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Quais são as “funções psíquicas superiores”?*
anotações para estudos posteriores
Achilles Delari Junior**
uem estuda as obras de Vigotski e seus colabora-
dores talvez tenha notado que, ao exporem quais
são as funções psíquicas propriamente humanas,
muitas vezes terminam a lista com um lacunar e intri-
gante “etc.”. Ou seja, a lista fica incompleta, e o autor
demonstra ter por pressuposto, que nos seria simples
completá-la com nosso conhecimento anterior na área.
Infelizmente não é sempre assim que acontece, e muitos
de nós ficamos sem saber quais outros processos fariam
parte daquele mesmo grupo. O objetivo dessas breves
anotações é o de levantar do modo mais detalhado
possível os nomes de funções psíquicas citadas pelo
próprio Vigotski, e com isso lançar um pequeno convite
ao leitor a realizarmos buscas mais detalhadas sobre esse
assunto, seja na mesma obra de cujos primeiros capítulos
eu parto – “História do desenvolvimento das funções
psíquicas superiores” (Vygotski, 1931/2000) – ou em
outras que a ela venhamos acrescentar no futuro.
***
Recentemente, Nikolai Veresov disse, em uma de suas
conferências, que o objeto de estudo da psicologia de
Vigotski não são as “funções psíquicas superiores”
1
, mas
sim “o processo de desenvolvimento das funções
psíquicas superiores”. Como já sabemos, Vigotski nos
orienta a “estudar não ‘objetos’ mas sim processos”. A
entender o objeto no seu processo de mudança. Não se
pode compreender as funções psíquicas, e o entrelaça-
mento dialético de suas linhas genéticas biológica e
cultural, se não for historicamente. No que estamos de
pleno acordo. Entretanto, em Vigotski, nem sempre se vê
assim tão explícito qual seja “o” objeto de estudo da
psicologia. Podemos ver claramente a “consciência”
tomar esse lugar, no famoso texto de 1925. Mas mesmo
que toda função superior seja (pela leitura de Wertsch,
1985, e.g.), “consciente”, “social”, “mediada” e “volun-
tária”, não se pode fazer uma identificação direta da
consciência, em seu conjunto, com apenas a soma ou
justaposição das funções superiores como suas partes.
Há algo de especial na categoria “consciência” que é
seu caráter “duplicado” – em diferentes definições pode-
*
Para referência: DELARI JR., A. (2011) Quais são as funções
psíquicas superiores? Anotações para estudos posteriores. Mimeo.
Umuarama. 6 p. Disponível em: http://www.vigotski.net/fps.pdf
Críticas e sugestões de correção envie para
[email protected]
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Psicólogo desde 1993 pela UFPR, mestre em Educação pela
Unicamp, desde 2000. Professor universitário aposentado.
1
Ele usou os termos “higher mental functions” – mas manteremos
“psíquicas” e não “mentais”, apenas porque no próprio russo temos
“psikhítcheskii” que é um adjetivo cognato em relação ao nosso
“psíquico”. “Mental” não é incorreto, evidentemente, talvez o autor
entenda ser um termo mais “moderno”, não temos como saber. Mas
existe também uma palavra russa para dizer “mental”/”intelectual”
que é “umstvennii”, e não é essa usada por Vigotski nesse caso, ao
menos na obra que consultamos (Vygotski, 1931/2000).
mos notar isso: “reflexo de reflexos” (Vygotski, 1924/
1991; 1925/1991), “vivência de vivências” (Vygotski,
1925/1991). E também, como lembra Leontiev (1982/
1991), Vigotski gostava de dizer que a consciência
[soznanie] é “co-conhecimento”.
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Ao mesmo tempo, não
podemos assumir como objeto da psicologia uma
consciência abstrata que paira acima de qualquer
processo e/ou função psíquica, o que soaria como uma
forma de idealismo. Mesmo sendo a consciência um
processo reflexivo mais geral, as funções psíquicas “em
particular”, também são de interesse como objeto de
estudo. Desde que consideremos as formulações mais
tardias de Vigotski sobre o caráter interfuncional e
sistêmico da consciência, na relação entre as variadas
funções, as quais só ganham sentido na atividade de um
homem concreto, e num dado jogo de relações sociais.
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As anotações que se seguem estão organizadas em
apenas quatro partes: (I) levantamento geral em quatro
passagens distintas; (II) “o conceito de funções psíquicas
abarca dois grupos de fenômenos”; (III) funções
psíquicas rudimentares; (IV) referências; e uma tabela em
anexo. Aguardo a colaboração do leitor para ampliar a
discussão.
I – Levantamento geral em quatro
passagens distintas
(1) “funções psíquicas das crianças”
Logo na página 12, temos que são “funções psíquicas das
crianças” (Vygotski, 1931/2000, p. 12):
A linguagem (oral, entende-se)
O desenho
(O domínio da) leitura e da escrita
2
A palavra russa para consciência, tal como usada por Vigotski
envolve os radicais: (1) “so_” = partícula de duplicação e/ou acompa-
nhamento, muito próxima ao nosso “co_” (comando, cooperação,
etc.); e (2) “znanie” = de “znat’” = saber; conhecer.
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Vigotski chegará a assumir que as próprias funções são “relações
sociais”, nas quais somos conosco tal como somos com os demais.
Restaria então a questão: poderíamos dizer que as “relações entre as
funções” são “relações entre relações sociais”? É complexo esse tema
pois as funções são sociais, podem ser consideradas relações sociais
do ser humano consigo mesmo, mas não é fácil sustentar um
“paralelismo” psico-social, de modo que minha memória por exemplo
seja tal e qual minha relação social com meus pais ou meus alunos...
Há um percurso a percorrer para dar mais solidez a tal definição. Fica
aqui pontuada a necessidade de retornar a este tema posteriormente.
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