FILOSOFIA / ENSINO FUNDAMENTAL / 8º ANO - 2015 47
Ninguém. O filósofo sabia disso. Mas, tendo meditado muito sobre o assunto, estava preparado para
enfrentar qualquer objeção. E estava certo de que elas viriam. Assim, avançou mais um passo, elevando o grau de
dificuldade para livrar-se da dúvida (e para enfrentar as objeções).
Todavia, há muito tenho no meu espírito certa opinião de que há um Deus que tudo pode
e por quem fui criado e produzido tal como sou. Ora, quem me poderá assegurar que esse
Deus não tenha feito com que não haja nenhuma terra, nenhum céu, nenhum corpo
extenso, nenhuma figura, nenhuma grandeza, nenhum lugar e que, não obstante, que eu
tenha os sentimentos de todas essas coisas e que tudo isso não me pareça existir de
maneira diferente daquela que eu vejo? E, mesmo, como julgo que algumas vezes os
outros se enganam até nas coisas que eles acreditam saber com maior certeza, pode
ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a
adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, ou em que julgo
alguma coisa ainda mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso.
(Meditações, p. 19; destaques nossos).
Em outras palavras, por mais certeza que você tenha sobre algo (no caso, o conhecimento matemático), se
existe um ser que criou tudo e é onipotente (Deus), esse ser tem poderes para ter criado você de tal que se engane
sempre, ou seja, que você (e todo mundo) pense sempre que 2+3=5, quando na verdade isso é uma ilusão. Trata-se
do argumento do Deus enganador.
A dúvida generalizada
Esse é um argumento que se dirige às pessoas que acreditam na existência de Deus, seja ele a máxima
divindade cristã ou de qualquer outra crença ou religião. O filósofo reconheceu, porém, que alguns teólogos poderiam
objetar que Deus é um ser perfeito e supremamente bom e lhe repugnaria enganar alguém. O argumento também
não teria força entre aqueles para quem a ideia de Deus é uma fábula (os ateus).
Assim, para enfrentar tanto os mais crentes como os mais descrentes, Descartes criou o último e poderoso
artifício para colocar tudo em dúvida:
Suportei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é soberana fonte de verdade, as certo
gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda a
sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os
sons e todas as coisas exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se
serve ara surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo absolutamente
desprovido de mãos, olhos, de carne, de sangue, desprovido de quaisquer sentidos, mas
dotado da falsa crença de ter todas essas coisas. (Meditações, p. 20; destaques nossos).
Trata-se do argumento do gênio maligno, um ser que não teria a perfeição e a bondade de Deus, como
defendem crentes e teólogos, mas que seria muito poderoso e cheio de estratégias para fazer com que qualquer
pessoa se iluda e se engane sobre tudo. É a generalização da dúvida: o mundo foi colocado entre parênteses.
No que Descartes de fato acreditasse na existência desse ser. Estudiosos da obra cartesiana costumam
interpretar o gênio maligno como um artifício psicológico que o filósofo usou para manter seu espírito alerta, para
não sucumbir à tentação de aceitar qualquer ideia como verdadeira, enfim, para seguir buscando algum
conhecimento evidente e indubitável. O gênio maligno poderia ser entendido, portanto, como uma figura simbólica de
qualquer outra coisa, pessoa ou ideia que seja capaz de nos levar ao erro.