aos israelitas: “Eu sou o SENHOR, e eu os tirarei de debaixo do jugo dos egípcios.
Eu os libertarei de serem escravos deles e os resgatarei com braço estendido e com poderosos atos
de juízo. Eu os farei meu povo e serei o Deus de vocês. Então vocês saberão que eu sou o
SENHOR, o Deus de vocês, que os tirou de debaixo do jugo dos egípcios”.
O grande obstáculo a que os israelitas deixem o Egito é o faraó, que
considera seu próprio poder absoluto. Quando Moisés e Arão pedem ao rei
egípcio para que deixe os israelitas irem para que possam celebrar uma festa
ao SENHOR no deserto, o faraó responde: “Quem é o SENHOR, para que eu o
obedeça e deixe Israel ir? Não conheço o SENHOR e não deixarei Israel ir”
(5.2). E, assim, “o faraó e [Yahweh] se enfrentam. Ambos reivindicam Israel.
Ambos exigem o serviço e a lealdade de Israel para si mesmos […] A
progressão das pragas deixa evidente quem realmente possui o poder
supremo”.
39
Deus envia Moisés (e Arão, o porta-voz de Moisés) para confrontar o
faraó, que endurece o seu coração e se recusa a reconhecer o SENHOR ou
deixar os israelitas partir. Por meio de uma série de dez pragas, o faraó é
confrontado com o fato de que o SENHOR é Deus. As primeiras nove são
sangue no Nilo, rãs, piolhos, moscas, praga nos rebanhos, feridas
infeccionadas, trovão e granizo, gafanhotos e densas trevas. Por fim, uma
praga mortal vem sobre os primogênitos do sexo masculino em todo o Egito,
tanto em humanos quanto em animais (exceto para os israelitas).
Várias sugestões foram levantadas com o objetivo de entender essas
pragas. Alguns observam, por exemplo, que as pragas podem ser entendidas
uma vez relacionadas a catástrofes naturais que sabemos que aconteciam de
tempos em tempos no Egito.
40 Greta Hort, assim, sugeriu que as primeiras
seis pragas resultam de um Nilo na época de cheias (durante os meses de
verão, de julho a setembro) infectado por flagelados [micro-organismos
unicelulares]. Esses flagelados poderiam explicar as características da

primeira praga: a cor de sangue do Nilo, a morte de seus peixes, seu cheiro
horrível e a condição imprópria da água para o consumo (veja 7.20,21). Na
visão de Hort, as próximas cinco pragas resultam dessa primeira. É um fato
conhecido que rãs invadem o Egito perto do fim da época de enchente do
Nilo, entre setembro e outubro. A morte súbita das rãs poderia ter sido
causada pelo Bacillus anthracis (antraz) se reproduzindo nos peixes em
decomposição. Hort interpreta os “piolhos” como um tipo de mosquito,
enxames dos quais inevitavelmente acompanham o período de enchente no
Egito. A próxima praga, as moscas, podem ter sido a mosca-de-estábulo,
conhecida pela sua picada. A praga dos rebanhos Hort relaciona à propagação
de antraz a partir das rãs mortas. Hort acredita que as “feridas infeccionadas”
podem se referir às mordidas de moscas que continham essa bactéria. Ela,
assim, considera os insetos da quarta praga responsáveis pelas feridas
infeccionadas da sexta praga. Desse modo, “as primeiras seis pragas formam
uma sequência natural de acontecimentos interdependentes que resultam de
um Nilo na época da cheia infestado de flagelados, ao passo que as pragas
sete a dez não estavam ligadas às primeiras seis”.
41
Em relação às tempestades de granizo da sétima praga, Hort observa que o
Egito experimenta tempestades violentas de tempos em tempos e que elas
podem causar prejuízo substancial às safras (cf. 9.31). O granizo não é
comum no Egito e apavoraria os egípcios. Pragas de gafanhotos eram
conhecidas em todo o antigo Oriente Próximo, de modo que não há
dificuldade alguma em encontrar um paralelo natural à oitava praga.
Humphrey sugere que o chão umedecido deixado pelas tempestades (da
sétima praga) forneceria um ambiente ideal para a reprodução de
gafanhotos.
42 A nona praga, trevas, Hort associa a tempestades de areia. Na
visão de Hort, não há explicação natural alguma para a décima praga: da
perspectiva dela, é totalmente excepcional. No entanto, Humphrey se baseia
em uma sugestão de Marr e Malloy e propõe que um agente natural pode ser
visto na última praga.
43 Ele sugere que, no fim das nove pragas, os egípcios
devem estar em um estado de desespero. Em especial, devem estar sem
alimento suficiente e podem ter cometido o erro terrível de armazenar trigo
úmido depois das tempestades e consequentemente de alimentar com isso

seus filhos primogênitos e as primeiras crias de seus animais. O trigo úmido
conteria micotoxinas venenosas, produzidas por fungos crescendo em
substâncias como safras úmidas.
44
Pode muito bem ser que esse tipo de compreensão das pragas esteja
correto. O que não devemos fazer, no entanto, é recorrer a uma compreensão
meramente naturalista delas, em que Deus é levado em consideração
somente para explicar o que não pode ser explicado de modo natural. Deus
sustenta toda a criação em existência e as leis da natureza fazem parte dessa
ordem da criação. Spykman afirma:
Em uma cosmovisão biblicamente orientada e holística, Deus e o mundo não são forças
antagônicas. Consequentemente, o que chamamos de milagres Deus não exclui a agência
instrumental de suas criaturas. Elas permanecem seus servos que respondem ao poder de comando
de sua Palavra. Esses atos poderosos de Deus, portanto, não violam nem ultrapassam sua ordem
dinâmica, porém estável, para a criação […] Não há nada arbitrário ou caprichoso nelas. Da nossa
perspectiva, elas podem parecer intervenções surpreendentes, inesperadas e extraordinárias da mão
de Deus na história. Para Deus, no entanto, milagres não são milagres como nós os percebemos.
Pelo contrário, são os desdobramentos de sua vontade de outros modos, que nos parecem incomuns
e excepcionais, modos que, no entanto, estão de maneira consistente às ordens de Deus.
45
Assim, a coisa importante a entender sobre essas pragas é que, nesses
acontecimentos extraordinários, Deus está demonstrando, manifestando o seu
poder sobre toda a criação ao faraó e aos egípcios. O primordial é esse
aspecto religioso das pragas.
Estudiosos que têm se concentrado no aspecto religioso das pragas fazem
várias sugestões sobre como entendê-las. Alguns defendem — especialmente
à luz de 12.12: “executarei juízo sobre todos os deuses do Egito” — de que as
pragas são dirigidas contra diferentes deuses egípcios. Assim como os
milagres de Elias e Eliseu relatados nos livros de Reis, as pragas do Êxodo
mostram que o que egípcios acham que é verdadeiro a respeito de seus
deuses de fato somente é verdade acerca do SENHOR Deus do céu e da terra. É
certamente possível que algumas das pragas evocam deuses específicos na
mente dos egípcios. A inundação do Nilo, por exemplo, está associada ao
deus Osíris e a sua ressurreição. “Assim as águas parecidas com sangue
podem simbolizar sua morte em vez de sua ressurreição, morte para a
agricultura do Egito em vez de campos verdejantes, uma perspectiva

assustadora para os egípcios.”
46
Talvez não seja possível relacionar cada praga a um confronto contra um
deus ou deuses específicos, mas essa abordagem parece estar no caminho
certo. Isso faz sentido especialmente porque no Egito o próprio faraó é
considerado divino: ele supostamente é o filho do deus do Sol, Ré. Como
deus, o faraó é responsável por manter o que os egípcios chamavam de ma’at,
ou ordem no cosmo ou criação. Quando a ordem cósmica sai dos trilhos, a
natureza se porta de modo estranho: isso fica bem evidente nas pragas. “O
que as pragas do Êxodo mostram é a incapacidade do rei obstinado de manter
[ma’at]. Antes, é Yahweh e seus agentes Moisés e Arão que vencem na luta
cósmica, demonstrando quem de fato controla as forças da natureza.”
47 O
confronto do SENHOR com o faraó demonstra o poder do SENHOR, a fim de
que o seu “nome possa ser anunciado em toda a terra” (9.16).
Finalmente derrotado, o faraó deixa os israelitas partir. De acordo com
Êxodo 12, essa libertação é a base para a festa anual da Páscoa, em que Israel
deve lembrar o poderoso ato divino de libertação. O termo “Páscoa” vem da
última praga, em que Deus destrói os primogênitos egípcios do sexo
masculino e as primeiras crias dos animais, mas “passa sobre” os israelitas.
Nos anos subsequentes, essa experiência de libertação da opressão e
escravidão moldará profundamente a memória dos israelitas. Eles são livres e
são um povo somente pelo fato de que Deus é o seu poderoso Libertador.
Deus instrui os israelitas de que o mês de sua libertação será o primeiro mês
de seu ano (12.2). Ele representará para eles o que o domingo representa para
os cristãos: o dia da ressurreição e da nova vida. Em sua nova vida como o
povo liberto de Deus, os israelitas organizam seu calendário para comemorar
os atos poderosos divinos de libertação em favor deles.
O faraó realiza uma última tentativa desesperada de reter os israelitas
enviando seu exército atrás deles à medida que fogem do Egito. Mas o mar,
aquele grande símbolo de poder, todavia sob o controle do SENHOR, afoga o
exército do faraó
(Êx 14). Êxodo 15 relata o cântico de vitória entoado por Moisés e os
israelitas. Deus é descrito como um guerreiro poderoso que venceu a batalha

pelo seu povo e reinará para sempre. O hino expressa a certeza de que Deus
continuará dirigindo esse povo recém-redimido. Ele os conduzirá para a terra
que está dando a eles e os plantará ali no “monte da sua herança”. O novo lar
dos israelitas é o lugar que Deus mesmo escolheu para a sua habitação, o
santuário que ele estabeleceu (15.13-18). Todas essas expressões indicam que
a terra é como um segundo Éden, um lugar em que o SENHOR habitará entre o
seu povo. No antigo Oriente Próximo, os deuses eram tradicionalmente vistos
como se morasse sobre os montes. Aqui, no entanto, toda a terra é descrita
como o monte do SENHOR, sua habitação, seu santuário. A plantação divina
dos israelitas na terra será um grande passo no caminho para a reparação e
restauração da criação.
ISRAEL ESTÁ VINCULADO A DEUS POR MEIO DE ALIANÇA
E, assim, Moisés conduz os israelitas para fora do Egito e na direção do
deserto. Três meses após deixarem o Egito, os israelitas chegam ao monte
Sinai, a mesma região em que Moisés encontrou a Deus pela primeira vez.
Mas há uma diferença: naquela época Deus falou a um só homem do meio de
uma sarça ardente; agora toda a montanha está flamejante (19.16). Deus está
chamando todo um povo para ser seu, e não somente um indivíduo. Deus se
revela aos israelitas por meio de trovões e raios na montanha: com a
finalidade de deixar bem claro com quem eles estão lidando. Essa também é
terra santa.
Por meio de Moisés, Deus lembra os israelitas do que ele fez por eles e
qual é o seu propósito para eles (19.3-6). Deus afirma que, como uma águia
que carrega seus filhotes cansados sobre suas asas, assim também os tirou do
Egito. A formação de Israel como povo de Deus depende completamente dos
atos graciosos de Deus em seu favor. A natureza profundamente relacional da
atividade salvadora de Deus é descrita maravilhosamente na expressão “vos
trouxe a mim”. A intenção de Deus é ter um povo para se relacionar.
Mas por que Deus os escolheu? A resposta de 19.5,6 é profundamente
significativa. Deus escolheu Israel para um propósito especial. Entre todas as
nações, eles são escolhidos para ser propriedade exclusiva de Deus! Mas

(como observamos em Abraão) a eleição não é somente para obter
privilégios: é para o serviço em favor das nações. Se viverem debaixo de seu
reinado, eles serão um “reino de sacerdotes” e uma “nação santa”.
A santidade é um dos atributos mais importantes que a Bíblia confere a
Deus. Ela nos mostra que Deus é especial, diferente de tudo que criou e cheio
de bondade. Deus chama Israel para ser santo, para ser diferente das outras
nações, para ser o próprio povo especial de Deus. Os israelitas serão de fato
diferentes somente se viverem de um modo que combine com esse aspecto da
própria natureza de Deus. Se Israel fizer isso, seu papel especial de ser um
sacerdócio real entre as nações será cumprido. A função dos sacerdotes em
Israel é mediar entre Deus e o povo. Assim, em uma escala internacional,
Israel é chamado para mediar entre o SENHOR e todas as nações. Israel deve
ser o “povo da vitrine, um referencial ao mundo de como estar em aliança
com Yahweh muda um povo”.
48 À medida que os israelitas obedecerem a
Deus, demonstrarão como é a vida sob o reinado de Deus. As nações
conseguirão ter um vislumbre do plano de Deus para todos os povos. A
totalidade da experiência de Israel, incluindo a vida familiar, lei, política,
economia e lazer, refletirá o caráter de Deus e a intenção criacional original
de Deus para a vida humana. A vida de Israel sob Deus deve testemunhar
acerca da presença viva de Deus no povo de Deus. Deve ser uma vida
humana tão plena e rica que as nações da terra serão atraídas a ela.
49 Desse
modo, Israel cumprirá a aliança abraâmica de abençoar todas as nações. A
fidelidade ao chamado de ser uma nação santa e um reino sacerdotal é o
“modo como Israel continuará a exercer o seu papel abraâmico e, assim,
fornecer um comentário sobre o modo com que as promessas de Gênesis
12.1-3 se cumprirão”.
50

Figura 9: O Êxodo
O resgate divino dos israelitas ocorre por causa de seu amor gracioso por
eles, não porque merecem ser resgatados ou de algum modo foram
compensados pela sua obediência a Deus (Dt 7.7,8). Mas o destino dos
israelitas após a sua liberação, de se tornar um sacerdócio real e uma nação
santa, será alcançado somente se obedecerem, escolhendo uma vida ativa de

obediência sob o reinado de Deus.
Dumbrell capta a importância desse chamado para o restante da história
do Antigo Testamento: “A história de Israel daqui em diante na realidade é
somente um comentário sobre o grau de fidelidade com que Israel aderiu a
essa vocação concedida no Sinai”.
51 O restante do Antigo Testamento narra
quão fiel ou infiel Israel é a esse chamado.
A vocação de Israel é concedida no contexto de uma aliança. Em Êxodo
19—24, Deus estabelece um relacionamento pactual entre ele mesmo e os
israelitas no monte Sinai. Estudiosos há muito tempo têm observado as
semelhanças entre tratados de vassalagem no antigo Oriente Próximo e essa
aliança no Sinai. Um tratado de vassalagem era um contrato estabelecido
entre um grande rei conquistador e uma nação que estava sendo colocada sob
seu controle. Na época de Moisés, esse era o modo que os reis hititas
administravam seu império. O formato da aliança em Êxodo é muito
semelhante a esses tratados de vassalagem. Obviamente não é um tratado
entre iguais: Deus é o grande Rei, e Israel, a nação subordinada. Nesse caso,
Israel passou ao controle de Deus e se tornou o seu povo não porque Deus os
conquistou (como os reis hititas conquistariam suas tribos vizinhas), mas
porque ele os libertou da escravidão no Egito.

Figura 10: Impérios Hitita e Egípcio, c. 1500 a.C.

Havia seis elementos principais em um tratado de vassalagem hitita: (1)
um preâmbulo, (2) uma recapitulação da história do relacionamento entre o
rei e a nação subordinada, (3) estipulações principais que governam o
relacionamento, (4) o detalhamento das estipulações, (5) testemunhas da
aliança e (6) bênçãos e maldições para obediência ou desobediência. Cada um
desses elementos é encontrado em Êxodo 19—24 e em Deuteronômio.
52
Essas Escrituras implicam que Deus é um grande rei conquistador: algo como
os poderosos conquistadores hititas e, no entanto, incomparavelmente maior.
Essa imagem da condição de Deus nos fornece uma percepção importante
sobre como a nação israelita se torna o próprio povo de Deus. Assim como
um rei conquistador leva a sério todos os aspectos da vida da nação que se
tornará seu estado vassalo, também Deus tenciona exercer o seu governo
sobre todos os aspectos da vida de Israel. Deus tem o mesmo nível de
interesse pela política, economia e lei quanto qualquer outro grande rei
vassalo no antigo Oriente Próximo.
Esse interesse de Deus nos detalhes da experiência de seu povo é
mostrado claramente nas instruções que ele dá para regular e moldar todos os
aspectos da vida deles sob esse governo. Geralmente nos referimos a essas
instruções como “lei” e essa lei não é inteiramente nova para os israelitas.
Eles haviam tido ampla experiência com a lei durante o seu período como
povo escravizado no Egito. De fato, é possível que o que Deus faz no monte
Sinai não é dar ao seu povo uma lei totalmente nova, mas usar o que ele já
conhece da lei e reformulá-la, rejeitando algumas partes e desenvolvendo
outras. A Lei que Deus dá a Moisés para os israelitas contém todas as marcas
de uma autêntica lei do antigo Oriente Próximo. Deus não está chamando o
seu povo para viver de um modo excêntrico e alheio à história: deve ser um
povo autêntico de sua própria época e lugar. E, ainda assim, Deus reformula a
lei usual para refletir sua própria natureza e intenções criacionais e, assim, ela
tem alguns elementos bem distintos. Por exemplo, embora parte da lei
daquela época valorizasse propriedades acima de pessoas e tornasse a
punição por roubo maior do que a por assassinato, a lei de Israel sempre
coloca o valor de pessoas acima do valor da mera propriedade, pois somente
pessoas, de tudo que Deus criou, foram criadas à sua própria imagem.

Os Dez Mandamentos (as “Dez Palavras” de Êxodo 20 e Deuteronômio 5)
são as estipulações gerais para Israel no relacionamento pactual com Deus.
As instruções que seguem as Dez Palavras desenvolvem aplicações
detalhadas dos princípios gerais, os quais tocam todos os aspectos da vida de
Israel diante de Deus (Êx 20—22). As Dez Palavras, assim, articulam os
princípios centrais que Deus tem em mente para a vida de seu povo e que
devem moldá-la, a fim de que sua vida reflita o caráter dele. Somente à
medida que os israelitas obedecerem plenamente a Deus, serão
verdadeiramente um sacerdócio real e uma nação santa. Somente à medida
que a lei de Deus moldar toda a sua vida, cumprirão o seu chamado e serão
uma bênção para as nações.
Muito já foi escrito sobre as Dez Palavras. Embora cada uma delas (exceto
a quarta e a quinta) seja expressa de forma negativa, todas têm implicações
positivas. O primeiro mandamento não somente proíbe a inclusão de outros
“deuses” na adoração formal de Israel, mas também instrui positivamente
Israel a servir somente ao SENHOR. O segundo mandamento é sui generis na
época e localização de Israel, proibindo as pessoas de fazer qualquer imagem
do SENHOR ou de qualquer outro deus. No antigo Oriente Próximo, somente
os israelitas não têm imagem concreta alguma de seu deus diante da qual se
curvam. Por si só esse mandamento causaria espanto aos vizinhos de Israel e
levantaria as questões mais profundas sobre a natureza do Deus de Israel.
Naquela época, a ausência de qualquer imagem em um santuário implicaria
descrença em qualquer deus. Contudo essa proibição de adorar uma imagem
é extremamente importante. Os israelitas precisam compreender que seu
Deus não era qualquer “deus”, mas o próprio SENHOR do céu e da terra. De
modo parecido, embora ele tenha se revelado a Israel como Yahweh, eles
estão proibidos de usar esse nome para tentar exercer poder mágico. Assim, o
terceiro mandamento ensina que o SENHOR deve ser respeitado e as pessoas
não devem realizar tentativa alguma de manipular o nome dele para seus
próprios fins. O quarto mandamento elogia o trabalho como digno e
necessário — “Seis dias deves trabalhar” — mas também situa o trabalho
firmemente no contexto do relacionamento do povo com Deus, a fim de que

o trabalho não se torne um fim em si mesmo.
Os mandamentos quinto ao décimo regulam os relacionamentos entre o
povo de Deus. Em estruturas familiares saudáveis, novas gerações devem ser
introduzidas à vida entre o povo de Deus. O quinto mandamento insiste na
autoridade e responsabilidade dos pais. Nas cinco “palavras” restantes, Deus
proíbe o assassinato, o adultério, o roubo, o falso testemunho e a cobiça entre
seu povo escolhido. Eles devem constituir uma comunidade em que o shalom
divino de paz e harmonia caracteriza a vida na família e entre vizinhos.
Os Dez Mandamentos são boas-novas. Eles dizem a Israel como viver de
modo a agradar a Deus e exibir às nações os propósitos criacionais de Deus
para a humanidade. Visto que o SENHOR é o Criador, suas instruções
combinam com o modo que ele criou o mundo. Isso está especialmente claro
no quarto mandamento, que liga o padrão humano de trabalho e descanso ao
trabalho e descanso do próprio Deus na criação do mundo: a vida de seu povo
deve espelhar a sua própria vida. Assim, os mandamentos são a chave para
viver de modo plenamente humano; eles certamente não se destinam a ser
restrições horríveis para dificultar a vida. Precisamos lembrar que foram
dados primeiramente aos israelitas que viviam no antigo Oriente Próximo, e a
nossa própria interpretação de seu significado deve levar em consideração
esse contexto. Eles permanecem profundamente relevantes para a nossa vida
diante de Deus, mas não podemos necessariamente aplicá-los dos mesmos
modos com que a antiga nação de Israel deveria observá-los. Naquele
contexto, havia penalidades severas por violar os mandamentos: por exemplo,
qualquer um que adorasse outro deus seria morto. Embora continuemos
aprendendo que Deus leva a idolatria extremamente a sério, precisamos
reconhecer que em nosso próprio contexto pluralista do século 21, não seria
uma boa ideia legislar desse modo. Do mesmo modo, os próprios cristãos
divergem quanto a como honrar o quarto mandamento (guardar o sábado) em
nossos dias.
Em 20.22—23.33, muitas estipulações detalhadas procedem das ordens
gerais. Elas tratam de uma variedade de temas como adoração, escravidão,
violência, rapto, ofensas sexuais, atividades econômicas, festas religiosas e o

cuidado de animais, entre vários outros. A vida e tudo que pertence a ela está
na esfera de ação do reinado do SENHOR sobre o seu povo. É fascinante
perceber a ampla abrangência dessas leis. Considere 23.5, por exemplo. Se
você vir o jumento de uma pessoa que odeia e ele não está conseguindo se
levantar por causa de sua carga, você não deve ignorá-lo, mas deve ajudá-lo a
se levantar. A lei mostra um interesse genuíno no bem-estar animal, em meio
a uma percepção realista de quão facilmente podemos entrar em contendas
com nossos vizinhos. Deus não tem ilusão alguma de que seu povo é perfeito.
Em Êxodo 24, uma cerimônia solene ratifica a aliança enquanto os
israelitas se comprometem a obedecê-la. Moisés recita as leis com que os
israelitas estão se comprometendo e então as registra. Em seguida, constrói
um altar e ergue doze colunas, que representam as doze tribos de Israel. A
aliança é com todo o povo de Deus e, como as colunas, deverá ser
permanente. Por fim, Moisés derrama metade do sangue dos sacrifícios sobre
o altar e asperge metade sobre o povo. O sacrifício é necessário para que
pecadores possam entrar na presença de Deus. O sangue é designado de o
“sangue da aliança” e essa é uma expressão que Jesus usará na Última Ceia.
O sangue também significa a seriedade do relacionamento: é uma maneira de
dizer: “Que isso aconteça a nós, que o nosso próprio sangue seja derramado,
se não formos fiéis aos termos do acordo”. Quando a cerimônia de ratificação
termina, os setenta anciãos — junto com Moisés e Arão, Nadabe e Abiú —
sobem no monte (24.9-11). Ali eles têm uma experiência extraordinária, pois
lhes é permitido ver “o Deus de Israel”. Esse privilégio é uma tremenda
confirmação do relacionamento com Deus, primordial na aliança. Como em
outros relatos bíblicos de pessoas que “veem” Deus (teofanias), não somos
informados sobre a aparição do próprio Deus, a quem ninguém jamais viu
(cf. 33.23; Jo 1.18; 1Jo 4.12). Antes, o texto descreve certos elementos que
envolvem a visão da pessoa de Deus — nesse caso, o chão debaixo de seus
pés conforme Êxodo 24.10. A comunhão entre Deus e o seu povo, que é
central na aliança, é representada de modo maravilhoso em Êxodo 24.11: os
anciãos veem Deus e eles comem e bebem. Deus prometeu um
relacionamento com o seu povo e aqui vemos que o cumprimento dessa
promessa está bem encaminhado.

DEUS VEM PARA HABITAR COM O SEU POVO
Embora a visão que os anciãos têm de Deus seja transitória, Deus tem a
intenção de que sua presença se torne uma parte permanente da vida de Israel.
Ele instrui Moisés a reunir entre os israelitas os materiais necessários para
construir uma complexa estrutura de tenda, o Tabernáculo, e em seguida dá
instruções detalhadas para a construção. A vida formal de adoração de Israel
deverá ocorrer neste local. Os sacerdotes e levitas serão os responsáveis,
oficiando sobre os sacrifícios e sobre as ofertas dos israelitas. Mas o principal
objetivo do Tabernáculo é ser um santuário portátil, a residência pessoal de
Deus entre o seu povo da aliança:
Então habitarei no meio dos israelitas e serei o seu Deus. Eles saberão que eu sou o SENHOR seu
Deus, que os tirou do Egito para que eu possa habitar no meio deles. Eu sou o SENHOR seu Deus
(29.45,46).
Quase um terço do livro de Êxodo ocupa-se com os planos detalhados
para o Tabernáculo, e em seguida esses detalhes são repetidos à medida que
está sendo de fato construído. Fretheim observa: “Treze capítulos
relacionados ao Tabernáculo é um longo trecho de não história que pode ser
cansativo de ler”.
53 Contudo, esses detalhes exaustivos transmitem uma
mensagem importante: essa moradia precisa ser levada a sério. O próprio
Deus está vindo para morar entre o seu povo e vale a pena fazer uma pausa
para observar a forma e a natureza dessa moradia oficial. Outra razão para
essa “demora” na história é que Israel existe para adorar a Deus. O livro de
Êxodo traça o caminho dessa nação da escravidão à adoração, e os servos do
grande Rei desejarão saber todos os detalhes da vida dele no meio deles.
Outrora, foram forçados a construir para o faraó no Egito; agora estão doando
voluntariamente seus materiais e habilidades para construir a casa de Deus
em seu meio.
Outro motivo para as descrições duplicadas do Tabernáculo em Êxodo é
que entre os dois relatos está a história de um episódio de rebelião entre o
povo contra Deus e o seu servo Moisés (Êx 32). Essa irrupção de apostasia
ameaça o próprio relacionamento pactual. Os israelitas estão esperando

Moisés descer da montanha, onde ele está falando com Deus. Eles ficam
impacientes e fazem para si mesmos um bezerro de ouro, ao mesmo tempo
em que Deus está dando a Moisés as instruções para a construção de seu
lugar de habitação. Imagens de bezerros eram, nessa época, comuns no antigo
Oriente Próximo. Esse bezerro de ouro se destina a ser um deus
completamente diferente ou uma imagem do mensageiro do SENHOR; de
qualquer modo, é um erro catastrófico, comparável à rebelião de Adão e Eva
em Gênesis 3. A fabricação do bezerro está completamente em desacordo
com a revelação que Deus faz de si mesmo ao instruir Moisés sobre a
construção do Tabernáculo: (1) O povo tenta fazer o que Deus já proveu ou
proverá. (2) A ideia de construir uma imagem é uma iniciativa humana. (3)
Os materiais para ela são exigidos (não dados voluntariamente), lembrando
os leitores da antiga vida de escravidão no Egito. (4) É um trabalho rápido e
humano, sem as preparações cuidadosas dignas do Santo de Israel. E (5) o
SENHOR, o Deus invisível e santo, é transformado em um objeto visível que
não consegue falar nem agir. “O efeito irônico [de fazer o bezerro] é que o
povo é privado da própria presença divina a que havia ansiado estar mais
fortemente ligado.”
54 Os israelitas, assim, violam o primeiro e o segundo dos
mandamentos de Deus. Somente como resultado do apelo de Moisés a Deus
(com base na própria reputação e fama de Deus) que o desastre é evitado. O
segundo relato dos detalhes do Tabernáculo (após a história do bezerro de
ouro) indica que Deus permanece graciosamente comprometido com sua
aliança com Israel.
O livro de Êxodo termina com Deus vindo ao seu Tabernáculo para ali
habitar (40.34-38). As aparições ocasionais de Deus a Israel agora deram
lugar à sua presença permanente em seu meio. E o Tabernáculo vai com eles
para onde quer que forem; Deus peregrina com o seu povo. Mas o
Tabernáculo sugere muito mais do que isso: ele é um símbolo da restauração
plena da presença de Deus em toda a criação, exatamente como era sua
intenção original:
Nesse lugar pequeno e solitário em meio ao caos do deserto, surge uma nova criação. Em meio à
desordem há ordem. O Tabernáculo é a ordem do mundo como Deus o pretendia em miniatura em
Israel. Os sacerdotes do santuário ocupados com seus procedimentos designados são como tudo na

criação, realizando o seu serviço litúrgico — o sol, as árvores, os seres humanos. O povo de Israel
acampado cuidadosamente ao redor do Tabernáculo em seu meio constitui os primórdios da
restauração divina da criação ao que era seu propósito original. O Tabernáculo é uma realização da
ordem criada de Deus na história; ambos refletem a glória de Deus em seu meio.
Além disso, esse microcosmo da criação é o início de um esforço macrocósmico por parte de
Deus. Em seu povo e por meio dele, Deus está a caminho de uma nova criação para tudo. A
presença de Deus no Tabernáculo é uma afirmação sobre a presença divina que Deus tem em mente
no mundo todo. A glória manifestada ali deverá fluir para o mundo mais amplo. O resplendor da
face de Moisés como resultado da experiência da glória divina […] deverá se tornar característico
de Israel como um todo, uma irradiação para o mundo todo daqueles efeitos gloriosos da habitação
de Deus entre Israel. Como reino de sacerdotes, […] os israelitas tem a função de mediar essa glória
para todo o cosmo.
55
Quando a história de Êxodo chega ao fim, progresso considerável foi feito
rumo à formação do povo de Deus. O povo está estabelecido em um
relacionamento de aliança formal com Deus e tem tanto a Lei quanto o
Tabernáculo. Sua vida recebeu tanto um formato ético quanto um formato
litúrgico.
56 Do que precisa agora é um lugar próprio.
No entanto, ter Deus vivendo no meio desse povo não será fácil ou
simples. Como que esses mortais pecaminosos lidarão com essa realidade
impressionante e santa entre eles? Depois do incidente do bezerro de ouro,
Deus acaba se revelando a Moisés como misericordioso e compassivo, tardio
em irar-se e cheio de bondade e de fidelidade, que usa de bondade por
milhares e perdoa a maldade, a transgressão e o pecado (34.6,7). Mas ele
também afirma que não deixa de punir o culpado. De fato, o pecado do povo
e os seus efeitos reverberarão até a terceira e quarta gerações.
Levítico: vivendo com o Deus santo
Isso é exatamente onde Levítico se encaixa. Levítico se concentra sobre o
protocolo para manter um relacionamento correto com o Rei, cuja residência
real está no acampamento israelita. Os primeiros sete capítulos de Levítico
tratam de diferentes tipos de sacrifícios e ofertas que um israelita pode trazer
ao Tabernáculo e como esses rituais devem ser realizados. Assim, por
exemplo, alguém que peca sem intenção deve trazer uma oferta pelo pecado
ao Tabernáculo e oferecê-la ali. Por meio desse ato, expiação é realizada para

o transgressor e Deus concederá perdão (Lv 4.27-35). Um israelita que quer
agradecer a Deus por algo pode oferecer uma oferta de comunhão (7.11).
Levítico 8 e 9 descrevem as pessoas que Deus designou para trabalhar no
Tabernáculo, como são consagradas às suas tarefas e como começam o seu
trabalho. Assim, à medida que Deus habita entre seu povo, ele graciosamente
fornece um aparato abrangente para manter o relacionamento entre ele e seu
povo.
Deus está presente no Tabernáculo e em sua adoração estruturada em um
lugar específico entre os israelitas. “Deus escolhe um lugar porque Deus
entrou na história com um povo para quem lugar é importante.”
57 O
Tabernáculo fornece ordem para a adoração de Israel e “um aspecto tangível
para a presença divina”.
58 Mas isso nunca teve como propósito desviar da
intenção de Deus de que sua presença deveria permear toda a vida do povo. A
presença permeadora de Deus é do que tratam os capítulos seguintes. Em
10.10, o SENHOR alerta Arão sobre a responsabilidade sacerdotal para “fazer
separação entre o santo e o profano, entre o puro e o impuro” em relação a
animais, aves, diferentes tipos de comida e várias doenças.
Para o leitor contemporâneo, isso apresenta um modo extremamente
incomum de regular a vida, mas o melhor modo de entender todos esses
regulamentos surgiu de estudos de como culturas antigas estruturavam sua
vida. O que nos parecem regulamentos aleatórios e estranhos têm profundo
significado simbólico para os israelitas. Gordon Wenham observa, por
exemplo, que entre as aves e os animais há espécies “puras” e “impuras;
todas as aves e animais “puros” podem ser comidos, mas somente alguns
podem ser usados para sacrifícios:
Essa divisão tríplice dos reinos das aves e dos animais corresponde às divisões entre seres humanos.
A humanidade se divide em dois grupos principais: Israel e gentios. Do povo de Israel, somente um
grupo, os sacerdotes, pode se aproximar do altar para oferecer sacrifícios. Isso está de acordo com a
compreensão legal de espaço sagrado. Fora do acampamento é a habitação de gentios e israelitas
impuros. Israelitas comuns habitam no acampamento, mas somente sacerdotes podem se aproximar
do altar ou entrar na tenda do Tabernáculo.
Essas distinções servem para lembrar Israel de sua condição especial como o povo escolhido de
Deus. As leis alimentares não somente lembram Israel de sua distinção, mas também servem para
impô-la […] As leis alimentares simbolizam que Israel é o povo de Deus, chamado para desfrutar

da vida, enquanto gentios idólatras de modo geral se opõem a ele e ao seu povo e enfrentam a
morte.
59
De fato, esse tipo de simbolismo permeia a vida de Israel. Toda semana,
Israel guarda o sábado com um lembrete daquilo que a vida realmente é. E o
ano do israelita é entremeado por festas regulares durante as quais Israel
pausa diante de Deus para lembrar e para celebrar. Um exemplo dessas festas
é a Páscoa, em que Israel se recordava diante de Deus de sua libertação da
escravidão no Egito. Outra grande festa era a Festa das Semanas, celebrada
no fim da colheita dos grãos. Seu nome do Novo Testamento, Pentecostes,
vem do fato de que era celebrada cinquenta dias depois do primeiro feixe ter
sido oferecido a Deus. Deus dá todos esses rituais aos israelitas como um
meio de graça para regularmente centrar novamente sua vida nele e em tudo
que ele havia feito por eles (veja Lv 23 para uma lista de festas).
Números: peregrinação à terra
No fim de Levítico, Israel ainda está no monte Sinai. Números conta a
história de sua jornada desse monte às campinas de Moabe, às portas da Terra
Prometida. Antes de partirem, por ordem de Deus se faz um recenseamento
dos homens israelitas de cada tribo que têm mais de vinte anos e que são
capazes de servir no exército. O grupo de escravos tirados do Egito está
sendo moldado em uma unidade bem-organizada, preparada para a conquista
militar da Terra Prometida. O número total de homens é apresentado como
seiscentos mil, o que significaria que o número total de israelitas era de mais
de dois milhões de pessoas. Deus prometeu fazer uma grande nação dos
descendentes de Abraão, e Israel agora mostra todos os sinais dessa grandeza
emergente.
60
Inicialmente, os preparativos para a jornada vão bem. Os primeiros dez
capítulos de Números estão repletos de otimismo enquanto os últimos
preparativos são realizados. Esse otimismo é registrado de modo maravilhoso
na bênção sacerdotal que o SENHOR dá a Arão e seus filhos como sua própria
bênção sobre Israel:

O SENHOR te abençoe
e te guarde;
o SENHOR faça resplandecer o seu rosto sobre ti
e tenha misericórdia de ti;
o SENHOR volte o seu rosto a ti
e te dê a paz (6.24-26).
No hebraico, cada linha dessa bênção é mais longa que a anterior e a última
linha termina com a palavra “paz” (shalom). Há todo otimismo de que esse é
o objetivo da jornada de Israel à medida que o povo parte para a Terra
Prometida, seu próprio Deus vai com ele para mostrar o caminho.
Infelizmente, esse otimismo novamente é enfraquecido. Viagens pelo
deserto não são fáceis e, apesar da presença de Deus em seu meio, alguns
israelitas logo começam a se queixar de suas novas dificuldades, até que
Deus reage com ira (Nm 11). Fogo sai do Tabernáculo e consome partes do
acampamento. Os israelitas clamam a Moisés por ajuda. Somente quando ele
intervém por eles, clamando a Deus em seu favor, o fogo se apaga. Mesmo
depois dessa advertência, o povo continua murmurando, reclamando até
mesmo do cardápio e da falta de carne! Há também dificuldades relacionadas
à liderança: Miriã e Arão começam a murmurar sobre a liderança de Moisés e
a fofocar sobre o seu casamento (Nm 12).
A maior crise no relato da primeira jornada no deserto vem com a resposta
dos israelitas ao relato dos espiões enviados de antemão para sondar a Terra
Prometida (Nm 13—14). Eles dizem que a terra é extraordinariamente fértil e
seria um ótimo lugar de habitação para Israel, mas o seu povo é poderoso e as
suas cidades, bem fortificadas. O relato da força do inimigo gera medo e a fé
dos israelitas no SENHOR desfalece. Eles ficam deprimidos e descontentes,
reclamando que Deus os trouxe até aqui somente para matá-los. Mais uma
vez, somente a intercessão de Moisés impede que Deus destrua todos eles.
Deus retém a sua mão, mas jura que ninguém dessa geração incrédula entrará
na Terra Prometida. O resultado é que, em vez de prosseguirem
imediatamente à Terra, os israelitas vagueiam no deserto em volta de Cades
durante quarenta anos até a incrédula primeira geração ter de fato
desaparecido.

Depois desses quarenta anos longos e cansativos, os israelitas são
conduzidos para as campinas de Moabe, a leste da Terra Prometida (Nm 22).
Ali é feito mais um recenseamento para contar a nova geração de israelitas
(Nm 26). A área a oeste do rio Jordão é conquistada e distribuída entre
algumas tribos (Nm 32). Israel agora está preparado para conquistar a Terra
Prometida que está do outro lado do Jordão.
Figura 11: Peregrinações no deserto

Deuteronômio: nas fronteiras da terra
Claramente, até mesmo para essa nova geração de israelitas, não será tarefa
nada fácil viver à altura dos padrões divinos da aliança. A terra está diante
deles e com ela está a possibilidade de descanso e cumprimento das
promessas de Deus a Abraão. Deuteronômio registra os sermões de Moisés
aos israelitas à medida que eles se preparam para entrar na terra. O próprio
Moisés não entrará na Terra Prometida, mas em Deuteronômio temos um
registro dos discursos que faz para preparar o povo para sua nova tarefa:
Sua situação imediata está do lado de fora da terra; estão posicionados para entrar nela. Nessa
pausa, com a possiblidade de bênção divina colocada diante deles, está o poder dramático do livro.
Israel está em um momento de “decisão”. […] Entre seu início e seu fim está o desafio imediato de
viver na Terra Prometida, de acordo com a aliança com Yahweh.
61
Nesse contexto, os sermões de Moisés apresentam a Israel uma visão de
sociedade constituída sob a autoridade só do SENHOR, um povo vinculado a
Deus pela sua aliança com ele. Essa aliança é agora renovada.
Em seu primeiro sermão (Dt 1.6—4.40) Moisés recapitula a história
recente dos israelitas, os quarenta anos desde que deixaram o Sinai, e lembra
a presente geração de israelitas das lições importantes a ser aprendidas da
experiência de seus pais. O bem-estar futuro do povo na terra estará
condicionado a amar e servir a Deus de coração. O segundo sermão de
Moisés revisita detalhadamente a Lei que é essencial para a aliança e a
expande em relação à futura vida dos israelitas na terra. Moisés lembra os
israelitas das Dez Palavras e em seguida profere uma exortação poderosa para
amar a Deus obedecendo essas leis e tornando-as absolutamente centrais em
sua vida e na vida de seus filhos:
Ouça, ó Israel: O SENHOR, o nosso Deus, é o único SENHOR. Ame o SENHOR, o seu Deus, de
todo o seu coração, com toda a sua alma e com todas as suas forças. E estes mandamentos, que hoje
lhe dou, devem estar no seu coração. Inculque eles a seus filhos e deles falarás sentado em casa e
andando pelo caminho, quando se deitar e quando se levantar. Amarre-os como sinal em suas mãos
e como faixa em sua testa; escreve-os nos batentes da sua casa e em seus portões (6.4-9).
A intenção do SENHOR é que ele instrua Israel em todas as áreas da vida.
Somente assim Israel verdadeiramente se tornará luz para as nações. “Não há

um centímetro quadrado da vida sobre o qual ele não diz: ‘Isto é meu!’.”
62
Religião não é somente uma atividade privada: o SENHOR quer que a sua Lei
(Torá, “instrução”) permeie todas as dimensões da experiência de seu povo.
Suas palavras devem moldar a vida pessoal de cada indivíduo (estando
presentes na mente e no coração, quer se esteja andando ou deitado).
63 Elas
devem moldar os pensamentos e ações de todo o seu povo, todos os dias de
sua vida (estando presentes tanto na “testa” quanto na “mão”).
64 A Torá
reivindica tanto a vida familiar quanto a vida pública. Ao deixar a casa, vê-se
as palavras de instrução divinas escritas no portão. Ao retornar, vê-se elas
novamente, escritas na porta da casa.
Figura 12: Estrutura da aliança
Todas as leis detalhadas que vêm a seguir em Deuteronômio estão
relacionadas a como tornar essa visão uma realidade. “Nessa aliança, religião
e política são uma coisa só. Israel cumpre suas obrigações políticas em
virtude de sua lealdade a Yahweh, que tem uma dimensão social integral.
Não há somente uma teologia da dádiva da terra, mas uma visão, esboçada
nas leis, de como a terra deve ser mantida. As leis reduzem o conceito do
governo de Yahweh a casos específicos.”
65
Leitores contemporâneos da Bíblia muitas vezes acham as instruções de
expulsar as outras nações da terra difíceis de engolir (Nm 33.50-54; Dt 7).
Devemos observar, no entanto, que essa parte da história bíblica mostra
sensibilidade à potencial injustiça inerente na conquista por parte de Israel de

terras que foram a pátria de outro povo. De acordo com Gênesis 15.16, Deus
não tira a terra de seus primeiros habitantes até que o seu pecado tenha se
aprofundado tanto que de fato perderam seu direito a ela. Eles serão
expulsos, mas essa decisão é justa. Na verdade, o comportamento dos
cananeus alcança depravação tão extrema que o juízo, quando chega pelas
mãos dos israelitas, já deveria ter ocorrido há muito tempo. Visto que os
israelitas precisam estar plenamente comprometidos com o SENHOR, a
presença de outras culturas com outros deuses ao lado do povo de Israel
apresentaria uma tentação constante de idolatria, destruindo a identidade de
Israel como o povo pactual de Deus. É por isso que em Deuteronômio (7.5;
cf. Nm 33.52) a instrução de desalojar os antigos habitantes da terra faz parte
da exposição do primeiro mandamento: “Não terás outros deuses”.
66
Dessa maneira Moisés lembrou os israelitas da aliança e de suas
implicações para a totalidade da vida deles na terra. Ele coloca diante deles
duas opções para o futuro: juízo ou bênção (Dt 27—28). Se eles responderem
à palavra de Deus com fé e obediência, experimentarão vida, prosperidade e
bênção. Se responderem com incredulidade e desobediência,
consequentemente enfrentarão morte, destruição e maldição (30.11-20).
Moisés exorta o povo a escolher vida e bênção empenhando-se para obedecer
ao SENHOR, em seguida renova a aliança com eles e designa Josué como seu
sucessor. Deus permite que Moisés veja a terra da promessa, mas não poderá
entrar nela. O livro de Deuteronômio termina com a morte de Moisés na
fronteira de Canaã.
Cena 2: Uma terra para o seu povo
Josué: a dádiva da terra
O livro de Josué conta a história da conquista de Canaã pelos israelitas sob a
liderança de Josué. Tomar posse de sua própria terra é um enorme avanço na
história da nação de escravos que deixou o Egito: “Nesse momento, Israel de
fato se torna uma nova criação, um escravo se torna um herdeiro, uma criança
indefesa se torna um herdeiro maduro”.
67 Embora a conquista seja alcançada

por meio de várias batalhas, a narrativa sempre destaca que os israelitas
dependem inteiramente do SENHOR para obter êxito. De fato, a terra é uma
dádiva do SENHOR e um cumprimento de suas promessas a Abraão, Isaque,
Jacó e Moisés. O próprio SENHOR ordena que Josué prepare os israelitas para
atravessar o rio Jordão e entrar na terra que ele está prestes a lhes dar (Js
1.2,3). Josué é exortado a ser forte e corajoso, pois o SENHOR dará a terra aos
israelitas, cumprindo desse modo promessa a seus antepassados (1.6).
Josué se prepara para a conquista enviando espiões para sondar a terra.
Quando esses homens voltam com o seu relatório, este não tem o tom de
medo que caracterizava o relatório dos espiões que Moisés enviara a Canaã
quarenta anos antes (Js 2; cf. Nm 13). Os espiões encontram refúgio na casa
de uma prostituta chamada Raabe, que os esconde do rei de Jericó. Ela lhes
conta como a reputação do SENHOR se difundiu mesmo em Canaã, gerando
medo entre os habitantes da terra. Os espiões asseguram a promessa a Raabe
de que ela e sua família serão tratadas com bondade quando os israelitas
vierem com força para conquistar a terra. De volta ao lado leste do Jordão, os
israelitas recebem o relatório favorável dos espiões. Assim, encorajados,
partem para sua nova pátria. Eles são conduzidos para atravessar o Jordão
pela arca da aliança, que detém a água e permite que atravessem. Doze pedras
são tiradas do leito do rio e erguidas como memorial exatamente na fronteira
de Canaã, para lembrá-los de que é o SENHOR que permite que os israelitas
atravessem o rio e tomem posse da terra.
Essa conquista é a obra do SENHOR, ilustrado vividamente a oeste do rio
perto de Jericó: um anjo aparece a Josué com uma espada na mão. Quando
Josué lhe pergunta de qual lado ele está, o anjo responde: “Nenhum dos dois.
Venho agora como comandante do exército do SENHOR” (5.13-15). Em
palavras semelhantes à ordem de Deus a Moisés na sarça argente, o anjo
ordena que Josué tire suas sandálias, pois está em lugar santo. Claramente,
não é Josué, mas o próprio SENHOR, o general que está no comando dessa
campanha: o SENHOR é aquele que concederá êxito aos israelitas.
Os detalhes da conquista de Jericó repetidamente reforçam esse conceito.
Sob a instrução do SENHOR, os israelitas marcham ao redor de Jericó durante

sete dias, com a arca (representando a presença do SENHOR) guiando-os. No
sétimo dia, as muralhas de Jericó caem quando a trombeta ressoa e as pessoas
gritam. Os israelitas atacam a cidade e destroem todo ser vivente nela em
obediência à ordem do SENHOR (Js 6.21). Eles somente poupam Raabe e sua
família.
Vários aspectos dessa “guerra santa” são difíceis para nossa compreensão.
Era realmente necessária, era justo matar todos os cidadãos de Jericó e seus
animais? Analisaremos isso logo adiante, mas basta observar aqui que Deus é
bem claro em suas instruções aos israelitas. Eles precisam lutar desse modo.
De fato, quando tentam pela primeira vez (logo depois de subjugarem Jericó)
conquistar a cidade de Ai, são derrotados precisamente porque somente um
homem entre eles, Acã, da tribo de Judá, desobedeceu a Deus. Ele reteve
parte dos despojos de Jericó para si (Js 7). Essa desobediência é levada muito
a sério e Acã é apedrejado até a morte. Depois disso, eles têm êxito em
conquistar Ai (Js 8), mas dessa vez os israelitas têm a permissão de levar
consigo os animais e outros bens da cidade — como o SENHOR instruiu a
Josué. O problema anterior em Ai causado pelo pecado de Acã é um lembrete
de que Israel terá êxito na terra somente se o povo permanecer obediente ao
SENHOR e for fiel às condições da aliança.
Depois de Ai, Josué executa as ordens de Moisés em Deuteronômio 27.1-
8 renovando a aliança entre o SENHOR e os israelitas no monte Ebal (Js 8.30-
35). Os israelitas se reúnem dos dois lados da arca da aliança, metade deles
frente ao monte Gerizim e metade frente ao monte Ebal. Josué copiou todas
as palavras da Lei em pedras, e na cerimônia ele as lê aos israelitas para que
entendam claramente as opções de bênçãos ou de maldições que estão diante
deles. Deus está dando a terra aos israelitas para que possam viver nela como
seu povo e, assim, ser luz para as nações. Mas (como aprenderão por
experiência própria) ele não tolerará um estilo de vida entre eles radicalmente
em desacordo com o próprio caráter dele.
Josué 9—12 conta as histórias das campanhas nas quais Josué e os
israelitas conquistam toda a terra. Os gibeonitas enganam os israelitas,
fazendo com que estabeleçam um acordo com eles (Js 9), mas esse é o único

grupo com que eles fazem um acordo. Líderes e povos de outros grupos
cananeus são mortos à medida que a conquista israelita avança sobre a terra.
No fim dessa fase de conquista, é fornecido um resumo: “Josué tomou toda a
terra, exatamente como o SENHOR havia orientado Moisés, e deu-a como
herança a Israel, de acordo com suas divisões tribais; e a terra descansou das
guerras” (11.23). Josué 13—19 conta como a terra foi distribuída a cada uma
das tribos de Israel. A herança de cada tribo é decidida por sorteio (14.2,3):
nove tribos e meia recebem herança a oeste do Jordão e duas tribos e meia
recebem terra a leste do Jordão. Cidades de refúgio são instaladas na terra (Js
20) para assegurar justiça para aqueles que matam alguém acidentalmente.
Cidades são designadas para os levitas (Js 21), que não têm uma área distinta
para si mesmos por causa de sua função sacerdotal. Mas, visto que duas
tribos (Efraim e Manassés) vêm da descendência de José, ainda há doze
tribos que recebem terra como herança (14.4).

Figura 13: Conquista da terra

Figura 14: Distribuição da terra entre as doze tribos

O livro de Josué termina com os israelitas estabelecidos na terra. Isso
representa um estágio crucial no cumprimento das promessas de Deus a
Abraão, ainda que o caminho até aqui não tenha sido fácil. A terra prometida
para os descendentes de Abraão agora se tornou uma realidade na vida de
Israel. O palco está montado para Israel viver como luz para as nações. A
resposta de Deus à rebelião em sua boa criação foi eleger um único homem,
Abraão, e então restaurar parte da terra e colocar os descendentes de Abraão
ali.
68 Israel na terra tem o propósito de ser uma amostra da intenção de Deus
para com a totalidade de sua criação.
Mais uma vez, somos lembrados do interesse de Deus na totalidade da
vida como ele a criou. Brueggemann acertadamente afirma: “Esse interesse
em uma promessa material e física dá credibilidade ao cristianismo como
religião também material. Quando o cristianismo se tornou apenas espiritual e
negou seu foco correto na terra, mereceu justificadamente as censuras do
marxismo”.
69 Esse lugar peculiar na terra de Deus é uma dádiva aos
israelitas; Josué a descreve como “esta boa terra” (23.15; cf. Dt 6.10,11):
É uma boa terra, a obra da boa palavra […] A terra corresponde à palavra que a deu. Ela satisfaz
todos os anseios do deserto: água — riachos, fontes, nascentes; comida — trigo, cevada, vinhas,
figueiras, romãs, oliveiras, mel; em abundância — sem escassez […] sem falta […]; minerais —
ferro, cobre […]. Uma terra desse tipo torna possível viver uma vida menos exposta e menos
vulnerável, o tipo de vida pelo qual os israelitas haviam ansiado tanto na escravidão quanto na
peregrinação.
70
A terra é como um segundo Éden. E como era o caso de Adão e Eva no
jardim, Israel não está livre para explorar a terra como bem entende. Israel
sempre vive na terra com o SENHOR, e as leis dele contêm muitas instruções
sobre como lidar com a terra de modo correto. Em especial, a lei do sábado é
um lembrete vigoroso de que o SENHOR é aquele que sustenta a criação, e a
vida é mais do que consumismo.
71
Israel viverá à altura desse desafio? Possibilidades grandes e
extraordinárias estão diante dele. Josué afirma que a terra será um lugar de
descanso para os israelitas, mas ela também é um lugar de provação, de
tentação. Nem todos os cananeus estão fora da terra, em hipótese alguma.
72
Demasiadas vezes os israelitas mostraram sua disposição de se rebelar contra

o SENHOR. Durante a vida de Josué, o povo é fiel à aliança (Js 24.31), mas o
seu futuro na terra que agora receberam dependerá de como decidirem viver
após a morte de Josué. Em seu discurso de despedida aos líderes de Israel,
Josué os recorda de que a terra é uma dádiva do SENHOR e de que seu bem-
estar futuro dependerá de como amarem e obedecerem a ele. Josué reúne as
tribos em Siquém, em que recapitula sua história e as exorta a decidir a quem
vão servir, se aos deuses dos amorreus ou ao SENHOR (24.15). Os israelitas
respondem com um compromisso de servir ao SENHOR e Josué renova a
aliança com eles.
O livro de Josué é claramente uma parte essencial da história bíblica. Sem
ela, Israel não seria estabelecido como nação na terra e o plano de Deus para
ele encalharia. Mas conforme mencionado anteriormente, o livro de Josué
apresenta dificuldades ao leitor contemporâneo. De fato, a maneira como
decidirmos abordar o livro de Josué terá implicações significativas para a
maneira como contamos toda a história da Bíblia. Até mesmo entre cristãos
que leem a Bíblia como uma história, alguns deles veem os ensinos de Jesus
em contradição radical com certos conceitos ilustrados na “guerra santa” do
livro de Josué. Muitos leitores contemporâneos acham a destruição
indiscriminada dos cananeus particularmente difícil de aceitar, considerando-
a em total desacordo com nossa moralidade contemporânea. Não é possível
resolver essa dificuldade inteiramente, mas há várias sugestões no enredo da
Bíblia que podem nos ajudar a entender as instruções de Deus ao seu povo na
época de Josué.
73
Já reconhecemos que Deus espera pacientemente até que o mal na terra de
Canaã tenha crescido a um ponto em que ele é compelido a julgar seu povo
(Gn 15.16). Em Deuteronômio 20.16-18, a ordem para destruir os habitantes
da terra tem a motivação adicional do perigo de que os israelitas poderiam
sucumbir à idolatria.
74 Acima de tudo, Israel precisa se caracterizar pela
adoração exclusiva ao SENHOR (o primeiro mandamento). E se os israelitas
viverem entre os cananeus, correm o perigo de serem atraídos à adoração de
outros “deuses”. “É, portanto, no contexto de toda a luta com o paganismo
que precisamos enxergar esse chamado terrível para expulsar as nações

pagãs. [O livro de Josué] é a história de um grupo de pessoas, pequeno em
número e quase inacreditavelmente fraco e instável em suas lealdades
espirituais, lutando contra forças poderosas que eram degradantes, sedutoras
e implacáveis.”
75
Hoje é difícil para nós levarmos a idolatria e seus perigos tão a sério.
Contudo, uma chave para entender a ordem de expulsar os cananeus de
Canaã é lembrar da santidade de Deus e ser lembrado de quanto está em jogo
o fato de Israel permanecer fiel ao SENHOR.
Juízes: o propósito de ser luz para as nações fracassa
Diferentemente de Moisés, Josué não é substituído como líder dos israelitas.
A expectativa parece ser de que os israelitas viverão diretamente sob o
reinado do SENHOR com certa ajuda de anciãos que Moisés e Josué
designaram. O governo é descentralizado. Mas Israel não floresce sob esse
sistema tribal. O livro de Juízes conta o que acontece uma vez que Josué e
sua geração morreram: a notícia não é boa.
Em anos recentes, a tradição de caçar raposas praticada por cavaleiros
vestidos de casacos vermelhos seguindo uma matilha de cães se tornou uma
prática controversa na Inglaterra, com opiniões fortes a favor e contra.
Quando o parlamento britânico discutia a questão, defensores e opositores
realizaram manifestações do lado de fora de Westminster. Os opositores da
caça às raposas tinham um canto muitíssimo eficiente, rítmico e deprimente:
“É mau, é mau”. Há algo semelhante a esse no livro de Juízes: repetidas
vezes os israelitas fazem o que é mau aos olhos do SENHOR, de modo que o
ele os entrega aos seus inimigos. “Israel é escolhido por Deus, mas fraco
demais para viver à altura de seu chamado. Esse conflito entre escolha e
fraqueza cria a tensão dramática da narrativa que se desdobra.”
76 Juízes conta
a história de uma espiral descendente em direção à rebelião e ao desastre em
todos os níveis na nação de Israel.
O livro de Juízes começa observando que Israel não expulsou todos os
cananeus da terra (Jz 1). Juízes 2.1-5 descreve a aliança à semelhança de um
caso apresentado diante de um tribunal. O SENHOR vem para julgar seu povo

por este se recusar a combater a idolatria pagã. A sentença é pronunciada:
Deus não expulsará as nações pagãs remanescentes e seus deuses serão uma
cilada para Israel. A tentação aos israelitas de seguir os antigos “deuses” de
Canaã permanece. E os israelitas sucumbem regularmente à tentação,
cultuando “os baalins” (2.11-13). Baal é um deus da fertilidade e o plural
(“baalins”) indica não uma pluralidade de deuses, mas várias manifestações
locais de um só deus. Os israelitas, ao contrário dos cananeus, são novos na
agricultura. A atração sedutora da religião cananeia para os recém-chegados é
de que ela promete a fertilidade da terra e, portanto, êxito econômico. Além
disso, a adoração de Baal oferece gratificação física imediata:
Não era somente um grande negócio adorar a Baal, mas uma grande diversão! O culto a Baal
funcionava sobre o princípio da magia por empatia, de modo que a fim de assegurar a fertilidade de
pessoas, animais e safras, determinada pessoa se envolvia numa relação sexual com uma prostituta
ou prostituto cultual no santuário local de Baal. O propósito era inspirar Baal a agir do mesmo
modo em favor da pessoa e, assim, garantir a fertilidade em todas as áreas da vida.
77
Havia, assim, certa lógica perversa na idolatria israelita, mas isso não
impressionava o SENHOR. Com ira, Deus julga o seu povo.
O juízo divino é executado em ciclos que caracterizam a vida de Israel e o
livro de Juízes: (1) Os israelitas pecam adorando os baalins e as astarotes. (2)
Isso viola a aliança e provoca a ira do SENHOR. (3) O SENHOR, portanto,
entrega os israelitas aos seus inimigos. (4) Por causa da angústia sob a
opressão de seus inimigos, os israelitas clamam ao SENHOR por libertação.
Por fim, (5) o SENHOR levanta um libertador militar (um “juiz”) para livrá-los
de sua opressão (2.11-19).
78 Esse padrão era recorrente. Tudo estaria bem por
um tempo e depois disso (quando o juiz morria e os israelitas se esqueciam
da lição, eles mais uma vez caíam na idolatria) todo o lamentável ciclo se
repetiria.

Figura 15: Ciclos de juízo
O primeiro “juiz” mencionado é Otoniel, irmão mais novo de Calebe (o
braço direito de Josué). Por causa da apostasia de Israel, o SENHOR os
“vendeu” às mãos de Cuchã-Risataim, rei de Arã-Naaraim (3.7-11). Os
israelitas ficam subordinados a esse rei durante oito anos, então clamam ao
SENHOR e ele levanta Otoniel como juiz para resgatá-los. O Espírito do
SENHOR vem sobre Otoniel e ele liberta Israel do domínio do rei Cuchã. Em
seguida, Israel desfruta de paz durante quarenta anos até que “Mais uma
vez…”.
O ciclo de desobediência continua em todo o livro, mas o nível de pecado
piora até o padrão circular de desobediência-opressão-arrependimento-
libertação se tornar uma espiral descendente levando ao caos. Os juízes
sucessivos se tornam cada vez mais corrompidos; os israelitas aprovam
devassidão, estupro e assassinato (Jz 19). Por fim, a nação é dividida pela
guerra civil. Sansão é o último dos juízes, uma imagem do que Israel acabou
se tornando (Juízes 13—16).
Sansão é um nazireu, um israelita que fez um “voto de separação” ao
SENHOR de se abster de certas coisas (como o vinho) durante um período
específico. As três áreas da vida proibidas aos nazireus são a fertilidade
(simbolizada por produtos de uva), a magia empática e o culto dos mortos.
Essas são as principais práticas religiosas dos cananeus que os israelitas estão
tentados a adotar.
79 Assim, a separação de um nazireu simboliza para todos
os israelitas a maneira de viver de modo santo, não se contaminando com
essas práticas pagãs.

Separação e santidade devem ser marcas de um homem como Sansão, um
nazireu para vida toda (13.4-7).
80 E Sansão de fato conquista grandes coisas
para Deus, libertando os israelitas dos filisteus por meio de muitas proezas de
força sobre-humana. Mas sua própria vida é uma confusão. Ele se casa com
uma mulher filisteia, tem relações com prostitutas e, então, fica fatalmente
atraído a ainda outra mulher filisteia, Dalila (Jz 16). Por meio de Dalila, os
filisteus descobrem o segredo da força de Sansão — o seu cabelo! Sansão
revela a Dalila: “Jamais se passou navalha alguma em minha cabeça, porque
tenho sido nazireu, separado para Deus desde o nascimento. Se minha cabeça
fosse raspada, minha força me abandonaria, eu me tornaria tão fraco como
qualquer outro homem” (16.17). Enquanto ele está dormindo, Dalila faz com
que o seu cabelo seja cortado; quando acorda, sua força se foi. Os filisteus
furam seus olhos e o jogam na prisão.
Mas o SENHOR permite que Sansão se vingue dos filisteus. Em uma festa
especial, os governantes filisteus celebram o poder de seu deus Dagom sobre
os israelitas (e sobre o Deus dos israelitas). Para se divertir, pedem para trazer
Sansão diante deles. No entanto, agora seu cabelo já cresceu e sua força
voltou. Sansão faz desabar o templo pagão sobre a multidão reunida para a
celebração. A história de Sansão termina assim: “Deste modo, Sansão matou
muito mais gente quando morreu do que enquanto vivia” (16.30). Esse é um
epitáfio estranho, e a vida complexa de Sansão simboliza o que o próprio
Israel se tornou:
A consciência de Sansão de sua separação para Deus e, ainda assim, seu desprezo por ela, sua
atração fatal por mulheres estrangeiras, sua indisciplina e sua presunção, tudo é um espelho do
próprio comportamento de Israel. Assim também é com o seu destino […] Sansão morre, Israel não,
mas também não é libertado […] e o destino trágico de Sansão nos faz perguntar a que dificuldades
Yahweh precisará reduzir Israel até que também se reconcilie com sua condição de separação.
81
O livro de Juízes começa e termina com guerra. No início, a nação está
travando uma guerra santa; no final do livro, os israelitas estão lutando uns
contra os outros. Em todo o livro, observamos a tendência dos israelitas de
fazer “o que era certo aos seus próprios olhos” (17.6; 21.25, NRSV). Quando
chegamos ao último juiz, Sansão, até mesmo o líder de Israel habitualmente
não obedece a qualquer autoridade maior do que a sua própria vontade

corrupta. O padrão perfeito da lei de Deus foi completamente esquecido em
Israel.
Samuel: Israel transformado em um reino
A NECESSIDADE DE UM REI
Uma razão fornecida no livro de Juízes para a queda rápida de Israel no caos
é que “naqueles dias Israel não tinha rei; cada um fazia o que lhe parecia
certo” (Jz 21.25). Isso levanta uma pergunta importante: de que tipo de
liderança Israel precisa para viver de modo eficaz como o povo pactual de
Deus?
82 Israel precisa de um rei? É evidente que em um sentido importante
Israel já tem um rei: o seu rei é o SENHOR! Mas que tipo de liderança humana
é apropriada para assegurar que Israel permaneça fiel ao SENHOR?
Os livros de 1 e 2Samuel começam com a história de uma mulher estéril e
de uma nação estéril. A mulher é Ana. Assim como os israelitas, que nessa
época estão sendo oprimidos pelos seus inimigos, Ana clama ao SENHOR para
tirar o estigma de sua esterilidade (1Sm 1). A nação também é estéril no
sentido de que não está produzindo os frutos da obediência à aliança de Deus.
Até mesmo a adoração formal de Deus em Israel se tornou corrupta e perdeu
o senso da santidade de Deus. Os filhos do sacerdote Eli só pensam em si
mesmos sem qualquer “consideração para com o SENHOR” (2.12). A
seriedade da situação é descrita de modo apropriado no nome dado a um dos
netos de Eli: “Icabode”, que significa “a glória se foi” (4.21). A verdadeira
glória da nação, a presença de Deus entre os israelitas, literalmente os
abandona quando os filisteus capturam a arca da aliança.
Essa “arca” é uma caixa de madeira imensamente decorada que contém
uma cópia das Dez Palavras e, assim, simboliza a presença viva de Deus
entre o seu povo. Os israelitas começaram a tratá-la como se fosse um
amuleto mágico, um modo de trazer Deus ao seu lado quando são ameaçados
por inimigos. Quando Israel sofre uma derrota na batalha contra os filisteus, a
arca é levada ao conflito seguinte para tentar garantir a vitória. Mas em vez

de alcançar a vitória, os israelitas são subjugados, trinta mil deles mortos e a
própria arca apreendida pelos filisteus. Nessa derrota, os dois filhos de Eli
são mortos. O próprio Eli morre em virtude do choque e do desgosto de ouvir
a terrível notícia.
O TIPO DE REI QUE DEUS REQUER
Israel de fato é estéril. Embora a nação não tenha realmente sido removida da
terra, Deus a deixou e ela está vivendo entre os seus inimigos! Mais uma vez,
a única esperança é que Deus extrairá nova vida da esterilidade de Israel e
voltará ao seu povo. E ele de fato volta: a presença da arca entre os filisteus
causa tanto caos que eles ficam extremamente contentes em deixá-la voltar a
Israel (1Sm 5—6). Deus também responde à oração de Ana, livrando-a de
sua esterilidade e, ao mesmo tempo, livrando Israel de sua carência de
integridade espiritual. Deus dá a Ana um filho, Samuel, que também é o
último e maior dos “juízes”. Como Sansão, Samuel é um nazireu (1.11,24-
28). Mas diferentemente de Sansão, Samuel é o autêntico nazireu. Ele é um
líder carismático que corajosamente liberta Israel de seus inimigos e resolve
de maneira sábia disputas entre os próprios israelitas: “Samuel continuou juiz
de Israel todos os dias de sua vida. De ano em ano, percorria Betel, Gilgal e
Mispá, julgando Israel em cada um desses lugares” (7.15,16). Samuel é tanto
juiz quanto sacerdote e também é honrado como profeta porque suas palavras
são fidedignas (3.19,20) e sua vida é íntegra (12.3,4).
Samuel também tem certa semelhança com Moisés pelo fato de que ele
também admoesta os israelitas a se afastar dos ídolos e servir ao Senhor de
todo o coração (1Sm 12). Mas talvez seu grande papel seja o de apontar reis
designados por Deus. Embora seus próprios filhos Joel e Abias sejam
designados como juízes na velhice de Samuel, eles acabam se revelando mais
como os filhos de Eli do que como seu próprio pai, Samuel. Assim, sucede
que os líderes das tribos de Israel vêm a Samuel e em lugar deles pedem um
rei, “como o têm todas as outras nações” (8.1-5).
Essas poucas palavras geram um debate acalorado entre Samuel, Deus e
os anciãos de Israel, pois a pergunta, “quem deve liderar o povo” é central à

própria identidade de Israel (1Sm 8). Se Israel é designado a ser luz para as
nações e lhes levar bênção, então precisa ser diferente delas. Mas ao pedir um
rei, Israel parece querer ser como as outras nações. Samuel reclama ao
SENHOR e este pede que ele advirta Israel a respeito dos perigos da monarquia
(8.11-18; cf. Dt 17.14-20). Mas os israelitas são inflexíveis: querem um rei
para liderá-los e lhes dar êxito militar. Eles não expressam desejo algum de
viver de modo mais obediente como o povo pactual de Deus. Por fim, o
SENHOR diz a Samuel que ouça os israelitas e lhes dê um rei. Mas Deus fará a
escolha, e instrui Samuel a ungir Saul como rei sobre Israel.
Embora os detalhes não sejam especificados, somos informados de que
Samuel explica aos israelitas “direitos e deveres do rei”, que ele registra e
coloca no Tabernáculo diante do SENHOR (1Sm 10.25; cf. Dt 17.18-20). Visto
que as mensagens proféticas divinas que Samuel transmite aos israelitas
colocam um freio em suas ambições monárquicas, esse modelo de governo
em Israel (por desígnio) permanece compatível com a aliança. No que diz
respeito ao reinado que se inicia em Israel, o papel profético de Samuel se
destina claramente a fornecer um sistema de freios e contrapesos. Desse
modo, a monarquia, com todos os seus perigos de ações independentes, não
deve colocar a aliança em risco. O conflito entre profecia e monarquia, entre
objetivos espirituais e alvos políticos, caracteriza a história subsequente de
Israel até o Exílio.
A fim de que Israel não perca sua natureza distinta, um aspecto importante
da monarquia em Israel é o estabelecimento de uma teologia clara no que
concerne a realeza. Com Saul e seu sucessor Davi, o SENHOR é aquele que
escolhe o rei, faz com que seja ungido por Samuel e o provê com o Espírito.
Somente depois disso o rei é atestado publicamente diante de Israel. Assim, o
rei mortal é firmemente estabelecido como um vice-rei do grande Rei, o
SENHOR. Quando Samuel, o profeta, unge o rei de Israel, esse rei mortal se
torna o messias do SENHOR (“o ungido”; 1Sm 2.10; 10.1; 16.13).
A partir dessa imagem, a esperança futura de um messias será construída.
Dumbrell observa acertadamente: “A escatologia do Antigo Testamento
invariavelmente projeta o conteúdo extraído da história passada de salvação

conforme o formato da expectativa futura”.
83 Visto que há essa conexão entre
os reis do Antigo Testamento e o Messias vindouro, a questão “até que ponto
essa instituição da monarquia em Israel é um desenvolvimento positivo” é
importante. Alguns estudiosos, como Goldingay, interpretam os livros de
Samuel como expressando uma atitude negativa em relação à realeza: “A
história deixa bem explícito que as funções de Estado têm, na melhor das
hipóteses, significado ambíguo, que a dinâmica do procedimento de Deus
para com Israel durante esse período reside nos profetas, não nas instituições
oficiais do Estado, e que o Exílio constitui um juízo negativo conclusivo
sobre o período de ser um Estado como outros Estados”.
84 Mas em nossa
opinião isso corre o risco de confundir a estrutura saudável do reinado (que
Deuteronômio 17.14-20 menciona como uma possibilidade legítima) com um
uso não saudável ou o desvirtuamento dessa estrutura. Uma das promessas
originais de Deus a Israel era de que ela se tornaria uma grande nação, e uma
liderança política forte é uma parte importante de sua constituição como
nação.
SAUL E SEU GOVERNO INFIEL
No início do reinado de Saul, Israel não está acostumado a ter um rei e
inicialmente o papel de Saul é bem parecido com o de um juiz. Somente
depois de levantar o cerco a Jabes e resgatar o seu povo (1Sm 11) é que todo
o Israel começa a aceitá-lo como rei (11.14,15). Sob a liderança de Saul,
Israel obtém êxito militar significativo contra os filisteus. Apesar do começo
promissor, no entanto, quase desde o início a desobediência de Saul a Deus
compromete sua carreira. Logo no início de seu reinado, nos preparativos
para atacar os filisteus, Saul se impacienta com a demora de Samuel para vir
e lhe assegurar a bênção de Deus (1Sm 13). Assim, ele mesmo assume o
papel sacerdotal de Samuel. Quando Samuel chega, repreende Saul e
profetiza que o reino será tirado dele. Mais tarde, Saul ataca os amalequitas,
conforme Deus ordena que faça. Mas logo a seguir, em oposição às
instruções específicas de Deus, saqueia o acampamento inimigo, levando os
seus animais para fazer um sacrifício extravagante a Deus. Mais uma vez,

Samuel confronta o rei Saul e o recorda de que Deus quer obediência, não
sacrifício: “Pois rebelião é como o pecado de adivinhação, e arrogância,
como a maldade da idolatria. Visto que você rejeitou a palavra do SENHOR,
ele o rejeitou como rei” (15.23). Ao tentar forçar a bênção de Deus, Saul na
verdade é privado dela.
Durante determinado tempo, Saul permanece rei, mas Samuel
imediatamente procura pelo novo rei e unge Davi, um jovem de Belém.
Desse momento em diante, Saul fica cada vez mais perturbado; Davi ganha
destaque enquanto Saul entra em declínio. O Espírito vem sobre Davi, mas
deixa Saul (16.13,14). Como músico habilidoso, Davi fornece conforto a Saul
nos períodos de perturbação mental do rei, contudo mais tarde se torna alvo
da raiva maldosa e maníaca do homem mais velho. O êxito militar de Davi ao
derrotar Golias e os filisteus chama a atenção de Saul, e o filho de Saul,
Jônatas, se torna amigo devotado de Davi. Davi se casa com Mical, filha de
Saul. Mas a fama crescente de Davi como líder militar provoca a inveja de
Saul. Ouvir as mulheres israelitas cantando “Saul feriu seus milhares, e Davi,
dezenas de milhares” é demais para Saul e ele tenta matar Davi (18.7-11). O
homem mais novo é forçado a fugir e se torna um fugitivo com um bando de
foras da lei. No entanto, Deus abençoa Davi e ele prospera com uma
sequência de êxitos militares. Embora durante esse período Davi tenha várias
oportunidades de matar Saul, ele se recusa a erguer a mão contra “o ungido
do SENHOR” (como em 24.6).
O reinado de quarenta anos de Saul termina após várias tentativas
fracassadas de assassinar seu designado sucessor. Desesperado porque o
próprio Deus se mantém em silêncio, Saul chega a ponto de consultar uma
médium para buscar conselho sobre como lidar com a ameaça dos filisteus
(1Sm 28). No fim, diante da derrota de seu próprio exército nas mãos dos
filisteus, Saul se suicida (1Sm 31).
Isso não é um início promissor para a monarquia em Israel. A história
deprimente de Saul mostra como a instituição do monarca humano é perigosa
para Israel. De acordo com Nelson, “Grande parte do relacionamento de Deus
com [Saul] permanece insondável e os motivos de Deus permanecem em

grande parte ocultos aos leitores, do mesmo modo que a Saul”.
85 Mas uma
coisa é clara: Deus quer um vice-rei que realce e facilite seu próprio governo
soberano sobre Israel, um rei que permitirá que os israelitas vivam à altura de
seu chamado pactual. É por isso que Deus precisa lidar de modo tão decisivo
com a desobediência do primeiro rei humano de Israel.
A história da morte de Saul narrada em 1Samuel também é narrada no
começo da seção narrativa de 1Crônicas (cap. 10). Na verdade, a história da
ascensão e queda da monarquia é contada em três livros duplos do Antigo
Testamento (Samuel, Reis e Crônicas). Da história da morte de Saul em
diante, Crônicas abrange o mesmo conteúdo que Samuel e Reis. Há um
amplo consenso de que Samuel e Reis precisam ser vistos como uma só
narrativa progressiva e que Crônicas é uma obra claramente distinta, embora
abranja grande parte do mesmo conteúdo. É como se a esta altura na história
do Antigo Testamento, tivéssemos duas perspectivas sobre esse período da
história. Isso não é único na Bíblia: nos Evangelhos, temos quatro relatos da
vida e obra de Jesus. Isso não deve nos incomodar. Toda narrativa é seletiva,
dependendo do que o narrador está tentando fazer. O primeiro livro de Reis,
por exemplo, faz uma retrospectiva da ascensão e queda da monarquia,
tentando explicar aos israelitas exilados como foi que o Exílio para a
Babilônia se tornou realidade. O livro de Crônicas foi escrito talvez cem anos
depois de Reis, aproximadamente na época da construção do Segundo
Templo. Seu foco histórico está no Primeiro Templo e na adoração de Deus
nessa época anterior. Crônicas termina com a ordem de Ciro de construir o
Segundo Templo (e, nesse aspecto, seu olhar é mais direcionado ao futuro do
que Reis). Crônicas também contempla um passado mais longínquo,
estabelecendo em seus nove capítulos de genealogias que Israel está ligado a
Adão e, assim, aos propósitos de Deus para toda sua criação. Na Bíblia
Hebraica, Crônicas é o último livro. Talvez ele comece com Adão a fim de
nos lembrar do primeiro livro da Bíblia: “O cronista faz questão de afirmar
que os propósitos de Deus na criação são realizados por meio de Israel no
Antigo Testamento”.
86

DAVI E SEU GOVERNO FIEL
Após a morte de Saul e Jônatas, irrompe uma guerra entre as casas de Davi e
de Saul, mas os partidários de Davi se tornam cada vez mais fortes. Primeiro
Judá (a parte sul de Israel) escolhe Davi como rei (2Sm 2.1-7) e, depois de
algum tempo, todo o Israel concorda com essa escolha (5.1-4). Davi desfruta
de conquistas militares adicionais contra os filisteus e começa a consolidar
seu governo. Ele traz a arca da aliança de Deus a Jerusalém, que será tanto a
própria cidade de Davi quanto o lugar fixo em que Deus mesmo habitará
entre o seu povo. Davi ergue o seu palácio em Jerusalém e depois também
quer construir uma casa para o SENHOR. Mas Natã, o profeta, lhe diz que o
filho e sucessor de Davi fará isso, não Davi. O SENHOR acaba confirmando
Davi como rei e promete estabelecer Davi e seus herdeiros no reinado
dinástico sobre Israel.
Em sua aliança com Davi, Deus promete (1) tornar famoso o nome de
Davi; (2) providenciar para o seu povo Israel um lugar em que ele os
“plantará” a fim de que tenham segurança; (3) dar-lhes descanso de seus
inimigos; (4) estabelecer a dinastia de Davi e (5) permitir que o filho de Davi
construa a “casa” permanente de Deus (2Sm 7). Os primeiros três elementos
da aliança davídica deliberadamente invocam a aliança abraâmica.
Respondendo a Deus com ação de graças e adoração, Davi claramente situa
as promessas de Deus a ele mesmo em relação às promessas feitas muito
tempo antes a Abraão (7.18-29). O novo elemento na aliança com Davi é que
o reinado é enxertado na aliança do Sinai. Israel é agora oficialmente
constituído como reino; Israel agora cumprirá o seu chamado de ser luz para
as nações como reino. O rei humano de Israel liderará o povo para ser uma
nação santa e um reino sacerdotal. Ele fará isso ao remover a idolatria da
terra e dar a Israel descanso e shalom.
Inicialmente, com Davi no trono, há descanso e paz para Israel. Davi tem
êxito fabuloso em questões militares e logo fortalece as fronteiras de Israel.
Ele reina “sobre todo o Israel fazendo o que é justo e reto a todo o seu povo”
(8.15). Ele é generoso na vitória. Ele procura pelos parentes de Saul, mas não
(como era o esperado) para matá-los. Em vez disso, lhes mostra bondade, à

medida que dá ao filho aleijado de Jônatas, Mefibosete, a propriedade de seu
avô Saul e o recebe em sua própria família.
No entanto, Davi não é um protótipo de impecabilidade, o restante de
2Samuel registra uma lista de pecados e erros de julgamento. Davi comete
adultério com Bate-Seba, depois trama o assassinato de seu marido. Mas
Natã, o profeta, fica sabendo dessas coisas e confronta Davi por meio de uma
parábola com um ferrão na cauda (2Sm 11—12). Ele conta a Davi a respeito
de um homem rico, o dono de muitos rebanhos, e de um homem pobre que só
tem uma cordeirinha, um animal de estimação da família. Quando o homem
rico precisa de uma refeição especial para um hóspede que o visita, ele mata
arrogantemente a cordeirinha do homem pobre (e não um animal de seu
próprio rebanho). Esse conto de avareza e injustiça encoleriza o rei Davi a tal
ponto que ele jura lançar um castigo terrível sobre o “homem rico”.
Subitamente, Natã se volta contra o rei e declara que Davi mesmo é o
“homem rico” na parábola. Ele agiu com arrogância e avareza ao tomar a
esposa de outro homem. A história convence Davi de seu pecado. Ele chora
por sua culpa diante de Deus, se arrepende e é perdoado (cf. Sl 51). Mas suas
ações têm consequências trágicas. O filho concebido na união adúltera de
Davi com Bate-Seba morre. Estupro, assassinato e rebeldia irrompem na
própria família estendida de Davi. Finalmente, o juízo divino sobre Davi
atinge o seu ápice com a morte do filho amado de Davi, Absalão, que tentou
tomar para si o trono de Israel.

Figura 16: Impérios de Davi e Salomão

O livro de 2Samuel termina com uma resposta positiva de Deus à súplica
de Davi para que a fome acabe. Isso é um sinal seguro da reconciliação entre
o rei e o SENHOR. De fato, em geral o rei Davi é considerado de modo
bastante positivo na Bíblia. Nas curtas notas avaliativas fornecidas em 1 e
2Reis a respeito de cada um dos reis quem vêm depois de Salomão, Davi é
invariavelmente o o referencial para avaliar cada um dos reis. Por exemplo, o
texto diz a respeito do rei Abias que “seu coração não era inteiramente
consagrado ao SENHOR, seu Deus, quanto fora o coração de Davi, seu
predecessor” (1Rs 15.3). O interesse principal é mostrar como cada um dos
reis está relacionado ao SENHOR; o autor dá pouca importância a outras
realizações reais, como projetos de construção. Embora saibamos com base
em fontes extrabíblicas que o rei Onri realizou grandes feitos na arquitetura e
no desenvolvimento da nação, no livro de Reis ele é dispensado (depois de
alguns versículos) como um rei que desagrada ao SENHOR. Davi, em
contraste, é retratado como genuinamente consagrado. Em todo o Antigo
Testamento, seu nome está fortemente ligado aos salmos, muitos dos quais
ele pode ter escrito. Eles revelam uma espiritualidade profunda nesse homem
e rei surpreendentemente complicado.
Como observamos, nada relacionado à experiência de Israel com a
monarquia é simples. Cada passo parece repleto de dificuldades e isso
também se aplica no que diz respeito à questão da sucessão do rei Davi. Deus
promete estabelecer a linhagem de Davi para sempre, mas isso contribui
pouco para impedir lutas pelo poder entre os seus herdeiros. Depois que o
filho de Davi, Absalão, desenvolve uma força militar, ele se apodera do trono
e obriga Davi a fugir para salvar a vida (2Sm 15), mas no decorrer da batalha
resultante o próprio Absalão é morto.
A pedido de Bate-Seba, Davi finalmente declara seu filho Salomão como
herdeiro ao trono e desse modo estabelece sua dinastia (1Rs 1).
Reis: o fracasso da aliança
SALOMÃO COMEÇA O SEU GOVERNO COM SABEDORIA

Se Davi é conhecido principalmente pela sua confiança no SENHOR e sua
profunda espiritualidade, Salomão é famoso pela sua sabedoria. Quando ele
oferece mil holocaustos ao SENHOR em Gibeom, o SENHOR responde
oferecendo a esse jovem príncipe tudo aquilo que pedir. Salomão se declara
incapaz para a tarefa de ser rei e pede “um coração perspicaz para governar o
povo [de Deus] e para discernir entre o bem e o mal” (1Rs 3.9). O SENHOR se
agrada desse pedido, concede a Salomão a sabedoria que pede e também lhe
promete riquezas e honra. A sabedoria de Salomão torna-se lendária. Seu
exemplo mais famoso é a história de como ele resolve o complicado caso
legal de duas prostitutas e um bebê, que cada uma afirma ser seu próprio filho
(3.16-28). Salomão ordena que a criança seja cortada ao meio e dividida entre
elas. Esse “julgamento” leva a verdadeira mãe a clamar que o filho deva ir
vivo para a outra mulher e não ser morto. Dessa maneira, Salomão discerne
quem é a verdadeira mãe e ela se une ao seu bebê. Salomão também era
especialista em sabedoria proverbial e tinha um conhecimento vasto de
plantas, animais, répteis e peixes (4.29-34). Também se atribui a ele o
estabelecimento de uma estrutura avançada de governo para Israel (4.1-19).
No Antigo Testamento, há vários livros de “sabedoria”: Provérbios,
Eclesiastes e Jó. Tanto Provérbios quanto Eclesiastes estão ligados a Salomão
e grande parte de seu material pode ter sua origem nele. A associação desse
tipo de escrita com Salomão indica o tipo de reflexão que ele especificamente
lançou na vida cultural e religiosa de Israel. Nesses livros, “sabedoria” está
relacionada a saber viver de modo eficaz, expressar a glória de Deus em um
mundo, ainda que caído, bom. A “sabedoria” começa com “o temor do
SENHOR” — isto é, com profunda reverência pelo SENHOR como o Deus
Criador e Redentor (Pv 1.7). Esse é precisamente o tipo de atitude que
Salomão manifesta quando Deus lhe oferece tudo o que quiser. Salomão
reconhece que é uma criatura humana falível e limitada, totalmente
dependente de Deus. Deus recompensa sua humildade dando-lhe grande
sabedoria.
“O temor do SENHOR” também é o ponto de partida para uma jornada de
exploração que pode se estender por toda a criação. A pressuposição

teológica da sabedoria é que o SENHOR é o SENHOR Deus, o Criador: a própria
estrutura da criação vem dele. O serviço sábio ao SENHOR, portanto, levará a
sério a totalidade da criação em toda a sua variedade magnífica, e é
precisamente isso que Salomão faz. Estudar a natureza das plantas, répteis,
animais e peixes e estudar como usar a linguagem em provérbios que
resumem percepções em aforismos curtos e incisivos: esses são modos em
que a sabedoria de Salomão se mostra. No livro de Provérbios, não há área
alguma da vida sobre a qual a sabedoria não reflita, incluindo vida familiar,
sexualidade, política, economia, negócios e lei. De fato, Provérbios termina
como uma descrição vigorosa da sabedoria encarnada na “mulher virtuosa”,
que manifesta sua fé no SENHOR em uma variedade de atividades
verdadeiramente extraordinária (Pv 31).
SALOMÃO ESTABELECE O TEMPLO EM SIÃO
A maior realização de Salomão é construir o templo de Deus. Ele usa
somente os melhores materiais e não faz economia alguma na construção do
templo em Jerusalém. As paredes do templo são pintadas com querubins,
palmeiras e flores, deliberadamente invocando a ideia do Éden no próprio
templo. “A presença de Yahweh no templo o estabeleceu em Sião como o
centro do universo […] As tradições do Êxodo são transferidas para esse
monte sagrado que então passou a representar todo o Israel. Sião é agora o
centro cósmico, o ponto de contato entre o céu e a terra.”
87 A arca é trazida
ao templo para marcar o cumprimento da jornada dos israelitas deixando para
trás o cativeiro no Egito. O SENHOR e Israel agora estão tranquilos na terra.
Quando a arca é colocada no templo, as nuvens do Êxodo enchem o templo,
mostrando que a glória do SENHOR está presente em Jerusalém (1Rs 8.11).
Deus agora tem um endereço na terra entre o seu povo.
Na enorme cerimônia de dedicação, Salomão relaciona especificamente a
fundação do templo ao cumprimento das antigas promessas de Deus a Israel.
Antes disso, o SENHOR não havia se estabelecido em um só lugar em Israel,
mas agora ele escolheu Israel como a sua cidade, “para que seu Nome ali

habite” (8.19-21; cf. Dt 12.5). Alguns sugeriram que a referência ao “Nome”
do SENHOR implica uma presença simbólica e não uma presença real, pois o
SENHOR é o Deus transcendente e não pode ser limitado a um só lugar. Em
sua oração de dedicação, Salomão reconhece que os próprios céus nunca
poderão conter a Deus, muito menos o poderá um prédio construído por mãos
humanas. No entanto, como a nuvem que desce sobre o santuário interno do
templo nos alerta, o Deus de glória e transcendência está verdadeiramente
presente entre o seu povo. Salomão oferece súplicas a Deus para que o
templo seja um lugar em que os israelitas possam orar e ser ouvidos por
Deus. Isso demonstra que a “presença” de Deus ali significa sua proximidade
em seu relacionamento com seu povo, e não sua mera proximidade física.
Assim, a época de Salomão é uma era de grande cumprimento de
promessas. Israel é agora uma grande nação, que tomou posse de sua pátria
como prometido, e o SENHOR está bem-estabelecido em seu meio. Religiosa e
politicamente, Israel está estabelecido como uma nação coesa, e por essas
coisas Salomão agradece: “Bendito seja o SENHOR, que deu descanso ao seu
povo Israel, assim como prometeu; não falhou nem sequer uma palavra de
todas as boas promessas que falou por intermédio de Moisés, seu servo” (1Rs
8.56). Jerusalém é estabelecida como a capital de Israel, com o templo e a
moradia do Rei dentro de suas muralhas. Isso marca um novo capítulo na
história de Israel.
Jerusalém (ou “Sião”, como também é conhecida) incendeia a imaginação
dos profetas e líderes de Israel na época de Salomão e depois dela. A cidade
com o templo de Deus é celebrada em grande parte da poesia de Israel:
Grande é o SENHOR, e o mais digno de todo louvor
na cidade do nosso Deus, seu santo monte
ela é bela em sua imponência,
a alegria de toda a terra.
Como as alturas de Zafom é o monte Sião,
a cidade do grande Rei.
Deus está em suas cidadelas
Deus se revelou como sua fortaleza […]
Grande é o SENHOR em Sião;
ele é exaltado acima de todas as nações (Sl 48.1-3; 99.2)

Jerusalém é agora o centro da adoração formal de Israel e os israelitas
farão peregrinações regulares à cidade, peregrinações que inspirarão os
salmos de ascensão (120—134). À medida que lemos esses poemas,
precisamos imaginar peregrinos que se aproximam de Jerusalém — o próprio
lugar de habitação do SENHOR — recitando: “Elevo meus olhos para os
montes; de onde vem o meu socorro? Meu socorro vem do SENHOR, o Criador
do céu e da terra” (121.1,2).
À medida que se aproximam de Jerusalém, os peregrinos erguem os seus
olhos aos montes de Jerusalém e refletem sobre a fonte de seu socorro. Esses
peregrinos sabem muito bem que o SENHOR, que tem um “endereço” local
nessa cidade e é seu auxiliador constante, também é o Criador de todo o
mundo. Ele, portanto, é capaz de ajudar e está disposto a isso.
Para transmitir suas mensagens a Israel, os profetas também usavam
repetidamente a imagem de Sião. Infelizmente, conforme veremos, isso era
frequente porque as coisas em Jerusalém não estavam indo bem à medida que
os profetas cumpriam o seu chamado. Mas no grande dia de Salomão na
dedicação do templo, devia parecer como se o próprio Éden tivesse sido
recuperado. Shalom e grande bênção estão diante de Israel. A monarquia
parece ter trazido paz e prosperidade em uma medida que Samuel e outros
críticos da instituição do reino nunca poderiam imaginar. Agora talvez Israel
possa atrair as nações para Deus.
O REINO É DIVIDIDO EM DOIS
Infelizmente, no entanto, as sementes de contenda civil e da apostasia já estão
presentes na época de Salomão, e essas sementes logo produzem uma
colheita mortal. De modo lamentável, Salomão não se opõe à adoração a
Deus que ocorre nos “lugares altos” em que os baalins têm sido adorados,
apesar do perigo de sincretismo que acompanha essa prática. Além disso, ele
também começa a usar trabalhos forçados para executar seus ambiciosos
planos de construção. Em terceiro lugar, ele toma muitas esposas
estrangeiras. A primeira e última dessas decisões tornam o reino vulnerável à
idolatria, e essa idolatria começa a contaminar Israel à medida que Salomão

envelhece. Seu uso de trabalhos forçados começa a indispor os menos
favorecidos; na época da morte de Salomão, o ressentimento do povo se
tornou intenso. Mais crucial ainda é que o próprio SENHOR se ira com a
idolatria de Salomão (1Rs 11.33), que violou o âmago da aliança. Deus,
portanto, diz a Salomão que tirará grande parte do reino dos herdeiros dele,
deixando somente uma tribo para ser governada pelo seu sucessor (11.13,36).
Em conformidade com a palavra de Deus, após a morte de Salomão Israel
se divide em Reino do Norte (Israel), sob o rei Jeroboão, e Reino do Sul
(Judá), sob o rei Roboão. A rebelião das tribos do norte contra o herdeiro de
Salomão é sua resposta explícita à política de Salomão de usar trabalhos
forçados. Quando Roboão rejeita o pedido das tribos do norte para que alivie
o fardo dos trabalhos forçados, os reinos se separam. As consequências
políticas desse cisma são imensas (1Rs 12). A nação de Israel agora está
dividida contra si mesma e os dois reinos estão muito mais vulneráveis aos
seus inimigos. Logo, cada um começa a considerar o outro como seu inimigo.
E como, após a separação do Reino do Norte, este pode permanecer fiel ao
SENHOR, que “vive” no sul, em Jerusalém? Jeroboão (o rei do norte) está
diante de uma decisão extremamente difícil: se deixar o seu povo ir para o sul
para adorar em Jerusalém, poderá perder o controle de seu reino. Em vez
disso, Jeroboão abraça a idolatria. Tragicamente, ele repete o pecado dos
israelitas no Sinai (Êx 32): ele providencia que dois bezerros de ouro sejam
fabricados e colocados em santuários em Dã e Betel (1Rs 12.26-33). Esse é
um início abominável para o Reino do Norte e sua história subsequente será
marcada pela apostasia. Por meio do profeta Aías, Deus declara sua rejeição
de Jeroboão, principalmente por causa da idolatria do Reino do Norte (1Rs
14).

Figura 17: Reino dividido

ELIAS E ELISEU CONFRONTAM O ISRAEL INFIEL
Nesse momento importante da história de Israel, os profetas começam a
desempenhar um papel cada vez mais importante na história bíblica. Em toda
a história de Israel, a palavra de Deus desempenha um papel fundamental,
quer venha por meio de Moisés, de Samuel ou de outro profeta. No entanto, à
medida que o ofício de rei se torna firmemente estabelecido em Israel, o
ofício de profeta se torna mais claramente delineado em relação a outros
papéis públicos. Todos os livros proféticos no Antigo Testamento vêm da
época da monarquia ou após o seu fim. O ofício profético, assim, aparece em
Israel como um contrapeso ao ofício poderoso do reinado. Não há dinastia de
profetas; Deus chama cada um deles para o propósito de transmitir sua
palavra a Israel e especialmente aos seus líderes em um momento específico
na história da nação. Israel é uma teocracia e a palavra de Deus precisa ter a
autoridade final, e não a palavra do rei. Logo, muitas vezes encontramos um
profeta em confrontação implacável com o rei de sua época. Por exemplo,
quando o filho de Jeroboão está doente, ele envia sua esposa para consultar
Aías. Esse profeta, então, tem a tarefa nada invejável de contar à esposa do
rei Jeroboão que o seu filho morrerá logo que ela pisar novamente em sua
cidade. Além disso, essa morte será preferível ao que está prestes a acontecer
ao resto da casa de Jeroboão. O SENHOR “arrancará Israel desta boa terra que
deu a seus antepassados e os espalhará para além do rio, porque provocaram
o SENHOR à ira ao fabricarem postes de Aserá” (14.15).
Mas Deus é paciente e longânimo e não envia imediatamente o Reino do
Norte para o Exílio. Infelizmente, os reis que vêm depois de Jeroboão no
Reino do Norte são parecidos demais com ele no que concerne ao pecado.
Acontecimentos no Reino do Norte atingem o seu ponto mais baixo quando
Acabe sobe ao trono de Israel. Acabe se casa com Jezabel, uma estrangeira
que traz consigo a adoração a Baal para dentro do casamento e do Reino do
Norte. O rei e a rainha juntos promovem ativamente a adoração de Baal em
Israel. Sua rebelião contra Deus é completamente descarada.
Nesse contexto de apostasia radical, o profeta Elias entra em cena como
aquele que precisa confrontar Acabe em nome do SENHOR. Sob a desavença

entre Elias e Acabe está o conflito mais fundamental entre Baal e o SENHOR: a
quem o norte oferecerá a sua lealdade? Há uma grande disputa pública entre
Baal e o SENHOR no topo do monte Carmelo. Elias reúne o povo e apela que
não oscilem entre Baal e o SENHOR: “Se o SENHOR é Deus, sigam-no; mas se
Baal é Deus, sigam-no” (18.21). O povo fica em silêncio e, assim, Elias
ordena que dois novilhos sejam sacrificados e declara que o verdadeiro Deus
enviará fogo do céu para consumir um dos sacrifícios. Os profetas de Baal
clamam ao seu deus o dia todo, mas não há resposta alguma. Elias os
escarnece: talvez Baal não consiga ouvi-los por estar dormindo ou talvez
esteja viajando. Elias então constrói um altar com doze pedras (para
representar as doze tribos de Israel). Lenha e o novilho do sacrifício são
colocados sobre o altar e água é derramada sobre tudo. À hora do sacrifício
da tarde, Elias ora ao “SENHOR, Deus de Abraão, de Isaque e de Israel”, e o
SENHOR envia fogo, que consome o sacrifício e o altar. O povo cai prostrado e
clama: “O SENHOR, ele é Deus” (18.39).
Precisamos entender o ministério de Elias, e o de seu discípulo Eliseu que
vem depois dele, no contexto desse confronto de vida e morte entre Baal e o
SENHOR. Por meio de Elias e Eliseu, o SENHOR supera a seca (18.41-46), a
fome (17.8-16), a sede (2Rs 2.19-22), as dívidas (4.1-7), a infertilidade (4.11-
17), a doença (5.1-19) e a morte (1Rs 17.17-24; 2Rs 4.18-37). Os adoradores
de Baal pensam que essas são áreas da vida sob o controle de Baal.
88 O que
Elias e Eliseu mostram é que o SENHOR é senhor de seu povo, de todos os
aspectos de sua vida e de toda a criação.
As bênçãos que vêm do SENHOR por meio de seus profetas não se limitam
a Israel. Quando Naamã, um comandante no exército de Arã (Síria), sofre de
lepra e desesperado procura Eliseu para ser curado, Deus responde à sua
oração (2Rs 5). Naamã então leva consigo o máximo de terra de Israel que
duas mulas podem carregar, para que possa adorar ao SENHOR sobre “a terra”
em seu próprio país de Arã. Aqui temos um exemplo extraordinário de Israel
abençoando as nações. Mas lamentavelmente o próprio Israel durante todo
esse processo está se tornado cada vez mais como as nações pagãs vizinhas,
pois o povo se recusa a servir unicamente ao SENHOR.

ISRAEL ESCORREGA CONSTANTEMENTE RUMO AO DESASTRE E AO EXÍLIO
Em grande parte de 2Reis, as histórias dos Reinos do Norte e do Sul são
contadas por meio de “uma apresentação dos dois reinos com tela dividida. O
leitor encontra histórias paralelas que trazem as reformas relatadas, ao lado de
seus resultados, como que por espelho ”.
89 No norte, Jeú é chamado por Deus
e ungido por Eliseu, com a instrução específica de exterminar a família de
Acabe (2Rs 9). Ele de fato faz isso, mas também mantém a adoração aos
bezerros de ouro e as tradições de Jeroboão. Assim, Israel continua
escorregando continuamente para o desastre. A Assíria é o grande império do
Oriente Médio da época, e sua sombra se estende cada vez mais sobre o
Reino do Norte. Durante o reinado de Oseias, rei de Israel, a Assíria invade o
Reino do Norte, sitia sua capital Samaria durante três anos e depois disso
deporta os israelitas para a Assíria em 722 a.C. (2Rs 17). Isso marca o fim do
Reino do Norte de Israel.

Figura 18: Impérios mundiais
Em 2Reis, o narrador faz uma pausa para uma reflexão prolongada sobre o
motivo de algo desse tipo ter acontecido a Israel. Seu Exílio levanta as
perguntas mais básicas na mente de israelitas fiéis. A terra não era uma
dádiva do próprio SENHOR? Como nessa altura ele pôde permitir que seu povo
fosse deportado dela? Onde estão as promessas de Deus? O que acontecerá
agora ao Reino do Sul, Judá? Deus realmente abandonou seus juramentos a
Abraão, Moisés e Davi?
As respostas a essas perguntas aparecem em 17.7-23. O narrador torna
claro que o SENHOR puniu o Reino do Norte desse modo por causa de sua
própria desobediência à aliança. Embora Deus tenha advertido repetidas
vezes o seu povo (por meio de seus profetas) das consequências da idolatria,
eles persistiram no pecado e rebelião. Assim, “o SENHOR […] os afastou de
sua presença” (17.18). Eles foram exilados não por causa do poder da
Assíria, mas porque se tornaram insuportáveis para o SENHOR. Fazendo uma
reflexão, o narrador passa ao tema de Jeroboão, o primeiro dos reis do norte,
e novamente conta como Jeroboão estabeleceu um padrão de apostasia e
rebelião que atormentou o Reino do Norte do início ao fim.
De maneira ominosa, o narrador observa que o Reino do Sul, Judá, não
tem sido muito diferente (17.19). A tendência no sul é seguir o exemplo
medonho do norte. No entanto, Judá continua sem ter sido conquistado, e a
monarquia ali certamente está muito melhor do que alguma vez chegou a
estar no norte. Depois de 722 a.C., há dois reis notáveis em Judá, Ezequias e
Josias, que procuram honrar ao SENHOR. Visto que em Judá a linhagem de
Davi governa, há ainda esperança para o sul? O reinado de Ezequias é
simultâneo ao de Oseias no norte. Mas quando a Assíria também ameaça
Ezequias, ele (diferentemente de Oseias) deposita sua confiança no SENHOR.
Com o auxílio de Deus, mediado pelo profeta Isaías, Ezequias não cede e
Judá é libertado miraculosamente da ameaça assíria (2Rs 18—19; cf. Isaías
8.6-10).
Entretanto sinais de sérios problemas aparecem até mesmo no reinado de
Ezequias. À medida que a Assíria se enfraquece, a Babilônia surge como o

novo poder internacional. Quando Ezequias tolamente mostra a mensageiros
babilônios o que há em seus depósitos, essa insensatez evoca um oráculo de
juízo do profeta Isaías: também o Reino do Sul irá para o Exílio; a Babilônia
conquistará Judá (2Rs 20.12-19).
Muitas das profecias de Isaías (1—39) registram a ambiguidade da época
em que ele vive, em que Judá como um todo é uma nação pecaminosa à
caminho do juízo. O rei Manassés (sucessor de Ezequias) promove a idolatria
e o sincretismo e é renomado por perpetuar a injustiça em seu reino. A
destruição de Judá parece inevitável.
Entretanto o neto de Manassés, Josias, subitamente se torna rei com
apenas oito anos de idade! Ainda jovem, ouve um livro da lei recém-
descoberto sendo lido em voz alta no templo e fica muito comovido com o
que ouve. Na sequência Josias lidera o povo de Judá em um arrependimento
público, renova a aliança de Deus com eles e inicia uma grande reforma da
adoração. Josias agrada ao SENHOR nesse aspecto e é elogiado pelo seu
reinado. Mas mesmo a vida e o governo exemplares de Josias são
insuficientes e tardios para Judá. Por meio do profeta Jeremias, sabemos que
as reformas instituídas por Josias provavelmente não são amplamente
adotadas no reino. A tendência do povo à apostasia permanece. A sombra da
Babilônia passa a afetar cada vez mais a Judá. Durante o reinado de
Zedequias, a Babilônia conquista o Reino do Sul e ateia fogo no templo e no
palácio do rei. Jerusalém é reduzido a ruínas, e a maior parte do povo de Judá
é exilada para a Babilônia em 587/6 a.C. (2Rs 25).
Em nossa trajetória pela história bíblica de Israel, nesse ponto seria muito
natural ficarmos tentados a escrever “FIM!” (cf. Ezequiel 7.1,2). Para os
israelitas que são forçados a marchar como escravos para a Babilônia,
certamente deve parecer o fim. O que aconteceu às grandes promessas de
Deus a Abraão, à sua aliança com Israel no Sinai, ao seu juramento de que a
casa de Davi não teria fim? A casa do próprio SENHOR foi destruída! Onde
estava o SENHOR enquanto a Babilônia triunfava sobre Israel? Será que os
propósitos de Deus para o seu povo no final das contas darão em nada? Ou
pior, será que os propósitos divinos de redimir a criação por meio de Israel

fracassaram?
Israel só pode esperar do próprio SENHOR respostas a perguntas tão
desconcertantes como estas. Isso é o que torna tão importante a voz dos
profetas na história bíblica e em nossa compreensão da mudança do destino
de Israel. Como resultado da desobediência dos israelitas, eles são derrotados
e destruídos, mas Yahweh ainda é o SENHOR e os seus propósitos
permanecem. Nos séculos que vão até a expulsão de Israel da terra, sua
história tem sido intercalada e regularmente interpretada pela voz dos
profetas de Deus. E essa voz não se cala com o Exílio. O SENHOR não está
confinado à terra, em hipótese alguma. Embora ele tenha vivido
graciosamente entre o seu povo, o aparente fim deles como nação não é o fim
dele.
O livro duplo de Reis termina com uma observação de esperança
indefinida: O rei Joaquim de Judá é libertado da prisão na Babilônia e come à
mesa do rei da Babilônia (2Rs 25.27-30). É possível que a história de Israel
não tenha terminado totalmente? A esperança, porém, mais segura de Israel
para um futuro está não nas crônicas de sua história, mas nos escritos de seus
profetas.
A voz dos profetas
Já examinamos brevemente os ministérios de Elias e Eliseu no nono século
a.C. Oseias também (no oitavo século) profetiza ao Reino do Norte de modo
pujante e comovente. Ele compara Israel a uma esposa que se tornou
prostituta — e, ainda assim, seu marido não a abandona. Ele se angustia por
causa dela e anseia que ela volte a ele e seja uma esposa fiel. Desse modo, o
horror do adultério se torna uma metáfora para o que Israel está cometendo
contra o SENHOR. Os filhos de Oseias recebem nomes que evocam o estado
miserável de Israel: Jezreel (“Deus semeia”), Lo-Ruhamah (“não amada”) e
Lo-Ammi (“não meu povo”). Deus está semeando punição para o seu povo
infiel. Os nomes evocativos dos filhos do profeta são uma repreensão
alarmante a Israel.
Amós é outro profeta do nono e oitavo séculos antes de Cristo, um pastor

chamado pelo SENHOR para se tornar profeta aos reinos tanto do norte quanto
do sul.
90 A pregação de Amós é extremamente criativa e a sua mensagem,
totalmente devastadora. Ele retrata o SENHOR como um leão prestes a se
lançar sobre sua presa (Am 1.2). Em um sermão extraordinário (1.3—2.16),
Amós denuncia os vizinhos de Israel um por um. É quase possível ouvir um
alto e sonoro “Amém!” de Israel à medida que Damasco, Gaza, Tiro, Edom,
Amom e Moabe são condenados um após o outro. Então vem a guinada:
Amós se volta a Judá e Israel, denunciando-os porque rejeitaram a instrução
do SENHOR e estão tomados de idolatria e de injustiça. Eles também sofrerão
juízo terrível. (É provável que os “améns” tenham cessado aqui.)
Jeremias e Ezequiel profetizam a Judá durante sua expulsão da terra.
Jeremias inicia o seu ministério no reinado do rei Josias, alertando as pessoas
de Judá contra a confiança em meros símbolos da presença de Deus, o templo
é um deles. O SENHOR ordena Jeremias a se posicionar na entrada do templo,
para adverti-las contra uma falsa confiança no ritual:
Assim diz o SENHOR todo-poderoso, o Deus de Israel: Corrijam os seus caminhos e as suas ações,
e eu os permitirei habitar neste lugar. Não confiem em palavras falsas, dizendo: Este é o templo do
SENHOR, templo do SENHOR, templo do SENHOR! Mas se vocês de fato corrigirem os seus
caminhos e as suas ações; se realmente praticarem a justiça uns com os outros; se não oprimirem o
estrangeiro, o órfão e a viúva, nem derramarem sangue inocente neste lugar, nem seguirem outros
deuses para a sua própria ruína, então eu permitirei que vocês habitem neste lugar, na terra que dei
aos seus antepassados para todo o sempre. Mas vejam! Vocês confiam em palavras enganosas que
são inúteis (Jr 7.3-8).
Sermões como estes não são populares. Jeremias sofre oposição terrível,
até mesmo ao se angustiar por causa de sua mensagem ao Reino do Sul. A
extensão de sua angústia e luta é evidente em suas orações espalhadas em
todos os seus escritos.
91 Em Jeremias 12, por exemplo, o profeta clama a
Deus, perguntando por que os maus prosperam e os ímpios vivem
despreocupados. Deus responde perguntando a Jeremias: “Se você correu
com homens a pé e eles o cansaram, como poderá competir com cavalos?”.
Embora Jeremias esteja clamando agora em sua percepção de injustiça e
injúria, ele deve contar que suas circunstâncias irão piorar e não melhorar!
No capítulo 15, Jeremias fala sobre como outrora “comeu” as palavras de

Deus com alegria e satisfação, mas agora sua dor é permanente e sua ferida
grave e incurável (15.16,18). Certamente, não é nada fácil ser um profeta de
Deus.
A mensagem de todos esses profetas é que a não ser que o povo de Deus
se arrependa, se volte a ele e o obedeça, o juízo virá. Os profetas começam a
falar ominosamente sobre o dia do SENHOR. Este não é mais antevisto como
um dia de bênção e juízo sobre os inimigos de Israel; em vez disso, será um
dia de juízo para o próprio Israel. Conforme observamos anteriormente, esse
“dia” de fato veio, primeiro para o Reino do Norte (em 722 a.C.) e na
sequência (em 587/6 a.C.) para o Reino do Sul.
Ezequiel ministra entre os exilados na própria Babilônia. Ele descreve a
glória do SENHOR deixando Jerusalém (Ez 10) e interpreta para os israelitas o
que aconteceu no Exílio. Ser arrancado da terra é uma catástrofe para Israel e
ainda assim …
Profetas como Ezequiel insistem que o Exílio não é o fim. Os propósitos
do SENHOR permanecem, como também suas promessas a Abraão, a Moisés e
a Davi. Os oráculos de juízo dos profetas são intermeados de modo
misericordioso com oráculos de esperança e de um futuro para o povo de
Deus. Assim, Jeremias promete que a nação voltará do Exílio e mais uma vez
ocupará a Terra da Promessa. Ele antevê uma época à qual Deus afirma:
Farei uma nova aliança
com a casa de Israel
e com a casa de Judá. […]
Porei a minha lei na sua mente
e a escreverei no seu coração.
Eu serei o seu Deus,
e eles serão o meu povo. […]
todos me conhecerão (Jr 31.31-34).
A catástrofe do Exílio na Babilônia
Tendo em vista que para Israel a terra e o templo eram símbolos tão
importantes de seu caráter nacional e de sua identidade como o povo amado
de Deus, o Exílio foi uma experiência catastrófica para os israelitas. Os

instrumentos do Exílio foram os grandes poderes da época: primeiro a
Assíria, depois a Babilônia. Depois da queda da Assíria (em 612 a.C.), a
Babilônia adquiriu o controle do Oriente Próximo. Nabucodonosor, rei da
Babilônia (605-562), derrotou os egípcios em Carquemis em 605, ele e seus
sucessores mantiveram o domínio até Ciro da Pérsia derrotar os babilônios
(em 539). Após a batalha de Carquemis, o Reino do Sul de Judá foi sujeitado
à Babilônia, mas alguns anos depois o rei Jeoaquim de Judá se rebelou contra
os seus senhores babilônios (2Rs 24). Nabucodonosor, então, cercou
Jerusalém e levou Joaquim, sucessor de Jeoaquim, para a Babilônia como
prisioneiro. Dez anos depois, Zedequias (o rei marionete de Judá que
Nabucodonosor havia designado) também se rebelou contra a Babilônia.
Mais uma vez Nabucodonosor voltou a Jerusalém, mas dessa vez o seu
exército destruiu a cidade e o templo e levou a maioria dos cidadãos de
Jerusalém para a Babilônia (587/6; 2Rs 25). Assim, o SENHOR usou os
impérios ímpios da Assíria e da Babilônia como instrumentos de seu juízo
sobre seu povo Israel.
Não devemos pensar que o SENHOR teve pressa para expulsar seu povo da
terra. Muito pelo contrário, Deus é descrito em todo o Antigo Testamento
movendo-se lentamente e com pesar a esse juízo. Oseias comunica de modo
vigoroso a agonia que Deus experimenta ao chegar à decisão de expulsar
Israel da terra. A dor de Deus é evidente quando ele clama por meio do
profeta: “Como posso desistir de você, Efraim? Como posso entrega-lo,
Israel?” (Os 11.8). Os profetas do Antigo Testamento dão amplo testemunho
da paciência de Deus para com o seu povo e dos esforços repetidos que faz
para chamá-lo de volta à fidelidade na aliança.
Habacuque profetiza ao Reino do Sul à medida que a influência da
Babilônia está obscurecendo sua vida. Quando o profeta pergunta como Deus
consegue ficar inerte e permitir que a injustiça e a violência prosperem em
Judá, recebe uma resposta extremamente surpreendente: Deus usará os
babilônios para punir Israel! No restante de seus oráculos, Habacuque briga
com Deus, tendo dificuldade para aceitar o que Deus fará. Por fim, embora os
caminhos de Deus permaneçam misteriosos para ele, o profeta chega a um

ponto de confiança:
Eu ouvi e meu coração estremeceu,
meus lábios tremeram diante do seu som;
meus ossos desfaleceram,
e minhas pernas tremeram.
Ainda assim, aguardarei com paciência o dia da desgraça
que há de vir sobre o povo que nos invade.
Ainda que a figueira não floresça,
nem haja uvas nas videiras;
ainda que fracasse a colheita da oliveira,
e os campos não produzam alimento;
ainda que não haja ovelhas no curral
e não haja gado nos estábulos,
mesmo assim, eu me alegrarei no SENHOR
exultarei em Deus, meu Salvador (Hc 3.16-18).
Precisamente quão catastrófico o Exílio foi para os israelitas está claro
com base nos salmos desse período e no livro de Lamentações. O salmo 80
clama a Deus a respeito de Jerusalém: “Por que derrubaste as suas paredes,
para que todos os que passem pelo caminho colham suas uvas? Os javalis da
floresta a devastam, e as criaturas do campo se alimentam dela” (Sl
80.12,13). O livro de Lamentações é uma série de lamentos cuidadosamente
estruturados que dão expressão organizada à aflição profunda que os exilados
experimentam à medida que são forçados a deixar a terra. Assim como o
livro de Jó luta com a questão do sofrimento individual, Lamentações luta
com o sofrimento de toda uma nação. Jó é inocente, mas Israel é culpado.
Lamentações articula a aflição de Israel, reconhece a justiça do SENHOR no
juízo e apela a ele para trazer restauração e um futuro ao seu povo Israel. Há
material extremamente comovente nesses poemas: “Os caminhos de Sião
pranteiam, pois ninguém comparece para as festas marcadas; todos os seus
portões estão desertos; seus sacerdotes gemem, suas virgens lamentam; e ela
mesma se encontra em angústia profunda” (Lm 1.4).
Paradoxalmente esses escritos, talvez, ofereçam um vislumbre de
esperança aos israelitas no Exílio. Lamentações dá forma à sua aflição e, com
o seu foco no SENHOR, mantém a possibilidade de renovação e restauração.

Esse tipo de literatura foi essencial para a sobrevivência da nação de Israel.
Sem ouvir a voz de Deus por meio dos profetas, os israelitas não teriam
mantido sua percepção de ser o próprio povo de Deus por direito. É verdade
que o templo havia sido destruído. Mas no Exílio Israel haveria de aprender
que o seu Deus era muito mais do que a sua casa, muito maior do que a
própria nação. Ele é verdadeiramente o SENHOR das nações, o SENHOR de toda
a criação. Embora o seu povo possa sofrer o Exílio na Babilônia, Deus não
está vencido.
Embora alguns dos exilados tivessem esperança de uma rápida volta da
Babilônia à sua própria terra, os profetas precisavam destruir essa esperança.
Uma vez que Israel caiu (em 587/6 a.C.), profetas como Jeremias e Ezequiel
se concentraram em confortar os israelitas. Jeremias insiste que não pode
haver volta rápida. Ele exorta os exilados a “buscar a paz e a prosperidade da
cidade para a qual [Deus] os exilou” (Jr 29.7). O povo de Deus já viveu antes
como minoria entre outras nações, e agora precisa fazer isso novamente.
Não sabemos muita coisa a respeito da vida dos israelitas enquanto
estavam no Exílio. Certamente sua situação na Babilônia não deve ter sido
nada agradável, mas havia dominadores piores do que os babilônios. Os
israelitas ao menos podiam fazer parte do Império Babilônico e ao mesmo
tempo permanecer em suas próprias comunidades e manter parte de sua
distinção cultural e religiosa. No entanto, duas narrativas do Antigo
Testamento, os livros de Daniel e de Ester, tratam dos conflitos de lealdade
que poderiam surgir para israelitas fiéis durante o Exílio.
O livro de Daniel narra as experiências de Daniel e três jovens israelitas
que foram levados cativos à Babilônia cerca de quinze anos antes do Exílio
em massa de 587/6 a.C. A própria história de Daniel é um relato
extraordinário de um israelita que alcança proeminência política ao mesmo
tempo em que se recusa a fazer concessões quanto a elementos fundamentais
de sua fé. (Nisso se assemelha fortemente a José no Egito.) Os quatro moços
se recusam a abrir mão de suas leis alimentares e, ainda assim, tornam-se
prósperos onde a abundância de todo tipo de comida é a regra. Os três amigos
de Daniel se recusam a adorar a imagem que Nabucodonosor ergue (Dn 3).

Eles sobrevivem à sua punição de serem jogados vivos na fornalha — e,
depois disso, são promovidos no governo da Babilônia. Daniel também
resiste à idolatria. Ele se recusa a orar à imagem de Nabucodonosor e também
sobrevive à sua punição na cova dos leões (Dn 6). Com a ajuda de Deus,
Daniel (diferentemente de outros sábios da Babilônia) consegue interpretar os
sonhos de Nabucodonosor (Dn 2 e 4).
A segunda metade do livro de Daniel contém as próprias visões de Daniel
repletas de símbolos que fornecem a percepção de como a história se
desenvolverá. Impérios ascenderão e cairão um após o outro, mas suas
ascensões e quedas ocorrerão no contexto do reinado do SENHOR (2.44;
4.3,34; 6.26). De fato, uma das principais mensagens de Daniel é que Deus é
soberano e honra seus servos quando estes o colocam em primeiro lugar em
sua vida. Na visão de 7.1-14, há “alguém parecido com filho de homem” que
se aproxima do Ancião de Dias e recebe autoridade e soberania sobre todas as
nações. Nos Evangelhos, Jesus se refere a si mesmo como “o Filho do
homem”. Sua reivindicação implícita é à autoridade prometida a essa figura
na visão profética de Daniel.
Esdras e Neemias: Israel volta à terra
Em 539 a.C., o rei persa Ciro derrotou a Babilônia e permitiu que os israelitas
voltassem à sua terra se assim o quisessem. Muitos voltaram, mas certamente
nem todos. O livro de Ester se passa no reinado do rei persa posterior Xerxes
(486-465 a.C.) e é mais uma história fascinante sobre israelitas no Exílio.
Ester, uma israelita, é escolhida para substituir Vasti como a rainha do rei
Xerxes. Aproximadamente na mesma época, um nobre chamado Hamã é
elevado a uma alta posição política. Todos os oficiais reais se ajoelham diante
dele e lhe prestam honra, mas Mardoqueu, primo (e pai adotivo) de Ester, não
o faz, presumivelmente por isso estar demasiadamente próximo à idolatra.
Hamã fica furioso e obtém a permissão de Xerxes para matar todos os
israelitas no império. Mardoqueu envia notícias a respeito dessa ameaça a
Ester e sugere: “Quem sabe se não foi para este momento que foste
conduzida à realeza?” (Et 4.14). Para salvar os judeus, Ester intervém junto a

Xerxes expondo o plano de Hamã, e este é enforcado. Mardoqueu, assim
como José e Daniel, alcança enorme proeminência política. É intrigante que o
nome de Deus nunca é usado no livro de Ester, embora ela convoque o povo
a jejuar — presumivelmente incluindo orações a Deus (4.16). No entanto, a
história exala um senso poderoso da providência de Deus na experiência dos
israelitas que permanecem no Exílio. A festa do Purim celebra essa libertação
(9.18-32).
Os livros de Crônicas terminam com exatamente a mesma observação
com que o livro de Esdras começa: Ciro, o rei da Pérsia, proclama um decreto
de que o templo será reconstruído em Jerusalém (538 a.C.). Essa é uma
observação de grande esperança, pois foi o SENHOR que moveu o coração de
Ciro para fazê-lo (Ed 1.1; cf. Is 44.28—45.1,13). Ciro liberta quaisquer
exilados que desejem voltar para reconstruir o templo em Jerusalém. Esdras
capítulo 2 apresenta uma lista de exilados que voltam: muitos optam por
fazê-lo, mas não todos. Podemos somente imaginar o que sentem à medida
que voltam à terra cinquenta anos depois da destruição do templo. Uma vez
que se estabeleceram em suas cidades, eles se reúnem em Jerusalém e sob a
liderança de Jesua e Zorobabel começam a reconstruir o altar do Deus de
Israel. Esse é um ato de grande coragem, pois outros povos se estabeleceram
nessas regiões enquanto os israelitas estavam fora, e os israelitas não sabem
como essas pessoas reagirão.
Logo que o altar é reconstruído, os israelitas celebram a Festa dos
Tabernáculos, um lembrete da época em que os israelitas moravam em tendas
no deserto, saindo do Egito rumo à Terra Prometida. Visto que a nação está
agora mais uma vez se reunindo na Terra Prometida, essa grande festa deve
ser um momento profundamente comovente na pequena comunidade de
israelitas. O altar e a adoração a Deus são símbolos de grande impacto da
presença de Deus entre seu povo na terra. Embora o templo ainda não esteja
reconstruído, a adoração dos israelitas fornece um grande sinal de esperança.
Uma vez que os rituais de adoração já estão sendo praticados, eles
prosseguem com a reconstrução do templo. O projeto de reconstruir o
Templo de Jerusalém sofre com a oposição local e até mesmo internacional,
mas os construtores acabam prevalecendo. Com forte encorajamento da

pregação dos profetas Ageu e Zacarias (Ed 6.14), e cerca de vinte anos depois
de sua volta do Exílio na Babilônia, os corajosos construtores israelitas
terminam o templo e o dedicam ao SENHOR (516 a.C.).
O leitor que esteve seguindo a história israelita até aqui poderia ser
perdoado por indagar se os israelitas irão, dessa vez, sair-se melhor do que
em tentativas anteriores de servir a Deus. O restante dos livros de Esdras e de
Neemias falam sobre os dois líderes (segundo os quais esses livros são
nominados) que vêm em anos posteriores a Jerusalém e desempenham papéis
fundamentais em manter os exilados que regressaram no caminho certo.
Esdras é um sacerdote e escriba que volta a Jerusalém cerca de sessenta anos
depois da dedicação do templo. Nessa época, os israelitas começaram a
permitir casamentos mistos entre o seu próprio povo e estrangeiros e, assim,
novamente abriram a porta para a idolatria por meio de sincretismo. Esdras
confessa esse pecado, lembrando o povo da graça de Deus ao permitir que o
seu povo volte à terra, e dissolve esses casamentos.
Neemias é um copeiro na corte real de Artaxerxes na Babilônia. Ao ouvir
sobre o estado de deterioração dos muros de Jerusalém, Neemias solicita e
recebe permissão para voltar a Jerusalém (cerca de 445/4 a.C.). Em face de
violenta oposição, Neemias lidera a reconstrução dos muros da cidade (Ne 1
—7). Esdras reúne os israelitas e lhes lê do livro da Lei de Moisés, e os
levitas instruem os israelitas na Lei (Ne 8). O povo chora baseado em uma
profunda percepção do seu pecado à medida que ouve a Lei. Mais tarde, os
levitas lideram o povo em oração litúrgica à medida que recapitulam seu
relacionamento com Deus, desde a criação passando pelo chamado de Abraão
e continuando até o presente. Eles oram fervorosamente a Deus e renovam a
aliança entre o SENHOR e a nação de Israel (9.38—10.39).
No final do Antigo Testamento, o futuro de Israel permanece incerto. Os
israelitas estão de volta à terra, mas — até mesmo com o templo reconstruído
— a sua existência como nação é tênue: o templo não se compara à sua glória
anterior (cf. Ag 2.3). Se nos concentrarmos somente na situação política de
Israel nesse momento da história, poderemos ter sérias dúvidas sobre o seu
futuro. Mas os profetas nos dão uma certeza muito maior sobre o futuro de

Israel e sobre o triunfo dos propósitos de Deus para o seu povo. Grande parte
da pregação dos profetas está relacionada diretamente à situação de Israel da
sua época. Mas os profetas — antes, durante e após o Exílio — também
olham para o futuro e falam sobre o que há de vir. Para fazer isso, usam
imagens colhidas da história de Israel, falando sobre o futuro do “filho de
Davi”, do “monte Sião”, de Israel como servo de Deus e do templo. Eles
elaboram para os israelitas uma visão do que há de vir.
Em grande parte, a mensagem dos profetas trata do fato de que Deus
julgará o seu povo por causa de sua contínua desobediência. A glória e a
reputação de Deus entre as nações está em jogo na vida de Israel e, assim,
Deus não poderá tolerar a rebelião de Israel para sempre. Essa observação
naturalmente levanta perguntas a respeito dos propósitos de Deus para o
futuro, para Israel e para toda a criação. Até mesmo, à medida que os profetas
pronunciam o presente juízo sobre Israel, eles também olham para o futuro e
declaram que, visto que Deus reina, seus propósitos precisam triunfar.
Jeremias (31) fala sobre uma “nova aliança” e Ezequiel (40—48), a respeito
de um “novo templo”. Isaías (49.6; 52:13—53.12) profetiza o advento de um
servo sofredor que verdadeiramente será luz para as nações. Essas imagens
juntas constroem uma visão de uma época em que Deus agirá de modo
decisivo para estabelecer seus propósitos em sua criação e para estabelecer
seu povo como verdadeiramente seu povo. O Messias, o ungido, virá e Israel
será autenticamente convertido, o coração das pessoas finalmente se voltará
para Deus (como em Mq 5). Essa será uma época em que as nações e todos
aqueles que se opuseram ao SENHOR experimentarão o seu juízo. No entanto,
também será uma época de salvação para as nações:
Os profetas não se cansam de testemunhar a respeito disso. Repetidamente, em meio aos seus juízos
proféticos contra a Babilônia, a Assíria e o Egito, eles, às vezes, irrompem de repente em alegria
por causa da salvação que virá. Eles sempre apresentam o fato de que depois de todos os juízos
inflamados do Messias sobre o próprio Israel e sobre as nações, um Israel novo e glorioso se tornará
o ponto de encontro em torno do qual os povos da terra se reunirão.
92
Deus não se esqueceu de sua promessa. Deus renovará Israel e, depois, atrairá
todas as nações para si mesmo, conforme prometeu a Abraão. Nesse

processo, toda a criação será renovada. O reino de Deus será estabelecido
sobre toda a terra. Com essa esperança termina o Antigo Testamento.
1 A palavra hebraica para vaidade é hebel.
2 A expressão “desencaminhar” é usada aqui para descrever como o pecado atua desorientando ou
distorcendo a boa criação de Deus. Al Wolters descreve a cosmovisão bíblica usando as palavras
“estrutura” e “direção”: a estrutura da criação divina originalmente boa, seu desencaminhamento do
propósito de Deus feito pelo pecado e seu redirecionamento realizado pela redenção. Veja Al Wolters,
Creation regained: biblical basics for a reformational worldview (Grand Rapids: Eerdmans, 1985)
[edição em português: A criação restaurada: base bíblica para uma cosmovisão reformada, tradução
Denise Pereira Ribeiro Meister (São Paulo: Cultura Cristã, 2006)].
3 Rookmaaker, Art needs no justification (Downers Grove: InterVarsity, 1978) [edição em
português: A arte não precisa de justificativa, tradução de Fernando Guarany Jr. (Viçosa: Ultimato,
2010)].
4 Veja Salmos 8.6.
5 Sobre esse tema, veja Nicholas Wolterstorff, “A city of delight” (chap. 6), in: Until justice and
peace embrace: the Kuyper lectures for 1981 given at the Free University of Amsterdam (Grand
Rapids: Eerdmans, 1983). Wolterstorff explica como desenvolver cidades que honram a Deus e são
uma bênção àqueles que moram nelas.
6 Cidades na Mesopotâmia antiga não se destinavam à habitação de pessoas. Elas basicamente
alojavam o setor público, consistindo principalmente de construções religiosas e armazéns. John
Walton; Victor Matthews; Mark Chavalas, The IVP Bible background commentary: Old Testament
(Downers Grove: InterVarsity, 2000), p. 41 [edição em português: Comentário bíblico Atos: Antigo
Testamento, tradução de Noemi Valéria Altoé da Silva (Belo Horizonte: Atos, 2003)].
7 A identidade dos filhos de Deus é muito disputada. F. B. Huey afirma: “A maioria dos estudiosos
de Gênesis 6.1-4 concorda que essa é uma das passagens mais debatidas no Antigo Testamento. Ela
tem sido descrita como ‘um enigma’, ‘estranha’, ‘difícil’, ‘ininteligível’, ‘ainda sem solução’ e
‘críptica’. A história de sua exegese tem se caracterizado por uma controvérsia áspera que não parece
estar mais próxima de uma resolução por parte dos estudiosos de hoje do que por parte de suas
contrapartes antigas” (F. B. Huey Jr.; John H. Walton, “Are the ‘sons of God’ in Genesis 6 angels?”, in:
Ronald Youngblood, org., The Genesis debate: persistent questions about Creation and the Flood, 2.
ed. [Grand Rapids: Baker, 1990], p. 184). Quem são os filhos de Deus? Há três posições básicas: (1)
eles são algum tipo de seres sobrenaturais, tradicionalmente anjos caídos. As filhas dos homens eram
humanas. O pecado era o casamento entre dois tipos [de existência] e a ordem de Deus é transgredida.
(2) Os filhos de Deus são a linhagem piedosa de Sete e as filhas dos homens são a linhagem ímpia de
Caim. O pecado é o casamento entre os piedosos e os ímpios. (3) Os filhos de Deus são governantes e
as filhas dos homens são mulheres comuns. O pecado é opressão e poligamia. Para uma análise
exaustiva, veja Huey; Walton, “Are the ‘sons of God’ in Genesis 6 angels?”, p. 184-209.
8 Veja Gordon Wenham, Genesis 1—15, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1987), p. 159-
66 para uma relação entre a história de Noé e as antigas histórias de dilúvio.
9 Karl Barth, Church dogmatics, vol. 3/1, The doctrine of creation, tradução para o inglês de J. W.
Edwards et al. (Edinburgh: T&T Clark, 1958), p. 178.
10 Um versículo comparável é Jonas 4.11, em que Deus repreende Jonas por sua falta de compaixão:

“Não deveria eu me preocupar com Nínive, essa grande cidade, que tem mais de cento e vinte mil
pessoas que não sabem distinguir a mão direita da esquerda, além de muitos animais?” (NRSV, grifo
dos autores).
11 O. Palmer Robertson, Christ and the covenants (Phillipsburg: Presbyterian and Reformed, 1980),
p. 4 [edição em português: O Cristo dos pactos: uma análise exegética e teológica das sucessivas
alianças bíblicas e do seu papel no desenvolvimento da revelação de Deus, 2. ed., tradução de Américo
Justiniano Ribeiro (São Paulo; Cultura Cristã, 2011)].
12 Veja Gordon Hugenberger, Marriage as a covenant: a study of biblical law and ethics governing
marriage, developed from the perspective of Malachi (Leiden: Brill, 1994).
13 Veja o excelente livro de William Dumbrell, Covenant and creation: a theology of Old Testament
covenants (Nashville: Nelson, 1984).
14 A repetição dessa expressão no início e no fim de 9.1-7 é o que chamamos de inclusio, uma
técnica literária na forma de sanduíche que nos alerta para a centralidade dessa questão, nessa seção de
Gênesis.
15 Veja D. J. Wiseman, “Babel”, in: J. D. Douglas et al., orgs., New Bible dictionary, 3. ed.
(Downers Grove: InterVarsity, 1996), p. 109-10 [edição em português: O novo dicionário da Bíblia, 3.
ed., tradução de João Bentes (São Paulo; Vida Nova, 2006)].
16 Gordon Wenham, Genesis 1—15, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1987), p. 245.
17 As histórias de Abraão, Isaque, Jacó e José são quase cinco vezes mais longas que Gênesis 1—
11.
18 Veja, por exemplo, Gênesis 1.22,28.
19 Gênesis 3.14,17; 4.11; 5.29; 9.25.
20 Dumbrell, Covenant and creation, p. 71.
21 Cf. também Gênesis 22.16-18.
22 Aqui encontramos a misteriosa doutrina da eleição. Abraão e seus descendentes são escolhidos
para ser o povo de Deus dentre todas as nações (veja Dt 7.7-11). Essa é uma doutrina misteriosa, mas
uma coisa é bastante clara em 12.1-3. O propósito de Deus ao chamar Abraão é no longo prazo
assegurar bênção para todas as famílias da terra (12.3). A eleição tem em vista o serviço, e não somente
o privilégio. Lesslie Newbigin comenta: “Ser eleito […] significa ser incorporado na sua missão [de
Deus] ao mundo, para ser o portador do propósito salvífico de Deus para todo o seu mundo, ser o sinal
e o agente e o primeiro fruto de seu reino bem-aventurado que é para todos” (The gospel in a pluralista
society [Grand Rapids: Eerdmans, 1989], p. 27) [edição em português: O evangelho em uma sociedade
pluralista, tradução de Valéria Lamim Delgado Fernandes (Viçosa: Ultimato, 2016)].
23 Dumbrell, Covenant and creation, p. 66.
24 Gordon J. Wenham, Story as Torah: reading the Old Testament ethically (Edinburgh: T&T Clark,
2000), p. 37.
25 Veja Gênesis 15.18-21 para a promessa da terra e seu alcance.
26 Há muita discussão em torno do significado da circuncisão e como ela funciona para confirmar a
aliança. Uma visão encontra o contexto cultural da circuncisão no antigo Egito, que acreditamos ter
mérito. Há antigos desenhos egípcios na tumba de Ankhmahor (o médico) em Saqqara, nas imediações
do Cairo, que mostram jovens do sexo masculino na fase da puberdade sendo circuncidados. A tumba
data de pouco antes da época de Abraão (c. 2200 a.C.). No antigo Egito, a circuncisão era uma
cerimônia de fertilidade praticada em adolescentes ao alcançarem idade para se casar. O prepúcio era
visto simbolicamente como uma barreira à fertilidade. A circuncisão “auxiliava” os poderes sexuais do

jovem que já estavam se desenvolvendo. Abraão havia visitado o Egito ao menos uma vez antes disso,
permanecendo ali durante algum tempo (Gn 12.10-20). Dessa forma, Deus usa um costume bem
conhecido e o modifica para seus propósitos pactuais. A ordem de Deus era circuncidar um homem de
noventa e nove anos e um menino de oito dias: ambos incapazes de gerar filhos. Isso significa que Deus
removerá soberanamente a barreira à fertilidade e dará a Abraão um filho. Deus confirma sua aliança
anterior com Abraão (Gn 17.1,2). Observe a estrutura da aliança dupla em Gênesis 17: “Quanto a mim
[Deus]…” (17.4); “Quanto a ti [Abraão]…” (17.9). Deus cumpriria as promessas da aliança que fez a
Abraão em Gênesis 12 e 15. Abraão deve crer na promessa de Deus. Esse chamado à fé é concedido em
um sinal que fortalecerá a fé de Abraão. Ele reconhece o compromisso de Deus de remover a barreira, a
fim de que possa ser fértil (Rm 4.11). Incidentalmente, isso também nos ajuda a entender a “circuncisão
do coração” (Dt 30.6; Rm 2.29). A circuncisão do coração é a remoção da barreira (pecado) que impede
um relacionamento fértil com Deus.
27 Veja David J. A. Clines, The theme of the Pentateuch, 2. ed. (Sheffield: JSOT Press, 1997).
28 Ibidem, p. 29.
29 Gênesis 15.6 é importante no Novo Testamento para Romanos 4 e a justificação.
30 Søren Kierkegaard, Fear and trembling: repetition, tradução para o inglês de H. V. Hong; E. H.
Hong (Princeton: Princeton University Press, 1983), p. 22-3 [edição em português: Temor e tremor,
tradução e prefácio de Torrieri Guimarães (Rio de Janeiro: Ediouro, 1993)].
31 Wenham, Story as Torah, p. 37.
32 Para uma análise proveitosa da história de José, veja Paul C. Borgman, Genesis: the story we
haven’t heard (Downers Grove: InterVarsity, 2001), seção IV.
33 Wenham, Genesis 16—50, Word Biblical Commentary (Dallas: Word, 1994), p. 20.
34 Veja Salmos 105.42,43, em que a conexão entre o Êxodo e as promessas a Abraão é feita
diretamente. Êxodo, como um todo, conta de três maneiras como Deus forma um povo: os capítulos 1
—18, por meio dos atos poderosos divinos de redenção; 19—24, pela aliança; e 25—40, pela sua
presença habitadora no interior do povo.
35 Não era incomum que príncipes e princesas estrangeiros fossem educados na corte egípcia. Veja
James K. Hoffmeier, Israel in Egypt: the evidence for the authenticity of the Exodus tradition (New
York: Oxford University Press, 1997), p. 142-3.
36 Também conhecido como Sinai.
37 Veja, por exemplo, Brevard S. Childs, The book of Exodus (Philadelphia: Westminster, 1974), p.
47-89.
38 Terrence Fretheim, “Yahweh”, in: W. A. VanGemeren, org., New international dictionary of Old
Testament theology and exegesis (Grand Rapids: Zondervan, 1997), 4:1296, 5 vols. [edição em
português: Novo dicionário internacional de teologia e exegese do Antigo Testamento, tradução de
Afonso Teixeira Filho et al. (São Paulo: Cultura Cristã, 2010-2011), 5 vols.].
39 Cornelis Houtman, Exodus, tradução para o inglês de J. Rebel; W. Woudstra (Kampen: Kok,
1993-2000), 4 vols., 1:9.
40 J. Philip Hyatt, Commentary on Exodus, New Century Bible Series (London: Oliphants, 1971).
41 Hoffmeier, Israel in Egypt, p. 147.
42 Colin J. Humphreys, The miracles of Exodus: a scientist’s discovery of the extraordinary natural
causes of the biblical story (New York: Harper Collins, 2003), p. 133.
43 J. Marr; C. Malloy, “An epidemiologic analysis of the ten plagues of Egypt”, Catalyst, May 1996.
44 Humphreys, Miracles of Exodus, p. 138.

45 Gordon Spykman, Reformational theology: a new paradigm for doing dogmatics (Grand Rapids:
Eerdmans, 1992), p. 289.
46 Hoffmeier, Israel in Egypt, p. 150. No entanto, menos prováveis são as ligações entre as rãs e a
deusa Heqet; as vacas e a deusa Hathor; os touros e o deus Ápis.
47 Ibidem, p. 153.
48 John I. Durham, Exodus, Word Biblical Commentary (Waco: Word, 1987), p. 263.
49 Em vista está a totalidade da vida de Israel, incluindo a dimensão política. Como alguns
observaram, “propriedade exclusiva” tem implicações políticas; a palavra acadiana é usada para
descrever o vassalo de um grande rei. Mas mais forte do que isso é o uso da palavra “nação” (gôy) em
vez da palavra mais comum “povo” (‘am), em “nação santa”. Isso provavelmente alude a Gênesis 12.2,
em que se tem em mente Israel como uma entidade política. Dumbrell afirma a respeito de Êxodo 19.6:
“Provavelmente então estamos aqui, como observamos em relação a Gên[esis] 12.2, pensando em
Israel que apresenta em sua constituição um modelo societário para o mundo” (Covenant and creation,
p. 87). Dessa perspectiva, a peculiaridade política de Israel como nação do antigo Oriente Próximo
também tem importância universal e política.
50 Dumbrell, Covenant and creation, p. 90.
51 Ibidem, p. 80.
52 Observamos esses elementos da aliança em Êxodo 19—24 no que vem a seguir. Os mesmos
elementos são encontrados em Deuteronômio: (1) uma introdução que identifica as duas partes
envolvidas na aliança (Deuteronômio 1.1-5); (2) uma história do relacionamento entre Deus e Israel
(1.6—4.49); (3) as principais estipulações (capítulos 5—11); (4) as estipulações detalhadas (capítulos
12—26); (5); as bênçãos para a obediência e as maldições para a desobediência (27—28); (6) as
testemunhas da aliança (30.19; 31.19; 32.1-43). Veja Meredith G. Kline, Treaty of the great King: the
covenant structure of Deuteronomy: studies and commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1963); Peter
C. Craigie, The book of Deuteronomy (Grand Rapids: Eerdmans, 1976), p. 22-4 [edição em português:
Deuteronômio, Comentários do Antigo Testamento, tradução de Wadislau Martins Gomes (São Paulo;
Cultura Cristã, 2013)]. Craigie fornece uma bibliografia para estudos posteriores.
53 Terence E. Fretheim, Exodus, Interpretation (Louisville: John Knox, 1991), p. 263. Nesta seção,
fazemos uso substancial de Fretheim.
54 Ibidem, p. 281.
55 Ibidem, p. 271-2.
56 Ibidem, p. 277.
57 Ibidem, p. 273.
58 Ibidem.
59 Gordon J. Wenham, “Clean and unclean”, New Bible dictionary, p. 210.
60 Precisamente como entender esses números é uma questão de debate. Veja Gordon J. Wenham,
Numbers: an introduction and commentary, Tyndale Old Testament Commentaries (Leicester: Apollos;
Downers Grove: InterVarsity, 1981), p. 60-6 [edição em português: Números: introdução e comentário,
tradução de Adiel Almeida de Oliveira, Série Cultura Bíblica (São Paulo: Vida Nova, 1985)].
61 J. Gordon McConville, Deuteronomy, Apollos Old Testament Commentary (Leicester/Downers
Grove: Apollos/InterVarsity, 2002), p. 36.
62 Essa é uma adaptação da afirmação famosa e frequentemente citada do estadista e teólogo
holandês Abraham Kuyper: “Geen duimbreed is er op heel ’t erf van ons menschelijk leven, waarvan
de Christus, die àller Souverein is, niet roept: ‘Mijn!’” [Não há sequer a largura de um polegar de toda a

esfera de nossa vida humana a qual Cristo, o Soberano sobre tudo, não proclame: “É meu!”]. Citado em
Cornelis Veenhof, In Kuyper’s Lijn: Enkele Opmerkingen over den Invloed van Dr. A. Kuyper op de
“Wijsbegeerte der wetsidee” (Goes: Oosterbaan & Le Cointre, 1939), p. 43.
63 Isso é reminiscente do chamado do meuzzin do minarete, na religião islâmica.
64 Cf. a instrução de Paulo em Romanos 12.1,2 de apresentar o corpo como um sacrifício vivo.
65 McConville, Deuteronomy, p. 34.
66 Alguns estudiosos observaram que a ordem das leis esmiuçadas em Deuteronômio tende a seguir
os mandamentos; logo, seções sobre as leis detalhadas são uma exposição dos Dez Mandamentos.
Muitos cristãos continuam achando essas passagens muito difíceis. De fato, elas representam um
divisor importante entre os modos utilizados pelos cristãos para contar a história bíblica. Entre
proponentes de uma abordagem narrativa da Bíblia, estudiosos como Stanley Hauerwas e Richard Hays
insistem em que permitamos que a parte posterior da história, a saber, o ensino de Jesus, seja o juiz
final dessas partes difíceis e anteriores. Hauerwas e Hays consideram Jesus um pacifista e, assim,
consideram essas passagens contrárias a uma ética cristã.
67 Walter Brueggemann, The land: place as gift, promise, and challenge in biblical faith
(Philadelphia: Fortress, 1977), p. 45-6 [edição em português: A terra na Bíblia: dom, promessa e
desafio, tradução de Pe. Anacleto Alvarez (São Paulo: Paulinas, 1986)].
68 Veja Donald Sinnema, Reclaiming the land: a study in the book of Joshua (Toronto: Curriculum
Development Centre, 1977).
69 Brueggemann, Land, p. 191.
70 Ibidem, p. 49.
71 Um lugar importante em que essa teologia é retomada no Novo Testamento é nas bem-
aventuranças: “Bem-aventurados os mansos, pois eles herdarão a terra” (Mt 5.5). Veja Brueggemann,
Land, cap. 10.
72 Versículos como Josué 10.40 e 11.16 poderiam sugerir que todos os cananeus da terra foram
destruídos. Mas está claro com base em outras passagens em Josué e no Antigo Testamento que não foi
isso que ocorreu. Essa linguagem é uma hipérbole, cujo objetivo é expressar o controle que Josué
obteve sobre a terra.
73 Para uma proveitosa análise dessa questão, veja Wenham, Goodness of God, p. 119-47; C. S.
Cowles; E. M. Merrill; D. L. Gard; T. Longman III, “Show them no mercy”: four views on Canaanite
genocide (Grand Rapids: Zondervan, 2003) [edição em português: Deus mandou matar? Quatro pontos
de vista sobre o genocídio cananeu, tradução de Jamil Abdalla Filho (São Paulo: Vida, 2006)]; e
Norbert Lohfink, “ḥāram”, in: G. J. Botterweck; H. Ringren, orgs., Theological dictionary of the Old
Testament, ed. rev., tradução para o inglês de J. T. Willis; G. W. Bromiley; D. E. Green (Grand Rapids:
Eerdmans, 1977-?), 5:180-99, 12 vols.
74 Lohfink usa o argumento de que os habitantes eram livres para se sujeitar aos israelitas, mas caso
se recusassem, deveriam ser mortos. Veja Lohfink, “ḥāram”, p. 197.
75 Wenham, Goodness of God, p. 125.
76 Barry Webb, The book of the Judges: an integrated reading (Sheffield: JSOT, 1987), p. 209.
77 J. Gordon Harris; Cheryl A. Brown; Michael S. Moore, Joshua, Judges, Ruth, New International
Biblical Commentary: Old Testament Series (Carlisle: Paternoster, 2000), p. 157.
78 A resposta do SENHOR não é mecânica. Webb (Judges, p. 209) observa acertadamente que o
“tema de clamar a Yahweh é tratado de tal modo a impedir qualquer conexão simples entre
arrependimento e libertação. Em face da apostasia persistente de Israel, Yahweh não distribui com tanta

frequência recompensas e punições, quanto oscila entre punição e misericórdia”.
79 Walton et al., IVP Bible background commentary: Old Testament, p. 146.
80 A respeito de votos nazireus, veja Números 6.1-21.
81 Webb, Judges, p. 172.
82 O livro de Juízes está ciente dos perigos da monarquia. Veja Juízes 8.22-27.
83 William Dumbrell, The end of the beginning: Revelation 21—22 and the Old Testament
(Homebush West: Lancer Books, 1985), p. 10.
84 John Goldingay, Theological diversity and the authority of the Old Testament (Grand Rapids:
Eerdmans, 1987), p. 94. Para uma visão semelhante, veja Richard Nelson, The historical books
(Nashville: Abingdon, 1998), p. 126-7.
85 Nelson, Historical books, p. 119.
86 William Dumbrell, The faith of Israel: a theological survey of the Old Testament (Grand Rapids:
Eerdmans, 1998), p. 275.
87 Dumbrell, End of the beginning, p. 52-3.
88 Quanto a uma excelente análise, veja Leila Leah Bronner, The stories of Elijah and Elisha as
polemics against Baal worship (Leiden: Brill, 1968).
89 Nelson, Historical books, p. 141.
90 Francis Andersen; David Noel Freedman, Amos: a new translation with notes and comentary,
Anchor Bible (New York: Doubleday, 1989), p. 190-1.
91 Jeremias 11.18—12.6; 15.10-21; 17.12-18; 18.18-23; 20.7-18.
92 J. Herman Bavinck, An introduction to the science of missions (Phillipsburg: Presbyterian and
Reformed, 1979), p. 21.

Um relato do reino
aguardando um desfecho
O período intertestamentário
Quando a história do Antigo Testamento se aproxima do fim, o povo de
Israel está vivendo na “terra” em relativa paz sob o governo persa, que
permitiu o retorno de Israel. Mas quando começa a história do Novo
Testamento, seu contexto é bem diferente. Já faz muito tempo que o Império
Persa ruiu, e Israel agora sofre sob o cruel domínio da Roma imperial.
Somente uma fração do povo de Israel vive de fato na Palestina: a maior parte
está espalhada por todo o Império Romano e até mesmo além de suas
fronteiras, onde também está sujeita a senhores pagãos. Entre os judeus, quer
na Palestina, quer em outros lugares, há um anseio ardente para que Deus aja,
para que traga libertação ao seu povo. A nação cativa ferve de raiva e sonha
com um dia poder arrancar o jugo da opressão e expulsar os romanos da terra
em definitivo. Em nossa jornada pela história bíblica, precisamos, portanto,
fazer uma pausa para considerar o período intertestamentário: quatrocentos
anos da história de Israel entre Malaquias e Mateus. Durante essa época, o
povo judeu se esforça para reconciliar sua fé nas promessas divinas de
bênção com a experiência terrível da vida sob uma sucessão de governantes
pagãos cada vez mais perversos.
1
A comunidade judaica na Palestina e na Diáspora
Embora os conquistadores persas tenham permitido que os judeus voltassem
do Exílio na Babilônia à sua própria terra, na verdade somente uma minoria
deles fez isso. Aqueles que voltaram à Palestina conseguiram estabelecer uma
comunidade judaica próspera ali, e é a respeito dessa comunidade que

frequentemente lemos nas páginas dos Evangelhos. Mas a maioria dos judeus
permaneceu fora de sua pátria. No primeiro século d.C., havia comunidades
judaicas em quase todas as cidades do mundo civilizado da época.
2 Esses
judeus, vivendo não na Palestina, mas entre as nações, normalmente são
designados de a Diáspora, “os dispersos” (duas palavras gregas que
significam “entre/em toda parte” e “sementes”, a exemplo de um fazendeiro
que espalha sementes pelo seu campo). Esses judeus da Diáspora
continuaram crendo que Israel como um todo permanecia no Exílio e, assim,
tinham um zelo especial em manter sua identidade pactual distinta e as
observâncias religiosas que a reforçam. A Torá, em especial, permaneceu
basilar para a sua vida. Algumas dessas comunidades judaicas fora da
Palestina tiveram mais êxito do que outras em permanecer fiéis à Torá e
resistir à acomodação às culturas pagãs vizinhas. Mas nem a esperança
distinta em Deus dos judeus nem sua percepção de identidade como o próprio
povo dele jamais chegaram a ser erradicadas.
Na tentativa de manter sua distinção cultural e religiosa, os judeus (tanto
aqueles na Palestina quanto os da Diáspora) criaram sinagogas para a
adoração, oração e estudo das Escrituras no sábado. Essa instituição fornecia
um centro educacional, judicial, social, econômico e político para a
comunidade judaica em meio a uma cultura estranha. No sábado, os judeus se
reuniam em sinagogas para adoração e oração e para ouvir a exposição das
Escrituras, mas para a maioria deles, a sinagoga nunca poderia substituir
completamente o templo. Judeus em todos os lugares continuavam
reverenciando o templo e mantendo a esperança de sua glória futura. Eles
pagavam tributos relacionados ao templo e em festas importantes, com
frequência, faziam peregrinações para Jerusalém. Ao traçarmos a história de
Israel entre os dois Testamentos, precisamos lembrar que havia uma
população judaica substancial fora da Palestina que também participava
desses eventos.
A fé de Israel
Cinco convicções fundamentais, resultantes da jornada de dois mil anos que

Israel fez com Deus desde a época de Abraão, moldaram a vida dos judeus
durante o período intertestamentário. A primeira delas era o monoteísmo:
Israel cria em um só Deus, o Criador do mundo e Regente da história. A
segunda convicção era a eleição: Deus havia escolhido Israel para um
propósito especial, por meio dessa nação e nenhuma outra ele agiria para
livrar sua criação do mal que a havia desfigurado e frustrado desde o pecado
de Adão. Em sua aliança com Abraão, Deus havia prometido não somente
que os descendentes de Abraão se tornariam uma grande nação, mas também
que por meio dessa nação, todos os povos receberiam a bênção de Deus. A
terceira convicção dizia respeito à Lei, ou Torá: Deus tinha dado a Lei a
Israel para guiar seu modo de vida como o povo santo de Deus e havia
prometido que os israelitas seriam abençoados se continuassem firmes em
sua fidelidade a essa Lei. A quarta convicção estava relacionada à terra a que
Deus havia trazido seu povo por meio de Moisés e Josué, e ao templo que
havia sido construído ali. Para Israel, a terra era muito mais do que somente
um imóvel neutro, muito mais até do que a casa em que moravam e o jardim
que os sustentava. A terra era santa porque era ali que Deus habitava com
Israel (Zc 2.12). Em nenhum outro lugar a nação poderia desfrutar da mesma
rica comunhão com ele. Deus mesmo havia escolhido esse lar para o seu
povo e escolhido mais especificamente o templo em Jerusalém como o lugar
em que poderia se encontrar com eles. Esse fato constituía o centro derradeiro
de sua vida.
Assim, os judeus criam que eles mesmos haviam sido escolhidos pelo
único Deus verdadeiro para servi-lo e adorá-lo em seu templo em Jerusalém e
para experimentar sua bênção à medida que viviam sob a direção de sua
palavra. Como um reino sacerdotal fiel, eles deviam compartilhar essas
bênçãos com as nações vizinhas. Essa, sabiam eles, era a intenção de Deus
para o seu povo. Mas o pecado — sua própria infidelidade a Deus — havia
impedido que recebessem o que ele havia prometido. Durante gerações, Israel
havia seguido práticas de nações pagãs vizinhas; a idolatria havia substituído
a adoração ao SENHOR. Mesmo assim — os profetas prometeram a Israel
repetidas vezes — e, ainda assim, apesar da infidelidade de Israel, o seu
SENHOR permaneceria fiel ao seu povo. Ele cumpriria o que havia prometido

em sua nação escolhida e por meio dela. Embora Israel fosse julgado e
punido pelo seu pecado, Deus ainda haveria de restaurar a Israel a glória que
sempre havia tencionado para a nação; ele concluiria sua obra redentora.
Assim, a esperança de um futuro ato redentor de Deus foi para Israel a
quinta convicção que governou a sua vida como nação durante o período
intertestamentário.
Tensão crescente: da Pérsia para Roma
No entanto, essas convicções foram testadas severamente pela experiência
concreta de Israel durante os quatrocentos anos entre os Testamentos.
Embora, em parte, o povo tivesse voltado à terra prometida por Deus, até
mesmo os que agora estavam na Palestina permaneciam sob o domínio de um
poder estrangeiro: um após o outro, quase como se o seu Exílio nunca tivesse
terminado. Estrangeiros ditavam a sua vida política, o que era bastante ruim.
Muito pior era a pressão implacável de se conformar à cultura pagã. Isso
ameaçava destruir o propósito e a existência próprios da nação como a
escolhida de Deus, por meio de quem ele traria bênção ao mundo. Durante o
tempo em que o povo de Israel suportou esses séculos de provação e espera,
este se perguntou por que Deus não intervinha para libertá-lo e para vindicar
o seu nome entre os pagãos. À medida que os judeus eram governados pelos
caprichos de um governo colonial estrangeiro, um após o outro, eles devem
ter indagado muitas vezes o que havia acontecido às promessas dos profetas.
A vida no Império Persa
Quando o rei persa Ciro havia ordenado, já no sexto século a.C., que os
judeus tivessem permissão para voltar à sua terra natal, houve um tremendo
senso de júbilo entre eles. Certamente era libertação divina! Certamente era o
cumprimento das promessas das Escrituras, conforme Deuteronômio 30.5-9:
Ele os trará para a terra que pertenceu a seus antepassados, e vocês tomarão posse dela. Ele os
tornará mais prósperos e mais numerosos do que os seus antepassados. O SENHOR, o seu Deus,
circuncidará o seu coração e o coração dos seus descendentes, para que o amem de todo o coração e
de toda a alma e vivam. O SENHOR, o seu Deus, colocará todas essas maldições sobre os seus

inimigos que os odeiam e os perseguem. Vocês obedecerão de novo ao Senhor e seguirão todos os
seus mandamentos que hoje lhes dou. Então o SENHOR, o seu Deus, os tornará muito prósperos
em toda obra de suas mãos e no fruto do seu ventre, nas crias dos seus rebanhos e nas colheitas da
sua terra. O SENHOR se alegrará novamente em vocês e os tornará prósperos, assim como se
alegrou em seus antepassados.
Essas eram as primeiras das promessas de bênção da Torá sobre o Israel
pós-exílico e foram reiteradas sempre de novo pelos profetas do Exílio:
Isaías, Jeremias e Ezequiel. Mas o júbilo logo deu lugar à perplexidade e
frustração. A experiência dos exilados que retornaram não estava à altura do
que haviam esperado — nada menos do que uma revolução cósmica da obra
de Deus neles e por meio deles, seus escolhidos. Em primeiro lugar, nem
todo o Israel havia voltado à terra: muitos permaneceram na Babilônia ou no
Egito onde haviam se estabelecido. Era verdade que o templo havia sido
reconstruído, mas o novo templo parecia algo desprezível em comparação
com o templo glorioso da época de Salomão, que havia sido destruído (Ag
2.3). Embora o povo de Israel pudesse mais uma vez se estabelecer na
Palestina, que o próprio Deus tinha dado a Abraão, eles haviam vindo e
permanecido ali agora somente com base no bel-prazer de seus governantes
estrangeiros — e, portanto, pagãos.
O sonho de uma vida em sua própria terra e sem senhores estrangeiros
levou muitos em Israel a olhar novamente para as bênçãos prometidas nas
Escrituras, que os haviam sustentado durante todos esses anos. O que
encontraram ali incitou dentro deles um novo zelo pela Torá:
O SENHOR novamente se alegrará em vocês e os tornará prósperos como se alegrou em seus
antepassados se obedecerem ao SENHOR, o seu Deus, e guardarem os seus mandamentos e
decretos que estão escritos neste Livro da Lei, e se voltarem ao SENHOR, o seu Deus, de todo o
coração e de toda a alma. Agora o que hoje lhes ordeno não é difícil demais para vocês, nem está
fora do seu alcance. […] Pois eu hoje lhes ordeno a amar o SENHOR, o seu Deus, a andar nos seus
caminhos e a guardar os seus mandamentos, seus decretos e leis; então vocês viverão e se
multiplicarão, e o SENHOR, o seu Deus, os abençoará na terra em que estão entrando para possuir
(Dt 30.9-11,16).
Isso parecia fornecer a resposta à sua frustração. Se a nação, embora
fisicamente restabelecida à sua terra, ainda era política e religiosamente uma
nação no Exílio, isso devia ser assim porque Deus ainda não havia terminado

o seu juízo sobre o povo por violar sua aliança. Assim, eles poderiam esperar
uma libertação plena e final somente quando tivessem demonstrado uma
medida suficiente de fidelidade à Torá, tivessem começado de fato a “andar
nos seus caminhos e a guardar os seus mandamentos, seus decretos e suas
leis”. Como resultado, uma tradição de ensino oral surgiu, em que estudiosos
buscavam aplicar as antigas leis da Torá às novas situações em que as
pessoas se encontravam. Além disso, instituíram sinagogas em que a Lei de
Deus podia ser ensinada às pessoas comuns.
O Império Grego sob Alexandre, o Grande
Quando (em 331 a.C.) os exércitos de Alexandre conquistaram os persas, o
controle da Palestina e o governo do povo de Israel passou para os gregos. No
entanto, a ameaça mais séria à existência de Israel não era nem militar nem
política, mas cultural. A visão de Alexandre era de consolidar seu novo
império impondo a cultura helenista (uma palavra derivada do nome Hellen,
um lendário chefe tribal da Tessália na antiga Grécia, logo “grego”),
incluindo o idioma grego.
Alexandre não obrigou os judeus a se conformar à cultura helenista. No
entanto, ideias e práticas gregas começaram a saturar a cultura de Israel,
aliadas à difusão do próprio idioma grego (tão influente que os estudiosos da
Torá traduziram suas Escrituras Sagradas para o grego: a Septuaginta). Juntas
passaram a destruir a própria integridade cultural e religiosa de Israel como o
povo singular de Deus. Como a nação poderia ser fiel quando tudo que a
tornava distinta era questionado pelas convicções e práticas daqueles que
governavam sua vida? Essa pressão de se conformar a padrões culturais
pagãos e helenistas somente se intensificaria nos anos seguintes.
O Império Grego depois de Alexandre
Quando Alexandre faleceu com somente trinta e três anos de idade (em 323
a.C.), não deixou herdeiro, o que resultou em uma disputa entre seus generais
pelo seu enorme império. Duas dinastias — os ptolomeus no Egito e os

selêucidas na Síria — governaram os respectivos fragmentos do antigo
Império Alexandrino e seus exércitos lutaram entre si pelo domínio da região
em torno da Palestina. Israel estava localizado entre esses dois rivais
violentos e foi governado primeiro pela dinastia ptolomaica (311-198 a.C.) e
depois disso pelos selêucidas (198-164 a.C.). No período posterior, a tensão
entre a fé de Israel nas promessas de Deus e a sua experiência de vida em
meio a uma cultura estranha levou a uma crise dramática. Isso ocorreu de
modo especial durante o reinado do rei selêucida Antíoco IV Epifânio, que
foi celebrado em vida como um “[deus] manifesto”, mas cuja morte tornou “o
poder de Deus manifesto” (2Mc 9.8-12, NRSV).
Figura 19: Impérios Ptolemaico e Selêucida, c. 240 a.C.
Antíoco IV enfrentava duas ameaças graves ao seu império, uma externa e
outra interna: (1) Roma, que já havia começado a assumir as proporções de
um poder mundial, estava exigindo grandes quantias de dinheiro de Antíoco
como “tributo”, um suborno para impedir que os romanos atacassem
territórios de controle grego. (2) A própria diversidade étnica do Império
Grego ameaçava autoimplodi-lo; combates irromperam entre várias facções
tribais e nacionais. Antíoco respondeu a essas ameaças (1) invadindo vários
estados vassalos (como Israel) e saqueando-os para pagar suas dívidas e (2)
forçando povos subordinados (novamente, como Israel) a adotar a cultura
helenista de modo indiscriminado. Ele queria homogeneizar todo o Império e,

assim (esperava), colocar um fim nas guerras civis internas.
Essas duas práticas — saquear e helenizar — foram percebidas por muitos
em Israel como ataques diretos à vida da nação como o povo pactual de Deus.
Antíoco ousou até mesmo saquear o templo de Deus em Jerusalém, extraindo
tudo de valor que havia nele:
Ele entrou no santuário com arrogância e apoderou-se do altar de ouro, do candelabro para a luz e
todos os seus utensílios. Ele também tomou a mesa dos pães da presença, as taças para as libações,
as vasilhas, os incensários de ouro, o véu, as coroas, os ornamentos de ouro da fachada do templo,
tudo isso ele arrancou. Ele tomou a prata, o ouro, os vasos preciosos e também os tesouros secretos
que encontrou (1Mc 1.21-23, NRSV).
Para esse grego pragmático, de fato, nada em Israel era sagrado. Em sua
tentativa implacável de helenizar os judeus, Antíoco adotou leis severas
contra todas as práticas religiosas que distinguiam Israel como o próprio povo
de Deus. Ele proibiu a circuncisão, a observância do sábado e sacrifícios no
templo, e aqueles que ousavam desobedecer a Antíoco eram mortos de modo
cruel. Cópias da Torá foram queimadas. Ordenou-se que judeus oferecessem
sacrifícios impuros a deuses pagãos. Por fim, em 25 de dezembro de 167
a.C., Antíoco deliberadamente contaminou o templo para profaná-lo,
erguendo nele um altar a Zeus, o deus preeminente do panteão grego, e
sacrificando no altar um porco: o animal mais impuro na lei judaica.
Ultrajados e consternados, os judeus se referiram a esse ato na linguagem de
Daniel (11.31) como a “abominação da desolação”, “a abominação que
profana” ou que “causa desolação”.
Mas Antíoco não contava com a fé obstinada dos judeus no Senhor e o seu
compromisso com Deus. Israel acreditava que o SENHOR agiria para vindicar
o seu nome e reivindicar novamente para si o templo, a terra e o povo. Os
judeus também acreditavam que eles mesmos precisavam agir como
instrumentos da vingança de Deus contra os pagãos. Consequentemente, os
judeus se levantaram contra seus senhores selêucidas.
A Revolta dos Macabeus (167 a.C.) e a Dinastia dos Asmoneus (até
63 a.C.)

Ela começou com um sacerdote idoso, Matatias ben Johanan, que havia
recebido a ordem de oferecer um sacrifício impuro a um dos deuses pagãos.
Matatias se recusou a fazê-lo. Em vez disso, matou tanto o judeu infiel que
ofereceu o sacrifício quanto o soldado grego que estava ali para garantir que a
lei de seu governo fosse cumprida. Depois desse ato valente e perigoso de
insubordinação, Matatias fugiu para o deserto com seus cinco filhos e ali
organizou um grupo de rebeldes. Quando no ano seguinte o sacerdote idoso
faleceu, seu terceiro filho, Judas, assumiu a liderança desses guerrilheiros.
Judas foi apelidado Macabeu, “o martelo”, por martelar sem cessar o
inimigo, e assim os rebeldes leais a ele vieram a ser chamados de macabeus.
Embora sem qualquer esperança de vitória por estarem em menor número
do que o exército selêucida, os macabeus conquistaram muitas vitórias
notáveis. Em 25 de dezembro de 164 a.C., três anos após Antíoco ter
profanado o templo, Judas Macabeu (a forma latina do seu nome, Judas
Maccabaeus, se popularizou especialmente a partir do oratório de Handel a
respeito dele) entrou em Jerusalém a cavalo sob gritos de “hosana” e o
balançar de ramos de palmeiras. Ele purificou o templo, removendo dele as
imagens de deuses gregos, os altares estrangeiros e outros ornamentos
desprezados de adoração pagã e reconsagrou a totalidade do templo ao
SENHOR. Uma nova festa, Hanucá, foi estabelecida para comemorar essa
libertação notável dos judeus de seus senhores pagãos (1Mc 4.41-61). No
entanto, somente mais de vinte anos mais tarde o governo selêucida foi
completamente removido de Israel (142 a.C.). Isso deu início a um período de
independência e autonomia judaicas, durante o qual os descendentes do irmão
mais velho de Judas Macabeu chamado Simão (os asmoneus) governaram
por oitenta anos.
É importante conhecer esses acontecimentos — a opressão selêucida do
povo judaico sob Antíoco e a subsequente Revolta dos Macabeus contra os
governantes pagãos que tomaram posse da terra — se quisermos
compreender o desenrolar da história de Israel. Esse acontecimento, como o
Êxodo, tornou-se para os judeus um momento crucial em sua história. Deus
havia agido para libertar seu povo, para restaurar seu templo e para vindicar
sua Lei. E visto que Deus havia visitado seu povo uma vez nesse ato

dramático de redenção, certamente o faria novamente. Sem dúvida, a época
da opressão dos judeus sob governantes pagãos estava terminando, e Deus
restauraria o seu reino em Israel como os profetas haviam prometido por
tanto tempo.
Mas isso não se tornaria realidade, por enquanto. Os líderes rebeldes
Matatias ben Johanan e seu famoso filho Judas Macabeu tinham um
compromisso com o governo de Deus e a lei de Deus para Israel. No entanto,
os reis asmoneus que se seguiram fizeram concessões profundas em função
de sua simpatia pela cultura pagã e helenista e de seu interesse em manter o
poder político que haviam herdado.
Israel sob o ferrenho domínio de Roma
Roma havia estado em constante ascensão no que diz respeito à riqueza e ao
poder desde que Seleuco I e Ptolomeu I assumiram o governo sobre partes do
Império Grego duzentos anos antes (em 323 a.C., quando Alexandre, o
Grande, faleceu). Nos anos iniciais do primeiro século a.C., Roma havia se
tornado a força militar e política dominante em sua parte do mundo. Em 63
a.C., Pompeu Magno à frente de seu exército entrou em Jerusalém
marchando a fim de também incluir Israel no Império Romano, iniciando
uma presença romana de quase 500 anos neste local. Roma optou por
governar Israel indiretamente, por meio de reis e governadores fantoches que
cooperavam (e, portanto, eram condescendentes): o último dos asmoneus,
Herodes, o Grande, e seus descendentes e, por fim, uma série de procuradores
ou administradores de prefeitura designados por Roma, incluindo Pôncio
Pilatos. O governo romano (e não os judeus!) também designava o sumo
sacerdote do templo para sua importante posição.
A frustração e a raiva que Israel sempre sentia em relação aos seus
dominadores pagãos agora encontrava um novo alvo em Roma, o mais
poderoso e brutal de todos eles. Muitos que buscavam compreensão na Torá
agora identificavam Roma com a visão do profeta Daniel da última e pior das
quatro “bestas” que saíam do mar: “Ali diante de mim estava um quarto
animal, terrível, assustador e muito forte. Tinha grandes dentes de ferro,

esmagava e devorava suas vítimas e pisoteava tudo o que restava. Era
diferente de todos os animais que apareceram antes dele” (Dn 7.7). Isso de
fato combinava com o modus operandi de Roma em seu império. Os romanos
governavam por meio da força, do medo e da intimidação, pisoteando as
sensibilidades culturais dos povos conquistados, tributando-os até a penúria,
forçando goela abaixo seu próprio tipo de cultura helenista a judeus
intransigentes e impondo punições brutais a qualquer um que se opunha à sua
vontade.
Sob esse regime opressivo, o ódio racial pelos gentios se intensificou em
Israel. Ele se alastrou para incluir o ódio a qualquer judeu que colaborasse
com Roma, incluindo muitos dos sacerdotes e cobradores de impostos, bem
como o rei designado por Roma, Herodes, e seus comparsas. Ficava cada vez
mais intenso o anseio do povo comum para que Deus voltasse a eles e
governasse o mundo a partir de Jerusalém. De tempos em tempos, esse zelo
por um novo reino a ser governado por Deus irrompia em atos locais de
rebelião contra os odiados usurpadores romanos. Estes eram sufocados pronta
e violentamente, terminando com crucificações em massa dos pretensos
rebeldes, uma exibição horrenda do preço a ser pago por opor-se a Roma.
Ainda assim, Israel continuou sendo uma província teimosa e intransigente
do império por quase um século antes do nascimento de Jesus e ao longo de
um século depois. Durante esse período, cerca de dez a doze movimentos
revolucionários surgiram em torno de uma figura messiânica ou quase-
messiânica.
3
Assim, o Israel a que Jesus veio era uma nação em que tanto esperanças
quanto temores eram intensos, até mesmo apaixonados. As pessoas estavam
cansadas da sujeição a dominadores pagãos, cheias de anseio pela vinda do
reino de Deus e prontas a agir para ajudar a introduzi-lo.
A esperança de Israel pelo reino
As pessoas em Israel consideravam a história constituída de dois períodos
muito distintos: a era presente e a era vindoura. Na era presente, que havia
começado com a rebelião de Adão contra o governo de Deus, toda a criação

havia sido maculada pelo pecado. De modo inevitável, portanto, o mal
continuaria florescendo no mundo em toda a era presente, mesmo entre o
próprio povo divino de Israel, que havia sido chamado para fornecer a
solução para esse mal. Contudo na era vindoura, Deus interviria para
purificar e renovar a sua criação. Essa renovação começaria com Israel;
muitos cidadãos desta nação ainda estavam no Exílio entre os pagãos e/ou
afastados de Deus por causa de seu pecado. Assim, antes que esse grande ato
de libertação pudesse ocorrer, Deus precisaria lidar com o pecado de Israel.
4
Muitos entre os judeus acreditavam que a noite do Exílio ficaria mais escura
até que Deus trouxesse o seu juízo final sobre seu povo. Esse juízo seria
como a hora mais escura da noite antes do amanhecer ou como as dores do
parto antes do nascimento. Depois o dia da renovação de Deus irromperia,
um novo mundo nasceria e Israel seria um povo perdoado, purificado e
renovado.
Por meio dessa nação, recém-preparada para a sua tarefa, Deus então
estenderia as bênçãos de redenção e restauração até mesmo às nações gentias
vizinhas. Em seguida a redenção iria mais longe, até que Deus tivesse
retomado para si mesmo todo o mundo, incluindo a criação não humana.
Tudo isso ocorreria nos últimos dias da história: o Espírito de Deus seria
derramado sobre o seu povo para tornar todas essas coisas possíveis, e a
presente era maligna chegaria ao fim. Deus mesmo corrigiria as coisas. Ele
agiria com poder para restaurar toda a criação e toda a humanidade para
viverem novamente sob seu governo gracioso. Ele salvaria sua criação das
destruições do pecado, de Satanás, da dor e da morte.
Essa divisão da história em duas eras estava arraigada nos escritos dos
profetas do Antigo Testamento. Com os profetas, o povo de Israel aprendeu
que Deus não abandonaria seu propósito original para a criação nem sua
aliança com seus servos. Nos últimos dias da história, Deus visitaria a terra
para restaurar o seu governo cósmico. Ele realizaria uma salvação abrangente
do mal em que o conhecimento de Deus, sua justiça e sua paz encheriam a
terra. Essa salvação começaria com Israel e, em seguida, todas as nações
seriam reunidas a Israel.
Alguns entre os judeus acreditavam que, em uma época dessas, as nações

gentílicas iriam finalmente reconhecer o Deus de Israel como seu próprio rei
e viver com satisfação sob o seu governo (Is 49.6). Muitos mais, no entanto,
tendiam a um tema profético diferente nas Escrituras. Eles defendiam que
Israel estava destinado a ser o governante daqueles que anteriormente haviam
dominado os judeus: Israel conquistaria e subjugaria os gentios; estes ou
serviriam a Israel voluntariamente ou seriam destruídos no juízo de Deus (Is
60.12,14). Os longos anos de humilhação de Israel haviam gerado tanto ódio
pelos opressores pagãos que a nota dominante que soava em Israel não era
que as nações afluiriam a Sião para aprender o caminho de Deus (Is 2.3). Em
vez disso, Israel esperava que as nações fossem despedaçadas como vasos de
barro (Sl 2.9). Naquele dia, aqueles que ainda se recusassem a reconhecer o
governo de Deus enfrentariam sua ira incontida. Para se vingar, Deus
destruiria os opressores que durante tanto tempo haviam tentado impedir que
Israel lhe servisse de acordo com a sua aliança. E, assim, Deus libertaria seu
povo.
Esse ato poderoso de libertação seria realizado por um messsias (uma
palavra hebraica que significa “ungido”, traduzida pela palavra grega
“Cristo”). O agente divino de redenção seria um rei ungido que introduziria o
reino renovado de Deus. Talvez o libertador fosse descender da própria
linhagem real de Davi e libertar a nação conduzindo o seu povo contra os
romanos no campo de batalha. Talvez ele fosse uma figura sacerdotal que
primeiro restauraria Israel à adoração pura. E alguns acreditavam que a obra
redentora de Deus seria realizada por mais de um messias.
5 Havia muitas
noções conflitantes do que a nação poderia presenciar quando Deus
finalmente enviasse o seu mensageiro para libertá-los. Mas qualquer noção de
um messias sofredor estava praticamente ausente (Is 53.3; cf. Lc 24.25).
A imagem que melhor capturava a expectativa de Israel era “o reino de
Deus”. Israel ansiava por um dia quando não haveria “rei a não ser Deus”. A
Terra Santa, pisoteada e profanada por pagãos, seria purificada de modo que
Israel novamente pudesse viver em comunhão com o SENHOR. Ele voltaria ao
templo que havia abandonado e mais uma vez habitaria entre o seu povo (Ml
3.1). A nação seria libertada de sua escravidão a opressores pagãos, do
mesmo modo que havia sido libertada do Egito e da Babilônia. O governo de

César em Roma e de seus reis e sacerdotes fantoches em Israel seriam
eliminados, e o governo de Deus corrigiria as coisas. O reino vindouro
significaria a libertação de ditames culturais estrangeiros e um endosso da
condição de Israel como o povo eleito de Deus. Significaria a reforma do
povo em obediência e fidelidade para com Deus à medida que este
derramasse o seu Espírito sobre ele e “circuncidasse o seu coração” (Dt 30.6),
a fim de que pudesse obedecer à Torá. Judeus de gerações passadas que
haviam permanecido fiéis a Deus durante os muitos anos de Exílio e
escravidão de Israel seriam ressuscitados dos mortos para experimentar —
junto com o remanescente vivo — a vinda do reino de Deus (Dn 12.2). Até
esse dia, os fiéis em Israel viviam esperançosos: eles oravam, estudavam as
Escrituras, celebravam as festas para manter a esperança viva,
6 permaneciam
fiéis à Torá e continuavam prontos para a ação militar. A respeito dessas
coisas, a maioria concordava. Mas com respeito a como, quando e por meio
de quem Deus realizaria essas coisas e sobre como eles deveriam viver até
aquele dia, havia muita discordância entre os judeus.
Expressões divergentes da esperança de Israel
Os fariseus
Ao adotar uma posição de concessão para com a cultura helenista pagã, os
reis asmoneus tardios basicamente traíram o espírito original da Revolta dos
Macabeus. Para muitas pessoas em Israel, essas concessões realizadas por
seus próprios líderes judaicos serviram para intensificar um ódio já profundo
contra todos os usurpadores gentios. Embora os macabeus tivessem
expulsado seus antigos senhores gregos da Palestina, os gregos haviam
conseguido deixar como legado sua cultura pagã: perniciosa e sedutora. Essa
cultura seduzia o povo e seus líderes à apostasia. Essas coisas não deveriam
estar em Israel! Instaurou-se a esperança de que a revolução iniciada na época
do idoso Matatias e de seu filho Judas poderia ser retomada e de que todos os
vestígios de pensamento e prática pagãos poderiam ser finalmente purgados
de Israel, juntamente com os últimos dos gentios. Um desses grupos de

judeus nacionalistas, os fariseus, começou a crescer em proeminência por
volta dessa época. Os fariseus eram proeminentes nas sinagogas como
mestres da lei e de uma tradição oral que supostamente se originou com
Moisés. Inspiravam-se em uma percepção urgente da necessidade de duas
coisas: (1) mudança revolucionária na nação, separar Israel completamente
das ideias e práticas dos pagãos e (2) obediência radical à Torá entre os fiéis
de Deus.
Para os fariseus, separação e obediência eram os dois lados de uma só
verdade essencial. Assim, eles passaram a enfatizar aspectos da lei da Torá
que caracterizava o povo judeu como único. Circuncisão, leis alimentares e a
observância do sábado: tudo isso adquiriu novo significado como
demarcadores, dividindo judeus fiéis de pagãos infiéis. Muitos entre os
fariseus estavam prontos para fazer avançar essa revolução piedosa com
ativismo político e até mesmo com violência. Os fariseus tiveram êxito por
darem voz a alguns dos desejos mais profundos do povo de Israel: seu anseio
por libertação, sua lealdade à Torá e sua esperança de longa data de um reino
renovado em que o próprio Deus reinaria sobre seu povo.
Os essênios
Esse grupo também surgiu durante a Revolta dos Macabeus e foi
impulsionado pelo desejo de anular a assimilação e as concessões feitas com
relação à cultura helenista que ainda assolava Israel. No entanto, ao contrário
dos fariseus, para eles não bastava trabalhar no interior das estruturas da
sociedade. Os essênios optaram pelo caminho do isolamento. Visto que
acreditavam que a corrupção do helenismo havia se arraigado tão
profundamente em Israel, alcançando até mesmo o templo e o sacerdócio
(cujos membros eram designados pelos romanos), os essênios rejeitaram tudo
isso. Acreditavam que somente eles eram o verdadeiro Israel, herdeiros das
promessas bíblicas e a vanguarda do exército de libertação divino. Muitos se
retiraram para formar uma comunidade alternativa em Qumran, fora de
Jerusalém, onde estudavam as Escrituras, oravam e impingiam uma adesão
cuidadosa à Torá.

Novamente, os essênios precisam ser entendidos no contexto de sua
esperança de libertação e da vinda do reino. Eles acreditavam que sua
fidelidade à Torá traria Deus de volta para restaurar a boa sorte de Israel. Os
essênios não participavam da revolução, pois acreditavam que Deus voltaria
em sua própria época, enviando um messias sacerdotal e real para liderá-los
em uma guerra contra gentios e judeus infiéis, os “filhos das trevas”. Essa
época, acreditavam, estava muito próxima. Quando chegasse, eles estariam
prontos para se levantar e matar os inimigos pagãos de Deus. Mas até essa
época, tomaram o caminho quietista do isolamento, pureza ritual e oração.
Os saduceus e os sacerdotes
Eram os mestres oficiais da lei e os representantes formais da religião judaica
em sua expressão dominante. Juntamente com os fariseus, eram os membros
do conselho governante, o Sinédrio. Visto que dependiam do favor dos
romanos para obter e manter suas posições de influência na sociedade, os
sacerdotes e os saduceus certamente não tinham o espírito revolucionário dos
fariseus ou dos essênios. Também não tinham o anseio por mudança da
maioria dos judeus (cf. Jo 11.48). O poder de que dispunham havia sido
estabelecido precisamente porque colaboravam com os romanos e, assim,
tinham muito boas razões para manter o status quo.
Os zelotes
Não é tão fácil definir esse último grupo quanto os outros. Mais do que uma
organização, eles eram uma subcultura na nação, um grupo representativo de
pessoas com interesses distintos e incluindo muitos entre os fariseus que eram
zelosos por Israel e estavam dispostos a empunhar armas em uma revolução
violenta. Os zelotes se inspiravam no relato do sacerdote idoso Matatias, o
iniciador da Revolta dos Macabeus. Ele “ardia com zelo pela lei” e reuniu à
sua volta homens clamando: “Todo aquele que é zeloso pela lei e apoiar a
aliança, venha e siga-me!” (1Mc 2.26,27, NRSV; cf. Nm 25.6-15). Os zelotes
deram continuidade a essa tradição: eram fiéis à Torá, se opunham

ferozmente a fazer concessões à cultura pagã, adotavam o uso de violência
para atingir seus fins e estavam dispostos a ser martirizados pela causa, se
fosse necessário.
Na época de Jesus, havia muitos grupos de zelotes em Israel, ávidos por
participar de revoltas armadas a fim de libertar o seu povo e purificar a terra e
o templo da profanação pagã. Os membros de um desses grupos eram
chamados de sicários, “homens-do-punhal”, pois escondiam facas sob suas
vestimentas para matar líderes judeus infiéis. Frequentemente, esses bandos
de revolucionários eram liderados por alguém que afirmava ser o messias.
Inevitavelmente, as autoridades romanas aniquilavam bandos desse tipo,
crucificavam o “messias” e puniam cruelmente os seus seguidores. Esse foi o
destino de Judas da Galileia e seu grupo em 6 d.C. e de tempos em tempos, o
de outros (Mc 13.22; At 5.36,37). Um dos próprios apóstolos de Jesus é
identificado nas Escrituras como Simão, o zelote (Lc 6.15).
As pessoas comuns
A maioria dos judeus desse período não pertencia a qualquer grupo.
7 Cerca
de meio milhão de pessoas vivia em Israel, com talvez outros três milhões
espalhados pelo Império Romano. A maioria ansiava pelo dia em que Deus
voltaria para redimir o seu povo de seus opressores pagãos. Eles, então,
estariam livres para obedecer à Torá e adorar a Deus num templo purificado
em uma terra purificada. O Messias prometido era o foco de seu anseio: até a
sua vinda, buscariam ser fiéis a fim de que Deus apressasse o dia. Eles
tentariam aprender a respeito da Torá na sinagoga e obedecer a ela da melhor
maneira possível. Celebrariam as festas em suas próprias cidades e às vezes
quiça em Jerusalém. Orariam, cumpririam as leis alimentares e o sábado e
circuncidariam seus bebês do sexo masculino. E aguardariam com esperança.
No contexto dessa fervorosa expectativa, um jovem de Nazaré, o filho de
um carpinteiro, anunciaria que o reino de Deus havia chegado a Israel e
estava agora mesmo presente nele.
1 Para duas excelentes análises do período intertestamentário, veja N. T. Wright, The New

Testament and the people of God (London: SPCK, 1992), p. 145-338; e Emil Schürer, The history of
the Jewish people in the age of Jesus Christ (175 B.C.-A.D. 135), G. Vermes; F. Millar; M. Black,
rev./orgs. (Edinburgh: T&T Clark, 1973–1979), 2 vols. No vol. 1, Schürer trata da história política dos
judeus de 175 a.C. até 135 d.C.; e no volume 2, trata das instituições e teologia judaicas durante o
mesmo período.
2 Veja P. R. Trebilco; C. A. Evans, “Diaspora Judaism”, in: Craig A. Evans; Stanley E. Porter, orgs.,
Dictionary of New Testament background (Downers Grove: InterVarsity, 2000), p. 281-96.
3 Veja N. T. Wright, The New Testament and the people of God, p. 170-81.
4 Ibidem, p. 272-9.
5 Há muito debate em torno das expectativas messiânicas dos judeus desse período. Nem todas as
expectativas do reino vindouro de Deus se concentravam em um messias. Além disso, os messias eram
retratados de diversas maneiras: às vezes uma figura real, às vezes uma figura sacerdotal; alguns
esperavam um único messias, outros esperavam dois; às vezes, o messias era uma figura humana; às
vezes, divina. Veja N. T. Wright, The New Testament and the people of God, p. 307-20; L. W. Hurtado,
“Christ”, in: Joel B. Green; Scot McKnight; I. Howard Marshall, orgs., Dictionary of Jesus and the
Gospels (Downers Grove: InterVarsity, 1992), p. 107.
6 Três grandes festas de peregrinação eram celebradas todos os anos em Jerusalém: Páscoa,
Pentecostes e Tabernáculos. Todas tinham conotação política e estimulavam a esperança de livramento
à medida que os judeus celebravam sua libertação do Egito e sua dádiva da terra. Outras festas eram
celebradas nas cidades e povoados: Yom Kippur (Dia da Expiação, Lv 16), Rosh Hashanah (“Início do
Ano”, Dia de Ano Novo, perto do equinócio de outono em alguns calendários, como em 1Rs 8.2),
Hanucá (1Mc 4.52-59) e Purim (Et 9.20-32). Cf. David Wenham; Steve Walton, Exploring the New
Testament: a guide to the Gospels and Acts (Downers Grove: InterVarsity, 2001), p. 35-6.
7 Na época do nascimento de Jesus, o número de fariseus era de apenas seis mil, o de essênios, cerca
de quatro mil, e o de saduceus e sacerdotes, cerca de vinte mil (Wright, The New Testament and the
people of God, p. 209).

A vinda do Rei
Redenção realizada
Não conseguiremos compreender o significado da história de Jesus enquanto
não começarmos a ver que ela é na verdade o evento culminante da grande
história da Bíblia, a crônica da obra de Deus na história humana. Quando sua
boa criação foi corrompida pela rebelião humana, Deus imediatamente deu
início a uma missão de salvamento. Ele a havia criado e, por isso, ela
pertencia a ele por direito. Agora iria redimi-la, comprá-la de volta para que
pudesse ser restaurada ao que sempre tencionara para ela. O Antigo
Testamento conta a respeito da ação de Deus entre o povo de Israel para
avançar em direção a esse objetivo, sobre seus primeiros atos de redenção e
restauração e sobre suas repetidas promessas de que um dia ele concluirá para
toda a criação o que iniciou com essa única pequena nação. No propósito de
Deus, por fim os próprios céus e terra serão renovados e restaurados. Em
Jesus Cristo, essa renovação e restauração é revelada em sua forma final
como o reino de Deus.
Em sua vida, Jesus nos mostra com o que a salvação se parece: o poder de
Deus para curar e renovar está vividamente presente em todas as suas
palavras e ações. Em sua morte, Jesus realiza essa salvação: na cruz, ele
guerreia contra os poderes do mal e os derrota. Em sua ressurreição, Jesus
abre a porta à nova criação — e em seguida deixa essa porta aberta e nos
convida a nos unirmos a ele. Evangelho significa “boas-novas/boa notícia”, e
esta é a melhor notícia que pode haver: em Jesus, o reino de Deus chegou!
A boa notícia foi inicialmente espalhada de forma oral após Jesus ter sido
ressuscitado dos mortos e o Espírito ter vindo sobre seus seguidores no
Pentecostes. Muitas histórias sobre a vida, a morte e a ressurreição de Jesus
eram contadas e transmitidas à medida que esses seguidores (a igreja

primitiva) tentavam levar a boa notícia aos seus vizinhos e àqueles que
encontravam em suas viagens. Logo, muitas dessas histórias foram
registradas e começaram a ser compiladas em narrativas mais completas
acerca da vida de Jesus. Ao menos quatro autores aceitaram esse desafio,
escrevendo os livros que chamamos de Mateus, Marcos, Lucas e João.
Chamamos esses livros de “Evangelhos”
1 porque o seu propósito principal é
contar a boa notícia a respeito de Jesus: nele, o novo dia de Deus finalmente
irrompeu.
Os Evangelhos não são como biografias contemporâneas; eles não tentam
fornecer um relato cronológico exato dos acontecimentos da vida de Jesus.
Antes, cada autor do Evangelho lança a luz da boa notícia sobre uma situação
histórica em particular, selecionando acontecimentos das histórias de
testemunhas oculares do que Jesus afirmou e fez. Cada evangelista interpreta
esses acontecimentos à luz das necessidades de seu próprio momento na
história, organizando os acontecimentos para comunicar um tema em
particular. Assim, os Evangelhos variam de acordo com os contextos e
propósitos diferentes dos autores. O Espírito Santo certamente moveu esses
autores humanos para que fornecessem um relato fidedigno e um testemunho
convincente acerca da obra de Deus em Jesus. No entanto, também podemos
detectar em seus escritos tanto os processos normais de escrita histórica
quanto os interesses particulares e pessoais dos autores.
Visto que a organização dos Evangelhos não é simplesmente cronológica,
antes mais episódica e temática, e visto que cada Evangelho difere dos outros
de muitos modos, é difícil simplesmente narrar a história de Jesus. No
entanto, sua estrutura básica é clara. Depois de seus primeiros anos em
Nazaré (sobre os quais pouco sabemos), Jesus inicia um ministério itinerante
na Galileia. Em suas palavras e ações, ele revela o reino vindouro de Deus. À
medida que mais pessoas passam a ouvir a respeito desse profeta
revolucionário de Nazaré, o grupo de seguidores dele aumenta ainda mais
despertando cada vez mais a atenção dos líderes judaicos (em sua maioria,
hostis). Ele decide ir à própria Jerusalém, centro tanto da nação quanto da
oposição mais violenta ao que ele tem dito e feito. Em Jerusalém, Jesus é
preso, julgado e — embora o juiz o declare inocente de qualquer crime —

crucificado. Depois disso, ele é ressuscitado dos mortos. A morte e
ressurreição de Jesus constituem o clímax de seu ministério, demonstrando
que, embora todos os poderes do mal tenham tentado destruí-lo e derrotar
seus propósitos, é ele quem os derrotou: sua vitória sobre o pecado e a morte
dá início ao reino de Deus.
O restante do ato 4 contará essa história de Jesus. Geralmente se
pressupõe que Marcos foi o primeiro Evangelho a ser escrito. Logo, para
contar a boa notícia, usaremos essa estrutura básica, com referências
apropriadas aos outros Evangelhos.
Em sua vida, Jesus torna conhecido o reino de Deus
A expectativa judaica do reino de Deus
Toda a missão de Jesus se volta ao tema central do reino de Deus.
2 Ele
proclama isso em suas primeiras palavras no Evangelho de Marcos: “O
tempo chegou. O reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas
boas-novas!” (Mc 1.15). Mas Jesus continua: não somente o reino de Deus
finalmente chegou a Israel, o reino veio nele mesmo, ele afirma (Lc 4.18,21).
Ele, Jesus de Nazaré, foi enviado pelo Pai para um só propósito: tornar
conhecida a boa notícia do reino (4.43).
É surpreendente que dois mil anos depois desse anúncio espantoso, muitos
cristãos que desejam sinceramente seguir a Jesus saibam tão pouco a respeito
do “reino” que estava no âmago de seu ministério. Como vivemos em
democracias ocidentais modernas, toda a noção de reino é estranha à nossa
experiência cotidiana. Mas se quisermos verdadeiramente compreender o
anúncio extraordinário que Jesus faz para explicar o próprio propósito de sua
vida, precisamos ao menos tentar calçar as sandálias dos judeus do primeiro
século que ouvem essas palavras pela primeira vez e participar de sua
experiência. Somente assim conseguiremos compreender o que eles pensam e
sentem, que anseios são suscitados neles quando Jesus anuncia
repentinamente a chegada do reino de Deus.
Jesus não faz uma pausa para definir ou explicar a expressão “o reino de

Deus”. Aqueles a quem ele está falando estão bem familiarizados com essa
linguagem. Afinal de contas, há uma expectativa comum generalizada entre
os judeus da Palestina do primeiro século e da Diáspora de que Deus está
prestes a agir — logo, subitamente, em amor e ira e com grande poder —
para renovar sua criação e restaurar o seu reinado sobre o mundo todo. Mas
até que Deus aja, como se deve viver na expectativa desse dia? De que
maneira a vinda do reino pode ser apressada e os odiados romanos, expulsos?
O que Deus exige de seu povo?
No capítulo anterior, examinamos quatro respostas bem conhecidas a
essas perguntas: os zelotes promoviam a revolução, os saduceus faziam
concessões às autoridades romanas, os fariseus ensinavam uma separação
cultural e religiosa radical e os essênios defendiam a reclusão completa.
Quatro abordagens diferentes — e, ainda assim, elas estão ligadas por uma
aversão comum aos gentios, um profundo ódio ou ao menos cautela para com
todos aqueles que estão fora da aliança. E nesse contexto aparece Jesus, que
se recusa a adotar qualquer dessas perspectivas. Seu caminho é
espantosamente diferente: é o caminho do amor e do sofrimento, “amor aos
inimigos em vez de sua destruição; perdão incondicional em vez de
retaliação; prontidão a sofrer em vez de uso da força; bênção para
pacificadores em vez hinos de ódio e vingança”.
3
Jesus se prepara para a sua missão do reino:
seus primeiros anos, seu batismo e sua tentação
Cada autor dos Evangelhos está interessado em nos mostrar que as histórias
que ele conta a respeito da vida de Jesus devem ser entendidas como
episódios que ocorrem no contexto de uma história muito mais ampla.
Marcos, portanto, começa a história de Jesus com o ministério de João, o
Batizador (ou Batista), para nos lembrar das profecias do Antigo Testamento
do precursor que deve preparar o caminho para o Messias vindouro. O
Evangelho de Mateus volta seus olhos mais para trás, arraigando o ministério
de Jesus na história de Israel iniciada em Abraão: para Mateus, Jesus entra na
história a fim de concluir a história de Israel. Lucas vai ainda mais longe —

até Adão — para mostrar que a boa notícia a respeito de Jesus tem
significado para toda a humanidade. E João nos leva a uma época antes da
criação: Jesus é a Palavra eterna e incriada, presente com Deus desde o
princípio.
O nascimento de Jesus é a encarnação de Deus na história humana. Seu
nascimento é miraculoso: ele é gerado não pelo seu pai terreno e legal (José),
mas pelo poder do Espírito Santo no ventre da virgem Maria (Mt 1.18-23; Lc
1.26-35). Jesus nasce na linhagem de Davi e até mesmo tem o mesmo lugar
de nascimento: Belém. O anúncio de seu nascimento é feito a pastores
marginalizados:
4 “Estou lhes trazendo boas-novas de grande alegria! Essas
são boas-novas para todo o povo! Hoje nasceu um Rei-Salvador. Ele é o tão
aguardado Messias, o Senhor!” (Lc 2.10,11, paráfrase dos autores). Como
judeu, ele é circuncidado com oito dias de idade, um sinal do ingresso na
comunidade da aliança. Quando de sua circuncisão, Ana e Simeão — parte
do remanescente piedoso de Israel que aguarda esperançoso — testemunham
que esse bebê é o cumprimento das profecias de Isaías que prometem a
salvação a judeus e gentios (Lc 2.29-32,38). Jesus cresce em Nazaré com
seus irmãos e irmãs, o filho e aprendiz de um carpinteiro. Pouco se sabe
sobre esses anos, o período entre o seu nascimento e o início de sua missão
pública, exceto que a consciência de sua condição de filiação divina e de sua
missão já está começando a se desenvolver. Aos doze anos, os pais
acidentalmente o deixam para trás em Jerusalém depois da celebração anual
da Páscoa. Eles o encontram no templo. Quando sua mãe gentilmente o
repreende, ele responde: “Não sabiam que eu devia estar na casa de meu
Pai?” (Lc 2.49).
A missão pública de Jesus começa em conexão com o seu primo João
Batista (Mc 1.1-8), que se apresenta na Palestina como profeta trazendo uma
mensagem de Deus: o reino está próximo. Deus está prestes a agir, a voltar ao
seu povo, a governá-lo exatamente como os profetas do Antigo Testamento
prometeram. Seu reino será inaugurado por “Aquele que vem” e que traz
salvação e juízo. O reino de Deus está tão próximo, João afirma, que a pá que
separa o trigo (piedoso) da palha (ímpia) já está nas mãos do Messias (Lc
3.9,17). A própria tarefa de João é (como Isaías prometeu) preparar o

caminho para o rei vindouro, preparar o povo para recebê-lo (Is 40.3-5; cf. Ml
3.1; 4.5,6).
A mensagem de João é que os súditos de Deus precisam se arrepender —
abandonar o pecado e se voltar para Deus, buscando sua salvação prometida
— e ser batizados na água. Onde isso acontece é importante, visto que para
os judeus a geografia está impregnada de significado simbólico. João batiza
no rio Jordão porque foi ali que, mais de mil anos antes, Israel entrou na
Terra Prometida para se tornar a luz de Deus para as nações. A volta de João
a esse lugar sinaliza um novo começo para Israel, uma nova convocação de
Deus para cumprir essa tarefa original (há muito negligenciada). O batismo é
um símbolo vívido desse novo começo, sugerindo a purificação dos pecados.
O povo de Deus está (simbolicamente) atravessando o Jordão mais uma vez,
entrando na terra, purificado e pronto para assumir novamente sua tarefa.
Em determinado momento, entre as multidões que vieram a João para ser
batizadas, Jesus também se faz presente (Mc 1.9-11). Embora ele
(diferentemente dos outros) não precise ser purificado do pecado, Jesus se
identifica com a nação, assumindo sobre si mesmo a missão dela de se tornar
o instrumento da salvação divina para as nações (Mt 3.14,15). Enquanto ele
está sendo batizado na água, o Espírito vem visivelmente sobre ele para
equipá-lo para a sua tarefa. O próprio Pai confirma o chamado de Jesus: “Tu
és o meu Filho amado” (Mc 1.11). Essas palavras do Pai afirmam que Jesus é
o rei ungido de Israel, e está presente para inaugurar o reino de Deus. O
Espírito vai capacitá-lo para realizar a obra divina de salvação.
Antes de iniciar essa obra, o Espírito conduz Jesus ao deserto para um
confronto com Satanás (Mt 4.1-11; Mc 1.12,13). Essa é uma história de
batalha espiritual, mas não a respeito de uma alma individual que busca
santidade pessoal. À medida que lemos a história, precisamos nos lembrar
das diferentes perspectivas no Israel do primeiro século a respeito de como o
reino de Deus deveria vir, pois é disso que trata a tentação de Jesus.
Satanás mostra a Jesus três caminhos diferentes que ele poderia tomar
como o Messias: podemos nos referir a eles como (1) o caminho do
populista, (2) o caminho do operador de milagres e (3) o caminho do

revolucionário violento. Se tomasse o primeiro caminho, transformando
pedras em pão, Jesus poderia usar esse poder para se tornar um messias
populista. Poderia dar às pessoas o que querem, satisfazendo sua necessidade
urgente de simples alimento, apresentando-se como o líder de uma revolução
popular. As pessoas certamente exigiriam que um provedor desse tipo fosse o
seu rei. Outra possibilidade é que Jesus poderia se tornar um operador de
milagres messiânico, jogando-se da parede do templo e forçando Deus a agir
de modo espetacular para salvá-lo. As pessoas ficariam completamente
perplexas e seguiriam Jesus em tudo que fizesse e dissesse depois disso,
compelidas pelo puro sentimento de estupefação. Ou ainda, Jesus poderia se
tornar um messias político no estilo dos zelotes, usando a violência e a
coerção como um atalho militarista ao trono. Mas fazer isso significaria
concordar com Satanás, adotar o programa de domínio dele, prostrar-se
diante dele.
Jesus vê que todos esses caminhos na verdade começam com Satanás, e
ele se recusa a alterar sua própria missão para se conformar a expectativas
populares do que um messias de Deus deve ou não deve ser. Em vez disso,
ele escolhe a estrada difícil para o reino: a estrada do serviço humilde, do
amor doador e do sofrimento sacrificial. O caminho de Jesus é o caminho da
cruz. Capacitado e guiado pelo Espírito Santo, e resoluto em seu senso de
chamado como o Messias, Jesus está pronto para iniciar sua missão que
recebeu do Pai.
Jesus inicia sua missão do reino na Galileia
A missão de Jesus começa de modo humilde. Ele vai de lugar a lugar na
província do norte da Palestina chamada Galileia, muitas vezes perto da
cidade de Cafarnaum. Em suas palavras e ações, ele anuncia o reino de Deus
e começa a reunir um grupo de seguidores, o núcleo de uma comunidade do
reino. O ensino e as ações de Jesus despontam com tal autoridade que logo
uma grande multidão começa a se formar e a segui-lo em suas viagens. Mas
nem todos os que vêm a Jesus gostam do que ouvem: a oposição contra ele
aumenta entre os líderes dos judeus; até mesmo alguns de seus próprios

seguidores o abandonam (Jo 6.66).
5
JESUS ANUNCIA A CHEGADA DO REINO
Enquanto João Batista enfatizava o juízo de Deus contra o pecado e a
necessidade de arrependimento em preparação para a vinda do reino, Jesus
proclama a boa notícia: o reino de Deus chegou (Mc 1.14,15). A palavra
grega aqui para “boas-novas” (euangelion, da qual vem a palavra
“evangelho” em suas muitas formas) é a palavra comumente usada naquela
cultura para o tipo de anúncio que traz grande alegria. Poderia ser notícia de
um casamento, o nascimento de um filho, uma vitória militar ou uma
entronização iniciando uma nova era de paz.
6 Jesus anuncia as boas-novas de
que o poder de Deus para salvar sua criação chegou. Deus entrou na história
humana com amor e poder para libertar, para curar e para renovar o mundo
todo.
7 Esse não é o tipo de anúncio que seria relegado à seção religiosa da
Time ou Macleans; isso é matéria de capa! “Deus agora está agindo em amor
e com poder por meio de Jesus e pelo seu Espírito para restaurar toda a
criação e toda a vida humana para viver novamente sob o reinado
benevolente do próprio Deus.” Deus está se tornando rei novamente!
8
Há uma imagem no livro de Isaías (52.7-12) que se tornou tão preciosa
para os judeus afligidos da Palestina do primeiro século que eles a
reconhecem instantaneamente. O profeta Isaías estava escrevendo (quase
seiscentos anos antes da época de Jesus) ao seu povo confinado em miserável
exílio de seus lares, mantido cativo na Babilônia pagã. Ele descreve um dia
vindouro em que Israel será livre outra vez e retornará aos milhares da terra
da opressão à sua amada Palestina e à cidade santa de Jerusalém. Todos os
que tinham ficado para trás nessa cidade enquanto o restante era compelido
ao Exílio agora ficam na ponta dos pés, vigiando dos muros e torres de
Jerusalém. Eles procuram pelo arauto que correrá à frente da multidão para
proclamar a notícia há muito esperada do fim do Exílio e do início do reinado
renovado de Deus. O povo vê esse mensageiro enquanto ainda está bem
longe, percorrendo os montes que guardam a entrada da cidade. Logo eles
conseguem até ouvir sua voz, inicialmente fraca, gradualmente mais alta,

finalmente bradando a mensagem: “Deus é Rei! Ele traz salvação e paz. Deus
é vitorioso. Ele está retornando a Sião para governar sobre o mundo todo!”.
Nisso, os que vigiam dos muros e torres da cidade também erguem sua voz,
gritando ao arauto, uns aos outros e aos exilados que estão voltando,
chorando e exclamando de alegria, bradando o grito de vitória: “Deus volta a
Sião! O SENHOR, nosso Rei, traz salvação e paz!”.

Figura 20: Palestina na época de Jesus

E agora, centenas de anos após o fim do Exílio na Babilônia, as palavras
presas em um antigo pergaminho do profeta estão soando novamente nos
ouvidos dos judeus, pois o arauto de Isaías chegou. Embora anuncie palavras
familiares do pergaminho, ele não fala como um homem que os lembra de
uma história antiga. Seu nome é Jesus e ele anuncia em sua própria voz, com
ousadia e autoridade: “Deus está voltando para governar!”.
Algumas mensagens podem ser recebidas meramente como informação.
Outras, como “o prédio está pegando fogo”, exigem uma resposta imediata de
qualquer um que a ouve — menos do que isso seria ridículo. É impossível
permanecer indiferente uma vez que se ouviu de fato a notícia de que Deus
está finalmente agindo para inaugurar o seu reino universal. Essa é uma
mensagem que todas as pessoas precisam ouvir e exige uma resposta. Jesus
chama aqueles que o ouvem pela primeira vez a “se arrepender e crer” e em
seguida simplesmente diz: “Sigam-me” (Mc 1.15-17).
O chamado de Jesus para se arrepender e crer pode ser parafraseado
assim: “Afastem-se de suas visões falsas do mundo e aceitem a realidade e a
presença do reino vindouro de Deus em mim. Vocês podem não ver o poder
do reino de Deus que cura irrompendo na história, mas podem crer que em
mim o poder libertador de Deus está agora presente. Abandonem seu antigo
modo de vida e creiam em mim para uma nova maneira de viver”. Em
seguida Jesus chama os que se arrependeram e creram a “segui-lo”. De forma
semelhante, na época de Jesus, um discípulo abandonaria seus próprios
planos de vida para seguir e viver com um rabino, aprendendo a Torá e todos
os caminhos do rabino. Ao escolher essas palavras, Jesus faz um convite que
é familiar aos seus ouvintes judeus: “Venham. Juntem-se a mim. Aprendam
de mim. Abandonem o seu próprio modo de vida. Façam o que eu faço.
Aprendam a viver como eu vivo”. No entanto, embora essas palavras sejam,
de um modo, bastante familiares aos judeus do primeiro século que as
ouvem, de outro, são estranhas.
9 Pois Jesus é muito mais do que um rabino;
ele é Senhor e Cristo. A vida daqueles que optam por ouvir e seguir a Jesus
não deve se concentrar na Torá, mas no próprio Jesus. Seus discípulos devem
ser leais e devotados totalmente a ele. Poucas imagens expressam mais
vividamente o compromisso total e a lealdade absoluta que Jesus exige: a

lealdade ao reino de Deus se expressa na lealdade a Jesus.
Simão e André, seguidos por Tiago e João, são os primeiros a responder
ao chamado surpreendente de Jesus à sua vida. Com esses poucos, começa a
se formar uma comunidade do reino (Mc 1.16-20).
JESUS REVELA O REINO POR MEIO DE SUAS OBRAS PODEROSAS
A reivindicação que Jesus faz de ser o Messias do reino de Deus logo é
validada por alguns atos extraordinários que revelam o poder salvador de
Deus operando nele. As pessoas testemunham milagres de cura, expulsão de
demônios, poderes da natureza sendo subjugados à vontade de Jesus, a
própria morte se desfazendo e devolvendo a vida (Mc 1.21-34,40-45).
Embora operadores de milagres e exorcistas não sejam desconhecidos na
época de Jesus, a abrangência e o poder absolutos dos feitos dele anunciam
que algo inédito, um novo poder, está irrompendo na história. Quando os
discípulos de João Batista vêm a Jesus indagando se ele realmente é o
Messias, Jesus envia de volta uma resposta gentil. Ele indica o que tem feito.
“Voltem e contem a João o que vocês viram e ouviram: os cegos veem, os
paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos são
ressuscitados, e as boas-novas são pregadas aos pobres” (Lc 7.22). Isso é
evidência clara de que o poder de cura do reino de Deus se fez presente na
terra e confirma o próprio papel de Jesus como o rei ungido de Deus. Assim,
quando os fariseus mais tarde acusam Jesus de fazer essas coisas pelo poder
de Satanás, Jesus faz uma repreensão contundente: “se é pelo dedo de Deus
que eu expulso os demônios, então o reino de Deus chegou a vocês” (Lc
11.20). Não surpreende que o primeiro milagre relatado em Marcos seja
expulsar um espírito maligno (Mc 1.21-28), pois Jesus veio para destruir a
obra do diabo (1Jo 3.8).
Todos os “feitos de poder” de Jesus (Mc 6.2,5, NRSV) de fato são
evidências inconfundíveis do poder libertador de Deus operando por meio
dele. Quando Jesus cura o cego (Lc 18.35-43), o paralítico (Mc 2.1-12), o
mudo e surdo (7.31-36) e os leprosos (com alguma enfermidade de pele; Lc
17.11-19), as pessoas veem o poder de cura e renovação divina fluindo para

dentro da história humana para acabar com o reinado de enfermidade e dor.
Quando Jesus acalma o mar (Mc 4.35-41), alimenta os famintos (8.1-10) e
prepara uma pesca maravilhosa para pescadores exaustos (Lc 5.1-11), ele
demonstra o poder de Deus para renovar e restaurar uma criação
amaldiçoada. Quando Jesus ressuscita Lázaro (Jo 11), o filho da viúva (Lc
7.11-17) e a filha de Jairo (Mc 5.21-43), as pessoas veem o poder de Deus
conquistando até mesmo a morte. Jesus não somente exibe o poder de Deus
para libertar a humanidade dos estragos causados pelo mal, pelo sofrimento e
pela morte; ele também mostra Deus operando para curar toda a criação.
Esses milagres são como janelas pelas quais podemos vislumbrar um cosmo
renovado, do qual Satanás e seus demônios foram expulsos. Doença e dor
não devem mais existir, a própria morte será destruída para sempre e a
criação restaurada à sua beleza e harmonia originais. Nenhum vestígio do
pecado ou dos efeitos deste desfigurarão ou corromperão a nova criação de
Deus.
AS FONTES DO PODER DE JESUS SÃO O ESPÍRITO SANTO E A ORAÇÃO
Após um dia exaustivo curando pessoas e expulsando demônios, bem cedo na
manhã seguinte Jesus encontra um lugar solitário para orar (Mc 1.35). Lucas
nos informa que Jesus “frequentemente” se retira para orar e, às vezes, ora a
noite toda (Lc 5.16; 6.12).
10 Esses relatos de oração nos levam ao âmago do
ministério de Jesus e ao segredo de seu poder: um relacionamento
intensamente íntimo com Deus, como de um filho com seu pai, e a atuação
do Espírito Santo em Jesus e por meio dele.
Jesus executa sua missão em comunhão íntima com Deus, dirigindo-se a
ele como Abba, “Pai” (Mc 14.36; Jo 17.1-3). Abba é um termo aramaico,
uma palavra da vida familiar usada para expressar a intimidade especial que
pode existir entre membros próximos da família. “Pai” era somente um dos
vários títulos pelos quais Israel conhecia Deus, e era extremamente incomum
que judeus se dirigissem a ele com termos tão íntimos. Sua reverência
profunda normalmente não permitia tal familiaridade com o SENHOR, o
Criador do céu e da terra, o Senhor dos exércitos celestiais, o Rei divino de

Israel. Assim, chama particularmente a atenção que, quando Jesus se
relaciona com Deus, essa linguagem muito íntima, como a usada entre um pai
querido e seu filho amado, se torna o termo principal para se referir a Deus.
O Pai responde ao seu Filho muito amado por meio da obra poderosa de
seu Espírito. De fato, o reino vem à medida que o Espírito opera em resposta
à oração. Na missão de Jesus, a oração é “o meio pelo qual os homens se
sujeitam ao poder e influência do Espírito”.
11 O Espírito está operando em
Jesus e por meio dele já desde os primórdios de sua vida. Ele é concebido no
ventre de Maria pelo poder do Espírito. No batismo de Jesus, o Espírito é
derramado sobre ele, e Jesus logo anuncia na sinagoga em Nazaré que o
Espírito está sobre ele para capacitá-lo para a sua missão (Lc 4.18,19). Jesus
realiza a sua missão no poder do Espírito Santo (At 10.38). Ele contraria a
suspeita dos fariseus de que o poder operando nele poderia ser demoníaco:
“se é pelo Espírito de Deus que expulso os demônios, então o reino de Deus
chegou a vós” (Mt 12.28). Onde o Espírito Santo está operando, ali o reino de
Deus chegou. James Dunn faz a afirmação notável de que “não é tanto o caso
de onde Jesus está, ali está o reino, quanto de onde o Espírito está, ali está o
reino”.
12 Jesus mantém uma comunhão íntima com o Pai em oração e isso
libera o poder do Espírito para curar e renovar.
JESUS PROVOCA OPOSIÇÃO À SUA MISSÃO DO REINO
Quando Jesus retorna a Cafarnaum, entre a multidão reunida ali para ouvi-lo
estão alguns dos líderes judeus, fariseus e mestres da lei, vindos inclusive da
distante Jerusalém para averiguar a ortodoxia desse novo movimento do
“reino” (Mc 2.1-12; Lc 5.17-26). E o que esses homens veem e ouvem os
perturba imensamente. Em uma série de episódios, Marcos narra o embate
que se desenvolve entre Jesus e esses líderes céticos a respeito de várias
práticas judaicas tradicionais. Em cada encontro, Jesus desafia o status quo,
anunciando e incorporando uma visão radicalmente nova e diferente do reino
de Deus do que a defendida pelos guardiões reinantes da cultura e religião
judaicas. A história que ele conta é diferente de qualquer coisa que ouviram.
A história de Jesus explica a vinda do reino de Deus de um modo que os

fariseus não conseguem engolir. Eles estão procurando por um reino em que
Israel será libertado de modo súbito e com o uso da força do controle da
Roma pagã. Eles são separatistas, guardiões autodesignados da identidade
judaica, que acreditam estar sendo atacada, ameaçada pela assimilação das
pessoas à cultura pagã ao seu redor. A atenção cuidadosa no que diz respeito
às leis alimentares, ao dízimo, à observância do sábado e à escolha de
companhias de mesa “aceitáveis” — todas fazem parte da estratégia dos
fariseus para se manter puros. Eles estabeleceram uma linha demarcatória
rígida entre os judeus puros e os desprezados pagãos ou romanos, ou até
mesmo entre os judeus puros e ortodoxos e os judeus que se tornaram
contaminados por concessões culturais e religiosas, aqueles que não
conseguiram estar à altura do padrão de separação farisaico. Jesus desafia de
modo ousado as visões rígidas dos fariseus sobre o sábado e as leis
alimentares. Ele deliberadamente come e bebe com todos os que os fariseus
excluiriam. Mas é importante que entendamos que o desafio de Jesus não é
simplesmente uma questão de sua rejeição de símbolos culturais judaicos. O
que ele de fato rejeita é o que essas coisas passaram a representar em sua
época: separação, ódio e sede de vingança. Essas coisas não têm lugar algum
no chamado de Deus aos israelitas para amarem o seu próximo, para serem o
canal da bênção divina para as nações, para serem luz para o mundo. Contra a
compreensão profundamente equivocada defendida pelos fariseus da
identidade e vocação de Israel, Jesus sustenta o chamado missionário de
Israel. Sua recusa a se submeter às regras deles e a ver as coisas de seu modo
inflama os líderes religiosos, pois a história de Jesus do que sempre foi o
propósito de Israel mostra que a história deles é uma mentira.
Em uma série de narrativas, Marcos destaca esse conflito e a oposição à
missão de Jesus que cresce entre os líderes judeus e aqueles que os obedecem
(Mc 2.1—3.6; cf. Lc 5.17—6.11). Jesus concede o perdão de pecados a um
paralítico e em seguida o cura para ratificar sua autoridade (Mc 2.1-12). O
que tanto enfurece os fariseus aqui não é simplesmente que Jesus concede o
perdão ao homem, mas que ele faz isso “fora das estruturas oficiais, a todas
as pessoas indevidas e pela sua própria autoridade”.
13 Na visão deles, o
Templo de Jerusalém é o único lugar designado por Deus onde é possível ser

perdoado. No entanto, Jesus age pela sua própria autoridade para oferecer
essa dádiva do reino, desse modo ignorando o templo. É como se alguém
concedesse carteiras de motorista pela sua própria autoridade, afirma
Wright.
14 Obviamente, visto que (na visão dos fariseus) a dádiva de perdão
de Jesus compete com o próprio perdão de Deus, isso redunda em sua
acusação de blasfêmia.
Os fariseus também se ofendem pelo fato de que Jesus se associa com
todas as pessoas “indevidas”. Eles o interpelam: “Por que você come com
coletores de impostos e ‘pecadores’?” (Mc 2.16). Desde a época dos
macabeus (quando muitos judeus fizeram concessões significativas ao
paganismo), os fariseus têm exortado todos os que demonstram zelo pelo
governo de Deus em Israel a renovar sua santidade aplicando em suas casas
as leis de pureza com respeito ao alimento que haviam sido prescritas para o
templo. Assim, tudo que estava relacionado ao alimento — não meramente o
que alguém comia, mas também como era preparado, como as pessoas se
lavavam antes de comer e quem era bem-vindo à sua mesa — para os
fariseus, todos eles, são indicativos de santidade pessoal. Elas se tornaram
rituais destinados a manter distância entre o judeu “santo” e o “impuro” que
está do lado de fora (quer judeu, quer gentio; cf. Mc 7.2-4). Jesus desafia
essas tradições separatistas, escandalizando os fariseus ao estender sua
comunhão às próprias pessoas que eles desprezam, acolhendo aqueles que
consideram “impuros”.
O jejum também se torna uma questão controversa entre Jesus e os
fariseus (Mc 2.18-22), pois os fariseus se abstêm ritualmente de alguns
alimentos em certas ocasiões, enquanto os seguidores de Jesus não o fazem.
Para os fariseus, o jejum significa a presente condição de Israel: o povo de
Deus permanece no Exílio, sob o juízo de Deus, aguardando a vinda do
Messias de Deus para libertá-los da opressão e implantar o seu reino.
15 Jesus
simplesmente explica que ele e seus discípulos não estão jejuando porque o
reino já chegou. Enquanto o noivo não está presente, é apropriado se abster
do banquete; mas quando ele está presente, é inadequado jejuar.
Os últimos dois conflitos dizem respeito ao sábado, um símbolo crucial na
compreensão dos fariseus acerca da vinda do reino (Mc 2.23—3.6).
16 Para

eles, guardar o sábado é uma parte importante da obediência à Torá de Deus.
O sábado ajuda a distinguir Israel de seus vizinhos pagãos e prepara Israel
para a volta de Deus. Os fariseus observam atentamente para verificar se esse
homem Jesus, que afirma que o reino de Deus está chegando, ao menos
ratificará suas leis do sábado. Mas, outra vez, sua resposta é decepcionante:
Jesus desafia a compreensão separatista deles a respeito do sábado.
Entre as pessoas comuns, Jesus é (ao menos durante um período) muito
popular. Suas palavras e ações atraem a atenção das pessoas na Galileia, e
logo uma grande multidão o segue (Mc 1.33; 2.12; 3.7). No entanto, a
compreensão que as pessoas têm da missão de Jesus é quase sempre
superficial. À medida que a missão de Jesus se torna mais clara, o apoio
popular começa a diminuir (Jo 6.60-69).
JESUS FORMA UMA COMUNIDADE
No início de seu ministério na Galileia, Jesus começa a formar uma
comunidade em torno dele (Mc 1.16-20; 2.13,14). O Evangelho de Mateus,
escrito para os judeus, destaca especialmente o fato de que os primeiros
esforços de Jesus para formar uma comunidade ocorrem basicamente em
Israel.
17 Quando uma mulher cananeia (gentia) busca alívio para sua filha
possuída por um demônio, Jesus primeiro lhe diz: “Eu fui enviado somente às
ovelhas perdidas de Israel” (Mt 15.24). Após a persistência e o desafio arguto
da mulher, ele acaba expulsando o demônio (15.25-28). Aos discípulos
reunidos para participar de sua missão em seus primórdios, ele afirma: “Não
vão aos gentios, nem entrem em cidade alguma de samaritanos. Vão antes às
ovelhas perdidas de Israel” (10.5,6). Inicialmente, é difícil de entender a
intenção de Jesus, especialmente para leitores que por coincidência são
gentios. Mas quando o que ele afirma aqui é ouvido no contexto da esperança
profética de Israel no primeiro século, isso fica muito mais claro.
O povo de Israel foi escolhido para viver como nação sob o governo de
Deus, mas não conseguiu viver à altura de seu chamado, e Deus o dispersou
em juízo. Os profetas prometeram que no futuro Israel seria restaurado, seu
povo disperso, unido mais uma vez sob o reinado de Deus. Ezequiel fala a

Israel quando a nação foi julgada por Deus e está no Exílio, prometendo que
no fim dos tempos Deus novamente reunirá o seu povo e lhe dará nova vida
(Ez 37; 39.23-29). Deus designará seu servo Davi como pastor para reunir o
rebanho de Israel, que tem sido espalhado entre as nações pelo juízo de Deus
(36.23,24). Assim, quando Jesus afirma que foi enviado às ovelhas perdidas
de Israel, é isto o que ele tem em mente: o ajuntamento de Israel no fim dos
tempos começou.
18 O ajuntamento não é (ao contrário do que muitos
acreditam) uma reunião dos judeus da Diáspora à Palestina. As pessoas irão
se ajuntar, não à terra [de Israel], mas ao próprio Jesus. Com ele, por meio do
Espírito, elas participarão da vida do reino.
De acordo com os profetas, essa salvação do fim dos tempos não se
limitará a Israel, embora comece com o povo escolhido. Na literatura
profética, primeiramente Israel será renovado e depois disso as nações
(gentílicas) serão reunidas a ele, para participar de sua salvação. Uma vez que
Israel é ajuntado à terra, afirma Ezequiel, “as nações […] saberão que eu sou
o SENHOR…” (39.27,28; cf. 37.28). Isaías emprega duas imagens memoráveis
para descrever o mesmo acontecimento. Na primeira, todos os povos vêm a
Israel para participar de uma grande festa (Is 25.6-9; 55.1,2). Na segunda,
Israel se torna um farol para os perdidos, ao qual todas as nações do mundo
são atraídas. Mas essa luz brilhará somente quando Israel verdadeiramente
tiver se tornado o povo de Deus (2.2-5; 60.2,3). Para Isaías, esse é o propósito
de Deus no longo período de miséria que Israel experimenta nas mãos dos
senhores gentílicos. O povo escolhido estava exilado porque não estava
cumprindo o seu chamado de ser “luz para as nações” (42.6; 49.6).
Agora Jesus anuncia o irromper de um dia precisamente assim, o início de
uma renovação para Israel que acabará atraindo todas as nações a Deus. Essa
esperança profética está por trás das palavras que ele profere a seus discípulos
recém-reunidos: “Vós sois a luz do mundo. Uma cidade situada sobre um
monte não pode ser escondida. Nem os que acendem uma candeia a colocam
debaixo de um cesto, mas no pedestal, e assim ilumina a todos que estão na
casa. Do mesmo modo que a vossa luz resplandeça diante dos homens, para
que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai no céu” (Mt 5.14-
16).
19 Essa comunidade de discípulos do reino recém-formada à qual Jesus

fala deverá ser o início do Israel restaurado. A profecia de Isaías está sendo
cumprida: Israel está sendo renovado!
Essa comunidade começa a se formar à medida que Jesus anuncia a boa
notícia do reino e chama indivíduos a responderem com arrependimento e fé
(Mc 1.14,15). Alguns que ouvem as afirmações de Jesus são (como Maria,
Marta e Lázaro) chamados para serem leais a ele ao permanecerem em suas
casas e vilas, vivendo a vida do reino de Deus ali. Esses seguidores de Jesus
são “pela adoção da práxis dele, sua maneira de ser Israel, […] diferentes em
suas comunidades locais”.
20 Outros são chamados a deixar tudo para trás e
viajar com Jesus em tempo integral. Desse último grupo, Jesus designa doze
que passam sua vida com ele, e ele os designa como apóstolos (da palavra
grega que significa “alguém que foi enviado”; Mc 3.13-19; Lc 6.12-16).
Esses Doze, cujo número representa as doze tribos de Israel, se tornarão o
núcleo da nação renovada (Lc 22.30; Ap 21.12-14). A escolha deles realizada
por Jesus é, assim, “uma ação profética simbólica” pela qual ele descreve o
ajuntamento no fim dos tempos das doze tribos de Israel para compartilharem
da salvação do reino.
21
Os Doze são designados para um propósito duplo: (1) “para que
estivessem com ele [Jesus]” e (2) “para que os enviasse a pregar e tivessem
autoridade de expulsar demônios” (Mc 3.14,15). “Estar com” Jesus significa
observá-lo e vir a conhecer seu modo de vida, ouvi-lo e ser instruído a
respeito da vida no reino. Significa aprender acerca da comunhão íntima de
Jesus com o Pai e moldar sua própria vida de acordo com a vida dele
capacitada pelo Espírito. Eles o ouvem proclamar a boa notícia com suas
palavras e a demonstrar essa boa notícia em suas ações. Eles veem uma vida
de amor (Jo 15.9-13), obediência (17.4), alegria (15.11), paz (14.27), justiça
(Lc 4.18), compaixão (Mt 9.36), bondade e humildade (11.29) e uma
profunda compaixão pelos necessitados (Mc 2.15-17). Logo, eles
aprenderiam a incorporar esses valores em seu próprio modo de vida. Grande
parte do texto dos Evangelhos está tomada com Jesus ensinando seus
discípulos o que significa viver como cidadãos no reino que ele está trazendo.
O Sermão do Monte é o nosso exemplo mais claro da instrução de Jesus aos
seus discípulos sobre a vida no reino de Deus (Mt 5—7; cf. Lc 6.17-49). Os

Doze também são chamados a seguir Jesus, a fim de que possam participar na
missão dele pelas suas próprias ações. Ele logo os envia a praticar a mesma
missão do reino em que ele próprio está envolvido (Mc 6.7-13; Lc 9.1-9).
Para a comunidade dos discípulos, estar em comunhão com Jesus significa
participar ativamente na missão dele.
JESUS ACOLHE PECADORES E EXCLUÍDOS
Nessa comunidade do reino, Jesus inclui os pobres, os enfermos e os
perdidos: todos que são marginalizados em Israel.
22 Ele não ignora
inteiramente os fariseus e líderes religiosos (eles são bem-vindos se quiserem
vir), que muitas vezes o caracterizam como um “amigo de coletores de
impostos e ‘pecadores’” (Mt 11.19; cf. Lc 7.36; 14.1-24). Comparando-se a
um médico (que trata os doentes e não os saudáveis), Jesus explica por que
seu ministério se dirige basicamente a pecadores e não aos “justos”. Ele veio
“buscar e salvar o que estava perdido” (Lc 19.10; cf. Mc 2.17; Lc 15). Na
Parábola do Grande Banquete, o senhor ordena que seus servos tragam os
pobres, aleijados, cegos e mancos (Lc 14.21). Os marginalizados pela
sociedade judaica recebem de Jesus uma calorosa acolhida no reino de Deus.
Embora essa dimensão da missão de Jesus esteja clara no Evangelho de
Marcos, Lucas lhe dá ênfase especial. Há quatro grupos em particular que
Lucas mostra como os que recebem uma atenção especial de Jesus: (1)
“pecadores”, (2) coletores de impostos, (3) prostitutas e (4) pobres e
enfermos.
23 Com “pecadores”, Lucas quer dizer “pessoas que desempenham
atividades menosprezadas ou pessoas com modos de vida imorais, como
adúlteros, prostitutas, assassinos, ladrões, trapaceiros”.
24 Quando essa palavra
vem da boca dos fariseus, uma rivalidade faccionária também pode moldar o
termo. “Pecadores” pode indicar aqueles que não seguem as diretrizes dos
fariseus. O acolhimento que Jesus dá aos coletores de impostos é igualmente
ofensivo. A sociedade judaica repudia coletores de impostos porque muitos
trapaceiam e cobram demais dos cidadãos. Mesmo que não roubem ou
pratiquem a extorsão, todos eles são considerados traidores de seu próprio
povo, pois coletam impostos para os odiados romanos. Jesus também acolhe

prostitutas e mulheres de caráter questionável, escandalizando os fariseus ao
permitir que uma mulher desse tipo unja seus pés com perfume (Lc 7.37-50)
e ao perdoar outra mulher apanhada em adultério (Jo 8.1-11). Ele afirma aos
líderes do povo judeu: “Digo-lhes a verdade: Os coletores de impostos e as
prostitutas estão entrando antes de vocês no reino de Deus” (Mt 21.31). Jesus
pode muito bem ter acolhido prostitutas à comunhão da mesa.
25
Jesus também acolhe no reino de Deus os pobres, os mendigos, os
enfermos e os deficientes físicos. No pensamento judaico da época, pobreza e
doença muitas vezes eram interpretadas como sinais do juízo de Deus contra
o pecado dessa pessoa. Jesus denuncia furiosamente a “sabedoria”
tradicional. Certa vez, seus discípulos o perguntam a respeito de um homem
cego: “Rabi, quem pecou para que ele nascesse cego: ele ou seus pais?”.
Jesus responde: “Nem ele pecou nem seus pais”. Isso é dito a seus discípulos
para que não vejam essa aflição como punição de Deus por alguma infração,
mas como uma oportunidade para “que nele se manifestem” as obras de Deus
(Jo 9.1-3; cf. Lc 13.1-5).
Seu ensino deixa claro que aqueles às margens da sociedade judaica são
bem-vindos no reino de Deus. Em dois tipos de ação, ele ilustra esse ponto
com muita veemência. Como sinais do reino vindouro, Jesus desfruta da
comunhão da mesa com esses “excluídos” e os cura. “Jesus praticava uma
comunhão da mesa radicalmente inclusiva como estratégia central em seu
anúncio e redefinição do governo de Deus que estava irrompendo”.
26
Refeições não são questões casuais na época de Jesus. São “eventos
extremamente complexos em que valores, linhas divisórias, posições e
hierarquias sociais eram reforçadas”.
27 Uma refeição é um símbolo muito
evidente de uma recepção calorosa no grupo social de alguém. Os fariseus
acreditam que muitos tipos de “pecadores”, os enfermos e os pobres
deveriam ser excluídos da comunhão na comunidade, pois eles estão sob o
juízo de Deus (cf. Jo 9.2). A prática de Jesus, portanto, é uma afronta à
percepção dos fariseus do que é certo e bom. Ao comer com essa gente, Jesus
faz uma afirmação contundente a respeito do reino: pecadores, coletores de
impostos, prostitutas, pobres e enfermos, embora sejam marginalizados
religiosos para alguns, não são excluídos do banquete messiânico do reino.

Jesus os acolhe e simbolicamente demonstra essa recepção em sua comunhão
à mesa com eles cotidianamente.
Os milagres de cura de Jesus também demonstram como ele acolhe no
reino de Deus aqueles que vivem às margens da sociedade judaica. Um
fragmento escrito a respeito de uma comunidade de essênios por volta da
época de Jesus mostra como esses judeus radicais excluem muitos do reino:
“Nem os cegos, nem os coxos, nem os surdos, nem os mudos, nem os
leprosos, nem aqueles cuja carne é maculada serão admitidos na assembleia
da comunidade”.
28 Os fariseus, de modo bem parecido com os essênios,
acreditam que somente eles são o verdadeiro Israel de Deus, e sua lista de
pessoas excluídas é parecida com a dos essênios. Quando Jesus toca o cego, o
surdo, o leproso e o coxo, ele não somente cura o seu corpo e os liberta da
opressão, mas também os restaura à participação plena no reino.
29
JESUS EXPLICA O REINO COM AS SUAS PARÁBOLAS
Jesus anuncia a chegada do reino de Deus, demonstra-o em suas ações e
forma uma comunidade do reino. No entanto, esse reino não se parece nem
um pouco com o que os judeus esperavam. O próprio Jesus não se parece
com o Messias da profecia do Antigo Testamento entendida popularmente. O
mundo em si não parece muito transformado pelo que esse profeta da Galileia
está fazendo e dizendo. As expectativas judaicas parecem fadadas ao
desapontamento mais uma vez. Para qualquer pessoa no Israel do primeiro
século que leva as afirmações de Jesus a sério, predominam a perplexidade e
a confusão.
Vislumbramos essa confusão em João Batista quando está na prisão de
Herodes. João tem pregado que o reino de Deus está próximo, o juízo final
está prestes a vir. O machado já está na mão do Messias, João afirma, e ele
está pronto para cortar qualquer árvore que não produz bom fruto (Lc 3.9).
João espera piamente que essa mensagem profética seja cumprida. Ele
identifica explicitamente Jesus como aquele enviado por Deus para inaugurar
essas coisas (Jo 1.29-34). Em seguida Jesus anuncia a chegada do reino, e
aparentemente nada significativo acontece. João espera que o Messias

derrube os governantes iníquos da terra e liberte seus prisioneiros justos (Is
40.23; 61.1). No entanto, o próprio João continua apodrecendo na prisão
enquanto Herodes segue com seu governo injusto e com seu modo de vida
imoral. Soldados romanos pagãos infestam as ruas sagradas de Jerusalém. A
Roma idólatra governa o mundo com impunidade; opressão, injustiça e
iniquidade reinam. Acaso, os profetas não profetizaram que o reino de Deus
virá com justiça, paz e o conhecimento de Deus? João se pergunta se não
entendeu tudo errado. Ele chama seus discípulos e os envia a Jesus com uma
pergunta: “És tu aquele que haveria de vir, ou devemos esperar por outro?”
(Lc 7.19). Jesus responde apontando aos seus milagres e à sua mensagem de
boas-novas para os pobres como sinais de que o poder redentor de Deus está
presente. Em seguida, envia os discípulos de João de volta com uma
promessa: “Bem-aventurado é o homem quem não apostatar por minha
causa” (Lc 7.23). Sem dúvida, João persevera em sua convicção de que Jesus
é o Messias. Mas até que Salomé
30 faça com que sua cabeça seja cortada por
causa da mãe dela, João provavelmente ainda está confuso a respeito do reino
e acerca de seu próprio papel em anunciar a vinda dele (Mt 14.1-12; Mc 6.16-
29).
É exatamente desse tipo de confusão que Jesus trata nas parábolas. Seus
discípulos se esforçam para entender como as promessas dos profetas estão
sendo cumpridas em Jesus. Certamente, não parece com o que esperavam. Do
começo ao fim dos Evangelhos, está claro que os discípulos simplesmente
“não entendem”. As parábolas de Jesus são contadas para explicar o
“segredo” desse reino que apareceu entre eles de modo completamente
inesperado (Mt 13.11). As parábolas ajudam aqueles que recebem a palavra
de Jesus com fé a entender a natureza do reino como ele se apresenta em
Jesus. Ao mesmo tempo, as parábolas ocultam a verdade daqueles que se
recusam a crer (13.12-17; cf. Is 6.9,10; At 28.26,27).
Marcos 4 e Mateus 13 oferecem uma seleção importante dessas histórias.
Elas são iniciadas com a expressão de Marcos: “O reino de Deus é
semelhante a…” e a expressão de Mateus: “O reino dos céus é semelhante
a…” (significando a mesma coisa; Mateus, escrevendo a judeus relutantes em
usar o nome Yahweh, refere-se a Deus de modo indireto designando o lugar

de onde ele governa). Nessa série de parábolas, aprendemos o segredo do
reino.
1. O reino de Deus não vem de uma só vez. Embora os judeus esperassem
que o reino chegasse em plenitude imediatamente, ou ao menos logo após o
aparecimento do Messias, isso não acontece. Às vezes, quando Jesus comenta
a respeito do reino, fala sobre ele como se já estivesse presente; outras vezes,
sugere que virá no futuro. Muitas de suas parábolas ajudam a explicar essa
aparente contradição. A Parábola do Trigo e do Joio ensina que no presente o
reino vem pela “semeadura” do evangelho. No futuro, o joio será separado do
trigo (Mt 13.24-30,36-43). A Parábola do Grão de Mostarda e do Fermento
sugerem que embora o reino no presente seja pequeno e pareça
insignificante, no futuro será glorioso e impossível de ignorar (13.31-33; Mc
4.30-32). A Parábola da Rede de Pesca ensina que no presente todos os tipos
de peixes são incorporados no reino, mas no futuro haverá uma grande
separação (Mt 13.47-50).
Assim, o reino que Jesus descreve é tanto presente quanto futuro: já
iniciado aqui, mas ainda não aqui em plenitude. Isso, entretanto, não é uma
contradição nem Jesus está equivocado. Então, como pode algo de tamanha
importância que é o reino de Deus ter essas características aparentemente
opostas? Como ele fica nessa tensão entre o “já” e o “ainda não”?
Nas parábolas, Jesus oferece aos seus seguidores perplexos uma resolução
dessa característica “já, mas ainda não” do reino. Com a vinda do reino, os
judeus esperam que a presente era perversa passe rapidamente. A Parábola do
Trigo e do Joio lhes ensina que o poder do mal continua ao lado desse novo
poder de cura que entrou no mundo via Jesus. A era vindoura se sobrepõe à
era antiga; os poderes das duas estão presentes.
2. No presente, o reino não vem com poder irresistível. Os judeus tinham
a expectativa de que quando o reino de Deus viesse, nenhum inimigo seria
capaz de resisti-lo. Eles têm na memória o sonho de Nabucodonosor em que
uma pedra talhada não por mãos humanas (representando o reino de Deus)
atinge uma grande estátua (representando os reinos mundiais da Babilônia, da
Média, da Pérsia, da Grécia e, em interpretação posterior, de Roma) e a

estilhaça (Dn 2). Daniel afirma: “o Deus do céu levantará um reino que
jamais será destruído […]. Ele destruirá todos esses reinos e os extinguirá,
mas ele próprio subsistirá para sempre” (2.44). Certamente, Deus eliminará
seus inimigos. Quem pode resistir ao poder de Deus?
Mas Jesus afirma: “Ouçam! O semeador saiu a semear sua semente” (Mc
4.3). E que retrato diferente surge na Parábola do Semeador (4.1-20; Mt 13.1-
23). O Messias não vem como um conquistador militar, mas como um
semeador humilde. O reino não vem com poder e força irresistíveis, mas pela
mensagem do reino. A semente cai à beira do caminho, em solo pedregoso e
entre espinhos, não produzindo fruto algum. Em outras palavras, os ouvintes
podem rejeitar o chamado do reino e aparentemente não padecer por isso.
Certamente, nenhuma grande pedra é arremessada do céu para destruir
aqueles que rejeitam Jesus. O reino está oculto em uma forma humilde e
avança no mundo em aparente fraqueza. Em seu ministério, Jesus anuncia a
mensagem do reino — o evangelho — por meio de suas palavras, demonstra-
a pelas suas ações e a encarna em sua vida. O evangelho é uma semente,
oferecida para produzir o fruto do reino no solo de corações receptivos e
dispostos a crer. Posteriormente, Paulo fala sobre o evangelho como o “poder
de Deus” (Rm 1.16). No entanto, esse poder não esmaga ou erradica toda a
resistência pela força. A Parábola do Joio nos fornece um retrato de como
isso funciona (Mt 13.24-30,36-43). Jesus afirma: “O reino do céu é
semelhante ao homem que semeou boa semente em seu campo. Mas,
enquanto todos dormiam, veio o seu inimigo e semeou joio no meio do
trigo”. O trigo e o joio brotam juntos. Quando os servos querem arrancar o
joio, o fazendeiro os proíbe, explicando que na colheita ele separará as boas
plantas do joio. Algumas pessoas recebem a palavra, e o poder de Deus
produz o fruto do reino, mas outros rejeitam a mensagem e parecem não
sofrer dano algum.
3. O juízo final do reino está reservado para o futuro. Os ouvintes de
Jesus esperam que o juízo de Deus caia prontamente sobre os ímpios. Os
profetas falavam a respeito do dia quando Deus introduziria seu reino
julgando seus inimigos em sua ira (Is 63.1-6). Redenção e ira são os dois
lados de uma só realidade: Deus salva sua criação julgando os inimigos que a

arruinaram (61.2; 63.4). Mas a Parábola do Joio (Mt 13.24-30,36-43) mostra
aos judeus que o juízo que esperam não ocorre imediatamente. Os
trabalhadores no campo querem arrancar o joio de imediato (13.28), mas o
dono instrui seus servos a permitirem que tanto o trigo quanto o joio cresçam
juntos. No fim dos tempos, o juízo de fato cairá; enquanto isso não acontece,
os poderes do reino de Deus e do reino do mal precisam continuar juntos.
Muitas outras parábolas ilustram de forma semelhante um juízo
postergado: os peixes bons serão separados dos ruins (13.47-50) e as ovelhas
dos bodes (25.31-46). O mestre que confiou dinheiro aos seus servos voltará
para acertar as contas (25.14-30). Cinco virgens guardam óleo para suas
candeias e estão prontas para a volta do noivo (25.1-13). Dois homens
investem o dinheiro de seu senhor de modo sábio e são elogiados por isso;
outro que meramente enterra seu dinheiro é condenado como um “servo mau
e preguiçoso” e lançado nas trevas (25.14-30). Os verdadeiros seguidores de
Jesus são aqueles cuja vida imita a dele: eles alimentam os famintos, vestem
os que estão nus, dão de beber aos sedentos e visitam os prisioneiros. Esses
fiéis são convidados ao reino do Pai. Mas outro grupo cuja vida não mostra
coisa alguma da vida de Jesus em si, por fim é enviado para o castigo eterno
(25.31-46). Quando Jesus fala a respeito da vinda derradeira do reino em suas
parábolas, ele enfatiza a prontidão e a fidelidade no presente. É necessário
responder à mensagem do reino e viver de modo centrado em Jesus até o
último dia.
4. A revelação plena do reino é postergada para permitir que muitos
entrem nele na era presente. Visto que a vinda do reino já começou em Jesus,
por que Deus não termina o seu trabalho? Por que ele adia o juízo final? Por
que oculta a glória e o poder do reino? Quando encontrarmos uma resposta a
essas perguntas, poderemos começar a entender nosso próprio lugar e
chamado na história bíblica entre a inauguração do reino feita por Jesus e sua
revelação final. Uma das parábolas de Lucas oferece uma resposta desse tipo
(Lc 14.15-24). Um banquete está sendo preparado: a mesa está posta e repleta
de comida e bebida. Mas neste momento o anfitrião faz uma pausa; os
convidados ainda precisam esperar um pouco. O desfrutar do banquete é
suspendido temporariamente, mas o anfitrião tem uma razão muito boa para a

protelação. É para que os perdidos também possam ser trazidos a fim de
partilhar da mesa do banquete. Todos — e especialmente os pobres, os
perdidos, os esquecidos — são convidados e acolhidos para ter parte no
banquete que é o reino de Deus. “Este evangelho do reino será pregado pelo
mundo inteiro, para testemunho a todas as nações, e então virá o fim” (Mt
24.14). Quando os fariseus murmuram que Jesus está recebendo todas as
pessoas indevidas, ele lhes conta três parábolas: da ovelha perdida (Lc 15.3-
7), da moeda perdida (15.8-10) e do filho perdido (15.11-32). Quando o filho
perdido (que durante um tempo se afastou de sua casa e família) se arrepende
e retorna, o Pai o recebe com alegria e graça.
Jesus conta muitas parábolas — ao menos quarenta — e examinamos
somente uma amostra delas. No entanto, nessas poucas, os temas principais
do ensino de Jesus são evidentes: as parábolas revelam como o reino é de
fato, em contraste com os mal-entendidos dos ouvintes de Jesus.
Jesus viaja fora da Galileia
A primeira parte da missão do reino de Jesus (muitos dos milagres e seu
ensino nas parábolas) ocorreram na região da Galileia ao redor de Cafarnaum.
Agora, cerca de dois anos depois, uma compreensão errada de sua missão e
hostilidade crescente para com ele levam Jesus a viajar para regiões mais
distantes. Ele concentra sua atenção cada vez mais em ensinar aos seus
discípulos. Durante essas viagens posteriores fora da Galileia, ocorrem dois
acontecimentos fundamentais: Pedro confessa que Jesus é o Messias e Jesus
revela sua glória divina aos seus discípulos mais próximos na transfiguração.
JESUS VIAJA EM TERRITÓRIO GENTÍLICO
Embora a missão do reino de Jesus na Galileia comece em relativa
obscuridade, seu poder e autoridade logo atraem um grande grupo de
seguidores. Os líderes judeus se opõem a Jesus, pois o seu movimento do
“reino” não corresponde às suas expectativas. Herodes também vê Jesus
como uma ameaça. Jesus enfrenta dois problemas com as multidões. Alguns,

tomados por um entusiasmo equivocado, querem que Jesus os lidere como
um messias político. Outros (e há cada vez mais desses com o passar do
tempo) ficam desiludidos e se unem à oposição a Jesus. Essa combinação de
oposição e entendimento equivocado leva Jesus a buscar áreas gentílicas ao
norte da Galileia. Ali sua missão continua. Mas Jesus cada vez mais
concentra sua atenção em instruir seus discípulos mais próximos, fornecendo-
lhes o ensino e a direção que precisam para continuar a sua obra.
À medida que Marcos começa a narrar a história de quando Jesus deixa a
Galileia, ele inclui um episódio em que Jesus discute com alguns dos fariseus
sobre a questão dos alimentos “puros” e “impuros”. Especialmente desde o
fim do Exílio de Israel na Babilônia, essas distinções fazem parte das leis
alimentares tão valiosas aos fariseus como um meio de decidir quem é judeu
piedoso e quem não é. Separação é tudo para os fariseus. No entanto, aqui
está Jesus, deliberadamente se opondo à proposta separatista e revolucionária
deles. Os fariseus consideram até mesmo a terra ocupada por gentios
contaminada. Eles ensinavam que, para ser justo, um judeu precisava se
purificar ritualmente depois de passar por território gentílico (Jo 11.55; cf. Lc
9.5). Mas Jesus desafia as tradições orais que se desenvolveram em torno das
leis da Torá e restaura essas leis de pureza ao seu contexto e significado
verdadeiros. Assim, essa discussão no Evangelho de Marcos de o que é
“puro” e “impuro” prepara o caminho para a história da partida de Jesus para
as regiões gentílicas “impuras”, onde expulsará demônios, curará aqueles que
são cegos, mudos e surdos e alimentará quatro mil pessoas (Mc 7.24—9.27).
QUEM É JESUS?
Jesus vem realizando sua missão do reino há algum tempo, e há muitas
opiniões a respeito dele entre o povo. A questão crucial é: “Quem é Jesus?”.
Em várias histórias, Lucas claramente mostra essa pergunta. Após Jesus
acalmar a tempestade, os discípulos perguntam uns aos outros com temor e
estupefação: “Quem é este? Ele dá ordens até mesmo aos ventos e à água, e
eles lhe obedecem?” (Lc 8.25, grifo dos autores). Quando Herodes, que
condenou João à morte, ouve sobre a comoção gerada pelo ministério de cura

de Jesus, ele pergunta: “Quem […] é este de quem ouço essas coisas?” (9.9,
grifo dos autores). Fazendo uma parada de suas viagens em Cesareia de
Filipe, Jesus agora confronta seus discípulos com a mesma pergunta: “Quem
as pessoas dizem que eu sou?”. Eles respondem: “Alguns dizem que és João
Batista; outros, Elias; e ainda outros, algum dos profetas”. Então Jesus torna a
pergunta bastante pessoal: “E quanto a vocês? Quem vocês dizem que eu
sou?”. Em nome de todos eles, Pedro responde: “Tu és o Cristo” (Mc 8.27-
29). Isso — a identidade de Jesus — é o âmago da questão. A confissão de
Pedro é um ponto crucial no evangelho que precisamos entender.
A palavra grega christos (“Cristo”) traduz a palavra hebraica messias, “o
ungido”.
31 Na época do Antigo Testamento, certas pessoas eram ungidas com
óleo para assumir algum ofício especial, o de sacerdote (Arão), rei (Davi) ou
profeta (Eliseu). A unção significava que essa pessoa era especialmente
escolhida e preparada por Deus para executar a tarefa designada. Durante o
período intertestamentário, o termo “messias” ou “Cristo” era usado
profeticamente como o título do personagem (ou dos personagens) a quem
Deus designaria para restaurar seu governo e inaugurar seu reino. O título
muitas vezes assumia conotações políticas e militares. Jesus aceita a
confissão de Pedro: de fato, Jesus é o Messias. Mas as compreensões
populares do que o “ungido” é e do que Deus o chama para fazer não são
adequadas. Por isso, Jesus adverte os discípulos a não dizerem a ninguém
quem ele é (Mc 8.30). As expectativas do povo precisam ser corrigidas para
corresponderem à realidade de Jesus. Assim, embora a maioria dos judeus
espere que o Cristo seja o agente de Deus para inaugurar o reino de Deus,
eles não têm noção alguma de que ele tenha que sofrer a humilhação da
crucificação (cf. 8.31). Eles anteveem a vinda de um homem da linhagem real
de Davi (cf. 12.35-37). Mas Jesus é muito mais: ele é o Senhor transcendente
e glorioso, o Filho de Deus. Assim, Jesus não corresponde às expectativas.
Ele é o escolhido de Deus, designado para inaugurar o reino de Deus — mas
ele também é a vítima crucificada e o Filho divino.
Pedro e os discípulos, no entanto, ainda não entendem isso, e a sua
compreensão equivocada fica clara nos versículos seguintes. Quando Jesus
lhes diz claramente que logo será crucificado, Pedro começa a discutir com

ele, dizendo que ele deve estar enganado — o Cristo não pode sofrer uma
morte tão vergonhosa (8.32). Jesus silencia Pedro, repreendendo-o
duramente, pois ele e os outros discípulos ainda não compreenderam a
verdade e não conseguem entender a necessidade da cruz: Jesus precisa
morrer (8.33). Somente muito mais tarde os discípulos passam a compreender
o pleno significado da confissão de Pedro. Só quando tiverem experimentado
a glória ressurreta de Jesus, eles perceberão o significado de Jesus ser o
Cristo.
Ao relato que Marcos faz da confissão de Pedro — “Tu és o Cristo” —,
Mateus acrescenta uma expressão importante: “o Filho do Deus vivo” (Mt
16.16).
32 Por trás dessas palavras também há uma rica tradição do Antigo
Testamento.
33 Todo o povo de Israel, e especialmente os reis de Israel (como
os representantes da nação diante do SENHOR), eram chamados de filhos de
Deus (Êx 4.22,23). Esse título sugere um relacionamento especial com Deus
e uma tarefa especial a ser cumprida em obediência a Deus. Os judeus da
época de Jesus procuravam por um messias que seria de fato um “filho de
Deus” como os reis do Antigo Testamento (2Sm 7.14; Sl 2).
34 Jesus vem a
eles como alguém que tem precisamente um relacionamento tão especial com
Deus e precisamente uma tarefa tão divina: inaugurar o governo de Deus. No
entanto, Jesus é mais do que essas coisas, por mais importantes que sejam.
Sua intimidade com o Pai e sua tarefa messiânica são únicas e exclusivas. Ele
de fato é o “Filho de Deus” em um sentido que nunca se aplicou e nunca
poderia se aplicar a ninguém mais a não ser ele mesmo. Ele é Aquele há
muito aguardado das profecias do Antigo Testamento. Assim, embora Jesus
esteja em uma longa tradição de “filhos de Deus”, ele é em outro sentido
absolutamente único, o “Filho singular e único” de Deus (Jo 3.16).
Os versículos seguintes em Marcos nos fornecem mais um título
importante que ressalta a confissão de Pedro. Jesus começa a ensinar aos seus
discípulos que o “Filho do Homem” precisa sofrer, morrer e ressuscitar. Mas
quem é o Filho do Homem?
35 Esse título vem do livro de Daniel (7.13,14),
um texto muito popular na época de Jesus por causa de sua promessa de um
futuro áureo para Israel após uma longa história de opressão. Na visão de
Daniel, quatro bestas (representando quatro impérios mundiais pagãos

sucessivos) saem do mar. Mas em meio a esse governo pagão, “[são]
estabelecidos tronos” e Deus, “o Ancião de Dias”, se assenta. A quarta besta
é morta. Então alguém “parecido com filho de homem” se aproxima do
Ancião de Dias e é conduzido à sua presença. A esse “filho de homem” são
concedidos autoridade, glória e poder; todos os povos e nações o adoram. Seu
domínio e reino durarão para sempre. Na época de Jesus, muitos judeus veem
a figura de Daniel de “alguém parecido com filho de homem” como uma
visão profética do Messias de Israel — com glória, autoridade e poder —
vindicando Israel na vitória sobre os reinos pagãos e compartilhando do trono
de Deus, governando um reino sem fim. Jesus afirma ser esse “Filho do
Homem”.
36
A identidade de Jesus é confirmada em um acontecimento cerca de uma
semana após a confissão de Pedro, quando Jesus leva Pedro, Tiago e João a
um alto monte (talvez o monte Hermom, a nordeste de Cesareia de Filipe).
Ali a aparência de Jesus muda diante dos outros homens (Mc 9.2-8; Lc 9.28-
36). Seu rosto e suas roupas adquirem um brilho celestial: seu rosto brilha
como o sol e as suas roupas se tornam ofuscantes. Durante um momento, os
discípulos veem a glória e majestade reveladas do Filho do Homem: o Filho
de Deus (cf. 2Pe 1.16-18). Moisés e Elias (personagens do Antigo
Testamento que possuem autoridade significativa entre os judeus e que
representam a Lei e os Profetas) aparecem e estão com Jesus. O próprio Deus
aparece, na forma de uma nuvem, e fala aos discípulos assustados: “Este é o
meu Filho a quem amo. Ouçam-no” (Mc 9.7). Quando os discípulos olham
novamente, somente Jesus está ali. Mas nenhuma confirmação maior de sua
identidade pode ser imaginada. Em sua transfiguração gloriosa e na própria
confirmação pelo próprio Deus da condição de seu Filho — mais elevada até
mesmo que a de Moisés ou Elias —, Jesus é revelado aos discípulos como o
escolhido de Deus (Lc 9.35). Para os discípulos, abalados pela hostilidade
crescente entre o povo e, especialmente, pelas palavras estranhas de Jesus
sobre a crucificação, o caminho adiante está claro: ouvir a Jesus.
Jesus viaja a Jerusalém

As visitas breves de Jesus ao território dos gentios culminam na confissão de
Pedro e na transfiguração. Pedro e os outros discípulos ainda não entendem
plenamente que Jesus precisa ir à cruz. No entanto, Jesus parte com eles a
Jerusalém para o confronto final entre o reino de Deus e os poderes das
trevas, que estão por trás da oposição judaica ao reino.
37 À medida que Jesus
continua ensinando seus discípulos, dois temas agora dominam: (1) a
necessidade do sofrimento e (2) o preço de ser discípulo.
O CAMINHO DA CRUZ
Ao começar sua última viagem para Jerusalém, Jesus instrui os discípulos de
que precisa sofrer, ser rejeitado, traído e morto (Lc 9.22,44). Mas os
discípulos ainda não entendem (9.45). Ele explica que precisa passar por mais
um “batismo” e está angustiado até que este se realize (12.49). Respondendo
à ameaça de morte feita por Herodes, Jesus afirma: “Vão dizer àquela raposa:
Expulsarei demônios e curarei pessoas hoje e amanhã, e no terceiro dia
alcançarei meu objetivo. […] Pois certamente nenhum profeta pode morrer
fora de Jerusalém!” (13.32,33). Durante sua viagem, Jesus discute a vinda do
reino de Deus em relação ao que está imediatamente diante deles: “Primeiro é
necessário que ele [o Filho do Homem] sofra muitas coisas e seja rejeitado
por esta geração. […] Ele será entregue aos gentios. Eles zombarão dele, o
insultarão, cuspirão nele, o açoitarão e o matarão. No terceiro dia ele
ressuscitará” (17.25; 18.31-33). E os discípulos ainda não entendem. O
significado das claras palavras de Jesus está oculto para eles; não sabem a
respeito do que ele está falando (18.34).
Jerusalém será o cenário da batalha final entre o reino de Deus e os
poderes do mal. Muitos em Israel esperam uma batalha militar culminante
entre o exército de Deus composto de judeus piedosos e o dos gentios pagãos,
que se opõem à vontade de Deus. Mas essa não é a batalha para a qual Jesus
está se preparando. Em vez disso, ele está prestes a tomar toda a força do mal
cósmico sobre si mesmo e, por meio disso, esvaziar o seu poder. Para Jesus, a
batalha será vencida, não matando o inimigo, mas permitindo que ele mesmo
seja morto, dando sua vida na cruz.

DISCIPULADO NO CAMINHO DA CRUZ
Os discípulos ainda não entendem a missão de amor e sofrimento de Jesus.
Como muitos de sua geração, eles ainda querem ver o juízo inflamado de
Deus caindo sobre aqueles que rejeitam a sua realeza. E mesmo agora, após
todo esse tempo com Jesus, eles ainda não entendem. O tempo é curto; há
uma necessidade urgente de “treinamento intensivo no discipulado”.
38 Os
discípulos precisam aprender de fato o que significa seguir a Jesus a fim de
que possam dar continuidade ao que ele começou, depois que ele seja tirado
deles.
Essa instrução sobre o discipulado está intimamente ligada ao tema da
última viagem de Jesus: ele descreve o discipulado como um “caminho” a ser
seguido, uma jornada. Os discípulos estão — de fato — no caminho para
Jerusalém, e ao mesmo tempo o caminho do discipulado está sendo ensinado
a eles.
39 Mas cada “caminho” tem como seu destino amor sofredor e rejeição.
Visto que a narrativa da jornada é pontuada com esses lembretes do que aguarda Jesus em
Jerusalém, a jornada em si é retratada com as cores sombrias da paixão. Torna-se difícil, então,
interpretar as exigências do discipulado ou a hostilidade com que Jesus depara sem referência ao
significado associado a elas pela sua localização na jornada para a morte. Assim, a jornada […] tem
um aspecto pedagógico, pois ela exorta os seguidores de Jesus a aceitarem a conexão entre rejeição
e missão divina.
40
A última jornada em si ensina aos discípulos que seguir a Jesus significa
andar no caminho da cruz.
Jesus fala de forma firme e dura a seguidores cambaleantes e hesitantes. O
caminho da cruz é custoso: ele exige compromisso total, devoção e lealdade
completas a Jesus e ao reino de Deus (Lc 9.57-62). “Se alguém quiser vir
após mim”, Jesus diz, “precisa negar-se a si mesmo, tomar diariamente a sua
cruz e me seguir” (9.23; cf. 14.27). A decisão de seguir acarreta
consequências significativas: “Pois quem quiser salvar a sua vida, este a
perderá; mas quem perder sua vida por mim, este a salvará” (9.24).
41
O treinamento no discipulado continua no caminho para Jerusalém. Seguir
Jesus significa participar em sua missão (Lc 10.1-24). Os discípulos são
comparados a trabalhadores da colheita, enviados para ajudar Jesus a fazer a

colheita. Sua missão, como a de Jesus, é combater os poderes das trevas por
meio de suas palavras e ações: “Curem os doentes […] e digam-lhes: O
Reino de Deus está próximo de vocês” (10.9, NVI). Seus discípulos também
precisam amar a Deus com todo o seu ser e amar seu próximo como a si
mesmos (10.25-37). No contexto da aversão generalizada em Israel a judeus
infiéis, samaritanos e gentios, Jesus conta a história de um homem (judeu)
que é espancado, assaltado e deixado como morto na estrada de Jerusalém
para Jericó. Os líderes do povo judeu — representados na história de Jesus
por um sacerdote e um levita — não ajudam esse homem em sua
necessidade. Mas um odiado samaritano se compadece e cuida dele. O judeu
“justo”, assim, descobre que o samaritano “ímpio” é seu próximo, aquele a
quem Deus ordenou que amasse. Jesus conta essa história em resposta a uma
pergunta de um doutor da lei: “O que devo fazer para participar na era
vindoura?”, e esta é a resposta: “Siga a Jesus descobrindo uma perspectiva
nova e radicalizada da observância da Torá. Amar o Deus pactual de Israel
significa amá-lo como criador de tudo e descobrir como próximos aqueles
que estão além das fronteiras do povo escolhido”.
42
Jesus conclui sua missão do reino em Jerusalém
Finalmente, Jesus chega a Jerusalém, onde seus últimos dias são ocupados
com a hostilidade crescente dos líderes judeus e com o seu ensino sobre
juízo. Ali Jesus realiza três ações surpreendentes para retratar simbolicamente
a natureza do reino vindouro, de modo muito semelhante aos profetas do
Antigo Testamento, que dramatizavam a mensagem de Deus em alguma ação
simbólica notável. Jeremias (19.1-15) quebrou um vaso para mostrar que
Deus destruiria Israel. Isaías (20.1-4) andou nu por Jerusalém para ilustrar a
humilhação vindoura de Israel por parte da Assíria. Do mesmo modo, as
últimas ações de Jesus são proféticas, descrevendo o que virá. Mas suas ações
significam mais que isso, pois ele é mais do que um profeta: ele também age
como o Messias.
JESUS ENTRA EM JERUSALÉM MONTANDO UM JUMENTO

Celebrar a entrada de um rei em uma cidade com grande pompa é um
fenômeno bem-conhecido da época.
43 A entrada de Jesus em Jerusalém
montado em um jumento fala mais alto do que quaisquer palavras: “Deus está
voltando a Jerusalém para se tornar rei sobre Israel e sobre as nações. Jesus
está reivindicando o trono de Davi”. Esse acontecimento é encontrado em
todos os Evangelhos (Mt 21.1-11; Mc 11.1-11; Lc 19.28-40; Jo 12.12-19) e é
sempre interpretado à luz de Zacarias 9.1-13, que nos ajuda a entender o seu
significado. Em Zacarias, o rei de Israel é descrito voltando a Jerusalém após
uma vitória militar. Conforme vimos, Judas Macabeu entrou em Jerusalém
cavalgando (cerca de um século e meio antes da época de Jesus, depois de
suas vitórias contra os exércitos selêucidas) sob gritos alegres de exaltação.
Uma vez ali, sua primeira ação em Jerusalém foi purificar o templo da
profanação pagã a ele infligida pelo rei grego Antíoco IV Epifânio. No
entanto, o reino mundial que Israel esperava não se materializou com Judas
Macabeu. E, assim, os judeus passaram a esperar que um outro rei
estabelecesse o reino universal prometido a Davi e aos profetas, um rei que
seguiria os passos de Judas Macabeu e verdadeiramente cumpriria as
profecias de Zacarias. E outros “reis” haviam vindo, seguindo Judas nessa
prática, reivindicando o trono de Israel. Mas nenhum deles havia trazido
consigo o reino de Deus.
Nesse cenário, a reivindicação de Jesus ao reinado de Davi não pode ser
mais clara. Ele encena a mesma entrada em Jerusalém, vindo como Messias
para reivindicar o trono de Israel, para trazer o reino que Judas Macabeu não
conseguiu trazer. As multidões em Jerusalém entendem essa ação e saúdam a
chegada de Jesus com gritos, boas-vindas e exaltação (de Sl 118): “Bendito
seja o rei que vem em nome do SENHOR”. “Bendito é o reino que vem, o reino
de nosso pai Davi!” (Mc 11.10; Lc 19.38). No entanto, nem a multidão nem
os discípulos (Jo 12.16) entendem que tipo de rei Jesus é. Mateus, escrevendo
a judeus que esperam um Messias militar, destaca em seu relato que Jesus
vem como um rei gentil e humilde. Ele cita Zacarias: “Eis que o seu Rei vem
a você, humilde e montado num jumento” (Mt 21.5). O animal escolhido para
a sua entrada é uma humilde criatura de carga em vez de um cavalo real
apropriado para conquistas militares, pois Jesus vem em paz. O povo em

Jerusalém “não reconhece […] a vinda de Deus” (Lc 19.44), pois entende de
modo equivocado a natureza de sua realeza, que é “uma natureza de
humildade e serviço em vez de conquista política”.
44 Em alguns dias, a
mesma multidão estará exigindo que ele seja pregado em uma cruz.
JESUS ENCENA O JUÍZO SOBRE O TEMPLO
Em sua segunda ação messiânica em Jerusalém, Jesus inflige juízo sobre o
templo (Mc 11.12-17).
45 Visto que sempre havia uma forte conexão entre
religião e política no antigo Oriente Próximo, a entrada de um rei vitorioso
muitas vezes era seguida de algum tipo de ação no templo.
46 Na história dos
Evangelhos, o templo de Jerusalém é o mais importante símbolo do judaísmo,
o lugar em que Deus habita entre o seu povo. Ali o sistema sacrificial permite
que um Israel infiel conserte a ruptura criada no relacionamento pactual pelo
pecado. Além disso, o templo está repleto de significado religioso, político,
econômico e social; acima de tudo, ele é o centro da esperança judaica do
reino vindouro. Do mesmo modo que Judas Macabeu uma vez purificou o
templo, Israel acredita que Deus um dia voltará aí para estabelecer o seu
trono, e a partir desse lugar governará seu reino mundial (Ml 3.1). Quando
Deus retornar ao seu templo, ele virá em juízo inflamado (3.3,5). De acordo
com a expectativa judaica, esse juízo será dirigido contra os gentios pagãos e
contra os judeus que fizeram concessões a práticas pagãs. Deus irá “destruir
os governadores iníquos” e “purgar Jerusalém de gentios que a pisoteiam
para destruí-la. […] Para despedaçar toda a sua substância com um cetro de
ferro; para destruir as nações iníquas com a palavra de sua boca” (Salmos de
Salomão 17.21,24).
47
As multidões de Jerusalém estão esperando Jesus cumprir essas
expectativas. Mas Jesus chora porque Israel entendeu de modo equivocado a
vinda de Deus, que de fato significa juízo — não sobre os gentios, mas sobre
o Israel infrutífero (Lc 19.41-44). Em todo o seu ministério, Jesus ameaçou a
nação infiel de Deus com o juízo deste; agora, durante o período que passa
em Jerusalém, seu ensino se concentra cada vez mais sobre esse tema (Mt
21.28—25.46; Mc 12—13).
48 Quando vem em juízo contra o templo, Jesus

representa simbolicamente tudo o que ele tem ameaçado.
A ação no templo é estruturada pela maldição que Jesus lança sobre a
figueira infrutífera (Mc 11.12-14,20,21), uma ação messiânica e profética que
simboliza o juízo sobre uma nação infrutífera. Precisamente no lugar que é o
centro simbólico da nação, Jesus expulsa aqueles que estão vendendo animais
para os sacrifícios e derruba as mesas dos cambistas. Jesus interrompe
temporariamente as operações no templo, possivelmente pressagiando o fim
derradeiro do templo.
As palavras de Jesus interpretam o seu ato: o templo deve ser uma casa de
oração para todas as nações (Mc 11.17), o lugar ao qual todas as pessoas
virão para reconhecer o Deus de Israel (Is 56.7,8). Deus escolheu o povo de
Israel para habitar entre as nações a fim de que todas as nações possam
participar da aliança com Deus. Mas o templo em que Jesus entra agora
funciona de uma maneira bem diferente, apoiando uma causa separatista,
isolando os israelitas de seus vizinhos. Além disso, a atitude incentivada no
templo é de violência e destruição: ele se tornou um “covil de
revolucionários” (Mc 11.17; tradução dos autores”).
49 Israel transformou sua
eleição em privilégio separatista em vez de obedecer ao seu chamado de ser
luz para o mundo. O juízo sobre esse templo precisa ocorrer para que um
novo “templo”, a vida ressurreta de Jesus no povo renovado de Deus (cf. Jo
2.21), possa se tornar a luz para as nações que é a intenção divina.
50
Quando vemos a purificação do templo feita por Jesus nesse contexto, fica
claro por que os líderes judeus começam a procurar um modo de matá-lo. Ele
está não somente se opondo às suas estimadas esperanças e aspirações e
anunciando a destruição de seu símbolo mais estimado. Ele também está
fazendo essas coisas em nome do Senhor, seu Deus! Ele está agindo como se
fosse o Messias escolhido de Deus. Embora os fariseus, saduceus e outros
que disputam a liderança de Israel não consigam concordar em nada mais,
eles concordam de fato que esse homem Jesus ameaça todo o seu modo de
vida com sua afirmação do reino vindouro. Esse homem precisa morrer!
JESUS REPRESENTA SIMBOLICAMENTE A SUA MORTE

Depois de sua entrada em Jerusalém e da purificação do templo, Jesus passa
grande parte do restante da semana em discussões acaloradas com os líderes
judeus. Visto que é a semana da Páscoa, Jesus reúne seus discípulos para
celebrarem a refeição da Páscoa juntos (Mt 26.17-30; Mc 14.12-26; Lc 22.7-
23). Essa é a última e mais importante das três ações simbólicas que Jesus
realiza em Jerusalém: nessa refeição, ele dramatiza o acontecimento
culminante de sua missão do reino.
51
Na noite da Páscoa, Jesus instrui que seus discípulos preparem a refeição
da Páscoa.
52 Essa refeição ritual iniciou como uma celebração da redenção de
Israel do Egito na época de Moisés (Êx 12). No entanto, para os judeus do
primeiro século, ela também simboliza o “novo êxodo” vindouro pelo qual o
reino de Deus virá. Relembrando a vitória passada de Deus sobre os egípcios,
os judeus do primeiro século refazem a refeição na esperança de que logo
Deus faça algo semelhante em sua própria época. Ele havia libertado o seu
povo naquela época de seu cativeiro no Egito; certamente, ele os libertaria
agora de seus opressores romanos. O reino vindouro de Deus, uma nova
aliança, o perdão dos pecados, seu retorno do Exílio — todas essas
expressões manifestam a esperança de Israel para o que Deus fará no auge da
história de sua nação. E essa refeição da Páscoa relatada nos Evangelhos
antevê esse momento. Mas Jesus toma essa refeição e lhe dá um novo
significado. Em suas ações e palavras, ele afirma que o reino pelo qual
anseiam está irrompendo sobre eles agora. O clímax da história de Israel será
a sua própria morte: “A refeição, centralizada nas ações de Jesus com o pão e
o cálice, contava a história da Páscoa e a própria história de Jesus, e teceu
essas duas histórias em uma só”.
53
Na tradição da Páscoa, o chefe da casa interpreta os acontecimentos do
Êxodo e o seu significado para o presente. Jesus, assim, explica com palavras
simples (mas surpreendentes) o novo significado do pão e do vinho. Ele toma
o pão, dizendo: “isto é o meu corpo” (Mc 14.22). Jesus está prestes a morrer,
e essa morte significará vida para o seu povo. Do mesmo modo que o pão da
Páscoa sempre foi um lembrete da redenção de Israel do Egito, assim a morte
de Jesus se tornará o meio da redenção suprema de Israel. O cálice também
adquire um novo significado: “Isto é o meu sangue da aliança” (14.24). Em

sua morte, Jesus trará a nova aliança, o perdão de pecados, o reino de Deus
pelo qual Israel anseia. Moisés aspergiu sangue sobre o povo de Israel e
confirmou a aliança do Sinai com estas palavras: “Este é o sangue da aliança”
(Êx 24.8). E mil anos depois de Moisés, Zacarias profetizou que por meio de
uma vitória messiânica, Deus libertaria Israel do Exílio e renovaria sua
aliança com a nação: “Quanto a você, por causa do sangue da minha aliança
com você, libertarei os seus prisioneiros de um poço sem água” (Zc 9.11,
NVI). Pelo “sangue da aliança”, o Exílio terminaria e o reino de Deus viria.
Jesus identifica esse “sangue da aliança” com o seu próprio sangue, que logo
será derramado na cruz. É por meio de sua morte que o reino de Deus virá.
Jesus é preso e julgado
Desde que o ministério inicial de Jesus na Galileia despertou a atenção, os
inimigos de Jesus tramavam sua destruição (Mc 3.6). Sua hostilidade atinge o
auge com o comportamento ultrajante de Jesus no templo, e eles se
encontram para desenvolver um plano para prender e matá-lo (14.2). Um dos
discípulos de Jesus, Judas Iscariotes, aparece inesperadamente e (para a
grande alegria deles) oferece a sua ajuda: ele localizará Jesus em um
momento em que poderão prendê-lo calmamente, sem temer a multidão. O
Sinédrio (o concílio governante dos judeus em Jerusalém) envia um grupo
substancial de pessoas para executar a prisão (14.10,11,43).
54
Enquanto isso, após a ceia da Páscoa, Jesus e seus discípulos vão a um
lugar chamado Getsêmani. Sabendo que a batalha final pelo reino não está
longe e ciente do que isso significará para ele pessoalmente, Jesus ora ao Pai:
“Afasta de mim este cálice. Todavia não seja o que eu quero, mas o que tu
queres” (14.36). Depois dessa oração, ele acorda seus discípulos sonolentos
para enfrentarem uma multidão furiosa de líderes judeus (liderados por
Judas) com guardas do templo e soldados romanos (veja Jo 18.3). Judas
cumprimenta Jesus com um beijo, identificando-o assim na escuridão. Um
dos seguidores de Jesus rapidamente puxa a espada, eles ainda não entendem
que o reino de Jesus virá em paz e não com violência (Mc 14.47). Quando
Jesus é preso, todos, exceto um de seus discípulos, o abandonam e fogem

para salvar a sua vida (14.50-52). Mas à distância, Pedro segue os soldados
com o seu prisioneiro, para ver o que acontecerá.
É bem tarde da noite. Há um breve interrogatório do prisioneiro diante dos
líderes judeus, começando com Anás (o ex-sumo sacerdote), que interroga
Jesus para tentar levá-lo a dizer algo incriminador. Quando Anás fracassa, ele
envia Jesus a Caifás (o sumo sacerdote de ofício do momento), que permite
que um grande número de líderes judeus interrogue o prisioneiro. Uma série
de testemunhas falsas enfileiram diante de Caifás, acusando Jesus disso e
daquilo, mas as suas declarações se contradizem (cf. Dt 17.6; 19.15). Irritado,
o próprio sumo sacerdote finalmente interpela: “Você é o Cristo, o Filho do
Deus bendito?”. Jesus responde: “Sou” (Mc 14.61,62). O tribunal
imediatamente concorda que isso é blasfêmia, merecendo a pena de morte
(14.63,64). Esses interrogatórios no meio da noite são permeados por
comentários escarnecedores de espectadores. De tempos em tempos, os
guardas são incentivados a bater no seu prisioneiro (14.65; Lc 22.63-65). Ao
amanhecer, o Sinédrio se reúne em sessão formal e a acusação de blasfêmia é
confirmada (Lc 22.66-71). Durante o julgamento, Pedro é questionado sobre
o seu relacionamento com Jesus, mas três vezes nega conhecê-lo.
Visto que os judeus não têm o poder de executar ninguém (Jo 18.31),
Jesus é levado a Pilatos (o procurador designado por Roma) para sentenciá-
lo. Os homens do Sinédrio judaico sabem muito bem que blasfêmia não é um
crime punível com a morte sob a lei romana. Em vez disso, eles acusam Jesus
de traição e sedição, afirmando que ele tem subvertido Israel se opondo ao
pagamento de tributos a César e afirmando ser rei (Lc 23.2). Pilatos fica
intrigado com essa última acusação e pergunta a Jesus: “Você é o rei dos
judeus?” (Lc 23.3). Durante todo o tempo que passa com Jesus, Pilatos
vacila: as “acusações” dos líderes judeus contra Jesus não são convincentes.
No entanto, a própria posição de Pilatos como governante na Palestina já é
precária. Por razões políticas, ele não pode dar-se ao luxo de irritar os judeus.
Embora não consiga achar base legal alguma para condenar esse homem à
morte, ele percebe que os judeus não tolerarão a libertação de Jesus. Pilatos
tenta fugir da questão, primeiro enviando Jesus a Herodes, segundo
oferecendo aos judeus uma anistia para um prisioneiro de seu povo. Ele

afirma que libertará ou esse homem Jesus ou outro judeu que está na prisão
aguardando a morte, um revolucionário chamado Barrabás. Mas a multidão
grita: “Crucifica-o!” e frustra a tentativa de Pilatos de argumentar com eles.
Pilatos então ordena que Jesus seja açoitado como sua pena de punição,
esperando que isso seja suficiente para os judeus e que então ele possa
libertar o prisioneiro. Os soldados romanos zombam de Jesus e o açoitam
brutalmente, batendo nele com punhos e chicotes. Depois disso, ele é
devolvido a Pilatos, que novamente tenta libertá-lo, mas sem êxito. Os judeus
gritam: “Crucifica-o! Crucifica-o!”. Por fim, com relutância, Pilatos
concorda. Jesus é condenado à morte e levado para ser pregado em uma cruz
romana, para ficar pendurado ali até morrer.
Em sua morte, Jesus assegura a vitória do reino de Deus
Nesse acontecimento brutal, vemos o mais poderoso ato de Deus. A Bíblia
conta sobre os grandes feitos de Deus na história humana para restaurar a sua
criação. Repetidas vezes, os salmistas convidam o povo de Deus para louvar
a Deus por essas coisas: “Grite de alegria a Deus, toda a terra! Cante a glória
do seu nome, dê a ele glória e louvor. Diga a Deus: Como as tuas obras são
extraordinárias!” (Sl 66.1-3). Mas quando seguimos a história das obras de
Deus na história e chegamos à morte e ressurreição de Jesus Cristo, vemos a
mais extraordinária de todas as obras divinas de redenção. É na cruz que
Deus desfere o golpe mortal no pecado e rebelião humanos e realiza a
salvação de seu mundo. No entanto, a crucificação dificilmente parece uma
vitória para Deus, especialmente não quando enxergamos esse acontecimento
no contexto da cultura romana do primeiro século.
Jesus morre em uma cruz
Os romanos obrigavam um criminoso condenado a carregar a pesada viga
horizontal de sua própria cruz ao lugar onde deve ser crucificado. Mas a noite
em claro de Jesus, as zombarias cruéis e, especialmente, os açoites brutais
cobraram o seu preço. Jesus tropeça sob o peso da viga, e Simão de Cirene é

arrancado da multidão e obrigado a carregá-la. A procissão terrível prossegue
até o Gólgota, “o lugar da Caveira”, em que oferecem um sedativo a Jesus
(vinho misturado com mirra), que ele recusa. Às nove horas da manhã, Jesus
é despido completamente e pregado pelos seus pulsos e pés à cruz fixada
entre dois outros homens (revolucionários, também trazidos ali para morrer).
Enquanto os soldados cravam os pregos em sua carne, Jesus diz: “Pai,
perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo” (Lc 23.34).
Suas roupas são divididas entre os soldados, e eles escrevem uma
acusação escarnecedora em um pedaço de madeira e o fixam na cruz acima
de sua cabeça: “Este é Jesus, o Rei dos Judeus”. Para os romanos, chamar a si
mesmo de “rei” é traição, um desafio à soberania de César; para o judeu, é
blasfêmia; e para qualquer um que olha para trás para essa crucificação por
meio das lentes da ressurreição, essa “acusação” é, ironicamente, apenas a
pura verdade!
Os líderes judeus que caçaram Jesus e tramaram a sua morte agora
amontoam zombarias e insultos sobre ele: “Salvou os outros, mas não é capaz
de salvar a si mesmo! Ele é o Rei de Israel! Que desça da cruz, para que
creiamos nele” (Mc 15.31,32 parafraseado). Um dos criminosos participa
dessa zombaria de sua própria cruz ao lado de Jesus, mas é repreendido pelo
homem condenado do outro lado: “Nós estamos recebendo o que nossos atos
merecem. Mas este homem não fez mal algum”. Ele então se volta a Jesus e
diz: “lembra-te de mim, quando entrares no teu reino” (Lc 23.40-42). Jesus
reconhece a sua fé; de fato, esse homem herdará o reino de Deus.
Ao meio-dia e durante as três horas seguintes, trevas cobriram toda a terra.
Jesus brada em agonia: “Meu Deus, meu Deus! Por que me abandonaste?”
(Mc 15.34). Aquele a quem Jesus sempre chamou de “Pai” virou as costas
para o seu próprio Filho, pois nesse momento Jesus carrega o pecado do
mundo. Assim, Jesus não se dirige a ele como “Pai”, mas somente como
“meu Deus”. E então a vida de Jesus termina com um brado em alta voz:
“Está consumado!” (Jo 19:30); “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”
(Lc 23.46). Tendo finalmente realizado a vontade de Deus, a obra de Jesus
está concluída; ele pode novamente se entregar nas mãos de seu Pai amoroso.

Um centurião romano está perto para garantir que essas crucificações
sejam realizadas sem a interferência da multidão judaica. Quando ele vê o
modo de Jesus morrer e ouve suas palavras, esse valente soldado profissional,
um oficial encarregado de uma centena de soldados no exército da Palestina
ocupada, deixa escapar: “Certamente este homem era o Filho de Deus!” (Mc
15.39, NRSV). No mesmo instante, algo estranho acontece lá na cidade,
longe do Gólgota, no santuário do próprio templo em Jerusalém. Ali a pesada
cortina [véu] que separa o Lugar Santíssimo das câmaras externas, ocultando
do povo o local da presença de Deus, é rasgada de alto a baixo, mas não por
mãos humanas (Mc 15.38). A morte de Jesus abriu um acesso à própria
presença de Deus (cf. Hb 4.16).
Crucificação no Império Romano
“Levaram Jesus ao […] Gólgota […] e o crucificaram” (Mc 15.22-24). É
difícil para nós, vivendo cerca de dois mil anos depois, compreender quão
terrível e repugnante a ideia de crucificação era para o expectador do
primeiro século: “um acontecimento completamente ofensivo, ‘obsceno’ no
sentido original da palavra”.
55 Aqueles que desfrutavam do privilégio da
cidadania romana, por lei não podiam ser crucificados. Esse meio de tortura e
morte estava reservado somente para escravos e estrangeiros, para os piores
criminosos, na opinião dos romanos. O sofrimento físico era terrível e
prolongado o máximo possível — durante muitas horas, ou até mesmo dias.
56
No processo, a vítima era completamente degradada,
57 ficando pendurada
nua para todos verem e sofrendo as zombarias e os insultos de transeuntes.
Para o cidadão romano especialmente, mas também para os povos subjugados
no Império Romano, a cruz era um símbolo poderoso de humilhação e
agonia.
Ainda assim, a igreja primitiva teve a audácia de apontar para esse
acontecimento — a crucificação de seu líder — como o ato poderoso de
Deus. Uma insensatez completa!
58 Não surpreende que a igreja tenha sido
zombada pelos seus oponentes. Um desenho rabiscado em uma parede
(grafite) do início do Império Romano mostra o corpo de um homem com a

cabeça de um asno pregado em uma cruz e um homem adorando-o.
Rabiscado abaixo está a legenda escarnecedora: “Alexamenos adora a deus”.
Ao que tudo indica, algum escravo ou criança estava zombando de alguém
com essa caricatura primitiva. Que estúpido, que absurdo adorar um deus
crucificado! A afirmação de que a morte de Jesus era um ato poderoso de
Deus deve ter parecido completa loucura em qualquer lugar do mundo
romano do primeiro século.

Figura 21: Asno em uma cruz
Os romanos não estavam sozinhos nessa opinião. O horror e a degradação
absolutos da morte por crucificação tornavam impossível também aos judeus
aceitar isso como um acontecimento que pudesse revelar a mão de seu Deus.
As profecias do Antigo Testamento não tinham falado sobre o Messias vindo
em glória e vitória? Certamente, ele seria um grande e poderoso regente,
concedendo justiça a um novo império mundial. Seu reino se estenderia de

uma extremidade da terra à outra. Como a Enciclopédia judaica o coloca:
“Nenhum Messias que os judeus pudessem reconhecer poderia experimentar
uma morte desse tipo; pois ‘aquele que é pendurado é amaldiçoado por
Deus’” (Dt 21.23; citado em Gl 3.13). Além disso, a cruz era o lugar onde
todos os que se rebelavam contra o Império Romano — incluindo muitos
falsos messias — morriam. Para os judeus, “Messias crucificado” era um
oximoro. A cruz como ato poderoso de Deus era (e é) uma pedra de tropeço
para eles (1Co 1.23).
A crucificação no Novo Testamento
O Novo Testamento é singular na literatura antiga ao interpretar a
crucificação de modo positivo, como o maior dos atos de Deus na história.
Paulo proclama que “a mensagem da cruz é insensatez para os que estão
perecendo, mas para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus” (1Co
1.18). Mas ele e outros autores do Novo Testamento estão completamente
cientes de que a sua visão desse acontecimento atrai escárnio. Para os
romanos, a cruz é completa insensatez: a crucificação é somente a pior das
punições rotineiramente administradas aos inimigos dos romanos. Eles são
humilhados, derrotados, torturados além do humanamente suportável,
expostos em sua fraqueza: e então morrem. Além disso, a cruz é um ato
arbitrário de crueldade.
Ainda assim, a igreja primitiva faz a afirmação ousada e fantástica de que
a cruz é o ato central de Deus em toda a história humana! Essa ousadia é o
produto de uma perspectiva radicalmente diferente, pois a igreja enxerga a
cruz pela ótica da ressurreição.
É o retorno de Jesus dos mortos que valida sua reivindicação de ser o
Messias ungido de Deus. Quando se começa a olhar para a cruz através das
lentes da ressureição, o que primeiro parece insensatez é realmente a
sabedoria de Deus. O que parecia fraqueza, na verdade é o poder de Deus,
derrotando a rebeldia humana e o mal satânico. O que parece humilhação é
uma revelação da glória de Deus. O amor altruísta de Deus, sua misericórdia,
fidelidade, graça, justiça e retidão são revelados no acontecimento pelo qual

Deus realiza a salvação de sua criação. O que para o mundo parece ser a
derrota de Jesus, a igreja primitiva proclama como sua vitória insuperável
sobre todos os inimigos que se opõem à boa criação de Deus. Esse ato de
violência e crueldade aparentemente sem sentido, na verdade revela o mais
pleno propósito de Deus: seu juízo contra o pecado e seu poder e vontade de
renovar a criação. Vista de um modo, a cruz é um símbolo de insensatez,
fraqueza, humilhação, derrota, do absurdo. Vista de outro, por aqueles que
sabem que Jesus voltou novamente à vida a partir dos mortos, a cruz é repleta
da sabedoria, do poder, da glória, da vitória e do propósito de Deus.
Na cruz, Jesus age para realizar os seus propósitos para toda a história:
salvar a criação. Demasiadas vezes, reduzimos o significado da cruz ao fato
de que “Jesus morreu por mim”. Os cristãos de fato participam dos resultados
de sua morte e, assim, podemos afirmar isso com alegria e confiança. No
entanto, os propósitos de Deus vão além da salvação de indivíduos. Na morte
de Jesus, Deus age para realizar a salvação de toda a criação: Jesus morre
pelo mundo.
A ideia de que a cruz é o meio pelo qual Deus realiza a salvação é clara
tanto no modo que os autores do Evangelho escolhem para contar a sua
história quanto nas imagens que as Epístolas usam para interpretá-la.
59 Os
quatro autores dos Evangelhos dedicam enorme espaço a ela, como o ápice
do ministério de Jesus (Mt 20.28; Mc 10.45; Lc 24.25-27; Jo 12.23-28). No
entanto, cada um conta a história de seu próprio modo, com uma ênfase
adequada aos seus próprios ouvintes.
60 Marcos apresenta a crucificação como
o meio pelo qual Jesus oferece a salvação a uma nova comunidade que o
seguirá em discipulado sacrificial. Mateus (escrevendo aos judeus) narra a
história da morte de Jesus como a rejeição do Messias de Deus pelo seu
próprio povo — no entanto, a crucificação prova sua reivindicação à
condição real e inaugura uma nova ordem para todas as nações. Lucas conta
a história da cruz com dois temas em mente: (1) Como profeta, o empenho de
Jesus para que haja justiça traz oposição satânica e rejeição popular. (2) A
crucificação precisa ocorrer, pois é o acontecimento central da história
mundial. João “supera o escândalo da cruz interpretando-a como a exaltação
de Jesus”. Jesus é levantado na cruz para morrer, mas nesse mesmo ato ele é

exaltado e glorificado em seu amor.
61
As cartas às novas igrejas no Novo Testamento usam muitas imagens para
interpretar o significado universal da morte de Jesus. Aqui brevemente
observamos três. A primeira é a imagem de vitória, que John Driver chama
de o “tema do conflito-vitória-libertação”.
62 A crucificação é um símbolo da
grande batalha espiritual entre Deus e Satanás. Jesus vence a batalha e
concede a libertação da escravidão a Satanás àqueles por quem ele lutou. A
segunda imagem é a de sacrifício e deriva da prática do Antigo Testamento
em que um animal sem mácula era morto em lugar do pecador culpado.
63
Antigamente, o pecador era restaurado à comunhão da aliança com Deus, pois
esse animal removia o seu pecado. Agora, Jesus é o Cordeiro de Deus que
tira o pecado do mundo (Jo 1.29). A última imagem descreve Jesus como
homem representativo, alguém que age em prol de toda uma nação. Jesus
enfrenta Satanás, o pecado e a morte e os derrota ao morrer em favor de todas
as pessoas. Ele morre por todo o cosmo, carregando o juízo de Deus sobre a
criação que se tornou corrompida e contaminada pelo pecado. Participamos
dessa vitória sobre o pecado, assim como participamos do triunfo de Jesus
sobre ele (Rm 6.1-11).
A cruz representa a vitória suprema do reino de Deus. O governo de Deus
foi interrompido pela rebeldia humana e por tudo que veio com ela: poder
demoníaco, doença, sofrimento, dor e morte — todo o tipo de mal. A raiz de
toda a oposição ao governo de Deus era a rebeldia humana, e esta somente
poderia ser destruída na cruz.
Em sua ressurreição, Jesus inaugura o reino de Deus
Um ateu, discípulo comprometido com a “verdade” do comunismo, certa vez
fez um discurso a uma grande multidão na antiga União Soviética. Ele
zombou da fé cristã, dizendo que não passava de mera fantasia. Não era
Jesus, mas o programa de Marx e Lênin que estava destinado a levar a
história ao seu propósito designado. O ateu foi eloquente e devastador em seu
escárnio do cristianismo. Quando terminou, um padre ortodoxo perguntou se
podia dizer somente duas palavras em resposta. O sacerdote gritou: “Cristo

ressuscitou! ” e a multidão bradou de volta a resposta que trazia desde sua
infância: “Ele verdadeiramente ressuscitou! ”. Para um mundo tão distorcido
pelo mal e escravizado pelo pecado, que outra mensagem poderia haver?
Cristo ressuscitou. Na ressurreição de Jesus Cristo, um novo mundo está
nascendo. A noite do mal chegou ao fim. A luz de Deus encherá toda a terra
novamente. A ressurreição está no âmago da fé cristã.
Jesus ressuscita dos mortos
Depois da morte de Jesus, Pilatos concede permissão para que José de
Arimateia e Nicodemos tirem o corpo da cruz, preparem-no para o
sepultamento e o coloquem em um sepulcro. Algumas mulheres que foram
seguidoras de Jesus observam para ver onde ele é sepultado (Mc 15.42-47; Jo
19.38-42). A crucificação de Jesus obviamente deixou seus discípulos
perplexos e abatidos. Tudo pelo qual haviam esperado parece perdido. Um
deles, caminhando de Jerusalém a Emaús, expressa isso deste modo:
“Esperávamos que fosse ele o que traria a redenção a Israel” (Lc 24.21, grifo
dos autores). “Esperávamos”: pretérito imperfeito, com ação não acabada.
Com um líder morto e uma causa perdida, os discípulos precisam decidir o
que farão, eles estão com muito medo. Mas tudo isso logo começa a mudar.
Com a descoberta do sepulcro vazio, o anúncio angélico de sua ressurreição,
as aparições do Senhor ressurreto e o testemunho daqueles que realmente
veem Jesus vivo novamente — cresce a convicção entre os seus seguidores
de que Jesus está vivo, verdadeiramente foi ressurreto dos mortos.
As mulheres que observaram o sepultamento de Jesus são as primeiras a ir
ao sepulcro, para ungir seu corpo, mas elas não sabem como conseguirão
afastar a pesada pedra da entrada. Ao chegar, descobrem que a pedra já havia
sido removida, e anjos estão ali! As mulheres naturalmente estão
amedrontadas, mas um dos anjos as acalma. Em seguida revela que o corpo
de Jesus não está mais na sepultura: ele está vivo, ressurreto dos mortos. O
anjo lembra as mulheres das próprias palavras de Jesus: “É necessário que o
Filho do Homem seja entregue nas mãos de homens pecadores, seja
crucificado e ressuscite dos mortos ao terceiro dia” (Lc 24.7,8). Então o anjo

instrui as mulheres a dizer aos outros discípulos que Jesus os encontrará na
Galileia, como prometeu (Mc 16.1-8; Lc 24.1-8).
Ainda com medo e confusas — contudo, alegres — as mulheres voltam à
cidade. Inicialmente, elas não contam a ninguém. Quando contam aos outros
discípulos, a história parece absurda. No entanto, Pedro e João vão ao
sepulcro e comprovam o que as mulheres relataram: o sepulcro está de fato
vazio (Lc 24.9-12; Jo 20.1-8). Os dois discípulos vão embora, indagando o
que está acontecendo. (Eles até podem pensar que isso somente significa
mais problemas para os seguidores de Jesus.) O Evangelho de João nos conta
que, a essa altura na história, os discípulos ainda não entendem com base nas
Escrituras que Jesus precisava ressuscitar dos mortos (Jo 20.9). Para qualquer
judeu, a ideia de uma pessoa sendo ressuscitada no meio da história é
inconcebível. Assim, quando Jesus lhes disse que ressuscitaria dos mortos,
eles discutiram entre si o que “ressuscitar dos mortos” poderia significar (Mc
9.10).
As aparições de Jesus os levam à plena aceitação da verdade. O que
encontramos nos relatos dos Evangelhos não são discípulos ingênuos e
crédulos que querem desesperadamente acreditar que Jesus está vivo. Antes,
encontramos discípulos extremamente céticos que somente são
gradativamente convencidos da verdade — pelas aparições de Jesus a eles.
Jesus aparece a Maria e às outras mulheres (Jo 20.11-18), a dois discípulos no
caminho para Emaús (Lc 24.13-35), ao pequeno grupo de discípulos (várias
vezes: Lc 24.36-48; Jo 20.19-25,26-29; 1Co 15.5) e a um grande ajuntamento
de seus seguidores (1Co 15.6). Deste modo, os discípulos vêm a aceitar o fato
de que Jesus está realmente vivo, ressurreto dos mortos. Mas o que tudo isso
significa para eles?
Ressurreição no pensamento judaico
O que os seguidores de Jesus entendiam acerca da ressurreição?
64 O termo
que traduzimos por “ressurreição” é usado inicialmente na literatura judaica
no sentido metafórico, para descrever a renovação de Israel após a sua volta
do Exílio (Ez 37.1-14; Is 26.19). No final do Antigo Testamento (Dn 12.2) e

em todo o período intertestamentário, a linguagem da “ressurreição” é usada
literalmente para descrever o incidente da vida física de fato voltando ao
corpo que estava morto. Os judeus acreditavam que isso ocorreria no último
dia, não como um acontecimento ocorrendo a um indivíduo, mas quando toda
a companhia do povo de Deus seria plenamente restaurada à vida em uma
criação renovada. A partir dessa época, “a ressurreição” se tornou uma
imagem vívida no pensamento judaico, implicando a vinda do fim dos
tempos e a renovação do cosmo, em que o povo de Deus participaria pelo seu
próprio retorno à vida física. A ressurreição de corpos humanos era apenas
um elemento nessa renovação cósmica, mas também se usava a linguagem da
“ressurreição” para se referir a toda ela:
“Ressurreição”, embora concentrasse a atenção na nova corporalização dos indivíduos envolvidos,
reteve o seu sentido original da restauração de Israel pelo seu deus da aliança. Como tal,
“ressurreição” não era simplesmente uma esperança piedosa sobre uma nova vida para pessoas
mortas. Ela carregava consigo tudo que estava associado ao retorno do próprio Exílio: o perdão de
pecados, o restabelecimento de Israel como a verdadeira humanidade do deus da aliança e a
renovação de toda a criação. […] Assim, os judeus que acreditavam na ressurreição faziam isso
como parte de uma crença maior na renovação de toda a ordem criada.
65
A ideia da ressurreição do corpo, portanto, estava intrincadamente unida
com o conceito judaico da renovação da criação como um todo e a vinda do
reino de Deus.
A ressurreição de Jesus: o início da era vindoura
Todos os Evangelhos fornecem relatos de testemunhas oculares que
presenciam o Jesus vivo após ele ser ressuscitado fisicamente dos mortos.
Mas se esse tipo de coisa — os mortos retornando de seus túmulos — não
deve acontecer até o fim da história, o que está acontecendo (cf. Mc 9.10,32)?
Os primeiros seguidores de Jesus lutam com o significado dessa nova
realidade, tentando interpretá-la também (como a crucificação) “segundo as
Escrituras” (1Co 15.4). Encontramos suas conclusões nas pregações em Atos,
nas narrativas dos quatro Evangelhos e nas Cartas do Novo Testamento.
66 A
igreja primitiva proclama alegremente a ressurreição de Jesus como boas-
novas, um acontecimento com consequências cósmicas, o início da renovação

divina da criação.
As palavras de Jesus em João 11 nos ajudam a começar a entender a
ressurreição. Quando Jesus diz a Marta que Lázaro ressuscitará, Marta
responde: “Sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia”. Jesus
responde: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que
morra, viverá; e todo aquele que vive, e crê em mim, jamais morrerá” (Jo
11.23-25). A ressurreição de Jesus tem implicações além de sua própria volta
à vida. Na morte e ressurreição de Jesus, ele age em prol de todos nós e de
toda a criação. Ele é a ressurreição: ao morrer, ele toma sobre si mesmo o
juízo do mundo. Ao ressuscitar, ele inaugura a renovação de toda a criação,
incluindo os corpos físicos de homens e mulheres. Portanto, quem crê em
Jesus viverá e participará de sua ressurreição.
A volta de Jesus do túmulo é o alvorecer do novo dia: o povo de Deus e
toda a criação participarão de sua vida da ressurreição. Três imagens no Novo
Testamento descrevem a conexão íntima entre a ressurreição representativa
de Jesus e a nossa ressurreição. Primeiro, Cristo é o primogênito dos mortos
(Cl 1.18; Ap 1.5). Seus irmãos (cristãos como você e eu) seguirão o seu
irmão mais velho em sua nova vida. Em segundo lugar, Cristo é descrito
como as primícias (1Co 15.20,23, NVI), a primeira parte da safra agrícola a
ser colhida como uma garantia de que toda a safra virá em seguida. Em
terceiro lugar, Jesus é descrito como o “pioneiro da [nossa] salvação” (Hb
2.10, NRSV), aquele que nos precede entrando em um território novo para
mostrar o caminho e marcar a trilha. Jesus mostrou o caminho para entramos
na era vindoura, marcou a nossa trilha para entrar no reino de Deus. Podemos
entrar nesse reino à medida que o seguimos: entrar primeiro como antegosto
neste lado do reino concluído, e por fim entrar nele plenamente na nova terra.
Jesus comissiona os seus discípulos
Depois da ressurreição, Jesus reúne os seus discípulos e os encarrega (ou
“comissiona”) a continuar a tarefa que ele começou.
67 Novamente, cada um
dos Evangelhos enxerga essa última comissão de um modo diferente, de
acordo com os ouvintes a quem escreve.
68 Mateus, cujo Evangelho ressalta o

conflito entre autoridades judaicas e Jesus, registra estas palavras do Cristo
ressurreto: “Toda autoridade me foi concedida no céu e na terra”. Jesus é
vindicado! Mateus sublinha a abrangência cósmica da autoridade de Jesus
com uma repetição quádrupla da palavra “todo”. Jesus recebe toda a
autoridade. Seus seguidores devem fazer discípulos de todas as nações. Eles
devem ensinar os discípulos a obedecer a tudo que ele ordenou. E Jesus
estará operando entre eles todos os dias que restam para a terra (Mt 28.18-
20). Por trás dessa afirmação da autoridade de Jesus está Daniel 7.14, que
afirma que alguém semelhante a um filho de homem recebe toda a autoridade
para governar as nações. O que Jesus fará com essa autoridade suprema e
poder soberano? Ele usará poder coercitivo e violento para destruir os
inimigos que o rejeitaram? Ao que tudo indica, não: “Portanto”, Jesus
continua (de fato), “visto que recebi essa autoridade cósmica, façam
discípulos”. Por meio da missão despretensiosa e humilde da igreja de fazer
discípulos, o Cristo exaltado, o Senhor com toda a autoridade, “subjugará” os
seus inimigos — em amor. O antigo “inimigo” deverá ser batizado na
comunidade de discípulos e ali ser ensinado o caminho de Jesus.
No Evangelho de João, Jesus é descrito como Aquele enviado pelo Pai ao
mundo para trazer vida. Na noite do domingo da ressurreição, Jesus aparece
entre os seus discípulos e os instrui a continuar o que ele esteve fazendo:
“Assim como o Pai me enviou, eu os envio” (Jo 20.21). É fácil aqui ignorar o
“assim”. Do mesmo modo que o próprio Jesus executou a missão dele, a
comunidade recém-reunida deve executar a missão dela. Especificamente,
deve transmitir a boa notícia, que inclui o perdão de pecados (20.23). Essa
ordem está descrita em duas ações que ajudam a aprofundar a nossa
compreensão de seu significado. Antes de Jesus proferir essas palavras, ele
mostra aos discípulos suas mãos e o lado feridos, as marcas de seu conflito
com o mal, como se dissesse: “Vocês também encontrarão o mal em sua
missão; vocês também sofrerão. Sua missão deve ser executada na sombra de
minha cruz, e nessa sombra haverá conflito e sofrimento”. Depois de
comissionar os discípulos, Jesus sopra sobre eles para simbolizar a concessão
de vida (cf. Gn 2.7; Ez 37.5-10) e diz: “Recebam o Espírito Santo”. Para
realizar a missão de Jesus, os discípulos precisam receber a vida da

ressurreição de Jesus — o Espírito Santo — por cujo poder somente sua
missão pode ser executada (Jo 20.19-23).
No Evangelho de Lucas, Jesus comissiona os discípulos para serem
“testemunhas”, uma palavra do sistema judicial que identifica alguém
chamado para testemunhar acerca do que experimentou. Espera-se que essa
nova comunidade testemunhe, primeiro acerca da morte e da ressurreição de
Jesus Cristo e, em seguida, de sua oferta de arrependimento e perdão para
todos os povos. Novamente, Lucas enfatiza que esse testemunho não pode
começar até que o Pai tenha enviado o seu Espírito prometido e tenha
revestido os seguidores de Jesus com o poder de que precisarão para executar
a tarefa (Lc 24.46-49; cf. At 1.8).
Mais por vir — mas o quê?
A entrada de Jesus na história humana — sua vida terrena, morte e
ressurreição dos mortos — marca o clímax da história bíblica. Jesus revela o
reino vindouro pelo seu modo de vida, palavras e ações. Na cruz, ele desafia
e derrota o mal em si. O novo dia da ressurreição para toda a criação desponta
quando Jesus ressuscita dos mortos. Isso significa que o reino de Deus está
prestes a vir imediatamente em sua plenitude? Em sua última comissão, Jesus
está instruindo seus discípulos a concluir a tarefa de “reunir as nações” e,
assim, a se preparar para o fim? Isso é o que eles pensavam, ao menos
inicialmente (At 1.6). Mas se a vinda do reino não será imediata, como será
então? Como os seguidores de Jesus devem viver nesse meio tempo? O que
eles — e nós — devemos fazer?
Enquanto Mateus, Marcos e João terminam as suas histórias referente a
Jesus com a ressurreição, Lucas continua sua narrativa no livro de Atos.
Passamos agora a esse livro para as respostas às primeiras perguntas dos
discípulos sobre o timing de seu reino vindouro e de seu próprio lugar em sua
missão que continua.
1 “Evangelho” é uma palavra de Marcos (Mc 1.1). Mateus usa a palavra “registro” ou “livro” (Mt
1.1), Lucas, “narração” ou “relato” (Lc 1.1).

2 Herman Ridderbos afirma acertadamente: “O tema central da mensagem de Jesus, como nos é
transmitida nos Evangelhos Sinóticos, é a vinda do reino de Deus […] Pode-se afirmar acertadamente
que toda a pregação de Jesus Cristo e de seus apóstolos diz respeito ao reino de Deus” (The coming of
the kingdom [Phillipsburg: Presbyterian & Reformed, 1962], p. xi) [edição em português: A vinda do
reino, tradução de Augustus N. Lopes; Minka S. Lopes (São Paulo: Cultura Cristã, 2011)].
3 Hans Küng, On being a Christian, tradução para o inglês de E. Quinn (Garden City: Doubleday,
1976), p. 91 [edição em português: Ser cristão, tradução de José Wisniewski Filho (Rio de Janeiro:
Imago, 1976)].
4 “Pastores aparecem em quase todas as listas de profissões desprezadas na literatura rabínica.
Apesar de seu grande número e a aparente utilidade de seu trabalho, eles eram menosprezados por
causa de sua vulgaridade e ignorância e especialmente por causa da ausência de caráter moral […]
[Pastores] pertenciam à camada social mais baixa, se não aos rejeitados” (Walter E. Pilgrim, Good
news to the poor: wealth and poverty in Luke—Acts [Minneapolis: Augsburg, 1981], p. 80).
Possivelmente sua impureza cerimonial e a transgressão da lei do sábado exigidas por sua profissão
também contribuíam para a sua condição de marginalizados.
5 Robert H. Gundry divide o ministério público de três anos de Jesus em três estágios, cada um com
aproximadamente um ano de duração: um ano de obscuridade, um de popularidade e um de rejeição (A
survey of the New Testament, ed. rev. [Grand Rapids: Zondervan, 1994], p. 111-7) [edição em
português: Panorama do Novo Testamento, 3. ed. rev. ampl., tradução de João Marques Bentes (São
Paulo: Vida Nova, 2008]. Essa cronologia aproximada se reflete nesse parágrafo introdutório.
6 Gerhard Friedrich, “Euangelizomai, euangelion”, in: G. Kittel; G. Friedrich, orgs., Theological
dictionary of the New Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1964-1976), 10 vols., 2:710-2, 721-5.
7 George E. Ladd capta o poder dinamicamente ativo do reino de Deus para restaurar seu governo
sobre o mundo: “Nossa tese central é que o reino de Deus é o reinado redentor de Deus dinamicamente
ativo para estabelecer seu governo entre os seres humanos e que esse reino, que aparecerá como um ato
apocalíptico no fim dos tempos, já se fez presente na história humana na pessoa e missão de Jesus para
vencer o mal, para libertar as pessoas de seu poder e para trazê-las para as bênçãos do reinado de Deus.
O reino de Deus envolve dois grandes movimentos: o cumprimento na história e a consumação no fim
da história” (Donald Hagner, A theology of the New Testament, org., ed. rev. [Grand Rapids: Eerdmans,
1993], p. 89-90) [edição em português: Teologia do Novo Testamento, ed. rev., tradução de Degmar
Ribas Júnior (São Paulo; Hagnos, 2003].
8 O conceito de rei pode ser facilmente compreendido de modo errado em um mundo sem reis. A
ideia bíblica de um rei com autoridade absoluta sobre toda a vida de seus súditos está distante de
pessoas com uma mentalidade democrática. Lesslie Newbigin escreve: “A monarquia não é um produto
popular em nosso mundo. O mundo antigo estava repleto de reis e rainhas; temos poucos deles e — por
mais que os estimemos — limitamos seus poderes de modo bastante severo. A ideia antiga de reinado
como o exercício de governo soberano sobre outros por um único indivíduo não encontra muito espaço
em nosso mundo”. Ele continua afirmando que no mundo bíblico, “um rei é aquele a quem obediência
total é devida e de quem se pode esperar proteção, auxílio e a correção de injustiças” (Sign of the
kingdom [Grand Rapids: Eerdmans, 1981], p. 21).
9 David Bosch, Transforming mission: paradigm shifts in the theology of mission (Maryknoll: Orbis,
1991), p 36-9 [edição em português: Missão transformadora: mudanças de paradigma na teologia da
missão, 3. ed., tradução de Geraldo Korndörfer; Luís M. Sander (São Leopoldo, Sinodal, 2009)].
10 Dentre os autores dos Evangelhos, Lucas é o que presta atenção especial à vida de oração de

Jesus. Ele registra oito ocasiões em que Jesus ora, ocasiões não relatadas nos outros Evangelhos: Lucas
3.21; 5.16; 6.12; 9.18,28; 22.31; 23.34,46; cf. também 22.44. Além disso, ele registra duas parábolas
sobre oração não mencionadas pelos outros autores dos Evangelhos (11.5-8; 18.1-8). Veja Stephen
Smalley, “Spirit, kingdom, and prayer in Luke—Acts”, Novum Testamentum 15 (January 1973): 59-71.
11 G. W. H. Lampe, “The Holy Spirit in the writings of St. Luke”, in: D. E. Nineham, org., Studies
in the Gospels: essays in memory of R. H. Lightfoot (Oxford: Blackwell, 1955), p. 170.
12 James Dunn, “Spirit and kingdom”, Expository Times 82 (1970-1971): 38.
13 N. T. Wright, Jesus and the victory of God (London: SPCK, 1996), p. 272.
14 Ibidem, p. 435.
15 Ibidem, p. 433.
16 Marcos 2.23-28//Mateus 12.1-8//Lucas 6.1-5; Marcos 3.1-6//Mateus 12.9-14//Lucas 6.6-11;
Lucas 13.10-17; João 5.2-18; 9.1-41. Para uma análise útil, veja ibidem, p. 390-6.
17 Isso não significa que não há interesse em sua missão para os gentios. Na verdade, Marcos 6.45—
9.32 mostra Jesus se deslocando para áreas do norte e leste da Galileia, realizando seu ministério em
regiões gentílicas. Mateus, Marcos, Lucas e João, todos eles, tratam a relação de Jesus com os gentios
de modo diferente. Para uma breve análise, veja Scot McKnight, “Gentiles”, in: Joel B. Green; Scot
McKnight; I. Howard Marshall, orgs., Dictionary of Jesus and the Gospels (Downers Grove:
InterVarsity, 1992), p. 259-65.
18 Gerhard Lohfink, Jesus and community, tradução para o inglês de J. P. Galvin (Philadelphia:
Fortress, 1984), p. 11.
19 Ibidem, p. 63-70.
20 N. T. Wright, Jesus and the victory of God, p. 276.
21 Lohfink, Jesus and community, p. 10.
22 Bosch, Transforming mission, p. 27-8.
23 Pilgrim, Good news to the poor, p. 51-4.
24 Ibidem, p. 53.
25 Veja K. E. Corley, “Prostitute”, in: Dictionary of Jesus and the Gospels, p. 643.
26 S. S. Bartchy, “Table fellowship”, in: Dictionary of Jesus and the Gospels, p. 797.
27 Ibidem, p. 796.
28Rule of the congregation (1QSa) II, 3-10, citado em N. T. Wright, Jesus: The new way: leader’s
guide and program script (Worcester: Christian History Institute, 1998), p. 19. Cf. Levítico 21.16-23,
regras para levitas; Deuteronômio 23.1-8; 2Samuel 5.6-8; Neemias 13.1 versus Mateus 21.14.
29 Lohfink, Jesus and community, p. 12-4.
30 Os Evangelhos mencionam “a filha de Herodias” (Mt 14.6; Mc 6.22). Josefo a identifica como
“Salomé” (Antiguidades 18.5.4).
31 Veja L. W. Hurtado, “Christ”, in: Dictionary of Jesus and the Gospels, p. 106-17.
32 Em Marcos (8.29), Pedro confessa: “Tu és o Cristo”. Em Lucas (9.20), “de Deus” é acrescentado.
Mateus (16.16) tem o relato mais completo, acrescentando “o Filho do Deus vivo”.
33 D. R. Bauer, “Son of God”, in: Dictionary of Jesus and the Gospels, p. 769-75.
34 N. T. Wright, Jesus and the victory of God, p. 485-6.
35 Curiosamente, essa expressão “o Filho do homem” é usada com mais frequência para descrever
Jesus nos Evangelhos do que qualquer outra. Além disso, é quase sempre encontrada na boca de Jesus
como uma autodesignação (duas vezes como uma descrição indireta [Mc 8.31; 9.9]; cf. as palavras dos

anjos [Lc 24.7]; a pergunta da multidão [Jo 12.34] e as últimas palavras de Estêvão [At 7.56]). Ela
nunca se tornou parte das confissões posteriores da igreja do mesmo modo que “Cristo” ou “Filho de
Deus” se tornaram. Veja I. H. Marshall, “Son of Man”, in: Dictionary of Jesus and the Gospels, p. 775-
6.
36 Veja N. T. Wright, The New Testament and the people of God (London: SPCK, 1992), p. 29-97,
para uma análise exegética de Daniel 7.13,14.
37 Enquanto Marcos e Mateus fazem uma breve menção a essa viagem a Jerusalém, Lucas a torna
um aspecto central de seu livro, expandindo essa seção para quase dez capítulos (Lc 9.51—19.44). A
maior parte dessa longa seção está ocupada com ensino. Jesus instrui os seus discípulos sobre o árduo
caminho do discipulado.
38 Joel B. Green, The international commentary on the New Testament: the Gospel of Luke (Grand
Rapids: Eerdmans, 1997), p. 397.
39 Ibidem, p. 398. Atos 9.2; 19.9,23; 22.4; 24.14,22 se referem à igreja como “o Caminho”.
40 Ibidem, p. 396.
41 George Ladd fala sobre a exigência do reino como resoluta, radical e custosa, com consequências
eternas (The gospel of the Kingdom: popular expositions on the Kingdom of God [Grand Rapids:
Eerdmans, 1959; reimp. 1987], p. 95-106) [edição em português: O evangelho do reino, tradução de
Hope Gordon Silva (São Paulo: Shedd, 2008)].
42 N. T. Wright, Jesus and the victory of God, p. 307.
43 Veja D. R. Catchpole, “The ‘Triumphal’ Entry”, in: E. Bammel; C. F. D. Moule, orgs., Jesus and
the politics of his day (Cambridge: Cambridge University Press, 1984), p. 319-21. Catchpole arrola
doze entradas triunfais que ocorreram nos poucos séculos que antecederam a vinda de Jesus.
44 L. A. Losie, “Triumphal Entry”, in: Dictionary of Jesus and the Gospels, p. 859.
45 Para uma análise das várias interpretações desse acontecimento fundamental e para uma
interpretação que consideramos convincente, veja N. T. Wright, Jesus and the victory of God, p. 406-
28, 490-3. Quatro intepretações são possíveis para esse acontecimento: (1) religiosa: purificar o templo
de impurezas; (2) messiânica: incluir os gentios nas atividades do templo; (3) profética: anunciar a
destruição do templo e a restauração escatológica; (4) política: interromper atividades comerciais e
religiosas corruptas e exploradoras. Veja W. R. Herzog, “Temple cleansing”, Dictionary of Jesus and
the Gospels, p. 820.
46 Catchpole resume o padrão para a “entrada triunfal” de reis: (1) conquista de uma vitória
significativa; (2) entrada pública e formal na cidade; (3) recepção solene e louvor a Deus/deuses; (4)
entrada no templo; (5) atividade cultual positiva ou negativa (“The ‘Triumphal’ Entry”, p. 321). Cf.
Losie, “Triumphal Entry” p. 854-5.
47 J. H. Charlesworth, org., The Old Testament pseudepigrapha (Garden City: Doubleday, 1983–
1985), 2:667, 2 vols.
48 Veja N. T. Wright, Jesus and the victory of God, p. 320-68.
49 A palavra grega aqui é lēstēs e o mais provável é que designe revolucionários que buscavam
derrotar Roma com violência, como também em Marcos 14.48; 15.27; Jo 18.40. Veja N. T. Wright,
Jesus and the victory of God, p. 419-20.
50 Lohfink, Jesus and community, p. 20.
51 Para uma análise proveitosa da Última Ceia, veja N. T. Wright, Jesus and the victory of God, p.
553-63.
52 Há uma discrepância entre Mateus, Marcos e Lucas, que dizem que Jesus celebrou a Última Ceia

na noite da Páscoa, e João, que diz que foi na noite anterior. Há diversas tentativas de reconciliar essa
discrepância. Cf. Joachim Jeremias, The Eucharistic words of Jesus (New York: Scribner, 1966)
[edição em português: Isto é o meu corpo, tradução de Pinheiro de Lemos (São Paulo: Paulinas, 1978)].
53 N. T. Wright, Jesus and the victory of God, p. 559.
54 Para uma análise proveitosa dos julgamentos de Jesus, veja B. Corley, “Trial of Jesus”, in:
Dictionary of Jesus and the Gospels, p. 841-54.
55 Para um análise assustadora da cruz no Império Romano, veja Martin Hengel, Crucifixion
(London: SCM, 1977). Cf. Joel B. Green, “Death of Jesus”, in: Dictionary of Jesus and the Gospels, p.
147-8.
56 “Entre as punições torturantes observadas na literatura da antiguidade, a crucificação era
especialmente horripilante. O ato em si não prejudicava quaisquer órgãos vitais, nem resultava em
sangramento excessivo. Logo, a morte vinha lentamente, às vezes depois de vários dias, por meio de
choque ou de um processo doloroso de sufocamento à medida que os músculos usados na respiração
sofriam uma fadiga cada vez maior” (Joel Green, “Death of Jesus”, p. 147).
57 “A crucificação era essencialmente um evento público. Nua e afixada a uma estaca, cruz ou
árvore, a vítima era sujeitada a uma zombaria selvagem por transeuntes frequentes, enquanto a
população como um todo recebia um lembrete repugnante do destino daqueles que se declaram contra a
autoridade do estado” (Joel Green, “Death of Jesus”, p. 147).
58 “Em um mundo que ansiava por salvação pessoal, e que estava repleto de deuses e senhores
afirmando satisfazer essa necessidade, quão completamente absurdo e de fato revoltante afirmar que
um judeu de uma província notoriamente turbulenta do Império que foi condenado como blasfemador e
executado como traidor era o Salvador do mundo! Como qualquer pessoa poderia acreditar nisso?”
(Lesslie Newbigin, “Context and conversion”, International Review of Mission 68 [1978]: 301).
59 Uma boa introdução a esse tema é John Driver, Understanding the atonement for the mission of
the church (Scottdale: Herald, 1986).
60 Para uma boa visão geral, veja Joel Green, “Death of Jesus”, in: Dictionary of Jesus and the
Gospels, p. 154-63. Eu sigo a sua interpretação no parágrafo seguinte. Veja seu artigo para mais
detalhes.
61 Ibidem, p. 162.
62 Driver, Understanding the atonement, p. 71-86.
63 Para um resumo do sistema sacrifical no templo, veja N. T. Wright, Jesus and the victory of God,
p. 407-11.
64 Havia um espectro de visões no judaísmo sobre a ressurreição. De modo geral, podemos
distinguir três visões: (1) Alguns haviam adotado uma cosmovisão platônica, helenista e interpretado a
ressurreição de modo espiritual sobretudo como uma existência etérea e sobrenatural (p. ex., Filo). (2)
Os saduceus negavam completamente a ressurreição por causa das implicações políticas radicais da
ressurreição e do reino de Deus. (3) Os fariseus enxergavam a ressurreição como parte da restauração
de toda a criação. Essa última era a visão dominante na época e a única de que trataremos aqui. Para
uma análise estendida da ressurreição no judaísmo pós-bíblico, veja N. T. Wright, The resurrection of
the Son of God (Minneapolis: Fortress, 2003), p. 129-206 [edição em português: A ressurreição do
Filho de Deus, tradução de Eliel Vieira (São Paulo: Paulus/Academia Cristã, 2013)].
65 N. T. Wright, The New Testament and the people of God, p. 332.
66 Para uma análise mais abrangente sobre a ressurreição em Paulo, veja N. T. Wright, The
resurrection of the Son of God, p. 209-398; nos Evangelhos, p. 401-49; e em outros escritos do Novo

Testamento, p. 450-79.
67 Para uma explicação adicional das quatro “comissões”, veja Mortimer Arias; Alan Johnson, The
Great Commission: biblical models for evangelism (Nashville: Abingdon, 1992).
68 A última comissão em Marcos aparece em 16.15-18. Os manuscritos gregos mais antigos e mais
fidedignos não possuem Marcos 16.9-20. Logo, é provável que o Evangelho de Marcos originalmente
terminasse em 16.8. Portanto, trataremos somente de Mateus, Lucas e João.

Propagando a notícia do Rei
A missão da igreja
O objetivo da obra redentora de Deus é restaurar sua criação dos efeitos do
pecado. Em sua morte, Jesus derrotou o pecado e, em sua ressurreição,
inaugurou uma nova era de salvação e de restauração. O banquete do reino
está pronto para ser desfrutado, mas ainda não será servido. Antes, mais
povos precisam ser reunidos à mesa do banquete para que também possam
experimentar do poder renovador da era vindoura. Esse período
intermediário, após a primeira vinda de Jesus e antes de seu retorno, é um
período de missão para o Cristo exaltado, para o Espírito e para a igreja.
Cena 1: De Jerusalém até Roma
Lucas é o único autor dos Evangelhos a dar continuidade à história depois da
morte e ressurreição de Jesus. O livro de Atos é na verdade o segundo
volume do Evangelho de Lucas, contando a história da vinda do reino de
Deus durante as três décadas após a ressurreição de Jesus.
1
A obra do Cristo exaltado e que reina é derramar a salvação sobre o
mundo. As palavras iniciais de Lucas no livro de Atos sugerem isso: “Em
meu livro anterior, Teófilo, escrevi a respeito de tudo o que Jesus começou a
fazer e a ensinar, até o dia em que foi levado ao céu” (At 1.1,2, grifo dos
autores). A implicação clara é que esse segundo volume da história de Lucas
é sobre tudo o que Jesus continua fazendo e ensinando, mesmo depois de ter
voltado ao Pai. A obra de Jesus agora ocorre essencialmente por meio de seu
Espírito, que distribui todos os dons de seu reino, “enchendo” a igreja e
dando poder a uma comunidade de seguidores de Jesus, por meio de quem
ele leva sua mensagem de salvação ao mundo. Enquanto estava vivo na terra,
Jesus basicamente confinou sua obra a Israel; o Cristo exaltado agora estende

seu ministério “até os confins da terra” (1.8). Essa segunda parte da história
do evangelho é sobre a missão contínua do Cristo exaltado por intermédio de
seu Espírito para trazer salvação à igreja e por meio da igreja a todo o
mundo. Nós que estamos em continuidade histórica com essa igreja primitiva
também fomos incluídos em sua missão. Sua história também é nossa.
Cristo é exaltado à direita de Deus
No início do livro de Atos, o Cristo ressurreto aparece aos seus discípulos
durante um período de quarenta dias, no qual há muito diálogo sobre o reino
de Deus e a vinda do Espírito (1.3-5). Os discípulos fazem a Jesus a pergunta
óbvia: “Senhor, é este o tempo em que restaurarás o reino a Israel?” (1.6).
Sua resposta é significativa: “Não lhes compete saber os tempos ou as épocas
que o Pai estabeleceu por sua autoridade. Mas receberão poder quando o
Espírito Santo descer sobre vocês; e serão minhas testemunhas em Jerusalém,
em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra” (1.7,8). Não compete
aos discípulos saber quando o fim virá (cf. Mc 13.32), mas até então — até
Jesus voltar — o Espírito levará a vida do reino por meio do testemunho dos
seguidores de Jesus a todas as nações.
Em seguida Jesus é levado ao céu (At 1.9) ou “exaltado à direita de
Deus”, como Pedro afirma na sequência (2.33; 5.31). É dia de coroação! O
Messias agora compartilha do trono de Deus sobre toda a criação e sobre
todos os povos.
É importante entender a importância desse lugar descrito como “à direita
de Deus”. Embora muitos judeus acreditem que o Messias compartilhará do
trono de Deus, eles esperam que o trono de Deus estará em Jerusalém, a
partir do qual o Messias governará um império judaico mundial. No entanto,
o trono do Messias, como Pedro o descreve, não está de modo algum em
Jerusalém: ele está inteiramente acima do mundo, no céu à direita de Deus.
Esse é o lugar da mais alta autoridade e honra. O reino de Deus não tem
qualquer tipo de limitação. Jesus não somente senta no trono de nosso
coração e reina ali: esse é um conceito demasiadamente limitado de sua
autoridade. Jesus reina sobre toda a vida humana, sobre toda a história e

sobre todas as nações.
O nome que Jesus recebe ao ascender para governar a partir da direita de
Deus é igualmente significativo. Uma confissão cristã primitiva afirma:
Deus exaltou [Jesus] ao lugar mais alto
e lhe deu o nome que está acima de todo nome;
para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho
no céu, na terra e debaixo da terra,
e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai (Fp 2.9-11).
Esse “nome” se torna a confissão central da igreja primitiva: Jesus é Senhor,
um título que expressa autoridade suprema (kyrios em grego; At 2.36; Rm
10.9; 1Co 12.3). Havia muitos senhores no Império Romano, cada um com
autoridade sobre uma esfera limitada: o paterfamilias [pai de família] era
senhor sobre sua casa, o centurião era senhor sobre cem soldados e assim por
diante. No entanto, no Império Romano, o próprio César era supremo.
Comandantes militares romanos e outros precisavam confessar: “César é
Senhor”. Contudo a igreja primitiva não podia afirmar isso, visto que
acreditava que a autoridade de César abarcava somente as atividades políticas
de Roma e mesmo nisso estava subordinada à autoridade de Deus por meio
de Cristo. Jesus, não César, era Senhor sobre toda a terra. A recusa da igreja
primitiva em afirmar o contrário a colocou em rota de colisão com a
autoridade romana e gerou muito conflito e sofrimento.
Quando Pedro (em At 2.32-36) afirma que Jesus foi ressuscitado à direita
de Deus, ele cita Salmos 110.1: “O SENHOR disse ao meu Senhor: Senta-te à
minha direita, até que eu faça de teus inimigos um estrado para os teus pés”
(NVI). Esse versículo define a missão do Cristo exaltado: subjugar todos os
seus inimigos. O salmo continua falando sobre o SENHOR estendendo seu
cetro poderoso sobre toda a terra, governando em meio aos seus inimigos,
esmagando reis inferiores em sua ira, julgando as nações e amontoando os
mortos. Parece que o reino de Deus virá por meio de um violento poder
militar sobre os inimigos políticos de Israel. No entanto, não é o que
acontece, nem antes nem depois do Pentecostes. Jesus usa sua autoridade de

modo muito diferente.
Em seu ensino anterior, Jesus já havia redefinido tanto os “inimigos”
quanto a sua “subjugação”. O “inimigo” real do reino de Deus não é Roma,
mas os poderes do mal que estão por trás de toda a oposição ao governo de
Deus.
2 A subjugação não ocorrerá pela força militar, mas pelo poder amoroso
do evangelho. “Subjugar seus inimigos” significa dar-lhes a salvação que ele
realizou: “como o entronizado (Messias), como o Benfeitor das pessoas
(Senhor), o Jesus exaltado agora reina como Salvador, derramando as
bênçãos da salvação, incluindo o Espírito […] sobre todos”.
3
O Ato 5 deste livro examina a continuação da história do evangelho,
especialmente a forma de Lucas narrá-la em Atos.
4 Nosso propósito é
discernir como o Cristo exaltado executa a sua missão — e como nós estamos
envolvidos nisso.
O Cristo exaltado derrama o seu Espírito
Após Jesus ascender ao Pai, a obra de Jesus começa com o derramamento de
seu Espírito. O Antigo Testamento prometeu que nos últimos dias o Espírito
seria derramado sobre o Messias Servo (Is 42.1), sobre Israel (Ez 37.14) e
sobre todas as pessoas (Jl 2.28-32). O Espírito foi derramado sobre Jesus no
início de seu ministério, mas não será dado plenamente até a sua exaltação
(Lc 3.21,22; Jo 7.39). Depois da ressurreição, Jesus promete que o Espírito
Santo será derramado sobre seus seguidores e lhes orienta a esperar em
Jerusalém (Lc 24.49; At 1.4,5).
Esse ato poderoso de Deus ocorre cerca de dez dias após a ascensão de
Jesus, na festa judaica do Pentecostes. O timing é significativo de dois modos
distintos. Originalmente, essa festa era um momento para Israel trazer os
primeiros frutos de sua colheita a Deus como prenúncio de toda a colheita
que seria recolhida (Êx 23.16; Dt 16.9-12). Deus escolhe esse dia para dar o
Espírito, que é o primeiro fruto do reino vindouro de Deus (cf. Rm 8.23). No
segundo século antes de Cristo, a Festa de Pentecostes havia perdido seu foco
original de festa da colheita.
5 Em vez disso, celebrava a promessa que Deus
havia feito a Abraão, de que seus descendentes “se tornariam um povo eleito

[…] e uma herança de todas as nações da terra daqui em diante e durante
todos os dias das gerações da terra para sempre”.
6 Assim, na época de Jesus,
a Festa de Pentecostes celebrava a renovação da aliança de Israel e a
inclusão das nações na aliança feita entre Deus e Abraão. Agora, nessa Festa
de Pentecostes, o Espírito vem para cumprir essa expectativa e esperança.
Enquanto os discípulos estão reunidos no dia de Pentecostes, um vento
impetuoso subitamente enche a casa (At 2.1-4). Línguas de fogo pousam
sobre a cabeça deles, e todos são enchidos com o Espírito Santo. Esses dois
sinais da presença do Espírito —vento e fogo — são significativos. Na
parábola de Ezequiel dos “ossos secos”, o SENHOR Soberano afirma: “Ó
sopro, venha dos quatro ventos e sopre dentro desses mortos para que
vivam”. Ele promete colocar o seu Espírito neles para que possam viver. O
vento representa o poder de Deus para gerar nova vida (Ez 37.9,14). Na
verdade, a palavra hebraica para Espírito no Antigo Testamento (ruach) e a
palavra grega para Espírito no Novo Testamento (pneuma) podem significar
“vento” ou “sopro”. Semelhantemente, o fogo muitas vezes representa a
presença de Deus, da mesma forma que a coluna de fogo mostrava a sua
presença durante o Êxodo do Egito (Êx 3.2; 13.21,22; 19.18). Aqui no
Pentecostes, o Espírito de Deus vem com o sinal do fogo, um símbolo da
presença poderosa de Deus trazendo a vida do reino.
Durante esse período de festa, Jerusalém está repleta de pessoas de muitas
partes do Império Romano, e um terceiro sinal da presença do Espírito vem
quando os discípulos começam a falar em línguas diferentes, tornando a boa
notícia disponível a pessoas de várias nacionalidades em seus próprios
idiomas. O evangelho não está mais confinado à nação judaica e ao idioma
hebraico: o governo de Deus começa a se expandir às nações, fora de Israel,
conforme Jesus prometeu que ocorreria.
Esse acontecimento extraordinário — pessoas falando em idiomas que
eles nunca aprenderam — é incrível, desconcertante para aqueles que o
testemunham. O que pode estar acontecendo? Pedro se levanta e prega um
sermão que explica o significado do que aconteceu aos seguidores de Jesus
(At 2.14-36). Esse acontecimento cumpre a profecia de Joel de que o Espírito

será derramado nos últimos dias (2.16-21). Esses “últimos dias” chegaram,
inaugurados por Jesus de Nazaré. Sua própria vida revelou o reino dos
“últimos dias” e, ainda assim, ele foi pregado à cruz de acordo com o plano
de Deus (2.22,23). Mas Deus depois disso ressuscitou Jesus dos mortos: os
discípulos são testemunhas oculares desse fato (2.24-32). Esse mesmo Jesus,
outrora crucificado, agora foi exaltado à direita de Deus e reina ali, colocando
todos os inimigos debaixo de seus pés. Ele é Senhor e Messias. Tendo
recebido o Espírito Santo prometido de seu Pai, Cristo agora derramou o
mesmo Espírito sobre seus discípulos (2.23-36).
O Cristo exaltado agora agirá pelo seu Espírito, que assim se torna o ator
principal no livro de Atos.
7 O Espírito envia as boas-novas aos confins da
terra, acrescenta novos convertidos à comunidade, guia e capacita os
apóstolos e a igreja para executar sua missão e age em juízo tanto dentro
quanto fora da igreja.
8
O Espírito forma uma comunidade
A primeira obra do Espírito é formar uma comunidade para participar da
salvação do reino e para ser um canal dessa salvação a outros. Essa é a parte
seguinte da história que Lucas conta (At 2.37-47).
Quando Pedro termina o seu sermão explicando o significado do
acontecimento do Pentecostes, a resposta imediata das pessoas é perguntar:
“Que faremos?”. Elas entendem que mataram o Messias! Pedro responde:
“Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo,
para perdão de seus pecados. E receberão a dádiva do Espírito Santo” (2.38).
Deus exige que aqueles que respondem se arrependam — se afastem da
idolatria e orientem sua vida para Cristo e seu reino vindouro — e sejam
batizados para dentro dessa comunidade que agora recebeu a dádiva do reino:
o Espírito Santo. Nessa comunidade, o Espírito Santo concede a bênção do
perdão. Respondendo ao sermão de Pedro, cerca de três mil pessoas são
acrescentadas imediatamente à jovem igreja. Na seção seguinte de seu livro,
Lucas descreve a vida dessa comunidade da igreja primitiva. Isso não é
meramente uma lição histórica, mas também um projeto para o que a igreja

deve ser em todas as épocas.
A forma de Lucas descrever a jovem igreja, tem três características
básicas. A primeira é dedicação: essa nova comunidade se dedica ao ensino
dos apóstolos, à comunhão, ao partilhar do pão e à oração a fim de que as
pessoas possam experimentar cada vez mais a vida do reino (2.42). A
segunda característica básica da igreja é que a vida de Cristo é manifestada
tanto na vida de membros individuais quanto na vida da comunidade como
um todo. Assim, a igreja é conhecida por sinais convincentes do poder
salvador divino nela (2.43), pela justiça e misericórdia em seus
relacionamentos comunitários (2.44,45), pela cordialidade empolgante (2.46)
e pela adoração (2.47). Em terceiro lugar, à medida que a vida libertadora do
reino se torna cada vez mais evidente na igreja, ouvimos que o Senhor
exaltado “[acrescenta] a cada dia os que vão sendo salvos” (2.47). Isso
também cumpre profecias do Antigo Testamento acerca do reino de Deus. Os
profetas descrevem o poder de atração de um Israel renovado (Is 60.2,3; Zc
8.20-23): “Um elemento crucial da concepção profética da peregrinação das
nações a Sião é que os gentios, fascinados pela salvação visível em Israel, são
impelidos por sua própria vontade ao povo de Deus. Eles não passam a crer
como resultado de atividade missionária; antes, a fascinação emitida pelo
povo de Deus faz com que se aproximem”.
9 Essa comunidade recém-formada
da igreja primitiva é atraente para os de fora. A vida da comunidade cristã
irradia a luz do reino e, assim, tira as pessoas das trevas (cf. Ef 5.8; 1Pe 2.9).
Embora a comunidade cheia do Espírito de Atos 2 seja em certo sentido
nova na história, ela também está em continuidade histórica com a nação do
Antigo Testamento que tinha a sua origem em Abraão. Deus formou Israel
para ser luz para as nações, mas os israelitas não viveram à altura de seu
chamado, de modo que Deus os enviou para o Exílio. No entanto, ele
prometeu reunir seu povo novamente no futuro, derramando seu Espírito
sobre ele a fim de que pudesse finalmente cumprir o seu chamado. Os
profetas anteviam o dia em que Israel seria ajuntado novamente. Agora, em
Jesus, esse novo ajuntamento começou. Ele designou doze apóstolos,
representando as doze tribos de Israel, para serem o fundamento de seu reino,
a nova nação do povo de Deus. No Pentecostes, em resposta à pregação de

Pedro e ao poder do Espírito Santo, três mil pessoas são acrescentadas a esse
fundamento. O restante do livro de Atos conta a história de como essa nova
comunidade de cristãos continua a missão de Jesus de ajuntar os perdidos de
Israel, depois ultrapassa barreiras étnicas e culturais para reunir e trazer
samaritanos e gentios ao reino.
10
A igreja testemunha em Jerusalém
Após o seu início (At 2), a história do testemunho da igreja continua em
Jerusalém (3.1—6.7), passa para a Judeia e Samaria (6.8—11.18) e acaba se
deslocando das periferias e províncias do Império Romano até a própria
Roma (11.19—28.31), conforme o próprio Jesus havia prometido (1.8). Atos
3.1—6.7 dá mais detalhes sobre o primeiro estágio desse testemunho do
Espírito por meio da comunidade apostólica: o princípio, em Jerusalém.
Observamos três agentes desse testemunho: é a obra do Cristo exaltado
pelo Espírito por meio da igreja. Mas o livro de Atos descreve como esse
testemunho também ocorre por meio da palavra de Deus. Em cada uma das
grandes seções de Atos, lemos a frase: “Assim, a palavra de Deus era
difundida” ou algo similar (6.7; 12.24; 19.20).
11 A mensagem do evangelho é
propagada de Jerusalém até Roma, reunindo um número crescente de adeptos
à medida que é incorporada em sua comunidade, praticada em suas vidas e
explicada em suas palavras.
Após o Espírito ser derramado (2.1-13), a primeira comunidade dos que
creem é formada em Jerusalém em resposta à proclamação das boas-novas
por Pedro (2.14-47). Esse grupo dos que creem segue a Jesus ao testemunhar
acerca do reino como ele fazia. No relato de Lucas, esse testemunho pelas
ações, bem como pelas palavras dos quem creem, começa com Pedro e João
visitando o Templo. No caminho, eles curam um homem aleijado de
nascença (3.1-10). Isso imediatamente atrai uma multidão, e Pedro aproveita
a oportunidade para proclamar a boa notícia mais uma vez: na morte e na
ressurreição de Jesus Cristo, a história do Antigo Testamento alcançou o seu
clímax (3.11-26).
As palavras e ações desses dois discípulos imediatamente produzem

reação hostil e sofrimento, exatamente como ocorreu com as palavras e ações
de Jesus. Os líderes judeus prendem Pedro e João, os colocam na cadeia e
depois disso os levam diante do Sinédrio para responder pela sua pregação
“perturbadora”. Isso fornece a Pedro mais uma oportunidade para proclamar
as boas-novas de Jesus. Os homens do Sinédrio se veem em uma situação
difícil. Eles querem punir Pedro e João, mas ocorreu um milagre (a cura do
homem aleijado), que eles não ousam negar. Assim, eles meramente os
advertem a parar de propagar o evangelho, mas os dois respondem: “Julguem
por si mesmos se é justo diante de Deus dar ouvidos a vocês e não a Deus,
pois não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos” (4.19,20).
Depois de sua libertação, Pedro e João voltam à comunidade da igreja
para relatar o que ocorreu, e a igreja imediatamente passa à oração. Eles
pedem para que o Senhor soberano lhes conceda ousadia e poder contínuos
em seu testemunho em face de hostilidade (4.23-31). A resposta é dramática:
“Depois de orarem, o lugar em que estavam reunidos tremeu. E todos ficaram
cheios do Espírito Santo e anunciavam a palavra de Deus com ousadia”
(4.31). Por meio da oração, o Espírito Santo opera um testemunho poderoso.
Jesus é o exemplo para orar frequentemente, e agora a sua igreja o segue em
oração.
À medida que cada vez mais pessoas creem e são acrescentadas aos
seguidores de Cristo (5.14), o êxito desse movimento enche os líderes judeus
de inveja e fúria. Eles prendem os apóstolos e querem matá-los, mas o fariseu
Gamaliel recomenda cautela. Ele sugere que se esse movimento tem origem
meramente humana, fracassará; mas se é de Deus então os líderes não
desejarão combatê-lo (5.33-39). O Sinédrio ouve, adverte os apóstolos
novamente a não falar acerca de Jesus e, então, manda açoitá-los antes de
libertá-los. Mas os apóstolos recebem esse tratamento brutal com alegria,
pois foram considerados dignos de sofrer por causa do nome de Jesus (5.41).
Seu testemunho continua: “E todos os dias, nos pátios do templo e de casa em
casa, não cessavam de ensinar e de anunciar a boa notícia de que Jesus é o
Cristo” (5.42). Mera oposição humana não consegue interromper a
propagação do evangelho, pois o crescimento da igreja e a vinda do reino são
obra de Deus. O Senhor soberano está ativo pelo seu Espírito e em sua

palavra para levar pessoas à fé. Na história de Atos, vemos “os atos
poderosos de Deus em luta com forças hostis ao evangelho cristão”.
12 Mas
nem o Sinédrio ou Herodes (Agripa I) nem qualquer outra autoridade política
consegue silenciar o testemunho poderoso do evangelho (caps. 3; 5; 12).
Grande parte de Atos está tomada com o testemunho dos apóstolos. No
entanto, é a vida da comunidade à medida que concretiza a obra poderosa do
Espírito que autentica a verdade das boas-novas.
13 Essa vida vibrante e
compartilhadora atrai cada vez mais pessoas de fora da comunidade para se
unirem àqueles que já possuem essa nova vida.
14 Os apóstolos podem
proclamar o evangelho a qualquer um que está disposto a ouvir, mas é por
meio da observação da vida da comunidade cristã que muitas pessoas são
convencidas de sua verdade (4.32-37). O testemunho apostólico depende de
uma comunidade que comprova a verdade do evangelho com seu modo de
vida cativante. Assim, quando o testemunho da vida comunitária da igreja é
ameaçado, os apóstolos agem de modo rápido e decisivo (6.1-6). Na
distribuição diária de alimentos, os discípulos judeus de fala grega reclamam
que suas viúvas estão sendo ignoradas. Os apóstolos reconhecem
rapidamente que isso é injusto. Eles propõem que a igreja aponte sete homens
piedosos para supervisionar a distribuição de alimentos e outros cuidados
para com os necessitados, enquanto eles mesmos continuam dedicando sua
atenção à palavra e à oração. Esses sete são os primeiros diáconos da igreja.
Assim, inicia uma tradição de cuidar de necessidades físicas na igreja, uma
prática que continuará sendo um testemunho poderoso da compaixão, da
misericórdia e da justiça do evangelho — atraindo até mesmo sacerdotes.
“Assim a palavra de Deus era divulgada. O número de discípulos em
Jerusalém aumentava rapidamente, e um grande número de sacerdotes se
tornou obediente à fé” (6.7).
Os discípulos testemunham acerca da boa notícia em Jerusalém e a
reunião de uma comunidade dos que creem cumpre as profecias do Antigo
Testamento que dizem respeito ao ajuntamento do Israel disperso. Mas as
mesmas profecias também prometeram que a salvação de Deus se estenderá a
todas as nações. Até agora na história da igreja primitiva, ela continua sendo
em grande parte uma comunidade judaica (embora alguns gentios estejam

começando a ingressar nela). O próximo desenvolvimento importante na
história é que o evangelho se desloca cada vez mais àqueles que estão fora do
contexto judaico,
15 começando com os gentios tementes a Deus que já
adoram na sinagoga.
A igreja testemunha em Samaria e na Judeia
A boa notícia do reino não pode permanecer confinada a Jerusalém. Ela
precisa alcançar “os confins da terra”.
Atos narra o progresso do evangelho a partir de um pequeno ajuntamento de discípulos judeus do
Jesus terreno em Jerusalém, atravessando barreiras cultuais, étnicas, relacionais e geográficas
descomunais até a pregação ousada e desimpedida de Paulo acerca do Jesus ressurreto e assunto ao
céu a gentios em Roma. Atos é sem dúvida uma história de expansão missionária, que é anunciada
em 1.8 e confirmada ao longo do caminho com os assim chamados relatórios de progresso.
16
À medida que o evangelho se propaga de Jerusalém para as províncias da
Judeia e Samaria (6.8—12.24), a responsabilidade pelo testemunho vai além
dos apóstolos para incluir outros na comunidade. Exemplos especiais são
Estêvão e Filipe, que estão entre os sete designados na igreja de Jerusalém
(6.1-6). Logo não são somente os líderes da igreja que espalham a boa
notícia: cristãos “comuns” também estão envolvidos no testemunho.
Estêvão, um dos sete homens designados para cuidar das viúvas,
testemunha de modo poderoso em palavras e ações entre as sinagogas
judaicas em Jerusalém, nos seus arredores e talvez ainda mais adiante. Agora,
os judeus que rejeitaram Jesus começam a se opor a Estêvão. Incapazes de
sobrepujar a sabedoria de Estêvão e o Espírito operando nele, seus inimigos
conspiram contra ele e fazem falsas acusações diante do Sinédrio (6.8-15). O
comparecimento de Estêvão ali permite que ele proclame a boa notícia acerca
de Jesus Cristo (7.1-53).
17 Ele conta aos líderes judeus a história de sua
própria nação — com os acontecimentos da vida de Jesus como o clímax e
cumprimento dessa história. Os próprios líderes, Estêvão afirma, são
conforme o Israel rebelde do Antigo Testamento, que se opunha
constantemente à obra de Deus: “Homens teimosos e incircuncisos de
coração e ouvido! Vocês são iguais aos seus antepassados. Vocês sempre

resistem ao Espírito Santo! Houve sequer um profeta que seus antepassados
não perseguiram? Mataram até os que predisseram a vinda do Justo. E agora
vocês o traíram e assassinaram” (7.51,52). Os judeus, furiosos com as
acusações de Estêvão, rangem os seus dentes, tapam seus ouvidos e lançam-
se contra Estêvão, abafando a voz dele com gritos. Eles o arrastam para fora
da cidade e o apedrejam até a morte. Mas Estêvão (como Jesus) morre com
palavras de perdão para aqueles que tiram a sua vida (7.54-60; cf. Lc 23.34).
Na sequência uma grande perseguição irrompe contra a igreja em
Jerusalém. Os discípulos deixam a cidade e vão para áreas vizinhas da Judeia
e da Samaria, mas “os que haviam sido dispersos iam por toda parte,
anunciando a palavra” (8.4). Embora a igreja certamente não tenha planejado
essa “expansão missionária”, a dispersão está sendo usada pelo Espírito.
Todos os que são expulsos de Jerusalém por essa perseguição começam a
espalhar as boas-novas. Já não são somente os representantes oficiais da
igreja que tornam o evangelho conhecido (8.4; 11.19-21; cf. 1Ts 1.8). Da
maneira como o livro de Atos conta a história, a propagação do evangelho
poderia parecer principalmente a obra dos apóstolos ao serem dirigidos e
guiados pelo Espírito. No entanto, ocasionalmente há relatos que mostram
que a maior parte do evangelismo era a obra de cristãos comuns, os
“missionários informais” da igreja primitiva: “A grande missão no
cristianismo era na verdade realizada por meio de missionários informais”.
18
Essa “expansão espontânea da igreja […] resulta da atividade não estimulada
e não organizada de membros individuais da igreja explicando a outros o
evangelho que encontraram para si mesmos”.
19
Um dos que foram expulsos de Jerusalém pela grande perseguição é
Filipe. Ele viaja para Samaria (At 8.5-25) e mais tarde se encontra com um
eunuco etíope, com quem compartilha as boas-novas (8.26-40).
Aproximadamente na mesma época, uma igreja para judeus e gentios é
plantada em Antioquia por cristãos anônimos que também haviam sido
espalhados pela perseguição (11.19-21; cf. Gl 2.11-14). O Espírito está
usando os inimigos da igreja para espalhar seus membros por todo o Império
Romano. Assim, em vez de frear a difusão do evangelho, esses inimigos na
verdade colaboram para difundi-lo!

O acontecimento certamente mais importante que surge desse período de
perseguição é a conversão e o chamado de um homem de Tarso chamado
Saulo (At 9.1-30). Saulo estava presente quando Estêvão foi apedrejado até a
morte — é possível que até tenha comandado essa ação (8.1) — e agora
lidera a campanha do Sinédrio de perseguição contra a jovem igreja. Ele está
comunicando as instruções do Sinédrio a sinagogas em toda a Palestina e
além dela, autorizando-o a capturar discípulos de Jesus e levá-los de volta a
Jerusalém para serem julgados. No entanto, na estrada para Damasco, uma
luz ofuscante atinge Saulo. Ele ouve uma voz que diz: “Saulo, Saulo, por que
você me persegue?”. Após Saulo perguntar: “Quem és tu, Senhor”, ouve: “Eu
sou Jesus, a quem você persegue” (9.4,5). Quando seus seguidores sofrem,
Jesus sofre. A partir desse acontecimento, Saulo se torna um seguidor de
Jesus Cristo. Ele desempenhará um papel importante na propagação do
evangelho aos gentios como o “instrumento escolhido [do Senhor] para levar
o nome [de Jesus] perante os gentios e seus reis e perante o povo de Israel”
(9.15).
À medida que os que creem se dispersam e compartilham as boas-novas
em toda a Judeia, Galileia e Samaria, nascem igrejas. Após a conversão de
Saulo (cujo nome romano é Paulo; 13.9), lemos este resumo: “Depois disso a
igreja desfrutou um tempo de paz em toda a Judeia, Galileia e Samaria. Ela
foi edificada e encorajada pelo Espírito Santo. Ela crescia em número
vivendo no temor do Senhor” (9.31).
Ao se espalhar para além de Jerusalém, o evangelho alcança
principalmente as sinagogas judaicas em toda a Palestina e mais além. Há
judeus vivendo em todo o Império Romano, e em todos esses lugares há
sinagogas. Assim, a igreja primitiva mantém forte associação com a cultura
judaica. Contudo, essa associação está prestes a mudar.
Enquanto Pedro está viajando pela Judeia e chega até Jope junto ao mar,
ele tem uma visão em que um lençol com todo tipo de animais impuros desce
do céu (10.9-16). Pedro ouve uma voz que o ordena que mate e coma, mas
ele responde:
“De modo nenhum, Senhor! Nunca comi algo profano ou impuro”. O

Senhor insiste: “Não chame impuro ao que Deus purificou” (10.14,15). Três
vezes Pedro recebe essa visão. Ele obviamente está pensando nas leis
alimentares que Deus ordenou no Antigo Testamento. Agora elas funcionam
como parte dos elementos cruciais que separam judeus e gentios. Enquanto
Pedro está intrigado sobre o significado dessa visão, alguns homens enviados
por Cornélio, um centurião gentio temente a Deus, chegam para convidar
Pedro à casa de Cornélio em Cesareia. Cornélio também tem uma história
para contar: ele viu um anjo que o instruiu a buscar Pedro. Ele conclui:
“Agora estamos todos aqui na presença de Deus, para ouvir tudo que o
Senhor te ordenou dizer-nos” (10.30-33). Assim, Pedro começa a contar as
boas-novas de Jesus a uma família estendida de gentios. Enquanto está
falando, o Espírito desce sobre todos os que ouvem, e Pedro e os outros
judeus cristãos ficam abismados ao constatarem pessoalmente que Deus
derrama o seu Espírito até sobre os gentios. Em seguida Cornélio e sua casa
são batizados em nome de Jesus (10.44-48). Quando Pedro volta a Jerusalém,
a igreja ali o critica por comer com os gentios. Pedro explica as visões que ele
e Cornélio receberam e o fato de que o próprio Espírito ratificou a fé desses
gentios. Depois disso, os cristãos judeus na igreja de Jerusalém não têm mais
objeções (11.1-17). Eles louvam a Deus visto que ele “concedeu até mesmo
aos gentios o arrependimento para a vida” (11.18).
Essa seção de Atos, que descreve a propagação não planejada do
evangelho para além de Jerusalém, termina com mais uma história de
oposição e perseguição. Herodes (Agripa I) já executou Tiago (o irmão de
João) e agora prende Pedro com a mesma intenção. Mas em resposta às
orações da igreja, Deus envia um anjo para libertar Pedro da prisão de
Herodes — para grande surpresa da igreja reunida em oração (12.1-19). Em
uma história subsequente, Herodes é ferido por Deus e tem uma morte
dolorosa, pois aceitou de modo blasfemo ser adorado como um deus (12.19-
23; cf. Dn 4.28-37). A mensagem é clara: nenhum ser humano, nenhum
oponente de qualquer tipo, pode atrapalhar a obra redentora de Deus. Herodes
morre, todavia “a palavra de Deus [continua] crescendo e se multiplicando”
(12.24).

A igreja testemunha até os confins da terra (Roma)
Embora o evangelho tenha começado a se deslocar para fora de Jerusalém,
ele se espalhou principalmente entre os judeus dispersos em todo o Império
Romano. Mas algo novo começa a ocorrer em Antioquia, onde cristãos —
tanto judeus quanto gentios — se uniram para formar uma igreja (At 11.19-
21). Quando a igreja-mãe em Jerusalém ouve isso, envia Barnabé para
verificar o que está acontecendo em Antioquia. Barnabé vê evidências claras
da graça de Deus operando entre os cristãos antioquenos e os encoraja a
continuar em sua fé. Na verdade, essa igreja está destinada a se tornar a base
para um amplo projeto missionário que enviará Paulo com o evangelho de
Cristo a grande parte do Império Romano. Enquanto a igreja em Antioquia
está adorando, o Espírito Santo diz: “Separem-me Barnabé e Saulo para a
obra para a qual os tenho chamado” (13.2). Após jejuar e orar, os líderes da
igreja impõem suas mãos sobre Saulo e Barnabé e os enviam para pregar o
evangelho em outras cidades do Império Romano.
20
Aqui, pela primeira vez vemos um esforço planejado para levar o
evangelho a lugares em que este ainda não foi ouvido. Essa igreja continua
executando sua própria missão no lugar em que foi estabelecida: na própria
Antioquia. Mas agora ela também fixa seu olhar para “os confins da terra” em
obediência ao chamado divino. O primeiro grande deslocamento para fora de
Jerusalém foi uma expansão não planejada do evangelho para a Judeia,
Samaria e certas áreas gentílicas (6.8—12.25). Agora vemos uma expansão
organizada a partir da igreja de Antioquia para a Ásia Menor e a Europa sob
a liderança de Paulo (12.25—19.20).
21
Paulo, o grande missionário cristão, nos foi apresentado como Saulo, o
fariseu, o perseguidor implacável da igreja em sua fase inicial. Após a visão
de Paulo do Cristo ressurreto, ele experimenta uma conversão dramática e
responde ao chamado de Deus “para levar o nome [de Jesus] perante os
gentios e seus reis, e perante o povo de Israel” (9.15). Mais tarde, o próprio
Paulo explicará que o Senhor lhe disse: “Eu o constituí luz para os gentios,
para que leve a salvação até os confins da terra” (At 13.47; cf. Is 49.6). Paulo
é a testemunha humana central da história do evangelho em Atos do capítulo

13 até o fim, e treze cartas no Novo Testamento também têm o nome de
Paulo atrelado a elas. Assim, poderia parecer que Paulo é o personagem
principal na segunda metade do livro de Atos. Mas isso seria exagero: o
Espírito predomina nessa história, Paulo é como seu instrumento. O Espírito
envia Barnabé e Saulo/Paulo em sua jornada (13.4), proíbe que Paulo pregue
na província da Ásia (16.6), impede que entre na Bitínia (16.7), compele-o a
ir para Jerusalém (20.22), capacita-o (13.9) e o adverte de perigos (20.23).
Missão é acima de tudo obra do Espírito.
A obra missionária de Paulo inclui plantar novas igrejas e edificá-las para
irradiar a luz do evangelho. O objetivo de Paulo é estabelecer comunidades
que testemunham acerca do reino em todas as partes do Império Romano
(Rm 15.17-22). Ele também investe tempo para estabelecer essas
comunidades sobre um fundamento sólido. Paulo passa adiante o evangelho e
as Escrituras, designa lideranças para supervisionar o crescimento da igreja e
institui a ceia do Senhor.
22 Muitas vezes em suas viagens, ele retorna às
igrejas que plantou ou edificou, para, além disso, incentivá-las à fidelidade
(como em At 15.41). Ele também escreve cartas do Novo Testamento (ou
epístolas) a essas jovens igrejas com o mesmo propósito.
Paulo faz três viagens à Ásia Menor, Grécia e Macedônia para plantar e
edificar igrejas. Sua prática usual é começar na sinagoga local, visto que
conhece bem as profecias do Antigo Testamento de que a renovação de Deus
começará com Israel e que depois disso os gentios serão incluídos (Rm 1.16).
Em sua primeira viagem, Paulo viaja com Barnabé (e também, durante um
breve período, com Marcos) de Antioquia até Chipre. Aqui um procônsul se
converte, mas Lucas acrescenta poucos detalhes adicionais ao que acontece
nessa ilha (13.4-12). De Chipre, Paulo e Barnabé viajam para Antioquia da
Pisídia na província da Galácia, onde Paulo proclama o evangelho na
sinagoga. Alguns dos ouvintes judeus (e alguns gentios convertidos ao
judaísmo) aceitam as boas-novas, outros não. Muitos, tanto judeus quanto
gentios, convidam Paulo a permanecer com eles para elucidar mais a sua
mensagem, os líderes, entretanto, da comunidade judaica se opõem
violentamente a eles. Paulo então volta sua atenção aos gentios, muitos dos
quais creem e são enchidos com o Espírito (13.13-52). O establishment

judaico mais uma vez gera problemas a Paulo e Barnabé e os expulsa de sua
cidade.
Em Icônio, um padrão semelhante pode ser constatado: um grande número
de judeus e gentios crê no evangelho, mas novamente a oposição judaica
oficial expulsa Paulo e seus companheiros (14.1-7). Em Listra, Paulo e
Barnabé curam um aleijado — os cidadãos pagãos dessa cidade acreditam
que Zeus e Hermes desceram a eles! Paulo prega as boas-novas, mas os
oponentes judeus que os seguiram de Icônio atormentam Paulo e o apedrejam
tentando matá-lo. Quando finalmente ele se recupera dessa adversidade,
Paulo parte com Barnabé para a cidade de Derbe (14.8-20). Depois de pregar
o evangelho ali e fazer um grande número de discípulos, eles passam
novamente por Listra e Icônio, voltam a Antioquia da Pisídia (14.21-23) e
depois a Antioquia da Síria, onde fazem um relato à igreja que os enviou
(14.24-28).
23
Figura 22: Primeira viagem missionária de Paulo

Como observamos, a prática usual de Paulo é iniciar um novo trabalho,
pregando primeiro na sinagoga, e depois se deslocar para fora quando a
resistência se instala. Os judeus com os quais depara em suas viagens
geralmente se opõem à sua pregação, enquanto os gentios são mais
receptivos. Logo, as igrejas que Paulo planta e desenvolve em sua primeira
viagem são basicamente compostas por gentios convertidos. Não é tarefa
fácil para nós entendermos o quão difícil era para os judeus do primeiro
século abrir mão das tradições que durante tanto tempo haviam protegido sua
identidade religiosa como distinta dos gentios. Paulo agora os insta a aceitar
gentios cristãos como coparticipantes nesse “Israel” renovado do reino de
Deus. Não é de surpreender, então, que conflitos entre gentios e judeus
marquem esse período inicial da história da igreja. Em particular, os cristãos
judeus que formaram as primeiras igrejas de cristãos (em Jerusalém e nas
imediações da cidade) inicialmente estão convencidos de que se deve ao
menos exigir dos gentios convertidos à fé em Cristo que obedeçam à Lei de
Moisés. Os cristãos judeus esperam que os cristãos gentios se submeterão ao
rito de circuncisão como se tivessem nascido na aliança judaica com Deus.
Um grupo desses “judaizantes” até viaja de local a local na Galácia, visitando
igrejas plantadas ali por Paulo e tentando convencer os cristãos gentios de
que devem viver como judeus. Mas Paulo dispara uma carta furiosa e
inflamada às igrejas da Galácia, exortando-as a antes permanecerem
constantes em sua fé: a salvação está só em Cristo, e não nas obras da lei.
Esse conflito doutrinário cresce até a realização de um concílio em Jerusalém,
que conclui que os gentios devem ser admitidos na igreja como membros de
igual para igual, sem precisarem observar as regras dos judaizantes (At 15).
Embora essa decisão traga paz durante um período nas igrejas, de modo
algum é o fim dessa controvérsia em particular.
A segunda viagem missionária de Paulo é notável por algumas razões
(15.36—18.22). Em primeiro lugar, sua estratégia muda um pouco. Ele
decide passar mais tempo nas cidades importantes de cada região,
acertadamente estabelecendo igrejas ali.
24 Além disso, nessa viagem ele
visita igrejas na maioria dos lugares que acabarão recebendo uma de suas
cartas de cunho pastoral: Filipos, Tessalônica, Corinto e Éfeso.

Figura 23: Segunda viagem missionária de Paulo
Após uma divergência com Barnabé, Paulo parte em sua segunda viagem
acompanhado de Silas e mais tarde também de Timóteo. Eles partem de
Antioquia (na Síria) rumo oeste e viajam pelas províncias romanas da Cilícia,
Galácia e Ásia (entre o mar Mediterrâneo e o mar Negro). Após Paulo ter
uma visão de um homem da Macedônia implorando por ajuda, eles
atravessam o mar Egeu em direção à península grega em obediência à
instigação do Espírito. Eles plantam igrejas em Filipos, Tessalônica, Atenas e
Corinto. Depois de um ano e meio de ministério em Corinto, Paulo e seus
colaboradores retornam a Antioquia (15.36—18.22).
Na terceira viagem, Paulo começa passando novamente pela Cilícia,
Galácia e Frígia, fortalecendo as igrejas nessas regiões (18.23). Seu objetivo
principal agora é estabelecer uma igreja na importante cidade de Éfeso, que
visitou brevemente no final de sua segunda viagem. Por meio de instrução e
feitos poderosos (incluindo milagres de cura), Paulo obtém êxito em plantar
uma igreja ali, o que desafia as práticas ocultas e a adoração pagã em franco

crescimento nessa cidade. Ele permanece em Éfeso por mais de dois anos
(19.1-41), período durante o qual “a palavra do Senhor [se espalha]
amplamente e [cresce] em poder” (19.20). Enquanto está em Éfeso, Paulo
escreve ao menos quatro cartas à igreja em Corinto (duas das quais foram
preservadas em nossa Bíblia), tratando de diversas questões sobre o que
significa encarnar o evangelho no cenário pagão de Corinto. Ele também trata
de alguns problemas pessoais entre ele e essa igreja.
Figura 24: Terceira viagem missionária de Paulo
Ao deixar Éfeso, Paulo viaja pela Macedônia e Grécia, encorajando as
igrejas estabelecidas em Atenas, Corinto, Bereia, Tessalônica e Filipos (20.1-
6). Ele permanece ao menos três meses na Grécia, de onde também escreve
aos cristãos em Roma. Essa é a carta mais famosa de Paulo e a que teve mais
influência na história da igreja do que qualquer outra: a Carta (ou Epístola)
aos Romanos. Paulo nunca havia visitado Roma e, assim, seu tom nessa carta
é mais formal ao aprofundar a compreensão dos cristãos romanos do
evangelho e da relação entre judeus e gentios. Da Grécia, Paulo navega a
Trôade e em seguida mais uma vez a Éfeso, onde fortalece os líderes antes de

se despedir deles em meio a lágrimas (20.7-38).
Paulo termina sua última viagem voltando a Jerusalém, onde relata as
notícias de suas viagens missionárias à igreja (21.17-26) e onde é preso pelos
romanos por causa da instigação das autoridades judaicas (21.27-36). O
restante do livro de Atos mostra Paulo em seus vários interrogatórios e
inquéritos judiciais, à medida que vai de Jerusalém a Cesareia e depois até
Roma. Até mesmo esses julgamentos dão a Paulo oportunidades de
proclamar as boas-novas a muitos, incluindo vários governantes (cf. 9.15).
Durante seu período em Roma, ele escreve cartas às igrejas em Filipos, Éfeso
e Colossos, bem como sua carta a Filemom (o dono de um escravo fugitivo
que Paulo havia levado a Cristo). Em Atos, Lucas está relatando os atos do
Cristo exaltado pelo Espírito por meio da igreja primitiva. Ele termina sua
história contando-nos que Paulo passa dois anos em Roma em prisão
domiciliar, pregando ousadamente acerca do reino de Deus e do Senhor Jesus
Cristo.
Paulo esclarece o evangelho em suas cartas
PAULO NA HISTÓRIA BÍBLICA
Paulo desempenha um papel muito significativo na história bíblica. Ele é a
figura humana central na última parte de Atos, levando o evangelho de seu
cenário judaico original ao mundo gentio. Paulo é acima de tudo um
“missionário”, levando as boas-novas a lugares em que ainda elas não foram
ouvidas. Paulo também tem um coração de pastor missionário. Ele anseia ver
cada uma das igrejas que plantou florescer e se tornar uma comunidade
vibrante e testemunhadora que apontará fielmente para o reino vindouro de
Deus por meio de sua vida, palavras e ações. Após plantar uma igreja, Paulo
muitas vezes permanece durante um tempo para instruir os cristãos recém-
nascidos ali sobre o que significa encarnar as boas-novas. Em viagens
subsequentes, ele muitas vezes retorna para instruções adicionais a respeito
da vida do reino. Suas cartas às igrejas jovens esclarecem o significado do
evangelho para sua nova vida em Cristo. Se quisermos entender o ensino de

Paulo em suas cartas, precisamos primeiro vê-lo como um missionário cujo
motivo principal é desenvolver as igrejas que plantou a fim de que se tornem
testemunhas fiéis acerca do reino.
25
Paulo escreve suas cartas para esclarecer o significado das boas-novas de
Jesus Cristo para igrejas específicas em situações históricas específicas.
26 As
cartas se baseiam na boa notícia do que Deus fez pelo mundo nos
acontecimentos históricos da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, elas
fluem dessas boas-novas e as esclarecem. Paulo elucida detalhadamente o
significado da boa notícia e suas implicações para a nova vida da igreja em
Cristo. Ele também conecta o evangelho com o contexto da história do
Antigo Testamento, assegurando sua verdade em oposição aos erros de falsos
ensinos e estabelecendo sua própria autoridade como apóstolo em contraste
com os erros dos falsos mestres. Cada uma das cartas de Paulo se dirige a
uma igreja diferente com os seus próprios problemas e perguntas. Neste
capítulo, não podemos analisar todos os detalhes, mas descreveremos
brevemente a estrutura do ensino de Paulo.
27
O ENSINO DE PAULO: O REINO DE DEUS CHEGOU EM CRISTO
Instruído como fariseu, Saulo de Tarso foi ensinado a considerar a história
humana dividida entre “a era presente” e “a era vindoura”.
28 No pensamento
judaico, “a era presente” é dominada pelo pecado, pelo mal e pela morte,
mas, na “era vindoura”, Deus voltará a Israel e inaugurará o seu reino.
Quando um grupo de pessoas em Jerusalém começa a afirmar que, no Jesus
crucificado, esse reino já chegou, Saulo fica furioso. Ele ataca essa seita
herética com um zelo feroz. Mas tudo muda para Saulo quando o Jesus
ressurreto o confronta pessoalmente. Se Jesus é o Messias judaico ressurreto
dos mortos (e Paulo nunca hesita acerca dessa convicção depois que se
encontrou pessoalmente com o Jesus ressurreto), isso significa que a era
vindoura chegou, o reino de Deus está aqui. O cristão recém-nascido e ex-
fariseu precisa reavaliar tudo que pensava que sabia.
E este é o ponto de partida de Paulo: o reino de Deus, “a era vindoura”,
chegou.
29

Todo o conteúdo da pregação de Paulo pode ser resumido como proclamação e explicação do dia
escatológico da salvação inaugurado com o advento, a morte e a ressurreição de Cristo. É dessa
perspectiva principal e sob esse denominador que todos os temas distintos da pregação de Paulo
podem ser entendidos e percebidos em sua unidade e na relação entre si.
30
A salvação prometida pelos profetas do Antigo Testamento começou; a
antiga era está passando e a nova chegou (2Co 5.17).
Figura 25: Cumprimento nos Evangelhos
A plenitude dos tempos chegou (Gl 4.4) e agora é o dia da salvação de Deus
(2Co 6.2).
Além disso, o reino de Deus chegou na morte e na ressurreição de Jesus
Cristo. Dois grandes personagens estão na entrada de dois mundos: Adão está
na porta do antigo mundo; Jesus, na porta do novo. O primeiro pecado de
Adão inaugurou a era antiga e trouxe pecado, morte e condenação. Agora em
Jesus um novo dia de justiça, vida e justificação chegou (Rm 5.12-21). Se
estamos “em Adão”, fazemos parte da antiga era e estamos sob o seu
domínio. Mas se estamos “em Cristo”, fazemos parte da era vindoura e já
podemos experimentar o poder vivificador de Deus.
O que motiva a grande mudança no pensamento de Paulo sobre o reino é
uma nova compreensão da ressurreição.
31 Na estrada para Damasco, o Jesus
ressurreto se encontra pessoalmente com Paulo. Para ele (pensando como um
judeu do primeiro século meticulosamente instruído), a ressurreição significa

ressuscitar de forma corpórea para a vida da “era vindoura”. Visto que Jesus
está vivo novamente e o reino chegou, “a era vindoura” chegou. “Visto que
Jesus era o Cristo, sua ressurreição não é, como ressurreições anteriores dos
mortos, uma ocorrência isolada, mas nela a era da salvação prometida nele, a
nova criação, chega de modo avassalador, como uma transição decisiva do
antigo mundo para o novo mundo (2Co 5.17; cf. v. 15)”.
32 Paulo fala sobre
Jesus como o primogênito entre muitos irmãos (Rm 8.29), as primícias
daqueles que morreram (1Co 15.20). Jesus é o início — o pioneiro — da vida
da ressurreição, que possibilitou que outros viessem após ele (Cl 1.18).
De acordo com Paulo, essa nova visão da ressurreição exige uma visão
semelhantemente nova da crucificação. A partir do Antigo Testamento, ele
sabe que “maldito é todo aquele que for pendurado em uma árvore” (Gl 3.13;
cf. Dt 21.23). Mas visto que esse Jesus é o Messias, e ele ressuscitou dos
mortos, a própria cruz precisa ser reexaminada pela ótica da ressurreição.
Visto que a ressurreição significa o início do novo, a crucificação de Cristo
precisa significar o fim do antigo (Rm 6.1-11). Em favor do mundo, Cristo
tomou sobre si mesmo a maldição de Deus, a culpa e o poder do pecado que
governou a antiga era (Gl 3.13,14). Paulo agora proclama que Deus usou a
cruz para encerrar a era antiga. A cruz marca a vitória de Deus sobre os
poderes do pecado e do mal que governam o mundo na presente era (Cl
2.15). Embora uma ideia desse tipo poderia ser uma pedra de tropeço para os
judeus e parecer completa insensatez para os gentios, ela é na verdade (Paulo
afirma) a sabedoria e o poder de Deus (1Co 1.18—2.5).
33 Paulo emprega
uma infinidade de imagens para esclarecer o significado desse acontecimento
central, diversas no mínimo.
Mas se o antigo passou e o novo chegou, por que o mal e a morte
permanecem no mundo? As cartas de Paulo estão repletas da mesma tensão
entre os aspectos “já” e “ainda não” do reino de Deus que vimos nos próprios
ensinos de Jesus, mas com algumas ênfases diferentes. Segundo Paulo, o
reino já está aqui pelo fato de que a morte de Jesus encerra o antigo e sua
ressurreição inaugura o novo. O Espírito é descrito como um depósito (ou
pagamento inicial) do reino vindouro (2Co 1.22; 5.5; Ef 1.14). Um depósito
não é meramente uma nota promissória ou promessa para o futuro; em vez

disso, é um pagamento real feito agora como garantia de que no futuro o
restante será pago. O Espírito também é descrito como primeiros frutos, a
primeira parte da colheita, pronto para ser desfrutado agora, e evidência
tangível de que o restante da colheita também virá (Rm 8.23).
O reino ainda não chegou para nós em sua plenitude. Permanecemos em
um mundo que ainda não foi plenamente libertado da influência do poder
maligno e demoníaco (2Co 4.4). Ainda estamos envoltos pela escuridão do
pecado e pela rebelião contra Deus (Ef 2.2,3), ao mesmo tempo em que
aguardamos a revelação plena do reino de Deus em que essas coisas não
existirão mais. Assim, no pensamento de Paulo, não há uma demarcação
clara entre “a era presente” e “a era vindoura”. Vivemos na época
“intermediária”, em que as duas eras se sobrepõem. Paulo continua
explicando que o plano de Deus permite que essas duas eras coexistam para
que a obra missionária da igreja — o ajuntamento das nações ao Deus de
Israel — possa ser realizada antes da revelação final do reino.
34 Na verdade,
Deus concede esse período intermediário à igreja como um tempo para ela
mesma, a fim de que ela cumpra o seu chamado para ser sua testemunha da
vinda do reino.
35
Figura 26: Expectativa judaica
PROMOVENDO O CRESCIMENTO DE NOSSA NOVA VIDA EM CRISTO

Como vimos, o interesse primordial de Paulo como missionário é levar o
evangelho a lugares em que ainda não foi ouvido. Para ele, o evangelho não é
simplesmente um relato de acontecimentos históricos ou algum novo ensino
ou doutrina religiosos. É o próprio poder de Deus para trazer salvação, para
levar homens e mulheres ao reino da era vindoura. Paulo, assim, reconhece
uma obrigação e está sempre ávido para contar a história do evangelho (Rm
1.14,15). Ele está compelido a pregar o evangelho: “E ai de mim, se eu não
anunciar o evangelho!” (1Co 9.16). À medida que os seus ouvintes
respondem em fé e são batizados simbolizando sua “morte” para o antigo
modo de vida e sua “ressurreição” para a nova vida em Cristo entre seu povo,
igrejas recém-nascidas são fundadas em todos os lugares por onde Paulo
passa no Império Romano.
Mas essas igrejas novas não podem simplesmente ser deixadas por sua
própria conta. Elas estão testemunhando acerca da realidade do reino de Deus
enquanto vivem na presente era, enfrentando o mal ainda em ação no mundo
antes que o reino venha em sua plenitude. Logo, o segundo interesse de Paulo
como missionário é levar essas comunidades de cristãos à maturidade em sua
fé e testemunho. Os escritos de Paulo usam duas imagens para retratar esse
processo de alcançar a maturidade. Em primeiro lugar, a igreja é descrita
como o novo templo de Deus, em que ele agora habita pelo Espírito Santo
(1Co 3.16; Ef 2.21,22). Seu fundamento é o próprio evangelho e alcançar a
maturidade é o processo de construir sobre esse fundamento (Ef 4.12). Em
segundo lugar, o processo de a igreja atingir a maturidade é comparado ao
crescimento orgânico de um corpo humano (da infância à idade adulta, Ef
4.15) ou com uma lavoura (1Co 3.5-9), “arraigada” em Jesus Cristo (Ef 3.17;
Cl 2.7) e sendo cuidada para que a igreja possa alcançar uma maturidade
frutífera.
A vida da igreja começa quando ela recebe a vida do Espírito por meio do
evangelho: ela é estabelecida sobre Cristo e arraigada nele. Mas a vida da
igreja também continua pela fé no evangelho (Gl 3.2,3; Cl 2.6,7) à medida
que o Espírito conduz os cristãos à completude, à maturidade, à capacidade
de dar frutos, ou seja, à “plenitude de Cristo” (Ef 4.11-16). Paulo analisa em
detalhes os vários dons e ministérios que o Espírito concede à igreja para

levá-la à maturidade.
36
NOVA VIDA E NOVA OBEDIÊNCIA
Avançar para a plenitude em Cristo é uma tarefa contínua. Paulo, assim,
exorta repetidamente as igrejas recém-estabelecidas a viverem de modo digno
do evangelho. O padrão dessa exortação se repete nas cartas de Paulo às
igrejas. Primeiro, ele lhes diz o que Deus fez para lhes dar nova vida, e em
seguida o que elas precisam fazer para viverem de acordo com essa nova
identidade. Visto que Deus lhes deu nova vida no reino de Deus, eles devem
viver como cidadãos obedientes desse reino.
A nova vida da igreja se baseia no que Deus fez na morte e ressurreição de
Jesus Cristo. Na morte de Cristo, Deus derrotou os poderes que governam
“esta era presente” — o pecado, o mal e a morte. Na ressurreição de Cristo, a
“era vindoura” começou, com sua promessa de vida, de amor e de paz (Rm
6.1-11). A nova vida da igreja também é capacitada pelo Espírito, que habita
na comunidade de cristãos e constantemente traz nova vida a ela (Rm 8; Gl
5). Isso, afirma Paulo, é a nova vida do cristão, iniciada na obra de Cristo na
cruz, praticada no reino do Pai e moldada pelo poder do Espírito.
No âmago dessa nova vida está um novo relacionamento com Deus, que
Paulo descreve como justiça, reconciliação e adoção.
37 Em primeiro lugar,
visto que Deus é o justo Legislador e Juiz, nós que seguimos o Adão rebelde
estamos afastados dele pelo nosso pecado; nós também somos culpados. Mas
Paulo proclama a boa notícia de que (para os que têm fé em Jesus) o nosso
veredito “culpado” foi anulado. Há um novo veredito: nós já fomos
declarados justos, com base na morte de Jesus Cristo (Rm 3.21-31; Gl
2.15,16; 3.6-14).
38 Para o cristão, o juízo final de Deus já aconteceu!
39 Com
a remoção de nossa culpa, encontramo-nos em um relacionamento correto
com Deus.
Em segundo lugar, como outrora estávamos afastados de Deus pela nossa
rebeldia pecaminosa, precisamos ser reconciliados com ele. A reconciliação,
da qual se pensou durante muito tempo que estaria disponível só no fim dos
tempos com a vinda do reino de Deus, é uma dádiva oferecida livremente

hoje mesmo (2Co 5.18,19; Cl 1.20).
40 A reconciliação remove o pecado que
gerou inimizade entre o mundo de Deus e ele mesmo e conduz à paz. Isso
significa a restauração do shalom e da harmonia da ordem criada original de
Deus para o mundo todo e especialmente para a humanidade (Rm 5.1). Em
terceiro lugar, nós que nascemos na raça pecaminosa de Adão somos
restaurados a Deus ao receber sua dádiva da adoção (Gl 4.4,5; Ef 1.4).
41 O
mesmo Espírito que habitou em Jesus é derramado sobre a nossa própria vida
e nos capacita para chamar Deus de “Aba, Pai”, como Jesus fez (Rm
8.14,15).
Essa é a igreja: um povo que vive em um novo mundo com uma nova
identidade e um novo relacionamento com Deus. Assim, Paulo ordena a
igreja a viver cada vez mais a nova vida do reino de Deus, a “se despir” do
velho homem (como se fosse uma roupa suja) e se vestir do novo (Ef 4.22-
24; Cl 3.9,10). Em outras palavras, as pessoas da igreja precisam se despedir
do modo de vida que era moldado pela sua experiência “desta era presente” e
adotar um novo modo de vida como parte da “era vindoura”. E com essa
nova vida vem um chamado a um novo tipo de obediência à lei de Deus em
todas as esferas da vida, uma obediência arraigada no amor.
42
Esse chamado à obediência tem em vista a restauração da totalidade da
vida humana. Ridderbos considera esse “caráter total da nova obediência […]
o aspecto mais essencial e característico” da compreensão paulina de nossa
nova vida em Cristo.
43 Cristo governa sobre toda a criação e redime toda ela
(Cl 1.15-20). Assim, toda a vida humana, incluindo até as atividades triviais
como comer e beber, deve ser vivida para a glória de Deus (1Co 10.31). Visto
que toda a nossa vida física é dedicada a Deus (Rm 6.13; 12.1,2), tudo que é
feito em palavra ou ação deve ser feito em nome do Senhor Jesus, dando
graças a Deus Pai (Cl 3.17). Essa obediência completa também está arraigada
na virtude da criação, que está sendo redimida (1Co 10.26; 1Tm 4.1-5).
44
Paulo está ciente de que toda a vida humana, embora tenha sido criada por
Deus e redimida por Cristo, também foi corrompida pelo pecado. Assim, ele
adverte que, embora os cristãos estejam livres para desfrutar da boa criação
de Deus, eles precisam tomar cuidado para não serem contaminados pelo
pecado que a infecta (1Co 6.12).

A nova vida de obediência da igreja em Cristo adota como padrão de
conduta a lei de Deus concedida no Antigo Testamento.
45 O problema com a
lei é que as exigências elevadas da lei nunca poderiam ser satisfeitas por
pessoa alguma agindo pela sua própria força. No entanto, “o que a lei foi
incapaz de fazer por estar enfraquecida pela natureza pecaminosa, Deus o fez,
enviando seu próprio Filho, à semelhança da humanidade pecadora, como
oferta pelo pecado. E desse modo ele condenou o pecado em nossa natureza
pecaminosa, a fim de que as justas exigências da lei fossem plenamente
satisfeitas em nós, que não vivemos segundo a natureza pecaminosa, mas
segundo o Espírito” (Rm 8.3,4).
Essa nova vida de obediência em Cristo é caracterizada nos escritos de
Paulo como uma vida de amor (Ef 4.15,16; Cl 2.2).
46 Aqui Paulo se baseia no
ensino de Jesus, especialmente conforme registrado no Evangelho de João (Jo
15.1-17). Jesus descreve o relacionamento contínuo que os discípulos terão
com ele após a sua partida à maneira de uma videira e seus ramos. À medida
que a seiva da videira flui para os ramos, eles dão fruto. À medida que a vida
de Cristo flui dele mesmo para seus discípulos, eles também darão “fruto”,
cujo mais importante é o amor. Viver e permanecer em Cristo significa amar
e obedecer a ele. Duas vezes ele afirma: “Este é o meu mandamento: amem-
se uns aos outros como eu os amei” (Jo 15.12 e 17 combinados). Esse amor
que vem como o “fruto” da nova vida do Espírito adquire muitas formas e
nas cartas de Paulo muitas vezes forma uma tríade com alegria e paz (Rm
5.1-8).
47 O amor também transparece em outras qualidades comuns do reino:
humildade, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio
próprio, retidão e gratidão.
48
EM FAVOR DO MUNDO
A nova vida e a nova obediência da igreja são em favor do mundo. Quando a
nova vida no Espírito da igreja se torna evidente para os não cristãos, também
eles são convencidos da verdade dessa “boa notícia” e, assim, são atraídos a
Cristo.
49 À medida que Paulo se empenha para desenvolver a comunidade
que encarna fielmente a nova vida do reino, ele sempre tem em vista os que

estão fora da igreja. Ao descrever a vida de amor, alegria, generosidade e
perdão da igreja, Paulo afirma: “Procurem fazer o que é certo aos olhos de
todos” (Rm 12.17). A amabilidade e graça da igreja precisam ser evidentes a
todas as pessoas (Fp 4.5; Cl 4.5,6). Os cristãos são exortados a trabalhar duro
“a fim de que [seu] modo de vida conquiste o respeito dos que são de fora”
(1Ts 4.12) e se dediquem a fazer o que é bom para todas as pessoas (Tt
2.7,8). Sua conduta deve ser “de modo digno do evangelho de Cristo” (Fp
1.27), a fim de que, em meio à depravação sinistra do Império Romano, o seu
testemunho acerca do evangelho do reino de Deus possa “brilhar como
estrelas” (Fp 2.15). Bosch fala a respeito da preocupação de Paulo no que diz
respeito ao testemunho da igreja: “O modo de vida dos cristãos deve ser não
somente exemplar, mas também atraente. Deve atrair os de fora e convidá-las
para fazer parte da comunidade. […] Sua ‘existência exemplar’ é um imã
poderoso que atrai os de fora para a igreja”.
50
O testemunho da igreja deve transbordar para a vida pública da cultura,
demonstrando que a salvação da “era vindoura” tem um alcance abrangente.
Bruce Winter mostra que a igreja do Novo Testamento deve estar envolvida
na vida pública de sua nação e buscar o seu bem-estar.
51 Em Filipenses (1.27
—2.18), Paulo analisa “a obrigação que os cristãos têm de ‘viver como
cidadãos’ no mundo da politeia [a vida pública do Estado] de um modo que é
digno do evangelho”.
52 Ao serem visíveis e estarem envolvidos na vida da
cultura que os cerca ao mesmo tempo em que evitam a corrupção da idolatria
que permeia essa cultura, os cristãos irão “brilhar como estrelas” “no meio de
uma geração corrupta e perversa” (2.15).
A VINDA DO SENHOR
As cartas de Paulo estão, como vimos, repletas da tensão entre o já e o ainda
não. Embora o reino de Deus tenha entrado na história humana, o
cumprimento da obra redentora de Deus aguarda a volta de Cristo. O reino é
real na vida da igreja no presente, mas a expectativa de sua consumação
futura também é a grande esperança da igreja. “A certeza de que em Cristo o
dia da salvação, a era aceitável, chegou, não significa o fim da expectativa

redentora, somente aumenta sua intensidade”.
53 Paulo afirma: “Sabemos que
toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto. E não só isso,
mas nós mesmos, que temos os primeiros frutos do Espírito, gememos
interiormente à medida que esperamos ansiosamente nossa adoção como
filhos, a redenção de nosso corpo. Pois nessa esperança fomos salvos” (Rm
8.22-24). O cristão vive em esperança, e essa esperança é um estímulo à
obediência e conforto crescentes enquanto vive na presente era maligna.
54
Continuando a história da igreja primitiva
A última coisa que ouvimos acerca de Paulo é que ele está em Roma,
morando em uma casa alugada por ele mesmo enquanto aguarda para ser
julgado. Embora esteja em prisão domiciliar, está livre para receber todos os
visitantes: “Com ousadia e sem impedimento ele [prega] o reino de Deus e
[ensina] a respeito do Senhor Jesus Cristo” (At 28.31). Essa proclamação
aberta em Roma indica que o evangelho está pronto para ir do centro do
Império Romano a todas as suas regiões. Lucas aqui finaliza sua história da
missão da igreja nas primeiras décadas.
55
É apropriado que o segundo livro de Lucas termine assim, com Paulo
ainda vitalmente envolvido na tarefa missionária que recebeu de Deus na
estrada para Damasco, pois a história de Atos não terminou. Ela precisa
continuar até que Jesus mesmo volte para concluí-la. “O final de Atos é na
verdade uma introdução à continuação da vida do povo messiânico, à medida
que este continua pregando o reino e ensinando a respeito de Jesus com
ousadia bem como sem impedimento”.
56 A obra foi iniciada por Jesus e seus
discípulos, continuada pela igreja primitiva após a ascensão de Jesus e
espalhada em todo o Império Romano por Paulo e outros. Ela caminha para
seu desfecho agora mesmo:
O que ainda precisa ser concluída na vida presente da igreja é a intenção divina revelada a Paulo e
Barnabé em Antioquia da Pisídia na metade da narrativa de Atos (13.47): “Eu o constituí como luz
para os gentios, para que leve a salvação até os confins da terra”.
57
No Evangelho de Lucas, ele conta a história de “tudo o que Jesus começou

a fazer e a ensinar” (Lc 1.1). No livro de Atos, ele conta como os seguidores
de Jesus dão prosseguimento a essa obra nos primeiros dias da igreja. Nessa
história, também temos um papel a cumprir, pois somos convidados —
exortados — a nos tornar parte da história da igreja, a seguir Jesus e
continuar a missão do reino nos passos de seus primeiros seguidores.
Cena 2: E a todo o mundo
Há um hiato de quase dois mil anos entre a igreja do primeiro século e a
nossa realidade e (para a maioria de nós) uma distância de quase meio mundo
entre nós. Jesus viveu na Palestina, morreu e ressuscitou ali um pouco antes
da maioria dos acontecimentos registrados no livro de Atos. A antiga nação
de Israel tentou andar com Deus enquanto conquistava e estabelecia uma
pátria em Canaã mais de dois mil anos antes disso. Os relatos bíblicos de
como todas essas pessoas distintas lutaram para viver fielmente em suas
épocas e lugares distantes podem dar a impressão de ter pouca relação com
você e comigo.
No entanto, isso não é verdade. O mundo da Bíblia é o nosso mundo, e
sua história da redenção também é a nossa história. Essa história está
aguardando um fim — em parte porque nós mesmos temos um papel a
desempenhar antes que tudo seja consumado. Portanto, precisamos prestar
atenção na história bíblica da redenção em andamento. Precisamos resistir à
tentação de interpretar as Escrituras como se fossem uma loja de bugigangas
religiosas, com um cesto de histórias e antigas doutrinas aqui, uma prateleira
cheia de histórias piedosas ali, com promessas e mandamentos espalhados ao
longo de toda a loja. Alguns leitores da Bíblia a transformam em pouco mais
do que uma antologia de textos-prova reunidos para defender um sistema
teológico. Outros buscam somente orientação ética, vasculhando o Antigo
Testamento para encontrar histórias de instrução moral. Outros ainda buscam
somente mensagens de inspiração ou devocionais, promessas confortadoras e
lições para a vida cotidiana. A consequência disso pode ser a de que
perdemos de vista a unidade essencial da Bíblia e, em vez disso, encontramos
somente aqueles fragmentos teológicos, morais, devocionais ou históricos

que estamos procurando.
Contudo todas as comunidades humanas, incluindo a nossa, vivem com
base em alguma história abrangente que sugere o significado e o objetivo da
história que molda e dirige a vida humana. Podemos negligenciar a história
bíblica, o relato abrangente de Deus a respeito da forma e da direção da
história cósmica e o significado de tudo que ele fez em nosso mundo. Se
fizermos isso, os fragmentos da Bíblia que de fato preservamos correm o
risco de serem absorvidos gradativamente na história cultural dominante de
nossas democracias europeias e norte-americanas contemporâneas. E a
história dominante da cultura moderna está arraigada na idolatria: uma
confiança fundamental na humanidade para alcançar sua própria salvação.
Assim, em vez de permitir que a Bíblia nos molde, podemos na verdade estar
permitindo que a nossa cultura molde a Bíblia para nós. Nossa visão do
mundo e até mesmo nossa fé serão moldadas por uma de duas coisas: ou a
história bíblica é o nosso fundamento ou então a Bíblia em si é absorvida na
história moderna do mundo ocidental secular. Para que as Escrituras moldem
e modelem nossa vida, precisamos conhecer bem a história bíblica, ela
precisa estar incorporada em nosso ser. Para fazer isso, também precisamos
saber o nosso próprio lugar nela — onde nós estamos na história.
Que horas são?
Brian Walsh e Richard Middleton sugeriram que a nossa vida é moldada
pelas respostas — explícitas ou implícitas — que damos a quatro grandes
perguntas: (1) Onde estamos? Em que tipo de mundo vivemos? (2) Quem
somos? O que significa ser humano? (3) O que está errado? Qual é o
problema fundamental com o mundo? (4) Qual é a solução? O que
consertará o problema?
58 N. T. Wright acrescenta: (5) Que horas são? Em
que momento da história nós entramos nela?
59 Essas perguntas são
respondidas pela história de mundo que adotarmos, seja qual for. Se a história
bíblica for a base de toda nossa vida, é aí que precisamos encontrar as
respostas a essas cinco perguntas fundamentais.
Wright forneceu uma ilustração útil de como a Bíblia como história pode

verdadeiramente ter a autoridade suprema em nossa vida.
60 Ele imagina que
de alguma forma é descoberto o roteiro de uma peça “perdida” de
Shakespeare. Embora toda a peça orginalmente tivesse seis atos,
61 somente
um pouco mais do que cinco foram descobertos: os primeiros quatro atos, a
primeira cena do ato 5 e o ato final da peça. O restante está faltando. A peça é
entregue a atores shakespearianos que são solicitados a elaborar por si
mesmos o restante do ato 5. Eles mergulham na cultura e linguagem de
Shakespeare e no roteiro parcial que foi recuperado. Então improvisam as
partes sem roteiro do quinto ato, permitindo que sua performance seja
moldada pela trajetória, o fio condutor, da história de Shakespeare como
passaram a entendê-la. Desse modo, eles conduzem a peça ao desfecho que
seu autor forneceu no último ato do roteiro.
Algo parecido com isso pode nos ajudar a entender como a autoridade
bíblica pode guiar nossa vida agora. Vimos o desenvolvimento do drama
bíblico de redenção na maior parte de cinco atos: (1) Criação, (2) a Queda no
pecado, (3) a história de Israel, (4) a história de Jesus Cristo e (5) a história
da igreja, conduzindo para a consumação do plano divino de redenção no
sexto ato: um ato que ainda não está terminado. Também conhecemos o Autor
da história. Pois bem, considerando-se a trajetória da história como foi
contada até aqui, e especialmente sabendo que fomos encarregados de
realizar a continuação do ato 5 — a missão de Jesus e a igreja primitiva —
como cristãos, de que maneira devemos viver na atualidade? Como podemos
desempenhar nosso papel a fim de permitir que a história avance ao desfecho
que Deus já escreveu para ela?
Sendo luz para as nações: continuando a missão de Israel
Voltemos às palavras de Jesus aos seus discípulos perto do fim do Ato 4:
“Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio” (Jo 20.21). Esse “vos”
nos inclui na missão do reino de Jesus. Nós damos continuidade ao que Jesus
e seus primeiros discípulos começaram. Mas se quisermos entrar na história
nesse momento, precisamos olhar nos dois sentidos, para frente e para trás.
Olhamos para trás, pois a missão do reino de Jesus é o capítulo culminante

da história de Israel contada no Antigo Testamento: Jesus cumpre a missão
de Israel de ser luz para o mundo. Também olhamos para frente, pois o Novo
Testamento (e especialmente a narrativa de Atos) descreve a igreja primitiva
dando continuidade à missão do reino de Jesus. Logo, a fim de entendermos a
nossa própria missão hoje, precisamos levar em consideração a tarefa inicial
de Israel concedida por Deus, como Jesus a cumpriu e como a igreja
primitiva continuou a obra.
A história bíblica é a respeito do que Deus está fazendo no mundo, agindo
para a renovação de toda a criação. Deus escolhe pessoas para se unirem a ele
e participarem de sua obra — Abraão, Israel, os discípulos de Jesus, a igreja
primitiva, as igrejas-filhas fundadas por Paulo em suas viagens pelo Império
Romano. Hoje, também somos convidados a participar na obra que Deus está
realizando. Se quisermos entender nosso próprio chamado, precisamos
entendê-lo em relação àqueles que o ouviram antes de nós.
Quando Deus promete fazer de Abraão uma grande nação e abençoar
todas as nações por meio dele (Gn 12.1-3), é necessário enxergar essas
promessas no contexto de Gênesis 1—11, que narra a criação divina do
mundo e os efeitos devastadores do pecado sobre ele. A nação que
descenderia de Abraão deveria concretizar as intenções originais de Deus
para a humanidade na criação (Êx 19.3-6). Desde o início, a obra redentora de
Deus visa a recuperar e a restaurar essa boa criação. Assim, o povo que
tenta ser obediente a ele precisa buscar uma redenção tão ampla quanto a
própria criação. À medida que Israel fosse obediente a esse chamado, ele
seria luz para o mundo. A atratividade de sua vida cativaria as nações para
Deus.
Introduzindo o reino: continuando a missão de Jesus
Embora Israel tenha em grande medida fracassado em seu chamado para ser
luz para as nações, Jesus não fracassou. Ele cumpriu os propósitos de Deus
para Israel, e em seguida (após a ressurreição) reuniu uma comunidade de
seus seguidores e lhes confiou a tarefa de continuar o que ele havia começado
(Jo 20.21). Nós fazemos parte dessa comunidade, e sua tarefa de continuar a

missão de Jesus também é nossa.
Como vimos, a missão de Jesus se concentrava na vinda do reino de Deus,
na restauração do governo de Deus sobre toda a criação e sobre toda a vida
humana, no dia da salvação de Deus. Embora hoje alguns cristãos acreditem
que Jesus veio para permitir que escapemos dessa criação e vivamos
eternamente em uma habitação de outro mundo e celestial, uma compreensão
da salvação desse tipo teria sido completamente estranha aos profetas do
Antigo Testamento, aos judeus do primeiro século e ao próprio Jesus. A
salvação não é uma fuga da vida criacional para uma existência “espiritual”:
é a restauração do governo de Deus sobre toda a criação e sobre toda a vida
humana. Do mesmo modo a salvação não é meramente a restauração de um
relacionamento pessoal com Deus, por mais importante que seja. A salvação
vai mais longe: é a restauração de toda a vida da humanidade e por fim
também da criação não humana. Essa é a extensão da salvação bíblica. Essa é
também a abrangência de nosso próprio chamado para sermos testemunhas
dessa salvação, para continuarmos a missão de Jesus, que orou pela vinda do
reino de Deus. Em suas palavras, Jesus anunciou o reino, e em suas ações,
demonstrou que o reino havia chegado. Ele acolheu os marginalizados e
formou uma comunidade do reino, ensinou por meio de preceitos e exemplo a
viver fielmente nessa comunidade, e sofreu por causa dela ao desafiar a
cultura idólatra de sua época.
Seguimos os passos de Jesus na sua missão, mas nossa própria situação
cultural é bem diferente daquela da Palestina do primeiro século. Assim,
precisamos executar a missão de Jesus com imaginação e criatividade: “Jesus
não estabeleceu um modelo rígido de ação, antes inspirou seus discípulos a
esticar a lógica da ação de modo criativo nas novas e distintas circunstâncias
históricas em que a comunidade teria de proclamar o evangelho do reino em
palavra e ação”.
62 Outra vez, a ilustração de Wright do ato 5 em um drama
shakespeariano é útil. Ele fala sobre o trabalho de “improvisação”, à medida
que os atores tentam desenvolver no quinto ato de sua peça o significado dos
primeiros quatro atos:
Essa “autoridade” dos primeiros atos não consistiria — não poderia consistir! — em uma ordem

implícita de que os atores deveriam repetir as partes anteriores da peça sem cessar. Ela consistiria
no fato de um drama até agora INCOMPLETO contendo o seu próprio ímpeto e propulsão, que
exigiria ser concluído de modo apropriado. Ela exigiria dos atores uma entrada livre e responsável
na peça como ela é, a fim de primeiro entender como os fios poderiam ser unidos apropriadamente
e então fazer uso dessa compreensão falando e agindo tanto com inovação quanto com coerência.
63
Inovação e coerência: isso revela o que significa seguir Jesus em sua missão
do reino. Se falarmos e agirmos com coerência, nossa missão do reino será
moldada pela nossa compreensão do conteúdo e da trajetória da própria
missão de Jesus. Se falarmos e agirmos com inovação, executaremos a nossa
tarefa com criatividade e imaginação nas novas situações culturais e
históricas às quais Deus nos conduz.
Dando um testemunho fiel: continuando a missão da igreja
primitiva
O Novo Testamento nos dá tanto o próprio exemplo que Jesus oferece de
missão do reino quanto nos dá o da igreja primitiva ao seguir a Jesus,
testemunhando tudo que ele foi, disse e fez (At 1.8). Embora o próprio Jesus
se concentre em reunir “as ovelhas perdidas de Israel” (Mt 15.24), ele envia
sua igreja a expandir essa missão entre todas as nações. Os discípulos
precisam tornar conhecidas as boas-novas do reino em todos os lugares, entre
todos os povos, e então virá o fim (24.14).
Com a vinda do Espírito, a igreja tem um antegosto da salvação do reino:
o “banquete” do reino foi preparado pela obra de Cristo, mas ele aguarda um
momento futuro, quando todos os convidados tiverem sido reunidos (Lc
14.15-24). No entanto, os que seguem a Cristo já começaram a experimentar
o poder da salvação que realizará a renovação de todas as coisas. Ao desfrutar
desse antegosto do banquete vindouro, a igreja se torna uma primeira
exibição de como será o futuro reino. Imagine o trailer de um filme, alguns
minutos de cenas reais de um filme que ainda não foi lançado. Esse trailer é
exibido para que a plateia em potencial possa ter um vislumbre de como será
o filme na íntegra uma vez que estiver pronto para ser exibido. Uma função
importante da igreja é, portanto, ser um retrato, uma breve representação,
uma amostra do que o futuro no reino de Deus será.

As comunidades da igreja primitiva em Jerusalém e Antioquia
estabelecem um padrão saudável de testemunho do reino de Deus, dedicando-
se às Escrituras, à oração, à comunhão e à ceia do Senhor, para edificarem
sua nova vida em Cristo (At 2.42-47; 11.19-21; 13.1-3). Como resultado,
essas comunidades de fato se tornam amostras eficazes do reino de Deus
vindouro, atraindo muitos novos convertidos (2.43-47). Por haver ampla
evidência da graça de Deus em sua vida, esses cristãos são cada vez mais
procurados por outros ao redor deles. Em suas próprias cidades e povoados,
seu testemunho acerca da verdade do evangelho é muito eficaz. Além desse
testemunho local, a igreja de Antioquia também envia Paulo e Barnabé para
levarem o evangelho a lugares mais distantes, estabelecendo comunidades
cristãs testemunhadoras em muitos lugares de todo o império (13.1-3).
Assim, nessa época a igreja era (e deve ser agora) caracterizada pelo zelo
para testemunhar perto de casa e pela obra missionária em lugares distantes.
O testemunho caracteriza o significado desse período na história de Deus.
No entanto, isso poderia facilmente ser interpretado de modo equivocado:
poderíamos limitar missão ou testemunho ao evangelismo ou missões
transculturais. Embora essas dimensões sejam importantes para a missão da
igreja, elas são limitadas demais. Quando compreendemos que a salvação do
reino restaura a criação, e toda ela, percebemos que o testemunho acerca do
reino de Deus é tão amplo quanto a criação. O testemunho significará
encarnar o poder renovador de Deus na política e na cidadania, na economia e
nos negócios, na área de educação e no estudo acadêmico, na família e na
vizinhança, na mídia e na arte, no lazer e na diversão. Isso não significa
somente que evangelizamos nessas esferas da vida. Repetindo, isso é
importante, mas não o suficiente. Significa que o modo de vivermos como
cidadãos, consumidores, estudantes, maridos, mães e amigos testemunha
acerca do poder restaurador de Deus. Podemos sofrer ao depararmos com
outras histórias religiosas igualmente abrangentes e rivais que tentam moldar
nossa cultura. No entanto, uma missão ampla é essencial à nossa existência.
O testemunho contemporâneo Our world belongs to God [Nosso mundo
pertence a Deus] capta tanto a centralidade da missão quanto a sua
abrangência:

Seguindo os apóstolos, a igreja é enviada —
Enviada com o evangelho do reino
para fazer discípulos de todas as nações,
para alimentar os famintos,
para proclamar a certeza de que no nome de Cristo
há perdão dos pecados e nova vida
para todos os que se arrependem e creem —
Para transmitir a notícia de que o nosso mundo pertence a Deus.
Em um mundo que se distanciou de Deus,
em que milhões enfrentam escolhas confusas,
essa missão é central à nossa existência,
pois anunciamos o único nome que salva […]
Nos alegramos que o Espírito está nos despertando para vermos
nossa missão no mundo de Deus.
O governo de Cristo se estende por todo o mundo.
Seguir esse Senhor é servi-lo em todos os lugares,
sem fazer concessões,
como luz na escuridão,
como sal em um mundo que está se deteriorando.
64
Viver na história de Deus hoje
Você viajou até aqui conosco nessa jornada pela história bíblica. Talvez
depois dessa caminhada você tenha começado a compartilhar da nossa visão
de como Deus está agindo em seu mundo e em seu povo, moldando tanto um
quanto o outro para se tornar o grande reino que tem sido o plano de Deus
desde o princípio. Mas se cada um de nós tem de fato o seu próprio lugar na
história, que lugar é esse? E como essa visão do vasto reino de Deus ajuda
qualquer um de nós a encontrar o seu lugar nele? Nas próximas páginas,
ilustraremos, por meio de três histórias, como a vida de indivíduos pode ser
incorporada à história bíblica. As primeiras duas histórias são totalmente
verdadeiras, citando homens e mulheres que descobriram modos interessantes
de se envolver na obra contínua de Deus no mundo. Na terceira história,
reencontramos nossos amigos fictícios Abigail e Percival (do prólogo deste
livro) para ver como um casal de jovens cristãos poderia ver seus próprios
conceitos de vida transformados por um novo olhar sobre a grande história da
Bíblia.

Nossa primeira história (verdadeira) vem da vida de Gary Ginter, um
homem que pensava que Deus queria que ele se tornasse um missionário
transcultural. Em vez disso, Deus levou Gary a servir no mundo dos
negócios.
Membro fundador do Chicago Research and Trading Group (uma empresa
pioneira no ramo de mercado futuro e ações, “objeto de inveja da indústria”,
de acordo com o Wall Street Journal), Gary acabou se tornando presidente e
CEO da VAST Power Systems e diretor em outras três empresas comerciais.
Ao longo dessa carreira notável, fundou mais de vinte outros
empreendimentos — alguns deles empreendimentos no ramo de serviços em
comunidades carentes em todo o mundo. Segundo qualquer critério
reconhecido no mundo dos negócios, o trabalho de Gary Ginter foi bem-
sucedido.
Ainda assim, o próprio Gary se recusa a definir “êxito” pelos padrões
tradicionais de lucro e poder. Para ele, êxito nos negócios, como em tudo na
vida, é definido em relação à vinda do reino de Deus. Nas próprias palavras
de Gary, qualquer pessoa chamada para pôr em prática no mundo dos
negócios as implicações da história bíblica será um “Profissional do Reino”:
Os Profissionais do Reino não definem êxito em termos de dinheiro, trabalho ou status. Eles não
tentam maximizar seu salário ou sua segurança ou seu status, ou promover sua carreira. Em vez
disso, buscam maximizar seu impacto nas pessoas e lugares para os quais Deus os chamou. Eles
medem êxito pela sua contribuição ao que Deus está fazendo no lugar em que ele os colocou. Eles
se enxergam como tendo êxito à medida que estão fazendo o que Deus os chamou para fazer, no
lugar ao qual ele os levou, de tal modo que seus dons podem ser bem utilizados. Nada menos
bastará; nem a superficialidade do status, nem as ilusões efêmeras da riqueza, nem os efeitos
corrosivos do poder. O que importa para os Profissionais do Reino é que haja harmonia entre a sua
vida cotidiana e o irrompimento mais amplo do Reino de Deus onde eles moram e trabalham.
65
Para estar envolvido nos negócios e permanecer fiel à história bíblica, é
necessário ser um “empreendedor mordomo”,
66 um administrador das
oportunidades, talentos, tempo e dinheiro dados por Deus, dedicado a
testemunhar acerca do seu reino vindouro. Gary afirma que Deus o chamou
para fazer dinheiro, usar o mínimo possível desse dinheiro para seu sustento e
então doar o restante. Agindo com base nesses princípios, ele conseguiu abrir
diversas “empresas do reino”, corporações missionárias, especialmente em

cenários transculturais. Essas empresas estão no mercado não tanto para gerar
lucro quanto para gerar empregos e produzir bens e serviços importantes
onde são mais necessários. Muitos países que fecharam suas fronteiras para
agências missionárias tradicionais e a pregação do evangelho abrirão as
portas para esses empreendedores cristãos ou “fazedores de tendas”. O
próprio empreendimento se torna um testemunho convincente da realidade
viva de Deus na vida de seu povo fiel.
Além de estabelecer essas “empresas do reino”, Gary também esteve
envolvido pessoal e financeiramente no Circle Urban Ministries, uma
organização que vai ao encontro das necessidades de famílias de baixa renda
em seu próprio bairro, uma região economicamente precária de Chicago. Mas
os envolvimentos de Gary Ginter com evangelismo e missões, sua
contribuição sacrificial e generosidade, seu trabalho para promover
misericórdia e justiça em seu próprio bairro e nos países mais pobres do
mundo — essas coisas não são o único modo de Gary dar um testemunho fiel
acerca do reino de Deus. Essencial em seu testemunho é a sua fidelidade aos
propósitos criacionais de Deus no mundo dos negócios. Gary considera os
negócios uma parte boa da criação de Deus, desenvolvidos em resposta à
primeira ordem de Deus (Gn 1.28). Empreendimentos comerciais podem
desempenhar um papel importante e positivo no mundo de Deus. Ama-se ao
próximo provendo bens e serviços necessários com a atitude responsável de
um administrador fiel. Gary testemunha acerca da boa intenção de Deus para
os negócios colocando o amor ao próximo, a mordomia dos recursos de Deus
e a justiça acima do lucro. Ele se esforça para se aproximar do ideal de uma
“empresa do reino”, um empreendimento comercial moldado pela história
bíblica que abençoará a vida de seus empregados e suas famílias, seus
fornecedores e seus clientes. Atingir esse objetivo é difícil numa época em
que a motivação idólatra do lucro impele grande parte do mundo tradicional
dos negócios. Gary descobriu que a fidelidade aos propósitos de Deus nos
negócios pode resultar em sofrimento, tanto na perda financeira quanto na
reputação. Mas isso é o que devemos esperar em nosso testemunho.
Há lugar no reino de Deus para os talentos de um apaixonado observador
de pássaros? Peter e Miranda Harris descobriram que há. Pároco em uma

igreja na Inglaterra, Peter estava explorando um possível trabalho missionário
na Tanzânia até Deus mostrar a ele e Miranda um plano bem diferente para a
sua família. Impulsionados pelo seu amor pela criação de Deus,
especialmente por pássaros, Peter e Miranda, seus três filhos pequenos e mais
um casal inglês se mudaram para Portugal em 1983 para fundar A Rocha,
uma organização de conservação ambiental cristã.
Na época, raramente se ouvia falar de cristãos verdadeiramente
preocupados com o meio ambiente. No entanto, a história bíblica deixa claro
que Deus ama profundamente a criação não humana e fez com que o ser
humano fosse seu guardião e mordomo. Naquela época, havia grande falta
em Portugal tanto de ecologistas cristãos comprometidos quanto de centros
de pesquisa de campo. Habitats frágeis ao longo da costa sul do país
precisavam ser protegidos. Um estuário em especial, um ponto de parada para
um grande número de aves migratórias, tornou-se o foco do trabalho. A
equipe de A Rocha realizou pesquisas de campo para aprender padrões de
migração, contar aves e fazer um levantamento das espécies na área. Então
esses dados foram compilados em relatos formais compartilhados com grupos
de lobistas de conservação nacional. O trabalho duro compensou. O governo
de Portugal agora concedeu proteção ambiental ao estuário perto de A Rocha.
A estação de campo em A Rocha é singular em sua ênfase comunitária.
Pessoas de contextos e níveis de habilidade muito diversos, desde novatos até
doutores em ornitologia, vêm para ajudar a coletar dados e aprender sobre a
ecologia da área. O livro de Peter Under the bright wings [Sob as asas
brilhantes] descreve os primeiros anos da organização e algumas das
dificuldades que enfrentou. Ele também mostra que A Rocha tem sido um
veículo extraordinário para apontar pessoas a Cristo. Pessoas de muitos
contextos diferentes visitaram a estação de campo em Cruzinha e foram
acolhidas na comunidade. As atividades cotidianas vão desde trabalho
técnico de campo até conversas sobre teologia. Às vezes, pessoas perguntam
sobre o lado “cristão” de A Rocha. Harris responde que a comunidade não
enxerga “distinção alguma entre o […] trabalho de campo e […] os
momentos quando pudemos conversar sobre Jesus com estudantes que
estavam se hospedando na casa. A primeira atividade não era secular, e a

última não era espiritual. Todas elas eram realizadas a partir da adoração e da
obediência, e tudo importava para o Criador e Redentor do mundo”.
67
Quando se aborda o trabalho na ecologia com o propósito de servir a Deus
entendendo e cuidando de sua criação, ele se torna um ato de adoração e
obediência, uma maneira de testemunhar acerca de seu reino que está sendo
implantado. À medida que Deus age por meio dos dons e propensões que ele
mesmo deu à equipe de A Rocha, o trabalho de campo assim se tornou uma
oportunidade para testemunhar. Os visitantes veem a glória de Deus revelada
por meio da criação e por meio da vida de uma comunidade que vive para
Cristo. Harris escreve: “À medida que os estudos de campo em Cruzinha se
desenvolviam, […] separamos um tempo para conversar sobre os modos em
que eles foram moldados pela nossa vida em Cristo. Era necessário tornar
isso um exercício consciente, pois constatamos que o instinto de
compartimentalizar era muito profundo em todos nós. Somente com o passar
do tempo, ele se tornou menos forçado e mais natural”.
68 Cerca de vinte anos
atrás, quando A Rocha foi fundada, um punhado de pessoas se uniu para
plantar uma semente. Deus desde então fez com que essa semente crescesse e
florescesse. Hoje A Rocha se tornou uma organização internacional com
trabalho em treze países.
69
Mas, e quanto a Abigail e Percival, nossos dois jovens estudantes
universitários ávidos por conhecer e servir a Deus, começando a se interessar
um pelo outro? A partir de sua jornada conosco pela história da Bíblia, eles
adquiriram uma nova visão da amplitude dos propósitos de Deus no mundo.
Como uma visão desse tipo poderia influenciar a vida deles, ou agora ou no
futuro?
Abigail, que sempre considerou seus momentos de oração e evangelismo
pessoal seu único “serviço cristão” real, ultimamente tem pensado sobre os
muitos modos com que Deus pode decidir usar os dons que deu a ela. Ela
considera ingressar no corpo diplomático ou lecionar idiomas em uma escola
estrangeira ou até mesmo abrir seu próprio negócio como consultora para
pessoas cujo trabalho as chama para morar fora do país. Ela consegue
perceber como um cristão poderia ter muitas oportunidades de mostrar os
caminhos de Deus nesses diferentes modos de vida. E visto que Deus mostra

sua realeza por meio de seu povo em todo lugar que estiver, e em todo
estágio de sua vida, o modo de pensar de Abigail sobre seus estudos
universitários aqui e agora também mudou. A adoração e o serviço não são
mais para o tempo livre. As coisas simples — ir à aula, conversar com
amigos ou escrever uma monografia — têm um novo significado para
Abigail. Ela passou a compreender que essas coisas são o que ela deve fazer
agora com o seu tempo e talentos, seu amor pelas pessoas e por Deus. Deus a
chamou para ser uma estudante, para incluir o evangelho a todo o seu
pensamento, leitura e escrita e para obter um entendimento do mundo de
Deus que permitirá a ela testemunhar acerca do governo de Deus aonde quer
que seja chamada mais tarde.
E quanto a Percival? O pobre rapaz sempre, lá no fundo, considerou a si
mesmo uma espécie de cristão inferior. Simplesmente ir à escola durante a
semana e se arrastar no trabalho da fazenda da família nas férias não lhe
parecia muito como uma vida dedicada a Deus, especialmente quando
comparada com a carreira de seu irmão, um trabalho de tempo integral com
jovens na cidade.
Mas Percival agora percebe que a agricultura também pode ser o chamado
de Deus. Ele está cursando matérias de ecologia e administração rural, lendo
sobre como é possível fabricar combustíveis limpos a partir do milho e de
outras safras dos campo. Ele começou a analisar algumas ideias sobre a
conservação de terras agrícolas e da água. Percival tem feito contato com
outros cristãos que têm falado e escrito sobre essas questões há algum tempo.
Ele está descobrindo o que pode aprender do trabalho deles e como poderia
encontrar modos de aplicá-los, onde quer que Deus possa enviá-lo. Para
Percival, assim como para Abigail, sua vida como estudante universitário tem
um significado completamente novo ao encontrar modos de buscar o reino de
Deus no presente, o lugar que lhe foi dado para aprender e trabalhar.
Viver em esperança: avançando para o que está adiante
Sabemos com base nas Escrituras que um dia “todo joelho se dobrará […] e
toda língua confessará que Jesus Cristo é o Senhor” (Fp 2.10,11). Também

sabemos que um dia a totalidade da criação será restaurada. Assim, olhamos
ansiosos para esse dia com esperança, arraigando nossa vida profundamente
no evangelho para que possamos começar a tornar o reino conhecido em
nossas próprias comunidades já agora. Vivemos em esperança, avidamente
aguardando e avançando para o que está adiante (3.13,14).
A esperança é importante: é uma parte vital da fé que precisa moldar
nossa missão hoje. “Agora permanecem estes três”, afirma Paulo, “a fé, a
esperança e o amor” (1Co 13.13). A fé é o meio pelo qual nos apropriamos da
salvação realizada em Jesus Cristo. O amor é a expressão exterior dessa fé,
que marca a vida da comunidade cristã. E a esperança é a expectativa
confiante de que o futuro reino de Deus virá. A esperança é uma convicção
firme sobre o futuro, uma convicção que dá significado e forma à vida no
presente.
70 Podemos observar isso em muitas situações cotidianas. Se, por
exemplo, você entrar na universidade na esperança de um dia se tornar um
médico, essa esperança moldará a sua vida, dirigindo não somente a sua
escolha de disciplinas, mas também ditando quanto tempo e esforço (e
dinheiro) dedicará aos seus estudos. Assim, a totalidade de sua vida adquirirá
uma nova feição, um novo foco, por causa da sua esperança do que o futuro
trará.
O mesmo padrão é evidente — mas em uma escala muito maior — no que
se refere à esperança suprema que os cristãos têm da revelação do reino de
Deus. Lesslie Newbigin o expressa assim: “Uma ação significativa na história
é possível somente quando há alguma visão de um propósito futuro”.
71 O que
você e eu acreditamos ser o propósito da história dará significado e forma
específicos à nossa vida hoje. Se reconhecermos que fomos chamados para
fornecer ao nosso mundo uma amostra do reino vindouro de Deus, a
esperança da vinda desse reino moldará tudo que dizemos e fazemos no
presente. Do mesmo modo que somos empurrados para frente em nossa
missão pelo impulso e propulsão que vimos nas próprias palavras de Jesus
enquanto viveu entre nós, também somos puxados para frente pela
expectativa esperançosa do reino futuro que será revelado quando Jesus
voltar.
Assim, importa muito aquilo pelo que especificamente estamos esperando.

No entanto, muitas vezes não damos atenção explícita ao conteúdo de nossa
esperança como cristãos, nossa percepção de para onde a história está indo.
Visto que a nossa esperança nem sempre é examinada cuidadosamente, há
certo perigo de que o seu conteúdo nem sempre seja completamente bíblico
— e isso é muito importante, já que (como vimos) aquilo pelo que estamos
esperando no futuro moldará a nossa missão no presente. Qual é a essência
da esperança cristã? O que a Bíblia nos ensina sobre o fim da história, o
último ato do drama cósmico?
72 Passaremos a essas perguntas em nosso
último capítulo.
1 Para duas excelentes análises da teologia de Atos, veja I. Howard Marshall; David Peterson, orgs.,
Witness to the gospel: the theology of Acts (Grand Rapids: Eerdmans, 1998); e Howard Clark Kee,
Good news to the ends of the earth: the theology of Acts (London: SCM, 1990). Nas seis seções
principais de seu livro, Kee esboça de modo proveitoso a estrutura da narrativa de Lucas em Atos:
Jesus como o agente de Deus para a restauração de seu povo; o Espírito como instrumento de Deus na
presente era; o alcance de pessoas para além de barreiras religiosas e culturais; estrutura e estratégia na
nova comunidade; e testemunhos até os confins da terra.
2 Joel B. Green afirma: “Para Lucas, o verdadeiro inimigo do qual é necessário se libertar não é
Roma, mas o poder cósmico do mal que reside e está ativo por trás de todas as formas de oposição a
Deus e ao povo de Deus”. (“Salvation to the ends of the earth: God as Saviour in the Acts of the
Apostles”, in: Witness to the gospel, p. 94). Cf. Efésios 6.12 e veja tb. N. T. Wright, Jesus and the
victory of God (London: SPCK, 1996), p. 446-51.
3 Joel Green, “Salvation”, p. 97.
4 A estrutura de Atos constituirá a estrutura deste capítulo. No entanto, haverá referência a outras
partes do Novo Testamento, visto que fazem parte dessa história. Como afirma Hendrikus Berkhof: “O
livro de Atos, as Epístolas e Apocalipse, que juntos constituem a maior parte do Novo Testamento,
tratam predominantemente da obra do Jesus exaltado na igreja e no mundo” (Christian faith: an
introduction to the study of the faith, 2. ed., tradução para o inglês de S. Woudstra [Grand Rapids:
Eerdmans, 1986], p. 321).
5 Kee, Good news, p. 30-1.
6 Essa descrição da Festa de Pentecostes vem de Jubileus 22.9, um documento judaico escrito no
século 2 a.C. Veja Kee, Good news, p. 30; citado de J. H. Charlesworth, org., The Old Testament
pseudepigrapha (Garden City: Doubleday, 1983-1985), 2:97, 2 vols.
7 R. L. Brawley afirma que há quatro atores principais no livro de Atos: Deus, Jesus, Pedro e Paulo
(Luke—Acts and the Jews: conflict, apology, and conciliation, Society of Biblical Literature
Monograph Series 33 [Atlanta: Scholars Press, 1987], p. 110). Brian Rosner acertadamente comenta:
“A lista de quatro personagens principais de Brawley tem uma omissão patente: o Espírito Santo. Ele
considera o Espírito Santo ‘nada mais do que uma designação conveniente de Deus…’. A descrição de
H. C. Kee do Espírito como ‘o instrumento de Deus na presente era’ parece mais correta. Perceber a
atividade do Espírito é observar o progresso da palavra” (“The progress of the word”, in: Witness to the

gospel, p. 224).
8 Kee, em seu capítulo sobre “O Espírito como instrumento de Deus na presente era” (Good news, p.
28-41), descreve a obra do Espírito sob quatro tópicos: “O Espírito como o instrumento para impelir as
boas-novas até os confins da terra” (p. 30-5), “O Espírito como agente de confirmação da participação
na comunidade” (p. 35-6), “O Espírito como agente de capacitação e orientação” (p. 36-9), “O Espírito
como instrumento de juízo” (p. 39-41).
9 Gerhard Lohfink, Jesus and community, tradução para o inglês de J. P. Galvin (Philadelphia:
Fortress, 1984), p. 19.
10 Para uma análise proveitosa desse tema do ajuntamento em Atos, veja David Seccombe, “The
new people of God”, in: Witness to the gospel, p. 349-72.
11 David Peterson argumenta que Lucas situa três afirmações decisivas sobre a palavra de Deus
crescendo e se multiplicando com o propósito de estruturar o livro de Atos em quatro seções principais.
Na primeira seção, a igreja em Jerusalém se desenvolve sob a liderança dos doze apóstolos (At 1.1—
6.7). A segunda, é a expansão não planejada do evangelho para a Judeia, Samaria e certas áreas
gentílicas por meio dos sete “diáconos” e outros que são dispersados de Jerusalém pela perseguição (At
6.8—12.25). A terceira, traz uma expansão planejada e organizada para a Ásia Menor e Europa sob a
liderança de Paulo, uma expansão que se origina em Antioquia (At 12.25—19.20). Na quarta seção, a
palavra de Deus cresce à medida que Paulo testemunha acerca do evangelho durante seu período de
prisão e julgamento (At 19.21—28.31). Veja “Luke’s theological enterprise: integration and intent”, in:
Witness to the gospel, p. 542-3.
12 Leland Ryken, Words of life: a literary introduction to the New Testament (Grand Rapids: Baker,
1987), p. 87. Também veja Brian Rapske, “Opposition to the plan of God and persecution”, in: Witness
to the gospel, p. 235-56.
13 Veja a descrição que Michael Green faz da vida atraente da igreja primitiva em Evangelism in the
early church (London: Hodder & Stoughton, 1970), p. 178-93 [edição em português: Evangelização na
igreja primitiva, 2. ed., tradução de Hans Udo Fuchs (São Paulo; Vida Nova, 1989]. Veja também
Adolf von Harnack, The mission and expansion of Christianity in the first three centuries (New York:
Harper & Brothers, 1961); e Roland Allen, The spontaneous expansion of the church (Grand Rapids:
Eerdmans, 1962), p. 7.
14 Kee afirma que o impacto da vida comunitária “era tão positivo e atraente que diariamente havia
mais convertidos e o número de membros da comunidade crescia” (Good news, p. 87).
15 Rosner, “Progress of the Word”, p. 226.
16 Ibidem, p. 216.
17 Heinz-Werner Neudorfer, “The speech of Stephen”, in: Witness to the gospel, p. 275-94.
18 Harnack, Mission and expansion, p. 368. Cf. M. Green, Evangelism in the early church, p. 173.
19 Allen (Spontaneous expansion, p. 7) articula três fatores em ação na expansão espontânea da
igreja: (1) evangelismo não planejado e espontâneo; (2) vida atraente da igreja; (3) plantação de novas
igrejas. “Isso, então, é o que quero dizer com expansão espontânea. Refiro-me à expansão que resulta
da atividade não impelida e não organizada de membros individuais da Igreja que explicam a outros o
evangelho que encontraram para si mesmos; refiro-me à expansão que resulta da atração irresistível da
igreja cristã em homens que observam sua vida ordenada e são atraídos a ela pelo desejo de descobrir o
segredo de uma vida da qual eles instintivamente desejam compartilhar; também me refiro à expansão
da Igreja pelo acréscimo de novas igrejas”.
20 Lesslie Newbigin, “Crosscurrents in ecumenical and evangelical understandings of mission”,

International Bulletin of Missionary Research 6, n. 4 (1982): 150.
21 Peterson, “Luke’s theological enterprise: integration and intent”, p. 542-3. Sobre a centralidade
do crescimento da palavra de Deus, veja Rosner, “Progress of the Word,” p. 215-34. Os textos que
falam sobre o aumento, a propagação e o crescimento da palavra de Deus são Atos 6.7; 9.31; 12.24;
16.5; 19.20; 28.30,31.
22 Roland Allen, Missionary methods: St. Paul’s or ours? (Grand Rapids: Eerdmans, 1962), p. 107,
132.
23 Robert C. Tannehill resume: “Atos 13 e 14 apresenta uma descrição representativa da missão de
Paulo e inclui muitos temas que encontraremos novamente. Ele prega primeiro nas sinagogas judaicas,
mas se volta aos gentios quando a pregação na sinagoga não é mais possível. Ele anuncia o único Deus
a gentios que não têm qualquer contato com o monoteísmo judaico. Repetidamente encontra
perseguição e muda de local quando necessário, mas não abandona a missão. Ele opera sinais e
maravilhas, fortalece novas igrejas. Nessa missão, Paulo está cumprindo a profecia do Senhor de que
ele iria ‘levar o meu nome perante gentios, reis e israelitas’ e que ‘precisaria sofrer pelo meu nome’ [At
9.15,16]” (The narrative unity of Luke—Acts: a literary interpretation [Philadelphia: Fortress, 1986-
1990], 2:182, 2 vols.).
24 Allen sugere que a prática de Paulo era “estabelecer centros de vida cristã em dois ou três lugares
importantes a partir dos quais o conhecimento poderia se espalhar para as regiões ao redor. Isso é
importante […] pois sua intenção era que a igreja se tornasse um centro de luz”. Ele continua
afirmando que “todas as cidades em que plantou igrejas eram centros de administração romana,
civilização grega, influência judaica ou de certa importância comercial” (Missionary methods, p. 12-3).
25 Veja David Bosch, Transforming mission: paradigm shifts in the theology of mission (Maryknoll:
Orbis, 1991), p. 123 [edição em português: Missão transformadora: mudanças de paradigma na
teologia da missão, 3. ed., tradução de Geraldo Korndörfer; Luís M. Sander (São Leopoldo, Sinodal,
2009)]; Dean Gilliland, Pauline theology and mission practice (Grand Rapids: Baker, 1983).
26 L. J. Kreitzer fala sobre “a contingência” das cartas de Paulo: “Mais do que nunca, o estudo
acadêmico passou a apreciar como as circunstâncias que envolvem a produção de uma carta contribuem
para a nossa compreensão de seu conteúdo. Em resumo, quanto maior for o nosso conhecimento de
precisamente como e por que o apóstolo Paulo […] veio a escrever uma determinada carta, melhores
são as nossas chances de entender não somente a sua mensagem original, mas de interpretar o
significado para nós hoje” (“Eschatology”, in: Gerald F. Hawthorne; Ralph P. Martin; Daniel G. Reid,
orgs., Dictionary of Paul and his letters [Downers Grove: InterVarsity, 1993], p. 255) [edição em
português: Dicionário de Paulo e suas cartas, 2. ed., tradução de Barbara Theoto Lambert (São Paulo:
Vida Nova/Loyola/Paulus, 2008].
27 Isso de modo algum sugere que Paulo era um teólogo que tentava organizar seu ensino em uma
teologia sistemática. Paulo era em primeiro lugar um missionário e evangelista. No entanto, foi treinado
como rabino (At 22.3; Fp 3.5,6) e lutava para entender o significado das boas-novas de Jesus Cristo
trabalhando no contexto de uma compreensão judaica da história redentora. Há uma estrutura
identificável em sua reflexão sobre o evangelho.
28 Veja George E. Ladd, The pattern of New Testament truth (Grand Rapids: Eerdmans, 1968), p.
89.
29 Ladd afirma acertadamente que “o centro do pensamento paulino é a compreensão da vinda dos
poderes da nova era” (ibidem, p. 89).
30 Herman Ridderbos, Paul: an outline of his theology, tradução para o inglês de J. R. de Witt

(Grand Rapids: Eerdmans, 1975), p. 44 [edição em português: A teologia do apóstolo Paulo: a obra
definitiva sobre o pensamento do apóstolo aos gentios, 2. ed., tradução de Susana Klassen (São Paulo:
Cultura Cristã, 2014)].
31 Ridderbos fala sobre “a escatologia da ressurreição” de Paulo (ibidem, p. 57).
32 Ibidem, p. 55.
33 Joel Green, “Death of Christ”, in: Dictionary of Paul and his letters, p. 205.
34 Bosch, Transforming mission, p. 153.
35 Oscar Cullmann afirma: “No pensamento paulino, o tema missionário, como a pré-condição da
vinda da salvação, permeia toda a teologia do apóstolo” (“Eschatology and missions in the New
Testament”, in: Gerald H. Anderson, org., The theology of the Christian mission [London: SCM, 1961],
p. 50). Cullmann em outra ocasião escreve: “A proclamação missionária da Igreja, sua pregação do
evangelho, fornece ao período entre a ressurreição de Cristo e a parúsia o seu significado para a história
redentora” (Christ and time, tradução para o inglês de F. V. Filson [Philadelphia: Westminster, 1950],
p. 157) [edição em português: Cristo e o tempo: tempo e história no cristianismo primitivo, tradução de
Daniel Costa (São Paulo: Custom, 2003)]. A missão escatológica da igreja “ocorre precisamente no
período intermediário” e “dá a esse período o seu significado” (ibidem, p. 162-3, grifo do autor).
Cullmann continua analisando o modo como esse tema “permeia toda a teologia do apóstolo” (ibidem,
p. 163).
36 Ao falar sobre a edificação da igreja, Paulo emprega principalmente duas palavras gregas:
charismata (da qual vem a nossa palavra “carismático”) e diaconia (relacionada a diakonos,
“diácono/ministro/servo”). Os charismata representam toda a gama dos dons dados à igreja, como
ilustrado em 1Coríntios 12—14, Romanos 12 e Efésios 4 (cf. 1Pe 4.10). A segunda palavra se refere
mais a dons que são bastante fixos e requerem o reconhecimento contínuo. Às vezes, empregamos o
termo “ofício”, que pode ajudar a entender o significado. No entanto, os termos são bastante fluidos.
Emprego os termos “dons” e “ministérios” para mostrar essa distinção. Veja Ridderbos, Paul, p. 440-6.
37 Ibidem, p. 159-204.
38 Veja ibidem, p. 159-81; Ladd, Pattern of New Testament truth, p. 93-5.
39 Veja Ladd, Pattern of New Testament truth, p. 95; Ridderbos, Paul, p. 161-6, em que intitula a
seção “The eschatological character of justification”.
40 Segundo Ralph Martin, a reconciliação é o centro da teologia de Paulo. Veja seu “Center of
Paul’s theology”, in: Dictionary of Paul and his letters, p. 94. Veja também Stanley Porter, “Peace,
reconciliation”, in: Dictionary of Paul and his letters, p. 695-9; Ridderbos, Paul, p. 182-97.
41 Veja Ridderbos, Paul, p. 197-204; James Scott, “Adoption, sonship”, in: Dictionary of Paul and
his letters, p. 15-8.
42 Ridderbos, Paul, p. 278-326.
43 Ibidem, p. 265.
44 Ibidem, p. 303.
45 Obviamente, grande parte da lei foi abolida, especialmente expressões cerimoniais e civis da lei
que fazem parte da antiga aliança. No entanto, a lei ainda pode orientar o povo de Deus quando a
normatividade da criação e a expressão cultural são reconhecidas. Veja Al Wolters, Creation regained:
biblical basics for a reformational worldview (Grand Rapids: Eerdmans, 1985) [edição em português:
A criação restaurada: base bíblica para uma cosmovisão reformada, tradução Denise Pereira Ribeiro
Meister (São Paulo: Cultura Cristã, 2006)].
46 Ridderbos, Paul, p. 293.

47 R. P. Meye, “Spirituality”, in: Dictionary of Paul and his letters, p. 913.
48 Meye fala sobre a gratidão como “a força motriz da espiritualidade paulina”, que “marca a linha
divisória entre fé e incredulidade, entre o coração obediente e o desobediente” (ibidem, p. 915).
49 Um resumo excelente da preocupação missionária de Paulo em suas epístolas pode ser
encontrado na obra de David Bosch intitulada Transforming mission, p. 123-78. O título do capítulo é
“Mission in Paul: invitation to join the eschatological community”.
50 Ibidem, p. 137.
51 Bruce Winter, Seek the welfare of the city: Christians as benefactors and citizens (Grand Rapids:
Eerdmans, 1994). Winter traz uma análise ampla do tratamento que Pedro faz desse tema. Ele enxerga
paralelos entre o livro de 1Pedro e a ordem de Jeremias a um povo exilado. Jeremias afirma: “Buscai a
paz e a prosperidade da cidade, para a qual eu os carreguei no Exílio” (29.7). Pedro exorta a igreja a
fazer o bem, a buscar a paz e a abençoar o mundo incrédulo (1Pe 3.9-11), em que ela vive como exilada
(1.1; 2.11; plausivelmente exilada de Roma). Ela precisa resistir ao mal na cultura de sua época. Mas ao
mesmo tempo, seus membros precisam “viver de maneira tão exemplar entre os pagãos para que,
mesmo que eles os acusem de praticarem o mal, eles possam ver as boas obras de vocês e glorificar a
Deus no dia em que nos visitar” (2.12). Winter, na sequência, explica a tarefa dos cristãos em várias
esferas sociais na vida pública do Império Romano. Eles deveriam ser santos em tudo que faziam
(1.15).
52 Winter, Seek the welfare of the city, p. 82.
53 Ridderbos, Paul, p. 487. É possível enfatizar ou a vinda presente ou a vinda futura do reino à
custa da outra e distorcer o ensino de Paulo. Uma visão de “escatologia realizada” enfatiza a chegada
presente do reino à custa do cumprimento futuro. Uma visão “apocalíptica” enfatiza o oposto. Veja
Bosch, Transforming mission, p. 139-43.
54 Para uma elaboração do ensino de Paulo sobre “The future of the Lord”, veja Ridderbos, Paul, p.
487-562.
55 Estudiosos têm se debruçado sobre esse fim abrupto de Atos. Por que Lucas não nos conta o que
acontece com Paulo? Por que ficamos com tantas informações incompletas? David Wenham e Steve
Walton resumem quatro possíveis razões para esse fim abrupto no livro de Atos: (1) Lucas não tem
mais informações. Essa é a situação presente quando ele termina o livro. (2) Lucas tem em mente
escrever um terceiro volume. (3) Quando Lucas menciona a prisão domiciliar de Paulo durante dois
anos, sinaliza com isso que Paulo é solto, pois os acusadores do prisioneiro precisam comparecer no
prazo de dois anos. (4) Paulo é julgado e executado, mas Lucas deliberadamente não relata isso.
Wenham e Walton apontam problemas básicos com cada uma dessas teorias. David Wenham; Steve
Walton, Exploring the New Testament: a guide to the Gospels and Acts (Downers Grove: InterVarsity,
2001), p. 285. Rosner defende acertadamente que o fim abrupto indica “a natureza contínua do avanço
da palavra” (“Progress of the Word”, p. 230-2).
56 Luke Johnson, The Acts of the Apostles (Collegeville: Liturgical Press, 1992), p. 476.
57 Kee, Good news, p. 107.
58 Walsh; Middleton, The transforming vision: shaping a Christian world view (Downers Grove:
InterVarsity, 1984), p. 35 [edição em português: A visão transformadora: moldando uma cosmovisão
cristã, tradução de Valdeci Santos (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].
59 N. T. Wright, Jesus and the victory of God, p. 443, 467-72: “Desde que escrevi The New
Testament and the people of God, compreendi que é necessário acrescentar ‘Que horas são?’ [‘Em que
época estamos?’] às quatro perguntas com que comecei (embora em que ponto na ordem ainda poderia

ser analisado). Sem essa pergunta, a estrutura desmorona em uma atemporalidade que caracteriza
algumas cosmovisões não judaico-cristãs” (p. 443, nota 1).
60 N. T. Wright, “How can the Bible be authoritative?”, Vox Evangelica 21 (1991): 7-32; idem, The
New Testament and the people of God (London: SPCK, 1992), p. 139-43.
61 Adaptamos a ilustração de N. T. Wright sugerindo seis atos em vez de cinco.
62 Hugo Echegaray, The practice of Jesus, tradução para o inglês de M. J. O’Connell (Maryknoll:
Orbis, 1984), p. 94.
63 N. T. Wright, The New Testament and the people of God, p. 140, grifos e letras maiúsculas dos
autores.
64 Contemporary Testimony Committee of the Christian Reformed Church, Our world belongs to
God: a contemporary testimony (Grand Rapids: CRC Publications, 1987), parágrafos 44-5. Ele
continua esmiuçando essa missão em áreas de gênero e sexualidade, condição de solteiro, casamento e
família, educação, trabalho, lazer, ciência e tecnologia, autoridade política e cidadania, guerra e paz
(parágrafos 46-55).
65 Gary Ginter, “Kingdom professionals: an old idea in new wineskins”, Paraclete Perspective 2, n.
1 (Spring, 2002): 8. Reimpresso e disponível em: http://www.tentmakernet.com/articles/ginter.htm.
66 John Wierick, “The profit prophet”, World Vision Magazine (December 1988-January 1989): 19-
21, disponível em: www.generousgiving.org/images/uploaded/WIERICK_Profit_Prophet_Ginter.pdf.
67 Peter Harris, Under the bright wings (London: Hodder & Stoughton, 1993; reimpr., Vancouver:
Regent College Publishing, 2000), p. 117 [edição em português: A rocha, tradução de Marcos D. S.
Steuernagel (São Paulo: ABU, 2001)].
68 Ibidem, p. 108-9.
69 Mais informações sobre A Rocha podem ser encontradas em seu website: http://arocha.pt.
70 Veja Richard Bauckham; Trevor Hart, Hope against hope: Christian eschatology at the turn of
the millennium (Grand Rapids: Eerdmans, 1999), p. 35-43.
71 Lesslie Newbigin, The gospel in a pluralista society (Grand Rapids: Eerdmans, 1989), p. 114
[edição em português: O evangelho em uma sociedade pluralista, tradução de Valéria Lamim Delgado
Fernandes (Viçosa: Ultimato, 2016)].
72 Hendrikus Berkhof, Christ, the meaning of history, tradução para o inglês de L. Buurman
(Richmond: John Knox, 1966) nos ajuda a entender a importância do fim para o significado da história.
Veja também o capítulo de Anthony Hoekema, “The meaning of history”, em seu livro The Bible and
the future (Grand Rapids: Eerdmans, 1979), p. 23-40 [edição em português: A Bíblia e o futuro: a
doutrina bíblica das últimas coisas, 3. ed., tradução de Karl H. Kepler (São Paulo: Cultura Cristã,
2013)].

A volta do Rei
Redenção concluída
Quando Deus toma a iniciativa para redimir sua criação do pecado e do seu
efeito sobre ela, o propósito supremo era que aquilo que, no passado, ele
havia criado bom fosse completamente restaurado, que todo o cosmo mais
uma vez vivesse e florescesse sob o seu governo benigno. Em Jesus Cristo,
esse objetivo de redenção cósmica foi primeiro revelado e depois realizado:
as palavras de Jesus da cruz “Está consumado” (Jo 19.30) declaram que a
redenção já está concluída, ainda que sua revelação final ainda esteja no
futuro. A Bíblia conta a história da marcha progressiva de Deus à sua
restauração cósmica final. Ela também revela, um pouco de cada vez, como
será essa restauração quando finalmente for revelada em sua plenitude. Neste
último capítulo, examinaremos a conclusão da história na restauração e
renovação da boa criação de Deus.
Os últimos capítulos de Apocalipse nos fornecem um retrato claro do que
está reservado para a criação à medida que Deus conduzir a história ao seu
final. Mas em toda a Bíblia já pudemos ter vislumbres da direção para onde a
história da redenção divina está caminhando. O retrato mais claro do reino de
Deus está na pessoa, nas palavras e nas ações de seu Filho, Jesus Cristo. No
entanto, muitas outras partes das Escrituras também de modo sucinto abriram
janelas à intenção suprema de Deus para a sua criação.
O final da história
Nos últimos capítulos de Apocalipse (especialmente 21.1-5), vemos o
desvelamento do propósito final de Deus. A João é permitida uma visão de
um novo céu e de uma nova terra inteiramente purificados do pecado e do
mal.
1 Os antigos céu e terra (em que o pecado e morte dominaram) dão lugar

a uma nova esfera, sobre a qual o Senhor governa novamente.
2 A Cidade
Santa, a “Nova Jerusalém”, desce do céu à terra. Isso sugere a imposição
renovada da ordem perfeita de Deus para a terra. E recordamos que Jesus
orou: “Venha o teu reino. Seja feita a tua vontade na terra como é feita no
céu!” (Mt 6.10, KJV). A descida do local celestial de habitação de Deus, “a
Nova Jerusalém”, à terra é a representação vívida de que o reino de Deus veio
e que sua vontade será realizada eternamente na terra — do mesmo modo
que sempre foi realizada no céu.
Uma forte voz do trono de Deus proclama:
Agora a habitação de Deus está com os homens, e ele viverá com eles. Eles serão o seu povo; e o
próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará dos seus olhos toda lágrima. Não
haverá mais morte, nem pranto, nem choro, nem dor, pois a antiga ordem das coisas já passou (Ap
21.3,4).
O céu, o local de habitação de Deus (que foi separado da criação por causa do
pecado), “desce” à terra em um retrato dramático de unidade e harmonia
restauradas entre o Criador e o que ele criou. O próprio Deus vem para
habitar na nova terra com a humanidade. O pecado e todos os seus efeitos são
removidos. Não há mais morte, doença ou dor, somente paz e harmonia, pois
o relacionamento entre Deus e a humanidade foi curado. Deus está mais uma
vez tão próximo de nós como na época em que ele andava com (nossos
antepassados) Adão e Eva no jardim. Os relacionamentos entre os seres
humanos também foram curados: o amor reina. A totalidade da vida humana
é purificada, e até a criação não humana compartilha dessa libertação do povo
de Deus da antiga escravidão ao pecado e à morte. O propósito da história
bíblica é uma criação renovada: curada, redimida e restaurada.
Embora essa visão de uma nova criação seja a conclusão culminante do
último livro da Bíblia, a maior parte de Apocalipse não trata do futuro. O que
ele nos fornece é um vislumbre dos propósitos de Deus em toda a história, os
propósitos que levam a essa conclusão. Grande parte da Bíblia nos mostra a
história da humanidade na terra e, especialmente, as experiências do povo de
Deus. Nesse livro final, é como se as cortinas da sala do trono celestial de
Deus tivessem sido abertas. Isso permite finalmente ver a batalha espiritual

que sempre moldou nossa história mundial, uma batalha que não poderíamos
ver de nossa perspectiva terrena e historicamente limitada (cf. Ef 6.12).
João escreve a uma pequena comunidade de cristãos na Ásia Menor que
estão sofrendo terrivelmente sob a perseguição romana. Deve ter parecido
para eles que estavam enfrentando as forças do mal totalmente sozinhos. Mas
João vê — e revela aos seus leitores — que por trás da oposição local ao
evangelho que essa igreja do primeiro século enfrenta está o próprio ódio
constante e implacável de Satanás a Cristo e ao seu povo. Essa pequena igreja
na Ásia Menor está enfrentando um conflito secundário na batalha espiritual
cósmica contínua, mas não consegue enxergar a tamanha extensão da guerra
entre Deus e Satanás. Assim, a esses cristãos amedrontados e fiéis vem a
mensagem de Apocalipse: Deus triunfará. Os que são fiéis em seu serviço
participarão da vitória final. Ainda que no presente o resultado de sua
própria batalha possa parecer incerto, Jesus está inequivocamente no controle
dos acontecimentos mundiais.
João inicia o livro de Apocalipse com uma visão surpreendente do Cristo
exaltado. Ele então explica que recebeu a ordem de registrar tanto o que está
ocorrendo agora na história (em sua própria época no primeiro século)
quanto o que ocorrerá no futuro (1.19). Mas a primeira questão à qual o autor
dá atenção é encorajar sete igrejas representativas na Ásia Menor a
permanecerem fiéis ao evangelho em meio ao sofrimento (Ap 2—3). Depois
disso as cortinas são abertas e é permitida a João uma visão da sala do trono
no céu, do qual Deus governa em glória e esplendor (Ap 4). Vinte e quatro
anciãos (representando simbolicamente todo o povo de Deus — a nação de
Israel do Antigo Testamento e a igreja do Novo Testamento) e quatro seres
viventes (representando toda a criação) se dobram diante de Deus e o adoram.
João então vê um livro com sete selos, representando o controle soberano
sobre a direção e o propósito da história mundial. Quando esse livro dos
propósitos de Deus for finalmente aberto, o mal será derrotado e o povo de
Deus (cujos nomes estão escritos no livro) participará de sua salvação (Ap 5).
Um anjo pergunta: “Quem é digno de romper os selos e abrir o livro? Quem é
apto para dirigir a história ao seu objetivo? Quem conseguirá vencer o mal e
realizar a salvação?” (parafraseado). Inicialmente, ninguém responde à

pergunta do anjo. João começa a chorar amargamente, pois percebe que se
ninguém conseguir dirigir o curso da história, a humanidade está presa a um
ciclo sem sentido de mal, sofrimento, dor e morte. Mas um ancião conforta
João, convidando-o para olhar novamente e ver um leão muito poderoso, que
triunfou sobre os seus inimigos e é capaz de abrir o livro. Mas quando João
olha através de suas lágrimas, vê não o leão real, mas um desprezível
cordeiro manchado de sangue, parecendo como se tivesse sido morto. A
vitória de Deus foi conquistada não em qualquer campo de batalha, não por
um leão guerreiro, mas pelo Cordeiro cuja vida foi oferecida na cruz.
Quando o Cordeiro toma o livro de Deus, um hino de louvor começa a ser
cantado por vinte e quatro anciãos, milhares de milhares de anjos se unem
nesse louvor e por fim é entoado por todas as criaturas no céu e na terra ao se
prostrarem e adorarem ao Cordeiro, dizendo:
Tu és digno de tomar o livro e de abrir seus selos,
porque foste morto,
e com teu sangue compraste para Deus
homens de toda tribo, língua, povo e nação.
Tu os constituíste reino e sacerdotes para servir nosso Deus;
e eles reinarão sobre a terra. […]
Digno é o Cordeiro que foi morto
de receber poder e riqueza, sabedoria e força,
honra, glória e louvor! […]
Àquele que está assentado no trono e ao Cordeiro
sejam o louvor, a honra, a glória e o poder
para todo o sempre! (Ap 5.9,10,12,13).
O restante do livro de Apocalipse nos mostra Jesus — o Cordeiro exaltado —
abrindo os selos e conduzindo a história ao seu propósito final: a instauração
do reino de Deus. O juízo e a salvação sobrevêm ao mundo à medida que o
Vencedor crucificado abre os selos e abre o livro da história. João mostra que
a verdadeira intenção da história sempre foi essa batalha espiritual; embora
normalmente oculta da percepção humana, ela é agora revelada a ele em uma
série de imagens vívidas. Embora as imagens sejam intrincadas e às vezes
tanto enigmáticas quanto amedrontadoras, seu significado geral é claro. O
próprio Deus é aquele que, por meio de seu Filho amado, está movendo a

história. Os propósitos de Deus serão realizados: seu reino virá. Essa é a
imagem final gloriosa do céu e terra renovados, compartilhada em
Apocalipse 21 e 22.
Imagine o conforto e esperança que esse livro deve ter fornecido à igreja
pequena e sofredora para a qual João estava escrevendo. Ele afirma que,
embora ela possa ser pequena em número e ter influência bem limitada, e
embora precise durante um tempo continuar sofrendo sob o poder terrível de
Roma, sua causa não é sem esperança, pois está ligada ao lado vencedor. Ela
segue Aquele que governa a história de modo soberano, que esmagará toda a
oposição ao seu reino. Ela também participará da vitória de Cristo.
Acontecimentos que precedem o fim
O Novo Testamento nos mostra que três grandes acontecimentos inaugurarão
a restauração da criação e a chegada do reino de Deus em sua plenitude: (1)
Jesus volta. (2) Os mortos ressuscitam fisicamente (alguns para participar da
vida da nova criação e outros para a ira final). E (3) o mundo aparece diante
de Cristo para ser julgado.
Infelizmente, esses acontecimentos do tempo final muitas vezes têm
provocado uma controvérsia inútil entre cristãos. Com frequência os cristãos
tentam estabelecer uma linha de tempo cósmica em que conseguem encaixar
acontecimentos históricos conhecidos. Mas, visto que há muitas dessas linhas
de tempo competindo entre si, esse tipo de curiosidade sobre o que Deus fará,
como o fará e, especialmente, quando o fará com demasiada frequência só
gera debates e disputas entre cristãos que deveriam demonstrar um pouco
mais de bom senso. Há compreensões diferentes entre vários grupos de
cristãos a respeito de detalhes da volta de Cristo, do milênio, do
arrebatamento, do juízo final, do Anticristo e da tribulação. No entanto,
David Lawrence nos lembra de que fixar nossa atenção nessas coisas é um
pouco como ficar obcecado com a natureza, a intensidade e a frequência das
dores de parto quando deveríamos estar pensando no bebê!
3 Embora as
“dores de parto” do fim dos tempos possam ser fascinantes, precisamos dar a
devida atenção ao mundo novo que nascerá dele. Por isso, nosso foco aqui

está no “bebê”, o mundo que está esperando para nascer.
Uma nova criação: a restauração de todas as coisas
Apocalipse 21 é uma visão de uma criação completamente restaurada à sua
natureza original virtuosa. O que talvez não notemos, no entanto (a não ser
que prestemos atenção especial na questão), é que essa visão do propósito
supremo de Deus pode divergir substancialmente do que temos pensado que
seria. Apocalipse não nos fornece um retrato de cristãos subitamente
transportados para fora deste mundo para viver uma existência espiritual no
céu para sempre. Wright comenta a respeito desse equívoco comum: “Com
muita frequência, as pessoas vêm ao Novo Testamento com a presunção de
que ‘ir para o céu quando morrer’ é o sentido implícito disso tudo […] Elas
adquirem essa perspectiva de algum lugar, mas não do Novo Testamento”.
4
A visão de João em Apocalipse, na verdade, em todo o Novo Testamento,
não retrata a salvação como uma fuga da terra para um céu espiritualizado
onde almas humanas habitam para sempre.
5 Em vez disso, a João é mostrado
(e ele, por sua vez, nos mostra) que a salvação é a restauração da criação de
Deus em uma nova terra. Nesse mundo restaurado, os redimidos de Deus
viverão em corpos ressurretos em uma criação renovada, da qual o pecado e
seus efeitos foram eliminados. Esse é o reino do qual os seguidores de Cristo
já começaram a desfrutar de modo antecipado.
Esse conceito de salvação como restauração (em vez de destruição e
recriação) da criação implica uma continuidade significativa entre o mundo
que conhecemos e o mundo vindouro. No entanto, a Bíblia também sugere
alguns elementos de descontinuidade.
6 Por exemplo, os discípulos ainda
conseguem reconhecer o corpo ressurreto de Jesus, a quem conheciam antes
de sua morte. No entanto, o corpo ressurreto também parece ter a nova
capacidade de atravessar portas trancadas e percorrer grandes distâncias
rapidamente (Lc 24.28-43). Quando Jesus falou aos saduceus no que diz
respeito a se o casamento sobreviveria à ressurreição, ele poderia estar
aludindo a um novo modo de vida que transcende os relacionamentos sexuais
que conhecemos no presente (Mt 22.30; Lc 20.34-36). Assim, parece que

entre a nossa vida presente e a vida a ser revelada pode haver tanto
continuidade quanto descontinuidade, algumas coisas familiares e algumas
desconhecidas. Não vemos tão claramente quanto gostaríamos (1Co 13.12),
mas sabemos que “olho nenhum viu, ouvido algum ouviu, […] o que Deus
preparou para os que o amam” (2.9). Seja como for, sabemos sim que nossa
nova vida será vivida em um corpo ressurreto em uma criação restaurada
(1Co 15).
Essa restauração da criação será abrangente: toda a vida humana no
contexto de toda a criação será restaurada. Demasiadas vezes nossa visão do
futuro enfatizou unicamente a salvação do indivíduo à parte de todo o
contexto criacional e relacional em que seres humanos vivem a sua vida.
7
Muitas vezes, toda a história bíblica parece girar em torno de “mim”.
8 No
entanto, a visão de Apocalipse, na verdade de toda a história da Bíblia, nos
leva a aguardar em esperança uma criação restaurada à sua completude.
Todas as facetas dela devem ser trazidas de volta ao que era a intenção de
Deus para ela. E nessa plenitude gloriosa e completude perfeita, há um lugar
para nós. A redenção tem uma abrangência cósmica.
Os seres humanos foram criados para desfrutar da comunhão com Deus no
pleno contexto da vida criacional.
9 Ao tentar Adão e Eva a se rebelarem
contra Deus, Satanás tentou frustrar o plano de Deus — e teve êxito, ao
menos no sentido de que o pecado e seus efeitos agora afetam toda a criação.
Mas quando Deus começou a lidar com o pecado e suas consequências
destrutivas, seu plano era destruir o inimigo dessa boa criação, não destruir a
própria criação. Destruir o que ele havia criado implicaria conceder uma
vitória tremenda a Satanás.
10 J. A. Seiss o coloca deste modo: “Se a redenção
não for tão longe quanto as consequências do pecado, ela é um contrassenso e
deixa de ser redenção […] A salvação de qualquer número de pessoas […]
não é a redenção do que caiu, mas o ajuntamento de alguns fragmentos, […]
[e nesse caso] o dano causado por Satanás [iria] mais longe do que a
restauração de Cristo”.
11 Contudo, a história da Bíblia caminha para uma
conclusão em que a obra restauradora de Deus eliminará completamente todo
o “dano” causado por Satanás.
No decorrer das Escrituras, o reino de Deus é retratado como um lugar e

um tempo de restauração cósmica. Em profecias do Antigo Testamento, Deus
afirma: “Vejam! Eu criarei novos céus uma nova terra” (Is 65.17; cf. 2Pe
3.13: Ap 21.1-5). Após Jesus ter vencido o pecado na cruz e voltado da
sepultura em triunfo sobre a morte em si, Pedro proclama a boa notícia em
Jerusalém, dizendo: “[Jesus] precisa permanecer no céu até que venha o
tempo em que Deus restaurará todas as coisas, como prometeu há muito
tempo, por meio dos seus santos profetas” (At 3.21). Paulo também enfatiza a
extensão universal da obra redentora de Deus: “Pois foi do agrado de Deus
que toda a sua plenitude habitasse [em Jesus], e que por meio dele
reconciliasse consigo todas as coisas, sejam as que estão na terra ou as que
estão no céu, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz” (Cl
1.19,20). Do mesmo modo que nada na criação permaneceu intocado pelo
pecado depois do Éden, também nada na criação pode permanecer intocado
pela redenção de Deus após a vitória de Cristo na cruz.
Esse alcance abrangente da obra redentora de Deus significa, por
exemplo, que a parte da criação que não inclui os seres humanos, mas
constitui o contexto para a vida humana será restaurada ao que sempre foi a
intenção de Deus para ela. Assim, os profetas descrevem uma nova e pura
harmonia e abundância na criação sob o reinado de Deus (Is 65.17-25; Jl
2.18-27). Paulo afirma que a criação não humana, que durante tanto tempo
participou da miséria da Queda da humanidade no pecado, agora está
aguardando a renovação vindoura:
A criação aguarda, com grande expectativa, que os filhos de Deus sejam revelados. Pois a Criação
foi submetida à frustração, não pela sua própria escolha, mas por causa da vontade daquele que a
sujeitou, na esperança de que a própria Criação seja libertada de sua escravidão à decadência e
levada para a gloriosa liberdade dos filhos de Deus (Rm 8.19-21).
Uma redenção abrangente também significa que o desenvolvimento
cultural e o trabalho humanos continuarão. As realizações culturais da
história serão depuradas e reaparecerão na nova terra (Ap 21.24-26).
12
Haverá oportunidade para que a humanidade continue trabalhando e
desenvolvendo a Criação, mas agora liberta do fardo do pecado.
13

Venho em breve!
Os retratos maravilhosos de Apocalipse 21 e 22 dirigem nossa atenção para o
fim da história e a restauração de toda a criação de Deus. João termina seu
livro com a promessa (repetida três vezes: 22.7,12,20): “Eis que venho em
breve!”. Ele exorta seus leitores a ficarem firmes na fé, adverte os que
permanecem fora do reino e convida todos os que estão “sedentos” pela
salvação de Deus revelada nas visões de João a virem e beberem livremente
da água da vida. Jesus virá em breve. Todos os que creem e esperam em
Jesus, como o apóstolo João fazia, irão ecoar sua própria resposta: “Amém.
Vem, Senhor Jesus!”.
1 Talvez a palavra usada para descrever “novo” aqui seja importante. Anthony Hoekema relata que
“tanto em 2Pedro 3.13 quanto em Apocalipse 21.1, a palavra grega usada para designar ‘o aspecto
novo’ do novo cosmo não é neos, mas kainos. A palavra neos significa novo no tempo ou origem,
enquanto a palavra kainos significa novo em natureza ou qualidade” (The Bible and the future [Grand
Rapids: Eerdmans, 1979], p. 280) [edição em português: A Bíblia e o futuro: a doutrina bíblica das
últimas coisas, 3. ed., tradução de Karl H. Kepler (São Paulo: Cultura Cristã, 2013)]. H. Haarbeck, H.-
G. Link e C. Brown também acreditam que as diferentes palavras gregas são significativas: “No uso
secular, kainos denota aquilo que é qualitativamente novo em comparação ao que existiu até então,
aquilo que é melhor do que o antigo, enquanto neos é usado temporalmente para aquilo que até agora
ainda não existiu, aquilo que acabou de surgir”. Não tenho certeza de que a linguagem comporta uma
distinção tão sutil. Os autores continuam afirmando que “quanto mais essas palavras eram usadas,
menos a diferenciação conceitual era mantida” (Colin Brown, org., The new international dictionary of
New Testament theology [Grand Rapids: Zondervan, 1975-1985], 4 vols., 2:670 [edição em português:
Novo dicionário internacional de teologia do Novo Testamento, tradução de Gordon Chown (São
Paulo: Vida Nova, 2000] 2 vols.). De qualquer maneira, é verdade que “novo” aqui aponta para
renovado e não novo em folha.
2 Alguns cristãos acreditam que a Bíblia fala sobre a destruição e aniquilação do presente mundo e a
criação de um mundo totalmente novo. Eles apelam para textos como Mateus 24.29; 2Pedro 3.10-13 e
Apocalipse 21.1. Talvez as palavras de 2Pedro sejam as mais problemáticas. A questão é se o fogo do
juízo aniquilará ou purificará o mundo. O fogo pode fazer ambas as coisas. Nas Escrituras, o fogo do
juízo destrói o que é mau, mas purifica o que é bom. Malaquias (3.2,3) fala a respeito do fogo do
ourives que destrói impurezas, mas purifica o metal. Da mesma forma, Paulo fala sobre o fogo do juízo
que testa a qualidade da obra humana. Ele ou a destruirá ou a purificará (1Co 3.13-15). Isso se aplica à
criação; a criação será purificada, mas o mal que a poluiu será destruído. A linguagem de 2Pedro pode
significar as duas coisas. Veja Al Wolters, “Worldview and textual criticism in 2 Peter 3:10”,
Westminster Theological Journal 49 (1987): 405-13.
3 Questões sobre o fim dos tempos, sinais dos tempos, o Anticristo, o milênio, a grande tribulação e
o arrebatamento “muitas vezes parecem despertar mais interesse do que a nova criação que surgirá!”.
Isso é como estar mais interessado na “natureza, intensidade e frequência das dores de parto do que o

ser que nascerá (Rm 8.22)”, escreve David Lawrence, Heaven: it’s not the end of the world! The
biblical promise of a new earth (London: Scripture Union, 1995), p. 9-10.
4 N. T. Wright, “New heavens, new earth”, in: John Colwell, org., Called to one hope (Carlisle:
Paternoster, 2000), p. 33. Wright fala “de algum lugar” e sabe bem onde esse algum lugar está! Essa
visão do fim é o resultado da combinação de ensino bíblico com a filosofia grega pagã nos primeiros
séculos da igreja. Ela está especialmente presente nas primeiras obras de Agostinho, em que harmoniza
as Escrituras com a filosofia neoplatônica.
5 Alguns sugeriram que Jesus está preparando um lugar no céu para nós e voltará para levar o seu
povo para lá. Eles apontam para João 14.2,3: “Na casa de meu Pai há muitos aposentos; se não fosse
assim, eu lhes teria dito. Estou indo para lá a fim de preparar um lugar para vocês. E, se eu for e lhes
preparar um lugar, virei outra vez e os levarei para mim, para que onde eu estiver vocês também
estejam”. No entanto, essa interpretação não combina com o contexto. Lawrence (Heaven, p. 32)
ofereceu uma paráfrase desse texto que combina muito melhor com as palavras de Jesus aos seus
discípulos: “Na presença [i.e., casa] de meu Pai há lugar para todos. Ao ir ao Pai por meio da cruz,
preparo o meio para vocês entrarem em sua presença onde quer que estiverem. Tendo tornado possível
para vocês desfrutarem da mesma intimidade com o Pai que me viram desfrutar, retornarei a vocês na
forma do Espírito, para que mesmo ao viverem na terra, compartilhem comigo dos lugares celestiais”.
A metáfora de preparar um lugar na casa do Pai não diz respeito ao céu, mas a viver na presença de
Deus com Jesus. É aqui que os discípulos devem habitar (cf. Jo 15.1-17).
6 Hendrikus Berkhof reconhece que há tanto continuidade quanto descontinuidade entre a nossa vida
presente e a vida futura. Mas ele afirma que a continuidade precisa ter a primeira e a última palavra:
“Um problema muito discutido é o da continuidade e descontinuidade entre a nossa vida terrena e a
vida que nos aguarda […] Por causa da fidelidade de Deus também na morte e além dela, a
continuidade precisa ter a primeira e a última palavra em nossa fé e em nosso pensar” (Christian faith:
an introduction to the study of the faith, 2. ed., tradução para o inglês de S. Woudstra [Grand Rapids:
Eerdmans, 1986], p. 490).
7 Observou-se acertadamente que o estreitamento da salvação no Ocidente é o resultado da força
poderosa da cosmovisão iluminista. Sob o seu ataque, o evangelho limitou sua abrangência: “A
convicção cristã dos primórdios [i.e., bíblica] de que a Queda e a redenção dizem respeito não somente
ao homem, mas a todo o cosmo, uma doutrina já se esvaecendo após a Reforma, agora [sob o poder do
secularismo] desapareceu completamente: o processo, se é que tinha qualquer significado, pertencia
unicamente à relação pessoal entre Deus e o homem” (Richard Tarnas, The passion of the Western
mind [Toronto & New York: Random House, 1991], p. 306-7). A. Koeberle escreve que “esse aspecto
cósmico da redenção foi se perdendo cada vez mais da cristandade ocidental desde a Era do
Iluminismo, e até hoje não conseguimos restaurá-la para sua força e clareza” (citado em G. C.
Berkouwer, The return of Christ, tradução para o inglês de J. van Oosterom [Grand Rapids: Eerdmans,
1972], p. 211).
8 Berkouwer fala a respeito de “um egocentrismo soteriológico” (Return of Christ, p. 211). Lesslie
Newbigin critica aqueles que tornam privada “essa obra poderosa da graça e falam como se todo o
drama cósmico da salvação culminasse nas palavras ‘Para mim; para mim’” (The gospel in a pluralista
society [Grand Rapids: Eerdmans, 1989], p. 179 [edição em português: O evangelho em uma sociedade
pluralista, tradução de Valéria Lamim Delgado Fernandes (Viçosa: Ultimato, 2016)].
9 Lawrence expressa isso bem: “Está claro que aqui no início os seres humanos e a ordem criada
pertenciam juntos e, portanto, somente conseguíamos cumprir nosso potencial e alcançar nosso destino
se funcionássemos como parte do restante da criação” (Heaven, p. 19-20).

10 Hoekema comenta: “Se Deus precisasse aniquilar o presente cosmo, Satanás teria conquistado
uma grande vitória. Pois assim Satanás teria tido êxito em corromper o presente cosmo e a presente
terra de forma tão devastadora que a única opção de Deus seria apagar totalmente a sua existência. Mas
Satanás não conquistou essa vitória. Muito pelo contrário, Satanás foi definitivamente derrotado” (Bible
and the future, p. 281).
11 J. A. Seiss, The apocalypse, 15. ed. (London: Marshall, Morgan & Scott, 1938), p. 483.
12 De acordo com Berkhof, esses versículos indicam que “os tesouros culturais da história” serão
trazidos para a Nova Jerusalém (Christian faith, p. 523, 543). Veja também Berkhof, Christ, the
meaning of history, p. 188-92, em que cita Abraham Kuyper, que pensa da mesma maneira.
13 Veja Lawrence, Heaven, p. 110-3.

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