FOUCAULT, Michel - A ordem do discurso.pdf

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About This Presentation

Livro sobre o discurso.


Slide Content

U •lbtlt ProFarls Michaele
OUCAUL T,Michel
Aordem dodiscurso
09-1952
1111111111111111111111111111

\
MICHELFOUCAULT
AORDEMDODISCURSO
AuLA INAUGURAL NOCOLLEGE D'EFRANCE,
PR<i>.NUNCIADA EM2DEDEZEMBRO DE1970
Tradução:
Laura FragadeAlmeidaSampaio
ILOSÓFICAS
I,/\01'<1\'111 dolis'urso
1\1/c'/J1'1fiO1/('(11/11
rS'I'lic;o"sobre ().'r
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DOACAO_ .....,....----
DATA'/ f.
.R$ .--:.-
l'üulo riginal:, ,
I:cmlredudiscours. Leçon inaugurale auCollege deFrance
plollollcée le2décembre 1970
'rancine Fruchaud eDenys Foucault, Paris
Publicado naFrança porÉditions Gallimard, Paris,1971
Ediçãodetexto:
Marcos JoséMarcioni/o
Indicação editorial:
ProJa Dr"Salma Tannus Mucha'
EdiçõesLoyola
Ru,1822n?347-Ipiranga
04216-000 SãoPaulo -SP
CixaPostal 42.335
4299-970 SãoPaulo -SP
I'ne(Oll)6914-1922
lax:(011)63-4275
llorne page:www.ecof.org.br/loyol.~..I~~~~~
c-.mail: [email protected]
Iodo: osdireitos reservados. Nenhuma parte desta
ohlll podeserreproduzida outransmitida porqual-
qUI" formaeJou quaisquer meios (eletrônico, oume-
('nlco,incluindo fotocópia egravação)ouarquivada
('111qualquer sistemaoubanco dedados semperrnis-
,llucsdiadaEditora.
l"ilN: 85-5-01359-2
l".dição: abril de1996
t,111)1 •LOYOLA, SãoPaulo, Brasil, 1996.
Gostariademeinsinuarsub-repticia-
mentenodiscursoquedevopro-
nunciarhoje,enosquedeverei pronunciar
aqui,talvezdurante anos,AoInvésdeto-
marapalavra,gostaria deserenvolvidopor
elaelevadobemalémdetodocomeço
possível. Gostariadeperceber quenomo-
mentodefalarumavozsemnomemepre-
cediahámuitotempo: bastaria,então, que
euencadeasse,prosseguisseafrase, mealo-
jasse, semserpercebido, emseusinterstí-
cios, comoseelamehouvesse dadoum
sinal, mantendo-se,poruminstante,sus-
pensa. Nãohaveria, portanto,começo; eem
Nota doEditor: Pormotivo dehorário, certaspas-
agens foram encurtadas emodificadas naleitura. Essas
pasagens foram aquireproduzidas naíntegra.

vzdraquele dequemparteodiscurso,
u:ria,antes, aoacasodeseudesenrolar,
uma treitalacuna, opontodeseudesapa-
rimento possível.
Gostariadeteratrásdemim(tendo
tomado apalavrahámuitotempo,dupli-
andodeantemãotudooquevoudizer)
umavozquedissesse: "Éprecisocontinuar,
eunãopossocontinuar,éprecisocontinuar,
éprecisopronunciar palavrasenquantoas
há,éprecisodizê-Ias atéqueelasmeen-
contrem, atéquemedigam-estranho
castigo, estranhafalta, éprecisocontinuar,
talvezjátenhaacontecido, talvezjámete-
nham dito,talvezmetenhamlevadoaoli-
miardeminhahistória,diantedaportaque
abresobreminhahistória,eumesurpre-
nderia seelaseabrisse".
pondedemodoirônico; poisquetornaos
começossolenes, cerca-osdeumcírculo de
atenção edesilêncio, elhesimpõeformas
ritualizadas,comoparasinalizá-Ias àdis-
tância.
odesejodiz:"Eunãoqueriaterde
entrarnestaordemarriscadadodiscurso;
nãoqueriaterdemehavercomoquetem
decategóricoedecisivo; gostariaquefosse
aomeuredorcomoumatran~parência cal-
ma,profunda,indefinidamente aberta,em
queosoutrosrespondessem àminhaex-
pectativa, edeondeasverdadesseelevas-
sem,umaauma; eunãoteriasenãodeme
deixarlevar, nelaeporela,comoumdes-
troçofeliz". Eainstituição responde: "Você
nãotemporquetemercomeçar; estamos
todosaíparalhemostrarqueodiscurso
estánaordemdasleis;quehámuitotempo
secuidadesuaaparição; quelhefoiprepa-
radoumlugarqueohonramasodesarma;
eque,selheocorreteralgumpoder,éde
nós,sódenós,queelelheadvém".
Maspodeserqueessainstituiçãoeesse
desejo nãosejam. outracoisasenão duar-
Existe emmuitagente, penso eu,um
Iejosemelhante denãoterdecomeçar,
UI11íesejo deseencontrar,logodeentrada,
doutroladododiscurso, semterdecon-
siIrardoexterioroqueelepoderiaterde
'illrular,deterrível, talvezdemaléfico. A
('.,'~\aspirãotãocomum, ainstituição res-
7

pli opostasaumamesmainquietação:
inquiração diantedoqueéodiscurso em
urealidadematerial decoisapronunciada
uescrita;inquietação diante dessaexistên-
iatransitória destinada aseapagar semdú-
vida, massegundo uma duração quenão
nospertence; inquietação desentir sobessa
atividade, todavia cotidiana ecinzenta, po-
deres eperigos quemalseimagina; inquie-
tação desuporlutas,vitórias, ferimentos,
dominações, servidões, atravésdetantaspa-
lavrascujousohátanto temporeduziuas
asperidades.
Mas, oquehá,enfim,detãoperigoso
nofatodeaspessoas falarem edeseusdis-
ursosproliferarem indefinidamente? Onde,
final, estáoperigo?
Eisahipótesequegostaria deapresen-
tartanoite,parafixarolugar-outal-
vez teatromuito provisório -dotraba-
lhoqufaço: suponho queemtodasocie-
dulcaprodução dodiscurso éaomesmo
8
tempo controlada, selecionada, organizada
eredistribuída porcerto número deproce-
dimentos quetêmporfunçãoconjurar seus
poderes eperigos, dominar seuaconteci-
mento aleatório, esquivar suapesada ete-
mível materialidade.
Emumasociedade como anossa, co-
nhecemos, écerto, procedimentos deexclu-
são.Omaisevidente, omais familiar tam-
bém, éainterdição. Sabe-sebemquenãose
temodireito dedizer tudo, quenãosepode
falardetudoemqualquer circunstância, que
qualquerum,enfim, nãopodefalardequal-
quer coisa. Tabudoobjeto, ritual dacir-
cunstância, direitoprivilegiado ouexclusi-
vo.dosujeito quefala:temos aíojogode
trêstiposdeinterdições quesecruzam, se
reforçam ousecompensam, formando uma
gradecomplexa quenãocessadesemodi-
ficar. Notaria apenas que,emnossos dias,
asregiõesondeagrade émaiscerrada, onde
osburacosnegros semultiplicam, sãoas
regiõesdasexualidade easdapolítica: como
seodiscurso, longe deseresseeementa
transparente ouneutro noqualasexualida-
9

10
n
nemimportância, nãopodendo testemunhar
najustiça, nãopodendo autenticar umato
ouumcontrato, nãopodendo nemmesmo,
nosacrifício damissa,permitiratransubs-
tanciação efazer dopãoumcorpo; pode
ocorrertambém, emcontrapartida, quese
lheatribua, poroposição atodasasoutras,
estranhos poderes, odedizer umaverdade
escondida, odepronunciar ofuturo, ode
enxergar comtodaingenuidade aquilo que
asabedoria dosoutros nãoporreperceber. É
curiosoconstatar quedurante séculos na
Europa ~palavra dolouco nãoeraouvida,
ouentão,seeraouvida, eraescutada como
umapalavradeverdade. Oucaíanonada
-rejeitada tãologoproferida; ouentãoneia
sedecifrava umarazãoingênua ouastuciosa,
umarazãomaisrazoável doqueadaspes-
soasrazoáveis. Dequalquer modo, excluída
ousecretamente investida pelarazão,nosen-
tidorestrito, elanãoexistia. Eraatravésde
suaspalavrasquesereconhecia aloucura do
louco; elaseramolugar ondeseexercia a
separação; masnãoeram nunca recolhidas
nemescutadas. Jamais,antesdofimdosécu-
loXVIII, ummédico teveaidéiadesabro
11
desedesarma eapolítica sepacifica,fosse
umdoslugaresondeelasexercem, demodo
privilegiado, alguns deseusmaistemíveis
poderes.Pormaisqueodiscurso sejaapa-
rentemente bempouca coisa,asinterdições
queoatingem revelam logo,rapidamente,
sualigaçãocomodesejoecomopoder.
Nisto nãohánada deespantoso, vistoque
odiscurso -como apsicanálise nosmos-
trou-nãoésimplesmente aquilo que
manifesta (ouoculta) odesejo; é,também,
aquilo queéoobjetododesejo; evistoque
-istoahistórianãocessadenosensinar
-odiscursonãoésimplesmente aquilo
quetraduz aslutasouossistemas dedomi-
nação,masaquilo porque,peloqueseluta,
opoder doqualnosqueremos apoderar.
Existe emnossasociedade outroprin-
ípiodeexclusão: nãomaisainterdição,
maumaseparaçãoeumarejeição. Penso
naposição razãoeloucura. Desdeaalta
lddMédia,oloucoéaquele cujodiscurso
11.oJdecircular comoodosoutros:pode
o'OlTrquesuapalavrasejaconsiderada
11(11" .noejaacolhida, nãotendo verdade

trazer, oudesesperadamente reter,suaspo-
brespalavras; bastapensaremtudoistopara
suporqueaseparação, longedeestarapa-
gada,seexercedeoutro modo, segundo
linhas distintas, pormeiodenovasinstitui-
çõesecomefeitosquenãosãodemodo
algumosmesmos.Emesmoqueopapeldo
médico nãofossesenão prestar ouvido a
umapalavraenfimlivre,ésempre nama-
nutençãodacesuraqueaescutaseexerce.
Escutadeumdiscurso queéinvestidopelo
desejo, equesecrê-parasuamaior
exaltação oumaior angústia -carregado
deterríveispoderes.Seénecessário osilên-
ciodarazãoparacurarosmonstros,basta
queosilêncio estejaalerta, eeisquease-
paraçãopermanece.
Talvezsejaarriscadoconsideraraopo-
siçãodoverdadeiroedofalsocomoum
terceiro sistema deexclusão, aoladodaque-
lesdequeacabo defalar. Comosepoderia
razoavelmente compararaforçadaverdade
comseparaçõescomoaquelas,separações que,
desaída,sãoarbitrárias, ouque,aomenos,
seorganizamemtomodecontingências his-
12 13
queeradito(comoeradito,porqueeradito)
nessa palavraque,contudo,faziaadiferença.
Todoesteimensodiscursodoloucoretomava
aoruído;apalavra sólheeradadasimbolica-
mente, noteatro onde eleseapresentava,
desarmadoereconciliado, vistoquerepresen-
tavaaíopapel deverdade mascarada.
Dir-se-áque,hoje, tudoissoacabou ou
estáemviasdedesaparecer; queapalavra
dolouconãoestámaisdooutroladoda
separação;queelanãoémais nulaenão-
-aceita; que,aocontrário, elanoslevaàes-
preita; quenósaíbuscamosumsentido,
ouoesboçoouasruínasdeumaobra; e
quechegamosasurpreendê-Ia, essapalavra
dolouco, naquilo quenósmesmos articula-
mos,nodistúrbio minúsculo poronde aqui-
loquedizemosnosescapa. Mastanta aten-
çãonãoprovaqueavelhaseparaçãonão
vogamais;basta pensaremtodooaparato
desaber mediante oqualdeciframos essa
palavra; bastapensaremtodaaredede
inlituições quepermiteaalguém -médi-
'O,picanalista-escutar essapalavra eque
pcrrnitaomesmotempoaopaciente vir

tóricas;quenãosãoapenas modificáveis, mas
stãoemperpétuo deslocamento; quesão
sutentadas portodoumsistema deinstitui-
çõesqueasimpõem ereconduzem; enfim,
quenãoseexercem sempressão, nemsemao
menos umapartedeviolência.
Certamente, senossituamos nonível
deumaproposição, nointerior deumdis-
curso, aseparação entre overdadeiro eo
falsonãoénemarbitrária, nemmodificável,
nem institucional, nem violenta. Masse
nossituamosemoutraescala, selevanta-
mosaquestão desaber qual foi,qual é
constantemente, atravésdenossos discur-
sos,essavontade deverdade queatravessou
tantos séculos denossahistória, ouqualé,
emsuaformamuito geral, otipodesepa-
ração queregenossavontade desaber, en-
tãoétalvez algocomo umsistema deex-
clusão (sistema histórico, institucionalmen-
teconstrangedor) quevemos desenhar-se.
Separação historicamente constituída,
111certeza. Porque, ainda nospoetas gre-
g5doséculo VI,odiscurso verdadeiro -
no5ntidoforteevalorizado dotermo -,
14
odiscurso verdadeiro peloqualsetinhares-
peitoeterror, aquele aoqualerapreciso
submeter-se, porqueelereinava, eraodis-
cursopronunciado porquem dedireito e
conforme oritualrequerido; eraodiscurso
quepronunciava ajustiça eatribuía acada
qualsuaparte; eraodiscurso que,profeti-
zando ofuturo, nãosomente anunciava o
queiasepassar, mascontribuía paraasua
realização, suscitava aadesão doshomense
setramavaassim comodestino. Ora,eis
queumséculo mais tarde, averdadeamais
elevada jánãoresidia mais noqueerao
discurso, ounoqueelefazia, masresidia
noqueeledizia: chegou umdiaemquea
verdade sedeslocou doatoritualizado, efi-
cazejusto, deenunciação, paraopróprio
enunciado: paraseusentido, suaforma, seu
objeto, suarelação asuareferência. Entre
Hesíodo ePlatão umacerta divisão seesta-
beleceu, separando odiscurso verdadeiro e
odiscurso falso; separação nova vistoque,
doravante, odiscursoverdadeiro nãoémais
odiscurso precioso edesejável, vistoque
nãoémaisodiscurso ligadoaoexercício
dopoder. Osofistaéenxotado.
15

Essadivisãohistóricadeusemdúvida
suaformageralànossavontade desaber.
Masnãocessou, contudo, desedeslocar:as
grandesmutaçõescientíficaspodemtalvez
serlidas, àsvezes, comoconseqüências de
umadescoberta, maspodemtambémser
lidascomoaapariçãodenovasformasna
vontadedeverdade.Há,semdúvida, uma
vontadedeverdadenoséculoXIXquenão
coincidenempelasformasquepõeemjogo,
nempelos domíniosdeobjetoaosquaisse
dirige,nempelastécnicassobreasquaisse
apóia, comavontadedesaberquecaracte-
rizaaculturaclássica. Voltemos umpouco
atrás:porvoltadoséculoXVIedoséculo
XVII(naInglaterrasobretudo), apareceu
umavontadedesaberque, antecipando-se
aseusconteúdosatuais, desenhavaplanos
deobjetospossíveis, observáveis, mensurá-
veis, classificáveis; uma vontadedesaber
queimpunhaaosujeitocognoscente(ede
crtaformaantesdequalquerexperiência)
rtaposíçao. certoolharecertafunção
(vr,emvezdeler,verificar, emvezdeco-
11'1ntar); umavontadedesaberquepres-
'rvi(edeummodomaisgeral doque
16
q~al~uer instrumentodetermin d) ,
tecrnco doquald ..aoonível
nheci evenam Investir-seosco-
imentos parase .f
Tud remvenicáveis eúteis
osepassacomo . .
divisãoplatônica se,apartirdagrande
,avontadede dd.
vesse suaprópria história, quen~:,aedtl-
verdades queconstranem. .,..eaas
nosdeobi g.história dospla-
_ ~.etosaconhecer, históriadaf
çoeseposições do.. sun-
tóriadosin.sujeitocognoscente,his-
. vestlmentos materiaí ,.
mstrumentaisdo h. aIS,tecrncos,
conecimento.
Ora,essavontade deverdad .
outrossistemasde 1_ e,comoos
excusaoapói
ums .. 'Ia-sesobre
uportemstltucional· e'
of .aomesmotem
preorçadaerecond.d -
~~::~t~c~njuntode;;~tiac!o:o::~~:
.'caro,comoosistemadr
daedição dasbibli osIVroS,
, iotecasco .
desdesábios out_ ,mo associeda-
Maselaétambé rora,oslaboratórios hoje.
emreconduzida .
fundamente semdüid 'maispro-
UVIapelo d
osaber érd ' moocomo
, apicaoemumasociedad
evalorizado, distributd . e,como
modoatribuídoRedO,repartido edecerto
.coremos .
títulosimbóli aqUI,apenasa
ICO,ovelhoprincípiogrego:
17

19
queaaritmética pode bemseroassunto
dascidadesdemocráticas, poiselaensina as
relaçõesdeigualdade, massomente ageome-
triadeveserensinada nasoligarquias, pois
demonstra asproporções nadesigualdade.
Enfim, creio queessavontade dever-
dadeassimapoiada sobre umsuporte euma
dístríbuição institucional tende aexercer
sobreosoutrosdiscursos -estou sempre
.falando denossasociedade -umaespécie
depressão ecomoqueumpoder decoer-
ção.Penso namaneira comoaliteratura
ocidental tevedebuscar apoio, durante sé-
culos, nonatural, noverossímil, nasinceri-
dade,naciência também -emsuma, no
discurso verdadeiro. Penso, igualmente, na
maneira como aspráticas econômicas, co-
dificadascomo preceitos oureceitas, even-
tualmente comomoral, procuraram, desde
séculoXVI,fundamentar-se, racionalizar-
ejustificar-se apartir deumateoria das
riquzasedaprodução; penso ainda na
111niracomo umconjunto tãoprescritivo
quant osistema penalprocurouseussu-
porte: usuajustificaçãO, primeiro, écerto,
18
emumateoria dodireito, depois, apartir
doséculo XIX,emumsabersociológico,
psicológico, médico, psiquiátrico: como se
aprópriapalavra cklleinãopudesse mais
serautorizada, emnossasociedade, senão
porumdiscurso deverdade.
Dostrêsgrandes sistemas deexclusão
queatingemodiscurso, apalavraproibida,
asegregação daloucura eavontade de
verdade, foidoterceiro quefaleimais lon-
gamente. Éque,háséculos, 'osprimeiros
nãocessaramdeorientar-se emsuadireção;
éque,cadavezmais,oterceiro procura reto-
ma-Ios, porsuaprópria conta, para,aomes-
motempo, modificá-los efundamenra-los: ,
éque,seosdoisprimeiros nãocessam de
setornarmais frágeis, maisincertos na
medida emquesãoagoraatravessados pela
vontade deverdade, esta,emcontrapartída,
nãocessadesereforçar, desetornar mais
profunda emaisincontornável.
E,contudo, édelasemdúvida que
menossefala.Como separanósavontade
deverdadeesuasperipécias fossem masca-
radaspelaprópria verdade emseudesenro-

20 21
larnecessário. Earazãodissoé,talvez, esta:
équeseodiscurso verdadeiro nãoémais,
comefeito, desdeosgregos, aquele queres-
ponde aodesejo ouaquele queexerceo
poder, navontade deverdade, navontade
dedizer essediscurso verdadeiro, oqueestá
emjogo, senãoodesejo eopoder? Odis-
cursoverdadeiro, queanecessidade desua
forma liberta dodesejo elibera dopoder,
nãopodereconhecer avontade deverdade
queoatravessa;eavontade deverdade,
essaqueseimpõe anóshábastante tempo,
étalqueaverdade queelaquernãopode
deixardemascará-Ia.
Assim, sóaparece aosnossos olhos uma
verdade queseriariqueza, fecundidade, for-
çadoceeinsidiosamente universaL Eigno-
ramos,emcontrapartida, avontade dever-
dade, como prodigiosa maquinaria destina-
daaexcluir todosaqueles que,ponto por
ponto, emnossa história, procuraram con-
tornar essavontade deverdade erecolocá-
-laemquestãocontra averdade, lájusta-
mmeondeaverdade assume atarefa de
.iLlSIilícarainterdição edefinir aloucura;
todosaqueles, deNietzsche aArtaud ea
Bataille, devem agora nosservir desinais,
altivos semdúvida, paraotrabalho detodo
dia.
Existem, evidentemente, muitos outros
procedimentos decontrole ededelimitação
dodiscurso. Aqueles dequefaleiatéagora
seexercem decerto modo do-exterior: fun-,
cionam como sistemasdeexclusão; concer-
nem, semdúvida, àparte dodiscurso que
põeemjogoopoder eodesejo.
Pode-se, creio eu,isolaroutro grupo
deprocedimentos. Procedimentos internos,
visto quesãoosdiscursos elesmesmos que
exercem seuprópriocontrole; procedimen-
tosquefuncionam, sobretudo, atítulo de
princípios declassificação, deordenação, de
distribuição, como sesetratasse, destavez,
desubmeter outra dimensão dodiscurso: a
doacontecimento edoacaso.
Emprimeiro lugar, ocomentário. Su-
ponho, massemtermuita certeza, quenã

hásociedadeonde nãoexistam narrativas
maioresquesecontam, serepetemese
fazemvariar;fórmulas, textos, conjuntos
ritualizados dediscursos quesenarram,
conforme circunstâncias bemdeterminadas;
coisasditasumavezequeseconservam,
porquenelasseimaginahaver algocomo
umsegredo ouuma riqueza. Emsuma,
pode-se suporquehá,muito regularmente
nassociedades, umaespécie dedesnivela-
mento entreosdiscursos: osdiscursos que
"sedizem" nocorrer dosdiasedastrocas,
equepassamcom oatomesmoqueos
pronunciou; eosdiscursos queestãona
origem decertonúmerodeatosnovosde
falaqueosretomam, ostransformam ou
falamdeles, ouseja,osdiscursos que,inde-
finidamente, paraalémdesuaformulação,
sãoditos, permanecem ditoseestãoainda
pordizer. Nósosconhecemos emnosso
istema decultura: sãoostextosreligiosos
oujurídicos, sãotambémessestextoseu-
rioos,quandoseconsidera oseuestatuto,
quechamamos de"literários"; emcerta
111lidatextos científicos.
Écerto queessedeslocamento nãoé
estável, nemconstante, nemabsoluto. Não
há,deumlado,acategoria dadaumavez
portodas,dosdiscursos fundamentais ou
criadores; e,deoutro, amassadaqueles que
repetem, ~losamecomentam. Muitostex-
tosmaioresseconfundemedesaparecem,
e,porvezes, comentários vêmtomaropri-
meiro lugar. Masemboraseuspontos de
aplicação possammudar,afunçãoperma-
nece;eoprincípio deum.deslocamento
encontra-se semcessar repostoemjogo. O
desaparecimento radical dessedesnivelamen-
tonãopodenuncasersenão umjogo, uto-
piaouangústia. Jogo, àmoda deBorges,de
umcomentário quenãoseráoutracoisa
senãoareaparição, palavra porpalavra(mas
destavezsolene eesperada), daquilo que
elecomenta; jogo, ainda, deumacríticaque
falariaatéoinfinitodeumaobraquenão
existe. Sonho lírico deumdiscurso que
renasceemcadaumdeseuspontos,abso-
lutamentenovo einocente, equereaparece
semcessar, emtodo frescor, apartirdas
coisas,dossentimentos oudospensamen-
tos.Angústia daquele doente deJanetpara
22
23

24
etextosegundodesempenha doispapéis que
sãosolidários. Porumladopermite cons-
truir (eindefinidamente) novosdiscursos:
ofatodeotexto primeiro pairaracima, sua
permanência, seuestatutodediscurso sem-
prereatualizável, osentido múltiplo ou
oculto deque passaporserdetentor, a
reticência eariqueza essenciais quelhe
atribuímos, tudoissofunda umapossibili-
dadeabertadefalar. Mas,poroutrolado,o
comentário nãotemoutro papel, sejamquais
forem astécnicasempregadas, senãoode
dizer enfimoqueestava articulado silencio-
samente notextoprimeiro. Deve,conforme
umparadoxo queeledesloca sempre, mas
aoqualnãoescapa nunca, dizerpelapri-
meira vezaquilo que,entretanto, jáhavia
sidoditoerepetirincansavelmente aquilo
que,noentanto, nãohavia jamais sidodito.
Arepetição indefinida doscomentários é
trabalhada dointerior pelosonho deuma
repetição disfarçada: emseuhorizonte não
hátalvez nadaalém daquilo quejáhavia
emseuponto departida, asimples recita-
ção.Ocomentário conjura oacasododiscur-
sofazendo-lhe suaparte:permite-lhe dizr
quemomenorenunciadoeracomo"pala-
vradeEvangelho", encerrando inesgotáveis
tesouros desentidoemerecendo serindefi-
nidamente relançado, recomeçado, comen-
tado."Quando eupenso,diziaelelogoque
liaouescutava, quando penso nestafrase
quevaipartirparaaeternidade equeeu
talvez aindanãotenhacompreendido ple-
namente."
25
Masquemnãovêquesetrataaí,cada
vez,deanularumdostermosdarelação, e
nãodesuprimirarelação elamesma?Rela-
çãoquenãocessadesemodificaratravés
dotempo;relaçãoquetomaemuma· época
dadaformasmúltiplasedivergentes; a
exegese jurídicaémuitodiferente (eistohá
bastante tempo) docomentário religioso;
umamesma eúnica obraliteráriapode dar
lugar, simultaneamente, atiposdediscurso
bemdistintos: aOdisséia como textopri-
meiro érepetida, namesma época, natra-
duçãodeBérard, eminfindáveis explicações
detexto, noUlyssesdejoyce.
Porora,gostaria demelimitaraindi-
carque,noquesechamaglobalmente um
mentário, odesnível entre textoprimeiro

algoalémdotextomesmo, mascomacon-
diçãodequeotextomesmosejaditoede
certomodo realizado. Amultiplicidade aber-
ta,oacasosãotransferidos, peloprincípio
docomentário, daquilo quearriscaria deser
dito,paraonúmero, aforma, amáscara, a
circunstância darepetição. Onovo nãoestá
noqueédito, masnoacontecimento de
suavolta.
Creioqueexiste outroprincípiode
rarefação deumdiscurso queé,atécerto
ponto, complementar aoprimeiro. Trata-se
doautor. Oautor, nãoentendido,éclaro,
comooindivíduofalante quepronunciou
ouescreveu umtexto, masoautorcomo
princípio deagrupamento dodiscurso,como
unidade eorigem desuas significações,
comofocodesuacoerência. Esseprincípio
nãovogaemtodapartenemdemodocons-
tante:existem, aonosso redor,muitos dis-
cursosquecirculam, semreceberseusenti-
doousuaeficácia deumautoraoqualse-
riamatribuídos: conversascotidianas, logo
apagadas; decretosoucontratosquepreci-
samdesignatários masnãodeautor, recei-
tastécnicastransmitidas noanonimato. Mas
nosdomínios emqueaatribuição aum
autoréderegra-literatura, filosofia, ciên-
cia-vê-sebemqueelanãodesempenha
sempreomesmopapel; naordem dodis-
cursocientífico, aatribuição aumautorera,
naIdadeMédia,indispensável, poiseraum
indicadordeverdade. Umaproposiçãoera
consideradacomorecebendo deseuautor
seuvalorcientífico.Desde oséculo XVII,
estafunçãonãocessou deseenfraquecer,
nodiscurso científico: o.autor sófunciona
paradarumnomeaumteorema, umefei-
to,umexemplo, umasíndrome.Emcon-
trapartida, naordemdodiscurso literário, e
apartirdamesmaépoca, afunçãodoautor
nãocessoudesereforçar:todasasnarrati-
vas,todosospoemas,todososdramasou
comédiasquesedeixavacircular naIdade
Média noanonimato aomenos relativo, eis
que,agora,selhespergunta (eexigem que
respondam) deondevêm,quem osescre-
veu;pede-se queoautorpreste contasda
unidadedetextopostasobseunome; pede-
-se-lhe querevele, ouaomenos sustente, o
26 27

28
umtextonohorizonte doqualpaira uma
obrapossível retoma porsuaconta afun-
çãodoautor: aquilo queeleescreveeoque
nãoescreve, aquilo quedesenha, mesmo a
título derascunho provisório, como esboço
daobra, eoquedeixa, vaicaircomo con-
versascotidianas. Todo estejogodedife-
rençaséprescrito pelafunçãodoautor, tal
como arecebe desuaépocaoutalcomo
ele,porsuavez,amodifica. Poisembora
possamodificaraimagem tradicional que
sefazdeumautor, seráapartirdeuma
novaposiçãodoautorquerecortará, em
tudooquepoderia terdito,emtudooque
diztodososdias,atodomomento, operfil
ainda trêmulodesuaobra.
sentido ocultoqueosatravessa; pede-se-lhe
queosarticule comsuavidapessoal esuas
experiências vividas, comahistória realque
osviunascer. Oautor éaquele quedáà
inquietante linguagem daficçãosuasuni-
dades, seusnósdecoerência, suainserção
noreal.
Bemseiquemevãodizer:"Masvocê
falaaquidoautortalcomoacríticaorein-
venta após ofatoconsumado, quandoso-
breveio amorteenãorestasenãoumamassa
confusa deescritos ininteligíveis; épreciso,
então, reporumpouco deordememtudo
isso;imaginar umprojeto, umacoerência,
umaternática quesepede àconsciência ou
àvidadeumautor, naverdade talvez um
pouco fictício. Masissonãoimpede queele
tenha existido, esseautor real,essehomem
queirrompe emmeio atodas aspalavras
usadas, trazendo nelasseugênioousua
desordem".
Seria absurdo negar, éclaro,aexistên-
ciadoindivíduo queescreve einventa.Mas
penso que-aomenosdesde umacerta
época -oindivíduoquesepõeaescrever
Ocomentário limitava oacasododis-
cursopelojogodeumaidentidade queteria
aforma darepetição edomesmo. Oprincí-
piodoautor limita essemesmo acasopelo
jogodeumaidentidade quetemaforma da
individualidade edoeu.
29
Seriapreciso reconhecer também noque
sedenomina, nãoasciências, masas"disci-
plinas",outroprincípio delimitação. Prin-

31
30
Mashámais; ehámais, semdúvida,
paraquehajamenos: umadisciplina nãoe
asomadetudo oquepode serditode
verdadeirosobre alguma coisa;nãoénem
mesmo oconjunto detudooquepode ser
aceito, apropósito deummesmo dado,em
virtude deumprincípio decoerência oude
sistematicidade. Amedicinanãoéconsti-
tuída detudooquesepode dizerdeverda-
deiro sobreadoença; abotânica nãopode
serdefinida pelasomadetodas asverdades
queconcernem àsplantas. Há,paraisso,
duasrazões: primeiro, abotânica ouame-
dicina,como qualquer outra disciplina, são
feitastantodeerroscomodeverdades er-,
rosquenãosãoresíduosoucorpos estra-
nhos, masquetêmfunçõespositivas, uma
eficácia histórica, umpapel muitas vezes
indissociável daquele dasverdades. Mas,
além disso, paraqueumaproposição per-
tença àbotânica ouàpatologia, épreciso
queelaresponda acondições, emumsen-
tidomaisestritas emaiscomplexas, doque
apuraesimples verdade: emtodocaso,a
cípio estetambém relativoemóvel. Princí-
pioquepermite construir, masconforme
umjogorestrito.
Aorganizaçãodasdisciplinasseopõe
tantoaoprincípio docomentário como ao
doautor. Aodoautor, visto queumadisci-
plina sedefine porumdomínio deobjetos,
umconjuntodemétodos,umcorpusde
proposições consideradas verdadeiras, um
jogoderegras ededefinições, detécnicas e
deinstrumentos: tudo istoconstituiuma
espécie desistemaanõnimo àdisposição de
quem queroupode servir-se dele,semque
seusentido ousuavalidade estejam ligados
aquem sucedeu serseuinventor. Maso
princípio dadisciplina seopõe também ao
docomentário: emumadisciplina, diferente-
mente docomentário, oqueésuposto no
pontodepartida, nãoéumsentido quepre-
cisaserredescoberto, nemurnaidentidade que
deveserrepetida;éaquiloqueérequerido
paraaconstrução denovosenunciados. Para
quehajadisciplinaépreciso, pois,quehaja
possibilidadedeformular,edeformular in-
definidamente, proposições novas.

II
condições diferentes. Elaprecisadirigir-se a
umplanodeobjetosdeterminado: apartir
dofimdoséculoXVII, porexemplo, para
queumaproposição fosse"botânica" era
precisoqueeladissesserespeito àestrutura
visível daplanta, aosistemadesuasseme-
lhançaspróximas oulongínquas ouàmecâ-
nicadeseusfluidos(eessaproposição não
podiamaisconservar, comoainda eraocaso
noséculo XVI,seusvaloressimbólicos, ou
oconjunto dasvirtudes oupropriedades que
lheeram atribuídas naantigüidade). Mas,
sempertencer aumadisciplina, umapro-
posiçãodeveutilizar instrumentos ccncei-
tuaisoutécnicasdeumtipobemdefinido;
apartir doséculo XIX,umaproposiçãonão
eramaismédica, elacaía"foradamedici-
na"eadquiria valordefantasmaindividual
oudecrendice popular sepusesse emjogo
noções aumasóvezmetafóricas, qualitati-
vasesubstanciais (comoasdeengasgo,de
líquidosesquentados oudesólidosresseca-
dos); elapodia edeviarecorrer, emcontra-
partida, anoções tãoigualmente metafóri-
cas,masconstruídas sobre outromodelo,
funcional efisiológico (eraairritação,a
I
Ir
inflamação ouadegenerescência dosteci-
dos). Hámaisainda:parapertencerauma
disciplina umaproposição devepoderins-
crever-seemcerto horizonteteórico:basta
lembrarqueabuscadalíngua primitiva,
temaperfeitamente aceitoatéoséculo XVIII,
era,nasegunda metadedoséculo XIX,su-
ficiente paraprecipitar qualquer discurso,
nãodigonoerro, masnaquimera ena
divagação,napuraesimples monstruosida-
delingüística.
Nointeriordeseuslimites, cadadisci-
plina reconhece proposições verdadeiras e
falsas; maselarepele, para foradesuas
margens,todaumateratologia dosaber.O
exterior deuma ciência émais emenos
povoado doquesecrê:certamente, háa
experiência imediata, ostemasimaginários
quecarregam ereconduzem semcessar cren-
çassemmemória; mas,talvez, nãohajaerros
emsentido estrito, porque oerrosópode
surgireserdecidido nointerior deuma
prática definida; emcontrapartida, rondam
monstros cujaforma muda comahistória
dosaber. Emresumo, umaproposição deve
32
33

desestatísticas. Novoobjetoquepede no-
vosinstrumentos conceituais enovosfun-
damentos teóricos. Mendel diziaaverdade,
masnãoestava"noverdadeiro" dodiscurso
biológico desuaépoca:nãoerasegundo tais
regrasqueseconstituíam objetos econceitos
biológicos; foipreciso todaumamudança de
escala, odesdobramento detodoumnovo
plano deobjetos nabiologiaparaqueMendel
entrasse"noverdadeiro" esuasproposições
aparecessem, então, (emboaparte) exatas.
Mendel eraummonstro verdadeiro, oque
fazia comqueaciência nãopudessefalar
nele;enquanto Schleiden,porexemplo, uns
trintaanosantes,negando, emplenoséculo
XIX,asexualidade vegetal, masconforme
asregras dodiscurso biológico, nãoformu-
lavasenãoumerrodisciplinado.
Ésempre possíveldizeroverdadeiro
noespaçodeumaexterioridade selvagem;
masnãonosencontramos noverdadeiro
senãoobedecendo àsregras deuma"polí-
cia"discursiva quedevemos reativar emcada
umdenossosdiscursos.
34
091952
35
preencher exigências complexas epesadas
parapoder pertencer aoconjunto deuma
disciplina; antesdepoderserdeclarada
verdadeira oufalsa, deveencontrar-se, como
diriaM.Canguilhem, "noverdadeiro".
Muitas vezesseperguntou como os
botânicos ouosbiólogos doséculo XIX
puderam nãoverqueoqueMendel dizia
eraverdade. Acontece queMendel falavade
objetos, empregava métodos, situava-se num
horizonte teórico estranhos àbiologia de
suaépoca. SemdúvidaNaudin, antes dele,
sustentara atesedequeostraços hereditá-
rioseramdescontínuos; entretanto, embora
esseprincípiofossenovoouestranho, po-
diafazerparte-aomenos atítulo de
enigma -dodiscurso biológico. Mendel,
entretanto, constitui otraço hereditário
comoobjetobiológico absolutamente novo,
graçasaumafiltragem quejamais havia sido
utilizada atéentão: eleodestacadaespécie
etambém dosexo queotransmite; eo
domínio onde oobserva éasérie indefini-
damente aberta dasgeraçõesnaqualotra-
çohereditário aparecesegundo regularida-

Adisciplina éumprincípio decontrole
daprodução dodiscurso. Elalhefixaos
limites pelojogodeumaidentidade quetem
aforma deumareatualização permanente
dasregra.
Tcm-s ohábitodevernaIecundídade
deumautor, namulnplícidade doscomen-
tário ,nodeenvolvimento deumadiscipli-
na,como querecursos infinitos paraacria-
çãodosdiscursos. Podeser,masnãodeixam
deserprincípiosdecoerção; eéprovável
quenãosepossaexplicarseupapel positi-
voemultiplicador,senãoselevaremcon-
sideração suafunçãorestritiva ecoercitiva.
37
Creioqueexiste umterceiro grupo de
procedimentos quepermitem ocontrole dos
discursos. Desta vez,nãosetratadedomi-
narospoderes queelestêm,nemdeconju-
rarosacasosdesuaaparição; trata-se de
determinar ascondições deseufunciona-
mento, deimpor aosindivíduos queos
pronunciam certonúmero deregras eassim
denãoperrmnrquetodo mundo tenha
acessoaeles.Rarefação, desta vez,dossu-
jeitosquefalam; ninguém entraránaordem
dodiscurso senãosatisfizer acertas exi-
gênciasousenãofor,deinício, qualificado
paraIazê-lo. Maisprecisamente: nemtodas
asregiõesdodiscurso sãoigualmente aber-
tasepenetráveis; algumas sãoaltamente
proibidas (diferenciadas ediferenciantes),
enquanto outras parecem quaseabertasa
todososventosepostas, semrestrição pré-
via,àdisposição decadasujeitoquefala.
Gostariaderecordar, sobreestetema,
uma anedota tãobelaque,seteme, seja
verdadeira. Elareduz aumasófigura todas
ascoerções dodiscurso: asquelimitamseus
poderes, asquedominam suasaparições
aleatórias, asqueselecionam ossujeitosque
falam. Noinício doséculo XVII, oxogum
ouviradizer queasuperioridade doseuro-
peus-emtermos denavegação,comércio,
política, artemilitar -devia-se aseusco-
nhecimentos dematemática. Desejou apo-
derar-se desaber tãoprecioso. Como lhe
haviam faladodeummarinheiro inglês que
36

-.
possuíaosegredo dessesdiscursos maravi-
lhosos, eleofezviraseupalácio eaío
reteve.Asóscomele,tomou lições. Apren-
deuamatemática. Defato,manteve opo-
dereteveumalongavelhice. Foinoséculo
XIXquehouvematemáticosjaponeses. Mas
aanedota nãotermina aí:temsuaversão
européia. Ahistóriaconta, comefeito,que
aquelemarinheiro inglês, WilAdams, fora
umautodidata: umcarpinteiro que,porter
trabalhado emumestaleiro naval, aprende-
raageometria. Deve-se vernesta narrativa
aexpressãodeumdosgrandes mitos da
cultura européia?Aosaber monopolizado e
secreto datirania oriental, aEuropaoporia
acomunicação universal doconhecimento,
atrocaindefinida elivredosdiscursos.
Ora,écertoqueestetema nãoresiste
aoexame. Atrocaeacomunicação sãofi-
guraspositivas queatuamnointerior de
sistemascomplexos derestrição; esem
dúvidanãopoderiam funcionarsemestes.
Aformamaissuperficial emaisvisível des-
sessistemasderestrição éconstituídapelo
quesepode agrupar sobonome deritual;
38
oritual define aqualificação quedevem
possuir osindivíduos quefalam(eque,no
jogodeumdiálogo,dainterrogação,da
recitação,devemocupardeterminadaposi-
çãoeformular determinadotipodeenun-
ciados);define osgestos,oscomportamen-
tos,ascircunstâncias, etodooconjunto de
signosquedevemacompanhar odiscurso;
fixa,enfim, aeficácia supostaouimposta
daspalavras, seuefeito sobreaqueles aos
quais sedirigem, oslimites deseuvalor de
coerção. Osdiscursos religiosos, judiciários,
terapêuticos e,emparte também, políticos
nãopodem serdissociados dessa práticade
umritualquedetermina para ossujeitos
quefalam, aomesmotempo,propriedades
singulares epapéispreestabelecidos.
Com forma defuncionarparcialmente
distinta háas"sociedades dediscurso", cuja
funçãoéconservar ouproduzir discursos,
masparaIazê-los circular emumespaço
fechado, distribuí-los somentesegundo re-
grasestritas,semqueseusdetentores sejam
despossuídos poressadistribuição. Um
desses modelos arcaicosnosédadopelos
39

grupos derapsodos quepossuíam oconhe-
cimento dospoemas arecitar ou,eventual-
mente, afazer variar eatransformar; mas
esseconhecimento, embora tivesseporfi-
nalidade umarecitação decaráter ritual, era
protegido, defendido econservado emum
grupo determinado, pelos exercícios de
memória, muitas vezesbemcomplexos, que
implicava; suaaprendízagei fazia estarao
mesmo tempoemumgrupoeemumse-
gredoquearecitação manifestava, masnão
divulgava; entreapalavraeaescuta os
papéis nãopodiam sertrocados.
Écertoquenãomaisexistem tais"so-
ciedades dediscurso", comessejogoambí-
guodesegredo ededivulgação. Masque
ninguém sedeixeenganar; mesmo naor-
demdodiscurso verdadeiro, mesmo naor-
demdodiscurso publicado elivredequal-
querritual, seexercem aindaformas de
apropriação desegredo edenão-permuta-
bilidade. Ébempossível queoatodeescre-
vertalcomoestáhojeinstitucionalizado no
livro, nosistema deedição enopersona-
gemdoescritor, tenha lugaremuma"so-
40
ciedade dediscurso" difusa, talvez, mas
certamente coercitiva. Adiferença doescri-
tor,semcessaroposta porelemesmo àati-
vidade dequalquer outro sujeito quefala
ouescreve,ocaráter intransitivo queem-
presta aseudiscurso, aSingularidade fun-
damental queatribuihámuito tempo à
"escritura", adissimetria afirmadaentre a
"criação" equalquer outra prática dosiste-
malingüístico,tudoistomanifesta nafor-
mulação (etende, aliás,areconduzír nojogo
daspráticas) aexistência decerta "socieda-
dedodiscurso". Masexistem ainda muitas
outras quefuncionamdeoutramaneira,
conforme outroregime deexclusividade e
dedivulgação: lembremos osegredo técnico
oucientífico, asformas dedifusão edecircu-
laçãododiscurso médico, osqueseapro-
priam dodiscurso econômico oupolítico.
Àprimeiravista,as"doutrinas" (reli-
giosas,políticas, filosóficas) constituem o
inverso deuma "sociedade dediscurso":
nesta, onúmero dosindivíduos quefala-
vam, mesmo senãofossefixado, tendiaa
serlimitado; esóentre elesodiscurso po-
41

diacircular esertransmitido.Adoutrina,
aocontrário,tendeadifundir-se; eépela
partilha deumsóemesmoconjunto de
discursosqueindivíduos, tãonumerosos
quanto sequeira imaginar, definem sua
pertençarecíproca.Aparentemente, aúnica
condiçãorequeridaéoreconhecimento das
mesmasverdades eaaceitação decertare-
gra-maisoumenosflexível -deconfor-
midadecomosdiscursos validados; sefos-
semapenasisto,asdoutrinas nãoseriam
tãodiferentes dasdisciplinas científicas, eo
controle discursivo trataria somente dafor-
maoudoconteúdo doenunciado, nãodo
sujeito quefala.Ora,apertença doutrinária
questionaaomesmotempo oenunciado e
osujeitoquefala,eumatravésdooutro.
Questiona osujeito quefalaatravéseapartir
doenunciado,comoprovamosprocedimen-
tosdeexclusão eosmecanismos derejei-
çãoqueentram emjogoquando umsujeito
quefalaformula umouvários enunciados
inassimiláveis; aheresia eaortodoxia não
derivam deumexagerofanático dosmeca-
nismosdoutrinários,elaslhespertencem
fundamentalmente. Mas,inversamente,a
42
doutrinaquestiona osenunciados apartir
dossujeitos quefalam, namedidaemque
adoutrina valesempre comoosinal, a
manifestação eoinstrumento deumaper-
tençaprévia -pertença declasse,destatus
social ouderaça,denacionalidade oude
interesse,deluta,derevolta, deresistência
oudeaceitação.Adoutrina ligaosindiví-
duosacertostiposdeenunciação elhes
proíbe,conseqüentemente, todososoutros;
maselaseserve,emcontrapartida, decer-
tostipos deenunciação paraligar indiví-
duosentresiediferenciá-Ias, porissomes-
mo,detodos osoutros. Adoutrina realiza
umadupla sujeição: dossujeitos quefalam
aosdiscursos edosdiscursos aogrupo,ao
menos virtual, dosindivíduos quefalam.
Enfim, emescala muito maisampla, é
preciso reconhecer grandes planos noque
poderíamos denominar aapropriação social
dosdiscursos. Sabe-se queaeducação, em-
boraseja,dedireito, oinstrumento graças
aoqualtodoindivíduo, emumasociedade
como anossa, pode teracessoaqualquer
tipodediscurso, segue, emsuadistribui-
43

dodiscurso comseus poderes eseussabe-
res?Queéuma"escritura" (ados"escrito-
res") senãoumsistemasemelhante desu-
jeição,quetoma formasumpoucodiferen-
tes,mascujosgrandesplanossãoanálogos?
Nãoconstituiriam osistemajudiciário, o
sistema institucional damedicina, elestam-
bém, sobcertos aspectos,aomenos, tais
sistemas desujeição dodiscurso?
44 45
ção,noquepermite enoqueimpede, as
linhasqueestãomarcadas peladistância,
pelasoposiçõeselutassociais. Todo siste-
madeeducaçãoéumamaneira políticade
manter oudemodificar aapropriação dos
discursos, comossabereseospoderes que
elestrazemconsigo.
Bemseiqueémuitoabstrato separar,
comoacabo defazer,osrituais dapalavra,
associedades dodiscurso, osgrupos dou-
trinários easapropriações sociais. Amaior
parte dotempo,elesseligamunsaosou-
troseconstituem espécies degrandes edifí-
ciosquegarantem adistribuição dossujei-
tosquefalamnosdiferentes tiposdedis-
cursoeaapropriação dosdiscursos por
certascategorias desujeitos. Digamos, em
umapalavra, quesãoessesosgrandes pro-
cedimentos desujeição dodiscurso. Oque
éafinal umsistema deensino senão uma
ritualização dapalavra;senãoumaqualifi-
caçãoeuma fixaçãodospapéis paraos
sujeitosquefalam; senãoaconstituição de
umgrupo doutrinário aomenos difuso;
senãoumadistribuição eumaapropriação
Eumepergunto secerto número de
temas dafilosofia nãovieramresponder a
essesjogosdelimitações edeexclusões e,
talveztambém, reforca-los.
Responder-lhes, emprimeiro lugar,pro-
pondoumaverdadeideal como leidodis-
cursoeumaracionalidade imanente como
princípiodeseudesenvolvimento, recondu-
zindotambém umaéticadoconhecimento
quesópromete averdade aopróprio desejo
daverdade esomente aopoder depensá-Ia.

Reforça-los, emseguida, porumade-
negaçãoquerecaidestavezsobrearealida-
deespecífica dodiscurso emgeral.
Desdequeforam excluídos osjogose
ocomércio dossofistas,desde queseus
paradoxos foram amordaçados, commaior
oumenor segurança, parecequeopensa-
mento ocidental tomou cuidado paraqueo
discurso ocupasse omenorlugar possível
entre opensamento eapalavra;parece que
tomoucuidadoparaqueodiscurso apare-
cesseapenas como umcerto aporte entre
pensar efalar; seria umpensamento reves-.
tidodeseussignosetornado visível pelas
palavras, ou,inversamente, seriam asestru-
turasmesmas dalíngua postas emjogoe
produzindo umefeitodesentido.
Estaantiquíssima elisãodarealidade do
discurso nopensamento filosófico tomou
muitasformas nodecorrerdahistória. Nósa
reencontramos bem recentemente sobafor-
madevários temasquenossãofamiliares.
Seria possível queotema dosujeito
fundante permitisse elidirarealidade do
46
discurso. Osujeitofundante, comefeito,está
encarregado deanimar diretamente, com
suasintenções, asformasvazias dalíngua;
éeleque,atravessando aespessura oua
inércia dascoisas vazias, reapreende, nain-
tuição,osentido queaíseencontra deposi-
tado;éeleigualmente que,paraalém do
tempo, fundahorizontes designificações que
ahistória nãoterásenãodeexplicitar em
seguida, eonde asproposições, asciências,
osconjuntosdedutivos encontrarão afinal
seufundamento. Nasuarelação co~osen~
tido,osujeito fundadordispõe designos,
marcas, traços, letras. Mas,paramanifestá-
-los,nãoprecisa passarpelainstância sin-
gulardodiscurso.
Otemaquecorresponde aeste,otema
daexperiência originária, desempenha um
papel análogo. Supõe quenonível daexpe-
riência, antes mesmo quetenha podidore-
tomar-se naforma deumcogito,significa-
õsanteriores, decertaforma jáditas,
perorreriam omundo, dispondo-o aore-
dordenóseabrindo-o, logodeinício, a
umaespécie dereconhecimento primitivo.
47

48
49
insensivelmente discurso, manifestando o
segredo desuaprópria essência. Odiscurso
nadamaisédoqueareverberação deuma
verdadenascendodiante deseuspróprios
olhos; e,quandotudopode,enfim,tomara
formadodiscurso, quando tudopode ser
ditoeodiscurso pode serditoapropósito
detudo,issosedáporquetodas ascoisas,
tendo manifestado eintercambiado seusen-
tido,podem voltaràinterioridade silencio-
sadaconsciência desi.
Assim, umacumplicidade primeira como
mundo fundaria paranósapossibilidade de
falardele,nele; dedesigná-Io enomeá-Io,
dejulga-lo edeconhecê-lo ,finalmente, sob
aforma daverdade. Seodiscurso existe, o
quepode ser,então,emsualegitimidade,
senãoumadiscretaleitura? Ascoisasmur-
muram, deantemão, umsentidoquenossa
linguagem precisaapenas fazermanifestar-
-se;eestalinguagem, desde seuprojeto mais
rudimentar, nosfalariajádeumserdoqual
seria comoanervura.
Otemadamediação universal éainda,
creio eu,umamaneira deelidirarealidade
dodiscurso. Isto,apesar daaparência. Pois
parece, àprimeira vista, queaoencontrar
emtodaparte omovimento deumlogos
queelevaassingularidades atéoconceito e
quepermiteàconsciência imediata desen-
volverfinalmente todaaracionalidade do
mundo, éodiscurso elepróprioquesesi-
tuanocentrodaespeculação. Masestelogos,
naverdade, nãoésenão umdiscurso já
pronunciado, ouantes,sãoascoisasmes-
maseosacontecimentos quesetornam
Quer seja,portanto,emumafilosofia
dosujeitofundante, queremumafilosofia
daexperiência originária ouemumafiloso-
fiadamediaçãouniversal, odiscursonada
maisédoqueumjogo,deescritura, no
primeiro caso,deleitura, nosegundo, de
troca, noterceiro, eessatroca,essaleitura
eessaescriturajamaispõem emjogosenão
ossignos.Odiscurso seanula,assim, em
suarealidade, inscrevendo-se naordemdo
significante.
Quecivilização, aparentemente, teria
sidomaisrespeitosa comodiscurso doque
anossa? Onde teria sidomais emelhor

honrado?Onde, aparentemente, teriasido
maisradicalmente libertado desuascoer-
çõeseuniversalizado? Ora,parece-me que
sobestaaparente veneração dodiscurso, sob
essaaparente logofilia, esconde-se umaes-
pécie detemor. Tudosepassa comosein-
terdições, supressões, fronteiras elimites
tivessem sidodispostos demodo adomi-
nar,aomenosemparte, agrandeprolifera-
çãododiscurso. Demodo aquesuarique-
zafosse aliviadadesuaparte maisperigosa
equesuadesordem fosseorganizadasegun-
dofiguras queesquivassem omaisincon-
trolavel: tudosepassacomosetivessem
queridoapagar atéasmarcas desuairrupção
nosjogos dopensamento edalíngua.Há,
semdúvida, emnossa sociedade e,imagi-
no,emtodasasoutrasmassegundo um
perfilefacetas diferentes, umaprofunda
logofobia, umaespécie detemor surdodes-
sesacontecimentos, dessamassadecoisas
ditas, dosurgir detodos esses enunciados,
detudooquepossahaveraídeviolento, de
descontínuo, decombativo, dedesordem,
também, edeperigoso, desse grande zum-
bidoincessante edesordenado dodiscurso.
Esequisermos, nãodigoapagar esse
temor, masanalisa-lo emsuascondições,
seujogoeseusefeitos, épreciso, creio,optar
portrêsdecisões àsquais nosso pensamen-
toresiste umpouco, hojeemdia,eque
correspondem aostrêsgrupos defunções
queacabodeevocar:questionarnossavon-
tadedeverdade; restituir aodiscursoseu
caráter deacontecimento; suspender, enfim,
asoberaniadosignificante.
50 51
Taissãoastarefasou,antes, algunsdos
temas queregem otrabalho quegostariade
realizar aquinospróximos anos. Podem-se
perceber, deimediato, certas exigências de
método queimplicam.
Primeiramente, umprincípio deinver-
são:láonde, segundo atradição, cremos
reconhecer afonte dosdiscursos, oprincí-
piodesuaexpansão edesuacontinuidade,
ness~s figurasqueparecem desempenhar um

papel positivo comoadoautor,dadiscipli-
na,davontadedeverdade, épreciso reco-
nhecer,aocontrário, ojogonegativo deum
recorteedeumararefação dodiscurso.
Mas,umavezdescobertos essesprincí-
piosderarefação, umavezquesedeixede
considerá-loscomoinstânciafundamental
ecriadora, oquesedescobreporbaixo
deles?Dever-se-ia admitiraplenitude vir-.
tualdeummundo dediscursos ininter-
ruptos?Éaquiquesefaznecessáriofazer
interviroutrosprincípios demétodo.
Umprincípiodedescontinuidade:ofato
dehaversistemasderarefaçãonãoquerdizer
queporbaixodeleseparaalémdelesreine
umgrande discurso ilimitado, contínuo e
silencioso quefosseporelesreprimido e
recalcado equenóstivéssemospormissão
descobrirrestituindo-lhe, enfim, apalavra.
Nãosedeveimaginar, percorrendoomun-
doeentrelaçando-se emtodasassuasfor-
maseacontecimentos, umnão-dito ouum
impensadoquesedeveria, enfim, articular
oupensar.Osdiscursos devemsertratados
comopráticasdescontínuas, quesecruzam
52
porvezes,mastambémseignoramouse
excluem.
Umprincípio deespecificidade:não
transformar odiscursoemumjogodesig-
nificações prévias; nãoimaginar que ·0
mundo nosapresentaumafacelegível que
teríamosdedecifrarapenas; elenãoécúm-
plicedenosso conhecimento; nãoháprovi-
dência pré-discursivaqueodisponhaa
nossofavor. Deve-seconceberodiscurso
comoumaviolênciaquefazemosàscoisas,
.comoumaprática quelhesimpomosem
todoocaso;eénestapráticaqueosacon-
tecimentos dodiscurso encontramoprincí-
piodesuaregularidade.
Quartaregra, adaexterioridade:não
passardodiscurso paraoseunúcleo inte-
rioreescondido, paraoâmagodeumpen-
samento oudeuma significação quese
manifestariam nele;mas,apartir dopró-
priodiscurso, desuaapariçãoedesuare-
gularidade, passaràssuascondiçõesexter-
nasdepossibilidade, àquilo quedálugarà
sériealeatóriadessesacontecimentos efixa
suasfronteiras.
53

Quatronoçõesdevem servir, portanto,
deprincípioregulador paraaanálise: a
noçãodeacontecimento, adesérie, ade
regularidade, adecondição depossibilida-
de.Vemosqueseopõemtermo atermo: o
acontecimento àcriação, asérieàunidade,
aregularidade àoriginalidade eacondição
depossibilidade àsignificação.Estasquatro
últimas noções (significação, originalidade,
unidade, criação) demodogeral domina-
ramahistória tradicional dasidéias onde,
decomum acordo, seprocurava oponto da
criação, aunidade deumaobra, deuma
épocaoudeumtema, amarcadaorigina-
lidade individual eotesouro indefinido das
significações ocultas.
Acrescentarei apenasduasobservações.
Umaconcerne àhistória.Atribui-se muitas
vezesàhistória contemporãnea tersuspen-
didoosprivilégios concedidosoutroraao
acontecimento singular eterfeitoaparecer
asestruturas delongaduração. Éverdade.
Nãoestoucerto, contudo, dequeotraba-
lhodoshistoriadorestenha sidorealizado
precisamente nessadireção. Oumelhor, não
54
pensoquehajacomo queumarazãoinver-
saentre acontextualização doacontecimen-
toeaanálise dalongaduração. Parece,ao
contrário, quefoiporestreitar aoextremo o
acontecimento, porlevaropoder deresolu--
çãodaanálise históricaatéasmercuriais, às
atasnotariais, aosregistros paroquiais, aos
arquivosportuários seguidos anoaano,
semanaasemana, queseviudesenhar para
alémdasbatalhas, dosdecretos, dasdinas-
tiasoudasassembléias, fenômenos maciços
.dealcance secular ouplurissecular. Ahistó-
ria,como praticadahoje, nãosedesvia dos
acontecimentos; aocontrário, alargasem
cessarocampo dosmesmos;nelesdesco-
bre,semcessar,novascamadas,maissuper-
ficiais oumaisprofundas; isolasempreno-
vosconjuntos onde elessão,àsvezes, nu-
merosos, densos eintercambiáveis, àsve-
zes,rarosedecisivos: dasvariaçõescotidia-
nasdepreçochega-se àsinflaçõessecula-
res.Masoimportante équeahistória não
considera umelemento semdefinir asérie
daqualelefazparte, semespecificar omodo
deanálise daqualestadepende, semprocu-
55

57
rarconhecer aregularidade dosfenômenos
eoslimites deprobabilidade desuaemer-
gência, seminterrogar-se sobreasvariações,
asinflexôeseaconfiguração dacurva,sem
quererdeterminar ascondiçôes dasquais
dependem. Certamente ahistória hámuito
temponãoprocuramais compreender os
acontecimentos porumjogodecausas e
·efeitos naunidade informe deumgrande
devír, vagamente homogêneo ourigidamente
hierarquizado; masnãoéparareencontrar
estruturasanteriores, estranhas, hostis ao
acontecimento. Éparaestabelecer asséries
diversas, entrecruzadas, divergentes muitas
vezes, masnãoautônomas, quepermitem
circunscrever o"lugar" doacontecimento,
asmargens desuacontingência, ascondi- .
çõesdesuaaparição.
Asnoçõesfundamentais queseimpõem
agora nãosãomaisasdaconsciência eda
continuidade (com osproblemas quelhes
sãocorrelatos, daliberdade edacausalida-
de),nãosãotambém asdosigno edaestru-
tura.Sãoasdoacontecimento edasérie,
comojogodenoçôesquelhessãoligadas;
regularidade, casualidade, descontínuidade,
dependência, transformação; époressecon-
juntoqueessaanálise dosdiscursos sobre a
qualestou pensando searticula, nãocerta-
mente comatemática tradicional queos
filósofosdeontem tomam ainda como a
história "viva", mascomotrabalho efetivo
doshistoriadores.
56
Maséporaíqueestaanálise suscita
problemas filosóficos outeóricos realmente
assustadores. Seosdiscursos 'devem sertra-
tados, antes, comoconjuntos deaconteci-
mentos discursivos, queestatuto convém dar
aestanoção deacontecimento quefoitão
raramente levada emconsideração pelosfi-
lósofos?Certamente oacontecimento nãoé
nemsubstância nemacidente, nemqualida-
de,nemprocesso;oacontecimento nãoé
daordem doscorpos. Entretanto, elenãoé
imaterial; ésempre noâmbito damateriali-
dade gueeleseefetiva, queéefeito;ele
- .
possui seulugar econsistenarelação,coe-
xistência, dispersão, recorte, acumulação,
seleçãodeelementos materiais; nãoéoato
nemapropriedade deumcorpo; produz-se

58
-uma teoria dassistematicidades
descontínuas. Enfim, seéverdade queessas
sériesdiscursivas edescontínuas têm,cada
uma, entrecertoslimites, suaregularidade,
semdúvida nãoémenos possível estabele-
cerentreoselementos queasconstituem
nexosdecausalidade mecânica oudene-
cessidadeideal. Épreciso aceitar introduzir
acasualidade comocategoria naprodução
dosacontecimentos. Aítambém sefazsen-
tiraausênciadeumateoria qblepermitapen-
sarasrelações doacaso edopensamento.
Desortequeotênue deslocamento que
sepropõepraticar nahistória dasidéiase
queconsisteemtratar, nãodasrepresenta-
çõesquepodehaver portrásdosdiscursos,
masdosdiscursos como séries regulares e
distintas deacontecimentos, estetênue des-
locamento, temo reconhecer nelecomo que
umapequena (etalvez odiosa)engrenagem
quepermite introduzir naraizmesma do
pensamento oacaso,odescontínuo eama-
terialidade. Tríplice perigo quecertaforma
dehistória procura conjurar narrando o
desenrolar contínuo deumanecessidade
59
'I
li
comoefeitodeeemumadispersão mate-
rial.Digamos queafilosofia doaconteci-
mento deveria avançar nadireção parado-
xal,àprimeiravista, deummaterialismo
doincorporal.
Poroutrolado, seosacontecimentos
discursivos devem sertratados comoséries
homogêneas, masdescontínuas umasem
relaçãoàsoutras,queestatuto convém dar
aessedescontínuo? Nãosetrata, bemen-
tendido, nemdasucessãodosinstantes do
tempo, nem dapluralidade dosdiversos
sujeitos pensantes; trata-sedecesuras que
rompem oinstante edispersam osujeito
emumapluralidade deposições edefun-
çõespossíveis. Taldescontinuidade golpeia
einvalida asmenores unidades tradicional-
mente reconhecidas ouasmaisfacilmente
contestadas: oinstante eosujeito. E,por
debaixo deles,independentemente deles, é
precisoconceberentreessassériesdescon-
tínuas relaçõesquenãosãodaordem da
sucessão(oudasimultaneidade )emuma
(ouvárias) consciência; éprecisoelaborar
-foradasfilosofias dosujeito edotempo

60 61
ideal.Trêsnoçõesquedeveriam permitir
ligar àprática doshistoriadores ahistória
dossistemas depensamento. Trêsdireções
queotrabalho deelaboração teórica deverá
seguir.
foram suascondições deaparição, decres-
cimento, devariação.
Oconjunto crítico,primeiro. Umprimei-
rogrupo deanálises poderia versarsobre o
quedesignei como funçõesdeexclusão. Acon-
teceu-me outrora estudar umaeporumpe-
ríodo determinado: tratava-se daseparação
entre loucura erazãonaépocaclássica. Mais
tarde, poderíamos procurar analisar umsiste-
madeinterdição delinguagem: oquecon-
cerne àsexualidade desde o'século XVIaté
oséculo XIX; tratar-se-ia devernãosem,
dúvida, como eleprogressivamente efeliz-
mente seapagou; mascomo sedeslocou e
serearticulou apartirdeuma prática da
confissão emqueascondutas proibidas eram
nomeadas,classificadas, hierarquizadas, eda
maneira amaisexplícita, atéaaparição ini-
cialmente bem tímida, bem retardada, da
temática sexual namedicina enapsiquiatria
doséculo XIX;nãosãoestessenãomarcos
umpouco simbólicos, ainda, massepode
desde jáapostar queasescansões nãosão
aquelas quesecrê,equeasinterdições não
ocuparam sempre olugarqueseimagina.
Seguindo essesprincípios ereferindo-
-meaessehorizonte, asanálises queme
proponho fazer sedispõem segundo dois
conjuntos. Deumaparte,oconjunto "críti-
co",quepõeemprática oprincípio dain-
versão: procurar cercarasformas daexclu-
são,dalimitação, daapropriação deque
falavahápouco; mostrar como seforma-
ram, para responder aquenecessidades,
como semodificaram esedeslocaram, que
forçaexerceram efetivamente, emqueme-
didaforam contornadas. Deoutra parte, o
conjunto"genealógíco" quepõeemprática
ostrêsoutrosprincípios: comoseforma-
ram,através, apesar,oucomoapoio desses
sistemas decoerção, sériesdediscursos; qual
foianorma específica decadaumaequais

6362
grandes atosfundadores daciência moder-
na,aformação deumasociedade industrial
eaideologia positivista queaacompanha.
Trêscortes namorfologiadenossavontade
desaber; trêsetapasdenossofilisteísmo.
Gostaria também deretomar amesma
questão, massobumângulo bemdiferente:
mediroefeito deumdiscurso compreten-
sãocientífica -discursomédico, psiquiá-
trico, discurso sociológico também -so-
breoconjunto depráticasedediscursos
prescritivos queosistemapenalconstitui.
Éoestudo dasperícias psiquiátricas ede
seupapel napenalidade queservirá depon-
todepartidaedematerial básico paraesta
análise.
Éaindanestaperspectiva crítica, mas
emoutro nível, quesedeveria fazer aaná-
lisedosprocedimentos delimitação dos
discursos, dentre osquaisdesignei hápou-
cooprincípio doautor, odocomentário e
odadisciplina. Nestaperspectiva, sepode
conceber umcertonúmero deestudos. Pen-
so,porexemplo, emumaanálise quever-
sassesobre ahistória damedicina doséculo
Deimediato, éaoterceiro sistema de
exclusão quegostaria demeater. Vou
encará-lo deduasmaneiras. Porumlado,
gostariadetentar perceber comosereali-
zou, mastambém como serepetiu, se
reconduziu, sedeslocou essaescolha da
verdade nointerior daqualnosencontra-
mos, masquerenovamos continuamente.
Situar-rne-ei, primeiro, naépocadasofística
edeseuiníciocomSócrates ouaomenos
comafilosofia platônica, paravercomoo
discurso eficaz, odiscurso ritual, carregado
depoderes edeperigos, ordenou-se aos
poucos emumaseparação entre discurso
verdadeiro ediscurso falso. Emseguida, vou
situar-me napassagem doséculo XVIpara
oXVII, naépocaemqueapareceu, princi-
palmente naInglaterra, umaciência do
olhar, daobservação, daverificação, uma
certa filosofia natural inseparável, semdú-
vida, dosurgimento denovasestruturas po-
líticas, inseparável também daideologia re-
ligiosa: novaforma, porcerto, davontade
desaber. Enfim, oterceiro pontoderefe-
rênciaseráoinício doséculo XIX,comos

64
XVIaoséculo XIX.Nãosetrataria deassi-
nalarasdescobertas feitasouosconceitos
elaborados, masdedetectar, naconstrução
dodiscurso médico-mastambém emtoda
ainstituição queosustenta, transmite e
reforça-como funcionaram osprincípios
doautor, docomentário edadisciplina;
procurar sabercomo vigorou oprincípio do
grande autor: Hipócrates, Galeno, écerto,
mas também Paracelso, Sydenham ou
Boerhaave; comoseexerceu, empleno sé-
culoXIX, apráticadoaforismo edoco-
mentário, comoaospoucos foisubstituída
pelaprática docaso, dacoleta decasos,da
aprendizagem clínica apartir deumcaso
concreto; conforme quemodelo, afinal, a
medicina procurou constituir-se como dis-
ciplina, apoiando-se primeiramente nahis-
tórianatural, emseguida naanatomia ena
biologia.
Poderíamos também considerar ama-
neira pelaqualacrítica eahistória literá-
riasnosséculos XVIIIeXIXconstituíram o
personagem doautoreafigura daobra,
utilizando, modificando edeslocando os
procedimentos daexegesereligiosa,dacrí-
ticabíblica,dahagiografia, das"vidas" his-
tóricasoulendárias, daautobiografia edas
memórias.Serápreciso também, umdia,
estudar opapel queFreuddesempenha no
saber psicanalítico, muito diferente, sem
dúvida, dopapel deNewton nafísica(ede
todososfundadores dedisciplina), muito
diferente também doquepodedesempenhar
umautor nocampo dodiscutso filosófico
(mesmo queestivesse, comoKant, naori-
gemdeoutramaneira defilosofar).
Eis,portanto, alguns projetos parao
aspecto crítico datarefa, paraaanálise das
instâncias decontrole discursivo. Quanto
aoaspecto genealógico, esteconceme àfor-
maçãoefetivadosdiscursos, quernointe-
riordoslimitesdocontrole, quernoexte-
rior,quer, amaior partedasvezes, deum
ladoedeoutro dadelimitação. Acrítica
analisa osprocessosderarefaçâo,mastam-
bémdereagrupamento edeunificação dos
discursos; agenealogia estuda suaformação
aomesmo tempo dispersa, descontínua e
65

regular. Naverdade, estasduastarefasnão
sãonunca inteiramente separáveis;nãohá,
deumlado,asformasdarejeição, daexclu-
são,doreagrupamento oudaatribuição; e,
deoutro, emnível maisprofundo, osurgi-
mento espontâneodosdiscursos que,logo
antesoudepoisdesuamanifestação, são
submetidos àseleção eaocontrole. Afor-
maçãoregular dodiscurso pode integrar,
sobcertas condições eatécertoponto, os
procedimentos docontrole (éoquesepas-
sa,porexemplo, quando umadisciplina
toma forma eestatuto dediscurso científi-
co);e,inversamente, asfigurasdocontrole
podem tomar corpo nointerior deuma
formaçãodiscursiva (assim,acrítica literá-
riacomo discurso constitutivo doautor):
desorte quetodatarefacrítica, pondo em
questãoasinstânciasdocontrole, deveana-
lisaraomesmotempoasregularidades dis-
cursivasatravés dasquaiselasseformam;
etodadescriçãogenealógica develevarem
contaoslimitesqueinterferemnasforma-
çõesreais. Entre oempreendimento crítico
eoempreendimento genealogico, adiferen-
66
çanãoétanto deobjetooudedomínio
mas,sim,deponto deataque, deperspec-
tivaededelimitação.
Hápouco euevocavaumestudo possí-
vel:odasinterdições queatingem odiscur-
sodasexualidade. Seriadifícil eabstrato,
emtodocaso, empreender esseestudo sem
analisar aomesmo tempo osconjuntos dos
discursos, literários, religiosos ouéticos,
biológicos emédicos, jurídicos igualmente,
nosquais setratadasexualidade, nosquais
estaseachanomeada, descrita, metaforizada,
explicada, julgada. Estamos muito longede
haver constituído umdiscurso unitário e
regular dasexualidade; talveznãochegue-
mosnunca aissoe,quemsabe,nãoesteja-
mosindonessadireção. Poucoimporta. As
interdições nãotêmamesma formaenão
interferemdomesmomodonodiscurso li-
terárioenodamedicina, nodapsiquiatria
enodadireçãodeconsciência. E,inversa-
mente, essasdiferentes regularidades discur-
ivasnãoreforçam, nãocontornam ounão
Ilocam osinterditos damesma maneira.
().tudosópoderáserfeito, portanto, con-
67

68 69
forme pluralidades desenes nasquais in-
terfiraminterditos que,aomenos emparte,
sejam diferentes emcadaumadelas.
Poderíamos considerar, também, assé-
riesdediscursos que,nosséculos XVIIe
XVIII, referem-se àriqueza eàpobreza, à
moeda, àprodução, aocomércio. Trata-se,
então, deconjuntos deenunciados muito
heterogêneos, formulados pelosricosepe-
lospobres, pelossábios epelosignorantes,
protestantes oucatólicos, oficiais dorei,co-
merciantes oumoralistas. Cada qualtem
suaforma deregularidade, eigualmente seus
sistemas decoerção.Nenhum delesprefi-
guraexatamente essaoutraformaderegu-
laridade discursiva quetomará forma deuma
disciplina echamar-se-á "análise dasrique-
zas",depois, "economia política". É,contu-
do,apartirdelesqueumanovaregularida-
deseformou, retomando ouexcluindo,
justificando oudescartando alguns dosseus
enunciados.
Pode-sepensar, também, emumestu-
doquetratariadosdiscursos sobre ahere-
ditariedade, taiscomo podem serencontra-
dos,repartidos edisperses atéoiníciodo
séculoXXemmeioadisciplinas,observa-
ções, técnicas ereceitas diversas; seriapre-
cisomostrar, então,mediante quejogode
articulação essas séries serecompuseram,
finalmente, nafigura,epistemologicamente
coerente ereconhecida pelainstituição, da
genética. Esseéotrabalho queacabadeser
feitoporFrançois Jacob comumbrilho e
umaciência inigualáveis.
Assim,asdescrições críticaseasdes-
crições genealógicas devem alternar-se,
apoiar-se umasnasoutras esecompleta-
rem.Apartecríticadaanálise liga-se aos
sistemas derecobrimento dodiscurso; pro-
curadetectar, destacaressesprincípios de
ordenamento, deexclusão, derarefação do
discurso. Digamos, jogando comaspala-
vras, queelapratica umadesenvoltura
aplicada.Apartegenealógica daanálise se
detém, emcontrapartida, nasséries dafor-
mação efetiva dodiscurso:procuraapreendê-
-10emseupoder deafirmação, eporaí
.rundonãoumpoder queseoporia ao
podrdenegar, masopoder deconstituir

domínios deobjetos, apropósito dosquais
sepoderia afirmar ounegarproposições
verdadeiras oufalsas.Chamemos depositi-
vidades essesdomínios deobjetos; e,diga-
mos,parajogar uma segunda vezcomas
palavras,queseoestilo crítico éodade-
senvoltura estudiosa, ohumor genealógico
seráodeumpositivismo feliz.
Emtodocaso,umacoisaaomenos deve
sersublinhada: aanálise dodiscurso, assim
entendida, nãodesvenda auniversalidade
deumsentido; elamostraàluzdodiao
jogodararefação imposta, comumpoder
fundamental deafirmação. Rarefação eafir-
mação, rarefação, enfim, daafirmação enão
generosidade contínua dosentido, enãomo-
narquiadosignificante.
Eagora, osquetêmlacunas devoca-
bulário quedigam-seissolhes soar
melhor -queistoéestruturalismo.
Seibemquenãopoderia empreender
estaspesquisas, cujoesboçotentei apresen-
70
tar-lhes, senãotivesse,paradelesmevaler,
modelos eapoios. Creioquedevo muito a
M.Dumézil, poisfoielequemeincentivou
aotrabalho emumaidade emqueeuainda
acreditava queescreveréumprazer. Mas
devomuito, também, asuaobra; queme
perdoe seafastei deseusentido oudesviei
deseurigoressestextos quesãoseuseque
nosdominam hoje;foielequemeensinou
aanalisar aeconomia interna deumdiscur-
sodemodototalmente diferente dosméto-
dosdeexegesetradicionaloudoformalis-
molingüístico; foielequemeensinou a
detectar, deumdiscursoaooutro,pelojogo
dascomparações, osistema dascorrelações
funcionais; foielequemeensinou como
descrever astransformações deumdiscurso
easrelaçõescomainstituição. Seeuquis
aplicartalmétodo adiscursos totalmente
diferentes dasnarrativas lendárias oumíti-
cas,estaidéiameocorreu, semdúvida, pelo
fatodeeuterdiante dosolhosostrabalhos
doshistoriadores dasciências e,sobretudo,
deM.Canguilhem; éaelequedevoofato
detercompreendido queahistória daciên-
71

cianãoseacha presanecessariamente à
alternativa: crônica dasdescobertas oudes-
criçõesdasidéias eopiniões quecercama
ciênciadoladodesuagênese indecisa ou
doladodesuasorigens exteriores; masque
sepodia, sedevia fazerahistória daciência
como deumconjuntoaomesmo tempo
coerenteetransformável demodelos teóri-
cosedeinstrumentos conceituais.
Penso, noentanto, queminhadívida,
emgrande parte, éparacornjeanHyppolite.
Bemseiquesuaobrasecoloca, aosolhos
demuitos, soboreinado deHegel eque
todaanossaépoca,sejapelalógica oupela
epistemologia, sejaporMarxouporNietzs-
che,procura escapardeHegel: eoquepro-
curei dizer hápouco apropósito dodiscur-
soébeminfiel aolagoshegeliano.
Masescapar realmente deHegel supõe
apreciar exatamente oquantocustaseparar-
-sedele;supõesaber atéondeHegel, insidio-
samente, talvez, aproximou-se denós;supõe
saber, naquilo quenospermite pensarcontra
Hegel, oqueainda éhegeliano; emedirem
quenossorecurso contra eleéainda talvez, ,
72
l
umardilqueelenosopõe, aotermo do
qualnosespera, imóvel eemoutro lugar.
Ora,sesomosmuitososdevedores de
JeanHyppolite, éporque, infatigavelmente,
elepercorreu paranóseantesdenósesse
caminho atravésdoqualnosafastamos de
Hegel, tomamos distância, eatravésdoqual
nosencontramos devoltaaelemasdeoutra
maneira, logoemseguida obrigados adeixá-
-10novamente.
Emprimeirolugar,JeanHyppolite teve
ocuidado detornarpresente essagrande
sombra, umpouco fantasmagórica, deHegel
querondava desde oséculo XIXecoma
qualnosbatíamos obscuramente. Foipor
meiodeumatradução, daFenomenologia
doEspírito, queeledeuaHegel essapresen-
ça;eaprova dequeHegel, elepróprio, está
bem presente nesse textofrancês, éque
aconteceu aosalemães consultarem-no para
compreender melhor aquilo que,porumins-
tanteaomenos, setornava aversãoalemã.
Ora,JeanHyppolite procurou epercor-
reutodasassaídas dessetexto como sesua
73

74
inquietação fosse: pode-se ainda filosofar, lá
ondeHegel nãoémaispossível? Pode ain-
daexistir umafilosofia quenãosejahege-
liana? Oqueénão-hegeliano emnosso
pensamento énecessariamente não-filosófi-
co?Eoqueéantífilosófico é,forçosamen-
te,não-hegeliano? Ainda quenãoprocuras-
sefazer apenas adescrição histórica e
meticulosa dessapresença deHegel que
noshavia dado: queria fazerdelaumesque-
madeexperiência damodernidade (épos-
sível pensar àmaneira hegeliana asciên-
cias,ahistória,apolítica eosofrimento de
cadadia?).equeria, inversamente, fazer de
nossamodernidade otestedohegelianismo
e,assim, dafilosofia. Paraele,areferência
aHegel eraolugar deumaexperiência, de
umenfrentamento emquenãotinha nunca
acerteza dequeafilosofia sairia vitoriosa.
Nãoseservia dosistema hegeliano comode
umuniverso tranqüilizador; via,ali,orisco
extremo assumido pelafilosofia.
Daí,creio eu,osdeslocamentos queele
operou, nãodigonointerior dafilosofia
hegeliana, massobre elaesobreafilosofia
talcomo Hegel aconcebia; daítambém toda
umainversãodetemas. Emvezdeconce-
berafilosofia como atotalidade enfimca-
pazdesepensar edeseapreender no
movimento doconceito,JeanHyppolite fa-
ziadelaofundo deumhorizonte infinito,
umatarefasemtérmino: sempre apostos,
suafilosofia nunca estavaprestes aacabar-
-se.Tarefa semfim,tarefa sempre recome-
çada,portanto, condenada àforma eaopa-
radoxodarepetição: afilosofia como pen-
samento inacessível datotalidade erapara
JeanHyppolite aquilo quepoderia haverde
repetível naextrema irregularidade daex-
periência; aquilo quesedáeseesconde
como questão semcessar retomada navida,
namorte, namemória: assim, o.tema
hegeliano daperfeição naconsciência desi,
eleotransformava emumtemadainterro-
gaçãorepetitiva. Mas,vistoqueelaerare-
petição,afilosofia nãoeraulterior aocon-
ceito;elanãoprecisava darcontinuidade ao
edifício daabstração, deviasempre manter-
seretirada,romper comsuasgeneralidades
adquiridas erecolocar-se emcontato coma
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não-filosofia; devia aproximar-se, omaispos-
sível, nãodaquilo queaencerramasdoque
aprecede,doqueaindanãodespertou para
suainquietação;devia retomar, parapensá-
-Ias,nãoparareduzi-Ias, asingularidade da
história, asracionalidades regionaisdaciên-
cia,aprofundidade damemórianacons-
ciência; aparece,assim,otemadeumafilo-
sofiapresente, inquieta,móvel emtodasua
linha decontatocomanão-filosofia, não
existindo senão porela,contudo, erevelan-
doosentido queessanão-filosofia tempara
nós.Ora,seelaexistenessecontato repeti-
docomanão-filosofia, oqueéocomeço da
filosofia? Jáestálá,secretamente presente
noquenãoéela,começando aformular-se
ameia-voz nomurmúriodascoisas'Mas,
então, odiscurso filosóficonãotemmais,
talvez, razãodeser;ou,então,deveela
começarsobreumabaseaomesmotempo
arbitrária eabsoluta? Vê-sesubstituir-se,
assim, otemahegelianodomovimentopró-
prioaoimediato pelotemadofundamento
dodiscurso filosófico edesuaestrutura
formal.
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Finalmente, últimodeslocamento que
JeanHyppolite operounafilosofia hegelia-
na:seafilosofia devecomeçarcomodiscur-
soabsoluto, oqueacontececomahistória
eoqueéessecomeçoqueseiniciacomum
indivíduosingular, emumasociedade, em
umaclassesocial eemmeioàslutas?
Estescincodeslocamentos, conduzin-
doaolimite extremo dafilosofia hegeliana,
fazendo-a passar, semdúvida, paraooutro
lado deseuspróprios limites, convocam,
alternativamente, asgrandes figuras maio-
resdafilosofia moderna queJeanHyppolite
nãocessou deconfrontar comHegel: Marx,
comasquestõesdahistória, Fichte como
problema docomeço absoluto dafilosofia,
Bergson comotemadocontatocomonão-
-filosófico, Kierkegaard comoproblema da
repetição edaverdade, Husserl comotema
dafilosofiacomo tarefainfinitaligada à
história denossaracionalidade. E,além
dessasfigurasfilosóficas,percebemostodos
osdomíniosdesaberqueJeanHyppolite
invocavaaoredordesuaspróprias ques-
tões:apsicanálise comaestranha lógica do
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desejo, asmatemáticas eaformalização do
discurso, ateoria dainformação esuaapli-
caçãonaanálise dovivente, enfim, todosos
domínios apartirdosquaissepode colocar
aquestão deumalógicaedeumaexistên-
ciaquenãocessam deataredesatar seus
laços.
Penso queessaobra,articulada emal-
guns grandes livros, masinvestida ainda
maisempesquisas, noensino, emumaaten-
çãoperpétua, emumalertaeumagenero-
sidadedetodososdias,emumaresponsa-
bilidade aparentemente administrativae
pedagógica (quer dizer, narealidade, dupla-
mente política), cruzou, formulou ospro-
blemas osmaisfundamentais denossaépo-
ca.Somos muitos osseus infinitamente
devedores.
Éporque tomeidele, semdúvida, o
sentido eapossibilidade doquefaço,é
porque muitasvezeselemeesclareceu quan-
doeutentavaàscegas,queeuquissituar
meutrabalho sobseusigno eterminar, evo-
cando-o, aapresentação demeus projetos.
Éemsuadireção, emdireçãoaessafalta-
emqueexperimento aomesmo temposua
ausência eminhaprópria carência -que
secruzam asquestões quemecoloco agora.
Visto quelhedevo tanto, compreendo
queaescolha quevocês fizeram convidan-
do-me aensinar aquié,emboaparte,uma
homenagem quelheprestaram; sou-lhes
profundamente reconhecido pelahonraque
medispensaram, masnãolhessoumenos
grato peloquecabeaelenesta escolha.Se
nãomesintoàaltura desucedê-Ia, sei,em
contrapartida, queseessafelicidade nos
fosse dada, euseria,estatarde,encorajado
porsuaindulgência.
Ecompreendo melhor porque eusen-
tiatanta dificuldade emcomeçar, hápouco.
Seibem, agora, qualeraavozqueeugos-
tariaquemeprecedesse, mecarregasse, me
convidasseafalarehabitasse meupróprio
·discurso. Seioquehavia detãotemível em
tomar apalavra, poiseuatomavaneste lugar
deonde oouvi eonde elenãomaisestá
paraescutar-me.