História social da criança e da família.pdf

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Livro para pedagogia entre outros.


Slide Content

SEGUNDAEDIÇÃO
EDITORA^^GUANABARA

HISTORIASOCIALDA
CRIANÇAEDAFAMlLlA
fldiçlo
PhlllppoArièsconsidera-seumhistoriadordefim
di!semana,Durantecercade40anosdedicousuas
horasdrócioàpesquisadeatitudessociais(oque
osfranceseschamamdeFhistoiredesmente/ttés) .
Atitudesemfacedavida,daloucurae,maisrecente-
mente,damorte(emseuslivrosEssaysur/'Histoire
iielaMortenOcddentduMoyenAgeànosJours
oUHommeDevantiaMort)foramobjetodesua
investigação.
Aodemonstrar alentaevoluçãodamudançadeati-
tudesaolongodosséculos,eletemtidoumvalioso
efeitocorretivosobrea"nova"geraçãodecientistas
sociais,Asuaênfasepersistentesobreoquepode-
ríamoschamar"relatividade histórica"exerceupro-
fundoefeitosobreospsicólogosdomundointeiro,
Hojecommaisde60anos,Arièsestabeleceuuma
sólidareputaçãocomohistoriador,aomesmotempo
emquemanteveasuaprofissãocomooficialdein-
formaçãoespecializadoemagriculturatropical.Para
quemtrabalhaemregimedemeiotempo,issofoi
umaverdadeira proeza,masprovavelmente asua
pesquisasobreacriançaeafamíliaéquecolocou
umpúblicomuitomaisvastoapardesuacontribui-
çãoparaopensamentocontemporâneo.
EstasuaHistóriaSocialdaCriançaedaFamíliato-
couemmuitosnervossensíveisdasociedademoder-
na,OpróprioArièsfoiatraídoporaquelaspinturas
daRenascençadecriançasvestidascomoadultos,
Comousometiculosomasintuitivodevelhosdiá-
rios,testamentos, igrejasetúmulos, berricomode
pinturas,eledesenvolveuumquadroemlentatrans-
formaçãodacriançaedesuafamília.
Olivroteveconsiderável efeíto,sobretudonosEs-
tadosUnidos.Suasobservaçõessobreovácuoentre
olareolocaldetrabalhonasociedadeindustrial,
comparadocomomeiointervenientedaIdadeMé-
(contínuana2?aba)
N
HISTÓRIASOCIAL
DACRIANÇAEDAFAMÍLIA

ANTROPOLOGIASOCIAL
Diretor:GilbertoVelho
HistóriaSocialdaCriançaedaFamília{2?ed.)
Pht/ippeArfès
UmaTeoriadaAçãoColetiva
HowarcfS.Becker
Carnavais,MalandroseHeróis(3^ed.)
RobertoDaMatta
CulturaeRazãoPrática
MarshallSahUns
Bruxaria,OráculoseMagiaentreosAzande
E.E.Evans-Prítchard
ElementosdeOrganizaçãoSocial
RaymondFirth
AInterpretaçãodasCulturas
CüffordGeertz
Estigma:NotassobreaManipulação
daIdentidadeDeteriorada {3?ed.)
ErvingGoffman
0PaláciodoSamba
MariaJú/íaGoldwasser
ASociologiadoBrasilUrbano
AnthonyeEÜzabethLeeds
ArteeSociedade
GilbertoVeiho
DesvioeDivergência (4?ed.)
GilbertoVelho
Individualismo eCultura:Notasparauma
AntropologiadaSociedadeContemporânea
GilbertoVeiho
GuerradeOrixá(2?ed.)
YvonneM.A.Veiho
PhilippeAriès
HistóriaSocial
daCriançaedaFamília
Traduçãode
DoraFlaksman
Segundaedição
EDITORAB
GUANABARA

CIP-Brdü I.CaíalogaçãP-na-fnnte
SindicaioNacionaldosEditoresdeLivros,RJ
Aries,Phiiippe
A7-ih'n Histeriasocialdacriançaedafamília
'
2.-ed PhiiippeAriès;TraduçãoDoraKUksmao—
2.
r
ed.—RiodaJaneiro:Guanabara, Idítfv
(Antro
p
ologiasoeial
)
Traduçãode:LTlHfanteilaViefamiliale
sous1'AndenRegime
BiMiografia,
ISBNÍS-243H3Ü3W)
lCrianças—França,2 ,Família—
França,3.Antropologia spçial, lTitulo II.
Série.
fiF,-Ei34S CDD—192.13
CDU—1923
Títulooriginal:
LEnfaníetlaViefamilialesousl*ÂncienRégime
Traduzidodaterceiraedição,publicadacm1975
pelaEditionsduSeuil,deParis,França,naserie
PointsHistoire,dirigidaporMiclielWinock
Copyright©/973byEditionsduSeuil
EdiçãoparaoBrasiL
Nãopodecircularemourrospaíses.
Primeiraediçãobrasileira:1978
Direitosexclusivosparualínguaportuguesa
Copyright
-by
EDITORAGUANABARAS.À,
TravessadoOuvidor, LI
RiodeJaneiro,RJ
-—CEP20040
1981-5432
Reservadostodososdireitos.Éproibidaaduplicaçãoou
reproduçãodestevolume,oudepartesdomesmo,
sobquaisquerformasouporquaisquermeios
(eletrônico,mecânico,gravação,fotocópia,ououtros),
sempermissãoexpressadaEditora.

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BIBLIOTECA
setorial
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NOTA
Aediçãobrasileirade//táíánVriSncúi/daCriançaedaFamíliafoitraduzidadaedi-
çãodeLEnfantetlaviefamilialesousVAneienRêgimedasEdítionsduSeuil,Colleo
tiorjPoints
fSérieHi&toire,Í973+Estaediçãofrancesaéumaversãoabreviadadotexto
originaldePhilippeAriès,publicadoem1960pelasEdititmsPlons,ereeditadointe-
gralmentepelasEditionsduSeuilnacoleção“Univershistorique"em1973,acrescido
deumprefácioemqueoautorexaminavaahistoriografiadeseutema.Naatualver-
são,portanto,aspartes IeIIIforamintegralmentereproduzidas,DaparteII,porém,
foiconservadoapenasoessencial,ouseja,asconclusõescompletasdesetecapítulos.
Ocapítulointitulado“DoExternatoaoInternato" foitotalmentesuprimido.
U
t
índice
Prefácio
1
OSentimentodaInfância
4 1.AsidadesdaVida 29
2.ADescobertadaInfância 50
3.OTrajedasCrianças 69
4.PequenaContribuição àHistóriados
JogoseBrincadeiras

82
5.DoDespudoràinocência 125
Conclusão:OsDoisSentimentosdaInfância 156
I
2
AVidaEscolástica
1.JovensevelhosescolaresdaIdadeMédia 165
2.UmaInstituiçãoNova:OColégio 169
3.OrigensdasClassesEscolares 172
4.ÀsIdadesdosAlunos 175
5.OsProgressosdaDisciplina 178
ó.As“PequenasEscolas" 183

7.ARudezadaInfânciaEscolar 184
Conclusão:AEscolaeaDuraçãodaInfância 186
3
AFamília
1.AsImagensdaFamília 195
2,DaFamíliaMedievalàFamíliaModerna 225
Conclusão:FamíliaeSociabilidade 272
Conclusão 275
Prefácio
Costuma-sedizerqueaárvoreimpedeavisãodafloresta,maso
tempomaravilhosodapesquisaésempreaqueleemqueohistoriador
malcomeçaaimaginaravisãodeconjunto,enquantoabrumaqueen-
cobreoshorizonteslongínquosaindanãosedissipoutotalmente,en-
quantoeleaindanãotomoumuitadistânciadodetalhedosdocumentos
brutos,eestesaindaconservamtodooseufrescor.Seumaiormérito
talvezsejamenosdefenderumatesedoquecomunicaraosleitoresa
alegriadesuadescoberta,torná-lossensíveis-comoelepróprioofoi
-
àscoreseaosodoresdascoisasdesconhecidas.Maseletambémtema
ambiçãodeorganizartodosessesdetalhesconcretosnumaestrutura
abstrata,eésempredifícilparaele(felizmente!)desprender-sedoema-
ranhadodasimpressõesqueosolicitaramemsuabuscaaventurosa,é
sempredifícilconformá-lasimediatamenteàálgebranoentantoneces-
sáriadeumateoria.Anosdepois,nomomentodareedição,otempo
passou,levandoconsigoaemoçãodesseprimeirocontato,mastrazendo
poroutroladoumacompensação:pode-severmelhorafloresta.Hoje,
apósosdebatescontemporâneossobreacriança,afamília,ajuventude,
eapósousoquefoifeitodemeulivro,vejomelhor,ouseja,deumafor-
mamaisnítidaemaissimplificada,astesesquemeforaminspiradas
porumlongodiálogocomascoisas.
Procurareiresumi-lasaqui,reduzindo-asaduas.

10 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
Aprimeirarefere-seinicialmenteanossavelhasociedadetradicio-
nal,Afirmeiqueessasociedadeviamalacriança
,epioraindaoadoles-
cente.Aduraçãodainfânciaerareduzidaaseuperíodomaisfrágil,en-
quantoofilhotedohomemaindanãoconseguiabastar-se;acriançaen-
tão,maladquiriaalgumdesembaraçofísico,eralogomisturadaaos
adultos
,epartilhavadeseustrabalhosejogos.Decriancinhapequena
,
elasetransformavaimediatamenteemhomemjovem,sempassarpelas
etapasdajuventude
,quetalvezfossempraticadasantesdaIdadeMédia
equesetornaramaspectosessenciaisdassociedadesevoluídasdehoje*
Atransmissãodosvaloresedosconhecimentos, edemodomau
geral,asocializaçãodacriança,nâoeramportantonemasseguradas
nemcontroladaspelafamíliaAcriançaseafastavalogodeseuspais
,e
pode-sedizerqueduranteséculosaeducaçãofoigarantidapelaapren-
dizagem,graçasãconvivênciadacriançaoudojovemcomosadultos.A
criançaaprendiaascoisasquedeviasaberajudandoosadultosafazê-
las
Apassagemdacriançapetafamíliaepelasociedadeeramuito
breveemuitoinsignificanteparaquetivessetempoourazãodeforçara
memóriaetocarasensibilidade ,
Contudo,umsentimentosuperficialdacriançu-aquechamei
"paparicação"-erareservadoãcriancinhaemseusprimeirosanosde
vida
,enquantoelaaindaeraumacoisinhaengraçadinha.Aspessoasse
diveftiamcomacriançapequenacomocomumanimalzinho,ummaca-
quinhoimpudico.Seelamorresseentão,comomuitasvezesacontecia
,
algunspodiamficardesolados,masaregrageraleranãofazermuito
caso,poisumaoutracriançalogoasubstituiria.Acriançanâochegava
asairdeumaespéciedeanonimato.
Quandoeiaconseguiasuperarosprimeirosperigosesobreviverao
1
tempoda“paparicação",eracomumquepassasseaviveremoutracasa
quenãoadesuafamília.Essafamíliasecompunhadocasaledas
criançasqueficavamemcasa;nãoacreditoqueafamíliaextensa(com-
postadeváriasgeraçõesouváriosgruposcolaterais
jjamaistenhaexis-
tido,anâosernaimaginaçãodosmoralistascomoAlberti,naFlorença
doséculoXV,oucomoossociólogostradicionalistasfrancesesdosécu-
loXIX
,eexcetoemcertasépocasdeinsegurança,quandoalinhagem
deviasubstituiropoderpúblicoenfraquecido
,eemcertascondições
económico-jurídicas (como,porexemplo,nasregiõesmediterrânicas,e
talveznoslugaresondeodireitodebeneficiarexclusivamenteumdosfi-
lhosfavoreciaacoabitação
).
Essafamíliaantigatinhapormissão-sentidaportodos-acon-
servaçãodosbens,apráticacomumdeumofício,aajudamútuaquoti-
diananummundoemqueumhomem
,emaisaindaumamulherisolados
PREFACIO n
nãopodiamsobreviver,eainda,noscasosdecrise,aproteçãodahonra
edasvidas.Elanâotinhafunçãoafetiva.Issonãoquerdizerqueoamor
estivessesempreausente:aocontrário,eleêmuitasvezesreconhecível,
emalgunscasosdesdeonoivado,maisgeraimentedepoisdocasamento,
criadoealimentadopelavidaemcomum,comonafamíliadoDuquede
Saint-Simon.Mas(eéissooqueimporia ),osentimentoentreoscônju-
ges,entreospaiseosfilhos,nãoeranecessárioàexistêncianemao
equilíbriodafamília:seeleexistisse,tantomelhor ,
Astrocasafetivaseascomunicaçõessociaiseramrealizadaspor-
tantoforodafamília ,num"me/o"muitodensoequente,compostode
vizinhos,amigos,amosecriados,criançasevelhos,mulheresehomens
t
emqueainclinaçãosepodiamanifestarmaislivremente.Asfamílias
conjugaissediluíamnessemeio.Oshistoriadoresfranceseschamariam
hojede'sociabilidade
'
essapropensãodascomunidadestradicionais
aosencontros
,ãsvisitas,ó.?festas:Êassimquevejonossasvelhassocie-
dades,diferentesaomesmotempodasquehojenosdescrevemosetnó-
logosedasnossassociedadesindustriais.
Minhaprimeirateseêumatentativadeinterpretaçãodassocieda-
destradicionais .Asegundapretendemostraronovolugarassumido
pelacriançaeafamíliaemnossassociedadesindustriais .
Apartirdeumcertoperíodo(oproblemaobcecantedaorigem
,ao
qualvoltareimaistarde),e,emtodoocaso,deumaformadefinitivae
imperativaapartirdofimdoséculoXVII,umamudançaconsiderável
alterouoestadodecoisasqueacabodeanalisar.Podemoscompreendê-
laapartirdeduasabordagensdistintas.Aescolasubstituiuaaprendi-
zagemcomomeiodeeducação.Issoquerdizerqueacriançadeixoude
sermisturadaaosadultosedeaprenderavidadiretamente,atravésdo
contatocomeles.Adespeitodasmuitasreticênciaseretardamentos,a
criançafoiseparadadosadultosemantidaàdistâncianumaespéciede
quarentena,antesdesersoltanomundo.Essaquarentenafoiaescola
t
ocolégio *Começouentãoumlongoprocessodeendausuramentodas
crianças(comodosloucos
,dospobresedasprostitutas)queseestende-
riaaténossosdias*eaoqualsedâonomedeescolarização.
Essaseparação-eessachamadaàrazão-dascriançasdeveser
interpretadacomoumadasfacesdograndemovimentodemoralização
doshomenspromovidopelosreformadorescatólicosouprotestantes li-
gadosàIgreja,àsleisouaoEstado.Maselanãoteriasidorealmente
possívelsemacumplicidadesentimentaldasfamílias,eestaéasegunda
abordagemdofenómenoqueeugostariadesublinhar.Afamíliatornou-
seolugardeumaafeiçãonecessáriaentreosconjugeseentrepaise
fi-
lhos,algoqueelanãoeraantes.Essaafeiçãoseexprimiusobretudo
atravésdaimportânciaquesepassouaatribuiraeducação.Nãosetra-

12 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
lavamaisapenasdeestabelecerosfilhosemfunçãodosbensedahon-
ra.Traiam-sedeumsentimentointeiramentenovo:ospaisseinteressa-
vampelosestudosdeseusfilhoseosacompanhavamcomumasolicitude
habitualnosséculosXIXeXX,masoutroradesconhecida.JeanRacine
escreviaaseufilhoLouisarespeitodeseusprofessorescomoofariaum
paidehoje(oudeontem,umontemmuitopróximo).
Afamíliacomeçouentãoaseorganizaremtornodacriançaea
lhedarumatalimportância,queacriançasaiudeseuantigoanonima-
to,quesetornouimpossívelperde-taousubstituí-lasemumaenorme
dor,queelanãopôdemaisserreproduzidamuitasvezes
,equesetornou
necessáriolimitarseunúmeroparamelhorcuidardela.Portanto
,não
surpreendequeessarevoluçãoescolaresentimentaltenhasidoseguida,
comopassardotempo,deummalthusianismodemográfico
,deumare-
duçãovoluntáriadanatalidade,observávelnoséculoXVIII,Tudoisso
estãligado(talvezatédemaisparaosolhosdesconfiadosdeumP.Vey-
nel).
Aconsequência dissotudo-queultrapassaoperíodoestudado
nestelivro,masquedesenvolviemoutroestudo-foiapolarizaçãoda
vidasocialnoséculoXIXemtornodafamíliaedaprofissão,eodesa-
parecimento(salvorarasexceções,comoaProvençadeM.Agulhone
M.Vovellejdaantigasociabilidade.
Umlivrotemsuavidaprópria,erapidamenteescapadasmãosde
seuautorparapertenceraumpúbliconemsempreconformeaoqueo
autorprevira.
Oqueaconteceufoicomoseasduastesesqueacabodeexpornão
sedirigissemexatamenteaomesmopúblico.
Asegunda
,quepareciavoltar-separaaexplicaçãoImediatado
presente,foiimediatamenteexploradaporpsicólogosesociólogos,es-
pecialmentenosEUA,ondeasciênciashumanassepreocuparammais
cedodoqueemqualqueroutrolugarcomascrisesdajuventude.Essas
crisestornavamevidenteadificuldade,quandonãoarepugnânciados
jovensempassarparaoestadoadulto.Ora,minhasanálisessugeriam
queessasituaçãopodiaseraconsequênciadoisolamentoprolongado
dosjovensnafamíliaenaescola .Elasmostravamtambémqueosenti-
mentodafamíliaeaescolarizaçãointensadajuventudeeramummes-
mofenómeno
,umfenômenorecente,relativamentedatâvel
tequeantes
afamíliasedistinguiamaldentrodeumespaçosocialmuitomaisdenso
equente ,
Ossociólogos
,ospsicólogos, osprópriospediatrasorientaram
meulivronessesentido,arrastando-meemsuatrilha:nosEUA,osjor-
nalistasmechamavamdesociólogofrancês,eumdiaeumetornei,se-
gundoumgrandejornalparisiense,umsociólogonorte-americano!
PREFÁCIO 13
Naépoca,essaacolhidateveparamimumgostoparadoxal,pois
foraemnomedapsicologiamodernaquenaFrançamehaviamsidofei-
tasalgumascríticas;
19
negligênciadascuriosidadesdapsicologiamo-
derna",disseA .Besançon,"concessõesexcessivasaofixismodapsico-
logiatradicional”,afirmouJ.
f
Flandrinjeêverdadequesempreme
foidifícilevitarasvelhaspalavrasequívocasehojetãoforademodaa
pontodesetornaremridículas,massempretãovivasdentrodacultura
moralistaehumanistaquefoiaminha.
Essascríticasantigassobreobomusodapsicologiamerecemuma
reflexão,eeisoqueeugostariadedizerhoje:
Umapessoapodetentarelaborarumahistóriadocomportamento,
ouseja,umahistóriapsicológica,semserelaprópriapsicólogaoupsi-
canalista,mantendo-seàdistânciadasteorias,dovocabulárioemesmo
dosmétodosdapsicologiamoderna,eaindaassim,interessaresses
mesmospsicólogosdentrodesuaárea.Seumsujeitonascehistoriador,
elesetornapsicólogodsuamodo,quenãoêcertamenteamesmados
psicólogosmodernos,massejuntaaelaeacompleta.Nessemomento,
ohistoriadoreopsicólogoseencontram,nemsempreaoníveldosméto-
dosquepodemse?diferentes,masaoníveldoassunto,damaneirade
colocaraquestão,ou,comosedizhoje,daproblemática.
Aabordageminversa,quevaidapsicologiaãhistória,tambémê
possível,comooprovaoêxitodeA,Besançon.Esseitinerário,contudo
,
apresentaalgunsperigosdosquaisM.Sorianonemsempreseesquivou
t
apesardetantasdescobertassaborosasecomparaçõesfelizes.Nacríti-
caquemedirigiu,A.Besançondeixavaclaroque"acriançanãoéape-
nasotraje,asbrincadeiras,aescola,nemmesmoosentimentodain-
fância[ouseja,modalidadeshistóricas,empiricamente perceptíveis] ;
elaêumapessoa,umprocesso,umahistória,queospsicólogostentam
reconstituir",ouseja,"umtermodecomparação N,Z.Davis
2
,um
excelentehistoriadordoséculoXVI,procurouessetermodecompara-
çãonomodeloconstruídoporpsicossociólogoscombaseemsuaexpe-
riênciadomundocontemporâneo.Semdúvida
,atentaçãodospsicólo-
gosdefugirparaforadeseumundoafimdecomprovarsuasteoriasé
grande,ecertamenteenriquecedora,querelaosconduzaparanossas
sociedadestradicionais,paraoladodeLutero,querosleveatéosúlti-
mos"selvagens”,Seométododeucertonocasodosetnólogos,asso-
ciedadestradicionaismeparecemmaisrecalcitrantes, Essetipode
abordagemconseguetraduzirparaalinguagemmoderna,comexcessi-
1A.Besançon,“Hisloireetpsychanalyse*\AmalesESC19,1964,p.242,n?2;J.L.
Flandrin,"Enfanceetsoríété",AnnalesESC19,1964,pp.
322.-329,
2N,Z.Davis,“TheReasonsofMhrule:YouthGroupsandCharivarisonSixteenth
CenturyFrance",PastandPresent50,fevereirode1971,pp,41-75.

14 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇABPAFAMÍLIA
vafacilidade,asrelaçõesdeCharlesPenaulteseufilhocomosendoas
relaçõesdeumpaiexageradoeumfilhomimado ,oquenadaacrescen-
taãcompreensãodenossomundodehoje-poisnãohádadosnovos
-
nemaoentendimentodomundoantigo-poishâumanacronismo
,eo
anacronismofalseiaacomparação .Contudo
tafobiadoanacronismo(o
defeitodoshistoriadores? jnãosignificanemumarecusaàcomparação
nemumaindiferençapelomundocontemporâneo:bemsabemosque
percebemosnopassadoprimeiroasdiferençasesódepoisassemelhan-
çascomotempoemquevivemos.
Seminhasegundateseencontrouumaacolhidaquaseunânime,a
primeira(aausênciadosentimentodainfâncianaIdadeMédia)foire-
cebidacommaisreservapeloshistoriadores .
Entretanto,hojepode-sedizerquesuasgrandeslinhasforamacei-
tas,Oshistoriadores-demógrafos reconheceramaindiferençaqueper-
sistiuatêmuitotardecomrelaçãoàscrianças,eoshistoriadoresdas
mentalidadesperceberamararidadedasalusõesàscriançaseãssuas
mortesnosdiáriosdefamília,comoodocatrabucheirodeLille,editado
porA .Lotün*Ficaramimpressionados,comoJ
.Bouchard,comaau-
sênciadefunçãosocializadoradafamíliafOstrabalhosdeM.Àgu-
Ihonsublinharamaimportânciada“sociabilidade" nascomunidades
ruraiseurbanasdoAncienRegime.
Masascríticassãomaisinstrutivasdoqueasaprovaçõesouas
concordâncias. Falareisobreduasdelas,umadeJ.L.Flandrin,eaou-
trade Z.Davis.
J.L.Flandrin
4
criticouumapreocupaçãomuitogrande,''obsessi-
va”,deminhaparte,comoproblemadaorigem
tquemelevaadenun-
ciarumainovaçãoabsolutaondehaveriaantesumamudançadenature-
za.Acríticaéjusta.Esteéumdefeitoquedificilmentepodeserevitado
quandoseprocedeporviaregressiva,comosemprefaçoemminhaspes-
quisas.Eleintroduzdeumaformademasiadoingênuaosentidodamu-
dança.que,narealidade,nãoéumainovaçãoabsoluta,esim
tnamaio-
riadoscasos,umarecodificQção.OexemplodadoporJ.L.Flandriné
bom:seaartemedievalrepresentavaacriançacomoumhomememes-
calareduzida,"issoseprendia,dizeletnãoàexistência,masãnature-
zadosentimentodainfância\Acriançaeraportantodiferentedoho-
mem,masapenasnotamanhoenaforça wenquantoasoutrascarac-
terísticaspermaneciam iguais.Seriaentãointeressantecomparara
criançaaoanão,queocupaumlugarimportantenatipologiamedieval
.
3J.Bouchard,Vnvillageimmobile ,1972.
4J,L.Flandrin,“Enfauceetsociéié*\op.cit.
PREFÁCIO 15
Acriançaéumanão,masumanãosegurodequenãopermanecerá
anão,salvoemcasodefeitiçaria ,Oanãonãoseriaemcompensação
umacriançacondenadaanãocrescer,emesmoasetornarimediata-
menteumvelhoencarquilhado?
aoutracríticaêadeN.Z,Davisnumnotávelestudointitulado
TheReasonsofMismle:YouthGroupsandCharivarisinSixteenth
CenturyFrance"\
Seuargumentoémaisoumenososeguinte:comopudeeususten-
tarqueasociedadetradicionalconfundiaascriançaseosjovenscomos
adultos,ignorandooconceitodejuventude
,seajuventudedesempenha-
vanascomunidadesruraisetambémurbanasumpapelpermanentede
organizaçãodasfestasedosjogos
,decontroledoscasamentosedasre-
laçõessexuais
fsancionadospeloscharivaris?M.Agulhon,porsuavez
t
emseubetolivrosobreospenitenteseosfranco-maçons
>consagrouum
capítuloâssociedadesdajuventudequeinteressamcadavezmaisaos
historiadoresdehoje
,namedidaemqueestessesentematraídospelas
culturaspopulares.
OproblemacolocadoporN.Z.Davisnãomeescapou ,Nopresen-
telivro,confessoquepreguiçosamente opusdelado,reduzindoàcondi-
çãode"vestígios
"
hábitosfolclóricoscujaextensãoeimportânciafo-
ramdemonstradasporN.Z.Davis,M.Agulhoneoutros,
Naverdade,eunâodeviaestarcomaconsciênciatranquila,pois
volteiaesteproblemanasprimeiraspáginasdeumahistóriadaeduca-
çãonaFrança Reconheci,emépocasanterioresãIdadeMédia,nas
áreasdecivilizaçãoruraleoral
a
existênciadeumaorganizaçãodas
comunidadesemciassesdeidade,comritosdepassagem,segundoo
modelodosetnólogos.Nessassociedades,cadaidadeteriasuafunção,e
aeducaçãoseriaentãotransmitidapelainiciação,e,nointeriordaclas-
sedeidade,pelaparticipaçãonosserviçosporelaassegurados.
Gostariaquemefossepermitidoabrirumparêntese
,emencionara
opiniãodeumjovemamigoarqueólogo.Visitávamosasescavaçõesde
Malta,emCrera,efalávamossemmuitasequênciasobreJanroy,Ho-
mero.Duby,sobreasestruturasformadasporclassesdeidadedoset-
nólogoseseureaparecimentonaAltaIdadeMédia
,quandoelemedisse
maisoumenososeguinte:emnossasantigascivilizações,jamaisperce-
bemosessasestruturasetnográficasemestadodeimobilidade,emsua
plenamaturidade,esim
.sempreemestadodesobrevivência,querseja
5Op.cií.
6Escritaentre1967e1970,emborapublicadaem1972:ImFranceetlesFrancais
1972,p.872.

16 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
naGréciahomérica,ounaIdadeMédiadascançõesdegesta.Eletinha
razão.Nãopodemosnegarnossatendênciaaprojetarcomdemasiada
exatidãoemnossasestruturastradicionaisasestruturashojepercebi-
daspelosetnólogosentreos"selvagens
"
contemporâneos.
Masfechemosoparênteseeaceitemosahipótesedeumasocieda-
de-origem,bemnoiníciodaAItaIdadeMédia
,queapresentariaasca-
racterísticasetnográficasoufolclóricascomumenteadmitidas.
Umagrandemudançainterveioentãonessasociedade,talveznaê-
pocadofeudalismoedoreforçodosantigosdomínios.Essamudança
afetouqeducação,ouseja,atransmissãodosaberedosvalores.Daí
emdiante,ouseja
,apartirdaIdadeMédia,aeducaçãopassouaseras-
seguradapelaaprendizagem.Ora
tapráticadaaprendizageméincom-
patívelcomosistemadeclassesdeidade
,ou,pelomenos
rtendeades-
truí-loaosegeneralizar.Considerofundamentalinsistirnaimportância
quesedeveatribuirãaprendizagem ,Elaforçaascriançasaviveremno
meiodosadultos,queassimlhescomunicamosavoir-faireeosavoir-
vivre,Amisturadeidadesdecorrentedaaprendizagemparece-meter
sidoumdostraçosdominantesdenossasociedadedemeadosdaIdade
MédiaatéoséculoXVII!.Nessascondições,asclassificaçõestradicio-
naispelaidadenãopodiamdeixardeseembaçareperdersuarazãode
ser
;
Ora
,écertoporémqueessasclassificaçõespersistiramnoquese
refereávigilânciasexualeáorganizaçãodúsfestas,econhecemosa
importânciadasfestasnavidaquotidianadenossasantigassociedades r
Comoconciliarapersistênciadaquiloquecertamenteeramuito
maisdoqueum"vestígio”comaexportaçãoprecocedascriançaspara
omeiodosadultos?
Nãonosestaríamosdeixandoenganar,apesardetodososargu-
mentoscontráriosdeN.Z.Davis,pelaambiguidadedapalavrajuventu-
de?Mesmoolatim,aindatãopróximo,nãofacilitavaadiscriminação,
jMerotinha25anosquandoTácitodisseaseurespeito:certefinitam
Neronispueritiametroburjuventaeadesse.Roburjuventae;eraa
forçadohomemjovem
,enãoaadolescência.
Qualeraaidadedoschefesdasconfrariasdejovensedeseuscom-
panheiros?AidadedeNeronaépocadamortedeBurro,aidadede
CondeemRocroy,aidadedaguerraoudasimulação-aidadedabra-
vata .Defato,essassociedadesdajuventudeeramsociedadesdesol-
teiros,emépocasemque
;nasclassespopulares,aspessoasgeralmente
secasavamtarde.Aoposição,portanto,eraentreocasadoeonão
7UmsobrinhodeMazarin,PaoloMancinLtinhaapenas15anosquandomorreubra-
vamente.assassinadojuntoaosmurosdeParis,nofinaldaFronda.Cf.G.DethanL
Mazarin etsesantis
,Paris,1968.
PREFACIO 17
casado,entreaquelequetinhaumacasaprópriaeaquelequenãotinha,
quemoravanacasadeoutrem,entreomenosinstáveleomenosestável .
Portanto,éprecisosemdúvidaadmitiraexistênciadesociedades
dejovens,masnosentidodecelibatários.A"juventude"doscelibatá-
rios
tdoAncienRegime,nãoimplicavanemascaracterísticasque,tan-
tonaAntiguidadecomonassociedadesetnográficas,distinguiamoefe-
bodohomemmaduro,AristogttondeHarmódio\
-nemasquehoje
opõemosadolescentesaosadultos ,
Setivessedeescreverestelivrohoje,eumeprecaveriamelhorcon-
traatentaçãodaorigemabsoluta
,dopontozero,masasgrandeslinhas
continuariamasmesmas.Levariaemcontaapenasosdadosnovos,ein-
sistiriamaisnaIdadeMédiaeemseuoutonotãorico.
Emprimeirolugar,euchamariaaatençãoparaumfenômenomui-
toimportanteequecomeçaasermaisconhecido:apersistênciaatêo
fimdoséculoXVIIdoinfanticídiotolerado.Nãosetratavadeumaprá-
ticaaceita,comoaexposiçãoemRoma.Oinfanticídioeraumcrime
severamentepunido.Noentanto
,erapraticadoemsegredo
rcorrente-
mente.talvez,camuflado tsobaformadeumacidente:ascriançasmor-
riamasfixiadasnaturalmentenacamadospais,ondedormiam.Nãose
fazianadaparaconservá-lasouparasalvá-las,
J.L.Flandrinanalisouessapráticaocultanumaconferênciada
SociétéduXVN
e
siècte(ciclode1972-1973,asairnaReviieduXVII
siêclei.Elemosiroucomoadiminuiçãodamortalidade infantilobservada
noséculoXVIIInãopodeserexplicadaporrazoesmédicasehigiêni-
cas;simplesmente,aspessoaspararamdedeixarmorreroudeajudara
morrerascriançasquenãoqueriamconservar .
NamesmasériedeconferênciasdaSociétéduXVII
e
siècle,oPe.
GvconfirmouainterpretaçãodeJ\L.Flandrin,citandotrechosdosRi-
tuaispós-tridentinosemqueosbisposproibiamcomumaveemênciaque
dáoquepensarqueascriançasfossempostasparadormirnacamados
pais,ondemuitasvezesmorriamasfixiadas,
Ofatodeajudaranaturezaafazerdesaparecercriaturastãopou-
codotadasdeumsersuficientenãoeraconfessado,mastampoucoera
consideradocomvergonha.Faziapartedascoisasmoralmenteneutras
,
condenadaspelaéticadaIgrejaedoEstado,maspraticadasemsegre-
do,numasemiconsciência,nolimitedavontade,doesquecimentoeda
faltadejeito.
8PensonofamosogrupodomuseudeNápoles.

18 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
Avidadacriançaeraentãoconsideradacomamesmaambiguida-
decomquehojeseconsideraadofeto,comadiferençadequeoinfan-
ticídioeraabafadonosilêncio
renquantooabortoéreivindicadoemvoz
alta-masestaêiodaadiferençaentreumacivilizaçãodosegredoe
umacivilizaçãodaexibição.Chegariaumtempo
tnoséculoXVI!
,em
queasage-femme,aparteira
*essafeiticeirabrancarecuperadapelos
Poderespúblicos,teriaamissãodeprotegeracriança
„eemqueospais,
melhorinformadospelosreformadores
rtornadosmaissensíveisàmor-
te
,setornariammaisvigilantesedesejariamconservarseusfilhosa
qualquerpreço.
Éexatamenteoinversodaevoluçãoemdireçãoàliberdadedo
aborto
,quesedesenrolasobanossavista.NoséculoXVII,deumin-
fanticídiosecretamenteadmitidopassou-seaumrespeitocadavezmais
exigentepetavidadacriança.
Seavidafísicadacriançacontavaaindatãopouco,seriadeespe-
rar,numasociedadeunanimemente cristã,ummaiorcuidadocomsua
vidafutura,apósamorte.Eis-nosportantolevadosàapaixonantehistó-
riadobatismo,daidadedobatismo
rdomododeadministração,que
sintonãoterabordadoemmeulivro.Esperoqueesseassuntotenteal-
gumjovempesquisador.Elepermitiriaperceberaatitudediantedavida
edainfânciaemépocasremotas,pobresdedocumentos,nãoparacon-
firmaroumodificaradatadoiníciodeumciclo
tmasparamostrarco-
mo,dentrodeumpolimorfismo contínuo,asmentalidadesantigasse
transformaramaossolavancos
,atravésdeumasériedepequenasmu-
danças.Ahistóriadobatismomepareceserumbomexemplodesse
tipodeevoluçãoemespiral.
Proporeiãreflexãodospesquisadoresaseguintehipótese:
Numasociedadeunanimemente cristã,comoassociedadesmedie-
vais,todohomemetodamulherdeviamserbatizadosedefatooeram
t
masquandoecomo?EmmeadosdaIdadeMedia,tem-seaimpressão
(aserconflrmada )dequeosadultosnemsempremanifestavammuito
empenhoembatizarlogoascrianças,eesqueciam-sedefazê-lonosca-
sosgraves.Numasociedadeunanimementecristã
telessecomportavam
quasedamesmaformacomoosindiferentesdenossassociedades lei-
gas.Imaginoqueascoisassepassassemdaseguintemaneira;osbatis-
moseramministradosemdatasfixas,duasvezesporano,navésperada
PáscoaenavésperadePentecostes.Nãohaviaaindaregistrosdecato-
licidade,nemcertidões;nadaforçavaosindivíduos,alémdesuapró-
priaconsciência,apressãodaopiniãopúblicaeomedodeumaautori-
dadelongínqua,negligenteedesanm
1
Batizavam-seentãoascrian-
çasquandobemseentendia
,eatrasosdeváriosanospodiamserfre-
quentes rOsbatistériosdosséculosXIeXIIsãoaliásgrandescubas,se-
PREFÁCIO 19
melhantesabanheiras,ondeacriança
rquenãodeviamaissermuitope-
quena ,aindaeramergulhada ;cubasprofundasemqueospintoresdevi-
traismergulhavam Cíóvisparabaiizã-loouS.Joãoparatorturá-lo
-
pequenasbanheirasretangularesemformadesarcófago,
Seacriançamorressenointervalodosbatismoscoletivos
(ninguém
secomoviaalémdamedida.
Ecertoqueospastoresmedievaisseinquietaramcomesseestado
deespírito,emultiplicaramoslocaisdecultoafimdepermitiraospa-
dreschegarmaisdepressaàcabeceiradamãequedavaãluz.Uma
pressãocadavezmaior,sobretudodapartedosmendicantes
rSeexerceu
sobreasfamíliasparaforçá-lasaministrarobatismoomaiscedo
possívelapósonascimento.Houveentãoumarenúnciaaosbatismosco-
letivos,queimpunhamumaesperamuitolonga,earegra
,seguidapelo
uso,passouaserobatismodacriancinhapequena.Aimersãofoiaban-
donadaemfavordoritoatualdeaspersão,
fTeriahavidoumritointer-
mediárioquecombinavaaimersãoeaaspersão.
)Enfim,asparteiras
foramincumbidasdebatizarascriançasquenãonasciamatermo
,
us-
queinutero.
Maistarde,apartirdoséculoXVI,osregistrosdecatolicidade
permitiramocontroleporpanedosvisitantesdiocesanos
,
porexemplo,
daadministraçãodobatismo(controleestequenãoexistiaantes).Mas
nassensibilidades,apartidajádeviaestarganha,provavelmentedesde
oséculoXIV.OséculoXIVmeparecetersidoomomentomaisforte
dessahistória.Foientãoqueascriançassetornarammaisnumerosas
nonovofolcloredosMiradesNotre-Dame
tdequemeutilizeino
capítulo"ADescobertadaInfância”.
Nessaâreadomiraculoso,éprecisofazerumamençãoespeciala
umtipodemilagreque,creioeu,deveteraparecidoentãoouumpouco
maistarde;aressurreiçãodascriançasmortassembatismo,pelotempo
exatodereceber sacramento. J.Toussaert
*
contaummilagredes-
segêneroocorridoemPoperinghe,em11demarçode1479:Mastrata-
va-sedeummilagreoriginal,inesperado,extraordinário,comoainda
nãoseconheciammuitos.NosséculosXVIeXVII,essesmilagresha-
viam-setornadobanais,eexistiamsantuáriosespecializadosnessegê-
nerodeprodígios,quenãosurpreendiammaisninguém.M.Bernosana-
lisouessefenômenocomsutileza,apropósitodeummilagreocorrido
naigrejadaAnnonciadedeA-en-Provence,noprimeirodomingoda
Quaresmade1558.Omilagrenãoeramaisaressurreição,fenômeno
comumnessaigrejaondeerahábitocolocarospequenoscadáveres
sobreoaliareesperarpelossinaisfrequentesdeumareanimaçãopara
batizá-los *Oquesurpreendiaeperturbavaeraoacendimentosobrena-
9J.Toussaert.LeSeniímentreligieuxenFlútidreàíajmduMoyenAge,Paris,1963.

20 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLlA
íuraldeumavetaduranteasuspensãodamorte:esteeraofatoreal-
menteextraordinário, enâoareanimação
ro
.
Em1479
,ofatodeaspessoasestaremacostumadasaindanãoha-
viabanidooassombro:certamente
,aindanãoseestavalongedaorigem
dadevoção.
Portanto,foicom.oseaspessoastivessemcomeçadoadescobrira
almadascriançasantesdeseucorpo,sobapressãodastendênciasre-
formadorasdaIgreja.Masquandoavontadedoslitterati/oiaceita,ela
foiimediatamentefolclorizada.eacriançacomeçousuacarreirapopu-
larcomoheroínadeumnovofolclorereligioso
>
Umoutrofato,cujaimportâncianãofoisuficientementesublinha-
daemmeulivro,aindanosdeteráumpoucomaisnesseséculoXIV.
Trata-sedostúmulos.Êverdadequeeudissealgumaspalavrasaesse
respeitonocapítulo
44
ADescobertadaInfância\Mosalgumaspesqui-
sasrecentessobreaatitudediantedamortepermitem-meserhojemais
preciso .
Entreasinúmerasinscriçõesfuneráriasdosquatroprimeirossécu-
losdenossaera,queemtodaapartesolicitamovisitantedeRoma
,
muitasfalamdecrianças,emesmodecriancinhasdepoucosmesesde
idade:fulanoefulana,paisconsternados,erigiramestemonumentoá
memóriadeseufilhobem-amado,mortoaospoucosmesesouanosde
vida(tantosanos
ttantosmesesetantosdiaslEmRoma
,naGãliaena
Renânia,numerosostúmulosesculpidosreuniamnomesmomonumento
asimagensdocasaleseusfilhos .Emseguida,apartirdosséculosV-VI
aproximadamente, afamíliaeacriançadesapareceramdasrepresenta-
çõesedasinscriçõesfunerárias.Quandoousodoretratoretornou
,nos
séculosXl-XU,ostúmulospassaramaserindividuais,comomaridoe
amulherseparados, e,êclaro
tnãohaviatúmulosesculpidosdecrian-
ças.EmFomevrault,ostúmulosdosdoisreisPlantagenetasestãobem
separados.
Ohábitodereunirosdois,eàjvezesostrêscônjuges (omaridoe
suasduasmulheressucessivas
)ttornou-semaisfrequentenoséculo
XIV,épocaemqueapareceramtambém,emboraaindararos,ostúmu-
loscomfigurasdecriancinhas,Essacoincidêncianâofoifortuita.No
capítulo“ADescobertadaInfância\citeiasesculturasde1378dos
pequenospríncipesdeAmiens.Mas,nessecaso,tratava-sedecrianças
reais,
NaigrejadeTaverny,podemosverduaslajesmuraiscomfigurase
inscrições,quesãotúmulosdecriançasdafamíliaMontmorency.A
maisbemconservadaêãdeCharlesdeMontmorency, falecidoem
1369.Acriançafoirepresentadaenroladaemseuscueiros,oquenâo
10M.Bernos.“Reflexionsurunmiracle",AmaiesduMidi82,1970.
PREFÁCIO
21
erafreqüentenaépoca.Eisainscrição,bastantepretenciosa:HicMa-
netinclususadolescensetpuerulus/deMontmorencíKarolustomba
jacetista/annomílJeCterparadisiisensiítiter/aesexagesímono-
vemsímuladdasiníllo/gaudeatinchristotemporeperpetuo.Charles
tinhaummeio-irmão,Jean,mortoem1352.Seutúmulosubsiste,mas
osrelevosdealabastro,demasiadofrágeis,desapareceram, demodo
quenãosesabecomoacriançafoirepresentada-talveztambémenro-
ladaemseuscueiros.Seuepitáfioemfrancêsémaissimples:
"Aquijaz
JehandeMontmorency
routrorafilhodonobreepoderosoCharles
fse-
nhordeMontmorency,mortonoanodagraçademiltrezentosecin-
quentaedois,nodia29dejulho.”
Nosdoiscasos,emqueháumarepresentaçãoesculpidadascrian-
ças.oepitáfiodizonomedopaieadatadamorte,masnãofornecenem
onomedamãenemaidadedacriança,esabemosquenoséculoXIVa
idadedodefuntogeralmenteeraespecificada
,
NoséculoXV
rostúmulosdecriançasepaisreunidosoudecrian-
çassozinhastornaram-semaisfrequentes
,
e,noséculoXVI
rpassaram
asercomuns,comoodemonstreibaseadonorepertóriodeGaignières.
Masessestúmulosesculpidosougravadoseramreservadosafamílias
deumacertaimportânciasocial(emboraaslajesplanassetivessemtor-
nadoobjetodeumafabricaçãoartesanalemsérie).Maisfrequentes
eramospequenos“quadros”murais,reduzidosaumainscrição, tisve-
zescomumapequenailustraçãoreligiosa.Ora,algunsdessesepitáfios
simplesreferiam-seacrianças,eseuestiloseinspiravadiretamentena
epigrafialatinaantiga.Retomara-seportantootemadasaudadedos
paisdacriançaquepartiramuitocedo.
Eisumdessesepitáfios,datadode1471
,daigrejadeSta.Mariain
Campitelli,emRoma
11
:PetroAlbertoníoadolescentulo/cujus annos
ingeniumexcedebat(acriançanotávelporsuaprecocidade
,opequeno
prodígio)GregoríusetAlteríaparentes/unico etdulcissimo(particu-
larmentechoradoporqueerafilhoúnico
,eissoem1471
)
posuerequi
vixitannosivM.Ill/obittMCCCCLXXI,
Voltemosaotemadacriançaenroladaemseuscueiros.
FoisomentenoséculoXVIIqueosartistascomeçaramarepresen-
taracriançarealnanudezdoputto.Antes,elaapareciaenroladaem
cueirosouvestida.Sabemos,poroutrolado
,quedesdeaIdadeMédiaa
almaerarepresentadasobaformadeumacriançanua.
Ora
,existemalgunscasosrarosecuriososemqueaalmaaparece
tambémenroladaemcueiros.EmRoma,naigrejadeSta,Mariain
IIForcella,X11L788.

22 HISTÓRIASOCIAL,DACRÍANCAEDAFAMÍLIA
Trastevere,umaassunçãodaVirgemdoiníciodoséculoXVmostraa
almadaVirgemsobaformadeumacriançaenroladaemcueiros,nos
braçosdeCristo,
NomuseudeLuxemburgo
,háumtúmulode1590emqueuma
criançadecueirosélevadaparaocéupordoisanjos .Nãoéaimagem
deumacriancinhamorta.Anotaexplicativanosinformaqueodefunto
éumhomemde19anos
reportanto,acriançadecueirosrepresentasua
alma.
Essetipoderepresentaçãonãoêfrequente
,masconhece-seaome-
nosumcasomaisantigo,epodeserquehouvesseumatradiçãoIcono-
gráficonessesentido,OmuseudeVienaconservaummarfimbizantino
dofimdoséculoXemqueaalmadaVirgemtambémfoirepresentada
sobaformadeumacriançadecueiros.Essarepresentaçãodaalma
bem-aventuradasobaformadeumacriança,namaioriadoscasosidea-
lizadaenua
rásvezesrealistaeenroladaemcueiros,devesercompara-
daaoquefoiditoacimasobreoinfanticídioeobatismo ,
Defatorparaosespiritualistasmedievaisqueestãonaorigemdes-
setipodeiconografia,aalmadoeleitopossuíaamesmainocênciainve-
jáveldacriançabatizada,numaépocaemque,entretanto,naprática
comum,acriançaeraumacoisadivertidamaspoucoimportante .
Écuriosoconstatarqueaalmadeixoudeserrepresentadasoba
formadecriançanoséculoXVI,quandoacriançapassouaserrepre-
sentadaporelamesma,eosretratosdecriançasvivasemortassetor-
narammaisfrequentes.
Umcuriosomonumentofunerárioconservadonomuseuarqueoló-
gicodeSenlismostracomoasituaçãoseinverteunofimdoséculo
XVII:eleéconsagradoàmemóriadamulherdePierrePuget,morta
emSenlisem1673deumacesariana.Amulheraparecelevadaparao
céunomeiodeummontedenuvens,naposedaoração,queêtambéma
expressãodarenúncia,enquantoacriançaqueelaquissalvaraparece
nua
,estendendo-lheapalmadomartíriocomumadasmãos,e,coma
outra,agitandoumabandeirolacomainscriçãoMeruisti.Acriança
aquisaiudoanonimato.Havia-setornadomuitopersonalizadaparare-
presentarummododeserdoalém,e,poroutrolado,aalmaestavamui-
toligadaàscaracterísticas originaisdoindivíduoparaserevocadasob
ostraçosimpessoaisdeumaalegoria.Daíemdiante,asrelaçõesentre
osdefuntoseossobreviventesseriamtaisqueosúltimosdesejariam
lembrareconservarosprimeirosemcasa,enãomaisapenasnaigreja
ounotúmulo,
NomuseuMagniendeDijonexisteumapinturaatribuídaaHya-
cintheRigaud .Elamostraummeninoeumameninadeaspectovivo,e,
aseulado,oretratoemolduradoporummedalhãodeumamulherma-
dura,deluto,queparecemorta.Ora,tudolevaacrerqueamulherdo
medalhãoestavabemviva,masseconsideravacomoumamorta,cuja
PREFÁCIO
23
lembrançaeraconservadaporumretratosemifunerário;poroutrola-
do,elamandarapintarseusfilhos,estessimrealmentemortos,comto-
dasasaparênciasdavida.
FoinofimdoséculoXVIIeiníciodoXVIIIquesituei,partindode
fontesprincipalmentefrancesas,orecolhimentodafamílialongeda
rua,dapraça,davidacoletiva,esuaretraçãodentrodeumacasame-
lhordefendidacontraosintrusosemelhorpreparadaparaaintimidade.
Essanovaorganizaçãodoespaçoprivadohaviasidoobtidaatravésda
independênciadoscômodos,quesecomunicavampormeiodeumcorre-
dor(emlugardeseabriremumparaooutro)edesuaespecialização
funcional
fsaladevisitas,saladejantar,quartodedormiretc.).Umar-
tigomuitointeressantedeR.A.GoldthwaitemostraqueemFlorença,
jánoséculoXV,podia-seobservarumaprivatizaçãodavidafamiliar
bastanteanáloga
,adespeitodecertasdiferenças
**.Oautorapóiasua
argumentaçãonumaanálisedospaláciosfiorentinos,desuaaparência
exterioredoqueêpossívelsabersobresuaorganizaçãointerna.Sua
análiserefere-seportantoafamíliaspatrícias.
OpalácioflorentinodosséculosXIII-XIVcaracterizava-se princi-
palmentepelatorre,destinadaàdefesa,epelaloggiaquedavaparaa
ruanoandartérreo,ondeosparentes,
'
amigoseclientessereuniam
paraassistirãvidapúblicadobairroedacidadeedelaparticipar.Não
haviaentãosoluçãodecontinuidadeentreavidapúblicaeavidafami-
liar:umaprolongavaaoutra,excetoemcasodecrise,quandoogrupo
ameaçadoserefugiavanatorre.
Anãoserpelatorreepelaloggia,opaláciomalsedistinguiade
suavizinhançaurbana.Noníveldarua,oandartérreodasconstruções
compunha-sedearcadasqueseprolongavamdeumacasaaoutra:eram
asentradasdaslojas,mastambémoacessodospaláciosedesuasesca-
darias.Nointeriortampoucohaviaunidade
,eoespaçonãocoincidia
comodafamília:aspeçasatribuídasàfamíliaprincipalprolongavam-
sepelacasaaolado,enquanto,poroutrolado,algunslocatáriosocupa-
vampartescentrais.
NoséculoXV,opalácioflorentinomodificousuaplanta,seuas-
pectoeseusentido.Antesdemaisnada,opaláciotornou-seumaunida-
demonumental
,ummaciçosoltodavizinhança.Aslojasdesaparece-
ram,assimcomoosocupantesestranhos.Oespaçoassimseparadofoi
resenadoàfamília,umafamíliapoucoextensa.Asloggiaquedavam
12RiehardA,Goldthwaite,'TheFíorentmePalaceasDomesticArchitecture”,
Amer.Mist.Rev.,11,outubrode 1972,pp,977-1012,

24 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
paraaruaforamfechadasousuprimidas,Seopaláciopassouateste-
munharmelhordoqueantesopoderiodeumafamília,eledeixoutam-
bémdeseabrirparaoexterior.Avidaquotidianapassouaconcentrar-
senointeriordeumquadriláterorude
,asalvodosbarulhosedasindis-
criçõesdarua.
“Opalácio",escreveR.Goldthwaite,
'
‘pertenciaaummundonovo
deprivacy
Preservadoaumgruporelativamentepequeno."Defato,o
númerodecômodosnãoeraelevado:nopalácioStrozzi,apenasuman-
darerahabitado,enãohaviamaisdoqueumadúziadecômodos .Êver-
dadequetodosessescômodoseramenfileirados,enãohaviaumcorre-
dorouumespaçocentraldecirculação
,oquenãopermitiaportanto
queosmoradoresseisolassemefizessemrespeitarumaverdadeirainti-
midade.comoaarquiteturadoséculoXVIIItornariapossível.
Sabemos,poroutrolado
,queafamíliaflorentinadoquattrocento
nãoeranumerosaOpalácioflorentinanãoabrigavaomundodeser-
vidoresecriados,comunsnasgrandescasasdaFrançaedaInglaterra
nosséculosXV-XVIetambémnaItáliabarrocadoséculoXVII:ele
nãoabrigavamaisdoquedoisoutrêsservidores,quenemsempreeram
conservadospormuitotempo.
Omodeloflorentinoêportantodiferentedoqueapresentei.Pode-
ria.sercomparadoaodoséculoXVIIIfrancês,pelotamanhodafamília
eaexclusãodoscriados,sesuaprivatizaçãonãosetraduzissenumtipo
deespaçoaindapoucocompatívelcomaintimidade.
Aoriginalidadeflorentinaresideportantonumamisturadeintimi-
dadecomvastidão,bemanalisadaporR.Goldthwaite:essespalácios
"eramevidentementeconcebidosparaatribuiraumafamíliapequena
ummundoprivado,ummundopróprio,masextraordinariamente vasto,
queseestendiamuitoalémdospoucoscômodosondeaspessoasviviam,
Narealidade
tamelhormaneiradesublinharanovidadedessepalácioê
descrevê-locomoumaexpansãodoespaçoprivadoapartirdonúcleo
constituídoporumapartamentodedimensõesmédias
f
Écertoquenãoseconheceadestinaçãodoscômodosdehabita-
ção,seéquejátinham.Talvezostudiolo,ancestraldogabinetefran-
cês
,tenhasido,nessasociedadehumanista,aprimeiraformadeespe-
cializaçãodoespaçoprivado *Enoentanto,nessamesmaépoca,come-
çou-seaornamentarcompequenosobjetos,semelhantesaosbibelôs
franceses,essescômodossemfunçãoprecisa,masdestinadosàvidapri-
vada,Essehábitonosdáamesmaimpressãodegostopelobem-estar
privadoquesentimosdiantedaspinturasrepresentandoonascimento
13DHerlihy,"VieilliràFlorenceauQuattrocento",AnnalesESC,24,novembro-
dezembrode1969,p.1340,
PREFÁCIO
25
daVirgem,quersejamflamengas,francesas,alemãsouitalianas
te
diantedetodasasrepresentaçõesdeinterioresdoséculoXV,emqueo
pintorsecomprazemmostrarosobjetospreciososoufamiliares.
Énormalquenumespaçotaoprivatizadotenhasurgidoumsenti-
mentonovoentreosmembrosdafamília,emaisparticularmente entre
amãeeacriança:osentimentodefamília,"essacultura",dizR.
Goldthwaite, **centralizava-senasmulheresenascrianças,comumin-
teresserenovadopelaeducaçãodascriançaseumanotávelelevaçãodo
estatutodamulher. ..Comoexplicardeoutraformaafascinação,a
quaseobsessãopelascriançasepelarelaçãomãe-criança,quetalvezse-
jaoúnicotemarealmenteessencialdoRenascimento
,comseusputti
P
suascriançaseseusadolescentes,suasmadonassecularizadaseseusre-
tratosdemulheres?"
SeopaláciodoRenascimentoeraportanto,adespeitodesuasvas-
tasdimensões,reservadoàfamílianuclear,recolhidaatrásdesuaspa-
redesmaciças,opaláciobarroco
,comoobservaR.Goldthwaite,era
maisabertoaomovimentodacriadagemedagrandeclientela,ese
aproximavamaisdomodelodacasagrandefrancesa(castelo,mansão,
hotelougrandecasarural
}dosséculosXVI-XVII,antesdadivisãoem
apartamentosindependentesdoséculoXVIII.
OepisódioflorentinodoséculoXVéimportanteesugestivo.Eujá
haviaobservadoecomentadoemmeulivroafreqüência
,desdeoséculo
XVeduranteoXVI
fdossinaisdeumreconhecimentodainfância,tan-
tonaiconografiacomonaeducação,comocolégio.MasRGoldthwai-
tedescobriunopalácioflorentinoumarelaçãomuitoprecisaentreoiní-
ciodosentimentodafamíliaedacriançaeumaorganizaçãoparticular
doespaço .Somoslevadosaestendersuasconclusõeseasuporumare-
laçãoanálogaentreabuscadaintimidadefamiliarepessoaletodasas
representaçõesdeinteriores,desdeaminiaturadoséculoXIVatéas
pinturasdaescolaholandesa.
Odossiêestálongedeserfechado.Ahistóriadafamíliaestáape-
nasseiniciando,emalcomeçaadespertarointeressedapesquisa .
Apósumlongosilêncio,ei-laqueseencaminhaemváriasdireções.Seus
caminhosforampreparadospelahistóriademográfica,esóesperoque
elanãosofraamesmainflação.Hoje,operíodomaisestudadovaido
séculoXVIaoXVIII.AescoladeCambridge,comP.LasletteE.A.
Wrigley,empenhadaemesclarecerdeumavezportodasacomposição
dafamília,extensaouconjugal
14
,provocoualgumasreaçõesnaFran-
14Colóquiode1969emCambridge:"HousetioidandFamilytnPastTime".Comple-
tareiabibliografiacomasseguintesobras: I,PinchbeckeM,Hewítt,ChüdreninEn
-
gíisítSffdetv ,vol.[.Londres,Toronto,1969;K.A.Lokridge,ANewEnglandTown,

26 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
ça:aprovaçãonoqueconcerneãFrançadoNorte
,reservasnoquecon-
cerneàFrançadoSul,Osjovenshistoriadoresfrancesesparecemmais
preocupadoscomaformação (J,M.Gouesse)ouadissolução(A.Lot-
tin)docasaiOutros
,ainda,comoohistoriadornorte-americano E.
Shorter,seinteressampeiossinaisanunciadores
,nofimdoséculo
XVIII,deumamaiorliberdadedecostumes.Abibliografiacomeçaase
alongar:poderáserencontrada
,bemcomoasituaçãoatualdosproble-
mas
,emtrêsnúmerosdosAnnalesESC
Esperemosapenasqueahistóriadafamílianãofiqueabafadasob
aabundânciadepublicações,inspiradasporseusucesso,comoaconte-
ceucomsuajovemancestral,ahistóriademográfica.
AmultiplicaçãodaspesquisassobreoperíododoséculoXVIIao
XVIII,facilitadapelaexistênciadeumadocumentaçãomaisricado
queseimaginava,confirmaráouinvalidaráalgumashipóteses.Contu-
do,numfutüròquejáseanuncia,corremosoriscoderepetiradnau-
seamos'-mesmostemas,compequenosprogressos
,
quejustificariam
malaamplitudedosinvestimentos intelectuaiseinformáticos
,
Aocontrário,édoladodaIdadeMédiaedaAntiguidadequedeve-
riamvirasinformaçõesmaisdecisivas.Esperamoscomimpaciênciape-
losprimeirosresultadosdaspesquisasdeM>Mansonsobreosbrinque-
dos,asbonecas,emúltimaanálise,ascrianças,duranteaAníigüidade.
Seriaprecisotambéminterrogarmelhordoqueoquefizasfontesme-
dievais,osinesgotáveisséculosXIVeXV,tãoimportantesparaofutu-
rodenossacivilização,e
tantesdeles,afronteiracapitaldosséculos
XI-XII
,emaisatrásainda.
Ahistóriadasmentalidades êsempre,queroadmitaounão,uma
históriacomparativaeregressiva ,Partimosnecessariamentedoquesa-
bemossobreocomportamentodohomemdehoje,comodeummodelo
aoqualcomparamososdadosdopassado-comacondiçãode,aseguir,
consideraromodelonovo,construídocomoauxíliodosdadosdopassa-
do,comoumasegundaorigem
,edescernovamenteatêopresente,mo-
dificandoaimagemingênuaquetínhamosnoinício.
Nopontoemqueestamoshoje,asrelaçõesentreosséculosXVII-
XVIIIeosséculosXIX-XXnãoestãoesgotadas,masosprogressos
reaissóserãoobtidoscomumaobstinaçãocansativa.Poroutrolado,a
decifraçãodosséculos-edosmilênios-queprecederamoséculoXVI
NovaYork,1970;J.Demos,AUnteCommonweatih
,NovaYork,1970;artigosdos
AnnalesESCcitadosadiante.
15AnnalesESC,24,iv?6,1969,pp.1275*1430;27,n?s.4-5,1972,pp.799-1233;27,n*
6,1972,pp.1351-1388.
PREFÁCIO 27
poderíanostrazerumanovadimensão.Êdaíquedevemosesperaros
progressosdecisivos
'
*.
Maisons-Laffitte
1973
16Nestaspoucaspáginas,limitei-meaostemasdainfânciaedafamília,deixandode
ladoosproblemasparticularesdaeducaçãoedaescola,Estesúltimos,apartirde
1960,tomaram-seobjetodenumerosostrabalhos,comoporexemplo:P.Riché,Edu-
caiionetCulturedansVOccidembarbare.Paris,1962;G.Snyders,LaPédagogieen
FranceauxXVIIetXVIItsièctes.Paris, í963;H.Derreai,UnMissionairedelaContre-
Reforme.SaintPierreFourier,Paris,1965;Ph.Ariès,“ProblèmesderéducatiorT,m
LaFranceetiesFrançais
,ene.LaPlêiade,1972,pp.869-961.Umpanoramageralfoi
apresentadonoColóquiodeMarselha,organizadoporR.Ducheneepublicadosobo
titulo“LeXVII*siècleetTéducation",narevistaMarseille
,n*88(fartasbibliogra-
fias).

J
I
,r
1.OSentimentodaInfância
1
AsIdadesdaVida
UmhomemdoséculoXVIouXVIIficariaespantadocomas
exigênciasdeidentidadecivilaquenósnossubmetemoscomnatura-
lidade,Assimquenossascriançascomeçamafalar,ensinamos-lhes
seunome,onomedeseuspaisesuaidade,Ficamosmuitoorgulho-
sosquandoPaulinho,aoserperguntadosobresuaidade,responde
corretamentequetemdoisanosemeio.Defato,sentímosqueéim-
portantequePaulinhonãoerre:queseriadeleseesquecessesuaida-
de?Nasavanaafricanaaidadeéaindaumanoçãobastanteobscura,
algonãotãoimportanteapontodenãopoderseresquecido.Masem
nossascivilizaçõestécnicas,comopoderíamosesqueceradataexata
denossonascimento, seacadaviagemtemosdeescrevê-lanaficha
depolíciadohotel,seacadacandidatura,acadarequerimento, a
cadaformulárioaserpreenchido,eDeussabequantosháequantos
haveránofuturo,ésempreprecisorecordá-la.Paulinhodarásuaida-
denaescolaelogosetornaráPauloN.daturmax.
Quandoarranjarseuprimeiroemprego,juntocomsuacarteira
detrabalho,receberáumnúmerodeinscriçãoquepassaráaacompa-

30 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
nharseunome.Aomesmotempo,eatémesmomaisdoquePaulo
N.,eleseráumnúmero,quecomeçaráporseusexo,seuanoemêsde
nascimento.Umdiachegaráemquetodososcidadãosterãoseunú-
meroderegistro:estaéametadosserviçosdeidentidade,Nossaper-
sonalidade cíviljáseexprimecommaiorprecisãoatravésdenossas
coordenadasdenascimentodoqueatravésdenossosobrenome.Es-
te,comotempo,poderiamuitobemnãodesaparecer,masficarre-
servadoàvidaparticular,enquantoumnúmerodeidentidade,em
queadatadenascimentoseriaumdoselementos,osubstituiriapara
ousocívil.NaIdadeMédia,oprimeironomejáforaconsiderado
umadesignaçãomuitoimprecisa,efoinecessáriocompletá-lopor
umsobrenomedefamília,muitasvezesumnomedelugar.Agora,
tornou-seconvenienteacrescentarumanovaprecisão,decaráternu-
mérico,aidade.Onomepertenceaomundodafantasia,enquantoo
sobrenomepertenceaomundodatradição.Aidade,quantidade le-
galmentemensurávelcomumaprecisãoquasedehoras,éprodutode
umoutromundo,odaexatidãoedonúmero.Hoje,nossoshábitos
deidentidade civilestãoligadosaomesmotempoaessestrêsmun-
dos.
Entretanto,existemdocumentosquenoscomprometem seria-
mente,quenósmesmosredigímos,mascujaredaçãonãoexigeain-
dicaçãodadatadenascimento.Degênerosbastantediferentes,esses
documentospodemsertítulosdecomércio,letrasdecâmbioouche-
ques,ouaindatestamentos.Todoseles,porém,foraminventadosem
épocasmuitoremotas,antesqueorigordaidentidademodernase
introduzissenoscostumes,Ainscriçãodonascimentonosregistros
paroquiaisfoiimpostaaospárocosdaFrançaporFrancisco I.Para
quefosserespeitada,foiprecisoqueessamedidaJaprescritapelaau-
toridadedosconcílios,fosseaceitapeloscostumes,quedurantemui-
totemposemantiveramavessosaorigordeumacontabilidadeabs-
trata.Acredita-sequefoisomentenoséculoXVIIIqueospárocos
passaramamanterseusregistroscomaexatidãoouaconsciênciade
exatidãoqueumEstadomodernoexigedeseusfuncionáriosderegis-
trocivil.Aimportânciapessoaldanoçãodeidadedeveter-seafirma-
doàmedidaqueosreformadoresreligiososecivisaimpuseramnos
documentos,começandopelascamadasmaisinstruídasdasocieda-
de,ouseja,noséculoXVI,aquelascamadasquepassavampelosco-
légios.NasmemóriasdosséculosXVIeXVIIqueconsulteiparare-
constituiralgunsexemplosdeescolaridade\nãoéraroencontrarno
iníciodanarrativaaidadeouadataeolugardenascimentodonar-
IVerparte11,cap>4.
ASIDADESDAVIDA
31
rador.Emcertoscasos,aidadechegaatornar-seobjetodeumaaten-
çãoespecial.Éinscritanosretratoscomoumsinalsuplementarde
individualização, deexatidãoedeautenticidade.Emnumerosos
retratosdoséculoXVI,encontramos inscriçõesdogênero:Aetaiis
suae29-ovigésimononoanodesuaidade,comadatadapintura
ANDNI1551*(retratodeJeanFernaguut,porPourbus,Bruges)
2
,
Nosretratosdepersonagensilustres,nosretratosdacorte,essarefe-
rênciaemgeralestáausente;elasubsistesejasobreatela,sejasobrea
molduraantigadosretratosdefamília,ligadaaumsimbolismo fa-
miliar.Umdosexemplosmaisantigostalvezsejaoadmirávelretrato
deMargarethaVanEyck:noalto,co(n)iuxm(eus)sJohn(hann)esme
c(om)plevitan(n)o1439?,17Junli(quantaprecisão:meumaridome
pintouem17dejunhode1439);eembaixo:Aeíasmeaírigintatrium
an{n)orum
f33anos.MuitasvezesessesretratosdoséculoXVIfor-
mampares:umrepresentaamulher,eooutroomarido.Osdoistra-
zemamesmadata,repetidaportantoduasvezes,aoladodaidaücde
cadaumdoscônjuges:asduastelasdePourbusrepresentandoJean
Fernaguutesuamulher,AdriennedeBuc\trazemamesmaindica-
ção:Atmodonüni1551;noretratodohomemlê-seAetaiissuae29
,
e,
nodamulher,19.Hácasostambémemqueosretratosdomaridoe
damulherseachamreunidosnamesmatela,comooretratodosVan
Gindertaelen atribuídoaPourbus,emqueocasalérepresentado
juntocomseusdoisfilhinhos.Omaridotrazumadasmãosnoqua-
drileapoiaaoutranoombrodamulher.Asduascriançasbrincama
seuspés.Adataé1559.Doladodomarido,aparecemsuasarmas
comainscriçãoaetusan.27,e,doladodamulher,asarmasdesua
famíliaeainscriçãoAetaiis,mec.20\Essesdadosdeidentidadecívil
assumemàsvezesopapeldeumaverdadeirafórmulaeptgráfica,
comonoquadrodeMartindeVoos,datadode1572,querepresenta
AntoonAnselme,ummagistradodeAntuérpia,suamulhereseus
doisfilhos '.Osdoiscônjugesestãosentadosdosladosopostosde
umamesa,umsegurandoomenino,eooutro,amenina.Entresuas
cabeças,noaltoenomeiodatela,apareceumabelafaixadeperga-
minho,cuidadosamenteornamentada,comaseguinteinscrição:con
-
cordiaeantoniianselmietjohannaeHooftmansfeliciq;propagim,
MartinodeVospiaore
>DDnaiusestilíeannMDXXXVidieIXfebr
uxorannMDLVDXVIdecembrliberiâAegidiusannMDLXXVXXI
AugustiJohannaannMDLXVIXXVIseptembr.Essainscriçãosugere
2ExposiçãodaGrangerie,"ORetratonaArteFlamenga", Paris,1952,n*67,n*í8.
3Op,cit.,n^s67e6&.
4Op.cit.,n?71
.
5Op.cii.,n
?
93,

32 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
omotivoqueinspiravaessaepigrafia:elapareceestarligadaaosenti-
mentodafamíliaeaseudesenvolvimento naépoca,
Essesretratosdefamíliadatadoseramdocumentosdehistória
familiar*comooseriamtrêsouquatroséculosmaistardeosálbuns
defotografias.Frutosdessemesmoespíritoeramosdiáriosdefamí-
lia,ondeeramanotados,alémdascontas,osacontecimentosdomés-
ticos,osnascimentoseasmortes.Nessesdiáriosseuniamapreocu-
paçãocomaprecisãocronológicaeosentimentofamiliar.Tratava-
semenosdascoordenadasdoindivíduodoquedasdosmembrosda
família:aspessoassentiamnecessidadededaràvidafamiliaruma
história,datando-a.Essacuriosapreocupaçãoemdatarnãoaparecia
apenasnosretratos,mastambémnosobjetosenamobília.Nosécu-
loXVII,generalizou-seohábitodegravaroupintarumadatanas
camas,cofres,baús,armários,colheresoucoposdecerimônia.A
datacorrespondiaaummomentosolenedahistóriafamiliar,geral-
menteumcasamento.Emcertasregiões,naAlsácia,naSuíça,na
ÁustriaenaEuropacentral,osmóveisdoséculoXVIIaoXIX,espe-
cialmenteosmóveispintados,eramdatados,trazendotambémo
nomedeseusdoisproprietários.ObserveinomuseudeThun,entre
outras,aseguinteinscriçãosobreumbaú:“HansBischof-1709
-
ElizabethMisier”.Àsvezes,aspessoassecontentavamcomsuasini-
ciaisdecadaladodadata,adatadocasamento.Essecostumeseria
muitodifundidonaFrança,esódesaparecerianofimdoséculoXIX:
umpesquisadordoMuseudeArteseTradiçõesPopulares*des-
cobriu,porexemplo,aseguinteinscriçãonummóveldaregiãoda
Haute-Loire:1873LTJV.Àinscriçãodasidadesoudeumadata
numretratoounumobjetocorrespondiaaomesmosentimentoque
tendiaadaràfamíliamaiorconsistência histórica.
Essegostopelainscriçãocronológica,emboratenhasubsistido
atémeadosdoséculoXIX,pelomenosentreascamadasmédias,de-
sapareceurapidamentenacidadeenacorte,ondefoilogoconsidera-
doingênuoeprovinciano.ApartirdemeadosdoséculoXVII,asins-
criçõestenderamadesaparecerdosquadros(podiamserencontradas
ainda,masempintoresdeprovínciaouprovincializantes).Àbela
mobíliadaépocaeraassinada,ou,quandodatada,era-odiscreta-
mente.
Apesardessaimportânciaqueaidadeadquiriunaepigrafiafa-
miliarnoséculoXVI,subsistiramnoscostumescuriososresquícios
dotempoemqueerararoedifícilumapessoalembrar-sedesuaida-
de.ObserveiacimaquenossoPaulinhosabesuaidadedesdeomo-
6MuseudeArteseTradiçõesPopulares.Exposiçãode1953.n*778.
ASIDADESDAVIDA 33
mentoemquecomeçaafalar.SanchoPançanãosabiaexatamentea
idadedesuafilha,aquem,entretanto,amavamuito:“Elapodeter
í5anos,oudoisanosamaisouamenos.Maséaltacomoumalança
efrescacomoumamanhãdeabril
7
...”Tratava-sedeumhomemdo
povo.NoséculoXVI,emesmonascategoriasescolarizadasemque
seobservarammaiscedohábitosdeprecisãomoderna,ascrianças
semdúvidasabiamsuaidade;masumhábitomuitocuriosodeboas-
maneirasobrigava-asanãoconfessá-laclaramente earesponder
comcertasreservas.QuandoohumanistaepedagogoThomasPlat-
ter,naturaldoVaiais,contaahistóriadesuavida®,dizcombastante
precisãoquandoeondenasceu,masseconsideraobrigadoaenvol-
verofatonumaprudenteparáfrase:“E,paracomeçar,nãohánada
queeupossagarantirmenosdoqueaépocaexatademeunascimen-
to.Quandotiveaidéiademeinformarsobreadatademeunasci-
mento,responderam-mequeeutinhavindoaomundoem1499,no
domingodaQuinquagésima,noexatomomentoemqueossinos
chamavamparaamissa”.Curiosamisturadeincertezaerigor.Na
verdade,nãosedevetomaressareservaaopédaletra:trata-sede
umareservadepraxe,lembrançadeumtempoemquenãosesabia
jamaisumadataexata.Osurpreendente équeessareservasetivesse
tornadoumhábitodeboas-maneiras, poiseraassimqueconvinha
dizeraprópriaidadeauminterlocutor.NosdiálogosdeCordier
9
,
doismeninosseinterrogamnaescola,duranteorecreio:“Quantos
anosvocêtem?-Trezeanos,comoouviminhamãedizer*\Mesmo
quandooshábitosdecronologiapessoaleramaceitospeloscostu-
mes,elesnãochegavamaseimporcomoumconhecimentopositivo,
enãodissipavamdeimediatoaantigaobscuridadedaidade,que
subsistiuaindaalgumtemponoshábitosdecivilidade.
As“idadesdavida”ocupamumlugarimportantenostratados
pseudocientífícosdaIdadeMédia.Seusautoresempregamumater-
minologiaquenosparecepuramenteverbal:infânciaepuerilidade,
juventudeeadolescência,velhiceesenilidade-cadaumadessaspa-
lavrasdesignandoumperíododiferentedavida.Desdeentão,adota-
mosalgumasdessaspalavrasparadesignarnoçõesabstratassomo
puerilidadeousenilidade,masestessentidosnâoestavamcontidos
nasprimeirasacepções.Defato,tratava-seoriginalmentedeumater-
minologiaerudita,quecomotemposetornoufamiliar.As“idades”,
“idadesdavida”,ou“idadesdohomem”correspondiamnoespírito
7DomQuixote
,parteII,cap.33.
8ViedeThomasFiatter[ovelho]
,
Lausanne,ed.E.Fick.1895.
9MathurinCordier, Colioques
,Parts.1586.

34 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
denossosancestraisanoçõespositivas,tâoconhecidas,tãorepetidas
etãousuais,quepassaramdodomíniodaciênciaaodaexperiência
comum.Hojeemdianãotemosmaisidéiadaimportânciadanoçãq
deidadenasantigasrepresentaçõesdomundo;Àidadedohomem
eraumacategoriacientíficadamesmaordemqueopesoouaveloci-
dadeosãoparanossoscontemporâneos. Pertenciaaumsistemade
descriçãoedeexplicação fisicaqueremontavaaosfilósofosjónicos
doséculoVIa.C.;queforarevividopeloscompiladoresmedievais
nosescritosdoImpérioBizantino,equeaindainspiravaosprimeiros
livrosimpressosdevulgarizaçãocientíficanoséculoXVI,Nãoten-
cionamosdeterminaraquisuaformulaçãoexataeseulugarnahistó-
riadasciências.Importa-nosapenasperceberemquemedidaessa
ciênciasehaviatornadofamiliar,seusconceitoshaviampassado
paraoshábitosmentais,eoqueelarepresentavanavidaquotidiana.
Compreenderemos melhoroproblemaexaminando aediçãode
1556
v
"LeGrandPropriêtairedetouteschoses.Tratava-sedeuma
compilaçãolatinadoséculoXIII,queretomavatodososdadosdos
escritoresdoImpérioBizantino,Considerou-seoportunotraduzi-la
paraofrancêsedar-lhe,atravésdaimpressão,umamaiordifusão:
essaciênciaantigo-medieval eraportanto,emmeadosdoséculo
XVI,objetodevulgarização.LeGrandPropriêtairedetouteschosesé
umaenciclopédiadetodososconhecimentosprofanosesacros,uma
espéciedeGrand-Larousse,masqueteriaumaconcepçãonão-
analíticaetraduziríaaunidadeessencialdanaturezaedeDeus,Uma
física,umametafísica,umahistórianatural,umafisiologiaeuma
anatomiahumanas,umtratadodemedicinaedehigiene,umaastro-
nomiaeaomesmotempoumateologia.VintelivrostratamdeDeus,
dosanjos,doselementos,dohomemedeseucorpo,dasdoenças,do
céu,dotempo,damatéria,doar,-dofogo,dospássarosetc.Oúltimo
livroéconsagradoaosnúmeroseàsmedidas.Haviatambémnesses
livrosalgumasreceitaspráticas.Umaidéiageraiemanavadaobra,
idéiaeruditaquelogosetornouextremamentepopular:aidéiada
unidadefundamentaldanatureza,dasolidariedadeexistenteentre
todososfenômenosdanatureza,quenãoseseparamdasmanifesta-
çõessobrenaturais.Aidéiadequenãohaviaoposiçãoentreonatural
eosobrenatural pertenciaaomesmotempoàscrençaspopulares
herdadasdopaganismo,eaumaciênciatantofísicaquantoteológi-
ca.Eudiriaqueessaconcepçãorigorosadaunidadedanatureza
deveserconsideradaresponsávelpeloatrasododesenvolvimento
10LeOrandPropriêtairedetouteschoses
,trêsutileetprofitablepourleniríecorpsen
saruê
,porB.deGlanvílle,traduzidoparaofrancêsporJeanCorbiçhcm, 1556.
ASIDADESDAVIDA
35
cientifico,muitomaisdoqueaautoridadedaTradição,dosAntigos
oudaEscritura*Nóssóagimossobreumelementodanatureza
quandoadmitimosqueeleésuficientemente isolável,Apartirdeum
certograudesolidariedadeentreosfenômenos, talcomopostulao
LeGrandPropriêtaire,nãoémaispossívelintervirsemprovocarrea-
çõesemcadeia,semdestruiraordemdomundo:nenhumadascate-
goriasdocosmodispõedeumaautonomiasuficiente,enadapode
serfeitocontraodeterminismo universal,Oconhecimentodanatu-
rezalimita-seentãoaoestudodasrelaçõesquecomandamosfenô-
menosatravésdeumamesmacausalidade-umconhecimentoque
prevê,masquenãomodifica*Nãohámeiodefugiraessacausalida-
de,excetoatravésdamagiaoudomilagre.Umamesmaleirigorosa
regeaomesmotempoomovimentodosplanetas,ociclovegetativo
dasestações,asrelaçõesentreoselementos,ocorpohumanoeseus
humores,eodestinodohomem:assim,aastrologiapermiteconhe-
cerasincidênciaspessoaisdessedeterminismo universal,Aindaem
meadosdoséculoXVII,apráticadaastrologiaerabastantedifundi-
daparaqueMolière,esseespíritocético,atomasseporalvodesuas
caçoadasemLesAmantsMagnifiques.
Acorrespondênciadosnúmerosapareciaentãocomoumadas
chavesdessasolidariedadeprofunda;osimbolismodosnúmerosera
familiar,encontrava-seaomesmotemponasespeculaçõesreligiosas,
nasdescriçõesdefísica,dehistórianatural,enaspráticasmágicas.
Porexemplo,haviaumacorrespondência entreonúmerodosele-
mentos,odostemperamentosdohomemeodasestações:onúmero
4.Paranósédifícilimaginaressaconcepçãoformidáveldeummun-
domaciço,doqualseperceberiamapenasalgumascorrespondên-
cias.Aciênciahaviapermitidoformularascorrespondências edefi-
nirascategoriasqueelasligavam.Masessascorrespondências,com
opassardosséculos,tinhamdeslizadododomíniodaciênciaparao
domitopopular*EssasconcepçõesnascidasnaJôniadoséculoVI
comotempohaviamsidoadotadaspelamentalidadecomum,eas
pessoasrepresentavamomundodessaforma*Ascategoriasdaciên-
ciaantigo-medieval sehaviamtornadofamiliares:oselementos,os
temperamentos,osplanetaseseusentidoastrológico,eosimbolismo
dosnúmeros.
Asidadesdavidaeramtambémumadasformascomunsde
conceberabiologiahumana,emrelaçãocomascorrespondências se-
cretasmternaturais*Essanoção,destinadaasetornartãopopular,
certamentenãoremontavaàsbelasépocasdaciênciaantiga*Perten-
ciaàsespeculaçõesdramáticasdoImpérioBizantino,aoséculoVI
n
.
11Comparetti
(Virgiienelm.e.
ytomoL14-155,

36 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
FuígêndoapercebiaocultanaEneida',detectavanonaufrágiode
Enéíasosímbolodonascimentodohomememmeioàstempestades
daexistência,interpretavaoscantosIIeIIIcomoaimagemdain-
fânciaávidadenarrativasfabulosas,eassimpordiante,Umafresco
daArábiadoséculoVIIIjárepresentava asidadesdavida
w
.
OstextosdaIdadeMédiasobreessetemasãoabundantes.Le
GrandPropriétairedetoutesehosestratadasidadesemseulij^oVI.
Aí/bsidadescorrespondemaosplanetas;emnúmerode7:'.‘ISApri-
meiraidadeêainfânciaqueplantaosdentes,eessaidadecomeça
quandoacriançanasceeduraatéosseteanos,enessaidadeaquilo
quenasceéchamadodeenfant(criança),quequerdizernãofalante,
poisnessaidadeapessoanãopodefalarbemnemformarperfeita-
mentesuaspalavras,poisaindanàotemseusdentesbemordenados
nemfirmes,comodizemIsidoroeConstantmo.Apôsainfância,vem
asegundaidade...chama-sepueriliaeéassimchamadaporquenessa
idadeapessoaéaindacomoameninadoolho,comodizIsidoro,e
essaidadeduraatéos14anos.’H
'"Depoissegue-seaterceiraidade,queéchamadadeadolescên-
cia,quetermina,segundoConstantinoemseuviático,novigésimo
primeiroano,mas,segundoIsidoro,duraaté28anos.*.epodeesten-
der-seaté30ou35anos.Essaidadeéchamadadeadolescênciapor-
queapessoaébastantegrandeparaprocriar,disseIsidoro.Nessa
idadeosmembrossãomoleseaptosacrescereareceberforçaevi-
gordocalornaturalEporissoapessoacrescenessaidadetodaa
grandezaquelheédevidapelanatureza.”
[Ocrescimento,noentan-
to,terminaantesdos30ou35anos,eatémesmoantesdos28.Certa-
mentedeviaseraindamenostardionumaépocaemqueotrabalho
precocemobilizavamaiscedoasreservasdoorganismo.]
"Depoissegue-seajuventude,queestánomeiodasidades,em-
boraapessoaaíestejanaplenitudedesuasforças,eessaidadedura
até45anos,segundoIsidoro;ouaté50,segundoosoutros.Essaida-
deéchamadadejuventudedevidoàforçaqueestánapessoa,para
ajudarasimesmaeaosoutros,disseAristóteles.Depoissegue-sea
senectude,segundoIsidoro,queestáameiocaminhoentreajuventu-
deeavelhice,eIsidoroachamadegravidade,porqueapessoanessa
idadeégravenoscostumesenasmaneiras;enessaidadeapessoa
nãoévelha,maspassouajuventude,comodizIsidoro.Apósessa
tdadesegue-seavelhice,quedura,segundoalguns,até70anosese-
gundooutros,nãotemfimatéamorte.Avelhice,segundoIsidoro,é
assimchamadaporqueaspessoasvelhasjánãotêmossentidostão
bonscomojátiveram,ecaducamemsuavelhice...Aúltimaparteda
12KuseirAmra,Cf.VanMarle,IconographiedeVartprofane
,1932, t.II,p.144,
ASIDADESDAVIDA 37
velhiceéchamadasentesemlatim,masemfrancêsnãopossuioutro
nomealémdevieillesse,..Ovelhoestásempretossindo,escarrandoe
sujando[aindaestamoslongedonobreanciãodeGreuzeedoRo-
mantismo],atévoltaraseracinzadaqualfoitirado.”
Emborahojeemdiapossamosacharessejargãovazioeverbal,
eletinhaumsentidoparaseusleitores,umsentidopróximododaas-
trologia;eleevocavaolaçoqueuniaodestinodohomemaosplane-
tas.Omesmogênerodecorrespondência sideralhaviainspiradouma
outraperiodizaçãofligadaaos12signosdozodíaco',relacionandoas-
simasidadesdavidacomumdostemasmaispopularesemaisco-
moventesdaIdadeMédia,sobretudogótica;ascenasdocalendário.
UmpoemadoséculoXIVváriasvezesreimpressonosséculosXVe
XVIdesenvolveessecalendáriodasidades
n
:
Lessíxpremiersansquevit1'hommeaumonde
Nouscomparonsàjanvierdroitement*
Carencemoysvertuneforcekabonde
Neplusquequantsixanshaungenfant ,
*
Ou,segundoaversãodoséculoXV:
LesautresVíanstafontcrolstre ,.
.
Aussifaiifêvríertoaslesans
Quenfimsetraitsurleprintemps,,.
EtquandlesansaXVIII
IIsechangeenteldeduii
Quilcuidevaiairmillemors
Eiaussisechangelimars
Enbeautêetreprendchahur ..
.
Dumoisquiviemaprèsseptembre
Qu’ònappeltemoistfottembre

QuilaLXanseinonplus
Lorsdevientvieillardetchenu
Etadoncluidoitsouvenir
Queletempsiemènemourir,
**
I3ÚrantKalendrieretcomposideshergiers
1ediçãode1500,apudJ.Morawski,Les
douremoisfigurei,Archtvumromanicum, 1926,pp.351a363.
*
li
Gsseisprimeirosanosqueohomemvivenomundo,/ajaneirocomrazãooscom-
paramos,/poisnessemêsnemforçanemvirtudeabundam,/nãomaisdoquequando
umacriançatemseisanos.”(N.doT.)
**
”Gsoutrosseisanosfazem-nacrescer.../Assimtambémfazfevereirotodososmo&fi
Oqual,enfim,conduzàprimavera...
/
Equandoapessoafaz18anos,
/
Elasemodifi-
vudetalforma
/Quepensavalermilpedaços
/
Assimtambémomêsdemarço
/
Se
transformaembelezaereadquirecalor...
/Nomêsquevemdepoisdesetembro
/E
quechamamosdeoutubro,
/
apessoatem60anosenaomais.
/Entãoelasetornave-
mucencarquilhada,/EseLembradequeotempoalevaamorrer.”(N.doT
P
)

38 HISTÓRIASOCIAL.DACRIANÇAEDAFAMÍLIA
OuaindaestepoemadoséculoXIII
I4
:
Veeiyciíemaisdejanvier
Adeuxvisageslepremier
|,J
+
Poureequilregardeàdeuxtems
CeeilepassêeilevenanL
Ainsyfenftmt,quandàmscu
Sixansrtepeutguèrevaloir
Cariínaguèredesçavoir.
Maisiondoitmettrebonnecure
QuHpremebonnenourriture
Carquin'aboncommencement
Atardabondeffmement...
Enoctobreaprèsvenant
Doithomsemerlebonfroment
Duqueldoitvivretoutlimons:
Àinsidoitfairelepreudoms
QuiestarrivêãLXans:
lídoitsemerauxjeunesgens
Bormesparolesparexemple
Etfaireaumône.simesemble.
*
Damesmanaturezaainda,eraacorrespondência entreasidades
davidaeosoutros“quatro”:consensusquatuorelementorum,qua-
tuorhumomm(ostemperamentos),quatuorannitempommetquatuor
vitaeaetatumEmtornode1265,PhilippedeNovarejáfalavanos
IIItemzd'aaged’orneouseja,quatroperíodosde20anos.Eessas
especulaçõescontinuaramaserepetirnostextosatéoséculoXVI
Éprecisoteremmentequetodaessaterminologiaquehojenos
parecetâoocatraduzianoçõesquenaépocaeramcientíficas,ecor-
respondiatambémaumsentimentopopularecomumdavida.Aqui
tambémesbarramosemgrandesdificuldadesdeinterpretação,pois
hojeemdianãopossuímosmaisessesentimentodavida:considera-
mosavidacomoumfenômenobiológico,comoumasituaçãonaso-r
ciedade,sim,masnãomaisqueisso.Entretanto,dizemos“éavida”
14J.Morawski,op.cit.
15RepresentadonoscalendáriossobaFormadeJanusbifrons.
*Vedesaquioniçsdejaneiro,
/Oprimeirodetodos,quetemduasFaoes,
/Porquees-
távoltadoparadoistempos;opassadoeoporvir./Assimtambémacriançaqueviveu
apenas
/
Seisanosnaovalequasenada,
/
Poisquasenãopossuisaber./Masdeve-se
cuidar
/
Paraqueeiasealimentebem,
/
Poisquemtemumbomcomeço,
/
Nofinal
teráumbomfim.../Nomêsdeoutubro,quevemdepois,
/Ohomemdevesemearo
bomtrigo,
/
Doqualviverãotodososoutros:
/
Assimdevefazerohomemvalo*
roso
/Quechegouaos60anos:/devesemearparaosjovens
/
Boaspalavrascomo
exemplo,
/
Edaresmolas-aomenos,assimmeparece.(N.doT.)
16Regímensanitaiis,scholasalernitania, ed.porArnauddeVilleneuve.
17C.V.Langlois,LaVieenFranceauMoyenAge
,1908,p.184,
181568,
ASIDADESDAVíDA 39
paraexprimiraomesmotemponossaresignaçãoenossaconvicção
dequeexiste,foradobiológicoedosociológico,algumacoisaque
nãotemnome,masquenoscomove,queprocuramosnasnoticias
corriqueirasdosjornais,ousobreaqualpodemosdizer“istotemvi-
da”.Avidasetornaentãoumdrama,quenostiradotédiodoquoti-
diano.Paraohomemdeoutrora,aocontrário,avidaeraacontinui-
dadeinevitável,cíclica,àsvezeshumorísticaoumelancólicadasida-
des,umacontinuidade inscritanaordemgeraleabstratadascoisas,
maisdoquenaexperiênciareal,poispoucoshomenstinhamoprivi-
légiodepercorrertodasessasidadesnaquelasépocasdegrandemor-
talidade.
Apopularidadedas“idadesdavida”tornouestetemaumdos
maisfreqüentesdaiconografiaprofana.Encontramo-las,porexem-
plo,emalgunscapitéishistoriadosdoséculoXÍInobatistériode
Parma
19
.Oescultorquisrepresentaraomesmotempoaparábolado
mestredavinhaedostrabalhadoresdadécimaprimeirahora,eo
símbolodasidadesdavida.Naprimeiracena,vemoso.mestredavi-
nhacomamãopousadasobreacabeçadeumacriança:embaixo,
umalegendaprecisaaalegoriadacriança:primaaetassaecuti:prU
mumhumane:infância.Maisadiante:horatertia:pueríciasecondaae-
tas-omestredavinhatemamãopousadasobreoombrodeumra-
pazqueseguraumanimaleumafoice,Oúltimotrabalhadordescan-
saaoladodeseuenxadão:senectus,sextaaetas ,
MasfoisobretudonoséculoXIVqueessaiconografiafixou
seustraçosessenciais,quepermaneceramquaseinalteradosatéosé-
culoXVIII;reconhecemo-los tantonoscapitéisdopaláciodosDo-
ges
20
comonumafrescodosEremitanidePádua
2S
,Primeiro,aidade
dosbrinquedos:ascriançasbrincamcomumcavalodepau,umabo-
neca,umpequenomoinhooupássarosamarrados.Depois,aidade
daescola:osmeninosaprendemalerOuseguramumlivroeumesto-
jo;asmeninasaprendemafiar.Emseguida,asidadesdoamorou
dosesportesdacorteedacavalaria:festas,passeiosderapazesemo-
ças,cortedeamor,asbodasouacaçadadomêsdemaiodoscalen-
dários.Emseguida,asidadesdaguerraedacavalaria:umhomem
armado.Fínalmente, asidadessedentárias,doshomensdalei,da
ciênciaoudoestudo:ovelhosábiobarbudovestidosegundoamoda
antiga,diantedesuaescrivaninha,pertodalareira.Àsidadesdavida
nãocorrespondiamapenasaetapasbiológicas,masafunçõesso-
19Didron,"LaVietuimaine
f
\Annalesarchéologiques,XV,p.413.
20Didron,Annalesarchêologiques,XVII,pp.69e193.
21A.VenturL"LaFontediunacompodeioneddguariento”,Arte
,1914
,XVíl,p.49.

40 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
ciais;sabemosquehaviahomensdaleimuitojovens,mas,consoante
aimagempopular,oestudoeraumaocupaçãodosvelhos,
EssesatributosdaartedoséculoXIVseriamencontrados,quase
idênticos,emgravurasdenaturezamaispopular,maisfamiliar,que
subsistiramdoséculoXVIatéoiníciodoXIX,compouquíssimas
mudanças.EssasgravuraseramchamadasDegrausdasidades
,
pois
retratavampessoasquerepresentavam asidadesjustapostasdonas-
cimentoatéamorte,muitasvezesdepé,sobredegrausquesubiamà
esquerdaedesciamàdireita.Nocentrodessaescadariadupla,como
quesoboarcodeumaponte,erguía-seoesqueletodamorte,armado
comsuafoice*Aí,otemadasidadesseimbricavacomotemada
morte,esemdúvidanãoeTaporacasoqueessestemasfiguravamen-
treosmaispopulares:asestampasrepresentandoosdegrausdasida-
deseasdançasmacabrasrepetiramatéoiníciodoséculoXIXuma
iconografiafixadanosséculosXIVeXV,Mas,aocontráriodasdan-
çasmacabras,emqueostrajesnãomudaramepermaneceram os
mesmosdosséculosXVeXVI,mesmoquandoagravuradatavado
séculoXIX,osdegrausdasidadesvestiamsuaspersonagenssegundo
amodadaépoca:nasúltimasgravurasdoséculoXIX,vemossurgir
otrajedeprimeiracomunhão*Apersistênciadosatributosporisso
mesmoéaindamaisnotável:láestãoacriançamontadaemseucava-
lodepau,oestudantecornseulivroeseuestojo,obelopar(àsvezes
orapazseguraumarbustodemaio,evocaçãodasfestasdaadoles-
cênciaedaprimavera),eohomemdearmas,agoraumoficialcingi-
docomaecharpedocomando,oucarregandoumestandarte;naes-
cadadescendente,asroupasnãoestãomaisnamoda,oupertencema
umamodaantiga;vemososhomensdaleicomsuaspastasdepro-
cessos,oscientistascomseuslivrosouseusastrolábios,eosdevotos
-osmaiscuriosos-comseusrosários
22
.
Arepetiçãodessasimagens,pregadasnasparediesaoladodos
calendários,entreosobjetosfamiliares,alimentavaaidéiadeuma
vidadivididaemetapasbemdelimitadas,correspondendo amodos
deatividade,atiposfísicos,afunções,eamodasnovestir.Aperiodi-
zaçãodavidatinhaamesmafixidezqueociclodanaturezaouaor-
ganizaçãodasociedade^Apesardaevocaçãoreiteradadoenvelheci-
mentoedamorte,asidadesdavidapermaneceramcroquispitores-
cosebemcomportados, silhuetasdecaráterumtantohumorístico.
22
Estetemanãoeraapenaspopular.Eencontrado,soboutrasformas,napinturae
naescultura,comoemTicianoeVanDyckounofrontàodeVersalhesdeLuísXIV.
ASIDADESDAVIDA 41
Daespeculaçãoantigo-medieval restaraumaabundantetermi-
nologiadasidades;NoséculoXVI,quandosedecidiutraduziressa
terminologiaparaofrancês,ficoupatentequeestalíngua,eportanto
oscostumesfranceses,nãodispunhamdetantaspalavrascomoola-
tim,ouaomenoscomoolatimclássico.Otradutorde1556doLe
GrandPropriétairedetouteschosesreconhecesemrodeiosessadifi-
culdade:"Hámaiordificuldadeemfrancêsdoqueemlatim,poisem
latimexistemseteidadesnomeadasporsetenomesdiversos
[
tantas
quantoosplanetas]
,dosquaisexistemapenastrêsemfrancês:asa-
ber,enfance,jeunesseevieillesse.
'
Observamosque,comojuventudesignificavaforçadaidade,“i-
dademédia”,nãohavialugarparaaadolescência.Atéoséculo
XVIII,aadolescência foiconfundidacomainfância^Nolatimdos
colégios,empregava-seindiferentemente apalavrapuereapalavra
adolescens Existem,conservadosnaBibliothèqueNationale
15
,
al-
gunscatálogosdocolégiodosjesuítasdeCaen,umalistadosnomes
dosalunos,seguidosdeapreciações.Umrapazde15anosédescrito
alcomobonuspuer,enquantoseujovemcolegade13anoséchama-
dodeopíimusadolescens.Baillet
2
\numlivroconsagradoàscrian-
ças-prodígio,reconheceutambémquenãoexistiamtermosemfran-
cêsparadistinguirpuerieadolescentes.Conhecia-seapenasapalavra
enjant(criança).
*
NofinaldaIdadeMédia,osentidodestapalavraeraparticular-
mentelato.Eladesignavatantooputto(noséculoXIVdizia-sela
chambreauxenfantsparaindicaroquartodospuni,oquartoornado
comafrescosrepresentandocriancinhasnuas),comooadolescente,o
meninogrande,queàsvezeseratambémummeninomal-educado.A
palavraenfant,nosMiraclesNotre-Dame
25
,eraempregadanossécu-
losXIVeXVcomosinônimodeoutraspalavrastaiscomovaleis,va-
leton,garçon,fils,beaufils:"eleerava/envT^corresponderia aofran-
cêsatual"eleeraumbeaugars(umbelorapaz)”,masnaépocaoter-
moseaplicavatantoaumrapaz-"umbelovaleton”-comoauma
criança
-
"eleeraumvaleton,egostavammuitodele...ovalezcres-
ceu!”Umaúnicapalavraconservouatéhojenalínguafrancesaessa
antigaambigüidade:apalavragars(menino,rapazouhomem),que
passoudiretamentedofrancêsantigoparaalínguapopularmoder-
na,ondefoiconservada.Eraumacriançaestranhaessemaumenino,
23BibliothèqueNationale,Manuscritos,Fondslatinn*s10990e10991.
24Baillet,LesEnfantsdevenuscéièbresparleursítudes,1688.
25MiraclesNotre-Dame,Westminster,ed.G.F.Warner,1885;Jubinai,NouveauRe-
cueildecontes,tomoI,pp.31-33,42a72;tomoII,p-244epp.356-357.

42 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
“tãodeslealetãoperverso,quenãoqueriaaprenderumofícionem
secomportarcomoconvinha àinfância..,quedebomgradose
acompanhavadeglutõesedegentesociosas,quefrequentemente
provocavamrixasnastabernasenosbordéis,ejamaisencontravam
umamulhersozinhasemaviolar*”Eisoutracriançade15anos;
“Emborafosseummeninobomegracioso”,recusava-seamontara
cavaloeasedarcommeninas*Seupaipensavaqueeraportimidez:
“Éocostumedascrianças.”Narealidade,omeninoestavaprometi-
doàVirgem.Seupaiquisobrigá-loasecasar:“Entãoacriançaficou
muitozangadaebateu-lhecomforça*”Tentoufugirmasferiu-se
mortalmenteaocairdaescada.NessemomentoaVirgemveiobuscá-
loedisse-lhe:“Beloirmão,vedeaquivossaamiga”-“Entãoacrian-
çaexalouumsuspiro.”
SegundoumcalendáriodasidadesdoséculoXVI
u
,aos24anos
"éacriançaforteevirtuosa”,e"Assimacontececomascrianças
quandoelastêm18anos”.
OmesmoempregopodeserconstatadonoséculoXVII:uma
pesquisaepiscopalde1667relataque,numaparóquia
27
,“háunjeune
enfans(umajovemcriança)decercade14anosdeidade,queensina
alereaescreveràscriançasdosdoissexoshácercadeumano,desde
quehabitanoditolugar,poracordocomoshabitantesdoditolu-
DuranteoséculoXVII,houveumaevolução:oantigocostume
seconservounasclassessociaismaisdependentes,enquantoum
novohábitosurgiuentreaburguesia,ondeapalavrainfânciaseres-
tringiuaseusentidomoderno.Alongaduraçãodainf&ncia,tal
comoaparecianalínguacomum,provinhadaindiferençaquesesen-
tiaentãopelosfenômenospropriamentebiológicos:ninguémteriaa
idéiadelimitarainfânciapelapuberdade.Aidéiadeinfânciaestava
ligadaàidéiadedependência:aspalavrasfils,’mletsegarçonseram
tambémpalavrasdovocabuláriodasrelaçõesfeudaisousenhoriais
dedependência.Sósesaíadainfânciaaosesairdadependência,ou,
aomenos,dosgrausmaisbaixosdadependência.Essaéarazãopela
qualaspalavrasligadasàinfânciairiamsubsistirparadesignarfami-
liarmente,nalínguafalada,oshomensdebaixacondição,cujasub-
missãoaosoutroscontinuavaasertotal:porexemplo,oslacaios,os
auxiliareseossoldados.Um“petitgraçon"(meninopequeno)não
eranecessariamenteumacriança,esimumjovemservidor(dames-
maformahoje,umpatrãoouumcontramestredirãodeumoperário
26Citadonota13,destecapítulo.
27A.deChamasse,EtatdeFinstructionpubliquedansFanciendiocesed‘Autun
,
1878.
ASIDADESDAVIDA 43
de20a25anos:“Éumbommenino”,ou“essemeninonãovalena-
da”).
Assim,em1549,odiretordeumcolégio,deumestabelecimento
deeducação,chamadoBaduel,escreviaaopaideumdeseusjovens
alunos,apropósitodeseuenxovaledeseuséquito:“Noqueconcer-
neaoseuserviçopessoal,bastaumpetitgarçon
2
V*
NoiníciodoséculoXVIII,odicionáriodeFuretièreprecisouo
usodotermo:

Enfaníétambémumtermodeamizadeutilizado
parasaudarouagradaralguémoulevá-loafazeralgumacoisa.
Quandosedizaumapessoadeidade:"adeus,bonnemère(boamãe)
(atélogo,grand-mère(avozinha),nalínguadaParismoderna),ela
responde"adeus,monenfant”(ouadeus,mongars,ouadeus,petit).
Quentãoeiadiráaumlacaio:^monenfant
,vámebuscaraquilo”*
Ummestrediráaostrabalhadores,mandando-ostrabalhar:“vamos,
enfants
,trabalhem”*Umcapitãodiráaseussoldados:“coragem,en-
fants
,agüentemfirme”*Ossoldadosdaprimeira fila,queestavam
maisexpostosaoperigo,eramchamadosdeenfantsperdus(crianças
perdidas).”
Namesmaépoca,masnasfamíliasnobresemqueadependên-
cianãoerasenãoumaconseqüênciadainvalidezfísica,ovocabulá-
riodainfânciatendiaquasesempreadesignaraprimeiraidade.'No
séculoXVII,seuempregotornou-semaisfreqüente:aexpressão
"
pe-
titenfant”(criançapequenaoucriancinha)começouaadquiriro
sentidoquelheatribuímos.Ousoantigopreferia”jeuneenfant”(jo-
vemcriança),eestaexpressãonãofoicompletamenteabandonada.
LaFontaineaempregava, e,em1714,numatraduçãodeErasmo,
haviaumareferênciaauma"jeunefilie”(jovemmenina;hojeemdia
jeunefiliedesignaumamoça)queaindanaotinhacincoanos:"Te-
nhoumajeunefiliequemalcomeçouafalar
29
”*Àpalavrapetit(pe-
queno)haviaadquiridotambémumsentidoespecialnofimdosécu-
loXVI:designavatodososalunosdas“pequenasescolas”,mesmo
aquelesquenãoerammaiscrianças.NaInglaterra,apalavrapettyti-
nhaomesmosentidoqueemfrancês,eumtextode1627mencionava
aescolados“lyttlepetties'\ouseja,dosmenoresalunos
10
.
FoisobretudocomPort-Royalecomtodaaliteraturamorale
pedagógicaqueaíseinspirou(ouque,demodomaisgeral,exprimiu
umanecessidadedeordemmoraldifundidaportodaaparte,eda
qualPort-Royaleratambémumtestemunho),queostermosutiliza-
28LGaufrès,“OaudeBadueletlaRéformedesétudesauXVI
e
siède"BuliSoc.H.
duprotestantismefrançais*1880,XXV
Tpp.499-505.
29Erasmo,LeMariagechrétien,tratLde1714.
30J.Brinsley,LudusLitterarius,ed.de1917*

44 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
dosparadesignarainfânciasetornaramnumerososesobretudomo-
dernos:osalunosdeJacquelinePascaleramdivididosempeüts,
moyensegrands(pequenos,médiosegrandes).“Quantoàscrianças
pequenas,escreveJacquelinePascal,éprecisoaindamaisqueàsou-
trasensiná-lasealimentá-las, sepossívelcomopequenospombos.”
OregulamentodaspequenasescolasdePort-Royal
n
prescrevia:“E-
lesnãovãoàMissatodososdias,somenteospequenos.”Falava-se,
deumaformanova,em“pequenasalmas”,em“pequenosanjos
33”*
EstasexpressõesanunciavamosentimentodoséculoXVIIIedoro-
mantismo.Emseuscontos,M
!ie
Lhéritier
34
pretendiasedirigiraos
“jovensespíritos”,às“jovenspessoas”:“Essasimagensseguramente
levamosjovensareflexõesqueaperfeiçoamsuarazão”
iPercebe-se
entãoqueesseséculoXVII,quepareciaterdesdenhadoainfância,
aocontrário,introduziuousodeexpressõesedelocuçõesqueper-
manecematéhojenalínguafrancesa.Juntoàpalavraenfantdeseu
dicionário,Furetièrecitavaprovérbiosqueaindanossãofamiliares:
“Éumenfantgâté(criançamimada)aquelaaquemsedeixouviver
deummodolibertino,semcorrigi-la.IInyaplusd’enfantequivalea
dizerquealguémcomeçaaterjuizoemalíciacedo.”“Inocentecomo
acriançaqueacaboudenascer.”Vocêsnãoachavamqueessasex-
pressõesnãoremontavamalémdoséculoXIX?
Contudo,emseusesforçosparafalardascriançaspequenas,a
línguadoséculoXVIIfoiprejudicadapelaausênciadepalavrasque
asdistinguissemdasmaiores.Omesmo,aliás,aconteciacomoin-
glês,emqueapalavrababyseaplicavatambémàscriançasgrandes*
ÀgramáticalatinaeminglêsdeLily
35
(quefoiutilizadadoiníciodo
séculoXVIaté1866)dirigía-seaalllyttellbabes
„alllyneltchyldren.
Poroutrolado,haviaemfrancêsexpressõesquepareciamdesig-
narascriançasbempequeninas.Umadelaseraapalavrapoupart.
UmdosMiraclesNoíre-Dametinhacomopersonagemum"petit
Jils
”quequeriadardecomeraumaimagemdomeninoJesus*“O
bomJesus,vendoainsistênciaeaboavontadedacriancinha,faiou
comelaedisse-lhe:'‘Poupart,nãochoresmais,poiscomeráscomigo
dentrodetrêsdias\”Masessepoupartnarealidadenãoeraum“be-
bê”,comodiríamoshoje:tambémerachamadodeclergeon

(pe-
31JacquelinePascal,Règlementpourlesenfants(ApêndicedasConstitituições de
Port-Royal, 1721).
32RegulamentodoColégiodeChesnay,inW.deBeaupuis,SuitedesamisdeFort*
Royai
,1751,volI,p.175.
33JacquelinePascal,vernota31acima.
34M.E.Storer,Lamadedescontesdefies,'1928.
35/prayyou.aíllyttellbabes,alllyteilchyldren.lern...
36MiraclesNotre-Dame,op,cit.
ASIDADESDAVIDA 45
quenoclérigo),usavasobrepelizeajudavaàmissa:“Aquihavia
criançasdepoucaidadequesabiamumpoucoasletras,equeprefe-
ririammamarnoseiodesuamãeaterdeajudaràmissa”.Nalíngua
dosséculosXVIIeXVIII,apalavrapoupartnâodesignavamaisuma
criança,esim,sobaformapoupon
,oquehojeosfrancesesaindacha-
mampelomesmonome,porémnofeminino:umapoupée,ouseja,
umaboneca.
Ofrancêsseriaportantolevadoatomaremprestadasdeoutras
línguas-línguasestrangeirasougíriasusadasnaescolaounasdife-
rentesprofissões-palavrasquedesignassemessacriançapequena
pelaqualcomeçavaasurgirumnovointeresse:foiocasodoitaliano
bambino
,quedariaorigemaofrancêsbambin.M
me
deSévignéem-
pregavatambémnomesmosentidooprovençalpiíchom,queelacer-
tamenteaprenderaemumadesuasestadasnacasadosGrignans
37
,
SeuprimoDeCoulanges,quenãogostavadecrianças,masquefala-
vamuitodelas desconfiavados“marmousetsdetrêsanos”,uma
palavraantigaqueevoluiriaparamarmotsnalínguapopular,“mole-
quesdequeixoengorduradoqueenfiamodedoemtodosospratos”
.
Empregavam-setambémtermosdegíriadoscolégioslatinosoudas
academiasesportivasemilitares:“umpequenofrateP\um

cadef\
e,quandoeramnumerosos,

populo oü“petitpeuple
”,Enfim,o
usodosdiminutivostornou-sefreqüente:encontramosfanfannas
cartasdeM
me
deSévignéedeFénelon.
Comotempo,essaspalavrassedeslocariamepassariamadesig-
naracriançapequena,masjáesperta.Restariasempreumalacuna
paradesignaracriançaduranteseusprimeirosmeses;essainsuficiên-
cianãoseriasanadaantesdoséculoXIX,quandoofrancêstomóu
emprestadadoinglêsapalavrababy,que,nosséculosXVIeXVII,
designavaascriançasemidadeescolar.Foiestaaúltimaetapadessa
história:daíemdiante,comofrancêsbébê,acriançabempequenina
recebeuumnome*
Emboraumvocabuláriodaprimeirainfânciativessesurgidoe
seampliado,subsistiaaambiguidadeentreainfânciaeaadolescên-
ciadeumlado,eaquelacategoriaaquesedavaonomedejuventu-
de,dooutroNãosepossuíaaidéiadoquehojechamamosdeado-
lescência,eessaidéiademorariaaseformar.Jáapressentimosnosé-
37“Soisinjustoscomigoaocrerquegostomaisdapetiiedoquedopitchouny
dcSévigné,Leitres
T12dejunhode1675;vertambém5deoutubrodeL673.
38Cdttlanf s,Chansonschoisies,1694.
39Claudir Bouzonnet-Stella, JeuxdeVenfance
,1657.

46 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
culoXVIU,comduaspersonagens,umaliterária,Querubim,eaou-
trasocial,oconscrito.EmQuerubimprevaleciaaambigüidadeda
puberdade,eaênfaserecaíasobreoladoefeminadodeummenino
quedeixavaainfância,Issonâoerapropriamenteumanovidade:
comoseentravamuitocedonavidasocial,ostraçoscheioseredon-
dosdaprimeiraadolescência,emtornodapuberdade,davamaos
meninosumaaparênciafeminina,Éissooqueexplicaafacilidade
dosdisfarcesdoshomensemmulheresouvice-versa,comunsnosro-
mancesbarrocosdoiníciodoséculoXVII:doisrapazesouduasmo-
çassetornamamigos,masumdeleséumamoçatravestidaetc.Por
maiscrédulosquesejamosleitoresderomancesdeaventurasdeto-
das-asépocas,omínimodeverossimilhança exigequetenhaexistido
algumasemelhançaentreomeninoaindaimberbeeamenina.Con-
tudoessasemelhançanâoeraapresentadaentãocomoumacarac-
terísticadaadolescência,umacaracterísticadaidade.Esseshomens
sembarbadetraçossuavesnãoeramadolescentes,poisjáagiam
comohomensfeitos,comandandoecombatendo.EmQuerubim,ao
contrário,oaspectofemininoestavaligadoàtransiçãodacriança
paraoadulto:traduziaumestadoduranteumcertotempo,otempo
doamornascente.
Querubimnãoteriasucessores.Aocontrário,seriaaforçaviril
que,nocasodosmeninos,exprimiriaaadolescência, eoadolescente
seriaprefiguradonoséculoXVIIIpeloconscrito.Examinemosotex-
todeumcartazderecrutamentoquedatadofinaldoséculoXVIII
Ocartazsedirigiaà"brilhantejuventude”:“Osjovensquequiserem
partilhardareputaçãoqueestebelocorpoadquiriupoderãodirigir-
seaM.D’Ambrun...Eles(osrecrutadores)recompensarão aqueles
quelhestrouxerembeloshomens.”
OprimeiroadolescentemodernotípicofoioSiegfrieddeWag-
ner:amúsicadeSiegfriedpelaprimeiravezexprimiuamisturade
pureza(provisória),deforçafísica,denaturismo,deespontaneidade
edealegriadeviverquefariadoadolescenteoheróidonossoséculo
XX,oséculodaadolescência,Essefenômeno,surgidonaAlemanha
wagneriana,penetrariamaistardenaFrança,emtornodosanos
1900,A“juventude”,queentãoeraaadolescência, iriatornar-seum
temaliterário,eumapreocupaçãodosmoralistasedospolíticos.Co-
meçou-seadesejarsaberseriamenteoquepensavaajuventude, e
surgirampesquisassobreeia,comoasdeMassisoudeHenriot.Aju-
ventudeapareceucomodepositáriadevaloresnovos,capazesderea-
40CartazderecrutamentoparaoregimentodoRoyalPíemontemNevers,1789.Ex-
posição**L'Affiche”
TBiblioLhèqueNational©,1953,n?25.
ASIDADESDAVIDA 47
vivarumasociedadevelhaeesclerosada.Havia-seexperimentado
umsentimentosemelhantenoperíodoromântico,massemumarefe-
rênciatãoprecisaaumaclassedeidade.Sobretudo,essesentimento
românticoselimitavaâliteraturaeàquelesquealiam.Aocontrário,
aconsciênciadajuventudetornou-seumfenômenogeralebanal
apósaguerrade1914,emqueoscombatentesdafrentedebatalhase
opuseramemmassaàsvelhasgeraçõesdaretaguarda.Áconsciência
dajuventudecomeçoucomoumsentimentocomumdosex-
combatentes,eessesentimentopodiaserencontradoemtodosos
paísesbeligerantes,atémesmonaAméricadeDosPassos.Daíem
diante,aadolescênciaseexpandiria,empurrandoainfânciaparatrás
eamaturidadeparaafrente.Daíemdiante,ocasamento,quenão
eramaisum“estabelecimento”, nâomaisainterromperia:oadoles-
eente-casado éumdostiposmaisespecíficosdenossaépoca:elelhe
propõeseusvalores,seusapetiteseseuscostumes.Assim,passamos
deumaépocasemadolescênciaaumaépocaemqueaadolescênciaé
,aidadefavorita.Deseja-sechegaraelacedoenelapermanecerpor
muitotempo.
Essaevoluçãofoiacompanhadaporumaevoluçãoparalela,po-
réminversa,davelhice.Sabemosqueavelhicecomeçavacedonaso-
ciedadeantiga.Osexemplossãoconhecidos,acomeçarpelosvelhos
deMolière,queaosnossosolhosparecemjovensainda.Nemsem-
pre,aliás,aiconografiadavelhicearepresentasobostraçosdeum
indivíduodecrépito:avelhicecomeçacomaquedadoscabeloseo
usodabarba,eumbeloanciãoapareceàsvezescomoumhomem
calvo.ÉocasodoanciãonoconcertodeTiciano,queétambémuma
representaçãodasidadesdavida.Emgeral,porém,antesdoséculo
XVIII,oanciãoeraconsiderado ridículo.UmapersonagemdeRo-
troupretendiaimporàsuafilhaummaridoqüinquagenário: “Ele
temapenas50anos;e,alémdisso,nãotemnemumdente!”
//ríestdanslanaturehommequinetejuge
DusièdedeSaturneoudutempsduDéluge;
Destroispiedsdomilmarche, ilenadeuxgoutteux,
Quijusqueàchoquepas,trêhuckemdevieiílesse
Etquilfautreieniroureleversanscesse
Dezanosmaistarde,esseanciãosepareciacomestesexagenário
deQuinauit:
41Rotrou,LaSoeur.
*
“Nãohánanaturezaquemnãooconsidere/PertencenteaoséculodeSaturnoouao
icmpodoDilúvio;/Dostrêspéscomqueeleanda,doissofremdegota./Acadapas-
so,camb;Íamdevelhice,/Eéprecisoretê-loseerguê-lostodootempo.”(N.doT.)

48 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
Cüurbêsursorrbâton
tlebonpetitvieillard
Tousse,crachetsemoucheetfaitlegoguenard.
Descontesdurieu.xtemps.étourditIsabelle*K*
AFrançaantiganãorespeitavaavelhice:eraaidadedorecolhi-
mento,doslivros,dadevoçãoedacaduquice,Àimagemdohomem
integralnosséculosXVI-XVIÍeraadeumhomemjovem:ooficial
comaecharpenotopodosdegrausdasidades.Elenãoeraumrapaz,
emborahojetivesseidadeparaserconsideradocomotal.Correspon-
diaaessasegundacategoriadasidades,entreainfânciaeavelhice,
quenoséculoXVIIIerachamadadejuventude,Furetière,queainda
levavamuitoasérioosproblemasarcaicosdaperiodizaçãodavida,
elaborouumanoçãointermediáriadematuridade,masreconheceu
queessanoçãonãoerausual,econfessou:“Osjurisconsultos consi-
deramajuventudeeamaturidadeumaúnicaidade/"OséculoXVII
sereconhecianessajuventudemilitar,assimcomooséculoXXsere-
conheceemseusadolescentes.
Hoje,aocontrário,avelhicedesapareceu,aomenosdofrancês
falado,ondeaexpressãoimvieux
,“umvelho",subsistecomumsen-
tidodegíria,pejorativoouprotetor,Aevoluçãoocorreuemduas
etapas;primeiro,houveoanciãorespeitável,oancestraldecabelos
deprata,oNestordesábioseprudentesconselhos,opatriarcadeex-
periênciapreciosa:oanciãodeGreuze,RestifdelaBretonneetodo
oséculoXIX.Elenãoeraaindamuitoágil,mastambémnãoera
maistãodecrépitocomooanciãodosséculosXVIeXVII.Ainda
hojerestaalgumacoisadesserespeitopeloanciãoemnossoscostu-
mes.Masesserespeito,narealidade,nãotemmaisobjeto,pois,em
nossaépoca,eestafoiasegundaetapa,oanciãodesapareceu.Foi
substituídopelo“homemdeumacertaidade”,epor“senhoresou
senhorasmuitobemconservados".Noçãoaindaburguesa,masque
tendeasetornarpopular.Aidéiatecnológicadeconservaçãosubsti-
tuiaidéiaaomesmotempobiológicaemoraldavelhice.
Tem-seaimpressão,portanto,deque,acadaépocacorrespon-
deriamumaidadeprivilegiadaeumaperiodizaçãoparticulardavida
humana:a“juventude"éaidadeprivilegiadadoséculoXVII,a“in-
fância",doséculoXIX,ea“adolescência",doséculoXX.
Essasvariaçõesdeumséculoparaooutrodependemdasrela-
çõesdemográficas.Sãotestemunhosdainterpretaçãoingênuaquea
opiniãofazemcadaépocadaestruturademográfica,mesmoquando
nem,semprepodeconhecê-iaobjetivamente.Assim,aausênciada
42QurnauU.LaAferecoquette.
*
vt
Curvadosobreseubastão,obomvelhinho
/
Tosse,escarra,seassoaedizgalhofas
/
EamolaUabellecomcoutosdosvelhostempos.”(N.doT.)
ASIDADESDAVÍDA 49
adolescênciaouodesprezopelavelhice,deumlado,ou,deoutro,o
desaparecimentodavelhice,aomenoscomodegradação,eaintro-
duçãodaadolescência,exprimemareaçãodasociedadedianteda
duraçãodavida.Oprolongamentodamédia4evidaretiroudonão-
seranteriorespaçosdavidaqueossábiosdoImpérioBizantinoeda
IdadeMédiahaviamnomeado,emboranãoexistissemnoscostumes.
Ealinguagemmodernatomouemprestadosessesvelhosvocábulos,
originalmenteapenasteóricos,paradesignarrealidadesnovas:últi-
moavatardotemaquedurantetantotempofoifamiliarehojeestá
esquecido,odas“idadesdavida".
Naspáginasseguintes,examinaremos ossignosdainfância.
Nãodeveremosesqueceroquantoessarepresentaçãodainfânciaê
relativa,diantedapredileçãoreconhecidapela“juventude”noperío-
doqueestudamos.Esseperíodonãofoinemdecrianças,nemde
adolescentes,nemdevelhos:foiumtempodehomensjovens.

2
ADescobertadaInfância
AtéporvoltadoséculoXII, aartemedieval desco-
nheciaainfânciaounãotentavarepresentá-la.Édifícilcrerque
essaausênciasedevesseàincompetênciaouàfaltadehabilidade.É
maisprovávelquenâohouvesselugarparaainfâncianessemundo.
UmaminiaturaotonianadoséculoXI
]
nosdáumaidéiaimpressio-
nantedadeformaçãoqueoartistaimpunhaentãoaoscorposdas
crianças,numsentidoquenosparecemuitodistantedenossosenti-
mentoedenossavisão.OtemaéacenadoEvangelhoemqueJesus
pedequesedeixeviraeleascriancinhas,sendootextolatinoclaro:
parvuíi.Ora,ominiaturistaagrupouemtornodeJesusoitoverdadei-
roshomens,semnenhumadascaracterísticasdainfância:elesforam
iEvangeliáriodeOtoIII,Munique,
ADESCOBERTADAINFÂNCIA 51
simplesmentereproduzidosnumaescalamenor.Apenasseutama-
nhoosdistinguedosadultos.Numaminiaturafrancesadofimdosé-
culoXI\astrêscriançasqueSãoNicolauressuscitaestãorepresen-
tadasnumaescalamaisreduzidaqueosadultos,semnenhumadife-
rençadeexpressãooudetraços.Opintornãohesitavaemdarànu-
dezdascrianças,nosraríssimoscasosemqueeraexposta,amuscula-
turadoadulto:assim,nolivrodesalmosdeSãoLuísdeLeyde\da-
tadodofimdoséculoXIIoudoiníciodoXIII,Ismael,poucodepois
deseunascimento,temosmúsculosabdominaisepeitoraisdeum
homem.Emboraexibissemaissentimentoaoretratarainfância
4
,o
séculoXIIIcontinuou fielaesseprocedimento.NaBíbliamoraliza-
dadeSãoLuís,ascriançassãorepresentadascommaiorfrequência,
masnemsempresãocaracterizadasporalgoalémdeseutamanho.
NumepisódiodavidadeJacó,Isaqueestásentadoentresuasduas
mulheres,cercadoporuns15homenzinhosquebatemnacinturados
adultos:sãoseusfilhos
5
.QuandoJòérecompensadoporsuafée
ficanovamenterico,oiluministaevocasuafortunacolocandoJôen-
treumrebanho,àesquerda,eumgrupodecrianças,àdireita,igual-
mentenumerosas:imagemtradicionaldafecundidadeinseparávelda
riqueza.NumaoutrailustraçãodolivrodeJó,ascriançasaparecem
escalonadasporordemdetamanho.
NoEvangeliáriodaSainte-ChapelledoséculoXIII*,nomo-
mentodamultiplicaçãodospães,Cristoeumapóstololadeiamum
homenzinhoquebateemsuacintura:semdúvida,acriançaquetra-
ziaospeixes.Nomundodasfórmulasromânicas,eatéofimdosé-
culoXIII,nãoexistemcriançascaracterizadasporumaexpressão
particular,esimhomensdetamanhoreduzido.Essarecusaemacei-
tarnaarteamorfologiainfantiléencontrada,aliás,namaioriadas
civilizaçõesarcaicas.UmbelobronzesardodoséculoIXa,C.
1
re-
presentaumaespéciedePietã:umamãesegurandoemseusbraçoso
corpobastantegrandedofilho;mastalvezsetratassedeumacrian-
ça,comoobservaanotadocatálogo:"Apequenafiguramasculina
poderiamuitobemserumacriançaque,segundoafórmulaadotada
2“VieetmíracledesaintNícolas”,BibliothèqueNationaie.
3LivrodesalmosdeSãoLuísdeLeyde,
4Compararacena“Deixaiviramimascriancinhas”doEvangeliáriodeOtoeda
BiblemoralisêedeSaintLouis
,
P
3
505.
5BiblemoralisêedeSaintLouis,f*5.A.deLaborde,BiblesmoralisêesÜlustrées,1911-
Í92L4voIs.depranchas.
6EvangeliáriodaSainte-Chapelle; cenareproduzidaemH,Martin,LaMiniature
française,prVII,
7Exposiçãodebronzessardos,BiblíothèqueNationaie,1954,n
9
25,pr.XI.

52 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMiLIA
naépocaarcaicaporoutrospovos,estariarepresentadacomoum
adulto,”Tudoindica,defato,quearepresentação realistadacrian-
ça,ouaidealizaçãodainfância,desuagraça,desuaredondezade
formastenhamsidoprópriasdaartegrega.OspequenosErosproli-
feravamcomexuberâncianaépocahelenísticca,Ainfânciadesapare-
ceudaiconografiajuntocomosoutrostemashelenístícos,eoromâ-
nicoretomouessarecusadostraçosespecíficosdainfânciaqueca-
racterizavaasépocasarcaicas,anterioresaohelenísmo.Háaíalgo
maisdoqueumasimplescoincidência.Partimosdeümmundodere-
presentaçãoondeainfânciaédesconhecida:oshistoriadoresdalite-
ratura(Mgr,Calvé)fizeramamesmaobservaçãoapropósitodaepo-
péia,emquecrianças-prodígio seconduziamcomabravuraeaforça
físicadosguerreirosadultos.Issosemdúvidasignificaqueosho-
mensdosséculosX-XInãosedetinhamdiantedaimagemdainfân-
cia,queestanãotinhaparaelesinteresse,nemmesmorealidade.Isso
fazpensartambémquenodomíniodavidareal,enãomaisapenas
nodeumatransposiçãoestética,ainfânciaeraumperíododetransi-
ção,logoultrapassado,ecujalembrançatambémeralogoperdida.
Talénossopontodepartida.Comodaíchegamosàscrianci-
nhasdeVersalhes,àsfotosdecriançasdetodasasidadesdenossos
álbunsdefamília?
PorvoltadoséculoXIII,surgiramalgunstiposdecriançasum
poucomaispróximosdosentimentomoderno.
Surgiuoanjo,representadosobaaparênciadeumrapazmuito
jovem,deurnjovemadolescente:umclergeon
,comodizP.duCo-
lombier\Masqualeraaidadedo“pequenoclérigo”?Eraaidade
d^scriançasmaisoumenosgrandes,queerameducadasparaajudar
àmissa,equeeramdestinadasàsordens,espéciesdeseminaristas,
numaépocaemquenãohaviaseminários,eemqueapenasaescola
latinasedestinavaàformaçãodosclérigos.
14
Aqui”,dizumMiracle
deNotre-Dame “haviacriançasdepoucaidadequesabiamum
poucoasletrasequeprefeririammamarnoseiodesuamãe(masas
criançasdesmamavammuitotardenessaépoca:aJulietadeShakes-
peareaindaeraalimentadaaoseioaostrêsanosdeidade)aterde
ajudaràmissa”.OanjodeReims,porexemplo,seriaummeninojá
grande,maisdoqueumacriança',masosartistassublinhariamcom
afetaçãoostraçosredondosegraciosos-eumtantoefeminados-
dosmeninosmalsaídosdainfância.Jáestamoslongedosadultosem
escalareduzidadaminiaturaotoníana.Essetipodeanjosadolescen-
8P.duColombier,UEnfantauMoyenAge
,
1951.
9MiradesNotre-Dame
,Westminsíer, ed.A.F.Warner,1885.
ADESC08HRTADAINFÂNCIA 53
tessetornariamuitofrequentenoséculoXIVepersistiríaaindaatéo
fimdoquattrocemoitaliano:sâoexemplososanjosdeFraAngélico,
deBotticellíedeGhirlandajo.
Osegundotipodecriançaseriaomodeloeoancestraldetodas
ascriançaspequenasdahistóriadaarte:omeninoJesus,ouNossa
Senhoramenina,poisainfânciaaquiseligavaaomistériodamater-
nidadedaVirgemeaocultodeMaria.Noinício,Jesusera,comoas
outrascrianças,umareduçãodoadulto:umpequenoDeus-padre
majestoso,apresentadopelaTheotókos .Aevoluçãoemdireçãoa
umarepresentaçãomaisrealistaemaissentimentaldacriançacome-
çariamuitocedonapintura:numaminiaturadasegundametadedo
séculoXII Jesusempévesteumacamisaleve,quasetransparente,
temosdoisbraçosemtornodopescoçodesuamãeeseaninhaem
seucolo,comorostocoladoaodela.ComamaternidadedaVirgem,
atenraInfânciaingressounomundodasrepresentações.Noséculo
XI11,elainspirououtrascenasfamiliares.NaBíbliaMoralizadade
SãoLuís",encontramoscenasdefamíliaemqueospaisestãocerca-
dosporseusfilhos,comomesmoacentodeternuradojubédeChar-
tres;porexemplo,numretratodafamíliadeMoisés,omaridoea
mulherdãoasmãos,enquantoascrianças(homenzinhos)queoscer-
camestendemamãoparaamãe.Essescasos,porém,eramraros:o
sentimentoencantadordatenrainfânciapermaneceulimitadoao
meninoJesusatéoséculoXIV,quando,comosabemos,aarteitalia-
nacontribuiuparadesenvolvê-lo eexpandi-lo.
Umterceirotipodecriançaapareceunafasegótica:acriança
nua.OmeninoJesusquasenuncaerarepresentadodespido.Na
maioriadoscasos,aparecia,comoasoutrascriançasdesuaidade,
castamenteenroladoemcueirosouvestidocomumacamisaouuma
camisola.ElesósedesnudarianofinaldaIdadeMédia.Àspoucas
miniaturasdasBíbliasmoralizadasquerepresentavamcriançasves-
tiam-nas,excetoquandosetratavadosInocentesoudascrianças
mortascujasmãesseriamjulgadasporSalomão.Seriaaalegoriada
morteedaalmaqueintroduzirianomundodasformasaimagemda
nudezinfantil.Jánaiconografiapré-bizantinadoséculoV,emque
aparecemtraçosdafuturaarteromânica,reduzíam-seasdimensões
doscorposdosmortos.Oscadávereserammenoresqueoscorposdos
vivos.NaIlíadadaBibliotecaAmbrosiana
[2
tosmortosdascenasde
10“ManuscritospintadosdosséculosVIIaoXN’\exposiçãodaBibÜothèqueNatio
nale,1954,n*330,pt,XXX.
11Vernota5,destecapítulo.
12IlíadadaBibliotecaAmbrosianadeMilão.

54 HISTÓRIASOCJALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
batalhatêmametadedotamanhodosvivos,Naartemedievalfran-
cesa,aalmaerarepresentadaporumacriancinhanuaeemgeralas-
sexuada.Osjuízosfinaisconduzemsobessaformaasalmasdosjus-
tosaoseiodeAbraão
u
*Omoribundoexalaumacriançapelaboca
numarepresentaçãosimbólicadapartidadaalma.Eraassimtam-
bémqueseimaginavaaentradadaalmanomundo,quersetratasse
deumaconcepçãomiraculosaesagrada-oanjodaAnunciaçãoen-
tregaàVirgemumacriançanua,aalmadeJesus
14
-quersetratasse
deumaconcepçãoperfeitamentenatural-umcasalrepousanoleito,
aparentementedeformainocente,masalgodeveter-sepassado,pois
umacriançanuachegapelosaresepenetranabocadamulher “a
criaçãodaalmahumanapelanatureza”.
DuranteoséculoXIVesobretudoduranteoséculoXV,essesti-
posmedievaisevoluiríam,masnosentidojáindicadonoséculoXIIL
Dissemosqueoanjo-adolescente animariaaindaapinturareligiosa
doséculoXV,semgrandealteração*Poroutrolado,otemadain-
fânciasagrada,apartirdoséculoXÍV,nãodeixariamaisdeseam-
pliaredesediversificar:suafortunaesuafecundidadesãoumteste-
munhodoprogressonaconsciênciacoletivadessesentimentodain-
fância,queapenasumobservadoratentopoderiaisolarnoséculo
XIü,equenãoexistiadetodonoséculoXENogrupoformadopor
Jesusesuamãe,oartistasublinhariaosaspectosgraciosos,ternose
ingênuosdaprimeirainfância;acriançaprocurandooseiodamãe
oupreparando-separabeijá-laouacariciá-la; acriançabrincando
comosbrinquedostradicionaisdainfância,comumpássaroamarra-
doouumafruta;acriançacomendoseumingau;acriançasendoen-
roladaemseuscueiros.Todososgestosobserváveis-aomenospara
aquelequedesejasseprestaratençãoneles-jáeramreproduzidos,
Essestraçosderealismosentimentaltardaramaseestenderalemdas
fronteirasdaiconografia religiosa,masnãonosdevemossurpreen-
dercomisso;sabemosqueomesmoaconteceucomapaisageme
comacenadegênero.ÀverdadeéqueogrupodaVirgemcomome-
ninosetransformou esetornoucadavezmaisprofano:aimagemde
umaccnadavidaquotidiana.
Timidamentenoinício,easeguircommaiorfreqüência,ain-
fânciareligiosadeixoudeselimitarâinfânciadeJesus.Surgiuem
primeirolugarainfânciadaVirgem,queinspirouaomenosdoiste-
masnovosefrequentes:otemadonascimentodaVirgem-pessoas
noquartodeSant
T
Anaatarefadasemtornodarecém-nascida,queè
13Rampilly.
34Vçrnota5*destecapítulo.
15Miroird'humiUtê,Valendennes, 18,iníciodoséculoXV.
ADESCOBERTADAINFÂNCIA 55
banhada,agasalhadaeapresentadaàmãe-eotemadaeducaçãoda
Virgem,daliçãodeleitura-aVirgemacompanhandosualiçãonum
livroqueSanTAnasegura.Depois,surgiramasoutrasinfânciassan-
tas:adeSãoJoão,ocompanheirodejogosdomeninoJesus,ade
SãoTiago,eadosfilhosdasmulheressantas,Maria-ZebedeueMa-
riaSalomé.Umaiconografiainteiramentenovaseformouassim,
multiplicando cenasdecriançaseprocurandoreunirnosmesmos
conjuntosogrupodessascriançassantas,comousemsuasmães*
Essaiconografia,quedemodogeralremontavaaoséculoXIV,
coincidiucomumflorescimentodehistóriasdecriançasnaslendas
e
contospios,comoosdosMlradesNotre-Dame.Elasemanteveatéo
séculoXVII,epodemosacompanhá-lanapintura,natapeçariaena
escultura.Voltaremosaela,aliás,apropósitodasdevoçõesdainfân-
cia.
Dessaiconografiareligiosadainfância,iriafinalmentedestacar-
seumaiconografialeiganosséculosXVeXVI.Nãoeraaindaare-
presentaçãodacriançasozinha.Acenadegênerosedesenvolveu
nessaépocaatravésdatransformaçãodeumaiconografiaalegórica
convencional, inspiradanaconcepçãoantigo-medievaldanatureza:
idadesdavida,estações,sentidos,elementos*Ascenasdegêneroeas
pinturasanedóticascomeçaramasubstituirasrepresentações estáti-
casdepersonagenssimbólicas.Voltaremoscommaisvagaraessa
evolução
16
.Salientemosaquiapenasofatodequeacriançasetor-
nouumadaspersonagensmaisfreqüentesdessaspinturasanedóti-
cas:acriançacomsuafamília;acriançacomseuscompanheirosde
jogos,muitasvezesadultos;acriançanamultidão,mas“ressaltada”
nocolodesuamãeousegurapelamão,oubrincando,ouaindauri-
nando;acriançanomeiodopovoassistindoaosmilagresouaos
martírios,ouvindoprédicas,acompanhando osritoslitürgiços,as
apresentaçõesouascircuncisões;acriançaaprendizdeumourives,
deumpintoretc*;ouacriançanaescola,umtemafrequenteeantigo,
queremontavaaoséculoXIVequenaomaisdeixariadeinspiraras
cenasdegêneroatéoséculoXIX.
Maisumavez,nãonosiludamos:essascenasdegêneroemgeral
naoseconsagravamàdescriçãoexclusivadainfância,masmuitasve-
zestinhamnascriançassuasprotagonistasprincipaisousecundárias.
Issonossugereduasidéias:primeiro,adequenavidaquotidianaas
criançasestavammisturadascomosadultos,etodareuniãoparao
trabalho,opasseioouojogoreuniacriançaseadultos;segundo,a
idéiadequeospintoresgostavamespecialmente derepresentara
16Infra,parte111,cap*2.

56 HISTÓRJASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLÍA
criançaporsuagraçaouporseupitoresco(ogostodopitorescoane-
dóticodesenvolveu-senosséculosXVeXVIecoincidiucomosenti-
mentodainfância“engraçadinha”), esecompraziamemsublinhara
presençadacriançadentrodogrupooudamultidão.Dessasduas
idéias,umanosparecearcaica:temoshoje,assimcomonofimdosé-
culoXIX,umatendênciaasepararomundodascriançasdomundo
dosadultos,Aoutraidéia,aocontrário,anunciaosentimentomo-
dernodainfância.
Enquantoaorigemdostemasdoanjo,dasinfânciassantasede
suasposterioresevoluçõesiconográficasremontavaaoséculoXIII,
noséculoXVsurgiramdoistiposnovosderepresentaçãodainfân-
cia:oretratoeoputto.Acriança,comovimos,nãoestavaausenteda
IdadeMédia,aomenosapartirdoséculoXIII,masnuncaerao
modelodeumretrato,deumretratodeumacriançareal,talcomo
elaaparecianumdeterminadomomentodesuavida.
Nasefígiesfunerárias,cujadescriçãofoiconservadaporGaig-
nières acriançasóapareceumuitotarde,noséculoXVLFatocu-
rioso,elaapareceudeinícionãoemseuprópriotúmuloounode
seuspais,masnodeseusprofessores,Nassepulturasdosmestresde
Bolonha,representou-seumacenadeaula,comoprofessornomeio
deseusalunos'\Jáem1378,oCardealdeLaGrange,Bispode
Amiens,mandararepresentarosdoisPríncipesdequehaviasidotu-
tor,dedezeseteanos,numa“bdapilastra”desuacatedral
S9
.Nin-
guémpensavaemconservaroretratodeumacriançaquetivesse
sobrevividoesetornadoadultaouquetivessemorridopequena,No
primeirocaso,ainfânciaeraapenasumafasesemimportância,que
nãofaziasentidofixarnalembrança;nosegundo,odacriançamor-
ta,nãoseconsideravaqueessacoisínhadesaparecidatãocedofosse
dignadelembrança:haviatantascrianças,cujasobrevivênciaeratão
problemática.Osentimentodequesefaziamváriascriançaspara
conservarapenasalgumaseraedurantemuitotempopermaneceu
muitoforte.AindanoséculoXVII,emLeCaqueíderaeeouchée
,ve-
mosumavizinha,mulherdeumrelator,tranqüilizarassimumamu-
lherinquieta,mãedecinco“pestes”,equeacabaradedaràluz:
“Antesqueelestepossamcausarmuitosproblemas,tuterásperdido
ametade,equemsabetodos”.Estranhoconsolo Aspessoasnâo
17Gíiignières,LesTombeaux.
18G.Zaceagriuii,LaViradeiMaestriedegliscolarinellastudiodiBologna,Genebra,
!926,prIX,X,..
19Antes,asrepresentações decriançasnostúmuloseramexcepcionais.
20LeCaqueíde1’accouchée, 1622.
ADESCOBERTADAINFÂNCIA 57
sepodiamapegarmuitoaalgoqueeraconsideradoumaperdaeven-
tual.Issoexplicaalgumaspalavrasquechocamnossasensibilidade
moderna,comoestasdeMontaigne:“Perdídoisoutrêsfilhospeque-
nos,nãosemtristeza,massemdesespero
3I
”,ouestasdeMolière,a
respeitodaLouisondeLeMaladeImaginaire :“Apequenanãocon-
ta,”Aopiniãocomumdevia,comoMontaigne,“nãoreconhecernas
criançasnemmovimentonaalma,nemformareconhecívelnocor-
po.”M
me
deSévignérelatasemsurpresa
23
palavrassemelhantesde
M
me
deCoetquen,quandoestadesmaioucomanotíciadamortede
suafilhinha:“Elaficoumuitoaflita,edissequejamaisteráumaou-
tratãobonita”.
Nãosepensava,comonormalmenteacreditamos hoje,quea
criançajácontivesseapersonalidadedeumhomem.Elasmorriam
emgrandenúmero.“Asminhasmorremtodaspequenas”,diziaain-
daMontaigne.Essaindiferençaeraumaconseqüênciadiretaeinevi-
táveldademografiadaépoca.PersistiuatéoséculoXIX,nocampo,
namedidaemqueeracompatívelcomocristianismo,querespeitava
nacriançabatizadaaalmaimortal.Constaquedurantemuitotempo
seconservounoPaísBascoohábitodeenterraremcasa,nojardim,
acriançamortasembatismo.Talvezhouvesseaíumasobrevivência
deritosmuitoantigos,deoferendassacrificais.Ouseráquesimples-
menteascriançasmortasmuitocedoeramenterradasemqualquer
lugar,comohojeseenterraumanimaldoméstico,umgatoouumca-
chorro?Acriançaeratãoinsignificante,tãomalentradanavida,que
nãosetemiaqueapósamorteelavoltasseparaimportunarosvivos.
ÉinteressantenotarquenagravuraliminardaTabulaCebetis
23
,Me-
riancolocouascriancinhasnumaespéciedezonamarginal,entrea
terradeondeelassaírameavidaemqueaindanãopenetraram,eda
qualestãoseparadasporumpórticocomainscriçãoIntroitusadW-
tam.Atéhojenósnãofalamosemcomeçaravidanosentidodesair
dainfância?Essesentimentodeindiferençacomrelaçãoaumainfân-
ciademasiadofrágil,emqueapossibilidadedeperdaémuitogran-
de,nofundonãoestámuitolongedainsensibilidadedassociedades
romanasouchinesas,quepraticavamoabandonodascriançasre-
cém-nascidas.Compreendemos entãooabismoqueseparaanossa
concepçãodainfânciaanterioràrevoluçãodemográficaouaseus
preâmbulos.Nãonosdevemossurpreenderdiantedessainsensibili-
21Montaigne, Essais, 11,8.
22M™deSévigné,Lettres ,19deagostode1671.
23Merian,TabulaCebetis
T1655.Cf.R.Ubègne,
deCehes’%inAris,1952,pp.167-171.
'LePeintreVarin*
1
e“LeTableau

58 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
dade,poiselaeraabsotutamenlenaturalnascondiçõesdemográficas
daépoca.Poroutrolado,devemosnossurpreendersimcomapreco-
cidadedosentimentodainfância,enquantoascondiçõesdemográfi-
cascontinuavam alheseraindatâopoucofavoráveis. Estatistica-
mente,objetivamente, essesentimentodeveriatersurgidomuito
maistarde.Aindasecompreendeogostopelopitorescoepelagraça
dessepequenoser,ouosentimentodainfância“engraçadinha”,com
quenós,adultos,nosdivertimos“paranossopassatempo,assim
comonosdivertimoscomosmacacos
24
”.Essesentimentopodia
muitobemseacomodaràindiferençacomrelaçãoàpersonalidade
essencialedefinitivadacriança,aalmaimortal.Ogostonovopelo
retratoindicavaqueascriançascomeçavam asairdoanonimatoem
quesuapoucapossibilidadedesobreviverasmantinha.Énotável,de
fato,quenessaépocadedesperdíciodemográfico setenhasentidoo
desejodefixarostraçosdeumacriançaquecontinuariaaviveroude
umacriançamorta,afimdeconservarsualembrança,Oretratoda
criançamorta,particularmente,provaqueessacriançanãoeramais
tâogeralmenteconsideradacomoumaperdainevitável.Essaatitude
mentalnãoeliminavaosentimentocontrário,odeMontaigne,oda
vizinhadamulherquedáàluzeodeMolière:atéoséculoXVIII,
elescoexistiriam.FoisomentenoséculoXVIII,comosurgimentodo
malthosianismo eaextensãodaspráticascontraceptívas,queaidéia
dedesperdícionecessáriodesapareceu.
OaparecimentodoretratodacriançamortanoséculoXVImar-
couportantoummomentomuitoimportantenahistóriadossenti-
mentos.Esseretratoseriainicialmenteumaefígiefunerária.Acrian-
çanoinícionãoseriarepresentadasozinha,esimsobreotúmulode
seuspais.OsregistrosdeGaignières
25
mostramacriançabempe-
quenaeaoladodesuamãe,ouentãoaospésdeseuspais.Essestú-
mulossãotodosdoséculoXVI:1503,1530e1560,Entreostúmulos
curiososdaabadiadeWestminster, figuraodaMarquesadeWin-
chester,mortaem1586
2
*.AMarquesafoirepresentadadeitada,em
tamanhonatural.Napartefrontaldotúmulo,aparecemempequena
escalaaestátuaajoelhadadoMarquêsseumarido,eominúsculotú-
mulodeumacriançamorta.AindaemWestminster,oCondeea
CondessadeShrewsburyestãorepresentadossobreumtúmulode
1615-1620.Estãodeitados,esuafilhinhaapareceajoelhadaaseus
péscomasmãospostas.Observamosqueascriançasquecercamos
24Montaigne,Essais, lí,8.
25Gaignières,Tombeaux .
26Fr.Bond,WestminsterAhbey,Londres,1909.
ADESCOBERTADAINFÂNCIA 59
defuntosnemsempreestavammortas:eratodaafamíliaquesereu-
niaemtornodeseuschefes,comonomomentoderecolherseuúlti-
mosuspiro.Masaoladodascriançasaindavivas,eramrepresenta-
dascriançasquejáhaviammorrido;umsinalasdistingue:elassão
menoreseseguramnasmãosumacruz(comonotúmulodeJohn
CokeemHalkham, 1639),ouumacaveira:notúmulodeCope
D’AyleyemHambledone(1633),quatromeninosetrêsmeninascer-
camosdefuntos,eummeninoeumameninaseguramumacaveira.
NomuseudosAugustins,emToulouse,existeumtrípticomuito
curiosoprovenientedacoleçãoDuMège
2
\Ospainéissãodatados
de1610.Décadaladodeumadescidadacruz,estãopintadososdoa-
doresajoelhados,ummaridoeumamulher,esuaidade.Ambostêm
63anos.Aoladodohomem,vemosumacriançavestidacomotraje
entãousadopelascriançasdemenosdecincoanos:ovestidoeo
aventaldasmeninas
2
\eumagrandetoucaenfeitadacomplumas.A
criançaestávestidacomcoresvivasericas,verdebrocadodeouro,
queacentuamaseveridadedasroupaspretasdosdoadores,Essamu-
lherde63anosnãopodiaterumfilhodecinco.Tratava-sedeuma
criançamorta,semdúvida,umfilhoúnicocujalembrançaeraguar-
dadapelovelhocasal:elesquiserammostrá-loaseuladoemsuas
roupasmaisbonitas.
Eraumhábitopiedosoofereceràsigrejasumquadroouumvi-
tral,e,noséculoXVI,odoadorcostumavafazer-serepresentarcom
todaasuafamília.Nasigrejasalemãs,podemosverainda,pendura-
dosnaspilastrasounasparedes,numerososquadrosdessegênero,
quesão,defato,retratosdefamília.Numdeles,dasegundametade
doséculoXVI,naigrejadeSãoSebastiãodeNurembergue, vê-sena
frenteopai,atrásdeledoisfilhosjágrandeseamassamaldiferencia-
dadeseismeninosamontoados,escondendo-seunsatrásdosoutros,
detalformaquealgunssãoquaseimperceptíveis.Nãoseriamcrian-
çasmortas?
Umquadrosemelhante,datadode1560econservadonomuseu
deBregenz,traznasbandeirolasasidadesdascrianças:trêsmeninos
deum,doisetrêsanos,ecincomeninasdeum,dois,três,quatroe
cincoanos.Ora,amaisvelha,decincoanos,temomesmotamanho
eamesmaroupadamenor,deumano.Foi-lhedeixadoumlugarna
cenafamiliar,comoseelafosseviva,masseuretratoarepresentava
naidadeemquemorreu.
Essasfamíliasalinhadassãoobrasingênuas,semtécnica,monó-
tonasesemestilo:seusautores,assimcomoosmodelos,sãodesco-
27MuséedesAugustins,n
?465docatálogo.Ospainéissaodatadosde1610.
28VanDyck.K.derK,pr,CCXIV.

60 HISTÓRIASOCÍALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
nheçidoseobscuros.Noscasos,porém,emqueodoadorrecorreua
umpintorfamoso,aquestãomudadefigura:oshistoriadoresdaarte
semprerealizamaspesquisasnecessáriasàidentificaçãodaspersona-
gensdeumatelacélebre.ÉocasodafamíliaMeyer,queHolbeinre-
presentouem1526aopédaVirgem.Sabemosquedasseispersona-
gensdacomposição,trêsestavammortasem1526:aprimeiramulher
deJacobMeyereseusdoisfilhos,ummortoaos10anoseooutro
aindamenor,estandoesteúltimonu.
Essecostume,defato,tornou-secomumdoséculoXVIatémea-
dosdoXVII.OmuseudeVersalhesconservaumquadrodeNorcret
querepresentaasfamíliasdeLuísXIVedeseuirmão,atelaêcélebre
porqueoReieosPríncipes-aomenososhomens-aparecemsemi-
nus,comoosdeusesdoOlimpo.Gostaríamosdesalientaraquium
detalhe:aopédeLuísXIV,noprimeiroplano,Norcretpintouore-
tratoemolduradodeduascriancinhas,mortasmuitonovas.Inicial-
mente,portanto,acriançaapareciaaoladodeseuspaisnosretratos
defamília.
JánofimdoséculoXVI,osregistrosdeGaigrtièresapontamtú-
muloscomefígiesdecriançasisoladas:umdelesdatade1584eoou-
tro,de1608.Acriançaérepresentadacomotrajepeculiaràsuaida-
de,devestidoetouca,comoacriançadadescidadacruzdoquadro
deToulouse.Quando,numperíododedoisanos,entre1606e1607,
Jaime Iperdeuduasfilhas,umacomtrêsdiaseaoutracomdois
anos,mandou-asrepresentarsobreseustúmulosdeWestminster
comtodososseusadereços,equisqueamenorrepousassenumber-
çodealabastroemquetodososacessórios-comoasrendasdarou-
paedatouca-fossemfielmentereproduzidosparadarailusãode
realidade.Umainscriçãoindicabemosentimentopiedosoquedo-
tavaessacriançadetrêsdiasdeumapersonalidade definitiva:Rosula
Regiaprae-properaFatodecerpta,parentibuserepta,utinChristiRo-
sáriorejloreseat.
Aforaasefígiesfunerárias,osretratosdecriançasisoladasde
seuspaiscontinuaramrarosatéofimdoséculoXVI;lembremoso
retratodoDelfimCarlosOrlandopeloMaítredesMoulins(outro
testemunhodapiedadesentidapelascriançasdesaparecidas cedò).
Poroutrolado,noiníciodoséculoXVII,essesretratossetornaram
muitonumerosos,esentimosquesehaviacriadoohábitodeconser-
varatravésdaartedopintoroaspectofugazdainfância.Nessesre-
tratosacriançaseseparavadafamíliacomoumséculoantes,noiní-
ciodoséculoXVI,afamíliasesepararadapartereligiosadoquadro
dodoador.Acriançaagoraerarepresentadasozinhaeporelames-
ma:estafoiagrandenovidadedoséculoXVILÀcriançaseriaumde
seusmodelosfavoritos.Osexemplossãoabundantesentreospinto-
ADESCOBERTADAINFÂNCIA 61
resfamosos:Rubens,VanDyck,FranzHals,LeNain,Philippede
Champaigne.Algunsdessespintoresretratarampequenospríncipes,
comoosfilhosdeCarlos 1deVanDyck,ouosdeJaimeIIdeLar-
gillíère.Outrospintaramosfilhosdegrandessenhores,comoastrês
criançasdeVanDyck,amaisvelhadasquaistrazumaespada.Ou-
trosainda,comoLeNainouPhilippedeChampaigne,pintaramos
filhosdeburguesesricos.Algumasvezes,umainscriçãoforneceo
nomeeaidadedacriança,comoeraocostumeantigoparaosadul-
tos.Oraacriançaestásozinha(veraobradePhilippedeChampaig-
neemGrenoble),oraopintorreúneváriascriançasdamesmafamí-
lia.Esteúltimoéumestiloderetratobanal,repetidopormuitospin-
toresanônimos,eencontradocomfreqüêncianosmuseusdeprovín-
ciaounosantiquários.Cadafamíliaagoraqueriapossuirretratosde
seusfilhos,mesmonaidadeemqueelesaindaeramcrianças.Esse
costumenasceunoséculoXVIIenuncamaisdesapareceu.Nosécul
XIX,afotografiasubstituiuapintura:osentimentonãomudou
Antesdeencerrarmosoassuntoretrato,éimportantemencio-
narasrepresentaçõesdecriançasemex-votos,quecomeçamaser
descobertosaquieacolá:existemalgunsnomuseudacatedralde
Puy,eaExposiçãodoséculoXVII,de1958,emParis,revelouuma
surpreendentecriançadoente,quetambémdeveserumex-voto.
Assim,emboraascondiçõesdemográficasnãotenhammudado
muitodoséculoXIHaoXVII,emboraamortalidade infantilsete-
nha'tnantidonumnívelmuitoelevado,umanovasensibilidade atri-
buiuaessesseresfrágeiseameaçadosumaparticularidadequeantes
ninguémseimportavaemreconhecer: foicomoseaconsciênciaco-
mumsóentãodescobrissequeaalmadacriançatambémeraimor-
tal.Écertoqueessaimportânciadadaàpersonalidadedacriançase
ligavaaumacristianizaçãomaisprofundadoscostumes,
Esseinteressepelacriançaprecedeuemmaisdeumséculoamu-
dançadascondiçõesdemográficas,quepodemosdataraproximada-
mentedadescobertadeJenner.CorrespondênciascomoadoGene-
raldeMartange
2*
mostramquealgumasfamíliasentãofizeram
questãodevacinarsuascrianças.Essaprecauçãocontraavaríola
traduziaumestadodeespíritoquedeveterfavorecidotambémou-
traspráticasdehigiene,provocandoumareduçãodamortalidade,
queempartefoicompensadaporumcontroledanatalidadecadavez
maisdifundido.
UmaoutrarepresentaçãodacriançadesconhecidadaIdadeMé-
diaéoputto
,acriancinhanua,OputtosurgiunofimdoséculoXVI,
29Çorrespondance inêditedugênêraideMartange,ed.Bréard,1893

62 HISTÓRIASOCIALDACÍUANÇAEDAFAMÍLIA
e,semamenordúvida,representouumarevivescênciadoEroshe-
lenístico.Otemadacriançanuafoilogoextremamentebemrecebi-
do,atémesmonaFrança,ondeoitalianísmoencontravacertasresis-
tênciasnativas-ODuquedeBerry
30
,deacordocomseusinventários,
possuíaumachambreauxenfantsouum"‘quartodascrianças",ou
seja,umaposentoornadocomtapeçariasdecoradascomputti.Van
Marlesepergunta“sealgumasvezesosescribasdosinventáriosnâo
chamavamdeenfantsaquelesanjinhossemipagâos,aquelesputtique
tantasvezesadornamafolhagemdastapeçariasdasegundametade
doséculoXV-
1’
NoséculoXVI,comosabemosmuitobem,osputtiinvadirama
pinturaesetornaramummotivodecorativorepetidoadnauseam.
Ticiano,emparticular,usoueabusoudosputti:lembremoso
“TriunfodeVénus”doPrado.
OséculoXVIInãopareceucansadodotema,queremRoma,
emNápoles,ouemVersalhes,ondeosputtiaindaconservavamoan-
tigonomedemarmousets.Apinturareligiosatampoucoescaparia
deles,graçasàtransformaçãodoanjo-adolescentemedievalemput-
to.Comexceçãodoanjodaguarda,deagoraemdianteoanjonão
seriamaisoadolescentequeaindasevênastelasdeRotticelli:ele
tambémsetransformaranumpequenoErosnu,mesmoquando,
parasatisfazeropudorpós-tridentino,suanudezeraencobertapor
nuvens,vaporesouvéus,Anudezdoputtoconquistouatémesmoo
meninoJesuseasoutrascriançassagradas.Quandoanudezcomple-
tarepugnavaaoartista,elaeraapenastornadamaisdiscreta.Evita-
va-sevestiromeninoJesuscommuitasroupasoucueiros:eramos-
tradonomomentoemquesuamãedesenrolavaseuscueiros
n
,ou
entãoapareciacomosombroseaspernasdespidas,PèreduColom-
bierjáobservouapropósitodaspinturasdeLuccadeliaRobbiado
HapitaidesInnocentsquenãoerapossívelrepresentarainfância
semevocar-lheanudezOgostopelanudezdacriançaevidente-
menteestavaligadoaogostogeralpelanudezclássica,quecomeçava
aconquistaratémesmooretrato.Masoprimeiroduroumaistempo,
econquistoutodaaartedecorativa:lembremo-nosdeVersalhes,ou
dotetodaVillaBorgheseemRoma.Ogostopeloputtocorrespondia
aalgomaisprofundodoqueogostopelanudezclássica,aalgoque
deveserrelacionadocomumamplomovimentodeinteresseemfa-
vordainfância.
30VanMarle,op.ciL;I,p.7L
31Baldovinettí,"AVirgemeoMenino",Louvre,
32P.duColombier, op.ctí,
ADESCOBERTADAINFÂNCIA
63
Assimcomoacriançamedieva!,criançasagradaoualegoriada
alma,ouserangéüco,oputtonuncafoiumacriançareal,histórica,
nemnoséculoXV,nemnoXVI.Estefatoénotável,poisotemado
puttonasceuesedesenvolveuaomesmotempoqueoretratoda
criança.MasascriançasdosretratosdosséculosXVeXVInãosão
nuncaouquasenuncacriançasnuas.Ouestãoenroladasemcueiros,
mesmoquandorepresentadasdejoelhos
3J
,ouentãovestemotraje
própriodesuaidadeecondição,Nãoseimaginavaacriançahistóri-
ca,mesmomuitopequena,comanudezdacriançamitológicaeor-
namental,eessadistinçãopersistiudurantemuitotempo.
Oúltimoepisódiodaiconografia infantilseriaaaplicaçãoda
nudezdecorativadoputtoaoretratodacriança.Issoaconteceutam-
bémnoséculoXVII.NoséculoXVI,jápodemosapontaralgunsre-
tratosdecriançasnuas.Maselessãoraros:umdosmaisantigostal-
vezsejaodacriançamortamuitopequenadafamíliaMeyer,pintada
porHolbein(1521):nãopodemosnosimpedirdepensarnaalmame-
dieval.NumasaladopaláciodeInnsbruck,existetambémumatela
emqueMariaTeresaquisreunirtodososseusfilhos:aoladodosvi-
vos,umaprincesamortafoirepresentadanumanudezpudicamente
encobertapordrapeados.
NumateladeTicianode1571ou1575
34
,FilipeII,numgestode
oferenda,estendeàVitóriaseufilho,oinfanteFerdinando,comple-
tamentenu:omeninolembraoputtousualdeTiciano,eparece
acharasituaçãomuitoengraçada:osputtiquasesempresãorepre-
senladosbrincando.
Em1560,Veronesepintou,segundoocostume,afamíliaCuci-
na-FiaccoreunidadiantedaVirgemeoMenino:trêshomens,sendo
umopai,umamulher,amãe,eseisfilhos.Naextremadireita,uma
mulherestáquasecortadaaometopelolimitedoquadro:eiasegura
nocotoumacriançanua,damesmaformacomoaVirgemsegurao
MeninoJesus,eessasemelhançaéacentuadapelofatodeamulher
nãoestarvestindootrajerealdesuaépoca.Elanãoéamãe,poises-
táafastadadocentrodacena.Seriaaamadofilhomaisnovo
J5
?
UmapinturadoholandêsP.AertsendomeadodoséculoXVIrepre-
sentaumafamília:opai,ummeninodeaproximadamente cinco
anos,umameninadequatro,eamãesentadacomumacriancinha
nocolo
33
“VirgemnoTrono",retratopresumidodeBéatnceD*Este,1496.
.34“GlorificaçãodaVitóriadeLeparúo",Prado.
35PinacotecadeDresden.
36ReproduzidoemH.Gerson,DertederíandseShitderkunst*2vols.,1952,tomoI,p,
145,

HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
u4
Certamenteexistemoutroscasos,queumapesquisamaispro-
lundarevelaria:nãoeram,porém,suficientementenumerosospara
-narumgostocomumegeral.
NoséculoXVIÍ,osexemplostornaram-semaisnumerososeca-
racterísticos:lembremosoretratodeHélèneFourmentdeMunique,
segurandonocoloofilhonu,quesedistinguedoputtobanalnãosó
pelasemelhançacomamãe,mastambémporumatoucacomplu-
mas,dogêneroentãousadopelascrianças.OúltimofilhodeCarlos I
pintadoporVanDyckem1637apareceaoladodeseusirmãoseir-
mãs,nuesemi-envoltonolençolsobreoqualestádeitado.
“Aorepresentarem1647obanqueiroecolecionadorJabachem
suacgsadaRuaSaint-Merri,escreveHautecoeur
37
,LeBrunmostra-
nosessehomempoderosovestidosimplesmente,comasmeiasmal
esticadas,comentandocomamulhereofilhosuaúltimaaquisição...
seusoutrosfilhosestãopresentes:omaisnovo,nucomooMenino
Jesus,repousasobreumaalmofada,esuairmãbrincacomele.”O
pequenoJabach,muitomaisdoqueascriançasnuasdeHolbein,Ve-
ronese,Ticiano,VanDyckemesmoRubens,temexatamenteames-
maposedobebêmodernodiantedacâmeradeumfotógrafodeestú-
dio.Anudezdacriançapequenadaíemdiantesetornariaumacon-
vençãodogênero,etodasascriancinhasquesemprehaviamsidoce-
rimoniosamente vestidasnotempodeLeNainePhilippedeCham-
paigneseriamrepresentadasnuas.Essaconvençãopodeserobserva-
datantonaobradeLargillière,pintordaalta-burguesia,comonade
Mignard,opintordacorte:ofilhomaisnovodogrande-delfimdo
quadrodeMignardconservadonoLouvreaparecenusobreumaal-
mofadaaoladodesuamãe,talcomoopequenoJabach.
Acriançaapareceoucompletamente nua,comonoretratodo
CondedeToulousedeMignard

,emqueanudezdomeninoévela-
dapelaalçadeumafitadesenroladacomessefim,ounoretratode
umacriançasegurandoumafoicedeLargillière oubemacriança
aparecevestida,nãocomumaroupaverdadeira,semelhanteaotraje
usadonaépoca,mascomumnégtigéquenãolhecobretodaanudez
eadeixaintencionalmente transparecer: vejam-seosretratosde
criançasdeBelle,emqueaspernaseospésaparecemnus,ouoDu-
quedeBorgonhadeMignard,vestidoapenascomumacamisaleve.
Nãoénecessárioacompanharmos pormaistempoahistóriadesse
tema,quesetornouconvencional.Reencontrá-lo-emos finalmente
nosálbunsdefamíliaenasvitrinasdos“fotógrafosdearte”deon-
37L.Hautecoeur,LesPeintresdelaviefamUiaíe,1945,p.40.
38MuseudeVersalhes,
39^Rouches,“LargilHêre,peintred’enfantV\RevuedetArtancienetmodeme
,1923,p.
ADESCOBERTADAINFÂNCIA
65
tem:bebêsmostrandosuaspequenasnádegasapenasparaapose
(poisnormalmenteerameuidadosamente cobertascomfraldase
cueiros)emenininhosemenininhasvestidosparaafotografiaapenas
comumacamisatransparente.Nãohaviaumacriançacujaimagem
nãofosseconservadaemsuanudez,diretamenteherdadadosputíi
doRenascimento: singularpersistêncianogostocoletivo,tantobur-
guêscomopopular,deumtemaqueoriginalmente foidecorativo.O
Erosantigo,redescobertonoséculoXV,continuouaservirdemode-
loparaos“retratosartísticos’'dosséculosXIXeXX.
Oleitordestaspáginassemdúvidateránotadoaimportânciado
séculoXVI)naevoluçãodostemasdaprimeirainfância..Foinosé-
culoXVIIqueosretratosdecriançassozinhassetornaramnumero-
sosecomuns.Foitambémnesseséculoqueosretratosdefamília,
muitomaisantigos,tenderamaseorganizaremtornodacriança,
quesetornouocentrodacomposição.Essaconcentraçãoemtorno
dacriançaéparticularmente notávelnogrupofamiliardeRubens
40
,
emqueamãeseguraacriançapeioombroeopaidá-lheamão,e
nosquadrosdeFranzHals,VanDyckeLebrun,emqueascrianças
sebeijam,seabraçameanimamogrupodosadultossérioscomsuas
brincadeirasecarinhos.Opintorbarrocoapoiou-senascrianças
paradaraoretratodegrupoodinamismoquelhefaltava.Também
noséculoXVII,acenadegênerodeuàcriançaumlugarprivilegia-
do,cominúmerascenasdeinfânciadecaráterconvencional:alição
deleitura,emquesobrevivesobumaformaleigaotemadalíçãoda
VirgemdaiconografiareligiosadosséculosXIVeXV,aliçãodemú-
sica,ougruposdemeninosemeninaslendo,desenhandoebrincan-
do.Poderíamoscontinuarenumerandoindefinidamente todosesses
temastãocomunsnapintura,sobretudodaprimeirametadedosécu-
lo,easeguirnagravura.Enfim,comovimos,foinasegundametade
doséculoXVIIqueanudezsetornouumaconvençãorigorosanos
retratosdecrianças.Àdescobertadainfânciacomeçousemdúvida
noséculoXIII,esuaevoluçãopodeseracompanhadanahistóriada
arteenaiconografiadosséculosXVeXVI.Masossinaisdeseude-
senvolvimentotornaram-separticularmentenumerososesignificati-
vosapartirdofimdoséculoXVIeduranteoséculoXVlO
Essefatoéconfirmadopelogostomanifestadonamesmaépoca
peloshábitosepelojargãodascriançaspequenas.Jáassinalamosno
capítuloanteriorqueascriançasreceberamentãonovosnomes:
40Orcade1609.Karlsruhe,Rubens,ed.Verlags,p.34.

66 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
bambins,piíchounsefanfans.Osadultosinteressaram-setambémem
registrarasexpressõesdascriançaseemempregarseuvocabulário,
ouseja,ovocabulárioutilizadopelasamasquandoestaslhesfala-
vam.Émuitoraroquealiteratura,mesmopopular,conservevestí-
giosdojargãodascrianças,Noentanto,algunsdessesvestígiossâo
encontradosnaDivinaComédia
45
4
“Queglóriaterástuamaissedei-
xaresumacarneenvelhecida,doquesetivessesmorridoantesdepa-
rardedizerpappoedindi,antesquemilanossepassassem".Pappo
significapão*ÁpalavraexistianofrancêsdaépocadeDante:papin.
Encontramo-lanumdosMiraclesNotre-Dame
,oda“criancinhaque
dádecomeràimagemdeJesusnocolodeNossaSenhora”,“Assim,
colocou-lheopapinsobreabocadizendo;papez(come),belaedoce
criança,porfavor.Entãoelecomeuumpedaçodepapin:come,
criança,disseomenino,equeDeusteajude.Vejoquemorresdefo-
me.Comeumpoucodomeubolooudeminhafogaça.”Masapala-
vrapapinseriarealmentereservadaàinfânciaoupertenceriaàlíngua
familiardodia-a-dia?Qualquerquesejaaresposta,osMiraciesNo-
tre-Dame
,assimcomooutrostextosdoséculoXIV,revelamumgos-
toindiscutívelpelainfânciareal.Istonãoimpede,porém,queasalu-
sõesaojargãodainfânciatenhampermanecidoexcepcionaisantes
doséculoXVII.NoséculoXVII,elastornam-seabundantes.Veja-
mosalgunsexemplos,entreaslegendasdeumacoletâneadegravu-
rasdeBouzonneteSteila,datadade1657
A%
.Essacoletâneacontém
umasériedepranchasgravadasquerepresentamputtibrincando.Os
desenhosnãotêmnenhumaoriginalidade,masaslegendas,escritas
emversosdepéssimaqualidade,falamojargãodaprimeirainfân-
ciaeagíriadajuventudeescolar,poisnaépocaoslimitesdaprimeira
infânciacontinuavam bastanteimprecisos.Algunsputtibrincam
comcavalosdepau-títulodaprancha;

LeDada'\(ocavalinho).
Desputtijouentauxdês,lunesthorsdajeu:
Et1'autre.senvoyantexclufdujeu
}
Avecsontoutouseconsole*
OpapindosséculosXIV-XVdevetercaídoemdesuso,aome-
nosnofrancêsdascriançasburguesas,talvezpelofatodenâoserum
termoespecíficodaprimeirainfância.Masoutrostermosinfantis
surgiram,econtinuamvivosatéhoje:toutou(au-au)edada(cavali-
nho).
41Purgatório^XI,pp.103-106,
42Cl.Boiuonnet,JeuxdeVenfance
,Í657(segundoStella).
*
‘"Alguns/wmjogamdados,umestáforadojogo:
/
Eooutro,vendo-seexcluído(do
jogo),
/Comseuau-auseconsola/'(N.doT.).
ADESCOBERTADAINFÂNCIA 67
Alémdojargãodasamas,osputtifalamtambémagíriadases-
colasoudasacademiasmilitares.Otrenó:
Cepopulo.romrneanCésar
Sefaittraínerdedanssonchar
*
Populo:latimdeescola.Nomesmosentidoinfantil,M
me
de
Sévignédiria,aofalardosfilhosdeM
me
deGrignan:"Cepetit
peuple
”,
Umpequenojogadorfaz-senotarporsuaastúcia;“Estecadet
parecetersorte”,Cadet :termousadonasacademias,onde,noinicio
tioséculoXVII,osjovensfidalgosaprendiamasarmas,aequitaçãoe
asartesdaguerra.
Nojogodapéla;
Avnsinuds
„legersetdispôs,
Lesenfants,dèsquilsontcampos
Pontsescrimerdelaraquete,
**
Avoircampos:expressãodasacademias,termomilitarquesigni-
ficaobterlicença.Eraumaexpressãocomumnalínguafamiliar,en-
contradatambémemM
me
deSévigné.
Nobanho,enquantoalgunsnadam:
Laplupartboiventsansmange
r
Ilasaníêdescamarades.
***
Camarades :otermo,novotambémounomáximodatandodo
fimdoséculoXVI,deviaserdeorigemmilitar(viriadosalemães,dos
mercenáriosdelínguaalemã?)epassoupelasacademias.Comotem-
po,porém,ficariareservadoàlínguafamiliarburguesa.Atéhojenâo
éusadonalínguapopular,queprefereotermomaisantigocopain,o
compaingmedieval,
Masvoltemosaojargãodaprimeirainfância.EmLePêdant
jouédeCyranodeBergerac,Grangerchamaseufilhodeseutoutou :
"Vemmedarumbeijo,vem,meutoutou"*Apalavrabonhon,que,
suponho,deveter-seoriginadonojargãodasamas,entrouemuso,
assimcomoaexpressão

beaucommemange”(belocomoumanjo),
ou"pasplusgrandquecela"(destetamanhinho),empregadaspor
M
mc
deSévigné.
*
“Estepopulo
,comoumCésar,
/
Faz-sepuxaremseucarro/
1
(N.doT.)
**
“Despidas,levesedispostas,
/Ascrianças,assimqueontcampos
/
Vãoesgrimir
comaraquete/'(N.doT.)
***
“Amaioriabebesemcomer
/Ãsaúdedoscamarades"(N.doT>),

68 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
Tentou-seregistraratémesmoasonomatopéiasdacriançaque
aindanãosabefalar,M
me
deSévigné,porexemplo,procurouanotar
osruídosemitidosporsuanetinha,paramostrá-losaM
me
de
Grignan,queestavaentãonaProvença:“Elafaladeummodoen-
graçado:etitota
ttetitay
totata
4
V’
Jánoiníciodoséculo,Heroard,omédicodeLuísXIII,havia
cuidadosamenteanotadoemseudiárioasingenuidadesdeseupupi-
lo,seusbalbuciosesuamaneiradedizar“vela"(emvezdevoilà,aqui
está),ou

êquivez”(emlugardeécrivez,escreva).
Aodescreversuanetinha,“suaamiguinha”,M
me
deSévigné
pintacenasdegêneropróximasdasdeLeNainouBosse,acrescen-
tando,porém,adelicadezadosgravadoresdofimdoséculoXVIIe
dosartistasdoséculoXVIII,“Nossameninaéumabelezinha.Émo-
renaemuitobonita.Lávemela.Dá-meumbeijolambuzado,mas
nuncagrita.Elameabraça,mereconhece, riparamimemechama
sódeMaman(emvezdeBonneMaman)”,“Euaamomuito.Mandei
cortarseuscabelos,eelaagorausaumpenteadosolto,Essepenteado
éfeitoparaela.Suatez,seupescoçoeseucorpinhosãoadmiráveis.
Elafazcempequenascoisinhas:fazcarinhos,bate,fazosinalda
cruz,pededesculpas,fazreverência,beijaamão,sacodeosombros,
dança,agrada,seguraoqueixo:enfim,elaébonitaemtudooque
faz.Distraio-mecomelahorasafio
**.”
Muitasmãeseamasjáseha-
viamsentidoassim,Masnenhumaadmitiraqueessessentimentos
fossemdignosdeserexpressosdeumaformatãoambiciosa.Essas
cenasdeinfâncialiteráriascorrespondem àscenasdapinturaeda
gravuradegênerodamesmaépoca:sãodescobertasdaprimeirain-
fância,docorpo,doshábitosedafaíadacriançapequena.
43M
mt
deSévigné,Letires,8dejaneirode1672,
4418desetembrode1671;22dedezembrode1671;20demaiode1672.
3
OTrajedasCrianças
AindiferençamarcadaqueexistiuatéoséculoXIII-anãoser
quandosetratavadeNossaSenhoramenina-pelascaracterísticas
própriasdainfâncianãoapareceapenasnomundodasimagens:o
trajedaépocacomprovaoquantoainfânciaeraentãopoucoparti-
cularizadanavidareal.Assimqueacriançadeixavaoscueiros,ou
seja,afaixadetecidoqueeraenroladaemtornodeseucorpo,elaera
vestidacomoosoutroshomensemulheresdesuacondição.Paranós
cdifícilimaginaressaconfusão,nósquedurantetantotémpousa-
moscalçascurtas,hojesinalvergonhosodeumainfânciaretardada.
Naminhageração,osmeninosdeixavamascalçascurtasnofimdo
2*anocolegial,apósumacertapressãosobrepaisrecalcitrantes:meus
puis,porexemplo,pediam-mepaciência,citandoocasodeumtioge-
neralqueentraraparaaacademiamilitardecalçascurtas!Hojeem
di.L.aadolescênciaseexpandiuparatráseparaafrente,eotrajees-
porte,adotadotantopelosadolescentescomopelascrianças,tendea
substituirasroupastípicasdainfânciadoséculoXIXeiníciodosé-

70 HISTORIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
culoXX.Emtodoocaso,seoperíodo1900-1920prolongavaainda
atémuitotardenojovemadolescenteasparticularidadesdeumtraje
reservadoàinfância;aIdadeMédiavestiaindiferentemente todasas
classesdeidade,preocupando-seapenasemmantervisíveisatravés
daroupaosdegrausdahierarquiasociaLNada,notrajemedieval,
separavaacriançadoadulto*Nãoseriapossívelimaginaratitudes
maisdiferentescomrelaçãoàinfância*
NoséculoXVII,entretanto,acriança,ouaomenosacriançade
boafamília,querfossenobreouburguesa,nàoeramaisvestida
comoosadultos.Elaagoratinhaumtrajereservadoàsuaidade,que
adistinguiadosadultosJEssefatoessencialaparecelogoaoprimeiro
olharlançadoàsnumerosasrepresentaçõesdecriançasdoiníciodo
séculoXVII.
ConsideremosabelateladePhilippedeChampaignedomuseu
deReimsquerepresentaossetefilhosdafamíliaHarbert.Ofilho
maisvelhotemdezanos,eomaismoço,oitomeses.Essapinturaê
preciosaparanossoestudo,poisoartistainscreveuaidadeprecisa,
incluindoosmeses,decadaumdeseusmodelos,Omaisvelho,de
dezanos,jásevestecomoumhomenzinho,envoltoemsuacapa:na
aparência,pertenceaomundodosadultos.Apenasnaaparência,
semdúvida,poiseledevefreqüentaroscursosdeumcolégio,eavida
escolarprolongaaidadedainfância*Masomeninocertamentenão
continuaránocolégiopormuitoteno,eodeixaráparasemisturar
aoshomenscujotrajejávesteedecujavidalogopartilharánoscam-
posmilitares,nostribunaisounocomércio.Masosdoisgêmeos,que
estãoafetuosamente demãosdadaseombroscolados,têmapenas
quatroanosenovemeses:elesnaoestãomaisvestidoscomoadultos.
Usamumvestidocomprido,diferentedaquelesdasmulheres,poisé
abertonafrenteefechadooracombotões,oracomagulhetas:mais
pareceumasotainaeclesiástica.Essemesmovestidoéencontradono
“quadrodaVidaHumana”deCebes Aí,aprimeiraidade,ainda
malsaídadonão-ser,estánua;asduaeidadesseguintesestãoenrola-
dasemcueiros.Aterceira,quedeveterporvoltadedoisanoseainda
nãoficadepésozinha,jáusaumvestido,esabemosquesetratade
ummenino.Aquartaidade,montadaemseucavalodepau,usao
mesmovestidocomprido,abertoeabotoadonafrentecomoumaso-
tainadosgêmeosHarbertdePhilippedeChampaigne.Essevestido
foiusadopelosmeninospequenosdurantetodooséculoXVII.En-
contramo-loemLuísXIIImenino,eminúmerosretratosdecrianças
franceses,ingleseseholandeses, eaténoiníciodoséculoXVIII,
1TabulaCebelis,gravuradeMerian.Cf.Lebègue,op.clí.
OTRAJEDASCRIANÇAS 71
comoporexemplonojovemdeBethisy
3
,pintadoporBelleporvolta
de1710.Nesteúltimoquadro,ovestidodomeninonaoémaisabo-
toadonafrente,mascontínuadiferentedodasmeninasenaocom-
portaacessóriosdefazendabranca*
Essevestidopodesermuitosimples,comoodacriançamonta-
daacavalodo“quadrodaVidaHumana”.Maspodetambémser
suntuosoeterminarporumacauda,comoodojovemDuquedeAn-
joudagravuradeArnoult\
Essevestidoemformadesotainanãoeraaprimeiraroupada
criançadeppisqueeladeixavaoscueiros.Voltemosaoretratodas
criançasHabert,dePhilippedeChampaigne.François,quetemum
anoe11meses,eocaçula,deoitomeses,vestem-seambosexatamen-
tecomosuairmã,ouseja,comoduasmulherzinhas: saia,vestidoe
avental.Esteeraotrajedosmeninosmenores.Tornara-sehábitono
séculoXVIvesti-loscomomeninas,eestas,porsuavez,continua-
vamasevestircomoasmulheresadultas.Aseparaçãoentrecrianças
eadultosaindanàoexistianocasodasmulheres.Erasmo,emLe
Maríagechrétien\nosdáumadescriçãodessetraje,queoseueditor
francêsde1714traduziusemdificuldade,comocoisaquepersistia
emsuaépoca:“Coloca-se(nascrianças)umacamisolacurta,meias
bemquentes,umaanáguagrossaeovestidodecima,quetolheos
ombroseosquadriscomumagrandequantidadedetecidoepregas,
ediz-seaelasquetodaessatralhalhesdáumarmaravilhoso”.Eras-
modenunciavaessamoda,novaemsuaépoca,epreconizavamaior
liberdadeparaosjovenscorpos;suaopinião,porém,naoprevaleceu
contraoscostumesefoiprecisoesperarofimdoséculoXVIIIpara
queotrajedacriançasetornassemaisleve,maisfolgado,eadeixas-
semaisávontade.UmdesenhodeRubens
3
mostra-nosumtrajede
ummeninopequenoaindaparecidocomodeErasmo:ovestido
aberto,soboqualapareceasaia.Acriançaestácomeçandoaandar
eéseguraportirasquependememsuascostas.NodiáriodeHe-
roard,quenospermiteacompanhardiaadiaainfânciadeLuísXIII,
lemossobadatade28dejunhode1602(LuísXIIItinhaentãonove
meses)
6
:“Foramcolocadastirasàguisadeguiasemseuvestido,
paralheensinaraandar”.OmesmoLuísXIIInãogostavaquesua
2MuseudeVersalhes,“CathermedeBethisyeseuIrmão”.
3Arnoult,”Leducd
T
Ánjouenfant",gravura,CabínetdesEstampes,in-folio
,Ed.101,
voL
[,
IV51.
4Erasmo,LeMariagechrétien
,traduçãofrancesade1714.
5DesenhodoLouvre,reproduzidoemA.Michel,Histoiredel'Art,VI,p.301,fig.
194.
6Journald'Heroard,publicadoporE.SouliéeE,deBarthdemy,2vols.,1868,

72 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
irmãusasseumvestidoparecidocomoseu:“Madarnechegoucom
umvestidoigualaodele,eeleamandouembora,comciúmes”,En-
quantoosmeninosusavamessetrajefeminino,dizia-sequeelesesta-
vamàlabavette
,ouseja,eramcrianças“debabador”.Istodurava
atéporvoltadequatro-cincoanos,JeanRou,quenasceuem1638\
contaemsuasmemóriasqueteveumainfânciaprecoceequefoien-
viadoaocolégiodeHarcourtacompanhadodeumacriada:“Quando
euaindaestavaàlabavette
,ouseja,quandoaindanãousavaovesti-
docompridocomgolaqueprecediaascalçasjustaspelosjoelhos”,
“eueraoúnicoridiculamente vestidodamaneiracomoacabode
descrever(ouseja,vestidodemenina),desortequeeracomoumaes-
péciedenovofenômenonaquelelugar,quenuncahaviaocorridoan-
tes”.Agoladovestidoeraumagoladehomem.Oscostumes,dessa
épocaemdiante,ditaramregrasdevestirparaascrianças,deacordo
comsuaidade:primeiroovestidodasmeninas,edepois“ovestido
compridocomgola”,quetambémerachamadodejaquette .Oregu-
lamentodeumapequenaescolaouescolaparoquialde1654deter-
minavaqueaosdomingosascriançasfossemlevadasàigrejaparaas-
sistiràmissa,apósainstruçãoreligiosa,equenãosemisturassemos
pequenoseosgrandes,ouseja,osvestidoscurtoseosvestidoscom-
pridos:“Ospequenosdejaquettedeverãosercolocadostodosjun-
tos”,
OdiáriodainfânciadeLuísXIIIqueHeroardmantinhamostra
aseriedadecomqueentãosecomeçouatratarotrajedacriança:a
roupatornavavisíveisasetapasdocrescimentoquetransformavaa
criançaemhomem.Essasetapas,outroradespercebidas,haviam-se
tornadoespéciesderitosqueeraprecisorespeitarequeHeroardre-
gistravacuidadosamentecomoquestõesimportantes.Em17dejulho
de1602,foramcolocadastirasàguisadeguiasnovestidodoDelfim.
Eleasusariadurantemaisdedoisanos:aostrêsanosedoismeses,
elerecebeu“oprimeirovestidosemguias”.Omeninoficouencanta-
do,edisseaocapitãodaguarda:“Capitão,nãotenhomaisguias,
vouandarsozinho”.Algunsmesesantes,eleabandonaraoberçoe
passaraadormirnumacama:eraumaetapa.Noseuamversáriode
quatroanos,usoucalçasjustaspelosjoelhosporbaixodovestido,e
umanomaistarde,em7deagostode1606,foi-lheretiradaa‘touca
decriança
1
eelerecebeuochapéudoshomens.Estatambémfoiuma
dataimportante:“Agoraquedeixaisvossatouca,nâosereismais
7MêmoíresdeJeanRou
,1638-17H
.
publicadasporF.WaddinglQíi,1857.
SEscoteparoissialeoulamanièredebieninstruireíesenfanísdanslespettiesêcoles,par
umprestred'uneparoissedeParis,[654.
OTRAJEDASCRIANÇAS 73
umacriança,começaisavostornarhomem”(7deagostode1606).
Masseisdiasdepois,aRainhamandouquelhepusessemnovamente
atouca.
8dejaneirode1607':“E!eperguntaquandocomeçaraausaras
calçasjustaspelosjoelhos(emlugardovestido).M
me
deMontglas
lhedizqueseráquandotiveroitoanos”.
A6dejunhode1608,quandoLuístinhaseteanoseoitomeses,
Heroardregistroucomcertasolenidade:“Hojeelefoivestidocom
umgibãoecalçaspelos
j
oelhos,deixouotrajedainfância(ouseja,o
vestido),erecebeuacapaeaespada(comoomaisvelhodospeque-
nosHabertdePhilippedeChampaigne)”.Algumasvezes,entretan-
to,colocavam-lhenovamenteovestido,comojáhaviamfeitocoma
touca,maseledetestavaisso:quandovestiaogibãoeascalçaspelos
joelhos,“ficavaextremamentecontenteealegre,enãoqueriapôro
vestido”.Oshábitosdevestir,portanto,nãosãoapenasumafrivoli-
dade.Arelaçãoentreotrajeeacompreensãodaquiloqueelerepre-
sentaestáaquibemmarcada.
Noscolégios,ossemi-internosusavamovestidoporcimadas
calçasjustasatéosjoelhos.OsdiálogosdeCordier%dofimdosécu-
ioXVI,descrevem-nosodespertardeumalunointerno:“Depoisde
acordar,levantei-medacama,vestimeugibãoeminhacapacurta,
sentei-menumbanco,pegueiminhascalçasatéosjoelhoseminha
meia,vesti-as,pegueimeussapatos,prendiminhascalçasemmeugi-
bãocomagulhetas,prendiminhameiacomligasabaixodosjoelhos,
pegueiocinto,penteeioscabelos,pegueiogorroeocoloqueicom
cuidado,vestimeuvestido”,edepois“saídoquarto ...
EmParis,noiníciodoséculoXVII
,0
:“Imaginemportanto
Frandonentrandonaclasse,comasceroulassaindoporbaixode
suascalçasatéosjoelhosedescendoatéossapatos,ovestidocoloca-
dotortoeapastaembaixodobraço,tentandodarumafrutapodrea
umeumpiparotenonarizdeoutro”.NoséculoXVIII,oregulamen-
todointernatodeLaFlèchediziaqueoenxovaldosalunosdeviain-
cluir“umvestidodeinterno”quedeviadurardoisanos ,
Essadiferenciaçãodetrajesnãoeraobservadanasmeninas.Es-
tas,comoosmeninosdeoutrora,domomentoemquedeixavamos
cueiros,eramlogovestidascomomulherezmhas.Contudo,seolhar-
mosdepertoasrepresentaçõesdecriançasdoséculoXVII,notare-
mosqueotrajefeminino,tantodosmeninospequenoscomodasme-
9MathurinCordier,Colloques
,1586.
10NocolégiodeLísíeux;G.Sorel,HisloirecomiquedeFrancwn
,
publicadaporfc.
M°C.^deRochémonteix,LeCollègeHenriIVdeLaFíéche
t1889.

74 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
ninaspequenas,comportavaumornamentosingular,quenãoeraen-
contradonotrajedasmulheres:duasfitaslargaspresasaovestido
atrásdosdoisombros,pendentesnascostas.Vemosessasfitasde
perfilnaterceiracriançaHabertapartirdaesquerda;naquartaida-
dedaTabulaCebetis(acriançadevestidobrincandocomocavalode
pau);enameninadedezanosdaescaladasidadesdoiníciodosécu-
loXVIII,“misériahumanaouaspaixõesdaalmaemtodasassuas
idades”-paralimitarnossosexemplosàsimagensjácomentadas
aqui.Observamo-lascomfrequênciaemnumerosos retratosde
crianças,atéLancreteBoucher,Elasdesaparecemnofimdoséculo
XVIII,épocaemqueotrajedacriançasetransforma.Umdosúlti-
mosretratosdecriançacomasfitasnascostastalvezsejaoqueM
me
GabrielleGuiardpintouparaMesdamesAdelaideeVictoireem
1788
'2
.Oretratorepresentaairmãdestas,aInfanta,quehaviamor-
ridocercade30anosatrás,AInfantatinhavivido32anos.M
mc
GabrielleGuiardarepresentou,contudo,comoumacriança,aolado
desuaama,eessapreocupaçãoemconservaralembrançadeuma
“mulherdetrintaanos”,levando-adevoltaaotempodesuainfân-
cia,revelaumsentimentointeiramentenovo.AInfantacriançatem
bemvisíveisasfitasdascostas,queaindaseusavamporvoltade
1730,masquehaviampassadodemodanomomentoemqueoqua-
drofoipintado.
Portanto,noséculoXVIIeiníciodoXVIII,essasfitasnascos-
tashaviam-setornadosignosdainfância,tantoparaosmeninos
comoparaasmeninas.Osestudiososmodernossemdúvidaficaram
intrigadoscomesseapêndicedovestuárioreservadoàinfância.Eles
foramconfundidoscomas“guias”(astirasdascostasdasroupas
dascriançaspequenasqueaindanãoandavamcomfirmeza
t3
).No
pequenomuseudaabadiadeWestminster,foramexpostasalgumas
efígiesmortuáriasdeceraquerepresentavamomortoequeeramco-
locadassobreoataúdeduranteascerimôniasfúnebres,umaprática
medievalquesemantevenaInglaterraatécercade1740.Umadessas
efígiesrepresentaopequenomarquêsdeNormambymortoaostrês
anosdeidade:eleestávestidocomumasaiadesedaamarela,reco-
bertaporumvestidodeveludo(otrajedascriançaspequenas)eusa
essasfitaschatasdainfância,queocatálogodescrevecomoguias.
Narealidade,asguiaseramcordinhasquenãosepareciamcomessas
fitas.UmagravuradeGuérardilustrando“aidadeviril”mostra-nos
12GabrielleGuiard,“PortraítdeMadameInfantepourMesdame&*\1788,museude
Versalhes.
13“LouisXVen1715tenuenlisièreparM™sdeVeniadour”,gravura,Cabinetdes
Estampes,pet.foi.Ee3*.
OTRAJEDASCRIANÇAS 75
umacriança(meninaoumenino)usandoumvestido,penteadaàla
Fontange
,evistadecostas;entreasduasfitasquependemdos
ombros,vê-sedaramenteacordinhaqueserviaparaajudaracriança
aandar
N
.
Essaanálisenospermitiudescobriralgunshábitosdevestuário
própriosdainfânciaqueeramadotadoscomumentenofinaldosécu-
loXVIequeforamconservadosatéofimdoséculoXVIII.Esseshá-
bitos,quedistinguiamotrajedascriançasdotrajedosadultos,reve-
lamumanovapreocupação,desconhecidadaIdadeMédia,deisolar
ascrianças,desepará-lasatravésdeumaespéciedeuniforme.Mas
qualéaorigemdesseuniformedainfância?
OvestidodascriançasnadamaisédoqueotrajelongodaIdade
Média,dosséculosXIIeXIII,antesdarevoluçãoqueosubstituiu
nocasodoshomenspelotrajecurto,comcalçasaparentes,ancestrais
donossotrajemasculinoatual.AtéoséculoXIV,todoomundousa-
vaumvestidooutúnica,masatúnicadoshomensnãoeraamesma
dasmulheres.Geralmenteeramaiscurta,ouentãoabertanafrente.
NoscamponesesdoscalendáriosdoséculoXIII,elaparavanosjoe-
lhos,enquantonasgrandespersonagensveneráveis,desciaatéospés.
Houve,emsuma,umlongoperíodoemqueoshomensusaramum
trajejustoelongo,queseopunhaaotrajedrapeadotradicionaldos
gregosoudosromanos:otrajelongocontinuavaoshábitosdosbár-
barosgaulesesouorientais,quesehaviamintroduzidonamodaro-
mananosprimeirosséculosdenossaera.Elefoiuniformementeado-
tadotantonoOcidentecomonoOriente:otrajeturcotambémteve
origemnatúnicalonga.
ApartirdoséculoXIV,oshomensabandonaram atúnicalonga
pelotrajecurtoeatémesmocolante,paraodesesperodosmoralistas
edospregadores,quedenunciavamaindecênciadessasmodas,sinais
daimoralidadedostempos!Defato,aspessoasrespeitáveisconti-
nuaramausaratúnicalonga-respeitáveisporsuaidade(atéoinício
doséculoXVII,osanciãossãorepresentadosvestindoatúnicalon-
ga),ouporsuacondição:magistrados, estadistas,eclesiásticos.Al-
gunsnuncadeixaramdeusarotrajelongoeousamatéhoje,aome-
nosemcertasocasiões:osadvogados,osmagistrados,osprofesso-
res,oseclesiásticos.Oseclesiásticos, aliás,quaseo.abandonaram,
poisquandootrajecurtoseimpôsdefinitivamente, equando,nosé-
culoXVII,jásehaviacompletamenteesquecidooescândalodesua
origem,asotainadoeclesiásticotornou-semuitoligadaàfunção
eclesiásticaparaserumtrajedebom-tom.Ospadrestiravamabati-
14
"L’ágeviril”,gravuradeGuérard,cercade1700.

76 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
naparaseapresentaremsociedade,oumesmodiantedeseuBispo,
damesmaformacomoosoficiaistiravamotrajemilitarparaapare-
cernacorte
È
-.
Ascriançastambémconservaramotrajelongo,aomenosasde
boacondição.UmaminiaturadosAfiraclesNotre-Dame
16
doséculo
XVrepresentaumafamíliareunidaemtornodoleitodamãeque
acabadedaràluz;opaivesteumtrajecurto,comcalçasjustasegi-
bão,masastrêscriançasusamumvestidocomprido,Namesmasé-
rie,acriançaquedádecomeraomeninoJesususaumvestidoaberto
dolado.
NaItália,aocontrário,amaioriadascriançasdosartistasdo
quattrocentousaascalçascolantesdosadultos.NaFrançaenaAle-
manhaparecequeessamodanãofoibemaceita,equesemanteveo
trajelongoparaascrianças.NoiníciodoséculoXVI,essehábitofoi
consagradoetornou-seregrageral:ascriançassempreusavamoves-
tidocomprido.Algumastapeçariasalemãsdessaépocamostram
criançasdequatroanosdevestidolongo,abertonafrente
í7
.Algu-
masgravurasfrancesasdeJeanLeclerc quetêmcomotemaosjo-
gosinfantis,mostramcriançasusandoporcimadascalçasjustaso
vestidoabotoadonafrente,quesetornouassimouniformedesua
idade.
Asfitaschatasnascostasque,noséculoXVII,tambémdistin-
guiamascrianças,fossemmeninosoumeninas,têmamesmaorigem
dovestidocomprido.AscapasetúnicasdoséculoXVImuitasvezes
tinhammangasquesepodiamvestiroudeixarpendentes.Nagravu-
radeLedercquerepresentacriançasjogandovíspora,podemosver
algumasdessasmangas,presasapenasporalgunspontos.Aspessoas
elegantes,esobretudoasmulhereselegantes,gostaramdoefeitodes-
sasmangaspendentes.Comonãoerammaisvestidas,essasmangas
tornaram-seornamentossemutilidadeeseatrofiaram,comoórgãos
quedeixamdefuncionar:perderamacavidadeinternaporondepas-
savaobraço,e,achatadas,lembraramduasfitaslargaspresasatrás
dosombros.AsfitasdascriançasdosséculosXVIIeXVIÍlsãoosúl-
timosrestosdasfalsasmangasdoséculoXVI,Essasmangasatrofia-
dastambémsãoencontradas, aliás,emoutrostrajes,tantopopulares
comocerimoniais;natúnicacamponesa,queosirmãosIgnoranti-
nhosadotaramcomotrajereligiosonoiníciodoséculoXViíí,nos
primeirostrajespropriamente militares,comoosdosmosqueteiros.
15M Sévigné, deabrilde 1672.
16MimciesNoire-Dame,Westminsier, ed.G.F.Warner,1885,voJ.I,p,58,
17H,Gübd,Wandteppiçhe, 1923,voL I,pranchaCLXXX1L
18JeanLeclerc,LesTrenie-SixFigurescontenamtousksjeux
,1587.
OTRAJEDASCRIANÇAS 77
nalibrédoslacaios,efinalmentenotrajedepajem,ouseja,notraje
decerimôniadascriançasedosmeninosdeboafamíliaqueeram
confiadosaoutrasfamíliasparaasquaisprestavamcertosserviços
domésticos.EssespajensdotempodeLuísXIIIusavamcalçasbu-
fantesnoestilososéculoXVI,efalsasmangaspendentes.Essetraje
depajemtendiaasetornarotrajedecerimônia,usadoemsinalde
honraederespeito:numagravuradeLepautre vêern-semeninos
vestidoscomotrajearcaizantedepajemajudandoamissa.Mases-
sestrajesdecerimôniaerammaisraros,enquantoafitachataeraen-
contradanosombrosdetodasascrianças,meninosemeninas,nas
boasfamílias,querfossemnobresouburgueses.
Assim,paradistinguiracriançaqueantessevestiacomoos
adultos,foramconservadosparaseuusoexclusivotraçosdostrajes
antigosqueosadultoshaviamabandonado,algumasvezeshálongo
tempo.Essefoiocasodovestido,outúnicalonga;edasmangasfal-
sas.Foiocasotambémdatoucausadapetascriancinhasdecueiros:
noséculoXIII,atoucaaindaeraogorromasculinonormal,que
prendiaoscabelosdoshomensduranteotrabalho,comopodemos
vernoscalendáriosdeNotre-Dame.d’Amienseoutros,
Oprimeirotrajedascriançasfoiotrajeusadoportodoscercade
umséculoantes,equenumdeterminadomomentoelaspassaramaser
asúnicasaenvergar.Evidentemente,nãosepodiainventardonada
umaroupaparaascrianças.Massentia-seanecessidadedesepará-
lasdeumaformavisível,atravésdotraje.Escolheu-seentãopara
elasumtrajecujatradiçãoforaconservadaemcertasclasses,mas
queninguémmaisusava.Aadoçãodeumtrajepeculiaràinfância,
quesetornougeralnasclassesaltasapartirdofimdoséculoXVI,
marcaumadatamuitoimportantenaformaçãodosentimentodain-
fância,essesentimentoqueconstituiascriançasnumasociedadese-
paradadadosadultos(deummodomuitodiferentedoscostumes
iniciatóriosTSNãodevemosesqueceraimportânciaqueotrajetinha
naFrançaantiga.Muitasvezeselerepresentavaumcapitalelevado.
Gastava-semuitocomroupas,e,quandoalguémmorria,tinha-seo
trabalhodefazeroinventáriodosguarda-roupas,comohojeofaría-
mosapenascomrelaçãoacasacosdepeles.Asroupascustavammui-
tocaro,ehaviatentativasdefrear,atravésdeleissunfuárias,oluxo
dovestuário,quearruinavaalgunsepermitiaaoutrosdissimularseu
estadosocialeseunascimento.Maisqueemnossassociedadescon-
temporâneas,ondeissoaindaseaplicaàsmulheres,cujaroupaéosi-
nalaparenteenecessáriodaprosperidadedafamília,daimportância
deumaposiçãosocial,otrajerepresentavacomrigorolugardaquele
19Lep< tre,gravura,CabinetdesEstampes,Ed.43foL,p.U

78 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
queovestianumahierarquiacomplexaeindiscutida.Cadaumusava
otrajedesuacondiçãosocial:osmanuaisdecivilidadeinsistiam
muitonaindecênciaquehaveríaseaspessoassevestissemdemanei-
radiferentedecomodeveríam,deacordocomsuaidadeouseunas-
cimento,Cadanuançasocialeratraduzidaporumsignoespecialno
vestuário.
1NofimdoséculoXVI,ocostumedecidiuqueacriança,
agorareconhecidacomoumaentidadeseparada,tivessetambémseu
trajeparticularj
Observamosquenaorigemdotrajeinfantilhaviaumarcaísmo:
asobrevivênciadatúnicalonga.Essatendênciaaoarcaísmosubsis-
tiu:nofimdoséculoXVIII,naépocadeLuísXVI,osmeninospe-
quenoseramvestidoscomgolasnoestiloLuísXIIIouRenascimen-
to.AscriançaspintadasporLancreteBoucherfrequentementesão
representadas vestidassegundoamodadoséculoanterior.
Mas,apartirdoséculoXVII,duasoutrastendênciasiriam
orientaraevoluçãodotrajeinfantil.Aprimeiraacentuouoaspecto
efeminadodomeninopequenofr.Vimosacimaqueomeninoàlaba-
veiie
,antesdo'‘vestidocomgolá”,usavaovestidoeasaiadasmeni-
nas.Essaefeminaçãodomeninopequeno,observadojáemmea-
dosdoséculoXVI,deiníciofoiumacoisanova,apenasindicadapor
algunspoucostraços.Porexemplo,nocomeço,apartedecimada
roupadomeninoconservavaascaracterísticasdotrajemasculino.
Maslogoomeninopequenorecebeuagoladerendasdasmeninas,
queeraexatamenteigualàdassenhoras.Tornou-seimpossíveldis-
tinguirummeninodeumameninaantesdosquatrooucincoanos,e
essehábitosefixoudemaneiradefinitivadurantecercadedoissécu-
los.Porvoltade1770,osmeninosdeixaramdeusarovestidocom
golaaosquatro-cíncoanos.Antesdessaidade,porém,eleseramves-
tidoscomomeninas,eissocontinuariaatéofimdoséculoXIX:o
hábitodeefeminarosmeninossódesapareceriaapósaPrimeira
GuerraMundial,eseuabandonodeveserrelacionadocomoaban-
donodoespartilhodasmulheres:umarevoluçãodotrajequetraduz
amudançadoscostumes.Écuriosonotartambémqueapreocupa-
çãoemdistinguiracriançasetenhalimitadoprincipalmenteaosme-
ninos:asmeninassóforamdistinguidaspelasmangasfalsasabando-
nadasnoséculoXVIII,comoseainfânciaseparassemenosasmeni-
nasdosadultosdoqueosmeninos!Aindicaçãofornecidapelotraje
confirmaosoutrostestemunhosdahistóriadoscostumes:osmeni-
nosioramasprimeirascriançasespecíalízadasJEles começarama
frequentaremmassaoscolégiosjánofimdoséculoXVIeiníciodo
XVII,OensinodasmeninascomeçouapenasnaépocadeFéneione
deM
me
deMaintenon,esósedesenvolveutardeelentamente:Sem
umaescolaridadeprópria,asmeninaserammuitocedoconfundidas
OTRAJEDASCRIANÇAS 79
comasmulheres,comooutroraosmeninoseramconfundidoscom
oshomens,eninguémpensavaemtornarvisívelatravésdotrajeuma
distinçãoquecomeçavaaexistirconcretamenteparaosmeninos,
masqueaindacontinuava inútilnocasodasmeninas.
Porque,afimdedistinguiromeninodoshomens,seassimilava
oprimeiroàsmeninas,quenãoeramdistinguidasdasmulheres?Por
queessecostume,tãonovoetãosurpreendentenumasociedadeem
queseentravacedonavida,durouquaseaténossosdias,ouaome-
nosatéoiníciodesteséculo,apesardastransformaçõesdoscostumes
edoprolongamentodoperíododainfância?Tocamosaquinocampo
aindainexploradodaconsciênciaqueumasociedadetomadeseu
comportamentocomrelaçãoàidadeeaosexo:atéhoje,sóseestu-
dousuaconsciênciadeclasse
!
Umaoutratendênciaque,assimcomooarcaísmoeaefemina-
ção,certamentetambémnasceudogostopelodisfarce,levouas
criançasdefamíliaburguesaaadotartraçosdotrajedasclassespo-
pularesoudouniformedetrabalho.Aqui,acriançaprecederiaa
modamasculina,eusariacalçascompridasjáduranteoreinadode
LuísXVI,antesdaépocadossans-culottes*
.
Otrajedacriançabem
vestidadaépocadeLuísXVIeraaomesmotempoarcaizante(gola
Renascimento),popular(calçascompridas)emilitar(túnicaebotões
douniformemilitar),
NoséculoXVIInãoexistiaumtrajepropriamentepopular,e
tampoucohaviaafortioritrajesregionais.,.Ospobresusavamas
roupasquelhesdavam
20
ouquecompravamembelchiores.Aroupa
dopovoeraumaroupadesegunda-mão(acomparaçãoentrearou-
padeontemeoautomóveldehojenãoétãoretóricacomoparece:o
carroherdoupartedosentidosocialquearoupatinhaepraticamen-
teperdeu).Logo,ohomemdopovosevestiasegundoamodadoho-
memdesociedadedealgumasdécadasatrás:nasruasdaParisde
LuísXIII,eleusavaogorrodeplumasdoséculoXVI,enquantoas
mulheresusavamatoucaqueestiveranamodanamesmaépoca.
Esseatrasovariavadeumaregiãoparaoutra,segundoapresteza
comqueaboasociedadelocalseguiaamodadodia,Noiníciodosé-
culoXVIII,asmulheresdecertasregiões,comoasmargensdoReno,
porexemplo,aindausavamtoucasdoséculoXV.Duranteoséculo
XVIII,essaevoluçãoseinterrompeu efixou-seemconseqüêncíade
umafastamentomoralmaisacentuadoentreosricoseospobresede
umaseparaçãofísicaquesucedeuaumapromiscuidade milenar.O
*Nomedadoaosrevolucionários republicanosdaRevoluçãoFrancesa.(N.doT).
20JçamdeBray.1663,"Unedisiribuitiondevêlemenis",H.Gerson, 1,n*50.

80 HISTÓRIASOCIALDACRIANCAEDAFAMÍLIA
trajeregionaloriginou-seaomesmotempoàcumgostonovopelore-
gionalismo(eraaépocadasgrandeshistóriasregionaisdaBretanha,
daProvençaetc.,edeumressurgimentodointeressepelaslínguasre-
gionaisquesehaviamtransformadoemdialetosemvirtudedopro-
gressodofrancês),edasdiferençasreaisdostrajes,provocadaspela
variaçãodeprazoscomqueasmodasdacidadeedacortealcança-
vamcadapopulaçãoecadaregião.
Nosgrandessubúrbiospopulares,nofimdoséculoXVIII,os
homenscomeçaramausarumtrajemaisespecífico:ascalçascom-
pridas,queequivaliamentãoaoaventaldooperáriodoséculoXIX,
eaomacacãodehoje,signosdeumacondiçãosocialedeumafun-
ção,ÉinteressantenotarquenoséculoXVIIIotrajedopovodas
grandescidadesdeixoudeseraroupaindigentedoséculoXVII-o
andrajoinformeeanacrônico,ouaroupausadadobelchior.Deve-
mosveraíaexpressãoespontâneadeumaparticularidade coletiva,
algopróximodeumatomadadeconsciênciadeclasse.Surge,por-
tanto,ummododevestirprópriodoartesão-ascalçascompridas.
Àscalçascompridashámuitotempoeramotrajedoshomensdo
mar.Quandoapareciamnacomédiaitaliana,geraímenteeramusa-
daspelosmarinheirosepeloshabitantesdolitoral:flamengos,rena-
nosdinamarqueses eescandinavos. Estesúltimosaindaasusavamno
séculoXVII,ajulgarpelascoleçõesdetrajesdessaépoca.Osingle-
sesashaviamabandonado,masjáasconheciamnoséculoXII.
21
.Às
calçascompridassetornaramouniformedasmarinhasdeguerra
quandoosEstadosmaisorganizadosdefiniramavestimentadesuas
tropasedesuastripulações.Daí,aoqueparece,elaspassaramao
povodossubúrbiospopulares, a,quemjárepugnavausarosandrajos
dosmendigos,eaosmeninospequenosdeboacondiçãosocial.
Ouniformerecém-criado foirapidamenteadotadopelascrian-
çasburguesas,primeironosinternatosparticulares,quesehaviam
tornadomaisnumerososapósaexpulsãodosjesuítas,equemuitas
vezespreparavammeninosparaasacademiaseascarreirasmilitares.
Asilhuetaagradou,eosadultospassaramavestirseusmeninoscom
umtrajeinspiradonouniformemilitarounaval:assimsecriouo
tipodopequenomarinheiroquepersistiudofimdoséculoXVIIIaté
nossosdias.
Àadoçãodascalçascompridasparaascriançasfoiemparte
umaconseqüênciadessenovogostopelouniforme,queiriaconquis-
21EvimgdiáriodeSamoEdmundo. Miilar,LaMiniatureAnglaise,1926.prancha
XXXV
ÜTRAJEDASCRIANÇAS 81
tarosadultosnoséculoXIX,épocaemqueouniformesetornouum
trajedegalaedecerimônia,algoquejamaishaviasidoantesdaRe-
volução.Foiinspiradatambém,semdúvida,pelanecessidadedeli-
beraracriançadoincômodoquelheimpunhaseutrajetradicional,
delhedarumaroupamaisdesalinhada.Eessedesalinhodaíem
dianteseriaexibidopelopovodossubúrbioscomumaespéciedeor-
gulho.Graçasàscalçascompridasdopovoedosmarinheiros,osme-
ninosselibertaramtantodovestidocompridoforademodaedema-
siadoinfantil,comodascalçasjustasatéosjoelhosdemasiadoceri-
moniosas.Aliás,sempresehaviaachadodivertidodaràscriançasde
boafamíliaalgumascaracterísticasdotrajepopular,comoobarrete
dostrabalhadores,doscamponeses e,maistarde,dosforçados,que
osrevolucionários,comseugostoclássico,batizaramdebarrete
frigio:umagravuradeBonnardmostra-nosumacriançacomesse
barreteEmnossosdias,assistimosaumatransferênciadetraje
queapresentaalgumassemelhançascomaadoçãodascalçascompri-
dasparaosmeninosnotempodeLuísXVI:omacacãodotrabalha-
doreascalçasdelonaazultornaram-seoshtuejeansqueosjovens
usamcomorgulho,comoosignovisíveldesuaadolescência.
Assim,partindodoséculoXIV,emqueacriançasevestiacomo
osadultos,chegamosaotrajeespecializadodainfância,quehojenos
éfamiliar.Jáobservamosqueessamudançaafetousobretudoosme-
ninos.t)sentimentodainfânciabeneficiouprimeiromeninos,en-
quantoasmeninaspersistirammaistemponomododevidatradicio-
nalqueasconfundiacomosadultos:seremoslevadosaobservar
maisdeumavezesseatrasodasmulheresemadotarasformasvisí-
veisdacivilizaçãomoderna,essencialmentemasculina.i
Senoslimitarmosaotestemunhofornecidopelotraje,conclui-
remosqueaparticularizaçãodainfânciadurantemuitotemposeres-
tringiuaosmeninos.Oqueécertoéqueissoaconteceuapenasnas
famíliasburguesasounobres.Ascriançasdopovo,osfilhosdos
camponesesedosartesãos,ascriançasquebrincavamnaspraçasdas
aldeias,nasruasdascidadesounascozinhasdascasascontinuaram
ausaromesmotrajedosadultos:jamaissãorepresentadasusando
vestidocompridooumangasfalsas.Elasconservaramoantigomodo
devidaquenãoseparavaascriançasdosadultos,nematravésdotra-
je,nematravésdotrabalho,nematravésdosjogosebrincadeiras..:.
22CabineidesEstampes.0a50peLfoi. 137,

4
PequenaContribuiçãoàHistóriados
JogosedasBrincadeiras
GraçasaodiáriodomédicoHeroard,podemosimaginarcomo
eraavidadeumacriançanoiníciodoséculoXVII*comoeramsuas
brincadeiras,eaqueetapasdeseudesenvolvimento físicoemental
cadaumadelascorrespondia.EmboraessacriançafosseumDelfim
deFrança,ofuturoLuísXIII,seucasopermanecetípico,poisna
cortedeHenriqueIVascriançasreais,legítimasoubastardas,rece-
biamomesmotratamentoquetodasasoutrascriançasnobres,nâo
existindoaindaumadiferençaabsolutaentreospaláciosreaiseos
castelosfidalgos.Anãoserpelofatodenuncateridoaocolégio,fre-
quentadojáporumapartedanobreza,ojovemLuísXIIIfoieduca-
docomoseuscompanheiros.Recebeuaulasdemanejodearmasede
equitaçãodomesmoM.dePluvinel,que,emsuaacademia,formava
ajuventudenobrenasartesdaguerra*Àsilustraçõesdomanualde
equitaçãodeM.dePluvinel,asbelasgravurasdeC,dePos,mostram
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS
83
ojovemLuísXIIIexercitando-seacavalo.Nasegundametadedosé-
culoXVII,issojãnãoaconteciamais:ocultomonárquicoseparava
maiscedo-narealidade,desdeaprimeirainfância-opequeno
príncipedosoutrosmortais,mesmoosdeberçonobre.
LuísXIIInasceua27desetembrode160LSeumédicoHeroard
deixou-nosumregistrominuciosodetodososseusfeitosegestos
l
.
Comumanoecincomeses,Heroardregistraqueomenino“toca
violinoecantaaomesmotempo”.Antes,elesecontentavacomos
brinquedoshabituaisdospequeninos,comoocavalodepau,ocata-
ventoouopião.Comumanoemeio,porémJá
lhecolocamumvio-
linonasmãos:oviolinoaindanãoerauminstrumentonobre,eraa
rebecaqueacompanhava asdançasnasbodasenasfestasdasal-
deias.Detodaforma,percebe-seaimportânciadocantoedamúsica
nessaépoca.
Aindacomamesmaidade,omeninojogamalha:“Numjogode
malha,oDelfimerrouolanceeferiuM.deLongueville”* Issoequi-
valeriaavermoshojeuminglesinhocomeçandoajogarcríqueteou
golfecomumanoemeiodeidade.Comumanoedezmeses,somos
informadosdequeoDelfim“continuaatocarseupequenotambor,
comtodosostiposdetoques”:cadacompanhiatinhaseutambore
suamarchaprópria.Começamalheensinarafalar:“Fazem-nopro-
nunciarassílabasseparadamente, antesdedizeraspalavras”.Nesse
mesmomêsdeagostode1603,“aoirjantar,aRainhamandabuscá-
loecolocá-lonapontadesuamesa”.Asgravuraseaspinturasdos
séculosXVIeXVIÍmuitasvezesrepresentamumacriançanamesa,
encarapitadaebempresanumacadeirinhaalta;devetersidodeuma
dessascadeirasaltasqueoDelfimassistiuàrefeiçãodesuamãe,
comotantasoutrascriançasemtantasoutrasfamílias.Omeninotem
apenasdoisanos,eeisque,“levadoaogabinetedoRei,dançaao
somdoviolinotodosostiposdedanças”.Maisumavezobservamos
aprecocidadedamúsicaedadançanaeducaçãodosmeninosdessa
época:issoexplicaafreqüência,entreasfamíliasdeprofissionais,
daquiloquehojechamaríamosdecrianças-prodígio,comoopeque-
noMozart;essescasossetornariammaisraroseaomesmotempo
pareceriammaisprodigiososàmedidaqueafamiliaridadecoma
música,mesmoemsuasformaselementaresoubastardas,seatenuou
oudesapareceu.ODelfimcomeçaafalar:"Contarpapai”emlugar
de“Voucontarapapai”;

Equivez
”emvezdeêcrivez.Muitasvezes
também,eleésurrado:“Comosecomportassemal(recusava-seaco-
lHeroard,JournalsurTenfanceetíctjeunessedeLouisXIII,editadoporE.SouliéeE.
Barthélémy,2vols.,I86S.

84 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
mer),levouumasurra;depoisdeacalmado,pediusuacomidaeco-
meu”.'‘Foiparaseuquartogritandoelevouumasurra.”Emborase
mistureaosadultos,vsedivirta,danceecantecomeles,oDelfimain-
dabrincacombrinquedosdecriança-Temdoisanosesetemeses
quandoSullyíhedádepresenteuma“pequenacarruagemcheiade
bonecas”.“Umalindabonecadetheu-íheu(?)”,dizeieemseujar-
gão.
Elegostadacompanhiadossoldados:“Ossoldadossemprese
alegramemvê-lo”.“Eleconduzpequenasaçõesmilitarescomseus
soldados,M.deMarsancolocou-lheagolaalta,aprimeiraqueja-
maisusara,eeleficouencantado.”“Elebrincadeaçõesmilitares
comseuspequenossenhores.”Sabemostambémqueelefrequentao
jogodapéla,assimcomoodemalha-noentanto,eleaindadorme
numberço.Em19dejulhode1604,aosdoisanosenovemeses,“ele
viusuacamasendofeitacomumaenormealegria,efoicolocadono
leitopelaprimeiravez”.Elejáconheceosrudimentosdesuareligião:
namissa,nomomentodaelevação,mostram-lheahóstiaeelediz
queé“lebonDieu
,obomDeus”,Examinemosdepassagemestaex-
pressão,lebonDieu
,quehojeestásemprepresentenalínguadospa-
dresedosdevotos,masquenuncaéencontradanaliteraturareligio-
saanterioraoséculoXIX.Comopodemosveraqui,noiníciodosé-
culoXVII,essaexpressãocertamenterecentepertenciaàlínguadas
crianças,ouàlínguaqueospaiseasamasutilizavamaofalarcomas
crianças.Aexpressãocontaminoualínguadosadultosnoséculo
XIX,e,comaefeminaçãodareligião,oDeusdeJacótornou-seo
“bonDieu

dascriancinhas.
ODelfimagorajásabefalardireito,evezporoutratemsaídas
insolentesquedivertemosadultos:“ORei,mostrando-lheumavara
demarmelo,perguntou-lhe:-Meufilho,paraqueméisso?-Eleres-
pondeuzangado:-Paravós,OReinãopôdedeixarderir.”
NanoitedeNatalde1604,aostrêsanos,oDelfimparticipada
festaedascomemorações tradicionais.“Antesdaceia,eleviuaacha
deNatalseracesa,edançouecantoupelachegadadoNatal.”Ga-
nhaalgunspresentes:umabolaealgumas“quinquilharias italianas”,
entreasquaisumapombamecânica,brinquedosdestinadostantoà
Rainhaquantoaele.Duranteasnoitesdeinverno,quandotodosfi-
cavamdentrodecasa-numaépocadevidaaoarlivre-
“eiebrinca-
vadecortarpapelcomumatesoura”.Amúsicaeadançacontinuam
aocuparumlugarimportanteemsuavida.Heroardregistracom
umapontadeadmiração:“ODelfimdançatodasasdanças”;ele
guardanalembrançatodososbalésqueviuenosquaisnãodemora-
riaatomarparte,seéquejánãohaviacomeçadoafazê-lo:
“Lembrando-se deumbalédançadoumanoatrás(quandotinha
doisanos),oDelfimperguntou:-PorqueéqueoCarneirinhoestava
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 85
nu?-ElerepresentaraoCupidonu.”“Eledançaagalharda,asara-
banda,eavelhabourrêe(dançapopulardeAuvergne).”Elegostade
cantaredetocaramandoradeBoileau;cantaacançãodeRobin:
“RobinvaiaTours-Comprarveludo-Parafazerumgorrinho
-
Mamãe,euqueroRobin.”Elegostadecantaracançãocomaqualo
ninavam:“Quemquerouviracanção-AfilhadoReiLuís-Bour-
bonaamoutanto—quenofimaengravidou”.Cançãocuriosapara
ninarcriancinhaspequenas!Eleiafazerquatroanosdentrodepou-
cosdiasejásabiaaomenosonomedascordasdoalaúde,queera
uminstrumentonobre:“Eletocacomapontadosdedosnoslábios
dizendo:estaéabaixa”.Massuafamiliaridadeprecocecomoalaú-
denãooimpediadeouvirosviolinosmaispopulares,comoosque
animaramadançanasbodasdeumdoscozinheirosdoRei—ouum
tocadordegaitadefoles,umdospedreirosque“consertavamsuala-
reira”,“Elepassavaumbomtempoaouvi-lo.”
Nessaépoca,oDelfimcomeçaaaprenderaler.Aostrêsanose
cincomeses,“elegostadeumlivrocomasfigurasdaBíblia:suaama
lhenomeiaasletraseeleasconhecetodas”.Ensinam-lheaseguiras
quadrasdePibrac,regrasdeetiquetaedemoralidadequeascrianças
tinhamdeaprenderdecor.Apartirdosquatroanos,começaa
aprenderaescrever:seumestreéumclérigodacapeladocastelocha-
madoDumont.“Elemandoutrazersuaescrivaninhaparaasalade
jantar,paraescreversobaorientaçãodeDumont,edisse:-Estoues-
crevendomeuexemploeestouindoparaaescola”(oexemploerao
modelomanuscritoqueeledeviacopiar).“Eleescreveuseuexem-
ploseguindoaimpressãofeitasobreopapel,easeguiumuitobem,
comgrandeprazer.”Começaaaprenderpalavraslatinas.Aosseis
anos,umescreventeprofissionalsubstitpioclérigodacapela:

Ele
escreveuseuexemplo.Beaugrand,oescreventedoRei,mostrou-lhe
comoescrever”.
Eleaindabrincacombonecas:“Brincacomalgunsbrinquedi-
nhosecomumpequenogabinetealemão(miniaturasdemadeira,
fabricadaspelosartesãosdeNurembergue).M.deLoméntedeu-lhe
umpequenofidalgomuitobemvestido,comumagolaperfumada...
Eleopenteouedisse:'Voucasá-locomabonecadeMadame(suair-
mã)’.”Eleaindagostaderecortarpapel.Contam-lhehistórias,tam-
bém:“Elemandouquesuaamalhecontasseashistórias.dacomadre
RaposaedoMauRicoeLázaro.”“Deitadonacama,contavam-lhe
ashistóriasdeMelusina.Eulhedissequeeramfábulas,enaohistó-
riasreais.”(Aobservaçãorevelaumanovapreocupaçãocomaedu-
cação,jámoderna.)Ascriançasnãoeramasúnicasaouviressashis-
tórias:elastambémeramcontadasnasreuniõesnoturnasdosadul-
tos.

86 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
Aomesmotempoemquebrincavacombonecas,essemeninode
quatroacincoanospraticavaoarco,jogavacartas,xadrez(aosseis
anos)eparticipavadejogosdeadultos,comoojogoderaquetese
inúmerosjogosdesalão.Aostrêsanos,omeninojáparticipavade
umjogoderimas,queeracomumàscriançaseaosjovens.Comos
pajensdosaposentosdoRei,maisvelhosdoqueele,brincavade“a
companhiavosagrada?'’ .Algumasvezeseraomestre(olíderda
brincadeira), equandonãosabiaoquedeviadizer,perguntava;par-
ticipavadessasbrincadeiras,comoadeacenderumavelacomos
olhosvendados,comosetivesse15anos.Quandoelenãoestábrin-
candocomospajens,estábrincandocomossoldados;“Elebrincava
comossoldadosdediversasbrincadeiras,comodebaterpalmasede
esconder”.Aosseisanos,jogaojogodosofíciosebrincaaemímica,
jogosdesalãoqueconsistiamemadivinharasprofissõeseashistó-
riasqueeramrepresentadaspormímica.Essasbrincadeirastambém
erambrincadeirasdeadolescentes edeadultos.
Cadavezmais,oDelfimsemisturacomosadultoseassistea
seusespetáculos.Eletemcincoanos.“Foilevadoaopátioatrásdo
canil(emFontainebleau)paraassistiraumalutaentreosbretõesque
trabalhavamnasobrasdoRei."“FoilevadoatéoReinosalãode
baileparaveroscãeslutandocomosursoseotouro."“Foiaopátio
cobertodojogodapélaparaassistiraumacorridadetexugos.”E,
acimadetudo,eleparticipadosbalés.Aosquatroanosemeio,“ele
vestiuumamáscara,foiaosaposentosdoReiparadançarumbalé,e
recusou-seatiraramáscara,nãoquerendoserrefconhecído".Muitas
vezeselesefantasiade“camareiradaPicardia",depastoraoude
menina(aindausavaatúnicadosmeninos).“Apósaceia,assistiuà
dançaaosomdascançõesdeumcertoLaforest",umsoldado-
coreõgrafo,tambémautordefarsas.Aoscincoanos,“assistiusem
entusiasmoàencenaçãodeumafarsaemqueLaforestfaziaopapel
domaridocômico,oBarãodeMontglat,odamulherinfieleíndret,
odonamoradoqueaseduzia";aosseisanos,“dançouumbalé,mui-
tobemvestidodehomem,comumgibãoecalçasatéosjoelhospor
cimadesuatúnica".“Assistiuaobalédosfeiticeirosediabos,dança-
dopelossoldadosdeM.deMarsanecriadopelopiemontêsJean-
Baptiste(umoutrosoldado-coréografo)". Elenãodançaapenasos
balésouasdançasdacortequeaprendecomumprofessor,assim
comoaprendealeituraeaescrita.Participatambémdoquehoje
chamaríamos dedançaspopulares.Aoscincoanos,participade
uma,quemelembraumadançatirolesaquevicertavezunsmeninos
comcalçasdecourodançaremnumcafédeInnsbruck:ospajensdo
Rei“dançaramumabranle
,dandopontapésnostraseirosunsdos
outros;eletambémdançouefezcomoosoutros".Noutraocasião,
eleestavafantasiadodemeninaparaumarepresentação:“Termina-
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 87
daafarsa,tirouovestidoedançou,chutandootraseirodeseusvizi-
nhos.Eleapreciavaessadança".
Finalmente,une-seaosadultosnasfestastradicionaisdoNatal,
deReis,deSãoJoão;éelequemacendeafogueiradeSãoJoão,no
pátiodocastelodeSaint-Germain.NanoitedeReis,“elefoireipela
primeiravez.Todosgritavam:-oreibebe!-ApartedeDeusera
postadelado:aquelequeacomesseteriadepagarumaprenda"
“FoilevadoaosaposentosdaRainha,deondeviuomastrodemaio
sererguido."
Ascoisasmudamquandoeleseaproximadfeseusétimoaniver-
sário:abandonaotrajedainfânciaesuaeducaçãoéentregueentão
aoscuidadosdoshomens;eledeixa“Mamangas”,M
m
*deMontglas,
epassaàresponsabilidadedeM.deSoubise.Tenta-seentãofazê-lo
abandonarosbrinquedosdaprimeirainfância,essencialmente as
brincadeirasdebonecas:“Nãodeveismaisbrincarcomessesbrin-
quedinhos(osbrinquedosalemães),nembrincardecarreteiro:agora
soisummeninogrande,nãosoismaiscriança".Elecomeçaaapren-
deramontaracavalo,aatirareacaçar.Jogajogosdeazar:“Ele
participoudeumarifaeganhouumaturqueza".Tudoindicaquea
idadedeseteanosmarcavaumaetapadecertaimportância:eraa
idadegeralmentefixadapelaliteraturamoralistaepedagógicadosé-
culoXVIIparaacriançaentrarnaescolaoucomeçaratrabalhar
5
Masnàodevemosexagerarsuaimportância.Poisemboranãobrin-
quemaisounãodevamaisbrincarcombonecas,oDelfimcontinua
alevaramesmavidadeantes.Aindaésurrado,eseusdivertimentos
quasenãosealteram.Elevaicadavezmaisaoteatro,chegandoem
poucotempoairquasetodososdias:umaprovadaimportânciada
comédia,dafarsaedobalénosfreqüentesespetáculosdeinteriorou
aoarlivredenossosancestrais.“Elefoiàgrandegaleriaparavero
Reinumtorneiodeargolinhas,"“Gostadeouvirosmauscontosde
LaCiavetteedeoutros."“Jogoucaraoucoroaemseugabinetecom
pequenosfidalgos,comooRei,comtrêsdados.”“Brincoudeescon-
der"comumtenentedacavalarialigeira.“Foiassistiraumjogoda
péla,edelá,foiàgrandegaleriaassistiraumtorneiodeargolinhas."
“Fantasiou-se edançouoPantalon."Eleagoratemmaisdenove
anos:“Apósaceia,foiaosaposentosdaRainha,brincoudecabra-
cegaefezcomqueaRainha,asprincesaseasdamasbrincassem
tambénfVComumpoucomaisde13anos,aindabrincadeesconder.
Umpoucomaisdebonecasedebrinquedosalemãesantesdos
seteanos,umpoucomaisdecaça,cavalos,armasetalvezteatroapós
2Cí.infira
,IIIparte,cap.a.

88 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
essaidade:amudançasefazinsensivelmente nessalongaseqüênçia
dedivertimentosqueacriançatomaemprestadadosadultosoudivi-
decomeles.Aosdoisanos,LuísXIIIcomeçaajogarmalhaepéla;
aosquatro,atiracomoarco-eram“jogosdeexercício”quetodos
praticavam:M
me
deSévigné,porexemplo,felicitariaseugenropor
suahabilidadenamalha,'OromancistaehistoriadorSorelescrevería
umtratadosobreosjogosdesalãodestinadoaosadultos.Masaos
trêsanos,LuísXIIIparticipavadeumjogoderimaseaosseis,joga-
vaojogodosofíciosebrincavademímica,brincadeiras estasque
ocupavamumlugarimportantenaMaisondesJeuxdeSorel.Aos
cincoanos,elejogacartas.Aosoito,ganhaumprêmionumarifa,
jogodeazaremqueasfortunascostumavam trocardemãos,
Omesmosedácomosespetáculosmusicaisoudramáticos:aos
trêsanos,LuísXIIIdançaagalharda,asarabanda,avelhabourrêe
,e
desempenhapapéisnosbalésdacorte.Aoscincoanos,assisteàsfar-
sase,aossete,àscomédias,Canta,tocaviolinoealaúde.Estánapri-
meirafiladosespectadoresqueassistemaurnaluta,aumtorneiode
argolinhas,aumabrigadeursosoudetouros,ouaumacrobatana
cordabamba.Enfim,participadasgrandesfestividadescoletivasque
eramasfestasreligiosasesazonais:oNatal,afestademaio,São
João...Parece,portanto,quenoiníciodoséculoXVIInâoexistia
umaseparaçãotâorigorosacomohojeentreasbrincadeiraseosjo-
gosreservadosàscriançaseasbrincadeiras eosjogosdosadultos.
Osmesmosjogoseramcomunsaambos.
NoiníciodoséculoXVII,essapolivalêncianãoseestendiamais
àscriançasmuitopequeninas.Conhecemosbemsuasbrincadeiras,
poís,apartirdoséculoXV,quandoosputtisurgiramnaiconografia,
osartistasmultiplicaram asrepresentaçõesdecriancinhasbrincando.
Reconhecemos nessaspinturasocavalodepau,ocatavento,
opássaropresoporumcordão,.,e,àsvezes,emboramaisraramente,
bonecas.Eumtantoouquantoevidentequeessesbrinquedoseram
reservadosaospequenininhos,Noentanto,podemosnosperguntar
setinhasempresidoassimeseessesbrinquedosnâohaviamperten-
cidoantesaomundodosadultos.Algunsdelesnasceramdoespírito
deemulaçãodascrianças,queaslevaaimitarasatitudesdosadul-
tos,reduzindo-asàsuaescala:foiocasodocavalodepau,numaé-
pocaemqueocavaloeraoprincipalmeiodetransporteedetração.
Damesmaforma,aspásquegiravamnapontadeumavaretasópo-
diamseraimitaçãofeitapetascriançasdeumatécnicaque,contra-
riamenteàdocavalo,nãoeraantiga:atécnicadosmoinhosdevento,
introduzidanaIdadeMédia,Omesmoreflexoanimanossascrianças
dehojequandoelasimitamumcaminhãoouumcarro.
v
Mas,en-
quantoosmoinhosdeventohámuitodesapareceramdenossoscam-
CONTRIBUiÇÃOAHISTÓRIADOSJOGOS 89
pos.oscataventoscontinuamaservendidosnaslojasdebrinquedos,
nosquiosquesdosjardinspúblicosounasleiras.Ascriançasconsti-
tuemassociedadeshumanasmaisconservadoras.
Outrasbrincadeirasparecemtertidoumaoutraorigem,quenão
odesejodeimitarosadultos.Assim,muitasvezesacriançaérepre-
sentadabrincandocomumpássaro:LuísXIIIpossuíaumapegada
qualgostavamuito,Opróprioleitortalvezselembredesuastentati-
vasdedomesticarumpássaroferidonainfância.Nessascenasdejo-
gos,opássaroemgeralestáamarradoaumacorrentinhaquea
criançasegura.Àsvezes,e!eéumaimitaçãodemadeira.Emtodoo
caso,ajulgarpelaiconografia,opássaroamarradoparecetersido
umdosbrinquedosmaiscomuns,Ohistoriadordareligiãogrega,
Nilsson\informa-nosquenaGréciaantiga,como,aliás,naGrécia
moderna,eracostumenosprimeirosdiasdemarçoosmeninosfaze-
remumaandorinhademadeiraenfeitadacomflores,quegiravaem
tornodeumeixo.Elesalevavamdecasaemcasa,erecebiampresen-
tes:opássaroousuareproduçãonâoeramumbrinquedoindividual,
esimumelementodeumafestacoletivaesazonal,daqualajuventu-
departicipavadesempenhandoopapelquesuaclassedeidadelhe
atribuía.(Reencontraremos maisadianteessetipodefesta.)Aquilo
quemaistardesetornariaumbrinquedoindividual,semrelaçãocom
acomunidadeoucomocalendário,destituídodequalquerconteúdo
social,parecetersidoligadonoprincípioacerimôniastradicionais
quemisturavam ascriançaseosjovens—aliásma!distinguidos

;omosadultos.OmesmoNilssonmostracomoobalanço,tâofre-
qüentenaiconografiadosjogosebrincadeirasaindanoséculo
XVIII,figuravaentreosritosdeumadasfestasprevistaspelocalen-
dário:*asAiora,afestadajuventude.Osmeninospulavamsobre
odrescheiosdevinho,easmeninaseramempurradasembalanços.
Estaúltimacenapodeservistaemvasospintados,eNilssonainter-
pretacomoumritodafecundidade.Existiaumarelaçãoestreitaen-
treacerimôniareligiosacomunitáriaeabrincadeiraquecompunha
seuritoessencial.Comotempo,abrincadeiraselibertoudeseusim-
bolismoreligiosoeperdeuseucarátercomunitário,tornando-seao
mesmotempoprofanaeindividual.Nesseprocesso,elafoicadavez
maisreservadaàscrianças,cujorepertóriodebrincadeirassurgeen-
tãocomoorepositóriodemanifestaçõescoletivasabandonadaspela
sociedadedosadultosedessacralizadas.
Oproblemadabonecaedosbrinquedos-miniaturas leva-nosa
hipótesessemelhantes.Oshistoriadoresdosbrinquedoseoscolecio-
3Nilsson.LaReligionpopuiairedansLaGrèceantique.

90 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
nadoresdebonecasedebrinquedos-miníaturas sempretiverammui-
tadificuldadeemdistinguiraboneca,brinquedodecriança,detodas
asoutrasimagenseestatuetasqueasescavaçõesnosrestituemem
quantidadessemi-industriaisequequasesempretinhamumasignifi-
caçãoreligiosa:objetosdecuJiodomésticooufunerário,ex-votos
dosdevotosdeumaperegrinação etc.Quantasvezesnosapresentam
comobrinquedosasreduçõesdeobjetosfamiliaresdepositadosnos
túmulos?Nãopretendoconcluirqueascriançaspequenasdeoutrora
nãobrincavamcombonecasoucomréplicasdosobjetosdosadul-
tos.Maselasnãoeramasúnicasaseservirdessasréplicas.Aquilo
quenaidademodernasetornariaseumonopólioaindaerapartilha-
donaAntigüidade,aomenoscomosmortos.Essaambigüidadeda
bonecaedaréplicapersistiriaduranteaIdadeMédia,pormaistem-
poaindanocampo:abonecaeratambémoperigosoinstrumentodo
feiticeiroedobruxo,Essegostoemrepresentardeformareduzidaas
coisaseaspessoasdavidaquotidiana,hojereservadoàscriancinhas,
resultounumaarteenumartesanatopopularesdestinadostantoà
satisfaçãodosadultoscomoàdistraçãodascrianças.Osfamosos
presépiosnapolitanossãoumadasmanifestaçõesdessaartedailu-
são.Osmuseus,sobretudoalemãesesuíços,possuemconjuntos
complicadosdecasas,interioresemobiliáriosquereproduzemem
escalareduzidatodososdetalhesdosobjetosfamiliares,Seriamreal-
mentecasasdebonecasessaspequenasobras-primasdeengenhoe
complicação?Éverdadequeessaartepopulardosadultostambém
eraapreciadapelascrianças?erammuitoprocuradosnaFrançaos
‘'brinquedosalemães”ouas"quinquilharias italianas”.Enquantoos
objetosemminiaturasetornavamomonopóliodascrianças,uma
mesmapalavradesignavanaFrançaessaindústria,querseusprodu-
tossedestinassemàscriançasouaosadultos:bimbeloterie.Obibelô
antigoeratambémumbrinquedo.Aevoluçãodalinguagemafastou-
odeseusentidoinfantilepopular,enquantoaevoluçãodosentimen-
to,aocontrário,restringiaàscriançasousodospequenosobjetos,
dasréplicas.NoséculoXIX,obibelôtornou-seumobjetodesalão,
devitrina,mascontinuouaserareduçãodeumobjetofamiliar:uma
cadeirinha,ummovelzinhoouumalouçaminúscula,quejamaisse
destinaramàsbrincadeirasdecrianças.Nessegostopelobibelôdeve-
mosreconhecerumasobrevivênciaburguesadaartepopulardospre-
sépiositalianosoudascasasalemãs.AsociedadedoAncienRêgime
durantemuitotempopermaneceu fielaessesbrinquedinhos,que
hojequalificaríamos debobagensdecrianças,semdúvidaporque
caíramdefinitivamentenodomíniodainfância.
Aindaem1747,Barbierescreve:“Inventaram-seemParisunsbrin-
quedoschamadosfantoches...EssesbortequinhosrepresentamAr-
coNTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 91
lequim,Scaramouche (acomédiaitaliana)ouentãopadeiros(osofí-
cios),pastoresepastoras(ogostopelosdisfarcesrústicos).Essasbo-
bagensdivertiramedominaramParisinteira,detalformaquenãose
podeiranenhumacasasemencontraralguns,penduradosnaslarei-
ras.Sãodadosdepresenteatodasasmulheresemeninas,ealoucura
chegouatalpontoque,noiníciodesteano,todasaslojasseenche-
ramdelesparavendê-loscomopresentes...AduquesadeChartres
pagou1.500librasporumbonecopintadoporBoucher.”Oexcelen-
tebibliófiloJacob,quecitaotrechoacima,reconheceque,emsuaé-
poca,ninguémteriasonhadocomtaisinfantilidades:"Àspessoasde
sociedade,muitoocupadas(oquediriaelehoje!),nãosedivertem
maiscomonaquelebomtempodeócio(?)queviufloresceramoda
dosbilboquêsedosfantoches;hojedeixamososbrinquedosparaas
crianças”,
Oteatrodemarionetesparecetersidoumaoutramanifestação
damesmaartepopulardailusãoemminiatura,queproduziuas
quinquilhariasalemãseospresépiosnapolitanos,Eleteve,aliás,a
mesmaevolução:oGuignollionêsdoiníciodoséculoXIXerauma
personagemdoteatropopular,porétrradulto.Hoje,Guignoltornou-
seonomedoteatrodemarionetesreservadoàscrianças.
Semdúvida,essaambigüidadepersistentedasbrincadeiras in-
fantisexplicatambémporque,doséculoXVIatéoiníciodoXIX,a
bonecaserviuàsmulhereselegantescomomanequimdemoda.Em
1571,aduquesadeLorraine,querendodarumpresenteaumaamiga
quehaviadadoàluz,encomenda"bonecasnãomuitograndes,eem
númerodeatéquatroouseis,edasmaisbemvestidasquepossaisen-
contrar,paraenviá-lasàfilhadaDuquesadeBavière,queacaboude
nascer”.Opresentesedestinavaàmãe,masemnomedacriança!A
maioriadasbonecasdecoleçõesnãosãobrinquedosdecrianças,ob-
jetosgeralmentegrosseirosemaltratados,esimbonecasdemoda.
Asbonecasdemodadesapareceriam eseriamsubstituídaspelagra-
vurademoda,graçasespecialmenteàlitografia
4
.
Existe,portanto,émtornodosbrinquedosdaprimeirainfância
edesuasorigens,umacertamargemdeambigüidade.Essaambigüi-
dadecomeçavaasedissiparnaépocaemquemecoloqueinoinício
destecapítulo,ouseja,emtornodosanos1600:aespecialização in-
fantildosbrinquedosjáestavaentãoconsumada,comalgumasdife-
rençasdedetalhecomrelaçãoaonossousoatual:assim,comoobser-
vamosapropósitodeLuísXIII,abonecanãosedestinavaapenasàs
meninas.Osmeninostambémbrincavamcomelas.f>entrodoslimi-
4E.Fournier,Hisioiredesjouetsetjeuxd'enfams tL889.

92 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
tesdaprimeirainfância,adiscriminaçãomodernaentremeninase
meninoseramenosnítida:ambosossexosusavamomesmotraje,o
mesmovestido.Épossívelqueexistaumarelaçãoentreaespecializa-
çãoinfantildosbrinquedoseaimportânciadaprimeirainfânciano
sentimentoreveladopeiaiconografiaepelotrajeapartirdofimda
IdadeMédia,Ainfânciatornava-seorepositóriodoscostumesaban-
donadospelosadultos.
Porvoltade1600,aespecializaçãodasbrincadeirasatingiaape-
nasaprimeirainfância;depoisdostrêsouquatroanos,elaseatenua-
vaedesaparecia'::Apartirdessaidade,acriançajogavaosmesmosjo-
goseparticipavadasmesmasbrincadeirasdosadultos,querentre
crianças
tquermisturadaaosadultos,Sabemosdissograçasprincipal-
menteaotestemunhodeumaabundanteiconografia,pois,daIdade
MédiaatéoséculoXVIII,tornou-secomumrepresentarcenasdejo-
gos:umíndicedolugarocupadopelodivertimentonavidasocialdo
ÂncienRegime.JávimosqueLuísXIII,desdeseusprimeirosanos,
aomesmotempoquebrincavacombonecas,jogavapélaemalha,jo-
gosquehojenosparecemsermuitomaisjogosdeadolescentesede
adultos.NumagravuradeArnoult
5
doséculoXVII,vemoscrianças
jogandoboliche,Sãocriançasbemnascidas,ajulgarpelasmangas
falsasdamenina.Nãosesentianenhumarepugnânciaemdeixaras
criançasjogar,assimquesetornavamcapazes,jogosdecanasede
azar,eadinheiro,UmadasgravurasdeStelladedicadaaosjogosdos
putti
*
descrevecomsimpatiaainfelicidadedeumdeles,quehavia
perdidotudo.OspintorescaravagescosdoséculoXVIImuitasvezes
retrataramgruposdesoldadosjogandoexcitadamenteemtavernas
malafamadas:aoladodevelhossoldados,vêem-semeninosmuito
jovens,de12anostalvez,equenãoparecemserosmenosanimados.
UmateladeS,Bourdon
7
representaumgrupodemendigosemtor-
nodeduascrianças,observando-asjogardados.Otemadascrianças
jogandoadinheirojogosdeazaraindanãochocavaaopiniãopúbli-
ca,poiséencontradotambémemcenasquemostramnãomaisve-
lhos,soldadosoumendigos,maspersonagenssériascomoasdeLe
Nain
Inversamente, osadultosparticipavamdejogosebrincadeiras
quehojereservamosàscrianças.UmmarfimdoséculoXIV
5
repre-
5Arnoult,gravura,CabínetdesEstampes,Oa52pet.foi,F*164.
6ClaudmeBouzonnet,Jeauxdelen/ance,1657.
7MuseudeGenebra.
8P,Fíerens,LeNain
,1933,pranchaXX,
9Louvre.
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 93
sentaumabrincadeiradeadultos:umrapazsentadonochãotenta
pegaroshomenseasmulheresqueoempurram.Olivrodehorasde
AdelaidedeSavoie,dofimdoséculoXVcontémumcalendário
queéilustradoprincipalmentecomcenasdejogos,edejogosquenâoeram
decavalaria.ÍNoinício,oscalendáriosrepresentavamcenasdeofí-
cios,excetonomêsdemaio,reservadoaumacortedeamor.Osjo-
gosforamintroduzidos epassaramaocuparumlugarcadavez
maior.Emgeraleramjogosdecavalaria,comoacaça,mashavia
tambémjogospopulares.)Umadessasilustraçõesmostraaseguinte
brincadeira:umapessoafazopapeldavelanomeiodeumcírculode
casais,emquecadadamaficaatrásdeseucavalheiroeosegurapela
cintura.Numaoutrapassagemdomesmocalendário,apopulação
daaldeiafazumaguerradebolasdeneve-homensemulheres,gran-
desepequenos.Numatapeçaria
11
doiníciodoséculoXVI,alguns
camponesesefidalgos,estesúltimosmaisoumenosvestidosdepas-
tores,brincamdeumaespéciedecabra-cega:nãoaparecemcrianças.
VáriosquadrosholandesesdasegundametadedoséculoXVIIrepre-
sentamtambémpessoasbrincandodessaespéciedecabra-cega.Num
deles
12
aparecemalgumascrianças,maselasestãomisturadascom
osadultosdetodasasidades:umamulher,comacabeçaescondida
noavental,estendeamãoabertanascostas.LuísXIIIesuamãe
brincavamdeesconde-esconde. Brincava-sedecabra-ceganacasada
GrandeMademoiselle,noHôteldeRambouillet
”Umagravurade
Lepeautre
14
mostraqueoscamponesesadultostambémgostavam
dessabrincadeira.
Logo,podemoscompreenderocomentárioqueoestudodaico-
nografiadosjogosinspirouaohistoriadorcontemporâneoVanMar-
le
’3
:"Quantoaosdivertimentosdosadultos,nãosepodedizerreal-
mentequefossemmenosinfantisdoqueasdiversõesdascrianças”.E
claroquenão,poisseeramosmesmos!
Ascriançastambémparticipavam,nolugarquelhescabiaentre
osoutrosgruposdeidade,dasfestassazonaisquereuniamregular-
mentetodaacoletividade.Paranósédifícilimaginaraimportância
dosjogosedasfestas'nasociedadeantiga:hoje,tantoparaohomem
dacidadecomoparaodocampo,existeapenasumamargemmuito
10Chantilly.
11ViçtoriaandAlbertMuseum,Londres.
12Berndt,n'509(CornelisdeMan),n*544(Molinat).
13Fournier,op>tit.
14Lepeautre,gravura.CabinetdesEstampes,Ed.73in-f\p.104.
15VanMarle,op
.cit.
,
vol.I,p.71.

94 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
estreitaentreumaatividadeprofissionallaboriosaehipertrofiada, e
umavocaçãofamiliarimperiosaeexclusiva.Todaaliteraturapolíti-
caesocial,reflexodaopiniãocontemporânea, tratadascondiçõesde
vidaedetrabalho.Umsindicalismoqueprotegeossaláriosreaise
segurosquereduzemoriscodadoençaedodesemprego: eisasprin-
cipaisconquistaspopulares,aomenosasmaisaparentesnaopinião
pública,naliteraturaenodebatepolítico.Mesmoasaposentadorias
tornam-secadavezmenospossibilidadesderepouso:sãoantesprivi-
légiosquepermitemumarendamaisgorda.Odivertimento,tornado
quasevergonhoso,nãoémaisadmitido,anàoseremrarosinterva-
los,quaseclandestinos:sóseimpõecomodadodoscostumesuma
vezporano,duranteoimensoêxododomêsdeagosto
]fi
quelevaàs
praiaseàsmontanhas,àbdratfágua,aoarlivreeaosolumamassa
cadavezmaisnumerosa,maispopulareaomesmotempomaismo-
torizada.
Nasociedadeantiga,otrabalhonãoocupavatantotempodo
dia,nemtinhatantaimportâncianaopiniãocomum:nãotinhaova-
lorexistencialquelheatribuímoshápoucomaisdeumséculo.Mal
podemosdizerquetivesseomesmosentido.Poroutrolado,osjogos
eosdivertimentosestendiam-semuitoalémdosmomentosfurtivos
quelhesdedicamos:formavamumdosprincipaismeiosdequedis-
punhaumasociedadeparaestreitarseuslaçoscoletivos,parasesen-
tirunida.Issoseaplicavaaquasetodososjogos,masessepapelso-
cialapareciamelhornasgrandestestassazonaisetradicionais.Elas
serealizavamemdatasfixasdocalendário, eseusprogramas se-
guiamemgeralregrastradicionais.Essasfestassóforamestudadas
porespecialistasemfolcloreouemtradiçõespopulares,queassi-
tuamnummeioquasequeexdusivamenle rurahMas,aocontrário,
elasenvolviamtodaasociedade,decujavitalidadeeramamanifesta-
çãoperiódica.Ora,ascrianças-ascriançaseosjovens-participa-
vamdelasempédeigualdadecomtodososoutrosmembrosdaso-
ciedade,equasesempredesempenhavamumpapelquelheserare-
servadopelatradição.Nãopretendoescreveraqui,éclaro,umahis-
tóriadessasfestas-umassuntovastoecertamentedegrandeinteres-
separaahistóriasocial-masalgunsexemplosbastarãoparamos-
trarolugarquenetasocupavamascrianças,Adocumentação, aliás,
érica,mesmoserecorrermospoucoàsdescriçõespredominantemen-
teruraisdaliteraturafolclórica:umaabundanteiconografia,inúme-
raspinturasburguesaseurbanassãosuficientesparacomprovara
importânciadessasfestasnamemóriaenasensibilidadecoletivas.Os
16OmêsdefériascoletivasnaEuropa.(N.doT.)
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 95
artistastiveramocuidadodepintá-lasedeconservarsualembrança
pormaistempodoqueobrevemomentodesuaduração,
Umadascenasfavoritasdosartistasedesuaclientelaeraafesta
deReis,provavelmente amaiorfestadoano.NaEspanha,elacon-
servouesseprimadoqueperdeunaFrançaparaoNatal.Quando
M
me
deSévigné,queestavaentãoemseucastelodeLesRochers,
soubedonascimentodeumneto,quispartilharsuaalegriacoma
criadagem, e,paramostraraM
me
deGrignanquehaviafeitotudo
comodevia,escreveu-lhe:“Deidebeberedecomeràcriadagem
comonumanoitedeReis
l7
’\Umaminiaturadolivrodehorasde
AdelaidedeSavoie
18
representaoprimeiroepisódiodafesta.Acena
datadofimdoséculoXV,masessesritospermaneceram inalterados
porlongotempo.Homensemulheres,parenteseamigosestãoreuni-
dosemvoltadeumamesa.UmdosconvivasseguraobolodeReis
verticalmente.Umacriançadecincoaseteanosestáescondidade-
baixodamesa.Oartistacolocou-lhenamãoumafaixadepergami-
nhocomumainscriçãoquecomeçaporumPh...Dessemodo,foifi-
xadoomomentoemque,segundoatradição,eraumacriançaquem
distribuíaobolodeReis.Issosepassavasegundoumcerimonialde-
terminado:acriançaescondia-sesobamesa,umdosconvivascorta-
vaumpedaçodoboloechamavaacriança: Phaebe,Domine...
(dondeasletrasPhdaminiatura)eacriançarespondiadizendoo
nomedoconvivaquedeviaserservido,eassimpordiante.Umdos
pedaçoserareservadoparaospobres,ouseja,paraDeus,eaquele
queocomessedeveriadarumaesmola.QuandoafestadeReisselai-
cizou,essaesmolasetornounaobrigaçãodoReidepagarumapren-
daoudedarumoutrobolonãomaisaospobres,masaosoutros
convivas.Masissonãoimportaaqui.Observemosapenasopapel
queatradiçãoconfiavaaumacriançapequenanoritualdafestade
Reis.Oprocedimentoadotadonosorteiodasloteriasoficiaisdosé-
culoXVIIsemdúvidaseinspirounessecostume:ofrontispíciode
umlivro
]S>
intituladoCritiquesurlaloterie
,mostraumacriançati-
randoasorte,tradiçãoqueseconservouaténossosdias.Sorteia-sea
loteriacomosesorteavaobolodeReis.Essepapeldesempenhado
pelacriançaimplicavasuapresençanomeiodosadultosduranteas
longashorasdanoitedeReis.
Osegundoepisódiodafesta,aliásseupontoculminante,erao
brindeerguidoportodososconvivasàquelequehaviaencontrado
11(^|
nití
deSévigné,Lettrès, !67L
18Cf.notan
?
10,desiecapítulo,
19ReproduzidoporH.D\Al3emagne tRécréations etpasse-(emps,1906,p.107

96 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
umafavaemseupedaçodeboloequeassimsetornavarei,sendode-
vidamentecoroado:“Oreibebe”.Aspinturasflamengaseholande-
sasretrataramparticularmente essetema.Conhecemosafamosatela
doLouvredeJordaens,masomesmoassuntoéencontradoemnu-
merososoutrospintoressetentrionais.Porexemplo,noquadrode
Metsu
2q
,deumrealismomenosburlescotmaisverdadeiro,Elenos
dábemaidéiadessareuniãoemtornodoRei,depessoasdetodasas
idadesecertamentedetodasascondições,oscriadosmisturando-se
aossenhores.Aspessoasestãoemtomodeumamesa.ORei,umve-
lho,bebe.Umacriançaosaúdatirandoochapéu:semdúvidafora
elaquem,hápoucosmomentos,sortearaospedaçosdebolo,segun-
doatradição,Umaoutracriançaaindamuitopequenaparadesem-
penharessepapelestásentadanumadessascadeirasaltasfechadas,
quecontinuavamasermuitousadas,Elaaindanãosabeficardepé
sozinha,maséprecisoquetambémparticipedafesta,Umdosconvi-
vasestáfantasiadodebufão.NoséculoXVII,adoravam-seasfanta-
sias,easmaisgrotescaseramcomunsnessaocasião;masotrajede
bufãoapareceemoutrasrepresentaçõesdessacenatãofamiliar,epa-
receóbvioquefaziapartedocerimonial:obufãoeraobobodoRei.
Podiaacontecertambémqueumadascriançasencontrasseafa-
va.Assim,Heroardregistravaa5dejaneirode1607(afestaerace-
lebradananoitedaEpifania)queofuturoLuísXIII,entãocomseis
anos,"foireipelaprimeiravez”.UmateladeSteende1668
21
celebra
acoroaçãodofilhomaismoçodopintor.Omenino,usandoumaco-
roadepapel,estásentadonumbancocomosefosseumtrono,euma
velhalhedáternamentedebeberumcopodevinho,
Afestanãoparavaaí.Começavaentãooterceiroepisódio,que
deviaduraratédemanhã.Algunsconvivasusavamfantasias;alguns
traziamtambémsobreochapéuumcartazqueespecificavaseupapel
nacomédia.O"bobo”encabeçavaumapequenaexpediçãocompos-
tadealgunsmascarados,ummusico(emgeralviolinista), e,mais
umavez,umacriança.Ocostumeimpunhaaessacriançaumafun-
çãobemdefinida:eladevialevaraveladosreis.NaHolanda,parece
queavelaerapreta.NaFrança,tinhaváriascores:M
me
deSévigné
diziaarespeitodeumamulherqueelaestava“vestidacomtantasco-
rescomoaveladosreis”.Sobachefiadobufão,ogrupodos"canto-
resdaestrela”-assimeramchamadosnaFrança-seespalhavapela
vizinhança,pedindocombustívelecomida,oudesafiandoaspessoas
20Metsu,“AFestadeReis”,reproduzidaemBerndt, 515.
21Steen,Kassel,reproduzidoemF.Schmidt-Degener eVanGelder,JanSteen,1928,
p.82.
CONTRIBUIÇÃOÀHISTORIADOSJOGOS 97
paraumjogodedados.UmagravuradeMazotde1641
n
mostrao
cortejodoscantoresdaestrela:doishomens,umamulhertocando
guitarraeumacriançalevandoaveladosreis.
Graçasaumlequepintadoaguachedoiniciodoséculo
XVIII

,podemosacompanharessecortejobufãoatéomomentode
suaacolhidanumacasavizinha.Asaladacasaécortadavertical-
mente,àmaneiradoscenáriosdemistériosoudaspinturasdoséculo
XV,afimdedeixarveraomesmotempoointeriordasalaearua
atrásdaporta.Nasala,aspessoasbebemàsaúdedoReiecoroama
Rainha.Narua,umgrupomascaradobateàporta,quelhesserá
aberta,
Constatamos,pois,aolongodetodaafesta,aparticipaçãoativa
dascriançasnascerimôniastradicionais.Essaparticipaçãotambémé
comprovadananoitedeNatal.HeroardnosdizqueLuísXIII,aos
trêsanos,“viuaachadeNatalseracesa,edançouecantoupelache-
gadadoNatal”.Talveztenhasidoeleoencarregadodelançarosale
ovinhosobreaacha,segundooritualquenosédescritonofinaldo
séculoXVIpelosuíço-alemãoThomasPlatter,quandofaziaseuses-
tudosdemedicinaemMontpellier.AcenasepassaemUzès
!4
.Uma
grandeachaécolocadasobreoscãesdalareira.Quandoofogopega,
aspessoasseaproximam.Acriançamaismoçaseguracomamãodi-
reitaumcopodevinho,migalhasdepãoeumapitadadesal,e,com
aesquerda,umavelaacesa.Aspessoastiramoschapéuseacriança
começaainvocarosinaldacruz.EmnomedoPai...,ejogaumapi-
tadadesalnumaextremidadedalareira.EmnomedoFilho...,na
outraextremidade,eassimpordiante.Oscarvões,quesegundose
acreditava,possuíampropriedadesbenéficas,eramconservados.A
criançadesempenhavaaquimaisumavezumdospapéisessenciais
previstospelatradição,nomeiodacoletividadereunida.Essepapel,
aliás,tambémexistiaemocasiõesmenosexcepcionais,masqueti-
nhamentãoomesmocarátersocial:asrefeiçõesdefamília.Ocostu-
merezavaqueasgraçasfossemditasporumadascriançasmaisno-
vas,equeoserviçodamesafossefeitopelatotalidadedascrianças
presentes:elasserviamabebida,trocavamospratos,cortavamacar-
ne...Teremosoportunidadedeexaminarmaisdepertoosentidodes-
sescostumes,quandoestudarmosaestruturafamiliar
25
.Observemos
22GravuradeF.Mazot,“LaNuit”.
23Exposiçãodelequespintados,GalerieCharpentier, Paris,1954,n
?70(proveniente
daColeçãoDuchesne).
24ThomasPlatteràMontpellier
,1595-1599, p>346.
25Cf,infra ,IIIparte,eap.2,

98 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
aquiapenascomoeracomum,doséculoXIVaoXVII,ohábitode
confiaráscriançasumafunçãoespecialnocerimonialqueacompa-
nhavaasreuniõesfamiliaresesociais,tantoordináriascomoextraor-
dinárias.
Outrasfestas,emboradespertassemointeressedetodaacoleti-
vidade,reservavamàjuventudeomonopóliodospapéisativos,en-
quantoosoutrosgruposdeidadeassistiamcomoespectadores,Essas
festasjátinhamaaparênciadefestasdainfânciaoudajuventude:já
vimosqueafronteiraentreessesdoisestados,hojetãodistintos,era
incertaemalpercebida.
NaIdadeMédia
2
\nodiadosSantos-Inocentes, ascrianças
ocupavamaigreja;umadelaseraeleitabispopeloscompanheiros, e
presidiaàcerimôniaqueterminavaporumaprocissão,umacoletae
umbanquete.Atradição,aindavivanoséculoXVI,rezavaquena
manhãdessediaosjovenssurpreendessem seusamigosnacamapara
surrá-los,ou,comosedizia,“paralhesdarosinocentes”,
Aterça-feiragordaaparentementeeraafestadosmeninosdees-
colaedajuventude.FitzStephendescreveumaterça-feiragordado
séculoXIIemLondres,apropósitodajuventudedeseuherói,Tho-
masBecket entãoalunodaescoladacatedraldeSãoPaulo:“To-
dasascriançasdaescolatraziamseusgalosdebrigaparaseumes-
tre”,Asbrigasdegalo,aindahojepopularesnoslocaisemquesub-
sistem,comoemFlandresounaAméricaLatina,masdestinadasaos
adultos,duranteaIdadeMédiaestavamligadasàjuventudeeaté
mesmoàescola.UmtextodoséculoXV,deDieppe,queenumeraos
pagamentosdevidosaumbalseíro,oconfirma:“Omestrequeman-
témaescoladeDieppedeverápagarumgalo,quandoaslutastive-
remlugarnaescolaounacidade,etodososoutrosmeninosdaesco-
ladeDieppeserãotransportadosporessepreço
Mn
.EmLondres,se-
gundoFitzStephen,aterça-feiragordacomeçavacombrigasdegalo
queduravamtodaamanhã.“Àtarde,todososjovensdacidade
saíamparaosarredores,parajogarofamosojogodebola...Osadul-
tos,osparenteseasautoridades,vinhamacavaloassistiraosjogos
dosjovensevoltavamaserjovenscomoeles.”Ojogodebolareunia
váriascomunidadesnumaaçãocoletiva,opondooraduasparóquias,
oradoisgruposdeidade:“Ojogodebolaéumjogoquesecostuma
realizarnodiadeNatalentreoscompanheirosdalocalidadedeCai-
rac,emAuvergue(eemoutroslugarestambém,éclaro).Estejogose
26T.L.Jarman,Landmarks inlheHisíoryofEducation^1951.
27Ibid
28CharlesdeRobülarddeBeaurepaire»RecherchessurVinstructionpubliquedansle
diocesedeRouenavaní1789
,1872,3vols.,vol,II,p.284,
CONTRIBUIÇÃOàhistóriadosjogos 99
diversificaesedividedetalmaneiraqueoshomenscasadosficamde
umladoeosnâocasadosdeoutro;eleslevamaditaboladeumlu-
garparaoutroedisputam-naunsaosoutrosafimdeganharoprê-
mio,equemjogamelhorrecebeoprêmiododitodia
29
”.Aindano
séculoXVI,emAvignon,ocarnavaleraorganizadoeanimadopèlo
jibadedajurisdição,presidentedaconfrariadosnotáriosedospro-
curadores
30
:esseslíderesdajuventudeeramemgeral,aomenosno
SuldaFrança,“chefesdeprazer”,segundoaexpressãodeumerudi-
tomoderno,eusavamostítulosdepríncipedeamor,reidajurisdi-
ção,abadeoucapitãodajuventude,abadedoscompanheirosoudas
criançasdacidade.EmAvignon
3
\nodiadecarnaval,osestudantes
tinhamodireitodesurrarosjudeuseasprostitutas,amenosquees-
tespagassemumresgate.AhistóriadauniversidadedeAvignonnos
dizquea20dejaneirode1660ovice-legadofixouesseresgateemum
escudoporprostituta.
Asgrandesfestasdajuventudeeramasdemaioenovembro.Sa-
bemosporHeroardqueemcriançaLuísXIIIiaaobalcãodaRainha
paraverergueromastrodemaio,Afestademaiovemlogoapósa
festadeReisnofervordosartistas,quegostavamdeevocá-lacomo
umadasmaispopulares.Elainspirouinúmeraspinturas,gravurase
tapeçarias.A.Varagnac
32
reconheceuotemanaPrimaveradeBoti-
celli,daGaleriadosOfícios.Emoutrasobras,ascerimôniastradi-
cionaissãorepresentadascomumaprecisãomaisrealista.Umatape-
çariade1642
33
nospermiteimaginaroaspectodeumaaldeiaoude
umburgonuml
çdemaiodoséculoXVII.Acenasepassanumarua.
Umcasaljámaduroeumvelhosaíramdeumadascasaseesperam
nasoleiradaporta.Preparam-separareceberumgrupodemoças
quevememsuadireção.Amoçadafrentetrazumacestacheiade
frutasededoces.Essegrupodejovensvaiassimdeportaemportae
todoslhesdãoalgumacomidaemtrocadeseusbonsvotos;acoletaa
domicílioéumdoselementosessenciaisdessasfestasdajuventude.
Noprimeiroplano,algunsmeninospequenosaindavestidoscomtú-
nicas,comoasmeninas,usamcoroasdefloresefolhasquesuasmães
lhesprepararam.Emoutraspinturas,aprocissãodosjovenscoleto-
resseorganizaemtornodeummeninoquecarregaaárvoredemaio:
29J.LJusserand,LesSporlsetJeuxd*exercicedans1’aricienneFrançe,1901.
30PaulAchard,
li
LesChefsdesPlaisírs”,inÁmuaireadminístratifdudêpartementdu
Vmcime
y
1869.
jlLavai,”Droitdebarbeetbatacule”,Universitéd'Avignon,pp-44-5.
32A.Varagnac,Civilisations traditlonneiles, 1948.
33“AsEstações”,Florença.H.Gõbbel,Wandteppiehe
,1923,vol.II,p.409,

100 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
éocasodeumapinturaholandesade1700
i
4
.Obandodecrianças
percorreaaldeiaatrásdaárvoredemaio,eascriançasmenores
usamcoroasdeflores.Osadultosestãonassoleirasdasportas,pron-
tosparareceberocortejodascrianças.Aárvoredemaioalgumasve-
zesérepresentadasimbolicamenteporumavaracoroadadefolhase
deflores
3S
.Masaárvoredemaionãonosinteressaaqui.Ressalte-
mosapenasacoletafeitapelogrupodejovensjuntoaosadultos,eo
costumedecoroarascriançascomflores,quedeveserassociadoà
idéiaderenascimentodavegetação,simbolizadotambémpelaárvo-
re,queeralevadapelasruasedepoisplantada
J6
,Essascoroasdeflo-
restalvezsetenhamtornadoumabrincadeiracomumdascrianças:
detodaforma,écertoquesetornaramoatributodesuaidadenas
representaçõesdosartistas.Nosretratosdaépoca,individuaisoufa-
miliares,ascriançasusamoutrançamcoroasdefloresoudefolhas,
comoasduasmeninasdeNicolasMaesdomiiseudeToulouse a
primeiracolocaumacoroadefolhascomumadasmaos,e,coma
outra,pegafloresnumacestaquesuairmàlheestende.Nãopode-
mosdeixarderelacionarascerimôniasdemaiocomessaconvenção
queassociavaainfânciaàvegetação.
Umoutrogrupodefestasdainfânciaedajuventudesesituava
noiníciodenovembro.“Nosdias4e8(denovembro),escreveoes-
tudantePlatter,nofimdoséculoXVI
3a
,realizou-seamascaradados
querubins.EutambémmemascareiefuiàcasadoDr.Sapota,onde
haviaumbaile.”Tratava-sedeumamascaradadejovens,enãoape-
nasdecrianças.Essafestadesapareceucompletamente denossos
costumes,banidapelaproximidadedodiadeFinados.Aopiniãoco-
mumnãoadmitiumaisaproximidadedeumafestaalegredainfân-
ciafantasiadacomumdiatãosolene.Noentanto,essafestasobrevi-
veunaAméricaanglo-saxônia,comonomedeHatloween .Umpou-
comaistarde,afestadeSãoMartimeraaocasiãodedemonstrações
restritasaosjovens,e,maisprecisamente, talvez,aosescolares:"A-
manhãéodiadeSãoMartim,lemosnumdiálogoescolardoinício
doséculoXVI,quedescreviaavidadasescolasemLeipzig^.Nós,
osescolares,fazemosumacoletafartanessedia...écostumeos(alu-
nos)pobresiremdeportaemportapedirdinheiro”.Reencontramos
34Brokenburgh(1650-1702),reproduzidoemBerndt,n?131
.
35TapeçãriadeTournaí,H.GÒbbd,op.cit.*vol.II,p.24.
36VertambémLMariette,CabinetdesEstampes,Ed.82,in-fa,eMérian,Cabinetdes
Estampes,Ec11in-fV,p.58.
37MuséedesAugustms,Toulouse.
38FêiixetThomasFíauer[OJovem]àMontpeiUer, 1892,p.142.
39L.Massebieau,LesCoífoquesscolaires,1878.
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 101
aquiascoletasadomicílioqueobservamosporocasiãodafestade
maio:práticaespecíficadasfestasdajuventude,oragestodeacolhi-
daeboas-vindas,oramendicância real.Estesparecemserosúltimos
vestígiosdeumaestruturamuitoantiga,emqueasociedadeeradivi-
didaemclassesdeidade;dessaestruturarestouapenasocostumede
reservaràjuventudeumpapelessencialemalgumasgrandescelebra-
çõescoletivas.Édenotar,alémdisso,queocerimonialdessasce-
lebraçõesdistinguiamalascriançasdosjovens;essasobrevivênciade
umtempoemqueeleseramconfundidosnãocorrespondiamaisin-
teiramenteàrealidadedoscostumes,comoofazcrerohábitocriado
noséculoXVIIdeenfeitarapenasascriancinhaspequenas,osmeni-
nosqueaindausavamtúnicas,comasfloreseasfolhasquenosca-
lendáriosdaIdadeMédiaadornavamosadolescentesquehaviam
chegadoàidadedoamor.
Qualquerquefosseopapelatribuídoàinfânciaeàjuventude,
primordialnafestademaio,ocasionalnafestadeReis,eleobedecia
sempreaumprotocolotradicionalecorrespondia àsregrasdeum
jogocoletivoquemobilizavatodoogruposocialetodasasclassesde
idade.
Outrascircunstânciasprovocavamtambémamesmaparticipa-
çãodosdiferentesgruposdeidadesnumacelebraçãocomum.Assim,
doséculoXVaoXVIII,e,naAlemanha,atéoiníciodoséculoXIX,
cenasdegêneropintadas,gravadasoutecidasrepresentavam areu-
niãofamiliaremqueascriançaseospaisformavamumapequena
orquestradecâmara,acompanhandoumcantor.Quasesemprea
cenasepassavaporocasiãodeumarefeição.Emalgunscasos,a
mesahaviasidotirada.Emoutros,ointerlúdiomusicalrealizava-se
durantearefeição,comonatelaholandesadeLamenpintadapor
voltade1640
40
:aspessoasestãosentadasàmesa,masoserviçofoi
interrompido:omeninoencarregadodoserviço,quetrazumpratoe
umajarradevinho,estáparado;umdosconvivas,depéeencostado
nalareira,comumcoponamão,cantasemdúvidaumacanção
sobreabebida,enquantoumoutropegaseualaúdeparaacompa-
nhá-lo.
Hojeemdianãotemosmaisidéiadolugarqueamúsicaeadan-
çaocupavamnavidaquotidiana,OautordeumaIntroduction to
PracücalMusíc
,
editadaem1597
Â
\contacomoascircunstâncias fi-
zeramdeleummúsico.Elejantavacomumgrupodepessoas:
40Lamen(1606-1652),“OInterlúdioMusical”,reproduzidoemBerndt, 472.
41ThomasMorley,citadoemF.Watson,TheEngitshGrammarSchoolsto1660
,1907,
p,216.

102 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
“Quandoaceiaterminoue,segundoocostume,foramtrazidasas
partiturasparaamesa,adonadacasamedesignouumaparte,epe-
diu-memuitoseriamenteparacantar.Eutivedemedesculparmuito
econfessarquenãosabia;todospareceramentãosurpresos,ealguns
chegaramacochicharnoouvidodosoutros,perguntando-seondeeu
haviasidoeducado.”Emboraapráticafamiliarepopulardeumins-
trumentooudocantotalvezfossemaiscomumnaInglaterraelisabe-
lanadoquenorestodaEuropa,elatambémeradifundidanaFran-
ça,naItália,naEspanhaenaAlemanha,deacordocomumvelho
hábitomedievalque,apesardastransformaçõesdogostoedosaper-
feiçoamentostécnicos,subsistiuatéosséculosXVIIIeXIX,umpou-
comaisouumpoucomenosconformearegião.Hojeessehábitosó
existenaAlemanha,naEuropacentralenaRússia.Naquelaépoca,
porém,eleeracomumnosmeiosnobreseburgueses,emqueosgru-
posgostavamdesefazerretratarrealizandoumconcertodecâmara.
Eracomumtambémnosmeiosmaispopulares,entreoscamponeses
ouatémesmomendigos,cujosinstrumentoseramagaitadefoles,o
realejo,earebeca,queaindanãohaviasidoelevadaàdignidadedo
violinoatual.Ascriançaspraticavam amúsicamuitocedo.Desde
pequenino,LuísXIIIcantavacançõespopularesousatíricas,que
nãosepareciamemnadacomascantigasderodainfantisdenossos
últimosdoisséculos;eletambémsabiaonomedascordasdoalaúde,
uminstrumentonobre.Ascriançastomavamparteemtodosesses
concertosdecâmaraqueaantigaiconografiamultiplicou.Tocavam
tambémentreelas,eumaformahabitualdepintá-laserarepresentá-
lascomuminstrumentonamão-sãoexemplososdoismeninosde
FranzHals
4
\umdosquaisacompanhanoalaúdeoirmãoouoami-
goquecanta,esãoexemplosasnumerosascriançastocandoflauta
deFranzHalsedeLeNain
45
.NumquadrodeBrouwer,vêem-sena
ruamolequesdopovomaisoumenosesfarrapadosouvindocomavi-
dezorealejodeumcegosaídodeumpátiodosmilagres:temade
mendicânciamuitocomumnoséculoXVII
**.Umatelaholandesade
Vinckelbaons
45
mereceserespecialmenteexaminadaemrazãodeum
detalhesignificativoqueilustraonovosentimentodainfância:como
emoutraspinturassemelhantes,umtocadorderealejotocapara
42FranzHals,“Meninosmúsicos”,Kassel,Gerson,voi.I,p.167.
43FranzHals,Berlim.LeNainDetroit;“Lacharette”,doLouvre.
44Brouwer,“locadorderealejooercadodecrianças”,Harlem,reproduzidoemW.
vonBode,p.29.AteliêdeGeorgesdeiaTour,ExposiçãodaOrangeriedeParis,1958,
n’75.
45Vinckelbaons(1576-1629),reproduzidoemBemdt,n*942,
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 103
umaplatéiadecrianças,eacenaérepresentadacomouminstantâ-
neo,nomomentoemqueosmeninosacorremaosomdoinstrumen-
to.Umdosmeninosémuitopequenoenãoconsegueacompanharos
outros.Seupaientãooseguranocoloecorreatrásdobandopara
queseufilhonãopercanadadafesta:acriançaalegreestendeosbra-
çosparaorealejo.
Amesmaprecocidadeéobservadanapráticadadança.Vimos
queLuísXIII,aostrêsanos,dançavaagalharda,asarabandaeave-
lhabourrêe.ComparemosumatetadeLeNain eumagravurade
Guérard
4T
:elastêmcercademeioséculodedistância,masoscostu-
mesnãomudarammuitonesseintervalo,ealémdissoaartedagra-
vuratendeaserconservadora.EmLeNain,vemosumarodademe-
ninasemeninos:umdelesaindausaatúnicacomgola.Duasmeni-
nasfazemumapontecomasmãosdadasnoalto,earodapassapor
baixo.AgravuradeGuérardtambémrepresentaumaroda,massão
osadultosqueaconduzem;umadasmoçasestásaltando,comouma
meninaquepulacorda.Quasenãohádiferençaentreadançadas
criançaseadosadultos.Maistarde,porém,ádançadosadultosse
transformaria e,comavalsa,selimitariadefinitivamenteaoparindi-
vidual.Abandonadaspelacidadeepelacorte,pelaburguesiaepela
nobreza,asantigasdançascoletivasaindasubsistiriamnocampo,
ondeosfolcloristasmodernosasdescobririam, enasrodasinfantis
doséculoXIX:ambasasformas,aliás,estãoatualmenteemviade
desaparecimento
.
Éimpossívelsepararadançadosjogosdramáticos.Adançaera
entãomaiscoletivaesedistinguiamenosdobalédoquenossasdan-
çasmodernasdepares.ObservamosnodiáriodeHeroardogosto
doscontemporâneosdeLuísXIIIpeladança,obaléeacomédia,gê-
nerosaindabastantepróximos:fazia-seumpapelnumbalécomose
dançavanumbaile(aligaçãoentreasduaspalavras-emfrancês,bal
eballet-ésignificativa:amesmapalavraaseguirsedesdobrou, fi-
candoobailereservadoaosamadoreseobaléaosprofissionais).Ha-
viabalésnascomédias,atémesmonoteatroescolardoscolégiosje-
suítas.NacortedeLuísXIII,osautoreseosatoreseramrecrutados
internamente, entreosfidalgos,mastambémentreoscriadoseos
soldados;ascriançastantoatuavamcomoassistiamásrepresenta-
ções.
Seriaumapráticadacorte?Não,eraumapráticacomum.Um
textodeSorel
48
prova-nosquenasaldeiasnuncasehaviadeixadode
46LeNain,reproduzidoemP.Fierens,LeNain*1933,pranchaXCIIl.
47N.Guérard,gravura,CabinetdesEstampes,Ee3in-fr
48CharlesSorel,MaisondesJeux
*2vols.*1642,voLI,pp.469-71,

104 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
encenarpeçasmaisoumenoscomparáveisaosantigosmistériosou
asPaixõesatuaisdaEuropacentral.“Pensoqueele(Ariste,aquem
oscomediantesprofissionaisaborreciam) teriaficadomuitosatisfei-
to,setivessevistocomoeutodososmeninosdeumaaldeia(asmeni-
nasnão?)representaratragédiadoMauRiconumpalcomaisalto
doqueotetodascasas,noqualtodasaspersonagensdavamseteou
oitovoltasduasaduasparasemostrarantesdecomeçararepresen-
tação,comoasfigurasdeumrelógio”.“...Fiqueimuitofelizdever
maisumavezaencenaçãodaHistóriadoFilhoPródigoeadeNabu-
codonosor,edepoisosamoresdeMédoreAngélique,eadescidade
Radamonteaosinfernos,porcomediantesdetalenvergadura.”O
porta-vozdeSorelironiza,poiselenãoapreciaessesespetáculospo-
pulares.Emquasetod^aparte,ostextoseaencenaçãoeramregula-
dospelatradiçãooral.NoPaísBasco,essatradiçãofoiFixadaantes
dodesaparecimento dosjogosdramáticos,NofimdoséculoXVIIIe
iníciodoXIX,foramescritosepublicados“dramaspastoraisbas-
coscujostemasprovinhamaomesmotempodosromancesdecava-
lariaedospastoraisdoRenascimento
*9
.
Assimcomoamúsicaeadança,asrepresentaçõesdramáticas
reuniamtodaacoletividadeemisturavamasidadestantodosatores
comodosespectadores.
Tentaremosveragoraqualeraaatitudemoraltradicionalcom
relaçãoaessesjogos,brincadeiras edivertimentos,queocupavam
umlugartãoimportantenassociedadesantigas.Essaatitudenos
aparecesobdoisaspectoscontraditórios.Deumlado,osjogoseram
todosadmitidossemreservasnemdiscriminaçãopelagrandemaio-
na ,Por°Utrolado
’eaomesmotempo,umaminoriapoderosaecul-
tademoralistasrigorosososcondenavaquasetodosdeformaigual-
menteabsoluta,edenunciavasuaimoralidade,semadmitirpratica-
mentenenhumaexceção.Aindiferençamoraldamaioriaeaintole-
rânciadeumaeliteeducadoracoexistiramdurantemuitotempo.Ao
longodosséculosXVIIeXVIII*porém,estabeleceu-seumcompro-
missoqueanunciavaaatitudemodernacomrelaçãoaosjogos,fim-
1
damentalmente diferentedaatitudeantiga.Essecompromissonos
interessaaquiporqueétambémumtestemunhodeumnovosenti-
mentodainfância:umapreocupação,antesdesconhecida,depreser-
varsuamoralidadeetambémdeeducá-la,proibindo-lheosjogosen-
tãoclassificadoscomomaus,erecomendando-lhe osjogosentãore-
conhecidoscomobons.
49LarchédeLanguis,autordePastoralesbasques,circa1769,
CONTRIBUIÇÃOÃHISTÓRIADOSJOGOS 105
ÀestimaemqueeramtidosaindanoséculoXVIIosjogosde
azarnospermiteavaliaraextensãodaantigaatitudedeindiferença
moral,Hojeconsideramososjogosdeazarcomosuspeitoseperigo-
sos,eodinheiroganhonojogocomoamenosmoraleamenoscon-
fessáveldasrendas.Continuamosajogaressesjogosdeazar,mas
comaconsciênciapesada.AindanãoeraassimnoséculoXVII.a
consciênciapesadamodernaresultoudoprocessodemoralizaçãoem
profundidadequefezdasociedadedoséculoXIXumasociedadede
"conservadores’'.
LaFortunedesgensdequaíitêetdesgentilshommesparticutíers
éumlivrodeconselhosaosjovensFidalgosquedesejamfazercarrei-
ra.Seuautor,oMarechaldeCaillière,nãotinhanadadeumaventu-
reiro.Eraautortambémdeumabibliografiaedificantedasobrasdo
PadreAngedeJoyeuse,osantomongedaLiga.Eraumhomemreli-
gioso,atémesmodevoto,esemnenhumaoriginalidadeoutalento.
Suasopiniõesrefletemportantoaopiniãocomumdaspessoasde
bemem1661,datadaediçãodeseulivro,Umadesuaspreocupa-
çõesconstanteséprevenirosjovenscontraadevassidão:seadevas-
sidãoéainimigadavirtude,tambémoèdafortuna,poisnaosepode
possuirumasemaoutra:"Ojovemdevassovêasocasiõesdeagra-
daraseusenhorescaparempelasjanelasdobordeledataverna .O
leitordoséculoXX,quepercorrecomumolharumtantocansado
esseslugares-comuns*porissomesmoficarásurpresoquandoesse
moralistaminuciosodesenvolversuasidéiassobreautilidadesocial
dosjogosdeazar.Umdoscapítulosseintitula: Seumparticulier
(abreviaçãodegentilhovnmeparticulier
,poroposiçãoagensdequali-

,ouseja,umpequenofidalgomaisoumenosempobrecido)deve
jogarjogosdeazareconto?'
1
,Nãosetratadeumaquestãodecidida,
oMarechalreconhecequeosmoralistasprofissionaiseoclerocon-
denamformalmenteojogo.Issopoderiaembaraçarnossoautor,e,de
fato,oobrigaaseexplicarlongamente.Elepermanece fielàantiga
opiniãodosleigos,etentajustificá-lamoralmente:"Nãoseráim-
possívelprovarque(ojogo)podesermaisutildoqueprejudicialse
foracompanhadodascircunstânciasquelhesãonecessárias
5
'.“Digo
queojogoétãoperigosoparaumhommedequalité(ouseja,umFi-
dalgorico)quantoútilaumparticulier(ouseja,umfidalgoempobre-
cido).Oprimeiroarriscamuitoporqueémuitoricoeooutronãoar-
riscanadaporquenãooé,enoentantoumparticulierpodeesperar
tantodafortunadojogoquantoumgrandesenhor.”Umtemtudo
aperder,eooutrotudoaganhar:estranhadistinçãomoral!
50MarechaldeCaillière,LaFortunedesgensdequalitéetdesgentilshommesparticu-
liers
,1661.

106 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
Masojogo,segundoCaillière,apresentaoutrasvantagensalém
dolucrofinanceiro:'‘Sempreconsidereiqueoamoraojogoeraum
benefíciodaNaturezacujautilidadereconheci”,“Partodoprincípio
dequeoamamosnaturalmente,”“Osjogosesportivos(quehoje
seríamosmaistentadosarecomendar)sãobelosdesever,masmal
apropriadosparaseganhardinheiro,”Eespecifica:“Estoufalando
dascartasedosdados”.“Ouvíumexperientejogadorquehaviaga-
nhonojogoumafortunaconsideráveldizerque,paratransformaro
jogoemarte,nâotinhautilizadooutrosegredoalémdedominarsua
paixãoedeseproporesseexercíciocomoumaprofissão,comofito
deganhardinheiro,”Queojogadornãoseinquiete,poisamásorte
naoopegarádesprevenido:umjogadorsempreconseguiráemprésti-
mosmaisfacilmente“doqueofariaumbomcomerciante”,“Além
disso,esseexercíciodáaosparticuliersacessoaosmelhorescírculos,
eumhomemhábilpodeextrairdelesnotáveisvantagensquando
sabemanejá-los,,.Conheçoalgunsquetêmcomorendaapenasum
baralhoetrêsdados,equesubsistemnomundocommaiorluxoe
magníFiciênciadoquesenhoresdeprovínciacomsuasgrandespro-
priedades(massemdinheirolíquido).”
EoexcelenteMarechalconcluicomestaopinião,quesurpreen-
denossamoraldehoje:“Aconselhoaumhomemquesaibaeque
ameojogoaarriscarneleseudinheiro;comoeletempoucoaperder
arriscapoucoepodeganharmuito.”ParaobiógrafodoPadreAnge,
ojogoénãoapenasumdivertimento,masumaprofissão,ummeio
defazerfortunaedemanterrelações-ummeioperfeitamenteho-
nesto.
Caillièrenãoéoúnicoadefenderestaopinião,OChevalierde
Méré,queeraconsideradoemsuaépocacomootípicohomemde
sociedadebemeducado,exprimeamesmaidéiaemsuaSuiteducom-
mercedumonde
i(
,“Diriatambémqueojogoproduzbonsefeitos
quandoojogadorsecomportacomoumhomemhábiledeboavon-
tade:éatravésdelequeumhomempodeteracessoatodaparteonde
sejoga,eospríncipesmuitasvezesseentediariamsenãopudessem
jogar.Citaexemplosaugustos:LuísXIII(que,aindacriança,ga-
nhouumaturquesanumarifa),Richelieu,“queserelaxavajogan-
do
,Mazarino,LuísXIVe“aRainha-mãe,(que)naofaziamais
nadaalémdejogarerezar”.“Qualquerquesejaoméritoquesepos-
sater,seriadifícilconquistarumaboareputaçãosemingressarna
altasociedade,eojogoéumaformafácildeabrirsuasportas,É
mesmoummeiogarantidodeseestarfreqiientementeemboacom-
51
Méré,Oeuvres
\
ed.CharlesBoudhors,3vols.,1930,
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 107
panhiasemdizernada,sobretudoquandosejogacomoumhomem
galante”,ouseja,evitando“aesquisitice”,“ocapricho”easupersti-
ção.“Êprecisojogarcomoumhomembemeducadoesaberperder
comoganhar,semquenemumanemoutra(dessassituações)sedêa
conhecernorostonemnomododeagiT,”Mascuidadoparanâoar-
ruinarosprópriosamigos:pormaisqueponderemos,“sempreresta
algoemnossocoraçãocontraaquelesquenosarruinaram”.
Seosjogosdeazarnãoprovocavamnenhumareprovaçãomo-
ral,nãohaviarazãoparaproibi-losàscrianças:daiasinúmerasce-
nasdecriançasjogandocartas,dados,gamãoetc,,queaarteconser-
vouaténossosdias.Osdiálogosescolaresqueserviamaosestudantes
aomesmotempocomomanuaisdecivilidadeevocabulárioslatinos
cmcertoscasosadmitemosjogosdeazar,senãocomentusiasmo,
aomenoscomoumapráticamuitodifundida.OespanholVivès
52
contenta-seemfornecercertasregrasparaevitarosexcessos,diz
quandosedevejogar,comquem(evitarosbrigões),quejogos,aque
cacife(“ocacifenãodevesernulo,poisissoseriatoliceenãovaleria
ojogo,mastambémnãodevesertãoaltoapontodeperturbaro
espíritodiantedojogo”),“dequemaneira”(ouseja,comoumbom
jogador)edurantequantotempo.
Mesmonoscolégios,centrosdamoralizaçãomaiseficaz,osjo-
gosadinheiropersistirampormuitotempo,apesardarepugnância
queporelessentiamoseducadores*NoiníciodoséculoXVIII,pre-
gulamentodocolégiodosOratorianosdeTroyesprecisa:Nâose
poderájogaradinheiro,amenosquesejamuitopoucoecomper-
missãoespecial”.Oprofessoruniversitáriomodernoquecitouesse
textoem1880acrescenta,umtantochocadodiantedehábitostão
distantesdosprincípioseducacionaisdesuaépoca:“Erapratíeamen-
tçautorizarojogoadinheiro,”Aomenos,eraseconformarcom
ele
Emtomode1830,aindasejogavaabertamente eseapostava
altonaspublicschoolsinglesas.OautordeTomBrownsSchoolDays
descreveafebredeapostasedejogosqueoDerbyprovocavaentão
entreosalunosdeRugby.AreformadoDr.Arnoldeliminariamais
tardedaescolainglesaessaspráticascomváriosséculosdeexistên-
cia,queoutroraeramadmitidascomindiferençaequeforamentão
consideradasimoraiseviciosas
54
.
52Vivés,Dialogues
;
trad.francesa,1571,
f^
,
53G,Cairé,“LesélèvesdeFanciencoííègedeTroyes”,inMêmoiresdelaSociéteaca
-
démiquedeVAube
,1881.
54ThomasHughes,TomBrownsSchoolDays
,1857.

108 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMfLIA
DoséculoXVIIaténossosdias,aatitudemoralcomrelaçãoaos
jogosdeazarevoluiudemaneirabastantecomplexa:àmedidaquese
difundiaosentimentodequeojogodeazareraumapaixãoperigosa
umvíciograve,apráticatendeuamodificaralgunsdessesjogos,re-
duzinhoopapeldoazar-quenoentantoaindasubsiste-embenefi-
ciodocálculoedoesforçointelectualdojogador:dessaforma,cer-
tosjogosdescartasoudexadreztornaram-secadavezmenossujeitos
acondenaçãoqueatíngtaoprincípiodojogodeazar.Umoutrodi-
vertimentosofreuumaevoluçãodiferente:adança.Vimosquea
dança,comumàscriançaseaosadultos,ocupavaumlugarimportan-
tenavidaquotidiana.Nossosensomoraldehojedeveriaficarmenos
chocadocomissodoquecomapráticageneralizadadosjogosde
azar.Sabemosqueosprópriosreligiososdançavamocasíonalmente,
semqueaopiniãopúblicaseescandalizasse,aomenosantesdomo-
vimentodereformadascomunidadesnoséculoXVII.Sabemos
comoeraavidanaabadiadeMaubuissonquandoMadreAngélique
ArnaudaíchegounoiníciodoséculoXVIIparareformá-la.Nãoera
umavidaespecialmente edificante,mastambémnãoeranecessaria-
menteescandalosa:erasobretudomuitomundana.“Nosdiasdeve-
ão,diz-nosM.Cognet,citandoMadreAngéliquedeSaint-Jean,
oiógrafadesuairmã",quandootempoerabonito,depoisdasvés-
peras,aprioraconduziaacomunidadeparaumpasseiolongeda
abadia,nasmargensdaslagoasqueficavamnocaminhodeParis-
muitasvezes,osmongesdeSaint-MartindePontoise,quehabitavam
perto,vinhamdançarcomasreligiosas;eissoerafeitocomamesma
liberdadequeocorrerianomundoleigo,ondenadademausepode-
riadizersobretalfato.’’Essasdançasderodasdemongesemonja*
indignaramMadreAngélique,etemosdeconvirquenãocorrespon-
diamaoespíritodavidamonástica;mas,naépoca,elasnãoprodu-
ziamnaopiniãopúblicaoefeitochocantequehojeproduziriampa-
resdereligiososereligiosasdançandoenlaçados,comooexigemas
dançasmodernas.Ecertoqueosreligiososdeoutroranãotinhama
consciênciatãopesada.Haviacostumestradicionaisquepreviam
dançasdeclérigosemcertasocasiões.EmAuxère
5S
,porexemplo
todonovocônego,parafestejarofelizacontecimento,doavaaospa-
roquianosumabolaqueeraentãoutilizadanumgrandejogocoleti-
vo.Essejogoerasemprejogadoemdoiscampos,queopunhamsol-
teiroscontracasadosouparóquiacontraparóquia,AfestadeAuxè-
recomeçavacomocantoVictimaelaudesPaschali,eterminavacom
55L.Cognet,LaMèreAngéliqueetsaintFrançoisdeSales,1951,p.28.
56J,-J,Jusserand,op,cii
.
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 109
umarodaemquedançavamtodososcônegos.Oshistoriadores in-
formam-nosqueessecostume,queremontariaaoséculoXIV,ainda
eraatestadonoséculoXVIII.Éprovávelqueospartidáriosdarefor-
matrideutinavissemessadançaderodatãodesaprovadoramente
comoMadreAngéliquedeSaint-Jeanviraadançadasfreirasde
MaubuissonedospadresdePontoise:cadanovotempopossuiuma
novaconcepçãodoprofano.Asdançasfamiliaresnãotinhamnosé-
culoXVIIocarátersexualqueacusariammuitomaistarde,nossé-
culosXIXeXX.Existiamatémesmodançasprofissionais:emBis-
cayehaviadançasdeamas,emqueestascarregavamseusbebêsno
colo
S7
.
Oexercícioamplodadançanãotemomesmovalorqueapráti-
cadosjogosdeazarparailustraraindiferençadasociedadeantiga
comrelaçãoàmoralidadedosdivertimentos.Poroutrolado,porém,
elepermiteavaliarmelhororigordaintolerânciadaselitesreforma-
doras.
NasociedadedoAncienRêgíme
,ojogosobtodasassuasformas
oesporte,ojogodesalão,ojogodeazar-ocupavaumlugarim-
portantíssimo,queseperdeuemnossassociedadestécnicas,masque
aindahojeencontramosnassociedadesprimitivasouarcaicas
58
-
Ora,aessapaixãoqueagitavatodasasidadesetodasascondições,a
Igrejaopôsumareprovaçãoabsoluta.AoladodaIgreja,colocaram-
setambémalgunsleigosapaixonadospelorigorepelaordem,quese
esforçavamparadomarumamassaaindaselvagemeparacivilizar
costumesaindaprimitivos,
AIgrejamedievaltambémcondenavaojogosobtodasassuas
formas,semexceçãonemreservas,eparticularmentenascomunida-
desdeclérigosbolsistasquederamorigemaoscolégioseàsuniversi-
dadesdoAncienRégime.Osestatutosdessascomunidadesnosdão
umajfiéiadessaintransigência.Aolê-los,ohistoriadoringlêsdas
universidadesmedievais, J.RashdaU Ficouimpressionadocoma
proscriçãogeraldetodasasatividadesdelazer,comarecusaemad-
mitirquepudessemexistirdivertimentosinocentes,emescolascujos
alunos,entretanto,tinhambasicamenteentre10e15anos.Reprova-
va-seaimoralidadedosjogosdeazar,aindecênciadosjogosdesa-
lão,dacomédiaoudadança,eabrutalidadedosjogosesportivos,
que,defato,muitasvezesdegeneravamemrixas.Osestatutosdos
57Bssadançachamava-seKarrií-danzaInformaçãofornecidapor GilReicher,
58RrCaillois,Quatreessaisdesodoíogiecontemporaine,1951,
59H.Rashdall,TheUniversitiesofEuropeinlheMiddleAges,1895,3vols,,reed.
1936,

110 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇABDAFAMÍLIA
colégiosforamredigidosparalimitartantoospretextosdediverti-
mentoquantoosriscosdedelito.AfortiorUaproibiçãoeracategóri*
caerigorosaparaosreligiosos,aquemumeditodoConcíliodeSens
de1485proibiaojogodapéla,sobretudoemmangadecamisaeem
público:éverdadequenoséculoXV,umhomemsemgibãoousem
túnicaecomascalçasdesabotoadas ficavacomquasetudodefora!
Tem-seaimpressãodequeaIgreja,aindaincapazdecontrolaroslei-
gos,adeptosdejogostumultuados,decidiupreservarseusclérigos
proibindo-lhestodoequalquertipodejogo:formidávelcontrastede
estilosdevida.,*seaproibiçãotivessesidorealmenterespeitada.Eis,
porexemplo,comooregulamentointernodocolégiodeNarbonne
60
encaravaosjogosdeseusbolsistas,emsuaredaçãode1379:“Nin-
guémnestacasadeverájogarpélaouhóquei,ououtrosjogosperigo-
sos{insultuosas),sobpenadeumamultadeseisdinares;ninguémde-
verájogardadosouquaisqueroutrosjogosadinheiro,nemdeverá
entregar-seadivertimentosnamesa(comessaíiones:comezainas)sob
penadeumamultade10vinténs”.Ojogoeacomilançasaocoloca-
dosnomesmoplano.Nâohaviaentãojamaisummomentodediver-
são?“Osalunospoderãoapenasparticiparalgumasvezeseararos
intervalos(quantasprecauções!Certamentelogoesquecidas,porém,
poisessasmesmaspalavraseramaportaentreabertaatodososex-
cessos)dejogoshonestosourecreativos(masédifícilsaberquais,já
queatéapélaeraproibida;talvezjogosdesalão?),apostandouma
pequenajarradevinhoouentãoumafruta,econtantoqueojogose
façasembarulhoedemaneiranãohabitual(sinemora)

NocolégiodeSeez,em1477 encontramos:“Ordenamosque
ninguémpratiqueojogodedados,nemoutrosjogosdesonestosou
proibidos,enemmesmoosjogosadmitidos,comoapéla,sobretudo
noslugarescomuns(ouseja,oclaustro,asalacomumqueserviade
refeitório),esealguémospraticaremoutroslugares,quesejacom
poucafreqüência{nonnimiscontinue)”.NabuladoCardealdeAm-
boisequefundavaocolégiodeMontaiguem1501,haviaumcapítulo
intituladoDeexercidocorporali
62
„Oquequerdizerisso?Otextoco-
meçacomumaapreciaçãogeralumtantoambígua:“Oexercíciofísi-
coparaceserdepoucautilidadequandosemisturaaosestudosespi-
rituaiseaosexercíciosreligiosos;aocontrário,provocaumgrande
desenvolvimentodasaúdequandoéconduzidoalternadamentecom
osestudosteóricosecientíficos”.Narealidade,oqueoredatoren-
60Féíibien,vol.V,p.662,
61Ibid..p.689.
62ibid.,p.721.
CONTRIBUIÇÃOàhistóriadosjogos 111
tendeporexercíciosfísicosnãosãotantoosjogos,esimtodosostra-
balhosmanuais,poroposiçãoaostrabalhosintelectuais.Eeledápri-
maziaàstarefasdomésticas,nasquaisreconhecetambémumafun-
çãoderelaxação:astarefasdecozinha,delimpeza,oserviçodame-
sa.“Emtodososexercíciosacima(ouseja,nastarefasdomésticas),
nuncasedeveráesquecerquesedevesertãorápidoevigorosoquan-
topossível.’'Osjogossóvêmdepoisdastarefas,emesmoassimsob
reservas!“Quandoopadre(ochefedacomunidade)estimarque-os
espíritosfatigadospelotrabalhoepeloestudodevamserrelaxados
pormeioderecreações,eleastolerará(indulgebit)”Algunsjogossão
permitidosnoslugarescomuns-osjogoshonestos,nemfatigantes,
nemperigosos.EmMontaiguhaviadoisgruposdeestudantes:os
bolsistas,que,comoemoutrasfundações,eramchamadosdepaupe-
res,eosinternos,quepagavamumapensão.Essesdoisgruposvi-
viamseparados.Oregulamentoestipulavaqueosbolsistasdeveriam
jogarpormenostempoecommenosfreqüênciadoqueseuscolegas
internos,semdúvidaporquetinhamaobrigaçãodesermelhoresalu-
nos,e,portanto,deviamsermenosdistraídos,AreformadaUniver-
sidadedeParisem1452
fi3
,ditadaporumespíritodedisciplinajámo-
derno,mantémorigortradicional:“Osmestres(doscolégios)não
permitirãoqueseusalunos,nasfestasdasprofissõesouemoutras,
participemdedançasimoraisedesonestasouusemtrajesindecentes
eleigos(trajescurtos).Deverãopermitir,porém,quejoguemdema-
neirahonestaeagradável,paraoalíviodotrabalhoeojustorepou-
so.”“Nãopermitirão,nessasfestas,queosalunosbebamnacidade
nembatamdeportaemporta.”Oreformadorvisaaíàssaudaçõesde
portaemporta,acompanhadasdecoletas,queatradiçãopermitiaà
juventudeporocasiãodasfestassazonais.Numdeseusdiálogoses-
colares,VivesresumeasituaçãoemParisnoséculoXVI
*4
,nosse-
guintestermos:“Entreosestudantes,nenhumoutrojogoalémdapé-
lapodeserjogadocomapermissãodosmestres,masalgumasvezes
osalunosjogam,emsegredo,cartasexadrez,ascriançaspequenas
jogamgarignomeosmaisindisciplinadosjogamdados”.Defato,
osestudantes,assimcomoosoutrosmeninos,nãotinhamomenor
problemaemfrequentarastavernaseosbordéis,emjogardadose
dançar,Origordasproibiçõesnuncafoiabaladoporsuaineficácia:
tenacidadeespantosaanossosolhosdehomensmodernos,mais
preocupadoscomaeficáciadoquecomprincípios!
63PublicadoemThéry,HtstoireüeVêducationenFrance
,1858,2voIs.,vol.IL
64Vivès,Dialogues, ef,nota52,destecapítulo.

112 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
OsoficiaisdejustiçaedepolíciaJuristasadeptosdaordemeda
boaadministração,dadisciplinaedaautoridade,apoiavamaação
dosmestres-escola edoseclesiásticos.Duranteséculos,osdecretos
quefechavamaosestudantesoacessoàssalasdejogosesucederam
ininterruptamente. EssesdecretosaindasãocitadosnoséculoXVIII:
umexemploéodecretodotenente-generaldapolíciadeMoulins,de
27demarçode1752,cujacópiadestinadaàafixaçãopúblicafoicon-
servadanoMuseudeArteseTradiçõesPopulares:“Éproibidoaos
donosdasquadrasdepélaedassalasdebilharabrirojogoaosestu-
danteseaoscriadosduranteashorasdeauk,eaosdonosdaspistas
debolicheououtrosjogosabrirojogoaosmesmosemqualquer
tempo”.Oleitorjáteráobservadoessaassimilaçãodosempregados
domésticosaosestudantes:elesmuitasvezestinhamamesmaidade,
eeramigualmentetemidosporsuaturbulênciaesuafaltadeauto-
controle.Oboliche,hojeumdivertimento pacífico,provocavatais
brigasquenosséculosXVIeXVIIosmagistradosdepolíciaemcer-
tasocasiõesoproibiraminteiramerrte,tentandoestenderatodaaso-
ciedadeasrestriçõesqueoseclesiásticosqueriamimporaosclérigose
aosestudantes.Assim,essesdefensoresdaordemmoralpraticamen-
teclassificavamosjogosentreasatividadessemicriminosas,comoa
embriaguez eaprostituição,quequandomuitopodiamsertolera-
das,masqueconvinhaproibiraomenorsinaldeexcesso,
Essaatitudedereprovaçãoabsolutamodificou-secontudoao
longodoséculoXVII,eprincipalmentesobainfluênciadosjesuítas.
OshumanistasdoRenascimento,emsuareaçãoantiescolástíca, já
haviampercebidoaspossibilidadeseducativasdosjogos.Masforam
oscolégiosjesuítasqueimpuserampoucoapoucoàspessoasdebem
eamantesdaordemumaopiniãomenosradicalcomrelaçãoaosjo-
gos.Ospadrescompreenderamdesdeoinícioquenãoeranempossí-
velnemdesejávelsuprimi-los,oumesmofazê-losdependerdeper-
missõesprecáriasevergonhosas.Aocontrário,propuseram-seaassi-
milá-loseaintroduzi-losoficialmenteemseusprogramaseregula-
mentos,comacondiçãodequepudessemescolhê-los,regulamentá-
losecontrolá-los.Assimdisciplinados,osdivertimentos reconheci-
doscomobonsforamadmitidoserecomendados, econsideradosa
partirdeentãocomomeiosdeeducaçãotãoestimáveisquantooses-
tudos.Nãoapenasseparoudedenunciaraimoralidadedadança,
comosepassouaensinaradançarnoscolégios,poisadança,aohar-
monizarosmovimentosdocorpo,evitavaafaltadegraçaedavaao
rapazelegânciaepostura.Damesmaforma,acomédia,queosmo-
ralistasdoséculoXVIIcondenavam, foiintroduzidanoscolégios.Os
jesuítascomeçaramcomdiálogosemlatimsobretemassacros,e
maistardepassaramapeçasfrancesassobretemasprofanos.Até
mesmoosbalésforamtolerados,apesardaoposiçãodasautoridades
CONTRIBUIÇÃOÂHISTÓRIADOSJOGOS U3
dacompanhia:“Ogostopeladança”,escreveuoPadredeJDaiií-
ville
45
,“tãovivonoscontemporâneosdoReiSol,queem1669fun-
douaAcademiadeDança,prevaleceusobreoseditosdospadres
gerais.Após1650quasenãohouvetragédiasquenãofossementre-
cortadaspelasentradasdeumbalé.”
UmálbumdegravurasdeCrispindePos,datadode1602,repre-
sentacenasdavidaescolarnum“colégiobatavo”.Reconhecemosas
salasdeaula,abiblioteca,mastambémaauladedança,eojogoda
pélaedebolaUmsentimentonovo,portanto,apareceu:aeduca-
çãoadotouosjogosqueatéentãohaviaproscritooutoleradocomo
ummalmenor.Osjesuítaseditaramemlatimtratadosdeginastica
queforneciamasregrasdosjogosrecomendados. Admitiu-secada
vezmaisanecessidadedosexercíciosfísicos.Fénelonescreve:Os
(jogos)dequeelas(ascrianças)gostammaissãoaquelesemqueo
corpoestáemmovimento;elasficamcontentesquandopodemmovi-
mentar-se”.OsmédicosdoséculoXVIII*\inspiradosnosvelhos
“jogosdeexercícios”,naginásticalatinadosjesuítas,conceberam
umanovatécnicadehigienecorporal:aculturafísica.NoTrattede
féducationdesenfantsde1722,escritoporCrousez,umprofessorde
filosofiaematemáticadeLausanne,podemosler:“Enecessárioque
ocorpohumanoseagitemuitoenquantocresce...Consideroqueos
jogosqueincluemexercíciosdevemserpreferidosatodososoutros
UGymnastiquemêdicaleetchtrurgicaiedeTissotrecomendaosjo-
gosfísicoscomoosmelhoresexercícios:“Exercitam-seaomesmo
tempotodasaspartesdocorpo...semcontarqueaaçãodospulmões
éconstantementeestimuladapeloschamadoseosgritosdosjogado-
res”.NofimdoséculoXVIII,osjogosdeexercíciosreceberamuma
outrajustificativa,destavezpatriótica:elespreparavamosrapazes
oaraaguerra.Compreenderam-se entãoosbenefíciosqueaeduca-
çãofísicapodiatrazeràinstruçãomilitar.Nessaépoca,queassistiu
aonascimentodosnacionalismosmodernos,otreinamentodosolda-
dotornou-seumatécnicaquasecientífica.Estabeleceu-seumparen-
tescoentreosjogoseducativosdosjesuítas,aginásticadosmédicos,
otreinamentodosoldadocasnecessidadesdopatriotismo.Durante
oConsulado, foipublicadaaGymnastiquedelajeunesse,ouTraiteè-
lém-ntairedesjeuxdexercicesconsidérêssouslerapportdeleurutilite
phvsiqueetmorale.Seusautores,DuviviereJauffret,afirmavamcia-
65P.deDainviHe,EntreNaus,195H,2,
66Academiasivespecutumvitaescoiasticae,loU
.
67J.-J.Jusserand,opcit.

114 HISTÓRIASOCIALDACR[ANCAEDAFAMÍLIA
ramentequeoexercíciomiiitar“haviaconstituídodesdesemprea
basedaginástica*eeraparticularmenteadequadoàépoca(oanoXI)
eaopaísemqueviviam.“Votadasporprincípiosàdefesacomum
pelanaturezaeoespíritodenossaconstituição,nossascriançasjá
saosoldadosantesdenascerem

“Tudooqueémilitartranspira
algodegrandeedenobrequeelevaohomemacimadelemesmo.”
Assim,sobasinfluênciassucessivasdospedagogoshumanistas,
dosmédicosdoIluminismoedosprimeirosnacionalistas,passamos
dosjogosviolentosesuspeitosdatradiçãoantigaàginásticaeao
treinamentomilitar,daspancadariaspopularesaosclubesdeginásti-
ca+
Essaevoluçãofoicomandadapelapreocupaçãocomamoral,a
saúdeeobemcomum.Umaevoluçãoparalelaespecializousegundo
aidadeouacondiçãoosjogosqueoriginariamenleeramcomunsa
todaasociedade.
DanielMornet,emsuaHistóriadaLiteraturaClássica
6fi
,escre-
vearespeitodosjogosdesalão:“Quandoosjovensdaburguesiade
minhageração(Mornetnasceuem1878)jogavamjogosdesalãonas
matméesdansantesdesuasfamílias,elesemgeralnãosabiamquees-
sesjogos,maisnumerososemaiscomplexosdoqueemsuaépoca,
haviamsido,há250anos,oregalodaaltasociedade”.Narealidade,
hámuitomaisde250anos!NolivrodehorasdaDuquesadeBour-
gogne
*9
,assistimos,jánoséculoXV,aum“jogodepapeizinhos”:
umadamaaparecesentadacomumacestanocolo,ondeosjovens
depositampapeizinhos,NofimdaIdadeMédia,osjogosdedesafio
estavamemgrandemoda,“Umadamadiziaaumfidalgoouumfi-
dalgodiziaaumadamaonomedeumafloroudeumobjetoqual-
quer,eapessoainterpeladadeviaresponderprontamenteesemhesi^
taçãoporumcumprimentoouumepigramarimado,”Essadescrição
dasregrasdojogonosédadapeloeditormodernodospoemasde
ChrisimedePisan,quecompôs70epigramasparaessetipodejo-
go™.Porexemplo:
Jevousvemlapasserose
Belle
,direnevousose.
CommeníAmourversvousmetire
Siíaperceveztantsansdire:*
6MD.Mornet,Histoiredeblittêratweciassique,1940,p,120,
69Cf.nota10,destecapítulo.
70^ChristinedePisan,Oeuvrespoêtiques,editadasporM.Roy,1886,pp.34,188,196,
*Eutcvendoamalva-rosa
/
Belachamar-tenãoouso./ComopodeoAmorme
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 115
Essetipodebrincadeirasemdúvidaseoriginounoscostumesda
corte.Emseguidapassouparaacançãopopulareparaasbrincadei-
rasinfantis,comoojogoderimasque,comovímos,divertiaLuís
XII1aostrêsanosdeidade.Masosadultoseosjovensquejáhaviam
deixadoainfâncianãoabandonavaminteiramenteessesjogos.Uma
estampadeEpinaldoséculoXIXrepresentaaindaessesmesmosjo-
gos,masseintitula“JogosdeOutrora”,oqueindicaqueamodaco-
meçavaaabandoná-losequeelessetornavamprovincianos,quando
nãoinfantisoupopulares:acabra-cega,ojogodoassobio,afacana
baciacomágua,oesconde-esconde, opassarinhovoa,ocavaleiro
gentil,ohomemquenãori,opotedoamor,orabugento,aberlinda,
obeijoembaixodocastiçal,oberçodoamor.Algunsdessesjogosse
tornariambrincadeirasdecriança,enquantooutrosconservariamo
caráterambíguoepoucoinocentequeoutrorafizeracomquefossem
condenadospelosmoralistas,mesmoosrriaistolerantescomoEras-
mo",
,

AMaisondesjeuxdeSorelnospermiteestudaressaevolução
nummomentointeressante,ouseja,aprimeirametadedoséculo
XVII
73
.Soreldistingueasbrincadeirasdesalãodos“jogosdeexercí-
cio”edos“jogosdeazar”.Osdoisúltimossão“comunsatodotipo
depessoa,nãosendomenospraticadospeloscriadosdoquepelosse-
nhores...;sãotãofáceisparaaspessoasignorantesegrosseirascomo
paraaspessoascultasesutis”.Osjogosdesalão,aocontrário,são
“jogosdeespíritoedeconversação”.Emprincípio,“elessópodem
agradarapessoasdeboacondição,educadasnacivilidadeenaga-
lanteria,capazesdecompordiscursoseréplicas,cheiasdejulgamen-
toesaber,enãopodemserjogadosporoutros”.Estaaomenoséa
opiniãodeSorel,oqueelegostariaqueosjogosdesalãofossem.Na
realidade,porém,nessaépoca,osjogosdesalãotambémeramco-
munsàscriançaseaopovo,às“pessoasignorantesegrosseiras .So-
reléobrigadoaadmiti-lo."Paracomeçar,examinaremos osjogos
infantis...Háosjogosdeexercício”-ohóquei,opião,asescadas,a
bola,ojogodepetecacomraquetese“asbrincadeirasdepegar,seja
comosolhosabertosouvendados’ .Mas“háoutrosquedependem
umpoucomaisdoespírito”,eeledácomoexemploosdesafiosde
ChristinedePisan,quecontinuavamadivertirpequenosegrandes.
Soreladivinhaaorigemantigadessesjogos:“Essesjogosinfantisem
queháalgumaspalavrasrimadasemgeralsebaseiamnumalingua-
gemmuitoantigaemuitosimples,emprestadadealgumahistóriaou
purraremtuadireção
/
Setantoopercebesenadadizes?"(N.doT.)
71Erasmo,LeMariagechrêtien.
72C.Sorel,Maisondesjeux,1642,2vols.

116 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
romancedostemposantigos,oquemostracomooutroraaspessoas
sedivertiamcomumarepresentaçãoingênuadoquehaviaocorrido
acavalheirosoudamasdealtadignidade’
1
,
Sorelobservafmalmentequeéssesjogosinfantissãoosmesmos
dosadultosdasclassespopulares,eessaobservaçãoé,paranós,mui-
toimportante:“Comoestesjogossâoinfantis,elestambémservem
paraaspessoasrústicascujoespíritonãoémaiselevadodoqueodas
criançasnessesassuntos’
1
.'Contudo,noiníciodoséculoXVII,Sorel
temdeconvirque“algumasvezespessoasdecondiçãoelevadapo-
diampraticaressesjogoscomorecreação”,semqueaopiniãopubli-
cavisseaíalgodeerrado:essesjogos“mistos”,ouseja,comunsato-
dasasidadesecondições,“tornam-serecomendáveisdevidoaobom
empregoquesempretiveram”...“Hácertostiposdejogosemqüeo
espiritonãotrabalhamuito,deformaquemesmoosmuitojovens
podemjogá-los,emboraaspessoasmaisvelhasesériastambémos
pratiquemocasionalmente.”Esseantigoestadodecoisas,porém,
nãoeramaisadmitidoportodos.NaMaisondesjeux
,porexemplo,
Ãristeconsideraessesdivertimentosdecriançasedeplebeusindig-
nosdeumhomemdebem.Oporta-vozdeSorelnãodesejacontudo
proscrevê-loscompietamente:“Mesmoosqueparecemserbaixos
podemsersoerguidosrecebendoumaoutraaplicaçãodiferenteda
primeira,aqualsórelateiparaservirdemodelo”.Eeletentaentão
elevaronívelintelectualdosjogosdesalãopraticadosdentrodeca-
sa.Masnaverdade,apósadescriçãodeSoreldojogodamourre-
emqueolíderlevantaum,doisoutrêsdedoseosparticipantesde-
vemrepetiromesmogestoimediatamente édifícilparaoleitor
modernocompreendersobqueaspectoamourreémaiselevadae
maisespiritualdoqueojogoderimas,queSorelabandonavasem
apelaçãoàscrianças:oleitoratuaitemamesmaopiniãodeAriste,
cujopontodevistajáémoderno.Maseleficaaindamaissurpreendi-
docomofatodeumromancistaehistoriadorcomoSorelterconsa-
gradoumaobramonumental àdescriçãoeàrevisãodessesdiverti-
mentos.Esteémaisumtestemunhodolugarqueosjogosocupavam
naspreocupaçõesdaantigasociedade.
Portanto,noséculoXVII,haviaumadistinçãoentreosjogos
dosadultosedosfidalgos,eosjogosdascriançasedosvilões.Adis-
tinçãoeraantigaeremontavaàIdadeMédia.MasnaIdadeMédia,a
partirdoséculoXII,elaseaplicavaapenasacertosjogos,pouconu-
merososemuitoparticulares: osjogosdecavalaria.Antesdisso,
antesdaconstituição definitivadaidéiadenobreza,osjogoseram
comunsatodos,independentemente dacondiçãosocial.Algunsjo-
gosconservaram essecaráterdurantemuitotempo:Francisco Ie
HenriqueIInâomenosprezavam aluta,eHenriqueIIjogavabola:
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 117
issonãoseriamaisadmitidonoséculoseguinte.Richeheupraticava
osaltoemsuagaleria,comoTristãonacortedoReiMarcos,eLuís
XIVjogavapéla.Masessesjogostradicionaisseriamporsuavez
abandonadosnoséculoXVIIIpelaspessoasdealtacondição.
ApartirdoséculoXII,certosjogosjáeramreservadosauscava-
leiros
n
te,maisprecisamente,aosadultos.Assim,enquantoaluta
eraumabrincadeiracomum,otorneioeaargolinhaeramjogosde
cavalaria.Gacessoaostorneioseraproibidoaosplebeus,eas
crianças,mesmonobres,nãotinhamodireitodeparticipar:petapri-
meiravez,talvez,umcostumeproibiaàscriançaseaomesmotempo
aosplebeusparticipardejogoscoletivos.Ascriançaslogocomeça-
ramaimitarostorneiosproibidos:ocalendáriodobreviáriodeGri-
manimostra-nostorneiosgrotescosdecrianças,entreasquaisalguns
pensaramreconhecerofuturoCarlosV:ascriançascavalgambarris
emvezdecavalos.
Surgiuentãoaidéiadequeosnobresdeviamevitarmisturar-se
comosplebeusedistrair-seentreeles:urnaopiniãoquenâoconse-
guiuimpor-setotalmente,aomenosatéqueanobrezadesaparecesse
enquantofunçãosocialefossesubstituídapelaburguesia,noséculo
XVIILNoséculoXVIenoiníciodoséculoXVII,numerososdocu-
mentosiconográficoscomprovamamisturadasclassessociaisdu-
ranteasfestassazonais.NumdosdiálogosdeLeCourtisande
BalthazarCastiglione,umclássicodoséculoXVIquefoitraduzido
paratodasaslínguas,esseassuntoédiscutidoenãosechegaaum
acordo
T4
l“EmnossopaísdaLombardia,dizosenhorPallacivino,
nãotemosessaopinião(dequeocortesãosodevejogarcomoutros
fidalgos),ehámuitosfidalgosquenasfestasdançamodiainteiro
sobosolcomoscamponeseseparticipamcomelesdejogoscomoo
arremessodabarra,delutas,corridasecompetiçõesdesaltos,epen-
soquenãohámalnisso”.Algunsouvintesprotestam;admitemquea
rigorofidalgopossajogarcomcamponeses,mascontantoquevença
semesforçoaparente:eledeve“estarpraticamentecertodevencer”
“Éalgomuitofeioeindignoverumfidalgovencidoporumcampo-
nês,eprincipalmentenaluta.”Oespíritoesportivoinexistianessaé-
poca,anãosernosjogosdecavalariaesobumaoutraforma,inspi-
radanahonrafeudal.
NofimdoséculoXVI,apráticadostorneiosfoiabandonada.
Outrosjogosossubstituíramnasassembléiasdejovensnobres,na
corteenasaulasdepreparaçãomilitardasAcademias,onde,durante
aprimeirametadedoséculoXVII,osfidalgosaprendiamomanejo
73s.deVrièseMarpugo,LeBrêviaireGrbmnt*1904-1910,12vote,
74B.Castiglione,LeCourtisan ,

118 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
dasarmaseaequitação.Surgiuaquintana,porexemplo:montadoa
cavalo,oindivíduovisavaumalvodemadeira,quesubstituíaoalvo
vivodosantigostorneios,acabeçadeumturco.Surgiutambémaar-
golinha:oindivíduodisparavaacavaloedeviaarrebatarumaargoli-
nhacomalançaemplenacarreira,NolivrodePluvinel,diretorde
umadessasAcademias,umagravuradeCrispimdePos
75
representa
LuísXIIIcriançaparticipandodeumaqumtaita.Oautordizquea
quintanaeraummeio-termoentre"afúriadaslançascruzadasna
liçacomoadversário(otorneio)eadelicadezadaargolinfaa”,Nos
anos1550,emMontpellier,oestudantedemedicinaFélixPlatter
76
contaque“nodia7dejunho*anobrezarealizouumtorneiodeargo-
linha;oscavalosestavamricamenteajaezados,cobertoscomtapetes
eornadoscompenachosdetodasascores’
7
.Emseudiáriodainfân-
ciadeLuísXIII,Heroardfreqüentementemencionatorneiosdear-
golinhanoLouvreeemSaint-Germain.“Aargolinhaépraticadato-
dososdias”,observaoespecialistaPluvinel.Aquintanaeaargoli-
nha,comojogosreservadosànobreza,sucederamaostorneioseaos
jogosdecavalariadaIdadeMédia.Masoqueaconteceucomelas
depoisdisso?Elasnãodesapareceramínteiramente,comosepoderia
pensar.Mashojeemdianãoasencontramosmaispertodasquadras
detênisoudoscamposdegolfedosbairrosricos,esimnasfeiras,
ondesecontinuaaarrancarcabeçasdeturcoseondeascrianças,
montadasnoscavalosdepaudoscarrosséis,aindatentampegarar-
golinhas.IssoétudoquenosrestadostorneiosdecavalariadaIdade
Média:brincadeirasdecriançasedivertimentosdopovo,
Nãofaltamexemplosdessaevoluçãoquegradualmentetransfe-
riuosjogosantigosparaorepositóriodosjogosinfantisepopulares.
Tomemosoarco,*porexemplo:nofimdaIdadeMédía,oarconãoera
monopóliodascrianças,ouapenasdascriançaspequenas,Numata-
peçariadoséculoXVI
77
podemosveradolescentesbrincandocom
arco;»:umdelesestáprontoparacomeçararolaroseucomumavari-
nha,NumatalhadeJeanLeclercdofimdoséculoXVI,aparecem
criançasjágrandesque,nãocontentesemrolarseusarcos,mantendo
omovimentocomumavarinha,saltamatravésdeles,comosepulas-
semcorda
7
\Oarcopermitaacrobacias,figurasàsvezesdifíceis,Era
bastantefamiliarentreosjovens,ebastanteantigotambémparaser
75Píuvineí,comgiavurasdeOíspindePos,CabinetdesEstampes.Ec.35’,ín-f’,fig.
47+
76FéíixetThomasPtaferaMontpellier, p,
]32.
*Círculodemadeiraievequeascriançastazemrolareomoauxíliodeumbastão(N
doT.).
77Gõbel,op.cit
.,Il,m.
78Leclerc,op,cit.
CONTRIBUIÇÃOàhistóriadosjogos 119
utilizadoemdançastradicionaiscomoaquenosdescreveem1596
emAvignonoestudantesuíçoFélixPlatter:numaterça-ffeiragorda,
reuniram-sebandosdejovensmascarados,“fantasiadosdeperegri-
nos,camponeses,marinheiros, italianos,espanhóis,alsadanos”ou
demulheres,eescoltadospormúsicos.“Ânoite,elesexecutaramna
ruaadançadosarcos,naqualtomarampartemuitosrapazesemoças
danobreza,vestidosdebrancoecobertosdejóias.Cadaumdançava
segurandonoaltoumarcobrancoedourado,Elesentraramnoalber-
gue,ondefuiolhá-losdeperto.Eraadmirávelvê-lospassarerepas-
sarsobessescírculos,dandoumavolta,desfazendoavoltaeentre-
cruzando-seemcadência,aosomdosinstrumentos.
71
Dançasdesse
gêneropertencemaindahojeaorepertóriodasaldeiasdoPaísBasco.
ApartirdofimdoséculoXVII,nascidades,oarcopareceter
sidodeixadoàscrianças:umagravuradeMerían
75
nosmostTauma
criancinharolandoseuarco,comoofariamascriançasdurantetodo
oséculoXIXepartedoséculoXX,Brinquedodetodos,acessórioda
acrobaciaedadança,oarcoseriaconfinadoacriançascadavezme-
nores,atéseuabandonodefinitivo:talvezaverdadesejaque,para
manteraatençãodascrianças,obrinquedodevadespertaralguma
aproximaçãocomouniversodosadultos,
Noiníciodestecapítulo,vimosquesecontavamhistóriasaLuís
XIII,oscontosdeMelusina,queeramcontosdefadas.Mas,nessaé-
poca,essashistóriassedestinavamtambémaosadultos.Comoob-
servaM.E,Storer,historiadorda“modadoscontosdefadas”no
fimdoséculoXVII
80
,“MmedeSérvtgnétinhaacabeçacheiadehis-
tóriasdefadas”.EmboraachassegraçanasbrincadeirasdeM.de
CoulangesarespeitodeumacertaCuverdon,elanãolherespondeu,
“pormedoqueumsapopulasseemseurostoparapuni-laporsuain-
gratidão”.ElaaludiaaíaumafábuladotrovadorGauthierdeCoin-
cy,queconheciaatravésdatradição.
M
me
deSévignéescreveem6deagostode í677:“M
me
deCou-
langes..,quisgentilmentenospôrapardoscontoscomosquaisse
distraemasdamasdeVersalhes:ou,comosediz,comoquaiselas
sãomimadas.Portanto,elanosmimoutambémefalou-nosdeuma
ilhaverdeondeviviaumaprincesamaisbelaqueodia.Eramasfa-
dasquesopravamsobreelaotempotodo,etc.”“Essecontodurou
bemumahora.”
Sabemostambém
31
queColbert,“emsuashorasvagas,tinha
pessoascomafunção(ogrifoénosso)deentretê-locomhistórias
muitosemelhantesaoscontosdefadas”.
79Merian,gravura,CabinetdesEstampes,Eçl)in-ft,p.58.
80M.E.Storer,LaModedescontesdefêesfl685-1700).1928.
81ibid.

120 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLlA
Contudo,nasegundametadedoséculo,começou-seaachares-
sescontosmuitosimples.Aomesmotempo,surgiuporelesumnovo
tipodeinteresse,quetendiaatransformarnumgêneroliterárioda
modaasrecitaçõesoraistradicionaiseingênuas.Esseinteressemani-
festou-sededuasmaneiras:naspublicaçõesreservadasàscrianças,
aomenosemprincípio,comoscontosdePerrault,queaindarevela-
vamumacertavergonhaemadmitirogostopelosvelhoscontos,e
naspublicaçõesmaissérias,destinadasaosadultos,edasquaisseex-
cluíamascriançaseopovo.Aevoluçãodocontodefadaslembraa
dosjogosdesalãodescritaacima.EiscomoM
me
deMuratsedirigia
àsfadasmodernas:“Asfadasantigas,vossasprecursoras,parecem
criaturasfrívolascomparadasavós.Suasocupaçõeserambaixase
pueris,esódivertiamascriadaseasamas.Todooseuserviçoconsis-
tiaemvarreracasa,cuidardofogão,lavararoupa,embalareador-
mecerascrianças,ordenharasvacas,bateramanteigaemiloutras
ninhariasdessaordem...Eisporquetudooquenosrestahojede
seusfeitosegestossãoapenascontosdefadas.”“Elasnãopassavam
demendigas.“Masvós,senhoras(asfadasmodernas),vósseguistes
poroutrocaminho.Sóvosocupaiscomcoisasimportantes.Dentre
elas,asmenosimportantessãodarespíritoàquelesquenãootêm,
belezaaosfeios,eloquênciaaosignorantes e.riquezaaospobres.”
Outrosautores,porém,continuavamsensíveisaosabordosve-
lhoscontosouvidosoutrora,eprocuravamperservá-lo.M
lle
Lhéri-
tierapresentaseuscontosdaseguintemaneira:
Ceaijolsmanourriceoumamie
M'ontfaitcebeaurêcit,iesairprèsdes(isons;
Jen\vfaisquajouterunpeudehroderie.
*
“Talvezvosespanteis.,,comofatodequeessescontos,embora
inverossímeis,nostenhamsidotransmitidosatravésdosséculossem
queninguémtenhatidootrabalhodeescrevê-los.”
iísnesoaipasaisêsàçroire,
Maisiamquedansíemondeonverradesenfaas
r
Desmetesetdesmèresgrands
Oaengarderaiamêmoire .
**
Começou-seafixaressatradiçãoquedurantetantotempofora
mantidaoralmente:certoscontos“quemecontaramquandoeuera
criança...nosúltimosanosforampostosnopapelporpenasenge-
*
"Cemvezesminhaamaouminhaamiga
/Contaram-meestahistóriaànoite,aopé
dofogo:
/Nãofaçomaisaquidoqueacrescentaralgunsornamentos."(NdoT.)
Elesnãosãofáceisdeacreditar,
/masenquantonestemundohouvercrianças,
/
Mãeseavós,
/
Serãolembrados."(N,doT.)
CONTRIBUIÇÃOàhistóriadosjogos 121
nhosas”.M
lle
Lhéritierpensavaquesuaorigemdeviaremontarà
IdadeMédia:“Ela(atradição)assegura-mequeostrovadoresou
contadoresdehistóriasdaProvençainventaramFinettemuitoantes
queAbelardoouocélebreCondeThibauddeChampagneproduzis-
semseusromances”.Assim,ocontotornou-seumgêneroliterário
proximodocontofilosóficoouarcaizante,comoodeM
e
Lhéritier:
“Deveisadmitirqueosmelhorescontosquetemossãoosquemais
imitamoestiloeasimplicidadedenossasamas”.
Enquantoocontosetornava,nofimdoséculoXVII,umgênero
novodaliteraturaescritaeséria(filosóficaouarcaizante,tantofaz),
arecitaçãooraldoscontosfoiabandonadaporaquelesaquemsedi-
rigiaamodadoscontosescritos,ColberteM
me
deSèvignéouviam
oscontosquelhescontavam,eninguémnaépocapensavaemsubli-
nharessefatocomoumasingularidade-eraumadistraçãobanal,
comohojeseriaaleituradeumromancepolicial.Em1771,porémJá
nãoeramaisassim,enaboasociedade,entreosadultos,osvelhos
contosdatradiçãooral,maisoumenosesquecidos,eventualmentese
tornavamobjetodeumacuriosidadedecaráterarqueológicoouet-
nológicoquejáanunciavaogostomodernopelofolcloreouagíria.
ADuquesadeChoiseulescreveaM
me
duDeffandqueChoiseu!
“mandaquelheleiamcontosdefadasodiainteiro.Todosnósoses-
tamoslendoagora.Consideramo-los tãoverossímeisquantoahistó-
riamoderna”.Issoequivaleríaavermoshojeumdenossosestadis-
tas,apósumaderrotapolítica,lendooPatoDonaldouTintinemseu
recolhimento,comoseessashistorinhasnãofossemmaisbobasdo
quearealidade!ADuquesadeChoiseulnãoresistiuàtentaçãoees-
creveudoiscontos,emquereencontramosotomdocontofilosofico,
ajulgarpeloiníciodoLePrinceenchanté :“MinhaamigaMargot,tu
queemmeuquartochamavasosonooureabriasminhaspálpebras
comlindoscontosdefadas,conta-mealgumahistóriasublimecoma
qualeupossaalegrarospresentes.Não,dizMargot,nãoépreciso
nadadesublime.Tudooqueoshomensprecisamédecontosdefa-
das”.
Segundoumoutroepisódiodaépoca,umadama,numdiadeté-
dio,sentiuamesmacuriosidadedosChoiseuls.Chamousuacriadae
pediu-lheahistóriadePierredeProvenceedabelaMaguelonne,que
hojeteríamosesquecidointeiramentesenãofosseoadmirávelLieder
deBrahms.“Acriadaespantadapediuqueasenhorarepetissetrês
vezeserecebeucomdesprezoaordemestranha;noentanto,tevede
obedecer;desceuatéacozinhaevoltouvermelhacomabrochura.
Defato,noséculoXVIII,haviaalgunseditoresespecializados,
principalmenteemTroyes,quepublicavamediçõesimpressasde
contosparaopúblicoruralquesabialerequeeraalcançadoatravés
demascates.Masessasedições(conhecidascomoBibliothèqueBleue

122 HISTÓRIASOCIALDACRIANCAEDAFAMÍLIA
ou“contosazuis”,porseremimpressasempapelazul)nadatinham
a^vercomamodaliteráriadofimdoséculoXVII.Elastranscreviam,
tãofielmentequantoopermitiaainevitávelevoluçãodogosto,asve-
lhashistóriasdatradiçãooral.Umaediçãode1784daBibliothèque
Bleuecontém,aoladodahistóriadePierredeProvenceedabelaNa-
guelonne,ashistóriasdeRobertleDiableeosquatroirmãosAy-
mon,oscontosdePerrault,eosdeM
lle
delaForceeM
me
d’Aul-
nay.
AoladodoslivrosdaBibliothèqueBleue
,haviaaindaosconta-
doresdehistóriasocasionaisdaslongasnoitesdeinverno,etambém
oscontadoresprofissionais,herdeirosdosvelhosdeclamadores,can-
toresejograis.NapinturaenagravuradosséculosXVIIeXVIIIe
nalitografiapitorescadoiníciodoséculoXIX,otemadocontador
dehistóriasedocharlatãoémuitopopular
SI
.Ocharlatãoaparece
trepadonumestrado,contandosuahistóriaemostrandocomuma
varetaotextoescritonumquadrograndequeumajudantesegura
comosbraçosesticados,paraqueosouvintespossamlerenquanto
ouvem.Emalgumascidadesdaprovíncia,apequenaburguesiaalgu-
masvezesaindaconservavaessepassatempo.Ummemorialistacon-
ta-nosqueemTroyes,nofimdoséculoXVIII,oshomenssereuniam
duranteoinvernonoscabaréseduranteoverão“nosjardins,onde,
apóstiraraperuca,colocavamseusgorros
85
”.
Essesgruposeram
chamadosdecotteries.“Cadacotteríetinhapelomenosumcontador
dehistórias,noqualtodososoutrosmodelavamseutalento.”Ome-
morialistalembra-sedeumdessescontadoresdehistórias,umvelho
açougueiro.“Doisdiasquepasseicomele(quandoeueracriança)
correramentrehistóriasecontoscujoencanto,cujoefeitoecujain-
genuidademalpoderiamser-nãodigoexpressos-massentidospela
raçaatual”(ageraçãoatual).
Assim,osvelhoscontosquetodosouviamnaépocadeColberte
deM
me
deSévignéforampoucoapoucoabandonados,primeirope-
losnobres,easeguirpelaburguesia,àscriançaseaopovodocampo.
Esteúltimoabandonou-ostambémporsuavezquandoojornal
substituiuaBibliothèque Bleue;ascriançastornaram-seentãoseu
público,porpoucotempo,aliás,poisaliteraturainfantilestápassan-
dohojepelamesmarenovaçãoqueosjogos,asbrincadeiraseoscos-
tumes.
82Guardi,emFioceo,VenetianPainting,pranchaLXX1V;Magnasco,emGeiger,
Magnasco,pranchaXXV;G.Dou,Munique,K.d.K.,pranchaLXXXI.
83VirdeM.Groslev,1787,
CONTRIBUIÇÃOÀHISTÓRIADOSJOGOS 123
Apélaeraumdosjogosmaisdifundidosentreosjogosdesporti-
vos.EraoqueosmoralistasdoFimdaIdadeMédiatoleravamcom
menosrepugnânciasduranteváriosséculos,foiojogomaispopular,
comumatodasascondiçõessociais,aosreiseaosplebeus,Masessa
unanimidadecessounofimdoséculoXVII,Constata-seentãoum
declíniodapopularidadedapélaentreanobreza.EmParis,em1657,
contavam-se 114quadrasdepéla;em1700,apesardoaumentoda
população,seunúmerohaviacaídopara10;noséculoXIXhavia
apenas2,umanaRueMazarineeoutranoterraçodasTulherias,
ondesemanteveaté1900SegundoJusserand,ohistoriadordosjo-
gos,LuísXIVjájogavapélasementusiasmo.Emboraosadultos
bemcriadosabandonassem essejogo,oscamponeses€ascrianças
(mesmobemcriadas)permaneceram-lhe fiéissobdiversasformasde
jogosderaquetes.NoPaísBasco,apélasubsistiuatéseurenasci-
mentosobaformaaperfeiçoadadapelotabasca,jogadacomcestas
grandesoupequenas.
UrnagravuradeMerian
85
dofimdoséculoXVIImostra-nos
umjogodebolaquereúnepequenosegrandes:noquadro,abolaes-
tásendoenchida.Mas,nessaépoca,ojogodebolajáerasuspeito
paraosespecialistasemetiquetaeboasmaneiras.ThomasElyote
Shakespeareodesaconselhavam aosnobres.Jaime IdaInglaterrao
proibiuaseufilho.SegundoduCange,elesóerapraticadopelos
camponeses:“Achole,umaespéciedebotaquecadajogadorchuta
comopécomviolência,equeaindaéusadanumjogodoscampone-
sesdenossasprovíncias".EssejogosobreviveuatéoséculoXIXna
Bretanha,porexemplo:“Osenhordaaldeia”,lemosnumtextodo
anoVIII,“lançavanomeiodamultidãoumabolacheiadefarelo,
queoshomensdosdiferentescantõestentavamarrebatar...Viem
minhainfância(oautornasceraem1749),umhomemquebraraper-
naaosaltarsobreumrespiradouroparapegarabola.Essesjogoses-
timulavamaforçafísicaeacoragem,mas,repito-o,eramperigo-
sos”.Sabemosqueousodabolaseconservouentreascriançaseos
camponeses.
Muitosoutros“jogosdeexercício”passariamassimparao
domíniodascriançasedopovo.Foioqueaconteceucomamalha,
porexemplo,sobreaqualM
me
deSévignéescreveunumacartade
1685aseugenro “Assistiadoisjogosdemalha(emLesRochers).
Ah!meucaroconde,pensosempreemvós,enagraçaquetínheisao
84J-J,jusserand,op.cit.
85Merian,gravura,CabinetdesEstampes,Ec10in-lx.
86M
mc
deSévigné,Lettres*13dejunhode1685,

124 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
atingirabola.GostariaquetivésseisemGrignanumaaléiaigual-
mentebonita
1
’.Todosessesjogosdebolicheecríquete,abandonados
pelanobrezaepelaburguesia,noséculoXIXpassaramaosadultos
doscamposeàscrianças.
Essasobrevivênciapopulareinfantildejogosoutroracomunsa
todaacoletividadepreservoutambémumadasformasdediverti-
mentomaisgeraisdaantigasociedade:odisfarce,afantasia-Osro-
mancesdoséculoXVIaoXVIIIestãocheiosdehistóriasdedisfar-
ces:rapazesvestidosdemulher,princesasvestidasdepastorasetc.
Essaliteraturatraduzumgostoquesempreseexpressavanasfestas
sazonaisouocasionais:festasdeReis,terça-feiragorda,festasdeno-
vembro.Durantemuitotempousaram-senormaimentemáscaras
parasair,sobretudoasmulheres.Aspessoasbemnascidasgostavam
deserretratadasusandosuafantasiafavorita.Apartirdoséculo
XVIII
,asfestasàfantasiasetornarammaisrarasemaisdiscretasna
boasociedade.Ocarnavaltornou-seentãopopulareatravessouo
oceano,impondo-seaosescravosnegrosdaAmérica,enquantoos
disfarcesefantasiasforamreservadosàscrianças.Atualmente,sóas
criançassemascaramnocarnavalesefantasiamparabrincar.
Emcadacasoamesmaevoluçãoserepetemonotonamente.E
nosconduzaumaconclusãoimportante.
Partimosdeumestadosocialemqueosmesmosjogosebrinca-
deiraseramcomunsatodasasidadeseatodasasclasses.Ofenôme-
noquesedevesublinharéoabandonodessesjogospelosadultosdas
classessociaissuperiores, e,simultaneamente, suasobrevivênciaen-
treopovoeascriançasdessasclassesdominantes.Éverdadequena
Inglaterraosfidalgosnaoabandonaram,comonaFrança,osvelhos
jogos,mastransformaram-nos, efoisobformasmodernaseirreco-
nhecíveisqueessesjogosforamadotadospelaburguesiaepelo“es-
porte”doséculoXIX.
Énotávelqueaantigacomunidadedosjogossetenharompido
aomesmotempoentreascriançaseosadultoseentreopovoeabur-
guesia.Essacoincidêncianospermiteentreverdesdejáumarelação
entreosentimentodainfânciaeosentimentodeclasse.
5
DoDespudoràInocência
Umadasleisnãoescritasdenossamoralcontemporânea, a
maisimperiosaeamaisrespeitadadetodas,exigequediantedas
criançasosadultosseabstenhamdequalqueralusão,sobretudojo-
cosaaassuntossexuais.Essesentimentoeratotalmenteestranhoa
antigasociedade.OleitormodernododiárioemqueHeroard,ome-
dicodeHenriqueIV,anotavaosfatoscorriqueirosdavidadojovem
LuisXIII
1
ficaconfusodiantedaliberdadecomquesetratavamas
crianças,dagrosseriadasbrincadeirasedaindecênciadosgestos
cujapublicidadenãochocavaninguémeque,aocontrário,pareciam
perfeitamente naturais.Nenhumoutrodocumentopoderiadar-nos
umaidéiamaisnítidadatotalausênciadosentimentomodernoda
infâncianosúltimosanosdoséculoXVIeiníciodoXVII.
LuísXIIIaindanãotemumano:“Eledágargalhadasquando
suaamalhesacodeopêniscomapontadosdedos".Brincadeiraen-
tHeroard,Journalsur1‘enfanceetfojeunessedeLouisXIII,editadoporE.SautiéeE.
deRarthélémy, 186ÍL2vols.

126 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
cantadora,queacriançanãodemoraadominar.Elechamaumpa-
jem“comumEi!,elevantaatúnica,mostrando-lheopênis”.
LuísXIIItemumano:“Muitoalegre”,anotaHeroard,“ele
mandaquetodoslhebeijemopênis”.Eletemcertezadequetodosse
divertemcomisso.Todossedivertemtambémcomsuabrincadeira
diantededuasvisitas,oSenhordeBonnièresesuafilha:“Eleriu
muitopara(ovisitante),levantouaroupaemostrou-lheopênis,mas
sobretudoàsuafilha;então,segurandoopêniserindocomseurisi-
nho,sacudiuocorpotodo”.Aspessoasachavamtantagraçaquea
criançanãosecansavaderepetirumgestoquelhevaliatantosuces-
so.Diantede“umapequenasenhorita”,“Levantouatúnica,emos-
trou-lheopêniscomumtalardorqueficouforadesi.Elesedeitou
decostasparamostrá-lomelhor”.
LuísXIIItemumpoucomaisdeumanoquandoseucasamento
comaInfantadeEspanhaédecidido.Aspessoasexplicam-lheoque
issosignificaeelecompreendemuitobem.Perguntam-lhe:“Ondees-
táobenzinhodaInfanta?Elepõeamãonopênis”.
Duranteseustrêsprimeirosanos,ninguémdesaprovaouvêal-
gummalemtocarporbrincadeiraemsuaspartessexuais:“AMar-
quesa(deVerneuíl)muitasvezespunhaamãoembaixodesuatúni-
ca;elepediaparasercolocadonacamadesuaama,ondeelabrinca-
vacomeleepunhaamãoembaixodesuatúnica”.“M
me
deVer-
neuilquisbrincarcomeleesegurouseusmamilos;eleaempurroue
disse:sai,sai,deixaisso,vaiembora.ElenuncapermitiaqueaMar-
quesatocasseemseusmamilos,poissuaamaohaviainstruído,di-
zendo-lhe:Monsieur,nãodeixeisninguémjamaistocaremvossos
mamilosnememvossopênis,poispodemcortá-lo.Eleselembrava
disso”,
“Aoselevantar,demanhã,nãoquisnempornadavestiraca-
misaedisse:camisanão(Heroardgostadereproduzirojargãoeaté
mesmoapronúnciadainfânciabalbuciante),primeiroquerodara
todoomundoumpoucodeleitedomeupênis;aspessoasestende-
ramamãoeelefingiuquetiravaleite,fazendopss...pss;deuleitea
todosesóentãodeixouquelhepusessemacamisa.”
Eraumabrincadeiracomumemuitasvezesrepetidaaspessoas
lhedizerem:“Monsieurnãotempênis”.“Elerespondia: E,olha
aqui!,eaiegrementelevantava-ocomodedo.”Essasbrincadeiras
nãoeramrestritasàcriadagemouajovensdesmioladosouamulhe-
resdecostumeslevianos,comoaamantedoRei,ARainha,suamãe,
tambémgostavadessabrincadeira:'“ARainha,pondoamãoemseu
pênis,disse:-Meufilho,pegueiasuatorneira’.”Otrechoseguinteé
aindamaisextraordinário: “EleeMadame(suairmã)foramdespi-
dosecolocadosnacamajuntocomoRei,ondesebeijaram,gorjea-
ramederammuitoprazeraoRei.OReiperguntou-lhe:-Meufilho,
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 127
ondeestáatrouxinhadaInfanta?-Elemostrouopênisdizendo:-
Nãotemossodentro,papai.-Depois,comoseupênisseenrijecesse
umpouco,acrescentou:-Agoratem,devezemquandotem.
*
Defato,aspessoassedivertiamemobservarsuasprimeirasere-
ções:“Tendoacordadoàs8h,elechamouM
lle
Bethouzayelhedisse:
Zezai,meupênispareceumapontelevadiça;levantaeabaixa.-E
eleolevantavaeoabaixava.”
Aosquatroanos,suaeducaçãosexualjáestavaadiantada:“Foi
levadoaosaposentosdaRainha; aí,M
me
deGuisemostrou-lhe a
camadaRainhaedisse-lhe:-Monsieur,foiaquiquefostesfeito.
-
Elerespondeu:-Commamãe?”-“Eleperguntouaomaridodesua
ama:-Oqueéisto?-Éaminhameiadeseda,disseeste.-Eisto?(à
maneiradosjogosdesalão).-Sãoasminhascalças.-Elassãode
quê?-Develudo,-Eisto?-Éumabraguilha.-Oqueéquetem
dentro?-Nãosei,Monsieur.-Eh,éumpênis.Paraqueméessepê-
nis?-Nãosei,Monsieur.-Eh,éparaM
me
Doundoun
(suaama).”
“ElesepôsentreaspernasdeM
me
deMonglat(suagovernan-
ta,umamulhermuitodigna,muitoresponsável eque,noentanto,
nãopareciaincomodar-se-nãomaisdoqueHeroard-comtodas
essasbrincadeirasquehojeconsideramosintoleráveis).OReilhedis-
se:-VedeofilhodeM
me
deMonglat,elaestádandoàluz.-Ele
saiudelárapidamenteefoiinstalar-seentreaspernasdaRainha.”
Entrecincoeseisanos,aspessoaspararamdesedivertircomas
partessexuaisdoDelfim.Enquantoisso,porém,elecomeçouasedi-
vertircomasdosoutros.M
lle
Mercier,umadesuascriadasqueha-
viadormidotardenanoiteanterior,certamanhãaindaestavadeita-
danumacamaaoladodasua(seuscriados,àsvezescasados,dor-
miamemseuquarto,eapresençadomeninonãodeviaincomodá-
losmuito)."Eiebrincoucomela”,mandouqueelamexesseosdedos
dospéscomaspernasparacimae“mandousuaamabuscaruma
varaparabateremseutraseiro,noquefoiobedecido...Suaamaper-
guntou-lhe:-Monsieur,oquevistesdeM
lle
Mercier?-Elerespon-
deufriamente:-Visuabunda,-Quemais?-Elerespondeufriamen-
teesemrirquehaviavistosuavagina.”Emoutraocasião,eie“brin-
coucomM^
e
Mercier,emechamou(Heroard),dizendo-mequea
Merciertinhaumavaginadestetamanho(mostrouseusdoispunhos)
equehaviaáguadentro”,
Apartirde1608,essegênerodebrincadeiradesaparece:oDel-
fimsetornaraumhomenzinho-atingindoaidadefatídicadesete
anos*eeraprecisoensinar-lhemodoselinguagemdecentes.Quan-
dolheperguntamporondenascemascrianças,eleresponde,comoa
AgnèsdeMolière,queépelaorelha.M
me
deMonglatorepreende
quandoele“mostraseupênisàpequenaVentelet”.E,seseuscriados

128 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
continuamacolocá-íodemanhãaoacordarnacamadeM
me
de
Monglatentreestaeseumarido,Heroardficaindignadoeanotana
margemdodiário:insignisimpudenüa.Omeninode10anoserafor-
çadoasecomportarcomumacompenetraçãoqueninguémpensava
emexigirdeummeninodecinco.Aeducaçãopraticamentesócome-
çavadepoisdosseteanos.Eessesescrúpulostardiosdedecênciade-
vemtambémseratribuídosauminíciodereformadoscostumes,si-
nadarenovaçãoreligiosaemoraidoséculoXVII.Eracomoseo
valordaeducaçãocomeçasseapenascomaaproximaçãodaidade
adultaPorvoltados14anos,entretanto,LuísXIIInadamaistinha
aaprender,poisfoiaos14anosedoismesesqueocolocaramquaseà
forçanacamadesuamulher.Apósacerimônia,ele“sedeitoueceou
nacamaàs6h45min.M.deGramontealgunsjovenssenhorescon-
taram-lhehistóriasgrosseirasparaencorajá-lo.Elepediusuaspantu-
flas,colocouorobeefoiparaoquartodaRainhaàs8h.Foiinstala-
donacamaaoladodaRainha,suamulher,napresençadaRainha,
suamãe;às10h15min,elevoltou,apósterdormidocercadeuma
horaeterfeitoduasvezes,segundonosdisse;defato,pareciaverda-
de,poisseupênisestavatodovermelho”,
Ocasamentodeummeninode14anostalvezcomeçassease
tornarmaisraro.Ocasamentodeumameninade13aindaeraco-
mum.
Nãoháporquepensarqueoclimamoraldevesseserdiferente
emoutrasfamíliasdefidalgosouplebeus.Essapráticafamiliardeas-
sociarascriançasàsbrincadeirassexuaisdosadultosfaziapartedo
costumedaépocaenãochocavaosensocomum.NafamíliadePas-
cal,JacqueiinePascalaos12anosescreviaversossobreagravidezda
Rainha.
ThomasPlatterrelataemsuasmemóriasdeestudantedemedi-
cinaemMontpellier,nofimdoséculoXVI:"Conheciummenino
queezessaafronta(amarraraagulhetadeumamoçanahoradoca-
samento,paratornaromaridoimpotente)àcriadadeseuspaisEsta
suplicou-lhequedesfizesseoencantamento,desamarrandoaagulhe-
ta.Eleconsentiuelogoonoivo,recuperandosuapotência ficou
completameniecurado.”OPe.deDainville,historiadordosjesuítase
dapedagogiahumanista,tambémconstata:“Orespeitodevidoàs
criançaseraentão(noséculoXVI)algototalmenteignorado.Os
adultossepermitiamtudodiantedelas:linguagemgrosseira,açõese
situaçõesescabrosas; elasouviameviamtudo
3",
2P.deDamville,LaNaissancedeVhumantomemoderne,1940,p,261;MechinAnnales
ducotlegerayaldeBourhanAix
,2vols., S892.
DODESPUDORÀINOCÊNCIA
129
Essaausênciadereservadiantedascrianças,essehábitodeasso-
ciã-lasabrincadeirasquegiravamemtornodetemassexuaispara
nósésurpreendente:éfácilimaginaroquediriaumpsicanalistamo-
dernosobreessaliberdadedelinguagem,emaisainda,essaaudácia
degestoseessescontatosfísicos,Essepsicanalista,porém,estariaer-
rado.Aatitudediantedasexualidade,esemdúvidaaprópriasexua-
lidade,variamdeacordocomomeio,e,porconseguinte,segundoas
épocaseasmentalidades.Hoje,oscontatosfísicosdescritosporHe-
roardnospareceriambeiraraanomaliasexualeninguémousaria
praticá-lospublicamente.Aindanãoeraassimnoiníciodoséculo
XVII.UmagravuradeBaldungGrien,de1511,representaumasa-
gradafamília,OgestodeSant’Ánanosparecesingular:elaestá
abrindoaspernasdacriança,comosequisessedescobrirseusexoe
fazer-lhecócegas.Seriaerradoveraíumaintençãopicante
Essehábitodebrincarcomosexodascriançaspertenciaauma
tradiçãomuitodifundida,quehojeemdiaaindaencontramosnas
sociedadesmuçulmanas, Essassociedades semantiveram alheias
nãoapenasaoprogressocientífico,mastambémàgrandereforma
moral,inicialmentecristaeaseguirleiga,quedisciplinouasociedade
aburguesadadoséculoXVIIIesobretudodoséculoXIX,naIngla-
terraenaFrança.Encontramosassimnessassociedadesmuçulma-
nastraçoscujaestranhezanossurpreende,masquenãoteriamsur-
preendidotantooexcelenteHeroard.Podemosjulgá-loporumapá-
ginaextraídadoromanceLaStatutedeSei[1953] .Seuautoréum
judeutunisino,AlbertMemmi,eolivroIumtestemunhocurioso
sobreasociedadetunisinatradicionaleamentalidadedosjovens
semi-ocidentalizados.Oheróidoromancecontaumacenapassada
nobondequeoconduziaàescolaemTúnis:“Àminhafrente,esta-
vamummuçulmanoeseuFilho,ummenininhomínimo,comumfez
miniaturaehenênasmãos;àminhaesquerda,umquitandeirodjer-
bianoacaminhodomercado,comumacestaentreaspernaseumlá-
pisatrásdaorelha.Odjerbiano,tomadopelocaloreaquietudedo
vagão,seagitou.Sorriuparaomenino,queemrespostasorriucom
osolhoseolhouparaopai.Opai,reconhecidoelisonjeado,tranqüi-
lizouofilhoesorriuparaodjerbiano.-Quantosanosvocêtem?-
perguntouoquitandeiroaomenino.-Doisanosemeio,respondeuo
pai(aidadedopequenoLuísXIII).-Seráqueogatocomeuasua
língua?-perguntouoquitandeiroaomenino.-Não-respondeuo
pai eleaindanãofoicircuncidadomasvaiserembreve.-Ah!Ahl
disseooutro.-Elehaviaencontradoumassuntoparaconversar
3Curjel,H.BaldungGríenpranchaXLV11I.

130 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
comacriança.-Vocêquermevenderoseupintinho?-Não-disseo
meninocomraiva.-Elevisivelmenteconheciaessacena,ejáíheha-
viamfeitoamesmapropostaantes.Eutambém[acriançajudia]a
conhecia.Jáhaviaparticipadodelaemoutrostempos,provocado
poroutraspessoas,comosmesmossentimentosdevergonhaede
concupiscência, derevoltaedecuriosidadecúmplice.Osolhosdo
meninobrilhavamdeprazerporsuavirilidadenascente
[
sentimento
moderno,atribuídoàcriançapeloevoluídoMemmi,queconheceas
descobertasrecentessobreaprecocidadedodespertarsexualdas
crianças:oshomensdeoutrora,aocontrário,acreditavamquea
criançaimpúbereeraestranhaàsexualidade] etambémderevolta
contraessainqualificávelagressão.Omeninoolhouparaopai,Opai
sorria,emumabrincadeirapermitida
[
ogrifoémeu].Nossosvizi-
nhosseinteressavampelacenatradicionalcomumaaprovaçãocom-
placente,-Eulhedou10francos,propôsodjerbiano.-Nâo,disseo
menino...-Vamos lá,mevendaoseu
p..,,replicouodjerbiano.-
Não,não!-Eulhedou50francos.-Não!-
...Vouíhedartudoo
queposso: 1.000francos!-Nâo!-Osolhosdovelhodjerbianoassu-
miramumaexpressãodegula,-Emaisumsacodebalas!-Não,
não!-Entãoénâo?Éasuaúltimapalavra?-gritouodjerbianofin-
gindoraiva,-Repitapeiaúltimavez:énâomesmo?-Não!-Então,
bruscamenle,oaduítopulouemcimadacriança,comumaexpres-
sãoterrívelnorostoeamãobrutalremexendodentrodesuabragui-
lha,Omeninosedefendeucomsocos.Opairiaàsgargalhadas,o
djerbianosecontorcianervosamenteenossosvizinhossorriamdiver-
tidos."
EssacenadoséculoXXnâonospermitecompreendermelhoro
séculoXVII,antesdareformamoral?Devemosevitarosanacronis-
mos,comoaexplicaçãodosexcessosbarrocosdoamormaternode
M
me
deSévignéatravésdoincesto,segundoseuúltimoeditor.Tra-
tava-sedeumjogocujocaráterescabrosonãodevemosexagerar:ele
nâoeramaiordoquehoje,nasanedotaspicantesdasconversasentre
homens.
Essasemi-inocêncía, quenospareceviciosaouingênua,explica
apopularidadedotemadacriançafazendopipi,quedatadoséculo
XV.Essetemaaparecenasimagensdoslivrosdehorasenosquadros
deigreja.NoscalendáriosdolivrodehorasdeHenessy
4
edobreviá-
riode,Grimani
5
doiníciodoséculoXVI,ummêsdeinvernoérepre-
sentadoporumaaldeiacobertadeneve;aportadeumacasaestá
4J.Destrée,LesHeuresdeNotre-DameditesdeHenessy,1895e1923.
5s-deVrièseMarpugo,LeBréviaireGrimani,1904-1910, 12vols.
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 131
abertaevê-seumamulherfiandoeumhomemseaquecendojunto
dofogo;umacriançafazpipinafrentedaporta,emcimadaneve,
bemàvista,
UmEccehomoflamengo,deP.Pietersz
fi
,destinadosemdúvida
aumaigreja,mostraentreumamultidãodeespectadoresumgrande
númerodecrianças:umamãeseguraofilhonoalto,porcimadaca-
beça,paraqueelepossavermelhor,enquantomeninoslevadosesca-
lampórticos.Umacriançafazpipi,segurapelamãe.Enquantoassis-
tiamàmissanacapeladeseuPaláciodaJustiça,osmagistradosde
Toulousepodiamdistrair-secomumacenadomesmogênero.Um
grandetrípticorepresentavaahistóriadeSãoJoãoBatista
'.Nopai-
nelcentral,apareceSãoJoãoBatistapregando.Ascriançassemistu-
ramàmultidão:umamulherdádemamar,ummeninoestátrepado
numaárvore;umpoucoafastado,ummeninolevantaatúnicaefaz
pipi,nafrentedosparlamentares,
Essaabundânciadecriançasnascenasdemultidãoeessarepeti-
çãodecertostemas(acriançaaoseio,acriançafazendopipi)nosé-
culoXVesobretudonoséculoXVIsãooindíciodeuminteresse
novoeespecial.
Énotável,também,afrequênciacomqueaparecenessaépoca
umaoutracenadaiconografiareligiosa,acircuncisão.Acircuncisão
érepresentadacomumaprecisãoquasecirúrgica,masnãodevemos
veraínenhumamalicia,Tudoindicaqueacircuncisãoeaapresenta-
çãodaVirgemnoTemploeramtratadasnosséculosXVIeXVII
comofestasdainfância,asúnicasfestasreligiosasdainfânciaantes
dacelebraçãosolenedaprimeiracomunhão,Podemosvernaigreja
parisiensedeSaint-NicolasumateladoiníciodoséculoXVII,prove-
nientedaabadiadeSaint-Martin-des-Champs. Acenadacircunci-
sãoéassistidaporumgrandenúmerodecrianças:algumasestãojun-
todospais,outrassobemnaspilastrasparavermelhor.Nãoháalgo
deestranho,quasechocanteparanós,nessaescolhadacircuncisão
comofestadainfância,representadanomeiodascrianças?Talvez
issosejachocanteparanós,masnãooéparaummuçulmanodeho-
je,nemoeraparaohomemdoséculoXVIoudoiniciodoséculo
XVII.
Essehomemnâoapenasmisturavasemrepugnânciaascrianças
aumaoperaçãodenaturezareligiosa,êverdade,doórgãosexual
masculino,mastambémsepermitia,comaconsciêncialimpae
publicamente,gestosecontatosfísicosquesópassavamaserproibi-
6H,Gerson,VonGeertgentotFrHah,1950,vol.I,p.95.
7MuséedesA
nm,ctín<1Toulouse.

132 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
dosquandoacriançaatingiaapuberdade,ouseja,pratícamente,o
mundodosadultos.Issoaconteciaporduasrazões.Primeiro,porque
seacreditavaqueacriançaimpúberefossealheiaeindiferenteàse-
xualidade.Portanto,osgestoseasalusõesnãotinhamconseqüência
sobreacriança,tornavam-segratuitoseperdiamsuaespecificidade
sexual-neutralizavam-se.Segundo,porqueaindanãoexistiaosenti-
mentodequeasreferênciasaosassuntossexuais,mesmoquedespo-
jadasnapráticadesegundasintençõesequívocas,pudessemmacular
ainocênciainfantil-defatoousegundoaopiniãoquesetinhadessa
inocência.Narealidade,nãoseacreditavaqueessainocênciareal-
menteexistisse*
Essaera,aomenos,aopiniãogeral:nãoeramais,porém,ados
moralistasedoseducadores,aomenosdosmelhoresdentreeies,ino-
vadoresaliáspoucoseguidos,Aimportância retrospectiva desses
inovadoresprovémdofatodequenofinalelesacabaramporfazer
Lnunlarsuasidetas,quehojesàoasnossas.
EssacorrentedeidéiasremontavaaoséculoXV,épocaemque
lorabastantepoderosaparaprovocarumamudançanadisciplina
tradicionaldasescolas.Gersonforaentãoseuprincipalrepresentan-
te.Eleexprimiusuasidéiascommuitaclareza,revelando-separaa
suaépocaumexcelenteobservadordainfânciaedesuaspráticasse-
xuais.Essaobservaçãodoscostumesparticularesdainfânciaeaim-
portânciaqueGersonlhesatribuiu,dedicando-lhesotratadoDecon~
fessionemollicei revelamumapreocupaçãototalmentenova,qüe
deveserrelacionadacomtodososoutrossinaisquejáexaminamos
naiconografiaenotraje,equeindicamuminteresseinéditopelain-
Gersonportanto,estudouocomportamento sexualdascrian-
çascomoobjetivodeajudarosconfessores,paraqueestesdespertas-
sememseuspequenospenitentes-de10a 12anosdeidade-umsen-
timentodeculpa.Elesabiaqueamasturbaçãoeaereçãosemejacu-
laçaoerampráticasgeneralizadas: sealguémforinterrogadoaesse
respeitoenegar,comtodaacertezaestarámentindo.ParaGersona
questãoeramuitograve.Opeceatummollicei
,“mesmoque,emvir-
tudedaidade,naotenhasidoacompanhadodepolução...tiraavir-
gindadedacriança*maisdoqueseomenino,comamesmaidade ti-
vessefrequentadomulheres”.Alémdisso,debeiravaasodomia.
Nesseponto,ojulgamentodeGersonestámaispróximoda
doutrinamoderna,queconsideraamasturbaçãoumestágioinevitá-
8Gerson,Deconfesslonemollicei
,Opera,1706,volII,p.309.
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 133
veldasexualidadeprematura,doqueossarcasmosdoromancista
Sorel,queviaaíaconseqüênciadoendausuramento escolardoin-
ternato.
Defato,segundoGerson,acriançanãoeraoriginariamente
conscientedesuaculpa:“Sentiuntibiquemdampruritumincognitum
tumstalerectioepensamqueépermitidoquesefricentibietsepal-
pentetsetractentsicutinaliisheisdumpruritusinest.Issoseriaa
conseqüênciadacorrupçãooriginal:excorniptionenaturae.Estamos
aindamuitolongedaidéiadeumainocênciainfantil,masjáestamos
muitopertodeumconhecimento objetivodocomportamento da
criança,cujaoriginalidadesetornaevidentesobaluzdoquefoidito
acima.Comopreservarainfânciadesseperigo?Atravésdoconselho
doconfessor,mastambématravésdamodificaçãodoshábitosda
educaçãoedoestabelecimentodeumnovocomportamentocomre-
laçãoàscrianças.Dever-se-áfalar-lhessobriamente,utilizandoape-
naspalavrascastas.Dever-se-áevitarqueascriançassebeijem,seto-
quemcomasmãosnuasouseolhemduranteasbrincadeiras:Jíge
-
rentoculiineorumdecore.Dever-se-áevitarapromiscuidade entre
pequenosegrandes,aomenosnacama:ospuericapacesdoli
tpuellae,
juvenes,nãodevemdormirnamesmacamacompessoasmaisvelhas,
mesmoquesejamdomesmosexo.Acoabitaçãonamesmacamaera
entãoumapráticamuitodifundidaemtodasascamadassociais.Vi-
mosqueelaaindasubsistianofimdoséculoXVI,atémesmonacor-
tedeFrança:asbrincadeirasdeHenriqueIVcomseufilho,ofuturo
LuísXIII,queeracolocadoemsuacamacomairmã,justificariam
quasedoisséculosmaistardeaprudênciadeGerson.Gersonproibia
queascriançassetocasseminnudoduranteasbrincadeirasouem
outrassituações,econvidavaseusleitoresadesconfiar“asocietalia
-
tibuspersuisubicolloquiapravaetgestusimpudicifluntiníectoahs~
quedormitione'\
Gersonvoltaaessaquestãonumsermãocontraaluxúriaprofe-
ridonumquartodomingodoAdvento:acriançanãodevedeixarque
osoutrosatoquemoubeijem,e,seofizer,devesempreseconfessar,
inonmibuscasibus-
éprecisofrisar,poisemgeralnãoseviamalnisso.
Maisadiante,eledizque“seriabom”separarascriançasdurantea
noite:apropósito,lembraocasocontadoporSãoJerônimodeum
meninodenoveanosquefizeraumfilho;maseledizapenasque“se-
riabom”,nãoousandoirmaislonge,detalformaerageneralizadaa
práticadesecolocartodasascriançasdafamíliaparadormirna
mesmacama-quandonãocomumcriado,umacriadaouospais
9
.
9Gerson,Doctrinapropuerisecclesiaepamiensis
,Opera,1706,vol.IV,p.717.

134 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
NoregulamentoqueelaborouparaaescoladeNorte-Dame-de-
Pans,Gersontentouisolarascriançasesubmetê-lasàvigilância
constantedomestre.Oespíritodessanovadisciplinaseráestudado
numcapituloespecialmaisadiante.Oprofessordecantonãodevia
ensinarcantilenasdissolutasimpudicasque
,eosalunostinhamodever
dedenunciarseuscamaradasseestescometessemalgumafaltacon-
traadecenciaeopudor(entreosoutrosdelitosfiguravamfalargalli-
cum~enaolatim~
J
urar
’mentir,dizerinjúrias,demorar-senaca-
ma,faltarashoraseconversarnaigreja).Ànoite,umalamparinade-
viaficaracesanodormitório:“Tantopordevoçãoàimagemdavir-
gemcomoporcausadasnecessidadesnaturais,eparaqueelesprati-
quemsobaluzapenasosatosquepodemedevemservistos”.Ne-
nhumacriançadeveriatrocardecamaduranteanoite:eladeviaficar
comocolegaquelheforaescalado.Osconventieula, velsocietatesad
partemextraalias
,nãoseriampermitidosnemdedianemdenoite.
odoocuidadoeratomadoparaevitarasamizadesparticulareseas
mascompanhias,especialmentedacriadagem:“Seráproibidaàcria-
dagemtodafamiliaridadecomascrianças,semexceçãodosclérigos
doscapellaniedopessoaldaigreja(haviaumacertafaltadeconfian-
ça):elesnaodeverãodirigirapalavraàscriançasforadapresença
dosmestres
,
Y
Ascriançasestranhasàfundaçãonãoteriampermissãoparafi-
carjuntodosalunos,nemmesmoparaestudarcomeles(salvolicen-
çaespecialdosuperior)“afimdequenossascrianças(puerinostri)
naoadquirammaushábitosaexemplodosoutros”
Tudoissoerainteiramentenovo,enãodevemosimaginarqueas
coisassepassassemreaimentedessamaneiranaescola.Nasegunda
partedestelivro,veremoscomoerarealmenteavidaescolar,equan-
totempoeestorçoforamprecisosparafazerreinarmaistarde,nosé-
culoXVIII,umadisciplinarigorosanoscolégios.Gersonestavamui-
toadiantedasinstituiçõesdeseutempo.Seuregulamentoéinteres-
santepelojdealmoralquerevela,quejamaisforaformuladocom
essaprecisão,equesetornariaoidealdosjesuítas,dePort-Royal
dosirmãosdadoutrinacristãedetodososmoralistaseeducadores
rigorososdoséculoXVII.
NoséculoXVI,oseducadoreserammaistolerantes,emborati-
vessemocuidadodenãoultrapassarcertoslimites.Sabemosdisso
atravésdoslivrosescritosparaosescolares,ondeestesaprendiama
leitura,aescrita,ovocabuláriolatinoe,finaimente,asboasmanei-
ras:ostratadosdecivilidadeeoscolóquiosque,parasetornarem
maisvivoscolocavamemcenaváriosalunosouumalunoeseumes-
treEssesdiálogossãoexcelentesdocumentossobreoscostumeses-
colares.NosdiálogosdeVives,lemosafirmaçõesquenãoteriamsido
endossadasporGerson,masqueeramtradicionais:“Queparteé
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 135
maisvergonhosa,apartedafrente(observemosapreocupaçãocom
adiscrição)ouocu?-Todasasduassãomuitoindecentes,adetrás
devidoàvilania,eaoutradevidoàluxúriaeàdesonra
l0”.
Nãofaltamnessesdiálogosbrincadeirasumtantogrosseirase
assuntossemnenhumcarátereducativo,Nosdiálogosinglesesde
CharlesHoole",assistimosaalgumasdisputas.Umadelaspassa-se
numataverna-eastavernaseramentãolugaresbempioresdoque
osnossosbares.Háumalongadiscussãosobreoalbergueondese
bebeamelhorcerveja.Contudo,mesmoemVivès,observamosum
certosentimentodepudor:“Oterceirodedoéchamadodeinfame.
Porquê?-Omestredissequesabiaarazão,masnãoqueriacontá-la
porqueerasujaeinfame;logo,nãoaprocures,poisnãoconvéma
umacriançadeboanaturezaseinterrogarsobrecoisastãovis."Issoé
potávelparaaépoca.Aliberdadedelinguagemeratãonatural,que
maistardeatémesmoosreformadoresmaisrigorososdeixariampas-
saremseussermõesparaascriançaseosescolarescomparaçõesque
hojeemdiapareceríamchocantes.Assim,em1653,opadrejesuíta
Lebrunexortaos“nobilíssimos pensionistasdocolégiodeCler-
moní”aevitaremagula:“Elessefazemdedifíceis,iamquampraeg-
nantesmulierculae
l!”.
MasnofimdoséculoXVIumamudançamuitomaisnítidateve
lugar,Certoseducadores,queiriamadquirirautoridadeeimporde-
finitivamentesuasconcepçõeseseusescrúpulos,passaramanãoto-
lerarmaisquesedesseàscriançaslivrosduvidosos.Nasceuentãoa
idéiadeseforneceràscriançasediçõesexpurgadasdeclássicos.Essa
foiumaetapamuitoimportante.Édessaépocarealmentequepode-
mosdatarorespeitopelainfância.Essapreocupaçãosurgiunames-
maépocatantoentrecatólicoscomoentreprotestantes,naFrança
comonaInglaterra.Atéentãonuncasehaviahesitadoemdeixaras
criançasleremTerêncio,comoumclássico.Osjesuítasretiraram-no
deseuscurrículos
13
.NaInglaterra,asescolasutilizavamumaedição
expurgadadeCorneliusSchonaeus,publicadaem1592ereeditada
em1674,Brinsieyarecomendavaemseumanualdomestre-escola
Nasacademiasprotestantes francesas,utilizavam-seoscoló-
quiosdeCordier(1564),quesubstituíramoscolóquiosdeErasmo,
deVivès,deMoseilanus etc.OscolóquiosdeCordierrevelamuma
novapreocupaçãocomopudoreumnovocuidadoemevitarafron-
tasàcastidadeeàcivilidadedalinguagem.Omáximoqueétolerado
10Vivès,Dialogues,trad.francesa,1571.
11CitadoemF,Watsòii,TheEnglishGrammarSchoolsto1660*,1907,p,112-
12A.Schimberg,Educaiionmorafedansíescollègesdejésuites,1913,p.227.
13P.deDainville, op,cit.
14F.Watson,op.cit.

136 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMtLIA
éumabrincadeirasobreosusosdopapel-
“papeldealunodees-
’P
F
3pedCenvelo
P
e

“PaP
elderascunho”-numjogodesa-
queSl”Tat,T„
raeni"0teiSl
,
e
-™*» descobrea^resposu-
?j ?
pe
.P
ueserveparalimparasnádegasnoreservado”
C

Sa°mocenteàsbrincadeiras
tradicionais.Cordierpodia
realmente serpostoentreasmãosdetodos”.Dequalquerforma
telíion
0qU1°SCramlld0SJUntOCOmosdiálo
«osreligiososdeS.Cas-
Port-Roval,porsuavez,publicouumaediçãomuitoexpurgada
eerencio.ComédiasdeTerênciotornadasmuitodecentesemuito
poucomodificadas
w
.
Quantoaopudor,oscolégiosjesuítasintroduziramprecauções
inabttuais,especificadasemregulamentos,comrespeitoàadminis-
raçaodoscastigoscorporais.Especificava-sequenãoeraprecisoti-
rarascalçasdasvítimas,adolescentum,“qualquerquefosseacondi-
çãoouaidadedomenino”(gostomuitodessareferênciaàcondi-
ção);devia-sedescobrirapenasapelenecessáriaparaaaplicaçãoda
pena,enaomais:nonamplius
17
.
Yvn
g
A
andemUdan
?.r
0Scostumesseproduziriaduranteosé-
culoXVII.AmenordasliberdadespermitidasnacortedeHenrique
IVnaoteriasidotoleradaporM
me
deMaintenoncomosfilhosdo
Kamesmoosbastardos,comotampoucoteriasidopermitidanasca-
™°ri
bertin0S
’Nã
J
°SCtrat2Vamaísdeal
Sunsmoralistasisolados
ornoGerson,esimdeumgrandemovimentocujossinaisseperce-
biamemtodaaparte,tantonumafartaliteraturamoralenedaeóei-
eacomoempraticasdedevoçãoenumanovaiconografiareligiosa.
Umanoçaoessencialseimpôs:adainocênciainfantil.Jáaen-
Sh^
a
aT
S
.T^
M
T
taigne
’que
’emretanto
>tinhapoucasilusões
sobreacastidadedosjovensestudantes.“Cemestudantespegaram
varíolaantesdechegaràliçãodeAristótelessobreatemperança
trn^hn
tan
!.
bcmuraepisódioqueanunciaumnovosentimen-
qerque,correndoumgrandeperigodenaufragar,colocou
ummenininhosobreosombros,paraqueemsuaassociaçãoaino-
cênciadacriançalheservissedegarantiaederecomendaçãoparaob-
terofavordivinoeassimchegarsãoesalvoàterra
l9
”.Cercadeum
séculomaistarde,essaidéiadainocênciainfantilhavia-setornado
15MathurinCordier,Colíoques,1586
VoCLT
rendU€StrêSh°nnê,eS"yckanZeam
f°npeudeckoses,por
I7
CitadoporP.deDainville,op
,cit,
!8Montaigne,Essais
,1,26.
Í9Montaigne,Essais, J,39.
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 137
umlugar-comum.Vejamos,porexemplo,alegendadeumagravura
deF.Guérard,representando brincadeirasdecrianças(bonecae
tambor)
30
:
VoiiãiãgedeVirmocenee
Oúnausdevortstousrevertir
Pourjouirdesbiemavenirs
Quisontieynostreespêrance;
Lâgeoút*onsaittoutpardo/tner
LâgeoúVonignoretahaine,
Oúriennepeutnouschagrirter;
Lâged’ordelaviehum&ine
LâgequtbravelesEnfers
Lâgeoülavieestpeupênibie
Lâgeoúlamoeiestpeuterrihle
Etpourquilescieuxsontouverts
Acesjeunespiausde1'Eglise
Quonporteunrespectlendreetdoux
Lecieiesttoutpleindecourroux
Pourquiconquelesscandalise.
*
Quelongocaminhofoipercorridoatéchegarmosaesseponto!
Podemosacompanhá-loatravésdeumafartaliteratura,daqualexa-
minaremosaseguiralgumasamostras.
UHonnesteGarçon,ou“aartedeeducaranobrezanavirtude,
naciênciaeemtodososexercíciosconvenientesàsuacondição”,
publicadoem1643
21
porM.deGrenaille,escudeiroeSenhorde
Chatauniers,éumbomexemplo.OautorjáhaviaescritoVHonneste
Filie.Esseinteressepelaeducação,pela“instituiçãodajuventude"é
dignodenota.Oautorsabequenãoéoúnicoatratardesseassunto,
edesculpa-seemseuprefácio:“Nãocreioestarentrandonocampo
deM.Faret
23
aotratardeumassuntoqueeleapenasaflorou,aofa-
lardaeducaçãodaquelescujaperfeiçãofinaleleretratou”“Condu-
zoaquiomeninobemeducadodesdeocomeçodainfânciaatéaju-
ventude.Tratoprimeiramentedeseunascimento edepoisdesua
educação;refinosuasmaneiraseseuespíritoaomesmotempo;ins-
truo-onareligiãoenodecoro,paraquenãosejanemímpio,nemsu-
20F.Guérard,CabinetdesEstampes,Ee3a,pet.in-P.
*
^Estaéaidadedainocência/Àqualdevemostodosvoltar/Paragozarafelicidade
Tutura/Queéanossaesperançanaterra;/Aidadeemquetudoseperdoa,/Emqueo
ódioédesconhecido,
/Emquenadanospreocupa;/Aidadedeourodavidahuma-
na,/AidadequedesafiaosInfernos,/Aidadeemqueavidaéfácil/Eemqueamorte
naoéterrível,/Aidadeparaaqualoscéusestàoabertos.
/Queumrespeitoternoe
doce/SejamostradoaessasjovensplantasdaIgreja.
/OCéuestácheioderaiva
/
Da-
quelesqueasescandalizam."(N.doT.)
21M,deGrenaille,LHonntsteGarçon,io42.
22Faret,LMonnêteHomme,1630.

138 históriasocialdaCRIANÇAedafamília
persticioso.”Antesexistiamtratadosdecivilidadequeeramanenas
manuaisdesavoir-vivre,deboasmaneiras.EssesmanuaisTódeía-
íivrn.í
Se
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rapr
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ciadosno«**>doséculoXIX.Masaoladodesses
cinHn
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rincipalmenteàscrianças,noinf-
pai./.oScado Bfp
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Sano/piní
í"ma’SqUCeS5asobrasse«ferissemaQuin-
IMdJcrZ/u*
Erasmo
’eramumanovidade.Eramtãonovas
qM.deGrenailleseconsiderouobrigadoadefender-secontra
co
U
enâo
U
u
V
T
naeduca«ã0dajuventudeumassuntoapenaspráti-
coenaoumtemaparaumlivro.HaviaQuintilianoeoutrosmas
haviaalgomaiseoassuntoeraparticularmentegraveparaoscris-
;
aos.JaqueoSenhorchamaasiospequenosinocentesnãocrdo
queseussúditostenhamodireitoderejeitá-fos,nemqueoshomens
devamterrcpu
8nanciaemeducá-los,pois,aofazê-lo,estãoaoenas
muandoosanjos.”Acomparaçãodeanjoscomcriançastornar-se
aumtemaedificantecomum.“Diz-sequeumanjoemformade
aostavade™
n°USaiU0Ag0
í
n
)
h0
’mas
’emcompensação,osanto
gostavadecomunicarsuasabedoriaàscrianças,eemsuaobraen-
contramostratadosdestinadosàscriançasaoladodetratadosdesti-
nadosaosgrandesteologos.”M.deGrenaitlecitaSãoLuísqueredi-
giuumainstruçãoparaseufilho.“OCardealBellarminescreveuum
catecismoparacrianças.”Richeiieu,"essegrandepríncipedalereia
Monlai
trUÇ<
Í
eS

SpeqUenÍnos
’bemcomoconselhosaosmaiores”’
comoarfiiiaííf
6”’qUenã°esperávamosencontraremtãoboa
os^edanS.
PaVa
'
SeC°m°S^eduCadores
’«pecialmente
“ví
Grenadlecontinua:"Nãodevemosimaginarquetodavez
quesefaladainfanciaestá-sefalandodealgofrágil;aocontrário
pretendomostraraquiqueumestadoquemuitosjulgamdesprezível
£P
,
erfeitame
^f
'lastre.”Defato,foinessaépocaquesecomeTou
realmenteafalarnafragilidadeenadebilidadedainfânciaAntesa
infandaeramaisignorada,consideradaumperíododetransiçãora-
pidamentesuperadoesemimportância.Essaênfasedadaaolado
desprezive!dainfanciatalveztenhasidoumaconseqüênciadoespíri-
rear3n
S,CO
r
^
SUamsi
,
stêncianarazâo,masacimadetudofoiuma
çaocontraaimportânciaqueacriançahaviaadquiridodentroda
farmhaedentrodosentimentodafamília.Voltaremosaessenonto
naconclusãodaprimeirapartedestelivro.Lembremosapenasuue
cria
a
nças°wauÍna
aS
F
S

sociaisgostavamdebrincarcomas
ançaspequenas.Essehabitoerasemdúvidaantigo,masnumde
terminadomomentopassouasernotadoapontode
g
provocarirrita-
Xní
1
*”
nasceuessesenpmentodeirritaçãodiantedainfantilida-
e,queeoreversomodernodosentimentodainfânciaAdesesomavaodesprezoqueessasociedadedehomensdoarlivreedeho-
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 139
mensmundanossentiapetoprofessor,omestredocolégio,o"pe-
dante
11
,numaépocaemqueoscolégiossetornavammaisnumerosos
emaisfreqüentados,eemqueainfânciajácomeçavaalembraraos
adultosseutempodeescola.Narealidade,aantipatiapelascrianças
demonstradapelosespíritossériosoupreocupadoséumtestemunho
dopapel-aseuverdemasiadoimportante-reservadoàscrianças.
ParaoautordeLHonnesteGarçon
,ainfânciaerailustregraças
àinfânciadeCristo.Estaera,aliás,interpretadacomoosinaldahu-
milhaçãoaquesesubmeteraCristoadotandonãoapenasanatureza
humana,masacondiçãodecriança-colocando-se,portanto,num
nívelinferioraodoprimeiroAdão,segundoSaoBernardo.Porou-
trolado,haviatambémascriançassantas:ossantosInocentes,as
criançassantasquesehaviamrecusadoacultuarídoloseopequeno
judeudeSãoGregóriodeTours,quequasemorreraqueimadopelo
painumfornoporquesehaviaconvertidoàfécristã.Eupodena
mostraraindaqueatéhojeaFéencontramártiresnascrianças,tanto
quantonosséculospassados.AhistóriadoJapãonosmostraumpe-
quenoLuísque,aos12anosdeidade,mostroumuitomaiscoragem
doquehomensfeitos."NamesmafogueiradeD-CarlosSpínola
morrerraumamulhercom“seufilhinho
11
,oquemostraqueDeus
tiraseuslouvoresdabocadascrianças".Eoautoracumulaosexem-
plosdecriançassantasdosdoisTestamentos,citandomaiseste,tira-
dodahistóriamedievalfrancesaesurpreendentenaliteraturaclassi-
ca:“Nãodevoesqueceravirtudedessesbravosmeninosfranceses
cujoelogiofoifeitoporNauclerus,eque,emnúmerode20.000,par-
ticiparamdeumacruzadanotempodoPapaInocêncíoIIIparatirar
Jerusalémdasmãosdosinfiéis".Acruzadadascrianças.
Sabemosqueascriançasdasgestasedosromancesdecavalaria
secomportavamcomocavaleiros,oqueparaM.deGrenailleera
umaprovadavirtudeedojuízodascrianças.Elecitaocasodeuma
criançaquesetornaracampeãodaImperatriz,mulherdoImperador
Conrado,numduelocontra“umfamosogladiador"."Queseleia
nosÂmadis(nosromancesdecavalaria)sobreoquefizeramosRe-
nauds,osTancrèdes,etantosoutroscavaleiros:alendanãolhesatri-
buimaisvantagensemnenhumcombatedoqueaHistóriarealasse-
guraaessepequenoAquiles."
“Depoisdisso,podealguémdizerqueaprimeiraidadenãoé
comparável,emuitasvezesatémesmopreferívelatodasasoutras?"
“QuemousarádizerqueDeusfavoreceigualmenteascriançaseas
pessoasmaisvelhas?"Elefavoreceascriançasdevidoàsuainocên-
cia,que“seaproximamuitodesuaimpecabilidade".Ascriançasnão
têmpaixãonemvício:"Suavidapareceserditadapelarazão,numa
épocaemqueelasparecemsetmenoscapazesdeutilizaraforçada

140 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
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nd0tlavam™°Peccatummoliicei,
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nformados
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elapsicanálise,nossofi-
da|gode1642pareceestarmaisatrasadodoqueGersonÉquea
própriaideiadedespudoredepecadocarnalporpartedacriaSçao
incomodava,namedidaemqueeraumargumentoutilizadopor
aquelesqueconsideravamainfância"parva”c“viciosa”.
P
ssenovoespiritotambéméencontradoemPort-Roya]exem-
plificadoantesdetudoporSaint-Cyran.SeusbiógrafoslansenX
nosmformamsobreaaltaconsideraçãoemqueeletinhaainfânciae
osdeveresparacomascrianças.“EleadmiravaofilhodeDeusque
dfsseTasrr
taS
T*
deseuministéri
°<nãopermitiuqueseimpe-
dissemascriançasdeseaproximardele,queasbeijavaeasabençca-
tantonosrecomendouquenâoasdesprezássemosounegli-
genciássemos,cque,finalmente,faloudelasemtermostãoelogiosos
esurpreendentes apontodeatordoaraquelesqueescandalSmos
dC
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amt
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Cyraridavasem
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reProvasàscriançasde
umabondadequechegavaaumaespéciederespeito,comofitode
de
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nC383
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cênciac0EsP>'ritoSantoqueasbabitaM
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ncram“ltoesclarecido”e“distantedessasmáximas
mundanas(odesprezodoseducadores), e,comosabiaquãoimpor-
í»mh'J"
°cu
!
dad°eaeducaçãodajuventude,considerava-os
demaneiradlferente.Pormaispenosaehumilhantequefos-
emnrií
aref
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3°S°h°Sd°Shomens
’e,eaindaassimnãodeixavade
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em,n“iK
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Formou
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seassi
™fsaconcepçãomoraldainfânciaqueinsistia
emsuafraquezamaisdoquenaquiloqueM.deGrenaillechamava
desuanaturezailustre”,queassociavasuafraquezaàsuainocên-
cia,verdadeiroreflexodapurezadivina,equecolocavaaeducação
aomJsT
1
?
fie,radas0brigaçôeshuraanas
-Essaconcepçãoreagia
c
t
ontraa‘"diferençapelainfância,contraumsenti-
mentodemasiadoternoeegoístaquetornavaacriançaumbrinque-
mn
°
«•
U
°,
ecut
!
vava86115caPrichos,econtraoinversodesteúlti-
mosentimento,odesprezodohomemracional.Essaconcepçãodo-
minoualiteraturapedagógicadofinaldoséculoXVII.Eisoquees-
creveCouste!em1687emsuasRèglesdeVêducationdesenfants
»
mip!ia«
neCe
-
SldadedC
l
Gamarascriançasevencerarepugnância
rinrh1
msp,rava™30homemracional:“Seconsiderarmosoexte-
riordascrianças,feitoapenasdeimperfeiçãoefraqueza,tantono
23F.Cadel,LEducationàPort-Royal,1887.
24Coustel,Règlesde1'éducationdesenfants
,
1687.
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 141
corpocomonoespírito,écertoquenâoteremosmotivosparalhes
tergrandeestima.Masseolharmosofuturoeagirmossobainspira-
çãodaFé,mudaremosdeopinião”.Alémdacriaqça,veremosentão
o“bommagistrado”,o“bomcura”,o“grandesenhor”.Mas,acima
detudo,devemoslembrarqueasalmasdascrianças,aindaimpreg-
nadasdainocênciabatismal,sãoamoradadeJesusCristo.Deusdá
oexemploordenandoaosAnjosqueacompanhemascriançasemto-
dososseuspassos,semjamaisabandoná-las.”
Esteeraomotivopeloqual,segundoVaretemDeVêducation
chréiiennedesenfants,de1666
25
,“aeducaçãodascriançaséumadas
coisasmaisimportantesdomundo”.E,comoescreveJacqueline
PascalnoregulamentodospequenosinternosdePort-Royal:“Etão
importantecuidardascrianças“quedevemospreferirestaobriga-
çãoatodasasoutrasquandoaobediênciano-laimpõe,e,maisain-
da,atémesmoàsnossassatisfaçõesparticulares,mesmoquandoelas
sereferemacoisasespirituais”.
Nãosetratavadeafirmaçõesisoladas,masdeumaverdadeira
doutrina-geralmenteaceitatantopelosjesuítascomopelosorato-
rianosouosjansenistas-queemparteexplicaamultiplicaçãodas
instituiçõeseducacionaiscomooscolégios,aspequenasescolas^eas
casasparticulares,eaevoluçãodoshábitosescolaresemdireçãoa
umadisciplinamaisrigorosa.
Algunsprincípiosgeraisdecorrentesdessadoutrinafiguravam
comolugares-comunsnaliteraturadaépoca.Porexemplo,nãose
devenuncadeixarascriançassozinhas:esteprincípioremontavaao
séculoXV,eseoriginavanaexperiênciamonástica,massócomeçou
realmenteaseraplicadanoséculoXVII,porquesuanecessidadese
revelouentãoaograndepúblico,enãomaisapenasaumpunhado
dereligiososoude“pedantes”.“Tantoquantopossível,devem-sefe-
chartodasasaberturasdagaiola...masalgumasbarrasdevemser
deixadasabertasparaqueascriançasvivamegozemdeboasaúde;é
assimquesefazcomosrouxinóisparaqueelescantem,ecomospa-
pagaiosparaqueaprendamafalar
J1
.”Essaatitudenãoeradesprovi-
dadefineza,poistantoosjesuítascomoasescolasdePort-Royalha-
viamaprendidoaconhecermelhorapsicologiainfantil.NoRegula^
mentoparaascriançasdePort-RoyaldeJacquelinePascal,le-se:E
precisovigiarascriançascomcuidado,ejamaisdeixá-lasSozinhas
25Varei,DeVêducationchrêtiennedesenfants
,1666.
26JacquelinePascal,Règlementpourtesenfants.AppendiceauxConstitutionsdePort-
Royal,1721.
27F.Cadet,op.cit

142 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
nenhu
,
rn
!
u
Ê
ar
>estejamelassãsoudoentes".Mas"éprecisoque
essavigilânciacontínuasejafeitacomdoçuraeumacertaconfiança
quefaçaacriançapensarqueéamada,equeosadultossóestãoà
seuladopeloprazerdesuacompanhia.Issofazcomqueelasamem
essavigdancia,emlugardetemê-la
2,,
\
Essaprincípioseriaabsolutamente gerai,massóseriaaplicado
aopedaletranosinternatosjesuítas,nasescolasdePort-Royaleem
algumaspensõesparticulares,ouseja,emestabelecimentosqueabri-
gavamapenasumpequenonúmerodecriançasricas.Comissopre-
tendia-seevitarapromiscuidadedoscolégios,quedurantemuito
tempotiverammareputação-naFrança,graçasaosjesuítas,duran-
temenostempodoquenaInglaterra."Assimqueascrianças,escre-
veCoustel
,poemopenessetipodelugar(‘aenormemultidãode
alunosedecolégios
),elasnãotardamainocência,asimplicidadeea
modéstiaqueastornavamantestãoamáveisaosolhosdeDeusedos
homens
.Haviaumarelutânciageralemconfiarascriançasaumú-
ntcoperceptor:aextremasociabilidadedoscostumesopunha-sea
essasolução.Considerava-se convenientequeacriançaaprendesse
desdemuitocedoaconheceroshomenseasedarcomeles;issoera
muitoimportante,maisnecessáriodoqueolatim.Valiamaisapena
colocarcincoouseiscriançascomumoudoishomensdebem
numacasaparticular", idéiaestajáencontradaemErasmo.
Osegundoprincípiorezavaquesedeveriaevitarmimarascrian-
ças,habituando-asdesdecedoàseriedade:“Nãomedigasquesão
apenascriançasequeéprecisoterpaciência.Poisosefeitosdacon-
cupiscênciajáaparecembastantenessaidade”.Tratava-sedeuma
reaçãocontraa“paparicação”dascriançasdemenosdeoitoanos,e
contraaopiniãodequeelasaindaerammuitopequenasparaserem
repreendidas.LaCivilitéNouvelle,deCourtin,de1671
J
°,explicalon-
gamenteessavisão:“Deixa-sequeessespequenosespíritospassemo
temposemprestaratençãoaoqueébomoumau.Tudolhesépermi-
tido,indiferentemente.Nadalheséproibido:elesriemquandode-
viamchorar,choramquandodeviamrir,falamquandodeviamcalare
ficammudosquandoaboaeducaçãoosobrigaaresponder(erajáo
merci,momieur
'
dascriançasfrancesas,quesurpreendeeescandali-
zaospaisdefamílianorte-americanos). Deixá-losviverdessaforma
esercruelparacomeles.Ospaiseasmãesdizemque,quandoelesfi-
caremgrandes,serãocorrigidos.Seriamaisapropriadoagirdemodo
quenãohouvessenadaacorrigir.”
28JacquelínePascal,op,cií.
29Coustel,op>cit.
30LaCiviíítênouveíle,Basiléia,1671.
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 143
Terceiroprincípio:orecato,a“grandemodéstia”docomporta-
mento.EmPort-Royal,
31
,“logoquesedeitam,ascriançassãoFiel*
mentevisitadasemcadacamaemparticular,paraseverificarsees-
tãodeitadascomamodéstiarequeridaetambémparaverseestão
bemcobertasnoinverno.Umaverdadeiracampanhadepropaganda
tentavaextirparohábitoenraizadodedeitarváriascriançasnames-
macama.EsseconselhoserepetiuaolongodetodooséculoXVILÉ
encontradoainda,porexemplo,emLaCivilitéChrêtiennedeJ.-B.de
LaSalle,cujaprimeiraediçãodatade1713:“Anâoserqueseesteja
comprometido pelocasamento(hojeemdia,nãosepensariaemin-
troduziressaressalvanumlivrodestinadoàscrianças,mas,naépo-
ca,oslivrosdestinadosàscriançasnãoselimitavamaelas,eosimen-
sosprogressosdadecênciaedopudornãoimpediamliberdadesque
hojenãoseousariamaistomar),nãosedeveirparaacamanafrente
denenhumapessoadosexooposto,poisissoéabsolutamentecon-
trárioàprudênciaeàhonestidade.Émuitomenospermitidoaindaa
pessoasdesexosdiferentesdormiremnamesmacama,mesmoquese
tratedecriançasbempequenas,poisnãoédecentequeatémesmo
pessoasdomesmosexodurmamjuntas.Estassãoduascoisas^que
SãoFranciscodeSalesrecomendou particularmente aM
m
de
Chantalcomrelaçãoàscrianças”.E:“Ospaiseasmãesdevemensi-
narseusfilhosaesconderoprópriocorpoaosedeitar”.
Essapreocupaçãocomadecênciaapareciatambémnaescolha
dasleiturasedasconversas:“Ensinai-osaleremlivrosondeapure-
zadelinguagemcoincidacomaseleçãodebonstemas”*“Quando
elescomeçaremaescrever,nãopermitisqueseasexemplostraduzam
umamaneirafeiadefalar
32
”.Estamoslongeaquidaliberdadede
linguagemdeLuísXIIIcriança,quedivertiaatémesmoodignoHe-
roard.Deveríamserevitadostambémosromances,obaileeacomé-
dia,quetambémeramdesaconselhados aosadultos*Dever-se-ia
prestaratençãoàscanções,umaprecauçãomuitoimportanteene-
cessárianumasociedadeemqueamúsicaeratãopopular:“Tende
umcuidadotodoespecialemimpedirquevossosfilhosaprendam
cançõesmodernas Masasvelhascançõestambémnãovaliam
maisdoqueestas:“Entreascançõesquesãocomunsatodaasocie-
dadeequeseensinamàscriançasassimqueelascomeçamafalar...
quasenãoexistenenhumaquenãoestejacheiadasdifamaçõesedas
calúniasmaisatrozes,equenãosejaumasátiramordaz,emquenâo
sepoupamnemapessoasagradadosoberanonemosmagistrados
31JaequelinePascal*op
.cií,
32Varet,op,c/í*
33Ibid.

144 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
ouaspessoasmaisinocentesedevotas".Essascançõesexprimem
paixõesdesregradas"eestão“cheiasdeequívocosindecentes
M*\
SãoJoãoBatistadeLaSaile,noiníciodoséculoXVIII
3i
,man-
tinhaessadesconfiançacomrelaçãoaosespetáculos:“Nãoémais
decenteparaumcristãoassistirarepresentaçõesdemarionetes(do
queassistiràcomédia)”.“Umapessoasábiadeveolharessetipode
espetáculoapenascomdesprezo...eospaiseasmãesjamaisdevem
permitirqueseusfilhosaelesassistam”.Ascomédias,osbailesas
dançaseosespetáculos"maisordinários”“dossaltimbancos edos
lunambulos eramproibidos.Erampermitidosapenasosjogos
educativos,ouseja,qsjogosquehaviamsidointegradosnaeduca-
ção:todososoutroseramsuspeitos.
Umaoutrarecomendaçãoreaparecemuitasvezesnessaliteratu-
rapedagógica,extremamentepreocupadacoma“modéstia”:não
deixarascriançasnacompanhiadecriados.Essarecomendação ia
contraumcostumeabsolutamente geral:“Nãoosdeixeissozinhos-
aomenos,deixai-osomenospossível-comoscriados,esobretudo
comoslacaios(osservidoresdomésticostinhamumsentidomais
amplodoqueoatual;compreendiamtambémos“colaboradores”,
comodiríamoshoje,equepodiamserparentes).Essaspessoas,para
seinsinuaregarantirumlugarnoespíritodascrianças,emgeralsó
lhescontambobagensesólhesinspiramamoraojogo,aodiverti-
mentoeàvaidade.
3*
,
\
AindanoiníciodoséculoXVIII,ofuturoCardealdeBernis,
lembrando-sedesuainfância(nasceraem1715)”,dizia:“Nadaé
maisperigosoparaoscostumesetalvezparaasaúdedoquedeixar
ascriançasmuitotemposobatuteladoscriadosdequarto”.“Ousa-
sefazercomumacriançacoisasqueseteriavergonhadearriscarcom
umrapaz."Estaúltimafrasereferia-sedaramenteàmentalidadeque
analisamosacimanacortedeHenriqueIVenobondedeCartagono
séculoXX.Essamentalidade persistiaentreopovo,masnãoera
maistoleradanosmeiosevoluídos.Ainsistênciadosmoralistasem
separarascriançasdessemundodiversodoscriadosmostraoquanto
elesestavamconscientesdosperigosqueapresentavaessapromiscui-
dadedascriançascomoscriados,elespróprioscomfreqüênciamui-
tojovens.Osmoralistasqueriamisolaracriançaparapreservá-ladas
34fbid.
35Jean-BaptistedeLaSalie,LesRéglesdelabiensêaneeetdelaciviUtéchrêtienneA
primeiraediçãoéde1713.
36Varet*op.cií.
37MêmoiresducardinaldeBemis,2voís.,1878.
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 145
brincadeirasedosgestosqueentãopassaramaserconsiderados in-
decentes. .
Oquartoprincípioeraapenasumaoutraaplicaçaodapreocu-
paçãocomadecênciaecoma“modéstia* :extinguiraantigafamilia-
ridadeesubstituí-laporumagrandereservanasmaneirasenalin-
guagem,mesmonavidaquotidiana.Essapolíticasetraduziupela
lutacontraoempregodopronome tu.Nopequenocolégiojansems-
tadeChesnay
M
,“Havia-sedetalformahabituadoascriançasase
trataremcomrespeitoumasàsoutras,queelasnuncasetratavam
portu,enuncadiziamqualquerpalavraquepudessemconsiderarde-
sagradávelaalgunsdeseuscompanheiros «
Ummanualdecivilidadede1671
19
reconhecequeaboaeduca-
çãoexigeotratamentovous
,mastemdeadmitir,nãosemumcerto
embaraço,algumasconcessõesaoantigocostumefrancês:“Normal-
menteseusaopronomevotzsenãosedevetratarninguémportu-a
nãoserumacriançapequena,quandoaquelequefalaémuitomais
velho,equandoocostumeentreosmaiscorteseseosmaisinstruídos
éfalardessamaneira.Contudo,ospaisquesedirigemaosfilhosate
umacertaidade-naFrança,atéelesseemanciparem-osmestres
quesedirigemaseuspequenosalunoseoutraspessoasemposição
superiorsemelhante,segundoocostumemaiscomum,parecemtero
direitodeempregarapenastuetoi
*enocasodeparentesamigos
queconversamjuntos,emcertoslugaresocostumepermitequeeles
setratemmaislivrementeportuetoi\nosoutroscasos,deve-seser
maisreservadoecivilizado”.
Mesmonaspequenasescolas,ondeascriançassãomenores,Sao
JoãoBatistadeLaSalleproíbeaosmestresousodotratamento tu\
“Elessódevemfalaràscriançascomreserva,semjamaistratá-las
portuoutoUoquerevelariaumafamiliaridadeexagerada*’,Ecerto
quesobumatalpressão,oempregodovoustornou-semaiscomum,
FicamossurpresosaolernasmemóriasdoCoronelGuérard,doum
doséculoXVIII,quedoissoldadosamigos,umde25eoutrode23
anos,tratavam-seporvous.Aomenos,oCoronelGuérardusavao
voussemparecerridículo.
NoSaint-CyrdeM

deMaintenon, asmoçasdeviamevitar
“tratar-seportuouíoí,eadotarmaneirascontráriasaodecoro
.
“Oadultonuncadeveacomodar-seàscriançasatravésdeumalm-
38RegulamentodocolégiodeChesnay,inWallondeBeaupuis.Suitedesviesdesamis
deForí-Royal, 1751,vofI,p.175.
39Cfnota30,destecapítulo.
40Th-Lavailée,HistoiredelamaisonroyaledeSaint-Cyr,1862.

146 históriasocialdacriançaedafamília
guageminfantiloudemaneiraspueris;deve,aocontrárioelevá-las
aoseunível,faiando-lhessempredemodorazoável.”
cdoSvTÍÍÜ?
dÍál°g0Sd®Cordier
’dase
«undametadedosé-
SinnIVv
traíavam
P,
or notemofrancês,emboranotexto
latinosetratassemnaturalmeoteportu
aouí^tril.nV.T
Pr
f
OCUpacâocomagravidade,queanalisamos
tSln u
realmentenosecuioXIX,apesardaevoluçãocon-
ríirin
ede
Pedagogia™überalemajsnatura-
‘a.Umprofessordefrancêsnorte-americanochamadoLWvlie
FrínSTri-
S
A
bàÚ
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dc195°-1951numaaldeiadoSuldà
dnça,participandodavidaquotidiana,ficouespantadocomase-
com*™^
qUC°SmCSÍreSdaCSCola
Primáriatratavamosalunos,e
comqueospaiscamponesestratavamseusfilhos.Ocontrastecomo
espiritonorte-americano
pareceu-lhegrande:“Cadapassonodesen-
™'V™e"t0dac"ança
Parecedependerdodesenvolvimento daquilo
?adaL?
SSOa
L
ChamamdCSUaraison-"“
Acriançaéentãoconside-
radaratsonnableeespera-sequepermaneçaraisonnabie"
.Essarai-
f*’
esseautocontroleeessaseriedadequeseexigemdacriançafran-
desdem
.
ult0cedo
>enquantoelapreparaseucertificadodeestu-
dos,equenaoexistemmaisnosE.U.A.,sãooresultadofinalda
2r f
,niC1
?
n
°
í
md0sécuI°XVI
Pelosreligiososepelosmo-
ralistasreformadores.Esseestadodeespírito,aliás,começaadesa-
dasCldadesfrancesas:elesósubsistenocampo,ondeoob-
servadornorte-americano oconstatou.
Osentidodainocênciainfantilresultouportantonumadupla
atitudemoralcomrelaçaoàinfância:preservá-ladasujeiradavida!e
t
P
^
ia
,
m
f
ntedasex,Jalidadetolerada-quandonãoaprovada-en-
osadultos,efortalece-la,desenvolvendoocaráterearazão.Pode
parecerqueexisteaiumacontradição,poisdeumladoainfânciaé
essa
8
cnnf
d
4d
C °Utr°6t0madamaisvelhado^realmenteé.Mas
essacontradiçãosoexisteparanós,homensdoséculoXX.Nosso
'Jf"
-
meatocontemporâneodainfânciacaracteriza-seporumaasso-
'S
da,nfanc
.
,aaoPrimitivismo eaoirracionaÜsmo oupré-
sJnl!?yv
S
h

ldCiasurglucomRousseau,maspertenceàhistóriado
XXHa
,
aPenasmuitopoucotempoelapassoudasteoriasdos
psicólogos,pedagogos,psiquiatrasepsicanalistasparaosensoco-
mum.Eessaideiaqueserveaoprofessornorte-americano Wvlie
comopontodereferenciaparaavaliaraatitudediferentequeeleen-
contranumaaldeiadaregiãodeVaucluse.Enessaidéiareconhece-
mostambémasobrevivênciadeumoutrosentimentodainfância di-
ferenteemaisantigo,quesurgiunosséculosXVeXVIesetornou
geralepopularapartirdoséculoXVII.
Nessaconcepção,quenospareceantigasecomparadaànossa
mentalidadecontemporânea,masqueeranovaemcomparaçãocom
DODESPUDORÃINOCÊNCIA 147
aIdadeMédia,asnoçõesdeinocênciaederazãonãoseopunham.Si
puerproutdecet,vixiteratraduzidonummanualdecivilidadefrancês
em1671por"seacriançaviveucomoumhomem”

Sobainfluênciadessenovoclimamoral,surgiuumaliteratura
pedagógicainfantildistintadoslivrosparaadultos.Entreamassade
tratadosdecivilidaderedigidosapartirdoséculoXVI,émuitodifícil
reconhecerosquesedirigiamaosadultoseosquesedirigiamàs
crianças.Essaconfusãoseexplicaporrazõesligadasàestruturada
famíliaeàsrelaçõesentreafamíliaeasociedade-queserãoexami-
nadasnaúltimapartedesteestudo.
AolongodoséculoXVII,essaconfusãoseatenuou.Ospadres
jesuítaspublicarammanuaisdecivilidadeouadotaramosexistentes
comolivroshabituais,aomesmotempoemquerealizaramexpurgos
nosautoresantigosoupatrocinaramtratadosdeginástica:umexem-
ploéolivroBiensêancedelaconversaiionentreleshommes",publi-
cadoem1617emPort-à-MoussonparaosinternatosdaCompanhia
deJesusemPont-à-Mousson eLaFlèche.AsRèglesdelabiensêance
etdelacivilitêchrêtienne
,destinadasàsescolascristãsdemeninos,de
SãoJoãoBatistadeLaSalle,publicadasem1713,seriamreeditadas
aolongodetodooséculoXVIIIemesmonoiníciodoséculoXIX:
foiumlivrodurantemuitotempoconsiderado clássicoecujain-
fluênciasobre*oscostumesfoisemdúvidaconsiderável.Contudo,
mesmoesselivroaindanãosedirigiadeformadiretaeabertaas
crianças.Certosconselhosdestinavam-semaisaospais(enoentan-
to,tratava-sedeumlivroondeascriançasaprendiamaler,umlivro
queforneciaexemplosdeescrita,serviademodelodecondutaeque
elasdeviamaprenderdecor),oumesmoaadultosaindamalinstruí-
dosemquestõesdeboasmaneiras.Essaambigüidade sedissiparia
nosmanuaisdecivilidadedasegundametadedoséculoXVIfl.^Eis
umdeles,ummanualdecivilidade“pueriledecente”de1761","pa-
raainstruçãodascrianças,apresentandonoinícioumaformade
aprenderaler,pronunciareescrevercorretamente,novamentecorri-
gido(poistodosseapresentavamcomoreediçõesdosvelhosmanuais
decivilidadedeCordier,ErasmooudoGalatéc.ogêneroeratradi-
cional,etodaanovidadeeramontadasobreumatramaantiga,don-
deapersistênciadecertossentimentosquesemdúvidahaviamsaído
41L.Wylie,VillageintheVaucluse ,Cambridge,EUA,1957*
42Bienséflticedelaconversãtioti etttreleshowtfties,Pont-à-Mousson*1617.
43CivilitêpuerileethonnêtepourVinstrucüondesenfants,escritaporummissionário*
1753,

148 históriasocialDACRIANÇAedafamília
demoda)eaumentadonofinalcomumbelotratadodeortoarafia
naSosà^leZde^o"?'
10^
PFeCCÍt°SCinstru
«õesaseremensi-
àscriancasd-nmmh
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seránSfil^rlT.i
sem.mental:“Aleituradestelivronãovos
crianças
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‘‘Caír^
35,*V°Sensinará"Observaicontudo,caras
mãodeJesusCr
1™"''’ considerocomofilhodeDeuseir-
aoaeJesusCristo,começaicedoapraticarobemPretendoensi
nar.vosasregrasdeumcristãodecente.""Assimqoevosíevanta
-
viam1e°dailhes
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CrUZ
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verdesno devossopaie
vossamae,dai-lhesbom-diaasegur.”Naescola“Nãn
vossoscompanheiros...""NãocurseisSa-^^S
comtantafacilidadeaspalavrastuetoi"...Masessadoçuraee-sa
caráterrazão°ed’’
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XVHI6mnadadimi"uet"oidealde
íw ,
'razaoed,gmdadequeoautordesejadespertarnacrianca-
Minhascarascrianças,nàosejaisdaquelasqueTalamsemcessaíe
promíssas3sa°
S°UtrOS
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dlZCr°qUCpensam

“Cumprivossas
sécuToXVII
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h°memdebsm”0Espíritoaíndaé0do
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'°domini°dascriançasestavabemseparadododosadul-
,

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arestavamestranhosresquíciosdaantigaindiferença
dasidades.Durantemuitotempo,ensinou-seolatimeatémesmoo
jPl°
f.
sCnanças dísticosfalsamenteatribuídosaCatãoOpseu-
do-CataoestacitadonoRomandelaRose.Essehábitopersistiuao
menosdurantetodooséculoXVII,eem1802aindaexistiaumaedi-
çãodessesdísticos.Oespiritodessasrecomendaçõesmoraisextrema
mentecruaseraoespíritodoImpérioBizantinoedTldádeMédia'
quesimplesmenteignoravam adelicadezadeGerson,deCordier’
XVn^PorTantí
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Royai
’emsuma
-detodaaopiniãodoséculo
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35CrÍanÇastraduziremmáximas
genero.Naoacreditesemtuaesposaquandoelasequeixarde™Cr
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’muitasvezesamulherdetestaaqueleque
gostadomarido”.Ouainda:“Nãoprocuresatravésdesortléglos
conhecerosdesígniosdeDeus”“Fogedaesposaquetedominaria
emnomedeseudote;nãoaretenhasseelasetornarinsuportável"
Êverdadeque,nofimdoséculoXVI,sehaviamconsideradoin-
suficientesessashçoesdemoralidade, e,poressarazão,forampro-
postasascriançasasquadrasdePibrac,escritasnaépocadentrodeumespiritommscnstao,maisedificanteemaismoderno.Contudo
quadrasdeP'bracnaotomaramolugardopseudo-Catão,apenas
somaram-seaeleateoiníciodoséculoXIX:asúltimasediçõeswco-
Uresaindacontinhamosdoistextos.Opseudo-Catão ePibraccai-
riamjuntosentãonoesquecimento.
DODESPUDORAINOCÊNCIA 149
AessaevoluçãodosentimentodainfâncianoséculoXVIIcor-
respondeuumanovatendênciadadevoçãoedaiconografiareligio-
saAítambémacriançairiaocuparumlugarquasecentral.
ApartirdoiníciodoséculoXVII,apintura,agravuraeaescul-
turareligiosaspassaramadarumagrandeimportânciaàrepresenta-
çãodomeninoJesusisolado,enãomaisjuntodaVirgemounomeio
daSacraFamília.ComopodemosvernoVanDyckdeDresden,o
meninoJesusemgeralaparecenumaatitudesimbólica:calcauma
serpentecomopé,apóta-senumglobo,seguraumacruzcomamão
esquerdaecomadireitafazogestodabênção.Essacriançadomina-
doraergue-sesobreosportaisdasigrejas(comonaigrejadeDalbade
deToulouse).Umadevoçãoparticularpassouentãoaserdirigida&
infânciasagrada.Elajáhaviasidopreparada,aomenosiconografi-
camente,portodasassagradasfamílias,asapresentações eascircun-
cisõesdosséculosXVeXVI.Mas,noséculoXVII,elaadquiriuum
acentomuitodiferente.Essetemajáfoibemestudado.Gostaríamos
apenasdedestacaraquiarelaçãoqueimediatamente seestabeleceu
sntreessadevoçãodasantainfânciaeograndemovimentodeinte-
ressepelainfância,decriaçãodepequenasescolasecolégiosede
preocupaçãopedagógica.OcolégiodeJuillyfoidedicadopeloCar-
dealdeBérullcaomistériodomeninoJesusEmseusregulamentos
paraasmeninasinternasdePort-Royal,JacquelinePascalinseriu
duasorações,umadasquais
45
étambémumaprece“emhonrado
mistériodainfânciadeJesusCristo".Elamerecesercitada:"Sede
comoascriançasrecém-nascidas”. “Fazei,Senhor,comquesempre
sejamoscriançaspelasimplicidade eainocência,assimcomoaspes-
soasdomundosempreosãoporsuaignorânciaefraqueza.(Reen-
contramosaquiosdoisaspectosdosentimentodainfânciadoséculo
XVIII,ainocênciaqueéprecisoconservareaignorânciaouafra-
quezaqueéprecisosuprimiroutornarrazoáveis.)Dai-nosumain-
findasanta,queocursodosanosnâonospossatirarcdaqualja-
maispossamospassaràvelhicedoantigoAdão,nemàmorteempe-
cado;masquenostornecadavezmaisnovascriaturasdeJesusCris-
toenosconduzaàsuaimortalidadegloriosa/
UmacarmelitadoconventodeReaune,Margueritedubaint-
Sacrement,erafamosaporsuadevoçãoàsantainfância.Nícoias
Rolland fundadordeváriaspequenasescolasnofimdoséculo
XVII,fezumaperegrinaçãoaseutúmulo.Nessaocasião,asuperiora
44H.Bremond,HistoireHttêrairedusentimentreligieux,1921,vol.III,p.512,
45JacquelinePascal,op.clL
46Rigault,Histoiregênéraledesfrèresdesécoleschretlemes,1937,vol,l.

150 históriasocialdacriançaedafamília
doconventodascarmelitasdeu-lhe“umaimagemdomeninoJesus
queavenerávelirmãMargueritecostumavareverenciarcomsuas
ongaspreces
,Asfundaçõesdosinstitutosdeensino,comooscolé-
gios«atorianosdoCardealdeBérulle,foramdedicadasàsantain-
tancm:em 1685,opadreBarréregistrouosStatusetRèglementsdas
escolascristasecaridosasdoSantoMeninoJesus.AsDamasde
Samt-Maur,modelodascongregaçõesdedicadasaoensinointitula-
ram-seoficialmente institutodoSantoMeninoJesusOprimeiro
selodaInstituiçãodosIrmãosdasEscolasCristãs,dosIrmãosIgno-
rammhos,representavaomeninoJesusconduzidoporSãoJosé.
AliteraturamoralepedagógicadoséculoXVIImuitasvezes
citatambémtrechosdoEvangelhoemqueJesusfazalusãoàscrian-
ças.EmlHonnesteGarçon citadoacima,lê-se:“JáqueoSenhor
chamaasiospequenosinocentes,consideroquenephumdeseussú-
ditostemodireitoderejeitá-los”.AoraçãoqueJacquelinePascalin-
serenoregulamentodascriançasdePort-Royalparafraseiasenten-
çasdeCristo.“Sedecomocriançasrecém-nascidas”. “Senãovos
tornardescomoasCrianças,nãoentrareisnoReinodoscéus.”Eo
Ima!dessaprecelembraumepisódiodoEvangelhoquenoséculo
XVIIconheceuumanovasorte:“Senhor,concedei-nosagraçadees-
tarmosentreasCriançasquechamaisavós,quemandaisseaproxi-
mardevos,edecujabocatiraisvossoslouvores”.
Acenaemquestão,emqueJesuspedequesedeixeviraeleas
criancinhas,nãoeraabsolutamentedesconhecidadaiconografiaan-
tiga;játivemosaocasião
46
demencionarumaminiaturaotoniana
emqueascriançaseramrepresentadascomoadultosdetamanhore-
duzidoemtornodeCristo.Reconhecemostambémrepresentações
dessacenanasbíbliasmoralizadasdoséculoXIII-maselas,alémde
poucofrequentes,sãotratadascomoilustraçõesbanais,semquede-
lassedesprendaumsentidoouumfervor.
ApartirdofimdoséculoXVI,aocontrário,talcenareaparece
comfrequência,sobretudonagravura,eéevidentequeelacorres-
pondeaumaformaespecialenovadedevoção.Issoficaclaroquan-
doexaminamosumabelaestampadeStradan,cujasgravurascomo
sabemos,inspiraramosartistasdaépoca*.Otemadefinidopelale-
genda:Jesusparmlisoblatisimposuitmanusetbenedixiteis(Mateus,
39;Marcos,60;Lucas,18).Jesusestásentado.Umamulherlheapre-
sentaseusfilhos,algunspuninus.Outrasmulheresecriançasespe-
47DeGrenaille,op
rciL
48Cf.Parte l
tcap.2.
49Stradan
(1523-1605),gravura,CabinetdesEstampes,Cc9in-fv,
p.239,
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 151
ramsuavez.Observemosque,aqui,acriançaestáacompanhadada
mãe:nasrepresentaçõesmedievais,maisconformesàliteralidadedo
texto-umtextoquenãoestimulavaaimaginaçãodosartistasapon-
todeincitá-losainventarporcontaprópria-ascriançasapareciam
sozinhasemtornodeCristo.Aqui,porém,acriançanãoseseparade
suafamília,oqueindicaanovaimportânciaadquiridapelafamília
nasensibilidadecomum.Umapinturaholandesade1620reproduza
mesmacena Cristoestáacocoradonomeiodeumamultidãode
criançasquesecomprimemàsuavolta.Algumasaindaestãonocolo
damãe.Outras,nuas,brincamelutam(otemadalutadosputtiera
frequentenaépoca),ouchoramegritam.Asmaiores,maisreserva-
das,estãodemãospostas.AexpressãodeCristoaparecesorridentee
atenta:amesmamisturadediversãoeternuraqueosadultosadotam
parafalarcomascriançasnasépocasmodernas,esobretudonosé-
culoXIX.Eleestácomumadasmãossobreumacabecinhaeerguea
outraparaabençoarumacriançaquecorreemsuadireção.Essa
cenasetornoupopular:éprovávelqueosadultosdessemàscrianças
gravurasrepresentando-a, assimcomomaistardelhesdariamsanti-
nhosdeprimeiracomunhão.Umaexposiçãoconsagradaàimagem
dacriança
5l
,
realizadaemToursem1947,mostraemseucatálogo
umagravuradoséculoXVIIIquerepresentaomesmotema.
Estabeleceu-se nessamesmaépocaumareligiãoparaascrian-
ças.eumanovadevoçãolhesfoipraticamentereservada-adevoção
doanjodaguarda.“Diriaainda”,lemosemLHonnesteGarçon”,
“que,emboratodososhomenssejamacompanhadosporessesespí-
ritosbem-aventurados quesetornamseusministrosafimdeajuda-
losaseremcapazesdereceberaherançadasalvação,parecequeJe-
susCristoconcedeuapenasàscriançasoprivilégiodeteranjosda
guarda.Nãoéquenósnãoparticipemosdessefavor;masosadultos
devemessebeneficioàsuainfância.”Porseulado,osanjospreferem
a“suavidade”dascriançasà“revoltadoshomens”.EFleury,em
seuTraitédesétudesde1686”,afirmaque“oEvangelhonosproibe
desprezarascriançaspelaaltaconsideraçãoqueelasrecebemdosan-
josbem-aventurados queasguardam".Afiguradaalmaconduzida
porumanjo,representadasobaformadeumacriançaoudeum
adolescente,tornou-sefamiliarnaiconografiadosséculosXVIe
XVII.Conhecem-seváriosexemplos,comoododominicano dapi-
50
Voicskert(1585-1627),reproduzidoemBerndl,n»871.
5ÍCatálogo 106.
52M,deGrenaille,op.cit.
,
53Fleury,Traitéduchoixetdelamêtkodedeseludes
\
1636.
54Nápoles,pinacoteca.
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152 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
nacGíecadeNápoles:umacriancinhavestindoumacamisacortada
empanoséprotegidaporumanjo,ummeninoumpoucoefeminado
de 13-14anos,dosataquesdodemônio,umhomemmaduroquea
persegue.Oanjoestendeseuescudoentreacriançaeohomemma-
duro,fornecendoumailustraçãoinesperadadafrasedeUHonneste
Garçon."Deuspossuiaprimeiraidade,masoDiabopossuiemmui-
taspessoasasmelhorespartesdavelhiceedaidadequeoApóstolo
chamaderealizada”.
OantigotemadeTobiasconduzidopeloanjoapartirdeentão
passouasimbolizaropardaalma-criançaeseuguia,canjodaguar-
da.Comoexemplos,temosabelateladeTournierrecentementeex-
postaemLondreseParis(1958),eagravuradeAbrahamBosse

.
NumagravuradeMariette

,oanjomostraàcriançaporelecondu-
zidaumacruznocéu,levadaporoutrosanjos.
Essetemadoanjodaguardaedaalma-criançaerautilizadona
ornamentaçãodaspiasbatismais,comopudeobservarnumaigreja
barrocadaAlemanhameridional,aigrejadaCruzemDonaüworth.
Atampadapiaéencimadaporumgloboemtornodoqualseenrola
aserpente.Emcimadoglobloestáoanjo,umrapazinhoumpouco
efeminado,queguiaaalma-criança.Nãosetrataapenasdeumare-
presentaçãosimbólicadaalmasobaaparênciatradicionaldacriança
(esserecursoàcriançapararepresentaraalmaé,aliás,umacuriosa
idéiamedieval)-trata-sedailustraçãodeumadevoçãoparticularda
infância,derivadadosacramentodobatismo:oanjodaguarda.
EsseperíododosséculosXVIeXVIIfoitambémaépocadas
crianças-modelo.OhistoriadordocolégiodosjesuítasdaLaFlè-
che
'
’conta,segundoosanaisdaCongregaçãodeLaFlèchede1722
(porconseguinte,cercade50anosapósoacontecimento), avidaedi-
ficantedeGuiliaumeRuffin,nascidoem19dejaneirode1657.Em
1671.aos14anos,omeninoestavanoprimeiroanocolegial.Perten-
cia,éclaro,àCongregação(associaçãodevotareservadaaosbons
alunosecolocadasobaproteçãodaVirgem:elaaindaexiste,acredi-
to,noscolégiosjesuítas).Visitavaosdoentesedistribuíaesmolasaos
pobres.Em1674,estavaterminandoseuprimeiroanodefilosofia(e-
ramdois,naépoca)quandocaiudoente.AVirgemlheapareceuduas
vezes.Elefoiprevenidodadatadesuamorte,“nodiadafestademi-
55Tournier,LAngegardíen
,Narbonne,1656-1657.ExposiçãodoPetitRalais.
195M,n
ç
139.AbrahamBosse,gravura,CabinetdesEstampesEd.30ain-fv,GD127.
56Mariette,gravura.CabinetdeEstampes,Ed.82Ín-P.
57C.deRochemonteinx,UncollègedejésuttesauxXVIIF-XVW* siècles.Lecollèg<
HenríIVdeLaFlèche
,LeMans,1889,4vols.
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 153
nhaboaMãe”,nodiadaAssunção.Aoleressetexto,confessoque
nãopudedeixardemelembrardeumepisódiodeminhaprópriain-
fância,numcolégiojesuítaondealgunsmeninosfaziamcampanha
pelacanonizaçãodeumalunopequenoquehaviamorridoháalguns
anosnumclimadesantidade,aomenossegundoaopiniãodesua
família.Podia-semuitobemchegaràsantidadeduranteumacurta
vidademeninodeescolaeissosemprodígiosexcepcionaisoupreco-
cidadeparticular:aocontrário,atravésdasimplespráticadasvirtu-
desdainfância,dasimplespreservaçãodainocênciaoriginal.Este
foiocasodeSãoLuísGonzaga,tantasvezescitadonaliteraturado
séculoXVIIreferenteaosproblemasdaeducaçao.
Alémdavidadospequenossantos,ofereciam-se ascrianças
comotemaedificanteashistóriasdajuventudedossantosadultos
-
oudeseusremorsosporsuajuventudedesregrada.Lemosnosanais
docolégiodosjesuítasdeAix,de1634:“Nossajuventudenaodeixou
deouvirseussermõesduasvezesporsemanaduranteaquaresma.
FoiopadredeBarry,oreitor,quemlhesfezasditasexortações,ten-
doescolhidocomotemaosfeitosheróicosdossantosemsuajuven-
tude”.Naquaresmaanterior,de1633,oreitor“haviaescolhido
comotemaosremorsosdeSantoAgostinhoporsuajuventude .
NaIdadeMédia,nãoexistiamfestasreligiosasdamfânaaalem
dasgrandesfestassazonais,geralmentemaispagãsdoquecristãs.A
partirdoséculoXV,comojáobservamos,osartistascomeçarama
representar certosepisódios,comoaapresentaçãodavirgeme
sobretudoacircuncisão,nomeiodeumaplatéiadecriançasmaisnu-
merosadoqueasgeralmenterepresentadasentreasmultidõesda
IdadeMédiaoudoRenascimento.MasessasfestasdoAntigolesta-
mento,emborasetivessemtornadofestasdaintâncianaiconografia
religiosa,nãopodiammaisdesempenharomesmopapelnavidareli-
giosareal,sobretudonavidareligiosarefinadadoséculoXVT1tran-
ces.Aprimeiracomunhão iriatornar-seprogressivamente agrande
festareligiosadainfância,econtinuariaasê-toatéhoje,mesmonos
lugaresemqueapráticacristãnãoémaisobservadacomregularida-
deHojeemdiaaprimeiracomunhãosubstituiuasantigasfestasfol-
clóricasabandonadas.Talvezeladevaessapersistência,adespeito
dadescristianização, aofatodeserumafestaindividualdacriança,
celebradanaigreja,écerto,massobretudonaintimidade,dentroda
família:asfestasmaiscoletivasforamasquedesaparecerammaisde-
pressa.
5HMeehin,AnnaíesducolfégeroyalBourbonAix,1892,2vols.,vtjl.I,
p
89-

154 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
...
Acelebraçaomaissolenedaprimeiracomunhãofoiumaconse-
RnvS
,a
^
da atenÇ

quesedis
P
e«sou,sobretudoemPort-
yal,ascondiçoesexigidasparaacriançareceberbemaEucaristia
Naohouveummovimentonosentidodetornaracomunhãomenos
frequente,esimnosentidodetorná-lamaisbempreparadamais
conscienteemaisefizaz.Êprovávelqueoutroraascriançasrecebes-
semacomunhãosemumapreparaçãoespecial,assimquecomeça-
vamairamissa,ecertamentemuitocedo-ajulgarpeloshábitosde
Ud1ana
ld
Nn
eC
h
dascrian
«ascomosCultosnavidaquo-
tidianaNoregulamentodascriançasdePort-Royal,JacquelinePas-
enfatizaanecessidadedeseavaliaracapacidademoraleespiri-
ualdascriançasantesdelhespermitiracomunhão,adepreparárias
combastanteantecedencia “Nãosepermitirá acomunhãoàs
criançasmuitopequenaseespecialmenteàquelasqueforemtraves-
sas,levianasouligadasaalgumdefeitoconsiderável.Éprecisoespe-
P"
15 *'1°™mudançanclaseco„
P
,émespmar
mesmoalgumtempo,umanoouaomenosseismeses,paraverse
açoestemcont*nuidade,Jamaismearrependideterfeitoas
criançasesperarem,poisissosempreserviuparatornarmaisvirtuo-
6aSqUC11
,
nhamboadisposiçãoepararevelarapoucadispo-
Z°J;
SqueaindanàDe^avamprontas.Todaprecauçãoépouclno
pois™svezes -o—
Ha
primC
A
raco
,
munhãoeraretardadaemPort-Royalatédeoois
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>aprimeiracomunhãohavia-setornadouma
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dconta-nosemsuasmemóriassuaslembrançasdeumaprimei-
rscomunhão
difícilElenâscpnpm 1 j
p ,
T-
V
n“s
^
eraemI7^o,deumafamíliapobrede
seistilhos.Tornando-se orfao,começouatrabalharaos10anos
comoempregadodoméstico,atéqueovigáriodesuaparóquiaque
seinteressavaporele,oenviouàabadiadeSaint-Avit,ondeelese
ornoucapelaoauxiliar.Oprimeirocapelãoeraumjesuítaqueimpli-
coucomomenino.Eledeviatercercade15anosqiandofoi“LZi-
59JacqudmePascal,op.cit.
60.LesCachiersducolonetGérard
{/
766-1846
h
1951.
DODESPUDORÀINOCÊNCIA 155
tido”àprimeiracomunhão(estaeraaexpressãoutilizada). Havia
sidodecididoqueeufariaminhaprimeiracomunhãojuntocomvá-
riosinternos.Navésperadodiamarcado,euestavabrincandocomo
cachorronoquintal,quandoM.deN.,.ojesuíta,passou.Esqueces-
tes,disseele,queamanhãdevereisreceberocorpoeosanguede
NossoSenhor?Aabadessamemandouchamaremedissequeeu
nãoparticipariadacerimôniadodiaseguinte. Trêsmesesapóster
feitominhaspenitências, fizminhaprimeiracomunhão.Apósase-
gunda,mandaram-mecomungartodososdomingosediassantos.
^
Aprimeiracomunhãohavia-setornadoacerimôniaqueeate
hoje,ApartirdemeadosdoséculoXVIII,criou-seohábitodeper-
petuarsualembrançaatravésdeumamensageminscritanumaima-
gemdevota.Em1931,foiexpostaemVersalhes
61
umagravurarepre-
sentandoSãoFranciscodeAssis.Nascostas,estavaescrito:"Como
lembrançadaprimeiracomunhãodeFrançoisBertrand,em26de
abril1761,diadeQuasímodo,naparóquiadeSaint-Sébastien de
MarSy.Barail,curadeSaint-Sébastien”. Tratava-senãoapenasde
umcostumedevoto,masdeumcertificadoinspiradonosatosofi-
ciaisdaIgrejaCatólica.
Faltavaapenasacentuarasolenidadedaocasiãoatravésdeum
trajeespecial,eissofoifeitonoséculoXIX,
Acerimôniadaprimeiracomunhãotornou-seamanifestação
maisvisíveldosentimentodainfânciaentreoséculoXVIIeofimdo
séculoXIX:elacelebravaaomesmotemposeusdoisaspectoscon-
traditórios,ainocênciadainfânciaesuaapreciaçãoracionaldos
mistériossagrados.
61Exposição
l4
Enfantsd'autrefois",Versalhes.1931.

CONCLUSÃO
OsDoisSentimentosdaInfância
tNasociedademedieval,quetomamoscomopontodepartidao
sentimentodainfâncianãoexistia-oquenãoquerdizerqueas
criançasfossemnegligenciadas,abandonadasoudesprezadas,Osen-
timentodainfâncianãosignificaomesmoqueafeiçãopeiascrianças'
correspondeàconsciênciadaparticularidade infantil,essaparticula-
ridadequedistingueessencialmente acriançadoadulto,mesmojo-
vem.Essaconsciêncianãoexistia.Poressarazão,assimqueacrian-
çatinhacondiçõesdeviversemasolicitudeconstantedesuamãeou
desuaama,elaingressavanasociedadedosadultosenãosedistin-
guiamaisdesteyEssasociedadedeadultoshojeemdiamuitasvezes
nosparecepueríhsemdúvida,porumaquestãodeidadementalmas
tambémporsuaquestãodeidadefísica,poiselaeraempartecom-
postadecriançasedejovensdepoucaidade.Alínguanãoatribuíaà
palavraenfantosentidodorestritoquelheatribuímoshoje:emfran-
cês,dizia-seenfantcomohojesedizgarinalinguagemcorrente.Essa
mdeterminaçãodaidadeseestendiaatodaaatividadesocial:aosjo-
gosebrincadeiras, àsprofissões,àsarmas,Nãoexistemrepresenta-
çõescoletivasondeascriançaspequenasegrandesnãotenhamseu
OSDOISSENTIMENTOSDAINFÂNCIA 157
lugar,amontoadasnumcachopendentedopescoçodasmulheres
l
,
urinandonumcanto,desempenhando seupapelnumafestatradicio-
nal,trabalhandocomoaprendizesnumateliê,ouservindocomopa-
jensdeumcavaleiro.
Acriançamuitopequenina,demasiadofrágilaindaparasemis-
turaràvidadosadultos,“nãocontava”:essaexpressãodeMoiière
comprovaapersistêncianoséculoXVIIdeumamentalidademuito
antiga,OArgandeLeMaladeimaginairetinhaduasfilhas,umaem
idadedecasareaoutra,apequenaLouison,malcomeçandoafalare
aandar.ArganameaçavapôraFilhamaisvelhanumconvento,para
desencorajarseusamores.Seuirmãolhediz:“Deondetirastesa
idéia,meuirmão,vósquepossuístantosbensetendesapenasumafi-
lha-poisnãocontoapequena-demandarameninaparaumconven-
to
2
”?Apequenanâocontavaporquepodiadesaparecer.“Perdidois
outrêsfilhospequenos,nãosemtristeza,massemdesespero”,reco-
nheceMontaigne
3
.Assimqueacriançasuperavaesseperíodode
altoníveldemortalidade,emquesuasobrevivênciaeraimprovável,
elaseconfundiacomosadultos.
AspalavrasdeMontaigneeMoiièrecomprovamapermanência
dessaatitudearcaicacomrelaçãoàinfância.Eraumasobrevivência
tenaz,porémameaçada.JádesdeoséculoXIV,umatendênciado
gostoprocuravaexprimirnaarte,naiconografia enareligião(no
cultodosmortos)apersonalidadequeseadmitiaexistirnascrianças,
eosentidopoéticoefamiliarqueseatribuíaàsuaparticularidade.
Acompanhamos aevoluçãodoputto*doretratodacriança,atémes-
modacriançamortaempequena.Essaevoluçãoterminoupordarà
criança,àcriancinhapequena-aomenosondeessesentimentoaflo-
rava,ouseja,nascamadassuperioresdasociedadedosséculosXVIe
XVII-umtrajeespecialqueadistinguiadosadultosfEssaespeciali-
zaçãodotrajedascrianças,esobretudodosmeninospequenos,
numasociedadeemqueasformasexterioreseotrajetinhamuma
importânciamuitogrande,éupãprovadamudançaocorridanaati-
tudecomrelaçãoàscrianças^elascontavammuitomaisdoqueo
imaginavaoirmãodoMaladeimaginaire*Defato,nessapeçaque
parecesertãoseveraparacomascriancinhasquantocertasexpres-
sõesdeLaFontaine,háumaconversaentreArganeapequenaLoui-
1P.Michault,DoctrinaldutempsprésenLed.Th,Walton,1931p.119:Puisvecyune
femmegrausse.ffPoriamdeuxenjantsensairousse".PinturadeVanLaer
<
1592-
1642)reproduzidaemBerndt, 468.
2LeMaladeimaginaire,atoIII,cena111.
3Montaigne,Essais
>II*8.

158 históriasocialdacriançaedafamília
son:“Olhaparatnim,sim?-Queé,papai?-Aqui.-Oquê?-Não
tensnadaamedizer?-Sequiserdes,euvoscontarei,paradistrair-
vos,ahistóriadaPeledeAsno,ouentãoafábuladoCorvoedaRa-
posa,queaprendihápoucotempo”fÜmnovosentimentodainfân-
ciahaviasurgido,emqueacriança,porsuaingenuidade,gentilezae
graça,setornavaumafontededistraçãoederelaxamentoparao
adulto,umsentimentoquepoderíamoschamarde“paparicaçâo”T7
Originariamente, essesentimentopertenceraàsmulheres,encarrega-
dasdecuidardascrianças-mãesouamas.NaediçãodoséculoXVI
doGrandPropriêtairedetouteschoses,lemosapropósitodafigura
daama
J
:“Aamasealegraquandoacriançaficaalegre,esentepena
dacriançaquandoestaficadoente;levanta-aquandocai,enfaixa-a
quandoseagitaealimpaquandosesuja”.Eiaeducaacriança“ea
ensinaafalar,pronunciando aspalavrascomosefossetatibitate,
paraensina-lamelhoremaisdepressa...elacarregaacriançanos
braços,nosombrosounocolo,paraacalmá-laquandochora;masti-
gaacarneparaacriançaquandoestaaindanãotemdentes,parafa-
zê-laengolirsemperigoecomproveito;ninaacriançaparafazê-la
dormir,eenfaixaseusmembrosparaquenãofiquecomnenhumari-
gideznocorpo,eabanhaeauntaparanutrirsuapele...”Thomas
Moredetém-selongamentenasimagensdaprimeirainfância,dome-
ninoqueéenviadoàescolaporsuamãe:“Quandoomeninonãose
levantavaatempo,demorando-senacama,equando,jádepé,ele
choravaporqueestavaatrasado,sabendoquelhebateriamnaescola,
suamãelhediziaqueissosóacontecianosprimeirosdias,equeele
teriatempodechegarnahora:-Vai,bomfilho,juro-tequeeumes-
majápreveniteumestre;tomateupãocommanteiga,poisnãoserás
surrado.”Eassimeiaoenviavaàescola,consoladoosuficientepara
nãocairemprantosanteaidéiadedeixá-laemcasa.Maselanãoto-
cavanotundodaquestãoeacriançaatrasadaseriarealmentesurra-
daquandochegasseàescola
'.
Amaneiradeserdascriançasdevetersempreparecidoencanta-
doraàsmãeseàsamas,masessesentimentopertenciaaovasto
domímpdossentimentosnãoexpressos.Deagoraemdiante,porém
aspessoasnãohesitariammaisemadmitiroprazerprovocadopeias
maneirasadascriançaspequenas,oprazerquesentiamem“paparicá-
las".M deSévignéconfessa,nãosemumacerlaafetação,quepas-
savalongotemposedistraindocomsuanetinha:“Estoulendoahis-
tóriadadescobertadasíndiasporCristóvãoColombo,quemedi-
GrattdPropriêtairedetouteschoses,traduzidoparaofrancêsporJ
.Carbichon,
J556.
5
CitadoporJarman,LandmarksintheHistoryofEducation,Londres,1951,
OSDOISSENTIMENTOSDAINFÂNCIA 159
verteimensamente;masvossafilhamedistraiaindamais.Euaamo
muito...Elaacariciavossoretratoeopaparicadeumjeitotãoengra-
çadoquetenhodecorrerabeijá-la.
6
”.“Háumahoraquemedis-
traiocomvossafilha,elaéencantadora.”“Mandeicortarseuscabe-
los.Elaagorausaumpenteadosolto.Essepenteadofoifeitopara
ela.Suatez,seucoloeseucorpinhosãoadmiráveis.Elafazcemgra-
cinhas,fala,fazcarinho,fazosinaldacruz,pededesculpas,fazreve-
rência,beijaamão,sacodeosombros,dança,agrada,seguraoquei-
xo:enfim,eiaéfindaemtudoquefaz.Divirto-mecomelahorasa
fio”.E,comosetemessealgumainfecção,acrescentacomumale-
viandadequenossurpreende,poisparanósamortedeumacriançaé
umassuntogravecomoqualnãosebrinca:“Nãoqueroqueessa
coisinhamorra”.Issoseexplica,noentanto,pelofatodequeesse
primeirosentimentodainfânciasecombinava-comovimosemMo-
lière-comumacertaindiferença,ou,melhoTainda,comaindiferen-
çatradicional.AmesmaM
me
deSévignédescreveolutodeuma
mãedaseguintemaneira:“M
me
deCoetquenacabaraderecebera
notíciadamortedesuafilhinha;eladesmaiou.Ficoumuitoaflitae
dissequejamaisteriaoutratãobonita”.MastalvezM
me
deSévigné
achassequeessamãenãotinhamuitocoração,poisacrescenta:
“Masseumaridoficouinconsolável
1
”.
Essesentimentodainfânciapodeseraindamelhorpercebido
atravésdasreaçõescríticasqueprovocounofimdoséculoXVIe
sobretudonoséculoXVII.Algumaspessoasrabugentasconsidera-
raminsuportável aatençãoquesedispensavaentãoàscrianças:sen-
timentonovotambém,comoqueonegativodosentimentodainfân-
ciaaquechamamos“paparicação”. Essairritaçãoéabasedahosti-
lidadedeMontaigne:“Nãopossoconceberessapaixãoquefazcom
queaspessoasbeijemascriançasrecém-nascidas,quenãotêmainda
nemmovimentonaalma,nemformareconhecívelnocorpopela
qualsepossamtornaramáveis,enuncapermitideboavontadeque
dasfossemalimentadasnaminhafrente”.Elenãoadmiteaidéiade
seamarascrianças“comopassatempo,comosefossemmacacos”,
nemdeseachargraçaem“seussapateados,brincadeirasebobagens
pueris”.Èque,emtornodele,aspessoasseocupavamdemaiscomas
crianças
. ,
Umoutrotestemunhodesseestadodeespíritoseriadadoumsé-
culomaistardeporCoutanges,oprimodeM
me
deSévigné
9
.Ama-
6M^dcSévigné,Lettres.Fdeabrilde1672.
7M
mc
deSévigné.Lettres,19deagostode1671.
8Montaigne,Essais, II,8,
9Coutanges,Chansonschoísies,1694.

160 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
neiracomoseusamigoseparentespaparicavamascriançasevidente-
menteoexasperava.Elededicouaos“paisdefamília”umacanção
quedizia:
PourbienêlevervosenfatUS
Népargnezprêcepíeurnimie;
Mais.jusquesàcequilssoiení
g
rands,
Faites-lesíaireencompagnie
Carríennedonnetantdennui
Qued'êcauterVenfantdautruy.
LePèreaveuglecroiiloujours
Quesonfiisditchosesexquíses,
Lesautresvoudraientêtresourds
Quinemendemquedessottises.
Maisilfmtdenêcessitê
Applaudirfenfantgasté.
Quandonvousaditd'imbonion
Quilesíjo!y
fquilestbiensage,
Quoniuyadonnêdubonhem
N'enexigespazdavamage,
Faites-luyfaireserviteur
AussibienquàsonPrêcepíeur,
Quicroirailquavecdubonsens
Quelquunpuíjdviserdêerire
Adesmarmousersdeiroisans
Quidequatreansnescauroni iire,
Dunpèreencorderníèrement
JevisceJadeamusemenc
Sachezencor,niesbonnesgens
QueriennVjípkcsinsupportabíe
Quedevoirvospetitsenfans
Enrangdoignonàlagrandetable
Desmorveuxqui.Iententongras
Meitemiesdaigtsdanstouslespiars,
Qui/smangemd
1
unautrecosiê
Souslesreu.xdunegouvernante
QuileurprescheIapropretê
Eiquinesoitpoinlindulgente
Caronnepeutpeutiroppromptement
Apprendreàmange
r
propremem.*
*^urübemeducarvossascrianças,/Nãopoupeisoprecepton/Mas,atéqueelascres-
çam,/Fazei-ascalarquandoestiverementreadultos*/Poisnadaaborrecetanto/
Comoescutarascriançasdosoutros.//OPaicegoacreditasempre/Queseufilhodiz
coisasinteligentes,/Masosoutros,quesóouvembobagens*/Gostariamdesersur-
GSDOISSENTIMENTOSDAINFÂNCIA 161
Vejamosaindaestebilheteaumpaidefamília,umconvitepara
jantardeM.deCoulanges:
Emportezvotrefils
Etnevousmomrezpasnourrice,
Quonfassemangerlespefils
EtleurPrêcepíeuràíOffice.
Coraujourd"huidínecêans
Lefléaudespetitsenfdms.
*
Éprecisodeixarclaroqueessesentimentodeexasperaçãoera
iãonovoquantoa“paparícação”, eaindamaisestranhoàpromis-
cuidadeindiferentedasidadesdasociedademedieval.Montaignee
Coulanges*assimcomM
me
deSévigné,mostravam-se sensíveisjus-
tamenteàpresençadascrianças.Edevemosatémesmonotarque
MontaigneeCoulangessãomaismodernosdoqueM
mc
deSévigné,
namedidaemqueconsideramnecessáriaaseparaçãodascrianças.
Nãoseconsideravamaisdesejávelqueascriançassemisturassem
comosadultos*especialmentenamesa-semdúvidaporqueessa
misturapermitiaquefossemmimadas esetornassem mal-
educadas.
OsmoralistaseoseducadoresdoséculoXVIIpartilhavamare-
pugnânciadeMontaigneeCoulangespela“paparicação”.Oaustero
Fleury,emseuTraitédesétudes
,0
*falaquasecomoMontaigne:
'"Quandoosadultosfazem-nas[ascrianças]cairnumaarmadi-
lha,quandoelasdizemumabobagemaotirarumaconclusão
acertadadeumprincípioimpertinentequelhesfoiensinado,os
adultosdãogargalhadasdetriunfoporhavê-lasenganado,bei-
jam-naseacariciam-nascomoseelastivessemditoalgocorreto
[eraapaparicaçãoJÉcomoseaspobrescriançasfossemfeitas
dos;/Enoentantoépreciso/Aplaudiroenfantgâíé,Quandoalguémvosdisserpor
polidez/Quevossofilhoébonitoebemcomportado,/Oulhederbalas,/Nãoexijais
maisnada/-Fazeivossofilho,assimcomoseupreceptor,/Agircomoumservidor.//
Ninguémacreditariaqueumapessoadebomsenso/Pudesseescrever/Paracrianci-
nhasdetrêsanos,/Seasdequatronãosabemler./Noentanto,hápoucotempo,/Vi
umpaientregueaessatoladiversão.//Sabeiainda,carosamigos,/Quenadaémais
insuportáveldoquevervossosfithinhos,/Penduradosnamesacomoumaréstiadece-
bolas,/Molequesque,comoqueixoengordurado,/Enfiamodedoemtodosospra-
tos.//Quedescomamemoutrolugar,
/Sobasvistasdeumagovernanta/Quelhesen-
sinealimpeza/Enãosejaindulgente*/Poisnãosepodecomrapidez/Aprenderaco-
mercomlimpeza."(N.doT,),
*
“Trazeivossofilho,/Masnãobanqueisaama-seca./Mandemosospequenos/Eseu
preceptorcomernacozinha,/Poishojejantaaqui/Aturbadascriancinhas.
T
(N.do
T.).
10Fleury,op*cif.

162 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
apenasparadivertirosadultos,comocãezinhosoumacaqui-
nhos
£
osmacacosdeMontaigne]."
OautordoGalatée
,ummanualdecivilidademuitodifundido
nosmelhorescolégios,oscolégiosjesuítas,falacomoCoulanges:
“Estãomuitoerradosaquelesquenãotêmnadanalínguaalémde
suamulher,seusfilhinhosesuaama,-Meufilhinhomefezrirtanto!
-Ora,tendepaciência"...”
M.D’Argonne,numtratadosobreaeducaçãodeM.deMonca-
de(1690) queixa-setambémdeaspessoassóseinteressarempelas
criançaspequenas,porseus“carinhos”e“estripulias”;muitospais
sóconsideramseusfilhospequenosnamedidaemqueesteslhes
proporcionam diversãoealegria”,
__
ÉimportanteobservarquenofimdoséculoXVIIessa“papari-
cação’nãoselimitavaapenasàspessoasbemnascidas,asquais,ao
contrário,sobainfluênciadosmoralistas,começavamaabandoná-
la.Apaparicaçãotambémeradenunciadaentreopovo.J.-B.deLa
Salle,emsuaConduitedesécoleschrétiennes
u
,constataqueascrian-
çasdospobreseramespecialmentemal-educadas,pois“sófazemo
quequerem,semqueospaisseimportem(masnãopornegligência),
chegandomesmoaseridolatradas;oqueascriançasqueremospais
tambémquerem”.
ÉentreosmoralistaseoseducadoresdoséculoXVIIquevemos
formar-seesseoutrosentimentodainfânciaqueestudamosnocapí-
tuloanteriorequeinspiroutodaaeducaçãoatéoséculoXX,tanto
nacidadecomonocampo,naburguesiacomonopovo.Oapegoà
infânciaeàsuaparticularidadenãoseexprimiamaisatravésdadis-
traçãoedabrincadeira,masatravésdointeressepsicológicoeda
preocupaçãomoralJacriançanãoeranemdivertidanemagradável;
Todohomemsentedentrodesiessainsipidezdainfânciaquerepug-
naàrazãosadia;essaasperezadajuventude,quesósesaciacomob-
jetossensíveisenãoémaisdoqueoesboçogrosseirodohomemra-
cionalAssimfalavaEIDiscretodeBalthazarGratien,umtratado
sobreaeducaçãode1646,traduzidoparaofrancêsem1723porum
padrejesuíta
,a
.“Sóotempopodecurarohomemdainfânciaeda
juventude,idadesdaimperfeiçãosobtodososaspectos."Comove-
11G.deliaCasa,Galatée,traduçãofrancesade1609,pp.162-168.
12DArgonne.LEducationdeMonsieurdeMoncade
,
1690.
13J.B.deLaSalle,Conduitedesécoleschrétiennes,1720.
;-
e
G
-r
-ElDiSCre!o
'Huesca
-1646Traduçãofrancesade1723pelope,deCour-
OSDOISSENTIMENTOSDAINFÂNCIA 163
mos,essasopiniõesdevemserrecolocadasemseucontextodaépoca
ecomparadasaosoutrostextosparaseremcompreendidas. Elasjá
foraminterpretadasporalgunshistoriadorescomoumaignorância
dainfância.Noentanto,devemosvernelasoiníciodeumsentimen-
tosérioeautênticodainfância.Poisnãoconvinhaaoadultoseaco-
modaràleviandadedainfância-,esteforaoerroantigo.Erapreciso
antesconhecê-lamelhorparacorrigir-la,eostextosdofimdoséculo
XVIedoséculoXVIIestãocheiosdeobservaçõessobreapsicologia
infantil Tentava-sepenetrarnamentalidadedascriançasparame-
lhoradaptaraseunívelosmétodosdeeducação.Poisaspessoasse
preocupavam muitocomascrianças,consideradastestemunhosda
inocênciabatismal,semelhantesaosanjosepróximasdeCristo,que
ashaviaamado.Masesseinteresseimpunhaquesedesenvolvesse
nascriançasumarazãoaindafrágilequesefizessedelashomensra-
cionaisecristãos.Otomàsvezeseraausteroeaênfaserecaíasobrea
severidade,poroposiçãoaorelaxamentoeàsfacilidadesdoscostu-
mes;masnemsempreeraassim.Haviatambémhumor,atémesmo
emJacquelinePascal,ehaviaumaternuradeclarada.Nofinaldosé-
culo,procurou-seconciliaradoçuracarazão.ParaoabadeGous-
sault.conselheirodoParlamento,emLePortraitd’unehonnêtefemme
“familiarizar-secomosprópriosfilhos,fazê-losfalarsobretodasas
coisas,tratá-loscomopessoasracionaiseconquistá-lospeladoçuraé
umsegredoinfalívelparasefazerdelesoquesequiser.Ascrianças
sãoplantasjovensqueéprecisocultivareregarcomfrequência: al-
gunsconselhosdadosnahoracerta,algumasdemonstraçõesdeter-
nuraeamizadefeitasdetemposemtemposascomovemeascon-
quistam.Algumascarícias,algunspresentinhos,algumaspalavrasde
confiançaecordialidadeimpressionamseuespírito,epoucassãoas
queresistemaessesmeiosdocesefáceisdetransformá-lasempes-
soashonradaseprobas”.Apreocupaçãoerasempreadefazerdes-
sascriançaspessoashonradaseprobasehomensracionais.
Oprimeirosentimentodainfância-caracterizadopela“papari-
cação"-surgiunomeiofamiliar,nacompanhiadascriancinhaspe-
quenas.Osegundo,aocontrário,proveiodeumafonteexteriorà
família:doseclesiásticosoudoshomensdalei,rarosatéoséculo
XVI,edeummaiornúmerodemoralistasnoséculoXVII,preocu-
padoscomadisciplinaearacionalidadedoscostumes.Essesmora-
\5ComosepodevernaRatiodosJesuítas(1586)enoRegulamentodeJacquelinePas-
calparaasmeninaseducadasemPort-Royal.
16Goussault,LePortraitd'tmehonnêtefemme,1693,

164 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
iistashaviam-setornadosensíveisaofenômenooutroraneglicencia-
dodainfância,masrecusavam-se aconsiderarascriançascomo
brinquedosencantadores, poisviamnelasfrágeiscriaturasdeDeus
queeraprecisoaomesmotempopreservaredisciplinar.Essesenti-
mento,porsuavez,passouparaavidafamiliar.
NoséculoXVIII,encontramosnafamíliaessesdoiselementos
antigosassociadosaumelementonovo:apreocupaçãocomahigie-
neeasaúdefísica.Ocuidadocomocorponãoeradesconhecidodos
moralistasedoseducadoresdoséculoXVII.Tratava-sedosdoentes
comdedicação(etambémcomgrandesprecauçõesparadesmascarar
ossimuladores),masnãohaviainteressepelocorpodosquegoza-
vamdeboasaúde,anãosercomumobjetivomoral:umcorpomal
enrijecidoinclinavaàmoleza,àpreguiça,àconcupiscência, atodos
osvícios,
AcorrespondênciadoGeneraldeMartangecomsuamulher
11
nosdáumaidéiadaspreocupaçõesíntimasdeumafamília,cercade
umséculodepoisdeM
me
deSévigné.Martangenasceuem1722e
casou-seem1754,Maisadianteteremosaoportunidadedevoltara
essestextos.Martangesepreocupavacomtudooquedissesserespei-
toàvidadeseusfilhos,desdea“paparicação”atéaeducação.Havia
tambémumagrandepreocupaçãocomsuasaúdeeatémesmosuahi-
giene.Tudooquesereferiaàscriançaseàfamíliatornara-seumas-
suntosérioedignodeatenção.Nãoapenasofuturodacriança,mas
tambémsuasimplespresençaeexistênciaeramdignasdepreocupa-
ção-acriançahaviaassumidoumlugarcentraldentrodafamília.
17Correspondance inêditedugénéraldeMartange,1576-1782,ed.Bréard,1898.
2.AVidaEscolástica
1
JovenseVelhosEscolaresda
IdadeMédia
1
Asegundapartedestelivro,intitulada“Avidaescolástica”,é
consagradaaosaspectosdahistóriadaeducaçãoquerevelamdpro-
gressodosentimentodainfâncianamentalidadecomum:comoaes-
colaeocolégioque,naIdadeMédia,eramreservadosaumpequeno
númerodeclérigosemisturavamasdiferentesidadesdentrodeum
espíritodeliberdadedecostumes,setornaramnoiníciodostempos
modernosummeiodeisolarcadavezmaisascriançasduranteum
períododeformaçãotantomoralcomointelectual,deadestrá-las»
graçasaumadisciplinamaisautoritária,e,dessemodo,separá-lasda
sociedadedosadultos.EssaevoluçãodoséculoXVaoXVIIInãose
deusemresistências.OstraçoscomunsdaIdadeMédiapersistiram
lNapresenteediçãoforamconservadasapenasasconclusõesdecadacapítulo.Ocapí-
tulointitulado“Doexternatoaointernato** foiinteiramentesuprimido.

166 HISTORIAsocialdacriançaedafamília
porlongotempo,atémesmonointeriordocolégio,e,afortiorina
camadanaoescolarizadadapopulação,
ci„_
.
f
:
ncontrarmo
j
snostextosmedievaisreferênciaspre-
“Jt
d
,
d°SUn
,
OS
'Quando
’ades
P
eitodaoposiçãodoscapitu-
la;?
escolasparticularessemultiplicaram eameaçaramomonopó-
liodaescoladacatedral,oscônegos,parasedefender,tentaramim-
porlimitesaatividadedeseusconcorrentes.Ora,esseslimitesnunca
oramlimitesdeidade.Oscônegossecontentaramemproibiràses-
coasparticularestodoensinomaisavançadodoqueoDonat,sinô-
nimodegramaticarudimentar.Essaausênciadereferênciasàidade
persistiupormuitotempoemuitasvezesaindaaconstatamosnos
moralistasdoséculoXVII.Oscontratosdepensão,espéciesdecon-
tratosdeaprendizagem, pelosquaisasfamíliasfixavamascondições
depensãodeseufilhoescolar,raramentemencionavam aidadedo
menino,comoseissonaotivesseimportância.Oelementopsicológi-
daoueíes
C
n,L
d
f
Sa demo
8
ráíicaeraaindiferançapelaidade
de
q
seornar%
co
"|
piinhan
|
l:aocontrári
°.*preocupaçãocomaida-
deetornariafundamentalnoséculoXIXeemnossosdias.Pode-
l
cons3ar
>entretanto,queosalunosiniciantesgeralmente ti-
mcercade10anos.Masseuscontemporâneosnãoprestavam
semkt?
n
'SSOeachavam
,
naturaIqueumadultodesejosodeaprender
misturasseaumauditórioinfantil,poisoqueimportavaeraama-
tériaensinada,qualquerquefosseaidadedosalunos.Umadultopo-
lcU“radoUvr»d'D»"“"» momentoemqueum
moprecocerepetiaoOrganoir.nãohavianissonadadeestranho
í>econsiderarmos essaindiferençacomrelaçãoàidade,senos
lembrarmosdoquefoiditoatrássobreosmétodospedagógicos utili-
zadossobreasimultaneidade earepetiçãodoensino,nãonossur-
preenderemosemvernaescolamedievaltodasasidadesconfundidas
nomesmoauditono.Eessaobservaçãoécapitalparanossoestudo.
Aescolanaodispunhaentãodeacomodaçõesamplas.Omestre
msalava-senoclaustroapóslivrá-lodoscomérciosparasitas,ouen-
Uodentroounaportadaigreja.Maistarde,porém,comamultipli-
çaodasescolasautorizadas,quandonãotinharecursossuficientes
ceasvezessecontentavacomumaesquinaderua-SãoTomás'
altas,demonstrouseudesdémporesseshomensempobrecidosque
íanmTTT
PUe™ angulis 'Emgeral
’0mestrealugavaumasa-
vtrek c
porumprec°^
ueeraregulamentadonascidadesuni-
versitárias.EmParis,essasescolasseconcentravamnumaruaaRue
duFouarre:vteusstraminis.Essasescolas,éclaro,eramindependem
2
DeunitateintellectuscontraAverriolstos(LXJX,p.252).
JOVENSEVELHOSESCOLARES Í67
tesumasdasoutras.Forrava-seochãocompalha
Teosalunosaíse
sentavam.Maistarde,apartirdoséculoXIV,passou-seausarban-
cos,emboraessanovohábitodeinicioparecessesuspeito.Então,o
mestreesperavapelosalunos,cornoocomercianteesperapelosfre-
gueses,Algumasvezes,ummestreroubavaosalunosdovizinho.
Nessasala,reuniam-seentãomeninosehomensdetodasasidades,
deseisa20anosoumais,“Viosestudantesnaescola,dizRobertde
SalisburynoséculoXII\Seunúmeroeragrande(podiasersuperior
a200).Vihomensdeidadesdiversas;pueros,adolescentes,juvenes,
senes'\ouseja,todasasidadesdavida,poisnãohaviaumapalavra
paradesignaroadulto,easpessoaspassavamsemtransiçãodtjuve-
nesasertes.
AindanoséculoXV,osmestresdoDoctrinaldePierreMichault
sedirigiamaomesmotempoaospequenoseaosgrandesquecompu-
nhamseuauditório
4
:
Bonsescoliers,entendementsouverts
Tanísoiezvíeuxoujosnes,meursouvers,,.*
essaescola,comumagrandemultidãodealunosJovenseve-
lhos,estavalendoocapítulosobreasconstruções(doDoctrinalde
AlexandrelaVilledieu,sucessordePriscieneprodecessordeDespeu-
tères).”Comopoderiaserdeoutraforma,senãohaviagradação
noscurrículos,eosalunosmaisvelhossimplesmentehaviamrepeti-
domaisvezesoqueosjovenshaviamescutadoapenasumavez,sem
quehouvesseoutrasdiferençasentreeles?
Eessamisturadeidadescontinuavaforadaescola,Aescolanão
cerceavaoaluno.Omestreúnico,àsvezesassistidoporumauxiliar,
ecomumaúnicasalaàsuadisposição,nãoestavaorganizadopara
controlaravidaquotidianadeseusalunos,Estes,terminadaalição,
escapavamàsuaautoridade.Ora,originariamente, essaautoridade,
ofordomestre,eraaúnicaqueelesreconheciam.“Velhosoujo-
vens”,osalunoseramabandonados asimesmos.Alguns,muitora-
ros,viviamcomospais.Outrosviviamemregimedepensão,querna
casadoprópriomestre,quernacasadeumpadreoucônego,segun-
doascondiçõesFixadasporumcontratosemelhanteaocontratode
aprendizagem. Estesúltimoseramosmaisvigiados,ouaomenosos
maisseguidos.Pertenciamaumacasa,àfamíliadoclérigoaoqual
haviamsidoconfiados,enessecasohaviaumaespéciedecompro-
3R,deSahsbury,Devanitatetnundi,P.L.,176,coL709.
4P.Michaull,Doctrinaldutempsprésent,ed.Th.Walton,1931.
*
“Bonsalunos,decompreensãoaberta,
/
Quersejaisvelhosoujovens,madurosouver-
des...”(N.doT.)

168 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
missoentreaeducaçãopelaaprendizagem,queestudaremosadian-
te
,eaeducaçãoescolardetipomoderno.Essaeraaúnicaformade
internatoconhecida.Masamaiorpartedosalunosmoravaondepo-
dia,comohabitantelocal,váriosemcadaquarto.Eéprecisoadmi-
tirqueaitambémosvelhossemisturavamcomosjovens.Longede
seremseparadospelaidade,suasrelaçõesdeviamserreguladaspor
tradiçõesdeiniciaçãoqueuniamcomlaçosestreitososalunospe-
quenosaosmaiores.Voltaremosaestepontoapropósitodahistória
dadisciplinaescolar.
Essapromiscuidade dasidadeshojenossurpreende,quando
naonosescandaliza:noentanto,osmedievaiseramtãopoucosensí-
veisaelaquenemanotavam,comoacontececomascoisasmuitofa-
miliares.Mascomopoderiaalguémsentiramisturadasidadesquan-
doseerataoindiferente
àprópriaidéiadeidade?
Assimqueingressavanaescola,acriançaentravaimediatamen-
tenomundodosadultos.Essaconfusão,tãoinocentequepassava
despercebida,eraumdostraçosmaiscaracterísticosdaantigasocie-
dade,etambémumdeseustraçosmaispersistentes,namedidaem
quecorrespondia aalgoenraizadonavida.Elasobreviveriaavárias
mudançasdeestrutura.ApartirdofimdaIdadeMédia,percebem-se
osgermesdeumaevoluçãoinversaqueresultariaemnossosenti-
mentoatualdasdiferençasdeidade.MasatéofimdoAncienRêei-
me,aomenos,restariaalgodesseestadodeespíritomedieval.Suare-
sistênciaaosoutrosfatoresdetransformação mentalmostra-nos
bemqueestamosnapresençadeumaatitudefundamentaldianteda
vida,quefoifamiliaraumalongasucessãodegerações.
5Cf.parteUI,cap,2.
2
UmaInstituiçãoNova:
OColégio
NoséculoXIII,oscolégioseramasilosparaestudantespobres,
fundadospordoadores.Osbolsistasaíviviamemcomunidades, se-
gundoestatutosqueseinspiravamemregrasmonásticas.Nãoseen-
sinavanoscolégios.ApartirdoséculoXV,essaspequenascomuni-
dadesdemocráticastornaram-se institutosdeensino,emqueuma
populaçãonumerosa(enãomaisapenasosbolsistasdafundação,
entreosquaisfiguravamalgunsadministradores eprofessores) foi
submetidaaumahierarquiaautoritáriaepassouaserensinadano
local.Finalmente,todooensinodasartespassouaserministrado
noscolégios,queforneceriamomodelodasgrandesinstituiçõeses-
colaresdoséculoXVaoXVII,oscolégiosdosjesuítas,oscolégios
dosdoutrinárioseoscolégiosdosoratorianos:ocolégiodoAncien
Régime,maisdistantedosprimeiroscolégiosdebolsistasdoséculo
XIVdoquedenossoscolégiosdehoje,diretamenteanunciadospor
eleapesardediferençasimportantes, e,sobretudo,daausênciadein-

170 históriasocialdacriançaedafamília
ternato.Oestabelecimento definitivodeumaregradedisçiplina
completouaevoluçãoqueconduziudaescolamedieval,simplessala
deaula,aocolégiomoderno,instituiçãocomplexa,nãoapenasdeen-
sino,masdevigilânciaeenquadramento dajuventude,
Essaevoluçãodainstituiçãoescolarestáligadaaumaevolução
paraleladosentimentodasidadesedainfância*Noinício,osenso
comumaceitavasemdificuldadeamisturadasidades.Chegouum
momentoemquesurgiuumarepugnâncianessesentido,deinícioem
favordascriançasmenores.Ospequenosalunosdegramáticaforam
osprimeirosaserdistinguidos,Masessarepugnâncianãoparoune-
les,Estendeu-setambémaosmaiores,alunosdelógicaedefísicaea
todososalunosdeartes,emboraaidadedealgunsdeleslhespermi-
tisseexercerforadaescolafunçõesreservadasaosadultos,Eque,
emborativessecomeçadopelosmaisjovens,essaseparaçãonãoos
atingiaenquantocrianças,esimenquantoestudantes,enoprincípio
enquantoestudantes-clérigos, poisquasetodoseramtonsurados.Por
essarazão,nãoseaplicouaosestudantes,comofitodedistingui-los
dosadultos,umregimerealmenteinfantiloujuvenil-aliás,nãose
conhecianemanaturezanemomodelodeumtalregime.Desejava-
seapenasprotegerosestudantesdastentaçõesdavidaíeigà,uma
vidaquemuitosclérigostambémlevavam,desejava-seprotegersua
moralidade.Oseducadoresinspiraram-seentãonoespíritodasfun-
daçõesmonásticasdoséculoXIII,dosdominicanos efranciscanos,
queconservavam osprincípiosdatradiçãomonástica,mashaviam
abandonadoaclausura,areclusão,etudooquerestavadocenobi-
tismooriginal,Écertoqueosestudantesnãoestavamcomprometi-
dospornenhumvoto.Mas,duranteoperíododeseusestudos,eles
foramsubmetidosaomododevidaparticulardessasnovascomuni-
dades.Graçasaessemododevida,ajuventudeescolarfoiseparada
dorestodasociedade,quecontinuava fielàmisturadasÍdades;dos
sexosedascondiçõessociais.Estaeraasituaçãoaolongodoséculo
Maistarde,oobjetivofixadoparaessetipodeexistência,ameio
caminhoentreavidaleigaeavidamonástica,sealterou.*Noinício,
eleforaconsideradoummeiodegarantiraumjovemclérigouma
vidahonesta.Aseguir,adquiriuumvalorintrínseco,tornou-sea
condiçãoimprescindíveldeumaboaeducação,mesmoleiga.Aidéia
deeducaçãoeraestranhaásconcepçõesdoiníciodoséculoXIV.Em
1452,porém,oCardealdEstoutevillefalavadoregímenpuerorume
daresponsabilidade moraldosmestresencarregadosdasalmasdos
alunos.Tratava-setantodaformaçãocomodainstruçãodoestudan-
te,eporessemotivoconvinhaimporàscriançasumadisciplinaestri-
ta.adisciplinatradicionaldoscolégios,modificadaporémnumsen-
UMAINSTITUIÇÃONOVA:OCOLÉGIO 171
tidomaisautoritárioemaishierárquico.Ocolégiotornou-seentão
uminstrumentoparaaeducaçãodainfânciaedajuventudeemgeral.
f
Nessamesmaépoca,noséculoXVesobretudonoXVI,ocolé-
giomodificoueampliouseurecrutamento.Compostooutrorade
umapequenaminoriadeclérigosletrados,eleseabriuaumnúmero
crescentedeleigos,nobreseburgueses,mastambémafamíliasmais
populares,comoveremosadiante.Ocolégiotornou-seentãouma
instituiçãoessencialdasociedade:ocolégiocomumcorpodocente
separado,comumadisciplinarigorosa,comclassesnumerosas,em
queseformariamtodasasgeraçõesinstruídasdoÀnctmRêgime.O
colégioconstituía,senãonarealidademaisincontroláveldaexistên-
cia,aomenosnaopiniãomaisracionaldoseducadores,pais,religio-
sosemagistrados,umgrupodeidademaciço,quereuniaalunosde
oito-noveanosatémaisde15,submetidosaumaleidiferentedaque
governavaosadultos.

3
Origensdas
ClassesEscolares
Comosepassoudaindeierminaçãomedievalaorigordoconcei-
tomoderno,comoequandoaclasseescolaradquiriuseuaspecto
atualdeclassedeidade?
DesdeoiníciodoséculoXV,pelomenos,começou-seadividira
populaçaoescolaremgruposdemesmacapacidadequeeramcoloca-
dossobadireçãodeummesmomestre,numúnicolocal-aItália
porexemplo,durantemuitotempopermaneceu fielaessafórmulade
transição.Maistarde,aolongodoséculoXV,passou-seadesignar
umprotessorespecialparacadaumdessesgrupos,quecontinuaram
asermantidos,porém,numlocalcomum-essaformaçãoaindasub-
sistianaInglaterranasegundametadedoséculoXIX,Finalmente
asclasseseseusprofessoresforamisoladosemsalasespeciais-eessa
iniciativadeorigemflamengaeparisiensegerouaestruturamoderna
declasseescolar.Assistimosentãoaumprocessodediferenciaçãoda
massaescolar,quenoiníciodoséculoXVeradesorganizada.Esse
ORIGENSDASCLASSESESCOLARES 173
processocorrespondeuaumanecessidadeaindanovadeadaptaro
ensinodomestreaoníveldoaluno.Foiesteopontoessencial.Essa
preocupaçãoemsecolocaraoalcancedosalunosopunha-setanto
aosmétodosmedievaisdesimultaneidadeouderepetição,comoà
pedagogiahumanista,quenãodistinguiaacriançadohomemecon-
fundiaainstruçãoescolar-umapreocupaçãoparaavida-coma
cultura-umaaquisiçãodavida-.Essadistinçãodasclassesindicava
portantoumaconscientizaçãodaparticularidadedainfânciaouda
juventude,edosentimentodequenointeriordessainfânciaoudessa
juventudeexistiamváriascategorias.Ainstituiçãodocolégiohierar-
quizadonoséculoXIVjáhaviaretiradoainfânciaescolardabara-
fundaemque,nomundoexterior,asidadesseconfundiam.Acria-
çãodasclassesnoséculoXVIestabeleceusubdivisõesnointerior
dessapopulaçãoescolar!
Essascategorias,esboçadasàsvezesapartirdeumacircunstân-
ciaqueaindanãocorrespondiaàquiloquemaistardeseriaexigido
delasemtermosdeordem,disciplinaeeficáciapedagógica,seriam
naépocacategoriasdeidade?Semdúvida,em1538,Baduelviano
sistemadeclassesummeiodetepartirosalunossegundo“suaidade
eseudesenvolvimento’*.NoprimeiroterçodoséculoXVI,Thomas
Platter,aotermodeumajuventudeerrante,foiternumaboaescola
deSchlestadt,freqikntadapor900disciputi;ora,elejánãodevia
acharmuitonormalquesuaignorânciaosituasseaos18anosno
meiodascrianças,poisquesentiuanecessidadederegistrarofato
comoumaanomalia:“Quandoentreiparaaescola,nãosabianada,
nemmesmoleroDonat,enoentantoeutinha18anos.Tomeimeu
lugarentreascriançaspequenas;pareciaumagalinhanomeiodos
pintinhos”.
Nãonosdeixemosenganar,contudo,poressespoucosindícios,
quecorremosoriscodeaumentaraoisolar.Algumasvezeshavia
umacoincidênciaentreaidadeeograu,masnemsempre,e,quando
haviacontradição, asurpresaerapequena,e,muitasvezes,nenhu-
ma/Narealidade,prestava-sesempremaisatençãoaograudoqueà
idade'.
1
NoiníciodoséculoXVII,aclassenãopossuíaahomogeneidade
demográficaqueacaracterizadesdeofimdoséculoXIX,emborase
aproximasseconstantemente dela.Asciassesescolaresquesehaviam
formadoporrazõesnãodemográficasserviriamgradualmentepara
enquadrarcategoriasdeidades,nãoprevistasdeinício.Existia,por-
tanto,umarelaçãodespercebidaentreaestruturaçãodasclasseseas
idades,despercebidaporqueestranhaoshábitosmaiscomuns.A
novanecessidadedeanáliseededivisão,quecaracterizouonasci-
mentodaconsciênciamodernaemsuazonamaisintelectual,ouseja,
naformaçãopedagógica,provocouporsuaveznecessidadeseméto-

174 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
dosidênticos,quernaordemdotrabalho-adivisãodotrabalho,
quernarepresentaçãodasidades-arepugnânciaemmisturarespíri-
tos,e,portanto,idadesmuitodiferentes.Masessapreocupaçãode
separaçãodasidadessófoiteoricamentereconhecidaeafirmada
maistarde,quandojásehaviaimpostonaprática,apóstentativas
longaseempíricas.Eissonoslevaaestudarmaisdepertooproble-
madasidadesescolaresedesuacorrespondência àsciasses.
4
AsIdadesdosAlunos
Oestudodacorrespondência entreasclassesescolareseasida-
desdosalunos,oestudodocicloescolaratravésdoexamedealguns
casosbiográficosdosséculosXV,XVIIeXVIII,efinalmenteaaná-
lisedealguns“catálogos"emqueosdiretoreseprofessoresatualiza-
vamalistadealunos,oquepossibilitaestabeleceracomposiçãodas
classesporidade,nospermitemdeduziralgumasidéiasessenciais.
AprecocidadedecertasinfânciasdoséculoXVIeiníciodosé-
culoXVIInospareceuserumasobrevivênciadoshábitosescolares
medievais,mastambémdocostumegeraldaaprendizagem,emque
asidadeserammisturadaseumahabilidadeprecocenãosurpreendia
maisdoqueocaráterexcepcionaldecertosdons.Observamos, aliás,
queascarreirasbrilhantes,comoasdosnossosmemorialistas,ainda
secaracterizavamporumarelativaprecocidade:durantecertotem-
po,aprecocidadeesteveligadaaosucesso.Contudo,aadmiração
comumlogosedesvioudessesjovensprodígios-nomaistardar,du-
ranteoséculoXV111.Arepugnânciapelaprecocidademarcaapri-
meirabrechaabertanaindiferenciaçãodasidadesdosjovens.Apolí-

176 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLlA
ticaescolarqueeliminavaascriançasmuitopequenas,fossemquais
fossemseusdotes,querrecusando-lhesaentradanaescola,quer-
comoeramaiscomum-concentrando-as nasclassesmaisbaixas*ou
aindafazendo-asrepetiroano,implicavaumsentimentonovode
distinçãoentreumaprimeirainfânciamaislonga,eainfânciapro-
priamenteescolástica.AtéomeiodoséculoXVII,tendia-seaconsi-
derarcomotérminodaprimeirainfânciaaidadede5-6anos,quando
omeninodeixavasuamãe,suaamaousuascriadas.Aosseteanos,
elepodiaentrarparaocolégio,eatémesmoparao7’ano.Maistar-
de,aidadeescolar,aomenosaidadedaentradaparaastrêsclasses
degramática, foiretardadaparaos9-10anos.Portanto,eramas
criançasdeaté10anosqueerammantidasforadocolégio.Dessa
maneiraconseguia-sesepararumaprimeirainfânciaqueduravaaté
9-10anosdeumainfânciaescolarquecomeçavanessaidade.Osenti-
mentomaiscomumenteexpressoparajustificaranecessidadedere-
tardaraentradaparaocolégioeraafraqueza,“aimbecilidade”,ou
aincapacidadedospequeninos.Raramenteeraoperigoquesuaino-
cênciacorria,ouaomenosesseperigo,quandoadmitido,nãoerali-
mitadoapenasàprimeirainfância.
Arepugnânciapelaprecocidademarcouportantoadiferencia-
çãoatravésdocolégiodeumaprimeiracamada:adaprimeirainfân-
cia,prolongadaatécercade10anos.
Masemboraaprimeirainfânciafosseassimisolada,amistura
arcaicadasidadespersistiunosséculosXVIIeXVIIIentreorestoda
populaçãoescolar,emquecriançasde10a14anos,adolescentesde
15a18erapazesde19a25frequentavam asmesmasclasses.Atéo
fimdoséculoXVIII,nãoseteveaidéiadesepará-los.Aindanoiní-
ciodoséculoXIX,separavam-sedemododefinitivooshomensfei-
tos,os“barbudos”demaisde20anos,masnãoseconsideravaestra-
nhaapresençanocolégiodeadolescentesatrasados,eapromiscui-
dadedeelementosdeidadesmuitodiferentesnãochocavaninguém,
contantoqueosmenorezinhosnãofossemexpostosaela.Defato!
aindanãosesentiaanecessidadededistinguirasegundainfância,
alémdos12-13anos,daadolescênciaoudajuventude.Essasduasca-
tegoriasdeidadeaindacontinuavamaserconfundidas:elassósese-
parariammaisparaofimdoséculoXIX,graçasàdifusão,entrea
burguesia,deumensinosuperior:universidadeougrandesescolas.
DuranteoPrimeiroImpérionaFrança,nemmesmoaépocadore-
crutamento,facilmenteevitadonascamadasburguesas,dividiaesse
longoperíododeidadeemquenossasdistinçõesmodernasaindanão
eramadmitidas.
Observaremosqueessaausênciadeseparaçãoentreasegunda
infânciaeaadolescência,quedesapareceunaburguesiaduranteosé-
culoXIX,subsisteaindahojenaFrançanasclassespopularesonde
ASIDADESDOSALUNOS 177
nãoháformaçãosecundária,Amaioriadasescolasprimáriasperma-
necefielaovelhohábitodasimultaneidadedoensino.Ojovemope-
rárioqueobtémocertificadodeconclusãodoprimeirograuenão
passaporumaescolatécnicaouumcentrodeaprendizagementradi-
retamsnteparaomundodotrabalho,quecontinuaaignoraradis-
tinçãoescolardasidades.Eaíelepodeescolherseuscamaradas
numafaixadeidademaisextensadoqueafaixareduzidadaclasse
docolégio,Ofimdainfância,aadolescênciaeoiníciodamaturidade
nãoseopõemcomonasociedadeburguesa,condicionadapelapráti-
cadosensinossecundárioesuperior.
Operíododasegundainfância-adolescência foidistinguidogra-
çasaoestabelecimento progressivoetardiodeumarelaçãoentrea
idadeeaclasseescolar.Durantemuitotempo,noséculoXVIeaté
mesmonoséculoXVII,essarelaçãofoimuitoincerta.
^
Aregularizaçãodocicloanualdaspromoções,ohábitodeim-
poratodososalunosasériecompletadeclasses,emlugardelimitá-
laaalgunsapenas,easnecessidadesdeumapedagogianova,adapta-
daaclassesmenosnumerosasemaishomogêneas,resultaram,no
iníciodoséculoXIX,nafixaçãodeumacorrespondênciacadavez
maisrigorosaentreaidadeeaclasse.Osmestressehabituaramen-
tãoacomporsuasclassesemfunçãodaidadedosalunos.Asidades
outroraconfundidascomeçaram asesepararnamedidaeraque
coincidiamcomasclasses,poisdesdeofimdoséculoXVIaclasse
forareconhecidacomoumaunidadeestrutural.Semocolégioesuas
célulasvivas,aburguesianãodispensariaàsdiferençasmínimasde
idadedesuascriançasaatençãoquelhesdemonstra,epartilharia
nessepontodarelativaindiferençadassociedadespopulares.

5
OsProgressosdaDisciplina
'
Portanto,antesdoséculoXV,oestudantenãoestavasubmetido
aumaautoridadedisciplinarextracorporativa, aumahierarquiaes-
colar.Mastampoucoestavaentregueasimesmo!Oubemresidia
pertodeumaescolacomsuaprópriafamília,ou,comoeramaisfre-
qüente,moravacomumaoutrafamíliaàqua!haviasidoconfiado
comumcontratocjeaprendizagemquepreviaafreqüênciaaumaes-
cola^semprelatina.Omeninoentravaentãoparaumadessasasso-
ciações,corporaçõesouconfrarias...que,atravésdeexercíciosdevo-
tosoufestivos,docultoreligioso,debebedeirasoubanquetes,man-
tinhamvivoosentimentodesuacomunidadedevida.Outrapossibi-
lidadeeraopequenoestudanteseguirummeninomaisvelho,com-
partilhandosuavidanaalegriaounadesgraça,e,muitasvezes,em
]Asreticênciasindicampassagenssuprimidas.
OSPROGRESSOSDADISCIPLINA 179
troca,sendosurradoeexplorado.Emtodosessescasos,oestudante
pertenciaaumasociedadeouaumbandodecompanheiros,emque
umacamaradagem àsvezesbrutalporémrealregulavasuavidaquo-
tidiana,muitomaisdoqueaescolaeseumestre,e,porqueessaca-
maradagemerareconhecidapelosensocomum,elatinhaumvalor
moral.
ApartirdofimdaIdadeMédia,essesistemadecamaradagem
encontrarianaopiniãoinfluenteumaoposiçãocrescente,esedete-
riorariagradativamente, atéaparecernofinalcomoumaformade
desordemedeanarquia.Emsuaausência,ajuventudeescolarseria
organizadacombaseemnovosprincípiosdecomandoedehierar-
quiaautoritária.Essaevolução,écerto,nãofoiparticularàinfância,
eseestendeuatodaasociedade-oestabelecimentodoabsolutismo
monárquico foiumdeseusaspectos.Contudo,naescola,elaprovo-
cou-ouacompanhou-umamodificaçãoparaleladosentimentoda
infância,particularmente interessanteparanossoestudo.
Acompanharemos agoraosprogressosdessesnovosprincípios
dedisciplina:
UI
DesdeoséculoXV,aomesmotempoemquelutavamcontraos
hábitosescolaresdesolidariedadecorporativa,esseshomensadeptos
daordem,essesorganizadores esclarecidos,procuravam difundir
umaidéianovadainfânciaedesuaeducação.GersoneoCardeal
d'Estoutevillesãoexemplosmuitocaracterísticos desseestadode
espirito.ParaoCardeald'Estoutevílle\ascriançasnãopodiamser
abandonadassemperigoaumaliberdadesemlimiteshierárquicos.
Elaspertenciamaumaetasinfirmaqueexigia“umadisciplinamaior
eprincípiosmaisestritos”.Paraele,osmestres-escola-osprincipales
-nãodeviammaisserosprimeiroscamaradasdacriança.Elessese-
paravamdosinfirmiquedirigiam.Suamissãonãoconsistiaapenas
emtransmitir,comomaisvelhosdiantedecompanheirosmaisjo-
vens,oselementosdeumconhecimento; elesdeviam,alémdisso,e
emprimeirolugar,formarosespíritos,inculcarvirtudes,educartan-
toquantoinstruir.Essapreocupaçãonãoapareciadeformatão
explícitanostextosanteriores,
Esseseducadoreseramresponsáveispelaalmadosalunos:mo
-
nemusomnesetsingulospedagogospresentesetfuturos...utsicinten-
damregiminisuorumdomesticorumpuerorumetscolarium,Paraeles.
2Théry,HistoiredeVêducation
,1858,2vols,,LII,apêndice.

180 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
eraumdeverdeconsciênciaescolherjudieiosamenteseuscolabora-
dores,osoutrosmestresesubmoniíores :virosbonos
.gravesetdoctos.
Rraumdevertambémusarsemindulgênciaculpadadeseuspoderes
decorreçãoepunição,poisissoenvolviaasalvaçãodaalmadas
crianças,pelasquaiseleseramresponsáveisperanteDeus:neeorwn
dampnationem.
Duasidéiasnovassurgemaomesmotempo:anoçãodafraque-
zadainfânciaeosentimentodaresponsabilidademoraldosmestres.
Osistemadisciplinarqueelaspostulavamnãosepodiaenraizarna
antigaescolamedieval,ondeomestrenãoseinteressavapelocom-
portamentodeseusalunosforadasaladeaula
UI
Anovadisciplinaseintroduziriaatravésdaorganizaçãojámo-
dernadoscolégiosepedagogiascomasériecompletadeclassesem
queodiretoreosmestresdeixavamdeserprimiinterpares
tparase
tornaremdepositáriosdeumaautoridadesuperior.Seriaogoverno
autoritárioehierarquizadodoscolégiosquepermitiria,apartirdo
séculoXV,oestabelecimentoeodesenvolvimentodeumsistemadis-
ciplinarcadavezmaisrigoroso.
Paradefiniressesistema,distinguiremossuastrêscaracterísticas
principais:avigilânciaconstante,adelaçãoerigidaemprincípiode
governoeeminstituição,eaaplicaçãoampladecastigoscorporais
UI
AhistóriadadisciplinadoséculoXÍVaoXVIIpermite-nos fa-
zerduasobservaçõesimportantes.
Emprimeirolugar,umadisciplinahumilhante-ochicoteao
critériodomestreeaespionagemmútuaembenefíciodomestre
-
substituiuummododeassociaçãocorporativaqueeraomesmotan-
toparaosjovensescolarescomoparaosoutrosadultos,Essaevolu-
çãosemdúvidanãofoiparticularàinfância:nosséculosXV-XVI,o
castigocorporalsegeneralizou,aomesmotempoemqueumacon-
cepçãoautoritária,hierarquizada-emsuma,absolutista-dasocie-
dade.Contudo,mesmoassim,restouumadiferençaessencialentrea
disciplinadascriançaseadosadultos-diferençaquenãoexistianes-
segrauduranteaIdadeMédia.Entreosadultos,nemtodoseram
submetidosaocastigocorporal:osfidalgoslheescapavam,eomodo
deaplicaçãodadisciplinacontribuíaparadistinguirascondiçõesso-
ciais.Aocontrário,todasascriançasejovens,qualquerquefossesua
condição,eramsubmetidosaumregimecomumeeramigualmente
surrados.Issonãoquerdizerqueaseparaçãodascondiçõessociais
nãoexistissenomundoescolástico.Elaexistiaaícomonosoutroslu-
gareseeraigualmentemarcada.Masocaráterdegradanteparaos
OSPROGRESSOSDADISCIPLINA 181
adultosnobresdocastigocorporalnãoimpediasuaaplicaçãoàs
crianças.Elesetomouatémesmoumacaracterísticadanovaatitude
diantedainfância,
Osegundofenômenoquenossaanáliserevelaéadilataçaoda
idadeescolarsubmetida40chicote;reservadodeinícioàscrianças
pequenas,apartirdoséculoXVIeleseestendeuatodaapopulação
escolar,quemuitasvezesbeiravaeoutrasultrapassavaos20anos
Tendia-seportantoadiminuirasdistinçõesentreainfânciaeaado-
lescência,afazerrecuaraadolescêncianadireçãodainfância,sub-
metendo-aaumadisciplinaidêntica.Dentrodomundoescolar-
poisissonãoseaplicavatantoàscarreirasnãoescolaresoupouco
escolarizadas-oadolescenteeraafastadodoadultoeconfundido
comacriança,comaqualpartilhavaashumilhaçõesdocastigocor-
poral,ocastigodaplebe.
Portanto,ainfânciaprolongadaatédentrojádaadolescência,
daqualsedistinguiamal,caracterizava-seporumahumilhaçãodeli-
berada.Todaainfância,ainfânciadetodasascondiçõessociais,era
submetidaaoregimedegradantedosplebeus,Osentimentodaparti-
cularidadedainfância,desuadiferençacomrelaçãoaomundodos
adultos,começoupelosentimentomaiselementardesuafraqueza,
quearebaixavaaoníveldascamadassociaismaisinferiores.
Âpreocupaçãoemhumilharainfânciaparadistingui-laeme-
thorã-taseatenuariaaolongodoséculoXVIII,eahistóriadadisci-
plinaescolarnospermiteacompanharamudançadaconsciênciaco-
letivanessaquestão.
NaFrança,aopiniãopúblicamanifestouumarepugnânciapelo
regimedisciplinarescolásticoqueresultouemsuasupressãoporvol-
tade1763,quandoasautoridadestomaramacondenaçãodosjesuí-
tascomopretextoparareorganizarosistemaescolar,
UI
Ocaráterservileaviltadordocastigocorporalnãoeramaisre-
conhecidocomoadaptadoàfraquezadainfância.Aocontrário,ele
provocavaumareprovaçãodeiniciodiscreta,masqueseiriaam-
pliar.Surgiuaidéiadequeainfâncianãoeraumaidadeservilenão
mereciasermetodicamentehumilhada.
Essarepugnância,despertadaaquipelocastigodosalunospe-
quenos,tornou-seaindamaisvivacomrelaçãoaosalunosmaiores.
Poucoapouco,tornou-sehabitualnãomaischicotearosalunosde
retórica.

HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
182
Aomesmotempo,asvelhaspráticasdedelaçãoforamabando-
nadas.JaaspequenasescolasdePort-Royaleatradiçãojansenista,
quetaziaopapeldeprecursora,asevitavam.Porvoltade1700 o'
novocolégiodeSainte-BarbeadotouosmétodosdePort-Royai
3
.
1euregulamentosuprimiatantooscastigoscorporaiscomoos
princípiosmedievaisdeemulaçãoadotadospelosodiadosjesuítas,e
ainstituiçãodosobservadores.Maisqueisso,nareuniãosemanal
dosmestresquedecidiamasadvertênciaseoscastigos,um“tribuno”
dosalunosestavapresenteedefendiaseuscolegas.Umespíritointei-
ramentediferentesurgeaqui.EleseimpôsaocolégiodeLouis-le-
Grandapós1763,eatodaaorganizaçãoescolarfrancesa.
Orelaxamentodaantigadisciplinaescolarcorrespondeu auma
novaorientaçãodosentimentodainfância,quenãomaisseligavaao
sentimentodesuafraquezaenãomaisreconheciaanecessidadede
suahumilhação.Tratava-seagoradedespertarnacriançaarespon-
sabilidadedoadulto,osentidodesuadignidade.Acriançaerame-
nosopostaaoadulto(emborasedistinguissebastantedelenapráti-
ca)doquepreparadaparaavidaadulta.Essapreparaçãonãosefa-
ziadeumasóvez,brutalmente.Exigiacuidadoseetapas,umafor-
mação.Estafoianovaconcepçãodaeducação,quetriunfarianosé-
culoXIX.
}QuicheratHistoiredeSainte-Barbe
>
1850.
6
As“PequenasEscolas’
Estecapituloédedicadoaoestudodedoisfenômenos:primeiro,
noséculoXVII,aespecializaçãodemográficadasidadesde5-7a10-
11anos,tantonaspequenasescolascomonasclassesinferioresdos
colégios:emseguida,noséculoXVI11,aespecialização socialdedois
tiposdeensino,umparaopovo,eooutroparaascamadasburgue-
sasearistocráticas.Deumlado,ascriançasforamseparadasdas
maisvelhas,edeoutro,osricosforamseparadosdospobres.Emmi-
nhaopinião,existeumarelaçãoentreessesdoisfenómenos.Elesfo-
ramasmanifestaçõesdeumatendênciageralaoenclausuramento,
quelevavaadistinguiroqueestavaconfundido,easepararoquees-
tavaapenasdistinguido:umatendênciaquenãoeraestranhaàrevo-
luçãocartesianadasidéiasclaras,equeresultounassociedadesigua-
litáriasmodernas,emqueumacompartimentação geográficarigoro-
sasubstituiuaspromiscuidades dasantigashierarquias,

7
ARudezada
InfânciaEscolar
Ohomemmodernoficarásurpresocomainconveniênciadesses
costumes:elesnosparecemincompatíveiscomnossasidéiassobrea
imanciaeaprimeiraadolescência,ejáémuitoostolerarmosnos
adultosdasclassespopulares,comoindíciodeumaidadementalain-
daaquémdamaturidade.NosséculosXVIeXVII,oscontemporâ-
neossituavamosescolaresnomesmomundopicarescodossoldados,
criados,e,deummodogeral,dosmendigos.Aspessoashonestasque
possuíamalgumbemdesconfiavam tantodeunscomodeoutros.
UmconegodeDijon ',falandosobreajuventudedouradadacidade
(aqualpertenciaofilhodopresidentedaCorteSuprema),edesua
partidaem1592para“irparaasuniversidadesdasLeisemToulou-
a
:
"r
'
;
,
'
,
;
'

/
1C.Mytteaíj,LesEcolesdeDijon .
ARUDEZADAINFÂNCIAESCOLAR 185
se”,chamava-aliteralmentedeescória:“Éumgrandebemnosver-
moslivresdessaescória”,comodeumbandodemalfeitores.Uma
daspersonagensdacomédiadeLariveyassimilavacertosescolares
aosinsubmissosqueviviamàmargemdasociedadecivilizada:“Não
pensoquesejamescolaresesimhomenslivres
,quevivemsemleie
semapetite”,ehomenslivressignificavaalgocomovagabundosou
íruands .Aprópriapalavratruand
,quenagíriafrancesamodernade-
signaumadulto,vemdolatimescolásticotnaanus
,“vagabundo”,
palavraqueseaplicavaprincipalmenteaosestudanteserrantes,essa
chagadaantigasociedadeescolar.Otermoaindaconservaessesenti-
doeminglês,ondeíruantdesignaantesdetudoacriançaquefazga-
zeta,
^
Foinecessáriaapressãodoseducadoresparasepararoescolar
doadultoboêmio,ambosherdeirosdeumtempoemqueaelegância
deatitudeedelinguagemerareservadanãoaoclérigo,masaoadulto
cortês,Umanovanoçãomoraldeveriadistinguiracriança,aome-
nosacriançaescolar,esepará-la:anoçãodacriançabemeducada.
EssanoçãopraticamentenãoexistianoséculoXVI,eformou-seno
séculoXVILSabemosqueseoriginoudasvisõesreformadorasde
umaelitedepensadoresemoralistasqueocupavamfunçõeseclesiás-
ticasougovernamentais.Acriançabemeducadaseriapreservada
dasrudezasedaimoralidade,quesetornariamtraçosespecíficosdas
camadaspopularesedosmoleques.NaFrança,essacriançabem
educadaseriaopequeno-burguês.NaInglaterra,elasetornariao
gentleman
,tiposocialdesconhecidoantesdoséculoXIX,equeseria
criadoporumaaristocraciaameaçadagraçasàspublicschools
,como
umadefesacontraoavançodemocrático.Oshábitosdasclassesdiri-
gentesdoséculoXIXforamimpostosàscriançasdeiníciorecalci-
trantesporprecursoresqueospensavamcomoconceitos,masainda
nâoosviviamconcretamente. Esseshábitosnoprincípioforamhábi-
tosinfantis,oshábitosdascriançasbemeducadas,antesdesetorna-
remoshábitosdaelitedoséculoXIX,e,poucoapouco,dohomem
moderno,qualquerquesejasuacondiçãosocial.Aantigaturbulên-
ciamedieval foiabandonadaprimeiropelascrianças,efinalmente
pelasclassespopulares:hoje,elaéamarcadosmoleques,dosdesor-
deiros,últimosherdeirosdosantigosvagabundos,dosmendigos,dos
“fora-da-lei”,dosescolaresdoséculoXVIeiníciodoséculoXVIL

CONCLUSÃO
AEscolaeaDuração
daInfância
Naprimeirapartedestelivro,estudamosonascimentoeode-
senvolvimentodosdoissentimentosdainfânciaquedistinguimos:o
primeiro,difundidoepopular,a“paparicação”, limitava-seàspri-
meirasidadesecorrespondiaàidéiadeumainfânciacurta;osegun-
do,queexprimiaatomadadeconsciênciadainocênciaedafraqueza
dainfância,e,porconseguinte,dodeverdosadultosdepreservara
primeiraefortalecerasegunda,durantemuitotemposelimitoua
umapequenaminoriadelegistas,padresoumoralistas.Semeles,a
criançateriapermanecidoapenasopoupard,obambino
,opequeno
sercomicoegentilcomoqualaspessoassedistraíamcomafeição
mastambémcomliberdade-quandonãocomlicença-sempreocu-
paçãomoraloueducativa.Passadososcincoouseteprimeirosanos,
acriançasefundiasemtransiçãocomosadultos:essesentimentode
umainfânciacurtapersistiuaindapormuitotemponasclassespopu-
lares.OsmoralistaseeducadoresdoséculoXVII,herdeirosdeuma
tradiçãoqueremontavaaGerson,aosreformadoresdauniversidadede
AESCOLAEADURAÇÃODAINFÂNCIA 187
ParisdoséculoXV,aosfundadoresdecolégiosdofimdaIdadeMé-
dia,conseguiramimporseusentimentogravedeumainfâncialonga
graçasaosucessodasinstituiçõesescolareseàspráticasdeeducação
queelesorientaramedisciplinaram. Essesmesmoshomens,obceca-
dospelaeducação,encontram-setambémnaorigemdosentimento
modernodainfânciaedaescolaridade.
Ainfânciafoiprolongadaalémdosanosemqueogarotmho
aindaandavacomoauxíliode'‘guias’oufalavaseujargão
,quan-
doumaetapaintermediária,antesraraedaíemdiantecadavezmais
comum,foiintroduzidaentreaépocadatúnicacomgolaeaépoca
doadultoreconhecido:aetapadaescola,docolégio.Asclassesde
idadeemnossasociedadeseorganizamemtornodeinstituições.As-
sim,aadolescência,malpercebidaduranteoAncienRegime
,sedis-
tinguiunoséculoXIXejánofimdoséculoXVIIIatravésdaconscri-
çãoemaistarde,doserviçomilitar.Oécohef—oescolar—eestapa-
lavraatéoséculoXIXfoisinônimodeestudante,sendoambasem-
preaadasindiferentemente: apalavracolegialnãoexistia-oêcolier
doséculoXVIaoXVIIIestavaparaumainfâncialongaassimcomo
oconscritodosséculosXIXeXXestáparaaadolescência.
Entretanto,essafunçãodemográficadaescolanãosurgiuime-
diatamentecomoumanecessidade.Aocontrário,durantemuito
tempoaescolapermaneceuindiferenteàrepartiçãoejidistinçãodas
idades,poisseuobjetivoessencialnãoeraaeducaçãodainfância.
NadapredispunhaaescolalatinadaIdadeMédiaaessepapeldefor-
maçãomoralesocial.Aescolamedievalnãoeradestinadaàscrian-
ças,eraumaespéciedeescolatécnicadestinadaàinstruçãodoscléri-
gos,“jovensouvelhos”,comodiziaoDocirinaldeMichault.Ela
acolhiadamesmaformaeindiferentemente ascrianças,osjovense
osadultos,precocesouatrasados,aopédascátedrasmagisteriais,
AtéoséculoXVIII,aomenos,muitodessamentalidadesobrevi-
veunavidaenoshábitosescolares.Vimoscomoadivisãoemclasses
separadaseregularesfoitardia,comoasidadescontinuavammistu-
radasdentrodecadaclasse,freqüentadaaomesmotempoporcrian-
çasde10a13anoseadolescentesde15a20.Nalinguagemcomum,
dizerqueummeninoestavaemidadedeirparaaescolanãosignifi-
cavanecessariamentequesetratavadeumacriança,poisessaidade
podiatambémserconsideradacomoumlimitealémdoqualoindiví-
duotinhapoucaspossibilidadesdesucesso.Édessaformaquedeve-
mosinterpretarossábiosconselhosqueTerezaPançadáaseumari-
doSancho,quandoesteparteemexpediçãocomD.Quixote,segun-
doatraduçãofrancesadoséculoXVII“Nãovosesqueçaisnemde
1Cervantes,DomQuixote,ed.LaPlêiade,parteII,cap.5,p.554.

188 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
mimnemdevossosfilhos.Lembrai-vosquenossoSanchicojátem15
anosfeitos,queérazoávelequedeveentrarparaaescola,seécerto
queseutioabadedesejatorná-loumhomemdaIgreja”.Ia-separaa
escolaquandosepodia,oumuitocedooumuitotarde.Essemodode
verpersistiriaaolongodetodooséculoXVII,adespeitodasinfluên-
ciascontrárias.DeixariavestígiossuficientesnoséculoXVIIIpara
que,apósaRevolução,oseducadoresmaisvelhosselembrassem
deleesereferissem-paracondená-la-
àpráticadoAnciénRégimede
manternocolégioalunosmuitovelhos.Elesódesapareceria real-
mentenoséculoXIX.
Essaindiferençadaescolapelaformaçãoinfantilnãoerapró-
priaapenasdosconservadoresretrógrados.Éimportantenotarque
oshumanistasdoRenascimentoacompartilharamtambémcomseus
inimigos,osescolásticostradicionais.Assimcomoospedagogosda
IdadeMédia,elesconfundirameducaçãocomcultura,eestenderam
aeducaçãoatodaaduraçãodavidahumana,semdarumvalorpri-
vilegiadoàinfânciaouàjuventude,semespecializaraparticipação
dasidades.Maselesexerceramapenasumainfluênciafracasobrea
estruturadaescola,eseupapeifoiexageradamenteaumentadopelos
historiadoresdaliteratura.Osverdadeirosinovadoresforamesses
reformadores escolásticosdoséculoXV,oCardèald’Estouteville,
Gerson,osorganizadoresdoscolégiosepedagogias, e,finalmenteè
acimadetudo,osjesuítas,osoratorianoseosjansenistasdoséculo
XVII.Comelesvemossurgirosentidodaparticularidade infantil,o
conhecimentodapsicologiainfantileapreocupaçãocomumméto-
doadaptadoaessapsicologia.
OcolégiodoAncienRégimeconservouportantodurantemuito
tempoalembrançadesuaancestral,aescolalatinadacatedral.Mui-
totemposepassouatéqueeleaparecessecomoumainstituiçãoespe-
cialmentereservadaàscrianças.
Nemtodoomundo,porém,passavapelocolégio,nemmesmo
pelaspequenasescolas.Nessescasosdemeninosquejamaishaviam
idoaocolégio,ouquenelehaviampermanecidomuitopoucotempo
(umoudoisanos),osantigoshábitosdeprecocidadepersistiam
comonaIdadeMédia.Continuava-senodomíniodeumainfância
muitocurta.Quandoocolégionãoprolongavaainfância,nadamu-
dava.
AindanoséculoXVII,adistribuiçãodaescolaridadenãosefa-
zianecessariamentesegundoonascimento.Muitosjovensnobresig-
noravamocolégio,evitavamaacademiaeseuniamsemdelongaàs
tropasemcampanha.EmseufamosorelatodamortedeTurenneem
1675,M
me
deSévignéassinalaapresença,aoladodoMarechal,de
seusobrinho,quetinha14anos.NofimdoreinadodeLuísXIV,ha-
AESCOLAEADURAÇÃODAINFÂNCIA 189
viatenentesde14anosemseuexército.Chevertentrouparaoexérci-
toaos1
1
2
.
Essaprecocidadetambémeraencontradaentreasoldadesca.
M
me
deSévigné,quedecididamenteseinteressavamuitopelosassun-
tosmilitares,comoobservaE.G.Leonard,contaaseguinteanedota:
“Despréaux foicomGourvilleverM.lePrince.M.lePrinceman-
dou-overseuexército.-Então,quemedizeis?-perguntouM.k
Prince.-Monsenhor-disseDespréaux,-creioquevossoexército
serábomquandoformaior.Équeosoldadomaisvelhoaindanão
tem18anos
ComumaosoficiaiseaoshomensdoséculoXVII,essaprecoci-
dadepersistiuaindamuitotempoentreossoldados,emboranosécu-
loXVIIItenhadesaparecidoentreosoficiais,quesóentravamcm
serviçoapósumcicloescolarmaisoumenoscompleto,e,àsvezes,
prolongadoporescolasmilitaresespeciais.
SeaescolarizaçãonoséculoXVIIaindanãoeraomonopóliode
umaclasse,erasemdúvidaomonopóliodeumsexo.Asmulheres
eramexcluídas.Porconseguinte,entreelas,oshábitosdeprecocida-
deedeinfânciacurtamantiveram-seinalteradosdaIdadeMédiaaté
oséculoXVII.
“Desdequecompleteimeus12anos,graçasaDeuscujavidaé
eterna,casei-mecincovezesnopórticodaigreja.”Assimfalavauma
dasmulheresdeChaucer,noséculoXIV.MasnofimdoséculoXVI,
CatherineMarioncasou-secomAntoineAmauldaos13anos.Eela
erabastantedonadesuacasaparadar“umabofetadaemsuapri-
meiracamareira,umamoçade20anos,assentada,porqueestanão
haviaresistidoaumacariciaquealguémlhefizeraAautorades-
taslinhas,CatherineLemaítre,tinha-secasadoaos14anosde
idade.AspessoasfalavamemcasarsuairmãAnneaos12anos,e
sóavocaçãoreligiosadameninafezcomqueessesplanosfracas-
sassem.Opretendentenãotinhapressaegostavadafamília,pois,
comonosdizCatherineLemaítre,“nãosóesperouparasecasar
atéqueAnnetivesseprofessado,comonãoquisfazê-loantesde
vertambémtransformadaemreligiosanossairmãcaçula,que,naé-
pocaemquesefalavadeseucasamentocomAnne,eraumacriança
deseisanos”.Nomáximo,quatroouseisanosdenoivado.Aliás,a
partirdos10anos,asmeninasjáerammutherzinhascomoessames-
maAnneArnauld,umaprecocidadeexplicadaporumaeducação
2EG.Leonard,LesProblèmesdeVarmée,1958,p.164.
3L.Cognet,LaReformedePort-Royal,1950.pp.13e100.
4L.Cognet,op.cit

190 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMfUA
quetreinavaasmeninasparaquesecomportassemdesdemuitocedo
comoadukas:“Desdeos10anosdeidadeessapequenatinhaoespí-
ritotãoavançadoquegovernavatodaacasadeM
me
Arnauld,aqual
afaziaagirassimdeliberadamente, paraformá-lanosexercíciosde
umamãedefamília,jáqueestedeveriaserseufutura”.
Alémdaaprendizagemdoméstica,asmeninasnãorecebiampor
assimdizernenhumaeducação.Nasfamíliasemqueosmeninosiam
aocolégio,elasnãoaprendiamnada.Fénelonqueixa-sedessaigno-
rânciacomodeumfatogeneralizado.Reconhecequeaspessoasse
preocupavammuitocomosmeninos:“Osmaishábeisespecialistas
seaplicaramemfornecerregrassobreoassunto.Quantosmestrese
quantoscolégiosvemos!Quantasdespesassãofeitascomasimpres-
sõesdelivros,aspesquisascientíficas,osmétodosdeensinodas
línguas,aescolhadosprofessores...Essasdespesasdemonstrama
altaconsideraçãoemquesetemaeducaçãodosmeninos”.Masas
meninas!“Aspessoasseacreditamnodireitodeabandonarcega-
menteasmeninasàorientaçãodemãesignoranteseindiscretas
5
.”
Asmulheresmalsabiamlereescrever:“Ensinaiasmeninasalerea
escrevercorretamente.Êvergonhoso,porémcomum,ver-semulhe-
resdeespíritoebemeducadas(portanto,daboasociedade)nãosa-
berempronunciarbemoquelêem:ouelashesitamoulêemnuma
vozcantada,,.Cometemerrosaindamaisgrosseirosdeortografia,
ounamaneiradeformarouligarasletrasaoescrever”.Asmulheres
eramsemi-analfabetas. Criou-seohábitodeenviarasmeninasacon-
ventosquenãoeramdestinadosàeducação,ondeelasacompanha-
vamosexercíciosdevotoserecebiamumainstruçãoexclusivamente
religiosa.
NofimdoséculoXVII,oSaint-CyrdeM
me
deMaintenon.
forneceriaomodelodeumainstituiçãodecarátermodernoparaas
meninas,queaíingressavamentreos7eos12anosesaíamemtorno
dos20\Asqueixascontraaspequenasescolasmistaseoensinodas
ursulinasindicamumatendênciageralemfavordaescolarização
feminina,masessaescolarização seiniciariacomumatrasodecerca
dedoisséculos,
ApartirdoséculoXV,esobretudonosséculosXVIeXVII,
apesardapersistênciadaatitudemedievaldeindiferençaàidade,o
colégioiriadedicar-seessencialmenteàeducaçãoeàformaçãodaju-
5Fénelon,DefêducaüondesjVIes
,1687.
6Th,LavaJlée*HistoiredelamaisonroyaledeSaint-Cyr,1862.
AESCOLAEADURAÇÃODAINFÂNCIA 191
ventude,inspirando-seemelementosdepsicologiaqueeramencon-
tradosequehojereconhecemosemCordier,naRatiodosjesuítase
naabundanteliteraturapedagógicadePort-RoyaLDescobriu-seen-
tãoanecessidadedadisciplina;umadisciplinaconstanteeorgânica,
muitodiferentedaviolênciadeumaautoridademalrespeitada,Os
legisladoressabiamqueasociedadeturbulentaqueelescomandavam exi-
giaumpulsofirme,masadisciplinaescolarnasceudeumespíritoe
deumatradiçãomuitodiferentes.Adisciplinaescolarteveorigemna
disciplinaeclesiásticaoureligiosa;elaeramenosuminstrumentode
coerçãodoquedeaperfeiçoamentomoraleespiritual,efoiadotada
porsuaeficácia,porqueeraacondiçãonecessáriadotrabalhoemco-
mum,mastambémporseuvalorintrínsecodeedificaçãoeascese.Os
educadoresaadaptariamaumsistemadevigilânciapermanentedas
crianças,dediaedenoite,aomenosemteoria.
ÀdiferençaessencialentreaescoladaIdadeMédiaeocolégio
dostemposmodernosresidenaintroduçãodadisciplina.Estasees-
tenderiagradualmentedoscolégiosàspensõesparticularesondemo-
ravamosalunos,e,emcertoscasos,aoconjuntodacidade,embora
napráticasemmuitosucesso.Osmestrestenderamasubmeteroalu-
noaumcontrolecadavezmaisestrito,noqualasfamílias,apartir
dofimdoséculoXVII,cadavezmaispassaramaverasmelhores
condiçõesdeumaeducaçãoséria.Chegou-seaaumentarosefetivos
outroraexcepcionaisdosinternos,eainstituiçãoidealdoséculoXIX
seriaointernato,querfosseumliceu,umpequenoseminário,umco-
légioreligiosoouumaescolanormal.Apesardapersistênciadostra-
çosarcaicos,adisciplinadariaaocolégiodoAncienRegimeumcará-
termodernoquejáanunciavanossosestabelecimentos secundários
contemporâneos. Essadisciplinanãosetraduziriaapenasporuma
melhorvigilânciainterna,mastenderiaaimporàsfamíliasorespeito
pelocicloescolarintegral.Aescolaridade setornariasemdúvida
umaquestãodecriançasedejovens-ouseja,nãoseestenderiamais,
comonaIdadeMédiaounoRenascimento, àsidadesdamaturidade
-masseriaumaescolaridaderelativamentelonga(menoslonga,en-
tretanto,doqueadaIdadeMédia).Aspessoasnãosecontentariam
maisempassarumanooudoisnocolégio,comoaindaerafreqüente
noiníciodosécuioXVII,tantoentreosnobresempobrecidosou
apressados,comoentreaspessoashumildes,osartesãosfelizesem
daràssuascriançasumatinturadelatim.NofimdoséculoXVIII,
ocicloescolarerabastantesemelhanteaodoséculoXIX:quatroou
cincoanosnomínimo.Acriança,enquantoduravasuaescolaridade,
erasubmetidaaumadisciplinacadavezmaisrigorosaeefetiva,e
essadisciplinaseparavaacriançaqueasuportavadaliberdadedo
adulto.Assim,ainfânciaeraprolongadaatéquasetodaaduração
docicloescolar.

192 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
Deumlado,haviaapopulaçãoescolarizada,edeoutro,aqueles
que,segundohábitosimemoriais,entravamdiretamentenavida
adulta,assimqueseuspassosesuaslínguasficavamsuficientemente
firmes.Essadivisãonãocorrespondiaàscondiçõessociais.Semdú-
vida,onúcleoprincipaldapopulaçãoescolareraconstituídode
famíliasburguesas,dejuristasedeeclesiásticos.Mas,comovimos,
havianobresentreosquenãofrequentavam aescola,eartesãose
camponesesentreosqueofaziam.Asmeninasdeboafamílianão
erammaisinstruídasdoqueasdasclassesinferiores,epodiamsê-lo
atémenos,pois,emcertoscasos,asmeninasdopovoaprendiama
escrevercomperfeição,comoumofício,Apopulaçãoescolar,numa
épocaemqueocolégioministravaquaseatotalidadedosensinos
quehojedividimosemprimário,secundárioesuperior,coincidia
muitomenosdoquehojecomocontornodascondiçõessociais,O
movimentodeapostoladoeducacionaldofimdoséculoXVII,que
resultounoaparecimentodosIrmãosdasEscolasCristãs,nãoseli-
mitavaapenasaospobres.Asescolaspopulareseraminvadidaspor
pequeno-burgueses, assimcomoasclassesinferioresdoscolégioses-
tavamcheiasdepequenosartesãosoucamponeses.
Osacontecimentospoderiamter-sedesenroladoaseguirdetal
formaqueosistemaeducacionalfrancêssetivessebaseadonaescola
única:afinal,oAncienRêgime,atéoséculoXVIII,praticamentesó
conheceuaescolaúnica.Afrequênciaescolarseteriaestendidoso-
cialegeograficamente; aduraçãodosciclos,poroutrolado,teriava-
riadosegundoasvocações:apenasosjuristaseoseclesiásticosteriam
seguidoatéofimdosdoisoutrêsanosdefilosofia*correspondentes
anossosanosdefaculdade;osoutros-osartesãosousoldados-te-
riamparadonumestágioanterior.Estaeradefatoasituaçãoem
meadosdoséculoXVII:oscolégiosouasescolaslatinasestendiam
umaredecircularemtornodeumgrandecolégiocomasériecom-
pletadeclasseseadensidadedessaredediminuíanadireçãodaperi-
feria.Elaeraconstituídadeváriasescolasqueabrigavamapenasas
classesinferioresdocicloescolar.Issopodenosparecersurpreenden-
tequandopensamosnorigorenadiversidadedahierarquiasocialdo
AncienRêgime:oshábitosdeescolaridadediferiammenossegundo
ascondiçõessociaisdoquesegundoasfunções.Consequentemente,
asatitudesexistenciais,assimcomováriostraçosdavidaquotidiana]
nãodiferiammuitomais.
Masesseestadodecoisasnaoduroumuito,e,apartirdoséculo
XVIII,aescolaúnicafoisubstituídaporumsistemadeensinoduplo,
emquecadaramocorrespondianãoaumaidade,masaumacondi-
çãosocial:oliceuouocolégioparaosburgueses(osecundário)ea
escolaparaopovo(oprimário).Osecundárioéumensinolongo.O
primáriodurantemuitotempofoiumensinocurto,e,tantonaIngla-
AESCOLAEADURAÇÃODAINFÂNCIA 193
terracomonaFrança,foramnecessáriasasrevoluçõessociaisorigi-
náriasdasúltimasgrandesguerrasparaprolongá-lo.Talvezumadas
causasdessaespecialização socialresidajustamentenosrequisitos
técnicosdoensinolongo,domomentoemqueeleseimpôsdefiniti-
vamenteaoscostumes;nãoeramaispossíveltoleraracoexistênciade
alunosquenãoestavamdesdeoiníciodecididosairatéofim,aacei-
tartodasasregrasdojogo,poisasregrasdeumacoletividadefecha-
da,escolaoucomunidadereligiosa,exigemomesmoabandonototal
queojogo.Domomentoqueociclolongofoiestabelecido,nâohou-
vemaislugarparaaquelesque,porsuacondição,pelaprofissãodos
paísoupelafortunanãopodiamsegui-lonemseproporasegui-lo
atéofim.
Masháumaoutracausaparaessaevolução:aaçãodessesho-
mensdetentoresdaautoridade,darazãoedosaber,quejáencontra-
mosnaorigemdasgrandestransformaçõesdoscostumesentreaIda-
deMédiaeostemposmodernos.Forameles,comodissemos,que
compreenderam aparticularidadedainfânciaeaimportânciatanto
moralcomosocialdaeducação,daformaçãometódicadascrianças
eminstituiçõesespeciais,adaptadasaessaFinalidade.Muitocedo,al-
gunsdelesseperturbaramcomaextensãodeseuprópriosucesso-
umsucessosociológicodoqualnemsempreestavamconscientes.Ri-
chelieu,quepreviaumaAcademiamodelonacidadeutópicaque
pretendiaconstruiremRichelieu,edepoisColbert,exprimiramseus
temoresdeumainflaçãodeintelectuaisedeumacrisedemão-de-
obrabraçal:umvelhotemaqueasdiversasgeraçõesdaburguesia
conservadoratransmitiramaténossosdias.NoséculoXVII,apesar
desuaautoridade,essesprecursorespregavamnodeserto:nãopude-
ramfazernadaparafrearosucessodoscolégiosesuapenetraçãono
campo.MasnoséculoXVIII,seupreconceito foiadotadoporessa
categoriadepessoas“esclarecidas'
*que,numacertamedida,apare-
cememváriosdomínioscomoseussucessores;esseshomensdoIlu-
minismo,dassociedadesdepensamento,graçasaseunúmeroesuas
relações,exerceramsobreaopiniãopúblicaumainfluênciacomque
nenhumgrupodelegisladores,clérigosouintelectuaispoderiaterso-
nhadonopassado.Algunsdeles,comoCondorcet,permaneceram
fiéisàidéiadeumensinouniversalabertoatodos.Masamaioria
propôs,aocontrário-apartirdaexpulsãodosjesuítas-limitara
umaúnicaclassesocialoprivilégiodoensinolongoeclássico,econ-
denaropovoaumensinoinferior,excíusivamente prático.
Sabemostambémqueosentimentodainfânciaencontrousua
expressãomaismodernanessesmesmosmeiosdeburguesesesclare-
cidos,admiradoresdeGreuzeeleitoresdoEmiteoudePaméla.Mas
osantigosgênerosdevidasobreviveramquaseaténossosdiasnas
classespopulares,submetidaspormenostempoàaçãodaescola.

m HtSTÓRJASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
Teríamosatémesmorazãoemperguntarsenessepontonãohouve
umaregressãoduranteaprimeirametadedoséculoXIX,sobain-
fluênciadademandademão-de-obra infantilnaindústriatêxtil.O
trabalhodascriançasconservouumacaracterísticadasociedademe-
dieval:aprecocidadedapassagemparaaidadeadulta.Todaacom-
plexidadedavidafoimodificadapetasdiferençasdotratamentoes-
colardacriançaburguesaedacriançadopovo,
Existeportantoumnotávelsincronismoentreaclassedeidade
modernaeaclassesocial:ambasnasceramaomesmotempo,nofim
doséculoXVIII,enomesmomeio:aburguesia.
3.AFamília
/
AsImagensdaFamília
Pareceriacontestávelfalarmosdeumaiconografiaprofanana
IdadeMédiaantesdoséculoXIV,detalformaoprofanosedistin-
guemaldosagrado.Contudo,entreascontribuiçõesdeorigempro-
fanaaessarepresentação totaldomundo,háumtemacujafrequên-
ciaepopularidadesãosignificativas:otemadosofícios.Osarqueó-
logosnosinformaramqueosgaulesesdaépocaromanagostavamde
representaremseusbaixos-relevos funerários'cenasdesuasvidasde
trabalhadores
'.Essapreferênciapelostemasdeofíciosnãoéencon-
tradaemnenhumaoutraparte.Osarqueólogostambémficaramim-
pressionadoscomsuararidade,quandonãocomsuaausência,na
iconografiafuneráriadaÁfricaromana\Otemaremonta,porcon-
seguinte,aumpassadoremoto.Elesemanteveeatémesmosedesen-
1P,M,Diival,LaViequotidienneenGaule,1952,
2G.Ch.Fíeard*LesReligionsdeIAfriqueantique,1954,

196 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
volveuduranteaIdadeMédia,Ressalvandooanacronismodaex-
pressão,poderiamosdizer,grossomodo,massemdeformaraverda-
de,queaiconografia“profana”medievalconsisteacimadetudono
temadosofícios.Éimportantequedurantetantotempooofíciote-
nhaparecidoàspessoasseraprincipalatividadedavidaquotidiana,
umaatividadecujalembrançaseassociavaaocultofuneráriodaé-
pocagalo-romanaeàconcepçãoeruditadomundodaIdadeMédia,
noscalendáriosdascatedrais.Semdúvida,issopareceperfeitamente
naturalaoshistoriadoresmodernos.Masterãoelesseindagado
quantoshojeemdiaprefeririamesquecerseuoficioegostariamde
deixarumaoutraimagemdesimesmos?Emvãotentamosintroduzir
algumlirismonos'aspectosfuncionaisdavidacontemporânea;ore-
sultadoéumaespéciedeacademicismosemraízespopulares.Òho-
memdehojenãoescolheriaseuofício,mesmoquegostassedele,
parapropô-locomotemaaseusartistas,mesmoqueestesúltimos
pudessemaceitá-lo.Aimportânciadadaaoofícionaiconografiame-
dievaléumsinaldovalorsentimentalqueaspessoaslheatribuíam.
Eracomoseavidaprivadadeumhomemfosseantesdemaisnada
seuofício.
Umadasrepresentaçõesmaispopularesdoofíciooligaaotema
dasestações,cujaimportânciajátivemosaocasiãodereconhecera
propósitodasidadesdavida
3
.SabemosqueaIdadeMédiaocidental
secaracterizoupeiohábitodereuniratravésdosimbolismonoções
cujascorrespondências secretas,ocultaspordetrásdasaparências,se
desejavasublinhar.AIdadeMédialigavaasprofissõesàsestações,
assimcomoofaziacomasidadesdavidaouoselementos.Eraesseo
sentidodoscalendáriosdepedraedevidro,doscalendáriosdascate-
draisedoslivrosdehoras.
Aiconografiatradicionaldos12mesesdoanofoifixadanosé-
culoXII,talcomoaencontramos,commuitopoucasvariantes,em
Saint-Denis,emParis,emSenlis,emChartres,emAmiens,em
Reimsetc.:ostrabalhoseosdias.Deumlado,osgrandestrabalhos
daterra:ofeno,otrigo,avinhaeovinho,oporco.Deoutro,apau-
sa,doinvernoedaprimavera.Sãocamponesesquetrabalham,masa
representaçãodosmomentosdeinterrupçãodotrabalhooscilaentre
ocamponêseonobre.Janeiro(afestadeReis)pertenceaonobre,
diantedeumamesanaqualnãofaltanada.Fevereiropertenceao
plebeuquevoltaàcasacarregandolenhaeseaquecepertodofogo.
Maiooraéumcamponêsquedescansanomeiodasflores,oraum
jovemnobrequeparteparaacaçaepreparaseufalcão.Emtodoo
3Cf.supra
*parte1,cap. !.
ASIMAGENSDAFAMÍLIA 197
caso,éaevocaçãodajuventudeparticipandodasfestasdemaio.
Nessascenas,ohomemestásempresozinho:excepcionalmenteum
jovemcriado(comoemSãoDenis)aparecedepéatrásdoamo,que
comesentadoemsuamesa.Poroutrolado,trata-sesempredeum
rapazenuncadeumamulher.
Podemosveressaiconografiaevoluiraolongodoslivrosdeho-
rasatéoséculoXVI,deacordocomtendênciassignificativas.
Primeiro,vemossurgiramulher,adamadoamorcortêsoua
dona-de-casa.NolivrodehorasdoDuquedeBerry,nomêsdefeve-
reiro,ocamponêsnãoémaisoúnicoaseaquecer,comonasparedes
deSenlis,deParisoudeAmiens.Trêsmulheresdacasajáestãosen-
tadasemtornodofogo,enquantoohomemaindaestádoladodefo-
ra,transidodefrionopátiocobertodeneve.Emoutrasrepresenta-
ções,acenasetornaaimagemdeuminterior,deumanoitedeinver-
noemqueaspessoasficamdentrodecasa:ohomem,diantedalarei-
ra,aindaaqueceasmãoseopédescalço,mas,aolado,suamulher
trabalhatranqüilamenteemsuaroca(Charlesd’Angoulême).Em
abril,apareceotemadacortedeamor:adamaeseuamigonumjar-
dimfechadocommuros(Charlesd’Angoulême). Elatambémacom-
panhaoscavaleirosàcaça.Masmesmoadamanobrenãoémaisa
heroínaociosaeumtantoimagináriadosjardinsdeabril,ouacava-
leiradasfestasdemaio;elatambémdirigeostrabalhosdessejardim
deabril(Turim).Acamponesaaparecemaisvezes.Elaparticipados
trabalhosdoscamposcomoshomens(Berry,Angouiême).Dáde
beberaostrabalhadoresquefazemacolheitaenquantoelesdescan-
samnosdiasquentesdeverão(Hennessy,Grimani).Seumaridoa
levadevoltanumacarretacomocantildevinhoqueelalhehavia
trazido.Oscavaleiroseasdamasnãoestãomaisisoladosnospraze-
resnobresdeabri!oudemaio.Assimcomoadamadolivrodehoras
deTurimcuidavadeseujardim,oscavaleiroseasdamassemistu-
ramaoscamponeses,aoscolhedoresdeuva(comonacenadacolhei-
tadecerejasdolivrodehorasdeTurim).Quantomaisavançamos
notempo,esobretudonoséculoXV],maisfreqüentemente afamília
dosenhordaterraérepresentadaentreoscamponeses,supervisio-
nandoseutrabalhoeparticipandodeseusjogos.Numerosastapeça-
riasdoséculoXVIdescrevemessascenascampestresemqueosse-
nhoresesuascriançascolhemuvasesupervisionamacolheitadotri-
go.Ohomemnãoestámaissozinho.Ocasalnãoémaisapenasoca-
salimagináriodoamorcortês,Amulhereafamíliaparticipamdo
trabalhoevivempertodohomem,nasalaounoscampos.Nãose
tratapropriamentedecenasdefamília:ascriançasaindaestãoau-
sentesnoséculoXV.Masoartistasenteanecessidadedeexprimir
discretamenteacolaboraçãodafamília,doshomensedasmulheres

198 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
dacasa,notrabalhoquotidiano,comumapreocupaçãodeintimida-
deoutroradesconhecida.
Aomesmotempo,aruasurgenoscalendários,Aruajáeraum
temafamiliardaiconografiamedieval:elaseanimacomumavida
particularmente expressivanasadmiráveisvistasdaspontesdeParis
daVidadeSãoDenis,ummanuscritodoséculoXIII.Assimcomo
nascidadesárabesdehoje,aruaeraolugarondesepraticavamos
ofícios,avidaprofissional, asconversas,osespetáculoseosjogos.
Foradavidaprivada,pormuitotempoignoradapelosartistas,tudo
sepassavanarua,Noentanto,ascenasdoscalendários,deinspira-
çãorural,durantemuitotempoaignoraram.NoséculoXV,arua
tomouseulugarnoscalendários.Everdadequeosmesesdeno-
vembroededezembrodolivrodehorasdeTurimsãoilustradoscom
otradicionalsacrifíciodoporco.Masaqui,elesepassanarua,eos
vizinhosestãodiantedesuasportasparaobservá-lo.Nocalendário
dolivrodehorasdeAdelaidedeSavoie,apareceomercado:mole-
quescortamasbolsasdedonas-de-casaocupadasedistraídas-reco-
nhecemosaíotemadospequenosbatedoresdecarteiras,queseiria
manternapinturapicarescaaolongodetodooséculoXVII
4
.Uma
outracenadomesmocalendáriorepresentaavoltadomercado:uma
comadrepáraparafalarcomsuavizinha,queestánajanela;alguns
homensdescansamsentadosnumbanco,protegidosporumtelheiro,
edistraem-sevendomeninosjogarpélaelutar.Essaruamedieval,
assimcomoaruaárabedehoje,nãoseopunhaàintimidadedavida
privada;eraumprolongamentodessavidaprivada,ocenáriofami-
liardotrabalhoedasrelaçõessociais.Osartistas,emsuastentativas
relativamentetardiasderepresentaçãodavidaprivada,começariam
pormostrá-lanarua,antesdesegui-laatédentrodecasa.Talvez
essavidaprivadasepassassetantooumaisnaruadoqueemcasa.
Comarua,osjogosinvadiramascenasdoscalendários:osjo-
gosdecavalaria,comoostorneios(Turim,Hennessy),osjogosco-
munsatodos,easfestasfolclóricas,comoaárvoredemaio.Ocalen-
dáriodolivrodehorasdeAdelaidedeSavoiecompõe-seessencial-
mentedeumadescriçãodosmaisdiversosjogos,jogosdesalão,jo-
gosdeforçaedehabilidade,jogostradicionais:afestadeReis,a
dançademaio,aluta.ohóquei,asdisputasentredoishomensarma-
dosdevarasemduasbarcas,asguerrasdeneve.Emoutrosmanus-
critos,assistimosacertamesdetirocombestas(Hennessy),apas-
seiosdebarcocommúsica(Hennessy)eosbanhoscoletivos(Grima-
ni).Ora,sabemosqueosjogosnãoeramentãoapenasdiversões,mas
4LivrodeHorasdeAdelaidedeSavoie,duquesadeBorgonha.ChantiHy,
ASIMAGENSDAFAMlLIA 199
umaformadeparticipaçãonacomunidadeounogrupo;jogaya-se
emfamília,entrevizinhos,entreclassesdeidade,entreparóquias
s
.
Finalmente,apartirdoséculoXVI,umanovapersonagemen-
traemcenanoscalendários:acriança.Semdúvida,elajáaparecia
comfreqüêncianaiconografiadoséculoXVI,particularmentenos
MiraclesdeNotreDame.Maselahaviapermanecidoausentedosca-
lendários,comoseessatradiçãoiconográficaantigativessehesitado
emaceitaresseelementotardio.Nostrabalhosdoscampos,nãoapa-
recemcriançasaoladodasmulheres.Apenasalgumasservemàmesa
nosbanquetesdejaneiro.Percebemo-lastambémnomercadodoli-
vrodehorasdeAdelaidedeSavoie;nessemesmomanuscrito,das
brincamdejogarbolasdeneve,atrapalhamcomsuabagunçaopre-
gadornaigrejaesãoexpulsas.Nosúltimosmanuscritosflamengos
doséculoXVI,elassedivertemaiegremente;percebe-seapredileção
quelhesdedicaoartista.Oscalendáriosdoslivrosdehorasde
HennessyedeGrimaniimitaramcomprecisãoaaldeiacobertade
nevedasTrèsRichesHeuresdoDuquedeBerry,nacenadomêsde
janeiroquedescrevemosacima,emqueocamponêscorreparacasaa
fimdeseuniràsmulheresqueseaquecem.Contudo,elesacrescenta-
ramumaoutrapersonagem:acriança.Eacriançaaparecenapose
doManneken-Pis,quesetornarafreqüentenaiconografiadaépoca
-acriançaurinapelaaberturadaporta.EssetemadoManneken-Pis
éencontradoemtodaaparte:lembremososermãodeSãoJoãoBa-
tistadomuseudosAugustinsdeToulouse(queoutroraornavaaca-
peladoParlamentodessacidade),ouumcertoputtodeTiciano
*.
NesseslivrosdehorasdeHennessyeGrimani,ascriançaspati-
namnogelo,brincamdeimitarostorneiosdosadultos(algunsreco-
nheceriamentreelasojovemCarlosV).NolivrodehorasdeMuni-
que,elasseatirambolasdeneve.NoHortulusanimae,elasbrincam
decortedeamoredetorneio,montadasnumabarrica,oupatinam
nogelo
7
.
Asrepresentações sucessivasdosmesesdoanointroduziram
portantoessasnovaspersonagens:amulher,ogrupodevizinhose
companheiros,efmalmenteacriança.Eacriançaseligavaaessane-
cessidadeoutroradesconhecida deintimidade,devidafamiliar,
quandonãoaindaprecisamente,devida“emfamília”.
AolongodoséculoXVI,essaiconografiadosmesessofreria
umaúltimatransformaçãomuitosignificativaparanossoestudo:ela
5CLsupra,parte1,cap.4.
6Umdosputtida“Bachanalia”doPrado(Madri).
7Hortulusanimae,Frankfurt,1907,7vob.

200 HISTORIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
setornariaumaiconografiadafamília.Elasetornariafamiliaraose
combinarcomosimbolismodeumaoutraalegoriatradicional:as
idadesdavida.Haviaváriasmaneirasderepresentarasidadesdavi-
da,masduasdelaserammaiscomuns:aprimeira,maispopular,
sobreviveunagravura,erepresentavaasidadesnosdegrausdeuma
pirâmidequesubiadonascimentoàmaturidade,edaídesciaatéa
velhiceeamorte.Osgrandespintoresrecusavam-seaadotaressa
composiçãodemasiadoingênua.Demodoqual,adotavamarepre-
sentaçãodastrêsidadesdavidasobaformadeumacriança,alguns
adolescentes-emgeralumcasal-eumvelho.NoquadrodeTicia-
no\porexemplo,aparecemdoisputtidormindo,umcasalformado
porumacamponesavestidatocandoflautaeumhomemnunopri-
meiroplano,e,aofundo,umvelhosentadoerecurvadosegurando
umacaveira.OmesmotemaéencontradoemVanDycknoséculo
XVII.Nessascomposições, astrêsouquatroidadesdavidasãore-
presentadasseparadamente,segundoatradiçãoiconográfica.Nin-
guémteveaidéiadereuni-lasdentrodeumamesmafamília,cujas
geraçõesdiferentessimbolizariam astrêsouquatroidadesdavida.
Osartistas,eaopiniãoqueelestraduziam,permaneciam fiéisauma
concepçãomaisindividualistadasidades:omesmoindivíduoerare-
presentadonosdiversosmomentosdeseudestino.
Entretanto,aolongodoséculoXVI,surgiraumanovaidéia,
quesimbolizavaaduraçãodavidaatravésdahierarquiadafamília.
JátivemosaocasiãodecítarLeGrandPropriétairedetouteschoses
,
essevelhotextomedievaltraduzidoparaofrancêseeditadoem
1556
l0
.Comoobservamos,esselivroeraumespelhodomundo,O
sextolivrotratadas“Idades”,Éilustradocomumaxilogravuraque
nãorepresentanemosdegrausdasidades,nemastrêsouquatroida-
desseparadas,massimplesmenteumareuniãodefamília.Opaiestá
sentadocomumacriancinhasobreosjoelhos.Suamulherestádepé
àsuadireita.Umdosfilhosestáàsuaesquerda,eooutrodobrao
joelhoparareceberalgoqueopailhedá.Trata-seaomesmotempo
deumretratodefamília,comoosqueabundavamnessaépocanos
PaísesBaixos,naItália,naInglaterra,naFrançaenaAlemanha,e
deumacenadegênerofamiliar,comoasqueospintoresegravado-
resmultiplicariamnoséculoXVILEssetemaconheceriaamaisex-
traordináriapopularidade.Nãoeraumtematotalmentedesconheci-
dodaIdadeMédia,aomenosdofinal.Foidesenvolvidodeforma
8Londres,BridgewaterGallery.
9"AsQuatroIdadesdaVida”.
10Cf.supra
%parte1,cap.1.
ASIMAGENSDAFAMlLIA 201
notávelnumcapiteldasloggiasdopalácioDucaldeVeneza,ditoca-
piteldocasamento.VenturidataessarepresentaçãodeceTcade
1424",enquantoToescaacolocanofimdoséculoXIV,oquepare-
cemaisprováveldevidoaoestiloeaotraje,masmaissurpreendente
emvirtudedaprecocidadedotemaAsoitofacesdessecapitelcon-
tam-nosumahistóriadramáticaqueilustraafragilidadedavida,um
temafamiliarnosséculosXIVeXV-porémaqui,essedramasepas-
sanoseiodeumafamília,eissoénovo.Arepresentaçãocomeça
pelonoivado.Aseguir,ajovemmulheraparecevestidacomumtraje
decerimôniasobreoqualforamcosturadospequenosdiscosdeme-
tal'seriamsimplesenfeitesouseriammoedas,jaqueasmoedasde-
sempenhavamumpapelnofolcloredocasamentoedobatismo?Ater-
ceirafacerepresentaacerimôniadocasamento,nomomentoemque
umdoscônjugesseguraumacoroasobreacabeçadooutro:ritoque
subsistiunaliturgiaoriental.Então,osnoivostêmodireitodesebei-
jar.Naquintaface,elesestãodeitadosnusnoleitonupcial.Nasce
umacriança,queapareceenroladaemcueirosesegurapelopaiea
mâejuntos.Suasroupasparecemmaissimplesdoquenaepocado
noivadoedocasamento:elessetornarampessoassérias,queseves-
temcomumacertaausteridadeousegundoamodaantiga.Asétima
facereúnetodaafamília,queposaparaumretrato.Opaieamaese-
guramacriançapeloombroepelamão.Jáéoretratofamiliar,tal
comooencontramosnoLeGrandPropriétaire.Mas,comaoitava
face,odramaexplode:afamíliasofreumaprova,poisacriançaesta
morta,estendidasobreacama,comasmãospostas.Amâeenxuga
aslágrimascomumadasmãosepõeaoutranobraçodacriança,o
paireza.Outroscapitéis,vizinhosdeste,sãoornadoscomputtinus
quebrincamcomfrutas,avesoubolas:temasmaisbanais,masque
permitemrecolocarocapiteldocasamentoemseucontextoicono-
práfico
Ahistóriadocasamentocomeçacomoahistóriadeumafamí-
lia,masacabacomotemadiferentedamorteprematura.
NomuseuSaint-Raimond,emToulouse,podemosverostrag-
mentosdeumcalendárioquepôdeserdatadodoiníciodasegunda
metadedoséculoXVIgraçasaostrajes.Nacenadomesdejulho,a
famíliaestáreunidanumretrato,comonagravuracontemporânea
doLeGrandPropriétaire
,mascomumdetalheadiciona!quetemsua
importância:apresençadoscriadosaoladodospais.Opaieamae
estãonomeio.Opaidáamãoaofilho,emãeàfilha.Ocriadoestá
doladodoshomens,eacriadadoladodasmulheres,poisosdoisse-
UVenturi,StoriadeiArteiml t,VI,p.32,
12Toesca,StoriadeiArteitaL
,
t.II.

202 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
xossãoseparadoscomonosretratosdedoadores:oshomens,paise
filhos,deumlado,easmulheres,mãesefilhas,dooutro.Oscriados
fazempartedafamília.
Agostoéomêsdacolheita,masopintorseempenhaemrepre-
sentar,maisdoqueaprópriacolheita,aentregadacolheitaaose-
nhor,quetemnamãomoedasparadaraoscamponeses.Essacena
prende-seaumaiconografiamuitofreqüentenoséculoXVI,particu-
larmentenastapeçariasemqueosfidalgosdocamposupervisionam
seuscamponesesousedivertemcomeles.
Outubro:arefeiçãoemfamília.Ospaiseascriançasestãosenta-
dosàmesa.Acriançamenorestáencarapitadanumacadeiraalta,
quelhepermitealcançaroníveldamesa-umacadeirafeitaespecial-
menteparaascriançasdesuaidade,dotipoquevemosaindahoje.
Ummeninocomumguardanaposerveàmesa:talvezumcriado,tal-
vezumparente,encarregadonaquelediadeserviràmesa,função
quenadatinhadehumilhante,muitoaocontrário.
Novembro:opaiestávelhoedoente,tãodoentequefoipreciso
recorreraomédico.Este,comumgestobanalpertencenteaumaico-
nografiatradicional,inspecionaourinol.
Dezembro:todaafamíliaestáreunidanoquarto,emtornodo
leitoondeopaiagoniza.Elerecebeacomunhão.Suamulherestáde
joelhosaopédacama.Atrásdela,umamoçaajoelhadachora.Um
rapazseguraumavela.Aofundo,percebe-seumacriançapequena:
semdúvidaoneto,apróximageraçãoquecontinuariaafamília.
Portanto,essecalendárioassimilaasucessãodosmesesdoanoà
dasidadesdavida,masrepresentaasidadesdavidasobaformada
históriadeumafamília;ajuventudedeseusfundadores,súamaturi-
dadeemtornodosfilhos,avelhice,adoençaeamorte,queéaomes-
motempoaboamorte,amortedohomemjusto,temaigualmente
tradicional,etambémamortedopatriarcanoseiodafamíliareuni-
da.
Ahistóriadessecalendáriocomeçacomoadafamíliadocapitel
docasamentodopaláciodosDoges.Masnãoèofilho,acriança
querida,queamorteroubacedodemais.Ascoisasseguemumcurso
maisnatural.Éopaiqueparte,aofinaldeumavidaplena,cercado
porumafamíliaunida,edeixando-lhesemdúvidaumpatrimônio
bemadministrado.Adiferençaestátodaaí.Nãosetratamaisde
umamortesúbita,esimdailustraçãodeumsentimentonovo:osen-
timentodafamília.
Oaparecimentodotemadafamílianaiconografiadosmeses
nãofoiurasimplesepisódio.Umaevoluçãomaciçaarrastarianessa
mesmadireçãotodaaiconografiadosséculosXVIeXVII.
ASIMAGENSDAFAMfLIA 203
Noprincípio,ascenasrepresentadaspelosartistassepassavam
ounumespaçoindeterminado,ouemlugarespúblicoscomoasigre-
jas,ouaoarlivre.Naartegótica,livredosimbolismoromano-
bizantino,ascenasdearlivretornaram-semaisnumerosasemais
significativasgraçasàinvençãodaperspectivaeaogostopelapaisa-
gem:adamarecebeseucavaleironumjardimfechado;acaçadacon-
duzgruposatravésdoscamposeflorestas;obanhoreúneasdamas
emtornodafontedeumjardim;osexércitosmanobram,oscavalei-
rosseenfrentamemtorneios,oexércitoacampaemtornodatenda
ondeoReidescansa,osexércitossitiamcidades;ospríncipesentram
esaemdascidadesfortificadas,sobaaclamaçãodopovoedosbur-
gueses.
Penetramosnascidadesporpontes,passandodiantedastendas
ondetrabalhamosourives.Vemospassarosvendedoresdebiscoitos,
easbarcascarregadasdescendoorio.Aoarlivreainda,vemostodos
osjogosserempraticados.Acompanhamososjograiseosperegrinos
emseucaminho.Aiconografiaprofanamedievaléumaiconografia
doarlivre.Quando,nosséculosXIIIouXIV,osartistassepropõem
ailustraranedotasouepisódiosparticulares,eleshesitam,esuainge-
nuidadesurpresaproduzumresultadocanhestro;nenhumdelesse
comparaaovirtuosismodosartistasquerepresentamepisódiosnos
séculosXVeXVI.
AntesdoséculoXV,portanto,ascenasdeinteriorsãomuitora-
ras.Apartirdeentão,elassetornamcadavezmaisfreqüentes.O
evangelista,antessituadonummeioatemporal,torna-seumescriba
emsuaescrivaninha,comapenaearaspadeiranamão.Primeiroele
écolocadonafrentedeumsimplesdrapeadodecorativo,masfinal-
menteaparecenumquartocheiodelivrosemprateleiras:doevange-
lista,passou-seaoautoremseuquarto,aFroissartescrevendouma
dedicatóriaemseulivro
1J
.NasilustraçõesdotextodeTerênciodo
paláciodosDoges,asmulherestrabalhamefiamemseusaposentos,
comsuascriadas,ouaparecemdeitadasnacama,nemsempresozi-
nhas.Vêem-secozinhasesalasdealbergues.Ascenasgalanteseas
conversações sepassamagoranoespaçofechadodeumasala.
Surgeotemadoparto,cujopretextoéonascimentodaVirgem.
Criadas,comadreseparteirasseatarefamnoquartoemtomoda
camadamãe.Surgetambémotemadamorte,damortenoquarto,
emqueoagoriizantelutaemseuleitoporsuasalvação.
Arepresentaçãomaisfreqüentedoquartoedasalacorresponde
aumatendêncianovadosentimento,quesevoltaentãoparaainti-
13A.Lindner,DerBraslauerFroissart.1912.

204 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
midadedavidaprivada.Ascenasdeexteriornãodesaparecem,écer-
to-sâoaorigemdaspaisagens,masascenasdeinteriortornam-se
maisnumerosasemaisoriginais.Iriamcaracterizarapinturadegê-
nerodurantetodootempodesuaexistência.Avidaprivada,recha-
çadanaIdadeMédia,invadeaiconografia,particularmenteapintu-
raeagravuraocidentaisnoséculoXVIesobretudonoXVII:apin-
turahoiandesaeflamengaeagravurafrancesacomprovamaex-
traordinária forçadessesentimento, antesinconsistenteoume-
nosprezado.Sentimentojatãomoderno,queparanósédifícilcom-
preenderoquantoeranovo.
Essafartailustraçãodavidaprivadapoderiaserclassificadaem
doisgrupos:odonamoroedafarraàmargemdavidasocial,no
mundosuspeitodosmendigos,nastabernas,nosbivaques,entreos
boêmioseosvagabundos-grupoquedesprezaremosporestarfora
denossoassunto-esuaoutraface,ogrupodavidaemfamília.Se
percorrermosascoleçõesdeestampasouasgaleriasdepinturados
séculosXVI-XVII,ficaremosimpressionadoscomessaverdadeira
avalanchadeimagensdefamílias.Essemovimentoculminanapintu-
radaprimeirametadedoséculoXVIInaFrança,enapinturade
todooséculoeatémaisnaHolanda.ElepersistenaFrançadurante
asegundametadedoséculoXVIInagravuraenoslequespintados,
reaparecenoséculoXVIIInapintura,eduraatéoséculoXIX,atea
granderevoluçãoestéticaquebaniriadaarteacenadegênero.
NosséculosXVIeXVII,osretratosdegrupossãonumerosíssi-
mos.Algunssâoretratosdeconfrariasoucorporações,Masamaio-
riarepresentaumafamíliareunida.Estesúltimossurgemnoséculo
XV,comosdoadoresquesefazemrepresentarmodestamente'no
nívelinferiordealgumacenareligiosa,comosinaldesuadevoção.
Deinício,essesdoadoressãodiscretoseestãosozinhos.Maslogoco-
meçamatrazeraseuladotodaafamília,incluindoosvivoseosmor-
tos.asmulhereseosfilhosmortostambémtêmseulugarnapintura.
Deumladoapareceohomemeosmeninos,dooutroaouasmulhe-
res,cadaumacomasfilhasdeseuleito.
Onivelocupadopelosdoadoresamplia-seaomesmotempoem
quesepovoa,emdetrimentodacenareligiosa,quesetornaentão
umailustração,quaseumhors-doeuvre.Namaioriadoscasoselase
reduzaossantospadroeirosdopaiedamãe,osantodoladodosho-
menseasantadoladodasmulheres.Convémobservaraimportân-
ciaassumidapeladevoçãodossantospadroeiros,quefiguramcomo
protetoresdafamília:elaéosinaldeumcultoparticulardecaráter
familiar,comoodoanjodaguarda,emboraesteúltimotenhaumca-
rátermaispessoalemaispeculiaràinfância.
Essaetapadoretratodosdoadorescomsuafamíliapodeser
ilustradacomnumerososexemplosdoséculoXVI:osvitraisdafamí-
ASIMAGENSDAFAMÍLIA 205
liaMontmorencyemMonfort-L’Amaury, MontmorencyeEcouen;
ouosnumerososquadrospenduradoscomoex-votosnospilarese
nasparedesdasigrejasalemãs,muitosdosquaisaindapermanecem
emseulugarnasigrejasdeNurembergue.Muitasoutraspinturas,
àsvezesingênuasemalfeitas,chegaramaosmuseusregionaisda
AlemanhaedaSuíçaalemã.OsretratosdefamíliadeHolbeinsão
fiéisaesseestilo
l
\Tudoindicaqueosalemãessetenhamapegado
pormaistempoaessaformaderetratoreligiosodafamília,destina-
doàsigrejas;eleseriaumaformamaisbaratadovitraldosdoadores,
maisantigo,eanunciariaosex-votosmaisanedóticosepitorescosdo
séculoXVIIIeirtíciodoXIX,querepresentamnãomaisareunião
familiardosvivosedosmortos,masoacontecimentomiraculoso
quesalvouumindivíduoouummembrodafamíliadeumnaufrágio,
umacidenteouumadoença.Oretratodefamíliaétambémumaes-
péciedeex-voto.
Aesculturafuneráriainglesadaépocaelisabetanaforneceum
outroexemplodoretratodefamíliaaserviçodeumaformadedevo-
ção.Esseexemplo,aliás,éespecífico,enãoéencontradocomames-
mafreqiiênciaeamesmafacilidadenaFrança,naAlemanhaouna
Itália.MuitostúmulosinglesesdosséculosXVIeXVIImostram
todaafamíliareunidaemtornododefunto,embaixoouemalto-
relevo:ainsistêncianaenumeraçãodascrianças,vivasoumortas,é
impressionante, eváriosdessestúmulosaindasãoencontradosna
abadiadeWestminster:SirRichardPecksall,porexemplo,mortoem
1571,apareceentresuasduasmulheres,enabasedomonumentohá
pequenasfigurasesculpidas:suasquatrofilhas.Decadaladodaestá-
tuadeitadadeMargaretStuart,mortaem1578,vêem-seseusfilhose
filhas.SobretúmulodeWinifred,MarquesadeWinchester,morta
em 1586,tambémesculpidaemposiçãodeitada,apareceseumarido
ajoelhado,representadonumaescalareduzida,e,aolado,umminús-
culotúmulodecriança.
SirJohneLadyPuckering,mortaem1596,estãoesculpidosdei-
tadosladoalado,nomeiodesuasoitofilhas.OcasalNorris(1601)
apareceajoelhadonomeiodeseusseisfilhos.
EmHoldham,contam-se21figurinhassobreotúmulodeJohn
Coke(1639),alinhadascomonosretratosdedoadores,easqueestão
mortasseguramumacruz.SobreotúmulodeCoped’Ayleyem
Hambledone(1633),osquatromeninoseastrêsmeninasestãodian-
tedeseuspaisajoelhados;entreeles,ummeninoeumameninasegu-
ramumacaveira.
14Basiléia,MuseudeBelas-Artes.

206 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
EmWestminster, aDuquesadeBuckinghammandouerigirem
1634otúmulodeseumarido,assassinadoem1628;oscônjugesestão
esculpidosemposiçãodeitada,nomeiodesuascrianças
t5
,
Essasrepresentaçõesalemãeseinglesasprolongamaspectosain*
damedievaisdoretratodefamília.ApartirdoséculoXVI,oretrato
defamíliaseliberoudesuafunçãoreligiosa,Foicomoseorés-do-
chãodosquadrosdedoadorestivesseinvadidotodaatela,expulsan-
dodelaaimagemreligiosa,que,oudesapareceucompletamente,ou
persistiusobaformadeumapequenaimagemdevotapenduradana
parededefundodoquadro,Àtradiçãodoex-votoaindaestápresen-
tenumquadrodeTicianopintadoemtornode1560
16
:osmembros
desexomasculinodafamíliaCornaro-umvelho,umhomemmadu-
rodebarbagrisalha,umhomemjovemdebarbanegra(abarba,sua
formaesuacorsãoindíciosdaidade)eseismeninos,omenordos
quaisbrincacomumcão-estãoagrupadosemtornodeumaltar.
Emcertoscasos,também,oretratodefamíliaadotaaformamate-
rial,aapresentaçãodoquadrodeigreja;existenoVietoriaandAl-
bertMuseumumtrípticode1628querepresentanopainelcentral
ummenininho eumamenininha,enospainéislaterais,osdois
pais
IT
.Essesquadrosnãosedestinavammaisàsigrejas,decoravam
agoraosinterioresparticulares,Eessalaicizaçãodoretratodefamí-
liaécertamenteumfenômenoimportante;afamíliasecontemplaela
próprianacasadeumdeseusparentes.Sente-seanecessidadedefi-
xaroestadodessafamília,lembrando-setambémàsvezesosdesapa-
recidosatravésdeumaimagemouumainscriçãonaparede,
Essesretratosdefamíliasãomuitonumerosos, eseriainútil
apontá-lostodos.Alistaserialongaemonótona.Elessãoencontra-
dostantoemFlandrescomonaItália,comTiciano,PordenoneeVe-
ronese,naFrança,comLeNain,LebruneTournier,naInglaterra
ounaHolanda,comVanDyck,nosséculosXVI,XVII,eatémesmo
iníciodoséculoXVIII.Nessaépocaelesdeviamsertãonumerosos
comoosretratosindividuais,Muitasvezesfoiditoqueoretratore-
velaoprogressodoindividualismo. Talvez*Masénotávelqueele
traduzaacimadetudooimensoprogressodosentimentodafamília,
Noinício,osmembrosdafamíliasãoagrupadosdeformaseca,
comonosquadrosdosdoadoresounagravuradasidadesdavidade
LeGrandProprietâire
,ounaminiaturadomuseuSaint-Raimond.
Mesmoquandotêmmaisvida,“posam”numaatitudesoleneedesti-
nadaasalientarolaçoqueosune,NumateladePourbus omari-
15Cf.F,8orcd,WestminsterÂbbey,1909.
16Ticiano,reproduzidoemK.d.K.,n*168,
17VietoriaandAlbertMuseum,n?5,1951.
18Pourbus,LePortraitdansPartflamand .Exposição. Paris,1952,rc*71.
ASIMAGENSDAFAMlLLA 207
doapóiaamãoesquerdanoombrodamulher;aseuspés,umadas
criançasrepeteomesmogesto,apoiandoamãonoombrodairmãzi-
nha.SébastienLeersfoipintadoporVanDycksegurandoamãode
suamulherNumateladeTiciano trêshomensbarbudoscercam
umacriança,únicanotaclaranomeiodostrajesnegros,eumdeles
aponta-acomodedo:acriançaestánocentrodacomposição.Con-
tudo,muitosdessesretratosnãoprocuramanimarsuaspersonagens:
osmembrosdafamíliasãojustapostos,àsvezesligadosporgestos
queexprimemseusentimentoreciproco,masnãoparticipamdeuma
açãocomum.ÉoqueocorrecomafamíliaPordenonedagaleria
Borghese-opai,amãeesetecrianças-ouaindadafamíliaPembro-
kedeVanDyck oCondeeaCondessaestãosentados,easoutras
personagens,depé;àdireitaumcasal,certamenteumfilhooufilha
casados,eàesquerda,doisadolescentesmuitoelegantes(aelegância
éumsímbolodaadolescênciamasculina,eseatenuacomaseriedade
damaturidade),umescolarcomseulivroembaixodobraço,edois
outrosmeninosmaismoços.
PorvoltademeadosdoséculoXVI,osartistascomeçaramare-
presentarafamíliaemtornodeumamesacobertadefrutas,afamília
VanBerchaundeFloris,de !561,ouafamíliaAnselmedeMartinde
Vos,de1577Ouentão,vemosafamíliaqueparoudecomerpara
fazermúsica:nãosetrata,comosabemos,deumartifíciodopintor,
poisasrefeiçõesmuitasvezesterminavamporumconcertooueram
interrompidasporumacanção.Afamíliaqueposaparaoartista,
comumgraumaioroumenordeafetação,permanecerianaarte
francesaatépelomenosoiníciodoséculoXVIII,comTourniere
Largillière.Mas,sobainfluênciaparticulardosholandeses,oretrato
defamíliamuitasvezesseriatratadocomoumacenadegênero:o
concertoapósarefeiçãoéumdostemasqueosholandesesmultipli-
cariam.Daíemdiante,afamíliaseriaretratadanuminstantâneo,
numacenaviva,numcertomomentodesuavidaquotidiana
:os
homensreunidosemtornodalareira,umamulhertirandoumcaldei-
rãodofogo,umameninadandodecomeraoirmãozinho.Daíem
diante,torna-sedifícildistinguirumretratodefamíliadeumacena
degêneroqueevocaavidaemfamília.
19VanDyck,“SebastíenLeers,suamulhereseufilho".ReproduzidoemK.d.K,n?
279.
20Ticiano,reproduzidoemK,d.K,*n
9
236.
^
21VanDyck,**AFamíliaPembroke".reproduzidoemK.d.K,,nJVJ.
22\LePortraitdansl'artflamand*Paris,1952,op,ciL
,n**19e93.
23P.Aertsen,meadosdoséculoXVI.ReproduzidoemOerson,L9K.

208 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
DuranteaprimeirametadedoséculoXVII,asvelhasalegorias
medievaistambémsãoatingidasporessacontaminação geral,esão
tratadascomoilustraçõesdavidafamiliar,semrespeitopelatradição
iconográfica.Jávimosoqueaconteceunocasodoscalendários.As
outrasalegoriasclássicassealteraramnomesmosentido.Noséculo
XVII,asidadesdavidatornaram-sepretextosparaasimagensda
vidafamiliar.NumagravuradeAbrahamBosserepresentando as
quatroidadesdohomem,ainfânciaésugeridapeloquehojecha-
maríamosdenursery:umbebênoberçovigiadoporumairmãaten-
ta,umacriançadetúnicamantidadepénumaespéciedecercado
comrodas(objetomuitocomumentreosséculosXVeXVIII),uma
meninacomsuaboneca,ummeninocomumcatavento, e
doismeninosmaiorespreparando-separabrigar,tendoumdelesjo-
gadonochãoseuchapéuesuacapa.Avirilidadeéilustradapelare-
feiçãoquereúnetodaafamíliaemtornodamesa,numacenaanálo-
gaàdeváriosretratos,equeseriamuitasvezesrepetidatantonagra-
vurafrancesacomonapinturaholandesa,Éomesmoespíritoda
gravuradasidadesdeLeGrandPropriétatre
,domeiodoséculoXVI,
edaminiaturadomuseuSaint-Raimond,Toulouse.Aidadevirilé
sempreafamília.Humbelot
u
nãoreuniuafamíliaemtornodame-
sa,masnogabinetedopai,umriconegocianteemcujacasaseamon-
toamfardosdemercadoriasesealinhampastasdeprocessos.Opai
fazsuascontas,comapenanamão,ajudadopelofilhoqueseman-
tématrás;aseulado,amulhercuidadafilhapequena;umjovem
criadoentracomumacestacheiadeprovisões,semdúvidavoltando
dacasadecampo,NoFimdoséculoXVII,umagravuradeF.Gué-
rardretomaomesmotema,Opai-maismoçodoquenagravurade
Humbelot-Huart -mostrapelajanelaoporto,ocaiseosnavios,
fontedesuafortuna.Dentrodoaposento,pertodamesaondeelefaz
suascontaseondeestãopousadassuabolsa,algumasfichaseumá-
baco,suamulherninaumbebêdecueirosecuidadeoutracriança
vestidacomumatúnica,Alegendadáotomesublinhaoespírito
dessaiconografia:
MeureuxquiduCieisuitIahy
Etmetleplusbeaudesavie
Abienservirs<mDieu
tsajamille,etsonRoy*
Aqui,afamíliaécolocadanomesmoplanoqueDeuseoRei.
í’elÍ2daquelequeseguealeidoCéu/Eempregaapartemaisbeladesuavida
/Em
bemserviraseuDeus,suafamíliaeseuRei".(N+doT.)
24Humbelot-Huard, CabinetdesEstampes,Ed.15in-fV L
25Guérard,gravura,CabinetdeEstampes,0a22,vol.VI,c.1701.
ASIMAGENSDAFAMÍLIA 209
Essesentimentonadatemdesurpreendenteparanôs,homensdosé-
culoXX,maseranovonaépoca,esuaexpressãodeverianosespan-
tar.Humbelotilustrariaomesmotema,desenhandoumamulherjo-
vemquemostraoseioaumacriançatrepadaemsuascostas.Não
devemosesquecerquenoséculoXVIIascriançasdesmamavammui-
totarde,HáaindaumaoutragravuradeGuérardquerepresentaa
dona-de-casacomsuaschavesesuascrianças,dandoordensauma
criada
Asoutrasalegoriastambémevoluemparaasmesmascenasde
família.NumholandêsdoiníciodoséculoXVII,oolfato,umdos
cincosentidos,érepresentadopelacenaquesetornariabanaldatoa-
letedacriançanuanomomentoemquesuamâelhelimpaotrasei-
ro
2
\
J ,
AbrahamBossesimbolizatambémumdosquatroelementos,a
terra,atravésdeumaimagemdavidafamiliar:numjardim,uma
amaseguraumacriançavestidacomumatúnica;seuspais,que,da
entradadacasa,acontemplamcomternura,dívertem-se^emlançar-
lhefrutas-osfrutosdaterra.AtémesmoasBeatitudesdãopretexto
aevocaçõesdavidaemfamília:emBonnard-Sandrart
2a
,aVBeatitu-
detorna-seoperdãodamãeàssuascrianças,perdãoqueelaconfir-
madistribuindo-lhesguloseimas-éjáoespíritofamiliarsentimental
doséculoXIX.
Demodogeral,acenadegêneromodernanasceudailustração
dasalegoriastradicionaisdaIdadeMédia.Masadistânciaentreo
temaantigoesuanovaexpressãoéenorme.Esquecemo-nosdaale-
goriadasestaçõesedoinvernoquandocontemplamosumquadrode
Stella,representandoumanoiteaopédofogo:deumladodagrande
sala,oshomensceiam,enquantodooutro,emvoltadalareira,as
mulheresfiamoutrançamojuncoeascriançasbrincamousãolava-
das.Nãoémaisoinverno,éoserão.Nãoémaisavirilidadeouater-
ceiraidade,éareuniãodefamília.Nasceumaiconografiaoriginal,
estranhaaosvelhostemasdesgastadosquenoprincípioelahavia
ilustrado.Osentimentodafamíliaconstituisuainspiraçãoessencial,
um&inspiraçãomuitodiferentedadasantigasalegorias-Seriafácil
elaborarmosumcatálogodetemasrepetidosadnauseam:amãevi-
giandoacriançanoberço
3<
\amãeamamentandoacriança
50
,
amu-
26Guérard."Lafemtneenmanage",gravura,CabinetdesEstampes,Ee3in-f*.
27David IIRyekaert(1585T642).MuseudeGenebra.
28BonnarteSandrart,"CinquièmeBéatitude”,CabinetdesEstampes,Ed.113in- ,
vol.L
29G.Dou,K.d.K„pp.90,91e92.
30Fragonard,desenho.ExposiçãoFragonard,Berna,1954.G.Dou,K..d.K...Ví,
Brouwer,W.deBode,p.73.Berey,gravura,CabinetdesEstampes,Ed.IO»m-P.

210 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAEAMiLIA
lherfazendoatoaletedacriança,amãecatandopiolhonacabeçada
criança(operaçãocorriqueiraequealiásnãoselimitavaàscrianças,
poisSamuéisPepyssesubmetiaaela)”,oirmãoouairmãtentando
verobebênoberçonapontadospés,acriançanacozinhaounoce-
leirocomumcriadoou[imacriada”,acriançafazendocompras
numarmazém.Esteúltimotema,frequentenapinturaholandesa”,
tambémfoitratadopelosgravadoresfranceses-emmeadosdosécu-
loporAbrahamBosse(opadeiro),enofinaldoséculoporLeCa-
mus(otaberneiro,quevendiavinhos)-maséoespíritodessasima-
gerisqueéprecisocompreender.UmateiadeLeNaínrepresentaum
camponêscansadoqueferrounosono.Suamulherfazpsiu!paraas
crianças*mostrando-lhesopaiquedescansa,equenãodeveseracor-
dado:éjáumGreuze,nãopelapinturaouoestilo*éclaro*maspela
mspiraçaosentimental.Aaçãoécentradanacriança.Numatelade
PeterdeHooch aspessoasestãoreunidasparaalmoçar,Opai
bebesentado;umacriançadecercadedoisanosestádepéemcima
deumacadeira;elausaochapéuredondoeacolchoadocomumna
suaidade,emqueoandaraindanãoéfirme,paraprotegê-laemseus
Lombos,Umamulher(acriada?)aseguracomumadasmãose,com
aoutra,estendeumcopodevinhoaumaoutramulher(amãe?),que
mergulhaneleumbiscoito.Elavaidarobiscoitomolhadoaopapa-
gaioparadistrairacriança,eadistraçãodacriançanoseiodafamí-
liacujaunidadeelaasseguraéoverdadeirôtemadopintor,osentido
desuaanedota.Osentimentodafamília,queemergeassimnossécu-
losXVI-XVN,éinseparáveldosentimentodainfância,Ointeresse
pelainfância,queanalisamosnoiníciodestelivro,nãoésenãouma
forma,umaexpressãoparticulardessesentimentomaisgeral,osenti-
mentodafamília.
Aanáliseiconográficaleva-nosaconcluirqueosentimentoda
famíliaeradesconhecidodaIdadeMédiaenasceunosséculosXV-
Stdla,"L'Hiver’\ gravura,CabínetdesEstampes,Da44in-f*p.41,CríspindePos*
CabínetdesEstampes,Ec35 p,M3.
3LDassonvílle,gravura,CabínetdesEstampes,Ed35-cpet.in-í*,5,6,26.Dou,K.d.
K.,94.G.Terboch,“Mulhercatandopiolhonacabeçadeseufilho'*,Berndt,109.P.
deHooch,K.d.K.,60,Sibertchts,Berndt,754.
32G,Dou,K.d,K.,122*123,124“Criançanacozinha”.P.deHooch,“Criadapas-
sandoumcantilaumamenina”,K.d.K.,57.A.dePope,“Criançaolhandoacozi-
nheiradepenaracaça”,Berndt,634,VeJasquez*“Criadopegandoumacriançano
coloparacolocá-lasobreamesacomfrutas”,K,d.K.,166,Strozzi,“Cozinheirade-
penandoumganso”,G.Fiaceo,prIV.LeNain,“Ojardineiro”,Fierens,87.
33G.Dou,“Meninapagandoàvendedora",K.d,K„133.VanMieris,“Criança
comprandoumbiscoitoecomendo-o",Berndt*533.LeCamus*gravura.
34P.deHooch,reproduzidoemBerndt,399.
ASIMAGENSDAFAMÍLIA 211
XVI,paraseexprimircomumvigordefinitivonoséculoXVII.So-
mostentadosacompararessahipótesecomasobservaçõesdoshis-
toriadoresdasociedademedieval.
Aidéiaessencialdoshistoriadoresdodireitoedasociedadeé
queoslaçosdesanguenãoconstituíamumúnicogrupo,esimdois,
distintosemboraconcêntricos: afamíliaoumesnie
,
quepodeser
comparadaànossaFamíliaconjugalmoderna,ealinhagem,quees-
tendiasuasolidariedadeatodososdescendentesdeummesmoan-
cestral.Emsuaopinião,haveria,maisdoqueumadistinção,uma
oposiçãoentreafamíliaealinhagem:osprogressosdeumaprovo-
cariamumenfraquecimentodaoutra,aomenosentreanobreza.A
famíliaoumesnie
,emboranãoseestendesseatoda^alinhagem,
compreendia,entreosmembrosqueresidiamjuntos,várioselemen-
tos,e,àsvezes,várioscasais,queviviamnumapropriedadequeeles
sehaviamrecusadoadividir,segundoumtipodepossechamado/re-
reeheoufraternitas.Afrerecheagrupavaemtornodospaisosfilhos
quenãotinhambenspróprios,ossobrinhosouosprimossolteiros.
Essatendênciaàindivisãodafamília,quealiásnãoduravaalémde
duasgerações,deuorigemàsteoriastradicionalistasdoséculoXIX
sobreagrandefamíliapatriarcal.
Afamíliaconjugalmodernaseriaportantoaconseqüenciade
umaevoluçãoque,nofinaldaIdadeMédia,teriaenfraquecidoali-
nhagemeastendênciasàindivisão.
Narealidade,ahistóriadasrelaçõesentrealinhagemeafamília
émaiscomplicada.ElafoiacompanhadaporG.Dubynaregiãodo
Mâeonnais,doséculoIXaoXIIIinclusive
55
.
NoEstadofranco,escreveG.Duby,“afamíliadoséculoX,ao
quetudoindica,eraumacomunidadereduzidaàsuaexpressãomais
simples,acélulaconjugai,cujacoesãoemcertoscasosseprolongava
poralgumtempoapósamortedospaisnasfrereckes.Masoslaços
erammuitofrouxos.Équeeleseraminúteis:osórgãosdepazdove-
lhoEstadofrancoaindaerambastantevigorososparapermitirao
homemlivreviverumavidaindependenteepreferir,seassimodese-
jasse,acompanhiadeseusvizinhoseamigosàdeseusparentes .
Asolidariedadedalinhagemeaindivisãodopatrimôniosede-
senvolveram,aocontrário,emconseqüênciadadissoluçãodoEsta-
do:“Depoisdoanomil,anovadistribuiçãodospoderesdecomando
obrigouoshomensaseagruparemmaisestreitamente
1
\Oestreita-
mentodoslaçosdesanguequeentãoseproduziucorrespondiaa
35
G.Duby,LaSocietéauxXI*eXifsieclesdanslarégionmâconnaise
*1953.

212 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
umanecessidadedeproteção,domesmomodocomooutrasformas
derelaçõeshumanasededependências:ahomenagemdevassalo,a
suzeraniaeacomunidade aldeã,“Demasiadoindependentes emal
defendidoscontracertosperigos,oscavaleirosprocuraramrefúgio
nasolidariedadedelinhagem.”
Aomesmotempo,nessesséculosXIeXIIdoMâconnais,pode*
mosconstataroprogressodaindivisão.Édessaépocaquedataain-
divisãodosbensdosdoiscônjuges,que,noséculoX,aindanãoesta-
vamfundidosnumamassacomum,administradapelomarido-nesse
século,omaridoeamulhergeriamcadaumseusbenshereditários,
compravam evendiamseparadamente,semqueocônjugepudesse
interferir.
Aindivisãoquasesempretambémfoiestendidaaosfilhos,que
eramimpedidosdeobterqualqueradiantamentosobresuaherança;
“Agregaçãoprolongadanacasapaternaesobaautoridadedoances-
tral,dosdescendentesdesprovidosdepecúliopessoaleindependên-
ciaeconômica
.Aindivisãomuitasvezessubsistiaapósamortedos
pais;“Eprecisoimaginaroqueeraentãoacasadeumcavaleiro,
reunindonummesmodomínio,numamesma“corte”,10,20senho-
res,doisoutrêscasaiscomfilhos,osirmãoseasirmãssolteiraseo
tiocônego,queapareciadetemposemtemposepreparavaacarreira
deumououtrosobrinho”.Afrerecheraramenteduravaalémdase-
gundageração,mas,mesmoapósadivisiodopatrimônio,alinhagem
conservavaumdireitocoletivosobreoconjuntodopatrimôniodivi-
dido:alaudatioparentum
,arecuperaçãodaherançadalinhagem.
Essadescriçãoaplica-sesobretudoàfamíliadoscavaleiros,que
jápoderíamoschamardefamílianobre.G.Dubyacreditaquea
famíliacamponesatenhavividomenosintençamente esseestreita-
mentodoslaçosdesangueporqueoscamponeseshaviampreenchido
demaneiradiferentedosnobresovaziodeixadopeladissoluçãodo
Estadofranco:atuteladosenhorhaviasubstituídoimediatamentea
proteçãodospoderespúblicos,eacomunidadealdeãhaviaforneci-
doaoscamponesesumquadrodeorganizaçãoededefesasuperiorà
família.Acomunidadealdeãteriasidoparaoscamponesesoquea
linhagemfoiparaosnobres.
DuranteoséculoXIII,asituaçãomaisumavezseinverteu.As
novasformasdeeconomiamonetária,aextensãodafortunamobi-
liária,afreqüênciadastransações, e,aomesmotempo,osprogressosda
autoridadedoPríncipe(querfosseumReicapetíngioouochefede
umgrandeprincipado) edasegurançapúblicaprovocaramumes-
treitamentodassolidariedadesdelinhagemeoabandonodasindivi-
sõespatrimoniais.Afamíliaconjugaltornou-senovamenteindepen-
dente,Contudo,aciassenobrenãovoltouafamíliadelaçosfrouxosdo
séculoX.Opaimanteveeatémesmoaumentouaautoridadeque,
ASIMAGENSDAFAMÍLIA
213
nosséculosXIeXII,lhehaviasidoconferidapeianecessidadede
manteraintegridadedopatrimônioindiviso.Sabemos,poroutrola-
do,que,apartirdofimdaIdadeMédia,acapacidadedamulheren-
trouemdeclínio.FoitambémnoséculoXIII,naregiãodoMâcon-
nais,queodireitodaprimogenitura sedifundiunasfamíliasnobres.
Elesubstituiuaindivisão,quesetornoumaisrara,comomeiodesal-
vaguardaropatrimônioesuaintegridade.Asubstituiçãodamdivi-
sãoedacomunhãodebensdocasalpelodireitodeprimogenitura
pareceseraomesmotempoumsinaldaimportânciaatribuídaàau-
toridadepaternaedolugarassumidonavidaquotidianapelogrupo
dopaieseusfilhos.
GeorgesDubyconclui:“Narealidade,ararníüaéoprimeirore-
fúgioemqueoindivíduoameaçadoseprotegeduranteosperíodos
deenfraquecimentodoEstado.Masassimqueasinstituiçõespolíti-
caslheoferecemgarantiassuficientes,eleseesquivadaopressãoda
familiaeoslaçosdesangueseafrouxam.Ahistóriadalinhageme
umasucessãodecontraçõesedistensões,cujoritmosofreasmodifi-
caçõesdaordempolítica’ .
AoposiçãoentreafamíliaealinhagemémenosmarcadaemG.
Dubydoqueemoutroshistoriadoresdodireito.Trata-semenosde
umasubstituiçãoprogressivadalinhagempelafamília-oque,defa-
to,pareceriaserumavisãopuramenteteórica-doquedadilataçao
oudacontraçãodoslaçosdesangue,oraestendidosatodaalinha-
gemouaosmembrosdafrereche
,orarestringidosaocasalesuapro-
le.Tem-seaimpressãodequeapenasalinhagemeracapazdeexaltar
asforçasdosentimentoedaimaginação.Poressemotivo,eladeixou
tantasmarcasnosromancesdecavalaria.Acomunidadefamiliarre-
duzidaaocontrário,levavaumavidaobscuraqueescapouàatençao
doshistoriadores.Masessaobscuridadetemumsentido.Nomundo
dossentimentosedosvaloresafamílianãocontavatantocomoali-
nhagem.Poder-se-iadizerqueosentimentodalinhagemeraoumco
sentimentodecaráterfamiliarconhecidonaIdadeMédia.Maseleé
muitodiferentedosentimentodafamília,talcomoovimosnaicono-
grafiadosséculosXVIeXVII.Estende-seaoslaçosdesanguesem
levaremcontaosvaloresnascidosdacoabitaçãoedaintimidade.A
linhagemnuncasereúnenumespaçocomum,emtornodeummes-
mopátio.NãotemnadadecomparávelàZadrougaserva.Oshisto-
riadoresdodireitoreconhecemquenãohávestígiosdegrandesco-
munidades“silenciosas”naFrançaantesdoséculoXV.Aocontrá-
rioosentimentodafamíliaestáligadoàcasa,aogovernodacasaeà
vidanacasa.SeuencantonãofoiconhecidoduranteaIdadeMédia
porqueesseperíodopossuíaumaconcepçãoparticulardafamília:a
linhagem.

214 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAEAMÍLiA
ApartirdoséculoXIV,porém,assistimosaodesenvolvimento
datamiliamoderna.Esseprocesso,bastanteconhecido, foiciara-
menteresumidoporM.Pelot*:“ApartirdoséculoXIV,assistimos
aumadegradaçaoprogressivaelentadasituaçãodamulhernolar
Elaperdeodireitodesubstituiromaridoausenteoulouco...Final-
mente,noséculoXVI,amulhercasadatorna-seumaincapaz,eto-
dososatosquefazsemserautorizadapelomaridooupeiajustiça
tornam-seradica!mentenulos.Essaevoluçãoreforçaospoderesdo
mando,queacabaporestabelecerumaespéciedemonarquiadomés-
tica .‘ApartirdoséculoXV],alegislaçãorealseempenhouemre-
forçaropoderpaternonoqueconcerneaocasamentodosfilhos

Enquantoseenfraqueciamoslaçosdalinhagem,aautoridadedo
mandodentrodecasatornava-semaioreamulhereosfilhossesub-
metiamaelamaisestritamente.Essemovimentoduplo,namedida
emquefoioprodutoinconscienteeespontâneodocostume,mani-
estasemduvidaumamudançanoshábitosenascondiçõesso-
ciais... Passara-seportantoaatribuiràfamíliaovalorqueoutrora
seatribuíaalinhagem.Elatorna-seacélulasocial,abasedosEsta-
dos,ofundamentodopodermonárquico.Veremosagoraaimnor-
tanciaquelheeraatribuídapelareligião.
Aexaltaçãomedievaldalinhagem,desuahonra,dasolidarieda-
deentreseusmembros,eraumsentimentoespecificamenteleigoque
aIgrejaignorava,quandonãoviacomdesconfiança.Onaturalismo
pagaodoslaçosdesanguepodemuitobemter-lheparecidorepug-
nante.NaFrança,ondeaIgrejaaceitouahereditariedadedosreis,é
significativoqueeianãoatenhamencionadonaliturgiadacoroa-
ÇáQ*
Alemdisso,aidadeMédianâoconheciaoprincípiomoderno
desantificaçãodavidaleiga,oumelhor,sóoadmitiaemcasosex-
cepcionais:osantorei(masoreiforaconsagrado),ouobomcavalei-
ro(masocavaleirohaviasidoiniciadoapósumacerimôniaquese
tornarareligiosa).Osacramentodocasamentopoderiatertidoa
Ainçãodeenobrecerauniãoconjugal,delhedarumvalorespiritual,
bemcomoãfamília.Mas,narealidade, eleapenaslegitimavaa
urnâo.Durantemuitotempo,ocasamento foiapenasumcontrato.
Acerimônia,ajulgarporsuasrepresentaçõesesculpidas,nãoserea-
lizavanointeriordaigreja,esimnaentrada,diantedopórtico*Qual-
querquefosseopontodevistateológico,amaioriadospadres,con-
36FPelot,-LalamiUeenFram*sousTAndenRégime"mSodobgfecomparêedeh
Jamiilecontemporame,ColóquiosdoCNRS,1955.
ASIMAGLNSDAFAMÍLIA 215
siderandosuasovelhas,deviapartilharaopiniãodocuradeChau-
cer,paraquemocasamentoeraumaquestãodeultimocaso,uma
concessãoàfraquezadacarne
37
.Elenãolivravaasexualidadedesua
impurezaessencial.Semdúvida,essareprovaçãonãochegavaàcon-
denaçãodafamíliaedocasamento,âmaneiradoscátarosdoSulda
França;manifestava,porém,umadesconfiançacomrelaçãoatodo
frutodacarne.Nâoeranavidaleigaqueohomempodiasesantifi-
car;auniãosexual,quandoabençoadapelocasamento,deixavade
serumpecado,masissoeratudo.Poroutrolado,ooutrograndepe-
cadodosleigos,opecadodausura,perseguiaohomememsuasati-
vidadestemporais.Oleigonâodispunhadeoutromeioparaassegu-
rarsuasalvaçãoalémdeabandonarcompletamenteomundoeen-
trarparaavidareligiosa.Nasombradoclaustro,elepodiareparar
oserrosdeseupassadoprofano,
FoiprecisoesperarofimdoséculoXVI,otempodaPhilotêede
SãoFranciscodeSales,ou,noséculoXVII,oexemplodossenhores
dePort-Royal-e,demodomaisgeral,detodosessesleigosempe-
nhadosemimportantesatividadesreligiosas,teológicas,espirituaise
místicas—paraqueseadmitisseapossibilidadedeumasantificação
foradavocaçãoreligiosa,napráticadosdeverescivis.
Paraqueumainstituiçãonaturaltãoligadaàcarnecomoa
famíliasetornasseobjetodeumadevoção,essareabilitaçãodacon-
diçãoleigaeranecessária*Osprogressosdosentimentodafamíliae
osdapromoçãoreligiosadoleigoseguiramcaminhosparalelos.Pois
osentimentomodernodafamília~aocontráriodosentimentome-
dievaldalinhagem-penetrounadevoçãocomum.Osinalmaisanti-
godessadevoção,aindamuitodiscreto,aparecenohábitoiniciado
pelosdoadoresdequadrosouvitraisdeigrejadeagruparemseure-
dortodaafamília,e,maisainda,nocostumeposteriordeassociara
famíliaaocultodosantopadroeiro,NoséculoXVI,erafrequente
oferecercomoex-votosretratosdossantospadroeirosdomaridoe
damulher,cercadospelospróprioscônjugesesuascrianças.Qculto
dossantospadroeirostornou-seumcultodefamília.
Ainfluênciadosentimentodafamíliatambémpodeserreco-
nhecida,especialmentenoséculoXVII,nanovamaneiradepintar
umcasamentoouumbatismo.NofinaldaIdadeMédia,osminiatu-
ristascostumavam representar aprópriacerimônia religiosa, tal
comoelasedesenrolavanaentradadaigreja:lembremos,porexem-
plo,ocasamentodoReiCosiusedaRainhaSabinèdenavidade
SantaCatarina,emqueopadreenrolaaestolaemtornodasmãos
37Chaucer,TheParson'sTale:Cf.PhilippeArièsemPopuiatUms* 1954,p.692.

216 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
dosdoisnoivos;ouocasamentodeFilipedcMacedônia*
pintado
pelomesmoGuillaumeVrelant,nahistóriadobomReiAlexandre
emque,atrasdopadre,notímpanodaportadaigreja,sepercebe
umacenaesculpidaquemostraummaridobatendonamulherNos
séculosXVIeXVII,nãoserepresentavamaisacerimôniadocasa-
mento-anaosernocasodereisepríncipes.Aocontrário,preferia-
seevocarosaspectosfamiliaresdafesta,quandoosparentesosami-
goseosvizinhossereuniamemtornodosnoivos.EmGérardDavid
javemosobanquetedenúpcias(“AsBodasdeCaná"doLouvre)
Emoutrospintoresvemos'ocortejoqueacompanhaosnoivos:em
.
,l
'a"0lva
,
debraçodadocomopai,seguidaporumgrupode
crianças,chegaaigrejadiantedaqualaesperaonoivo.EmMoli-
mer
,acerimoniajáacaboueocortejodeixaaigreja-àesquerdao
no!Voentreseuspajens,eàdireita,anoivacoroada(masaindanão
vestidadebranco:acordoamoreraaindaovermelho,comonosor-
namentossacerdotais)entresuasdamasdehonra-aosomdegaitas
defole,enquantoumameninaatiramoedasnafrentedanoivaCer-
tascoleçoesdegravurasde“trajeshabituais"ou“trajesdiversos”do
HmdoséculoXVIouiníciodoséculoXVIImuitasvezesmostramo
noivoouanoivacomseuspajensedamasdehonra:nessaépoca,o
trajedecasamentotorna-semaisespecífico(semseraindaounifòr-
mebrancousadodoséculoXIXaténossosdias),aomenosporcer-
tosdetalhes.Eháumatendênciaemapresentaressesdetalhescomo
característicasdoscostumesdeumadeterminada região.
Finalmente,todasaspequenascenasmaliciosasdofolcloreen-
traramnaiconografia:porexemplo,odeitardosnoivosouolevan-
tardamãequedeuàluz.
Damesnjaforma,àcerimôniadobatismo,osartistaspassarama
preferirasreuniõestradicionaisemcasa:osconvidadosbebendoao
voltardaigrejaenquantoummeninotocaflauta,ouavisitadasvizi-
nhasamãequeacabadedaràluz.Ouentão,vemoscostumesfolcló-
ricosmaisdifíceisdeidentificar,comoumacenadeMolenaer
41
em
queumamulhercarregaumacriançanomeiodebrincadeirasgros-
seiras,enquantoasdamasdaassistênciacobremacabeçacomoves-
tida.
GuillaumeVreluuí.“HistoiredubonroiAlexandre", PetitPalais,ms.546P>8
ViedosamieCmhorme
,Bibliothèquenalionale,ms.frs.6449fV17
39Stellíi,CabineidesEsiampes,Da44h-Kp,40.
40D.Mülinier,museudeGenebra.
41AbrahamBosse.“Odeitardosrecém-casados". Molenaer,"Lesrelevailles",mu-
seudeLille.Brakenburgh,Odespertardanoiva*\museudeLilJe,
ASIMAGENSDAFAMlLlA
217
Nãodevemosinterpretaressegostopelasfestasmundanasou
folclóricasdasquaisamalícianãoestavaausente,assimcomota
poucoestavaausentedalinguagemdaspessoasdebem,comourn
-
Saldeindiferença
religiosa:simplesmente,enfattzava-seocaraterfa-
miliaresocialdaocasião,maisdoqueseucaratersacramentalNos
naísesdoNorte,ondeostemasdafamíliaeramextremamentedifun-
didosumapinturamuitosignificativadeJ.Steen
"mostra-nosa
novainterpretação
familiardofolcloreoudadevoçãotradicional.Já
tivemosaocasiãodefrisaraimportâncianoscostumesdoAncien
Regimedasgrandesfestascoletivas,einsistimosnaP
art‘clP^°
d
^
s
Scasquesemisturavamaosadultos:todaumasociedadeinteira-
mentediversasereunianessasocasiões,felizporestarjunta,Mas
festadescritaporSteennãoémaisexatamente
iuventudeemqueascriançassecomportavamumtantocomom
*J
J
vosnodiadassaturnais,emquedesempenhavamumP
a
P
elf
j
xa
^
nelatradiçãoaoladodosadultos.Aqui,aocontrario,osadultosor-
ganizaramafestaparadistrairascrianças:éafestadeSaoNicolau
oancestraldenossoPapaiNoel.Steenreproduzacenanomomento
emqueospaisajudamascriançasaacharosbrinquedosque^ha-
viamescondidoparaelasnoscantosdacasa.Algumascnançasja
contraramosseus.AlgumasmeninassegurambonecasOutrassegu-
rambaldescheiosdebrinquedos,ehásapatosespalhadospelochão
rbrinquedosjáseriamescondidosnossapatos,essessapatosqueas
criancasdosséculosXIXeXXcolocariamdiantedalareiranavés-
peradeNatal?Nãosetratamaisdeumagrandefestalootatwj,
<
deumafestadefamíliaemsuaintimidade; e,conseqdentemente, essa
concentraçãodafamíliaéprolongadaporumacontraçaodafamília
emtornodascrianças.Asfestasdafamíliatornam-seasfestasdain-
fância,Hoje,oNataltornou-seamaior,epoderíamosdízeraumca
festadoano,comumtantoaosateuscomoaosreligiosos.ONatal
não*tinhaessaimportâncianassociedadesdo Regimepois
enfrentavaaconcorrênciadafestadeReis,queeraimuito
MasoextraordináriosucessodoNatalnassociedadesmdustna
contemporâneas, àsquaisrepugnamcadavezmaisasgrandesfestas
coUUvasdeveias2ucaráterfamiliar,obtidograçasàsuaassocia-
çãocomafestadeSãoNicolau:apinturadeSteenmostra-nosque,
naHolandadoséculoXVII,jásefestejavaSaoNicolaucomooPa-
naiNoel”-ouo“meninoJesus”-naFrançadehoje,comomesmo
modernodeinfânciaedafamília,damfancradenrroda
família.
42J.Steen.“LaSamt-Nicolas”,
reproduzidoemGersonn»87.

218 históriasocialdacriançaedafamIlia
Umnovotemailustrademaneiraaindamaissignificativao
componentereligiosodosentimentodafamília:otemadobenedieite.
Hámuitotempojá.a"cortesia”exigiaque,nafaltadeumpadre,um
meninopequenoabençoasseamesanoiníciodasrefeições.Certos
textosmanuscritosdoséculoXV,publicadosporF.J.Furnival
numacoletâneaintituladaTheBabeesBook
,enumeramasregrases-
tritasdacondutaàmesa:"Asconveniênciasdamesa",ou"amanei-
radeseportaràmesa Criança,dizobenedieite,,.quandoestive-
resnumlugarondehajaumpreladodaigreja,deixa-odizer,seeleas-
simodesejar,obenedieiteeasgraças.Criança,seopreladoouose-
nhortemandaremcomsuaautoridadedizerobenedieite
,fá-locom
ardor,poisassimdeveserfeito.”Sabemosqueentãoapalavraenfant
(criança)designavatantoascriançaspequenascomoosmeninos
maiores.OsmanuaisdecivilidadedoséculoXVI,aocontrário, re-
servamatarefadedizerobenedieitenâoaqualquerumadascrian-
ças,masàmaisnova:omanualpuerilehonestodeMathurinCor-
dierestabeleceessaregra,queéconservadanasediçõesmodificadas
posteriores;assim,umaediçãode1761
44
aindaprecisaqueodever
deabençoaramesa“pertenceaoseclesiásticos,quandooshá,ou,na
suafalta,aomaisjovemmembrodogrupo”.SegundoaCiviíiténou-
velle
4
-
de1671,"apósserviràmesa,éumamostradecivilidadeper-
feitae^verdadeirafazerumareverênciaaogrupoeaseguirdizeras
graças .Ou,segundoasRèglesdelabienséanceetdelaciviíitéchré~
tiennedeJean-BaptístedeLaSalte
4h
:"Quandoháumacriança,éco-
mumselheatribuiressafunção”de(abençoaramesa).EmseusDia-
logues",Vivèsdescreveumagranderefeição:"Odonodacasa,de
acordocomseudireito,indicouoslugares.Aprecefoiditaporuma
criançapequena,deformabreve,curiosa,erimada:
Cequiestmisetseraa-dessus
TanrsoitbêtiiiparfenomdeJesus.
*
Portanto,nãoémaisaummeninodogrupo,esimàmenor
criançadacasacjuecabeahonradedizerobenedieite.Reconhece-
mosaíumsinaldapromoçãodainfâncianosentimentonoséculo
XVt,masornaisimportanteéofatodeacriançatersidoassociadaà
43TheBabeesBook.publicadoporF,J.Furnival,1868.
44Civilhêpuêriteehomite.1753,
45Laciviíiténouveiiecontenmtbonmageetparfaiteinstruaíon..,, Basiléia,1671.
46JB.delaSatle;aprimeiraediçãoéde1713.
47Vivés,Dialogues,tradfrancesade157L
*
“QueoqueestáeoqueestaráemcimadamesaSejaabençoadoporJesus.“
(N.do
ASIMAGENSDAFAMÍLIA
219
nrincipalprecedafamília,durantemuitotempoaúnicaprecedita
emcomumpelafamíliareunida.Nesseponto,ostextosdostratados
famíliaàmesa,fielaumaconvençãojaantiga,opaieamaeest
sentadosemcadeirascomseuscincofilhosemvolta.Umacn
trazumprato,eaportadacozinhaestáaberta.Masogravadorf
xouomomentoemqueummenininhodetúnica,apoiadonosjo
-
Zsdamãecomasmãospostas,recitaobenedieite:orestodafami-
liaouveaprece,comacabeçadescobertaeasmaospostas.
UmaoutragravuradeAbrahamBosse
49
representaamesma
cenanumafamíliaprotestante.AntoineLeNain
50
reuneu"
lhereseustrêsfilhosnahoradarefeição:umdosmemnosestadep
edjzasgraças.Lebruntratouessetemasegundoamane
'raantlS

comoumaSagradaFamília.Amesaestáposta;opaibarbudo

obastãodoviajantenamão,estádepé.Amae,sentadaolhacom
ternuraparaacriançaque,demãospostas,recitaaprece.Essacom
posiçãoZiamplamentedifundidapelagravuracomoumaimagem
deV
°£
normalencontrarmosessetemanapinturaho^ndesadosécu-
loXVII.NumapinturadeSteen”,opa.eoumeosentado^vdhoha
bitorural,abandonadohámuitopelaburguesiaf™»»Amieer
veopaieasduascriançasqueestãodepe:omenor,dedo«ou
,
tr
anos
P
estádemãospostasedizaprece.Numquadrosemelhantede
Heemskerck doisvelhossentadoseumhomemmaisjovemdepe
Etornodeumamesa,aoladodeumamulhersentadacomas
mãospostas:pertodela,umameninarepeteaprece,,end°
x
an
^


biosdamãe.OmesmotemaéencontradoaindanoséculoX
rAlphre“Rénedicíté”deChardin.
. A
Ainsistênciadaiconografiadáaessetemaumvalorsingular,
recitacãodobenedieitepelacriançanãoémaisumamarcadecivi
-
dade
?
Osartistassededicaram arepresentá-laporqueemgera.s
tribuíaaessaprece,outrorabanal,umasignificaçãonova.Ot
iconográfico
8
evocava,associavanumasíntesetresforcasafeti-
UXMerian,gravura,CubineidesEstampes.Ec10
. ,,
44A,Busse,gravura.Cabine»desEstampes.0a44pet.in-fvp.65.
MZrun
N
‘-Béiiédid?
C
'Louvre,pinturapopularizadapelagravurade1.Sarrabat.
si
JSteen.Sehmidt-Degener, p.63.
5JHeemskerck(1634-1704),Berndt.p.358.

220 históriasocialdacriançaedafamIlia
vas:areligiosidade osentimentodainfância(acriançamenor)eo
sentimentodafamília{areuniãoemtornodamesa).Obenedicitetor-
nou-seomodelodapreceditaemfamília.Antes,nãohaviacultosre-
ligiososprivados.Oslivrosdecivilidademencionam aprecedama-
",
("osÇolegios,osinternosadiziamemcomumapósatoalete
S4
)
fclesjafalammenossobreaprecedanoite.Insistem,eissoésignifi-
cativo,nosdeveresdascriançasparacomseuspais(asregrasdecor-
tesiamaisantigas,doséculoXV,nãofalavamnosdeveresdosfilhos
paracomseuspais.esimparacomseusmestres):“Ascrianças,diz
J-a.deLaSalle,naodevemirdormirantesdecumprimentarseupai
esuamae
.OmanualdeCourtinde1671”
terminaodiadacriança
daseguintemaneira:“Eladeverárecitarsuaslições,dizerboa-noitea
doTmir”
5CmeStres
’fazersuasnecessidades,edeitar-senacamapara
.
Noeritanto
- nessaépocaquesurgiu,aoladodasoraçõespar-
ticulares,umaoraçaopublicadafamília.Obenediciteéumdosatos
desseculto,esuafrequênciaiconográficaprovaqueelecorrespondia
aumaformav,vadedevoção.Essecultofamiliarsedesenvolveu
muitonosmeiosprotestantes:naFrança,sobretudoapósarevoga-
çãodoeditodeNantes,elesubstituiuocultopúblicoatalpontoque
aposavoltaaliberdade,ospastoresdofimdoséculoXVIIItiveram
dificuldadeemtrazerdevoltaaocultopúblicoosfiéishabituadosa
secontentarcomsuasoraçõesemfamília.Acélebrecaricaturade
HogarthmostraquenoséculoXVIIIaoraçãodanoiteemcomum
quereuniaemtornodopaidefamíliaosparentesecriadostornara-
secorriqueiraeconvencional.Êprovávelqueasfamíliascatólicaste-
nhamsofridoumaevoluçãoquaseparalela,equetambémtenham
sentidoanecessidadedeumadevoçãonempúblicanemindividual'
deumadevoçãofamiliar.
Descrevemosacimao“Bénédidté”deLebrun,popularizado
pelagravuradeSarrabat:percebemosimediatamentequeessebene-
diciteeratambémumaSagradaFamília,umarepresentaçãodaora-
çaoedarefeiçãodaVirgem,deSãoJoséedomeninoJesus.Acena
deLebrunpertenceaomesmotempoaduassériesderepresentações
igualmentefrequentesnaépoca,poisambasexaltavamomesmosen-
timento.Temosdereconhecer,comoM.V.L.Tapie,que,“semdú-
vida,eraopróprioprincípiodafamíliaqueeraassociado’aessaho-
menagemrendidaàfamíliadeCristo Todasasfamíliaseram
54MulhurinCordier*Cofloques
^
1536,
55Cf.n.47,p,218.
56V,L.Tapie,LeBaroque,1957.p.256.
ASIMAGENSDAFAMÍLIA 221
convidadasaconsideraraSagradaFamíliacomoseumodeloAico-
nografiatradicionalmodificou-se,portanto,sobamesmainfluencia
queaumentouaautoridade paterna:SaoJosenao _desempenhava
maisopapelapagadoqueaindalheeraatribuídonoseculoXVe.m-
ciodoséculoXVI.Eleaparecenoprimeiroplano,como0chefeda
família,numoutroretratodaSagradaFamíliaàimesaP
mtad°P°
Calloteigualmentepopularizadopelagravura.AVirgem,SaoJose
eomenino,comentaE.Mâle,tomamarefeiçãodanoite:umcan-
deeirocolocadosobreamesacriaumcontrasteentrealuzvivaea
sombraprofunda,edáâcenaumaspectomisterioso;SaoJosedade
beberàcriancinha,enternecedoradetãobemcomportada,comum
guardanapoemtornodopescoço
57
.”OuhaaindaotemaqueE_
Mâlechamade"ASagradaFamíliaemmarcha
,emqueomeninoe
colocadoentreMariaeJosé.Imaginoqueosteólogosdaepocapos-
samtervistoaíaimagemdaTrindade,masosentimentocomumse
comoviacomessetemacomosefosseumaexaltaçaodafamília.
AautoridadedeSãoJosépodesernotadaemvariascenas,
numateladeumpintornapolitanodoséculoXVII
5
‘,SaoJosecarre-
gaomeninoJesusnocoloepassaassimparaocentrodacomposi-
çãoEssetemaéfreqüenteemMuriloeGuidoRem.Algumasvezes,
Joséaparecereinandoemseuateliêdemarceneiro,ajudadopelome-
*
Jç^uS
^
mil
°Chefedefamílianamesa,nahoradarefeição,enoateliê,nas
horasdetrabalho,SãoJosééaindachefedefamília-numoutromo-
mentodramáticodavidafamiliar,muitasvezesrepresentadopelos
artistas:omomentoemqueamorteovembuscarTornando-seo
padroeirodaboamorte,SãoJoséconservaseusentido:aimagemde
suamortelembraaimagemdamortedopai,tantasvezesrepresenta-
danasilustraçõesdaboamorte-elapertenceàmesmaiconografia
danovafamília. . .
Asoutrassagradasfamíliasinspiramomesmosentimento,no
séculoXVIemparticulartornou-secomumrepresentarsantoscon-
temporâneosdeCristoemcriança,reunidosebrincandojuntos.
Umatapeçariaalemã
60
representadeumaformaencantadoramente
pitorescaastrêsMariascercadasdeseusFilhos,queseagitam,seba-
nhamebrincam.Essegrupoéencontradocomfreqüenciaparticu-
larmentenumabelatalhadoiníciodoséculoXVIIemNotre-Dame
laGrande,emPoitiers.
57E.Mâle,L'Artreligieuxaprisleconcitede1rente,p.312.
Sc"e

PeSne
a
’cr.Mâle,«*.dí..p.311.Rembrandt,"Omarcneúo”.
60GõbeíI,pr.CLXV,datadade1573.

222 históriasocialdacriançaedafamília
Otemapareceevidentementeligadoaosentimentodainfânciae
dafamília.Essaligaçãoésublinhadacominsistêncianadecoração
barrocadacapeladaVirgem,naigrejafranciscanadeLucerne.Essa
decoraçãodatade1723.Aabóbadaéornamentadacomanjinhosde-
centementevestidos,cadaumtrazendoumdossímbolosdaVirgem,
enumeradosemsuaslitanias(estrela-do-mar etc.).Nasparedeslate-
rais,ospaisefilhossantossedãoasmãos,emtamanhonatural:São
JoãoEvangelistaeMariaSalomé,SãoTiagoMaioreZebedeu...
OstemasdoAntigoTestamentotambémsãoutilizadospara
ilustraressadevoção.OpintorvenezianoCarioLoth
61
trataabên-
çãodeJoséporJacócomoacenafreqüentenasIdadesdavidadove-
lhocercadoporseusfilhosesperandoamorte.Masfoisobretudoa
famíliadeAdãoquefoitratadacomoumaSagradaFamília.Numa
teladeVeronese
63
,AdãoeEvaaparecemnopátiodesuacasano
meiodeseusanimaisedeseusfilhos,CaimeAbel.Umdelesmama
namãe,enquantoooutro,menor,brincanochão.Adão,escondido
atrasdeumaárvoreafimdenãoperturbaressesfolguedos,observa
acena.Eleévistodecostas.Semdúvida,poderíamoscomrazãoen-
contrarumaintençãoteológicanessafamíliado“primeiroAdão”
queanunciavaavindadeCristo,o“segundoAdão”.Masessainten-
çãoeruditaesconde-seatrásdeumacenaqueevocaasalegriasentão
consagradasdafamília.
Omesmotemaéencontradonumtetomaisrecentedoconvento
deSanMartino,emNápoles,queprovavelmente datadoiníciodo
séculoXVIII.Adãocavaaterra-comoJosétrabalhacomamadeira
Evafia-comoaVirgemcostura-eseusdoisfilhosestãoaseula-
do.
Portanto,aiconografianospermiteacompanharaascensãode
umsentimentonovo:osentimentodafamília.Esperotersidobem
compreendido.Osentimentoeranovo,masnãoafamília,embora
estasemdúvidanãodesempenhasseemsuasorigensopapelprimor-
dialquelheatribuíramFusteldeCoulangeseseuscontemporâneos.
M.JeanmairedescobriunaGréciasobrevivênciasaindafortesdees-
truturasnãofamiliares,comoasclassesdeidade.Osetnólogosmos-
traramaimportânciadasclassesdeidadeentreosafricanos,edas
comunidadesclânicasentreosindígenasamericanos.Nãoteríamos,
semoperceber,nosdeixadoimpressionarpelafunçãoqueafamília
desempenhaemnossassociedadesháalgunsséculos,enãonossen-
61C.Loth(1632-1698),reproduzidoemFiacco,VenelianPainture
,p.49.
62Veronese,“AfamiliadeAdão”,Veneza,PaláciodosDoges.
ASIMAGENSDAFAMfLIA 223
tiríamostentadosaexagerá-laindevidamente eatémesmoaatribuir-
lheumaespéciedeautoridadehistóricaquaseabsoluta?Noentanto,
nãoháamenordúvidadequeafamíliafoiconstantementemantida
ereforçadaporinfluênciasaomesmotemposemíticas(enãoapenas
bíblicas,creioeu)eromanas.
Poroutrolado,épossívelquedasetenhaenfraquecidonaépo-
cadasinvasõesgermânicas.Poucoimporta:seriavãocontestara
existênciadeumavidafamiliarnaIdadeMédia.Masafamíliasub-
sistianosilêncio,nãodespertavaumsentimentosuficientemente for-
teparainspirarpoetasouartistas.Devemosatribuiraesselongosi-
lêncioumasignificaçãoimportante:nãoseconferiaumvalorsufi-
cienteàfamília,Damesmaforma,devemosreconheceraimportân-
ciadoflorescimentoiconográficoqueapartirdoséculoXV,esobre-
tudoXVI,sucedeuaesselongoperíododeobscuridade:onascimen-
toeodesenvolvimentodosentimentodafamília.Daíemdiante,a
famílianãoèapenasvividadiscretamente,maséreconhecidacomo
umvaloreexaltadaportodasasforçasdaemoção.
Ora,essesentimentotãoforteseformouemtornodafamília
conjugal,afamíliaformadapelospaiseseusfilhos.Eraroumatela
reunirmaisdeduasgerações.Quandonetosoufilhoscasadosapare-
cem,ésemprediscretamente,comoumacoisasemimportância.
Nadaaílembraaantigalinhagem,nadaacentuaaampliaçãoda
famíliaouagrandefamíliapatriarcal,essainvençãodostradiciona-
listasdoséculoXIX.Essafamília,ouaprópriafamília,ouaomenos
aidéiaquesefaziadafamíliaaorepresentá-la eexaltá-la,parece
igualànossa.Osentimentoéomesmo.
Essesentimentoestámuitoligadotambémaosentimentodain-
fância,Eleafasta-secadavezmaisdaspreocupaçõescomahonrada
linhagemoucomaintegridadedopatrimônio,oucomaantiguidade
oupermanênciadonome:brotaapenasdareuniãoincomparáveldos
paisedosfilhos.Umadesuasexpressõesmaiscomunsseriaohábito
criadodeseinsistirnassemelhançasfísicasentreospaiseseusfilhos.
NoséculoXVII,pensava-sequeSãoJosésepareciacomseufilho
adotivo,salientando-seassimaforçadolaçofamiliar.Erasmojá
possuíaaidéiaextremamentemodernadequeascriançasuniama
famíliaedequesuasemelhançafísicaproduziaessauniãoprofunda;
nãonosespantaremos, pois,comofatodeseutratadosobreocasa-
mentotersidoreimpressoaindanoséculoXVIII.Vejamosumtre-
chodessaobra,numatraduçãofrancesade1714,queadornadema-
neirapicanteeumtantoanacrônicaaprosadoRenascimento
":“Só
63Erasmo,ed.de1714doCasamentoCristão.

224 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
nospodecausaradmiraçãoocuidadosurpreendentedanatureza
nesseponto:elapintaduaspessoasnummesmorostoenummesmo
corpo;omaridoreconheceoretratodesuamulheremseusfilhos,ea
mulher,odomarido.Àsvezes,descobre-seumasemelhançacomo
avôecomaavó*comumtio-avôoucomumatia-avó”.Oqueconta
acimadetudoéaemoçãodespertadapelacriança,aimagemvivade
seuspais.
2
DaFamíliaMedieval
àFamíliaModerna
Oestudoiconográficodocapítuloanteriormostrou-nosonovo
lugarassumidopelafamílianavidasentimentaldosséculosXVIe
XVII.Ésignificativoquenessamesmaépocatenhamocorridomu-
dançasimportantesnaatitudedafamíliaparacomacriança.Afamí-
liatransformou-seprofundamentenamedidaemquemodificousuas
relaçõesinternascomacriança.
UmtextoitalianodofimdoséculoXVdá-nosumaidéiamuito
sugestivadafamíliamedieval,aomenosnaInglaterra.Elefoiextraí-
dopelohistoriadoringlêsFurnival
1
deumaRelaçãodaIlhadaIngla-
terradeumitaliano:“Afaltadeafeiçãodosinglesesmanifesta-se
particularmenteemSuaatitudecomrelaçãoàssuascrianças.Após
1ARetaüonoftketslandofEngland
,CamdenSocíety,1897,p.XIV,citadoemThe
BaheesBooks
,
publicadosporF.J.Furnival,Londres,1868.

226 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
conservá-lasemcasaatéaidadedeseteounoveanos{emnossosau-
toresantigos,seteanoseraaidadeemqueosmeninosdeixavamas
mulheresparaingressarnaescolaounomundodosadultos),elesas
colocam,tantoosmeninoscomoasmeninas,nascasasdeoutraspes-
soas,paraaífazeremoserviçopesado,eascriançasaípermane-
cemporumperíododeseteanoveanos(portanto,atéentrecercade
14e18anos).Elassãochamadasentãodeaprendizes.Duranteesse
tempo,desencumbem-se detodasastarefasdomésticas.Hápoucos
queevitamessetratamento,poistodos,qualquerquesejasuafortu-
na,enviamassimsuascriançasparacasasalheias,enquantorecebem
emseuprópriolarcriançasestranhas”.Oitalianoachavaessecostu-
mecruel,oquefazsuporquefossedesconhecidooutivessesidoes-
quecidoemseupaís.Eleinsinuaqueosinglesesrecorriamàscrianças
dosoutrosporquepensavamsermelhorservidosdessamaneirado
queporseusprópriosfilhos.Defato,aexplicaçãoqueospróprios
inglesesdavamaoobservadoritalianodeviaseraverdadeira:"Para
quesuascriançasaprendamasboasmaneiras”.
EssegênerodevidafoiprovavelmentecomumaoOcidenteme-
dieval.JánoséculoXII,G.Dubydescreveafamíliadeumcavaleiro
naturaldoMâconnais,chamadoGuigonet,combasenumaanálise
deseutestamento
2
.Guigonethaviaconfiadoseusdoisfilhosmeno-
resaomaisvelhodeseustrêsirmãos.Maistarde,numerososcontra-
tosdeaprendizagemqueconfiavamcriançasamestresprovamcomo
ohábitodeentregarascriançasafamíliasestranhaseradifundido.
Àsvezes,éespecificadoqueomestredeveria"ensinar”acriançae
"mostrar-lheosdetalhesdesuamercadoria”,ouquedeveria"fazê-la
freqflentaraescola
3,
\Sãocasosparticulares.Deummodomaisge-
ral,àprincipalobrigaçãodacriançaassimconfiadaaummestreera
"servi-lobemedevidamente”.Quandoexaminamosessescontratos
semnosdespojarmosdenossoshábitosdepensamentocontemporâ-
neos,hesitamosemdecidirseacriançaeracolocadaemcasaalheia
comoaprendiz(nosentidomodernodapalavra),comopensionista,
oucomocriado.Faríamosmaleminsistir:nossasdistinçõessãoana-
crônicaseohomemdaIdadeMédiavíaaíapenasvariaçõesdeuma
noçãoessencial,anoçãodeserviço.Oúnicoserviçoquedurante
muitotemposepôdeconceber,oserviçodoméstico,nâoimplicava
nenhumadegradaçãoenãodespertavanenhumarepugnância.No
séculoXVexistiatodaumaliteraturaemlínguavulgar,francesaou
2G.Duby,op.cit
.,p.425.
3C.deRobillarddeBeaurepaire,InstructionpubliqueenNormandie
,1872,3vols,Ch.
Clerval,LesEcolesdeChariresauMoyenAge
h1895.
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 227
inglesa,queenumeravasobumaformamnemotécnica osmanda-
mentosdeumbomservidor.Umdessespoemas
4
intitula-seemfran-
cêsRégimepourtousserviteurs.
Oequivalenteinglêseraowaytingservant-quepermaneceuno
inglêsmodernocomapalavrawatier,garçom.Esseservidor,éclaro,
deviasaberserviràmesa,fazerascamas,acompanharseumestre,etc.
Masesseserviçodomésticocompreendiatambémumafunçãoaque
hojechamaríamosfunçãodesecretário.Alémdisso,nãoeraconside-
radoumestadodefinitivo,esimumestágio,umperíododeaprendi-
zagem:
Situveulsbonserviteurestre.
Craindredoisetaimertonmaistre
Mangerdoissansseoiràtabíe^.
*
(Seguem-seregrasdeboaapresentação.)
Suystoujoursbonnecompagtiie
Soitséculierouclercouprestre
**
(Umclérigopodiaservirna
IItefautpourlebiertservir
Sesonamourveulzdesservir
Laissiertoutetavohmé
Pourtonmaístreserviràgrey.
Setusersmaistrequiaytfemme
Bourgeoise.demoiseíleoudame
Sonhomeurdoitpanoutgarder...
Etsetusersunclercouprestre
Gardesnesoyesvalietmaistre...
$’ilestquesoyessecrêtaire
Tudoistoujourslessecretstaire,..
Setusersjugeouavocat
Nerapportesnuinouveaucas
Ets
r
ilíadviemparadventure
Aservirducouprinceoucomte
Marquisoubaronouvicomte*
Ouauireseigneurterrien,
Nesoyesdetaille.inventeur,
D'impots
tdesubsides;etlesbiens
Dupeupieneleuroestenrien...
Setusersgentilkommeenguerre
Nevasdêrobantmllegent...
Ettoujours,enquelquemaison.
casadeoutroclérigo.)
*
“Sequiseresserumbomservidor,
/
Devestemereamarteumestre,
/
Devescomer
semtesentaresàmesa...”(N.doT.)

+*
“Seguesempreaboacompanhia,/
Quersejaadeumsecular,dértgooupadre.
(N.doT.)

228 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
Ouqueiquemaisirequetuserves,
Faysetupeulzquetudesserves
LagraceetVamourdetonmaistre
Aílnquetupuissesmaistreestre
Quand i]seratempsetmétier
Maispeineàsçavoirbonmestier
Carpourtaviepratique
r
Touttoncoeur
ydoisappliquer,
EnsefaLsanttupourrasestre
Etdevenirdevaltetmaistre
Ettepourrasfaireservir
Etprisethonneurdesservir
Etacquérirfinaíement
Detonâmetesauvement .
*
Assim,oserviçodomésticoseconfundiacomaaprendizagem,
comoumaformamuitocomumdeeducação.Acriançaaprendia
pelaprática,eessapráticanãoparavanoslimitesdeumaprofissão,
aindamaisporquenaépocanãohavia(epormuitotempoaindanâo
haveria)limitesentreaprofissãoeavidaparticular;aparticipação
navidaprofissional-expressãobastanteanacrônica,aliás-acarre-
tavaaparticipaçãonavidaprivada,comaqualseconfundiaaquela.
Eraatravésdoserviçodomésticoqueomestretransmitiaauma
criança,nãoaoseufilho,masaofilhodeoutrohomem,abagagem
deconhecimentos, aexperiênciapráticaeovalorhumanoquepudes-
sepossuir.
Assim,todaaeducaçãosefaziaatravésdaaprendizagem, e
dava-seaessanoçãoumsentidomuitomaisamplodoqueoqueela
adquiriumaistarde.Aspessoasnãoconservavam asprópriascrian-
çasemcasa:enviavam-nasaoutrasfamílias,comousemcontrato,
paraquecomelasmorassemecomeçassemsuasvidas,ou,nesse
novoambiente,aprendessemasmaneirasdeumcavaleiroouumofí-
*Parabemservi-lo,
/Esequiseresmerecerseuamor,
/
Devesdeixartodaatuavonta-
de
/
Paraservirateumestredebomgrado.
/
Seserviresaummestrequetenhamulher
/
Burguesa,senhoritaousenhora,
/
Devessempreguardarsuahonra...
/Eseservires
aumclérigooupadre,
/
Cuidadoparantoseresumcriado-amo...
/
Se'foressecretá-
rio,
/
Devessempreguardarossegredos...
/Seserviresaumjuizouaumadvogado,
/
Nãocontesnenhumcasonovo,
/
E,seporventurateacontecer
/
ServiresaumDuque,
PríncipeouConde,
/
Marquês,BarãoouVisconde,
/Ououtrosenhordeterras,
/
Nãoinventesimpostosesubsídios
/
Enãotomesparatiosbensdopovo*.*
/
Seservi-
resaumfidalgonaguerra,
/Nãoroubesninguém...
/Esempre,emqualquercasa
/
Ouaqualquermestreaquemsirvas,
/
Faz,sepuderes,pormerecer
/Agraçaeoamor
deteumestre’
/Afimdequepossassermestre
j
Quandochegarotempo.
/Masesfor-
ça-teparaaprenderumbomoficio,
/
Pois,parapraticartuavida,
/Devesaplicarnela
todooteucoração.
/Assimfazendo,poderásser
/Etetornar
,decriado
,mestre,
/
E
poderástefazerservir
/Emerecerprêmiosehonras,
/Efmaímenteobter
/Âsalva-
çãodetuaalma.”(N.doT.).
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 229
cio,oumesmoparaquefreqüentassemumaescolaeaprendessemas
letraslatinas.Essaaprendizagemeraumhábitodifundidoemtodas
ascondiçõessociais.Apontamosacimaumaambigüidadeentreo
criadosubalternoeoempregadodenívelmaiselevado,dentroda
mesmanoçãodeserviçodoméstico.Umaambigüidadesemelhante
existiaentreacriança-ouorapazinho-eoservidor.Ascoletâneas
inglesasdepoemasdidáticosqueensinavamacortesiaaosservidores
seintitulavamBabeesBooks .Apalavravaletsignificavaummenino
pequeno,eLuísXIIIcriança,numaexplosãodeafeição,diriaque
gostariamuitodeser**opequenovaletdopapai”.Nalínguafrancesa
dosséculosXVIeXVII,apalavragarçondesignavaaomesmotem-
poumrapazinhonovoeumjovemservidordoméstico:foiconserva-
daparainterpelarosempregadosqueservemnumrestaurante.Mas
mesmoquando,apartirdosséculosXV-XVI,começou-seadistin-
guirmelhordentrodoserviçodomésticoosserviçossubalternosdos
ofíciosmaisnobres,oserviçodamesacontinuouasertarefadosfi-
lhosdefamíliaenãodosempregadospagos,Paraparecerbemedu-
cado,nãobastavacomohojesabercomportar-seàmesa:erapreciso
tambémsaberserviràmesa.OserviçodamesaatéoséculoXVIII
ocupouumlugarconsiderávelnosmanuaisdecivilidadeenostrata-
dosdeboasmaneiras:éoassuntodeumcapítulointeirodomanualde
civilidadecristãdeJ.-B.deLaSalle,umdoslivrosmaispopularesdo
séculoXVIII,Tratava-sedeumasobrevivênciadotempoemqueto-
dososserviçosdomésticoseramrealizadosindiferentemente pelas
criançasaquemchamaremosaprendizes,eporempregadospagos,
provavelmentemuitojovenstambém.Adistinçãoentreessasduas
categoriasfez-semuitoprogressivamente.Oservidoreraumacrian-
ça,umacriançagrande,querestivessecolocadaemcasaalheiapor
umperíodolimitadoafimdepartilhardavidafamiliareassimseini-
ciarnavidaadulta,quernadtivesseesperançadealgumdiapassar
“decriadoamestre”,petaobscuridadedesuaorigem.
Nãohavialugarparaaescolanessatransmissãoatravésda
aprendizagem diretadeumageraçãoaoutra.Defato,aescola,aes-
colalatina,quesedestinavaapenasaosclérigos,aoslatinófones,
aparececomoumcasoisolado,reservadoaumacategoriamuitopar-
ticular.Eaescolaeranarealidadeumaexceção,eofatodemaistarde
elater-seestendidoatodaasociedadenãojustificadescreveratravés
delaaeducaçãomedieval:seriaconsideraraexceçãocomoaregra.A
regracomumatodoseraaaprendizagem.Mesmoosclérigosque
eramenviadosàescolamuitasvezeseramconfiados-comoosou-
trosaprendizes-aumclérigo,umpadre,àsvezesaumpreladoa
quempassavamaservir.Oserviçofaziatãopartedaeducaçãodeum
clérigojuantoaescola,Nocasodosestudantesmuitopobres,elefoi

230 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
substituídopelasbolsasdoscolégios:vímosqueessasfundaçõesfo-
ramaorigemdoscolégiosdoAncienRêgime.
Houvecasosemqueaaprendizagemperdeuseucaráterempíri-
coeassumiuumaformamaispedagógica.Umexemplocuriosode
ensinotécnicooriundodaaprendizagemtradicionaléfornecidopelo
ManuelduVeneur.Sãodescritasaíverdadeirasescolasdecaça,na
cortedeGastonPhoebus,ondeseensinava“maneirasecondições
quedeviateraquelequedesejavaaprenderaserbomcaçador
5T
\
EssemanuscritodoséculoXVéilustradocombelíssimasminiaturas.
Umadelasrepresentaumaverdadeiraaula:omestrç,umnobre(a
julgarpelotraje),estácomamâodireitaerguidaeodedoindicador
levantado-umgestoqueserveparapontuarodiscurso.Comamão
esquerda,eleagítaumbastão,osinalindubitáveldaautoridadema-
gistral,oinstrumentodecorreção.Trêsalunos,meninosaindape-
quenos,estãolendoosgrandesrolosqueseguramcomasmãosede-
vemaprenderdecor:umaescolacomooutraqualquer.Aofundo,al-
gunsvelhoscaçadoresobservam.Umacenasemelhanterepresenta
umaliçãodetrompa:“Comosedevesopraratrompa’'.Eramcoisas
queseaprendiamcomaprática,comoaequitação,asarmaseasma-
neirasdoscavaleiros,Épossívelquealgunstiposdeensinotécnico,
comoodaescrita,setenhamoriginadodeumaaprendizagemjáor-
ganizadaeescolarizada.
Contudo,essescasosforamexcepcionais.Demodogeral,a
transmissãodoconhecimentodeumageraçãoaoutraeragarantida
pelaparticipaçãofamiliardascriançasnavidadosadultos.Assimse
explicaessamisturadecriançaseadultosquetantasvezesobserva-
mosaolongodesteestudo,atémesmonasclassesdoscolégios,onde
seriadeesperar,aocontárío,umadistribuiçãomaishomogêneadas
idades.Masnãosetinhaaidéiadessasegregaçãodascrianças,aque
estamostãohabituados.Ascenasdavidaquotidianaconstantemen-
tereuniamcriançaseadultosocupadoscomseusofícioscomopor
exemplo,opequenoaprendizquepreparaascoresdopintor
6
,oua
sériedegravurasdosofíciosdeStradan,quenosmostracriançasem
ateliêscomcompanheirosmaisvelhos,Omesmoacontecianosexér-
citos.Conhecemoscasosdesoldadosde14anos!Masopequenopa-
jemquelevaamanopladeDuquedeLesdiguières\eosquelevamo
capacetedeAdolfdeWígnacourtnateladeCaravaggioqueseen-
contranoLouvre,ouodoGeneraldeiVastone,nograndeTicia.no
domuseudoPrado,tambémnãosãomuitomaisvelhos:suacabeça
5“L'éeoledesveneurs’\Ms.,BibliothèqueNationale.
6ConradManuel,museudeBerna.
7MuseudeGrenoble.
DAFAMÍLIAMEDIEVALAFAMÍLIAMODERNA 231
bateabaixodoombrodeseussenhores.Emsuma,emtodaaparte
ondesetrabalhava,etambémemtodaaparteondesejogavaoubrin-
cava,mesmonastavernasmal-afamadas,ascriançassemisturavam
aosadultos.Dessamaneiraelasaprendiamaviver,atravésdoconta-
todecadadia.Osagrupamentos sociaiscorrespondiam adivisões
verticaisquereuniamclassesdeidadediferentes,comoessesmúsicos
daspinturasdeconcertosdecâmara,quefuncionamtantocomore-
tratosdefamíliaquantocomoalegoriasdasidadesdavida,poisreú-
nemcrianças,adultosevelhos.
Nessascondições,acriançadesdemuitocedoescapavaàsua
própriafamília,mesmoquevoltasseaelamaistarde,depoisdeadul-
ta,oquenemsempreacontecia.Afamílianâopodiaportanto,nessa
época,alimentarumsentimentoexistencialprofundoentrepaisefi-
lhos.Issonãosignificavaqueospaisnãoamassemseusfilhos:elesse
ocupavamdesuascriançasmenosporelasmesmas,peloapegoque
lhestinham,doquepelacontribuiçãoqueessascriançaspodiamtra-
zeràobracomum,aoestabelecimentodafamília.Afamíliaerauma
realidademoralesocial,maisdoquesentimental.Nocasodefamí-
liasmuitopobres,elanãocorrespondiaanadaalémdainstalação
materialdocasalnoseiodeummeiomaisamplo,aaldeia,afazenda,
opátiooua“casa”dosamosedossenhores,ondeessespobrespas-
savammaistempodoqueemsuaprópriacasa(àsvezesnemaome-
nostinhamumacasa,eramvagabundossemeiranembeira,verda-
deirosmendigos).Nosmeiosmaisricos,afamíliaseconfundiacoma
prosperidadedopatrimônio,ahonradonome.Afamíliaquasenão
existiasentimentalmente entreospobres,equandohaviariquezae
ambição,osentimentoseinspiravanomesmosentimentoprovocado
pelasantigasrelaçõesdelinhagem.
ApartirdoséculoXV,asrealidadeseossentimentosdafamília
setransformariam:umarevoluçãoprofundaelenta,malpercebida
tantopeloscontemporâneoscomopeloshistoriadores, edifícildere-
conhecer.E,noentanto,ofatoessencialébastanteevidente:aexten-
sãodafrequênciaescolar.VimosquenaIdadeMédiaaeducaçãodas
criançaseragarantidapelaaprendizagemjuntoaosadultos,eque,a
partirdeseteanos,ascriançasviviamcomumaoutrafamíliaque
nãoasua.Dessaépocaemdiante,aocontrário,aeducaçãopassoua
serfornecidacadavezmaispelaescola.Aescoladeixoudeserreser-
vadaaosclérigosparasetornaroinstrumentonormaldainiciação
social,dapassagemdoestadodainfânciaaodoadulto.Jávimos
comoissosedeu.Essaevoluçãocorrespondeuaumanecessidade
novaderigormoraldapartedoseducadores,aumapreocupaçãode
isolarajuventudedomundosujodosadultosparamantê-lanaino-

232 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
cêneiaprimitiva,aumdesejodetreiná-laparamelhorresistiràsten-
taçõesdosadultos.Maselacorrespondeutambémaumapreocupa-
çãodospaisdevigiarseusfilhosmaisdeperto,deficarmaisperto
delesedenãoabandoná-losmais,mesmotemporariamente, aoscui-
dadosdeumaoutrafamília.Asubstituiçãodaaprendizagempelaes-
colaexprimetambémumaaproximaçãodafamíliaedascrianças,do
sentimentodafamíliaedosentimentodainfância,outrorasepara-
dos.Afamíliaconcentrou-seemtornodacriança,Estanãoficoupo-
rémdesdeoiníciojuntocomseuspais:deixava-osparairaumaesco-
ladistante,emboranoséculoXVIIsediscutissemasvantagensdese
mandaracriançaparaocolégioemuitosdefendessemamaioreficá-
ciadeumaeducaçãoemcasa,comumpreceptorMasoafastamentodo
escolarnãotinhaomesmocaráterenãoduravatantoquantoase-
paraçãodoaprendiz.Acriançageralmentenãoerainternanocolé-
gio.Moravanumpensionatoparticularounacasadomestre.Nos
diasdefeira,traziam-lhedinheiroeprovisões,Olaçoentreoescolar
esuafamíliaseestreitara:segundoosdiálogosdeCordier,erames-
monecessáriaaintervençãodosmestresparaevitarvisitasmuitofre-
qüentesàfamília,visitasprojetadasgraçasàcumplicidadedasmães.
Algumascriançasmaisricasnãosaíamdecasasozinhas;eramacom-
panhadasdeumpreceptor,umestudantemaisvelho,oudeumcria-
do,quasesempreseuirmãodeleite.Ostratadosdeeducaçãodosé-
culoXVIIinsistemnosdeveresdospaisrelativosàescolhadocolé-
gioedopreceptor,eàsupervisãodosestudos,àrepetiçãodaslições,
quandoacriançavinhadormiremcasa.Oclimasentimentaleraago-
racompletamente diferente,maispróximodonosso,comoseafamí-
liamodernativessenascidoaomesmotempoqueaescola,ou,ao
menos,queohábitogeraldeeducarascriançasnaescola.
Dequalquermaneira,oafastamentoqueopequenonúmerode
colégiostornavainevitávelnãoseriatoleradopormuitotempopelos
pais,Oesforçodospais,secundadospelosmagistradosurbanos,no
sentidodemultiplicarasescolasafimdeaproximá-lasdasfamílias,é
umsinaldignodenota.NoiníciodoséculoXVII,comomostrouo
Pe.deDainville*,criou-seumaredemuitodensadeinstituições es-
colaresdeimportânciadiversa.Emtornodeumcolégiocomasérie
completadeclasses,estabelecia-seumsistemaconcêntricoformado
poralgunspoucoscolégiosdeHumanidades(semclassedefilosofia)
edeummaiornúmerodeescolaslatinas(comapenasalgumasclas-
sesdegramática).Asescolaslatinasforneciamalunosparaasclasses
superioresdoscolégiosdeHumanidades edoscolégioscomasérie
8P.deDaiuville,^Effectifdescollèges”,Populations
,1955,pp.455-483.
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 233
completadeclasses.Algunscontemporâneos inquietaram-secom
essaproliferaçãodasescolas.Elacorrespondiaaomesmotempoa
essanecessidadedeeducaçãoteórica,quesubstituíaasantigasfor-
maspráticasdeaprendizagem, eaodesejodospaisdenãoafastar
muitoascrianças,demantê-laspertoomaistempopossível.Essefe-
nômenocomprovauntatransformaçãoconsideráveldafamília:esta
seconcentrounacriança,esuavidaconfundiu-secomasrelações
cadavezmaissentimentaisdospaisedosFilhos.Nãoserásurpresa
paranósdescobrirqueessefenômenositua-senomesmoperíodoem
quevimosemergiredesenvolver-seumaiconografiadafamíliaem
tornodocasaledascrianças.
Éverdadequeessaescolarização, tãocheiadeconsequências
paraaformaçãodosentimentoFamiliar,nãofoiimediatamente ge-
neralizada,aocontrário.Elanãoafetouumavastaparceladapopu-
laçãoinfantil,quecontinuouasereducadasegundoasantigaspráti-
casdeaprendizagem.Antesdemaisnada,haviaasmeninas.Comex-
ceçãodealgumas,queeramenviadasàs“pequenasescolas”oua
conventos,amaioriaeraeducadaemcasa,outambémnacasadeou-
traspessoas,umaparentaouvizinha.Aextensãodaescolaridadeàs
meninasnãosedifundiriaantesdoséculoXVIIIeiníciodoXIX.Es-
forçoscomoosdeM
me
deMaintenonedeFénelonteriamumvalor
exemplar.Durantemuitotempo,asmeninasseriameducadaspela
práticaepelocostume,maisdoquepelaescola,emuitasvezesem
casasalheias.
Nocasodosmeninos,aescolarizaçãoestendeu-seprimeiroàca-
madamédiadahierarquiasocial.Aaltanobrezaeosartesãosper-
maneceramambosfiéisàantigaaprendizagem,fornecendopajens
aosgrandessenhoreseaprendizesaosdiferentesartesãos.Nomundo
artesanaleoperário,aaprendizagem subsistiriaaténossosdias.As
viagensàItáliaeàAlemanhadosjovensnobresnofimdeseusestu-
dosligavam-setambémàantigatradição:elesiamparacortesouca-
sasestranhasparaaíaprenderaslínguas,asboasmaneiraseoses-
portesdacavalaria.EssecostumecaiuemdesusonoséculoXVII,
substituídopelasAcademias:outroexemplodessasubstituiçãoda
educaçãopráticaporumainstruçãomaisespecializadaemaisteóri-
ca.
Assobrevivênciasdaantigaaprendizagemnasduasextremida-
desdaescalasocialnãoimpediramseudeclínio:aescolavenceu,
atravésdaampliaçãodosefetivos,doaumentodonúmerodeunida-
desescolaresedesuaautoridademoral.Nossacivilizaçãomoderna,
debaseescolar,foientãodefinitivamente estabelecidaOt'‘mpoa
consolidaria,prolongando eestendendoaescolaridade.

234 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
Osproblemasmoraisdafamíliaapareceramentãosobumaluz
nova-Issoficaevidentenocasodoantigocostumequepermitiabe-
neficiarapenasumdosfilhosemdetrimentodosirmãos,emgeralo
filhomaisvelho.Tudoindica
9
queessecostumesedifundiunosécu-
loXlll,paraevitaroperigosoesfacelamentodeumpatrimôniocuja
unidadenâoestavamaisprotegidapelaspráticasdepropriedade
conjuntaesolidariedadedelinhagem,mas,aocontrário,eraameaça-
daporumamaiormobilidadedariqueza.Oprivilégiodofilho,bene-
ficiadoporsuaprimogenituraoupelaescolhadospaís,foiabaseda
sociedadefamiliardofimdaIdadeMédiaatéoséculoXVII,mas
nãomaisduranteoséculoXVIII.Defato,apartirdasegundameta-
dedoséculoXVH,osmoralistaseducadorescontestaramalegitimi-
dadedessaprática,que,emsuaopinião,prejudicavaaeqüidade,re-
pugnavaaumsentimentonovodeigualdadededireitoàafeiçãofa-
miliar,eeraacompanhadadeumautilizaçãoprofanadosbenefícios
eclesiásticos-essesmoralistaseramtambémreformadores religio-
sos.UmcapítulodotratadodeVaretDeVéducationdesenfants
,
publicadoem1666,tratada“igualdadequesedevemanterentreas
crianças
,0
”.“Háumaoutradesordemqueseintroduziuentreosfiéis
equenãoferemenosaigualdadequeospaiseasmãesdevemaseus
filhos-Essadesordemseresumenofatodeospaispensaremapenas
noestabelecimento daquelesque,pelacondiçãodeseunascimento
oupdasqualidadesdesuapessoa,lhesagradammais,
1
'(Eleslhes“a-
gradavam”porqueserviammelhoraofuturodafamília.Trata-seda
concepçãodeumafamíliacomoumasociedadeindependentedosen-
timentopessoal,comouma“casa”.)“Aspessoastememque,sedivi-
diremigualmenteseusbensentreseusfilhos,nãopossamaumentar
comoqueriamobrilhoeaglóriadafamília.Ofilhomaisvelhonão
poderianempossuirnemmanterosencargoseosempregosqueos
paislhetentamobterseseusirmãoseirmãstivessemasmesmasvan-
tagensqueele.Êpreciso,portanto,pô-losemcondiçõesdenãopo-
derdisputaressedireitocomomaisvelho.Éprecisoenviá-losaos
claustroscontrasuavontadeesacríficá-loslogoaosinteressesdaque-
lequesedestinaaomundoeàvaidade”.Écuriosonotarqueaindig-
naçãoprovocadapelasfalsasvocaçõeseosprivilégiosdofilhomáis
velhonãoestámaispresentequandosetratadocasamento:ninguém
pensavaemcontestaropoderdospaisnessaquestão.
Otextocitadoacimaexprimeumaopiniãocategórica.Emsuas
RèglesdeVéducationdesenfants
u
,Cousteltraduz,aocontrário,um
9G.Duby,op.cit.
10Varet.DeVéducationdesenfants,1661.
11Coustel,RèglesdeVéducationdesenfants,16S7,
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMlLSAMODERNA 235
certoembaraço,epreferecercar-sedetodootipodeprecauçõespara
condenarumapráticaantigaedifundida,equeparecialigadaàper-
manênciadasociedadefamiliar,Eleadmitequeospaistenhampre-
ferências:“Nãoéqueospaisfaçammalemamarmaisaquelesde
seusfilhosquesãomaisvirtuososoutêmmaisboasqualidadesque
osoutros.Masdigoquepodeserperigosomanifestardeformamui-
togritanteessadistinçãoeessapreferência”.
OabadeGoussault,emseuPortraiid'unhonnêtehommede
1692
12
,émaisveemente:"Hánãoapenasvaidadeemsedoarame-
lhorpartedosbensaofilhomaisvelhodafamília,paramantê-lo
semprenoluxoeeternizarseunome(sentimosaquiperfeitamentea
oposiçãoentreafamília-casa eafamíliasentimentalmoderna);há
mesmoinjustiça.Quefizeramosmaismoçosparaseremtratadosas-
sim?”“Hápessoasque,afimdeestabeleceralgunsdeseusfilhos
numnívelsuperioraseusprópriosmeios,sacrificamosoutroseos
encerramemmosteirossemconsultá-losarespeitoesemexaminar
setêmumavocaçãoreal.Ospaisnãoamamigualmenteseusfilhose
introduzemdiferençasondeanaturezanãoquisfazê-lo.”Apesarde
suaconvicção,Goussaultadmiteainda,comoumaconcessãoaosen-
socomum,queospais“possamterdefatomaisamorporalgunsde
seusfilhos”,mas“esseamoréumfogoqueelesdevemmanteroculto
sobascinzas”.
Assistimosaquiaoiníciodeumsentimentoqueresultariana
igualdadedocódigocivil,eque,comosabemos,jáhaviapenetrado
noscostumesnofimdoséculoXVIII.Osesforçospararestabelecer
osprivilégiosdomaisvelhonoiníciodoséculoXIXchocaram-se
contraumarepugnânciainvencíveldaopiniãopública:muitopoucos
chefesdefamília,mesmonobres,utilizaramodireitoquelheserare-
conhecidopelaleidebeneficiarapenasumdosfilhos.Fourcassiécita
umacartadeVillèleemqueesteselamentadesseinsucessodesua
política,eprofetizaofimdafamília
l
\Narealidade,esserespeito
pelaigualdadeentçeosfilhosdeumafamíliaéumaprovadeummo-
vimentogradualdafamília-casaemdireçãoàfamíliasentimental
moderna.Tendia-seagoraaatribuiràafeiçãodospaisedosfilhos,
semdúvidatãoantigaquantooprópriomundo,umvalornovo:pas-
sou-seabasearnaafeiçãotodaarealidadefamiliar.Osteóricosdo
iníciodoséculoXIX,entreosquaisVillèle,consideravam essabase
demasiadofrágil;elespreferiamaconcepçãodeuma“casa”familiar,
umaverdadeiraempresaindependentedossentimentosparticulares;
haviamcompreendidotambémqueosentimentodainfânciaestimi
12Goussault,Portraitd
f
unhonnêtehomme,1692.
13J,Fourcassié, Villèle^1954.

236 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMiLIA
naorigemdessenovoespíritofamiliar,doqualsuspeitavam.Poressa
razão,tentaramrestaurarodireitodaprimogenitura,derrubandoas-
simtodaatradiçãodosmoralistasreligiososdoAncienRegime,
Observaremos aquiqueosentimentodeigualdadeentreas
criançaspôdedesenvolver-senumnovoclimaafetivoemoralgraças
aumaintimidademaiorentrepaiseOlhos.
Parece-nosindicadocompararessasobservaçõescomumfenô-
menocujanovidadeesentidomoralforamsublinhadosnumproces-
sode1677 Tolerava-seentãoocasamentodosmestres,masconti-
nuava-seaproibiraosmestrescasadosoexercíciodecargosuniversi-
tários.Assim,em1677,umprofessorcasadofoieleitodecanodaTri-
bodeParis.Ocandidatoderrotado,oescrivãoDuBoulay,apelou,e
ocasofoientregueaoConselhoPrivado.OadvogadodeDuBoulay
apresentounumamemóriaasrazõesqueseteriamparamanteroce-
libatodosprofessores.Osmestrestinhamohábitodereceberem
casapensionistas,eavirtudedessesmeninospoderiaserexpostaa
váriosperigos:“Inconvenientesqueacontecemcommuitafreqüên-
ciadevidoàconvivênciaqueosmestrescasadossãoobrigadosaad-
mitirentreosjovensqueeducamesuasmulheres,filhasecriadas.Ê
impossívelparaelesimpediressaconvivência,menosaindaaospen-
sionistasquevivememsuacasadoqueaosexternos.Ossenhoresco-
missáriosfarãoagentilezaderefletirsobreisto:sobreaindecência
queháparaosescolaresemverdeumladoasroupasdasmulherese
dasmeninas,edeoutro,seuslivrosesuasescrivaninhas,emuitasve-
zes,todasessascoisasjuntas;emvermulheresemeninaspenteando-
se,vestindo-se,ajustando-se,criançasdécueirosemseusberços,e
tudoomaisqueéoapanágiodocasamento”.
Aesteúltimoargumento,particularmenteinteressanteparanos-
soestudo,omestrecasadoresponde:“OditoDuBoulayfalacomo
setivesseacabadodedeixaraaldeiaondenasceu.Poistodossabem
queondemorammulheresháquartosparadas,ondeelassevestem
emsuaprivacidade(privacidadesemdúvidabastanterecente,elimi-
tadaàsgrandescidades),eháoutrosparaosescolares”.Quantoàs
criançasdeberço,nãoeramvistasnashabitaçõesparisienses,poiseram
todasentreguesaamas:“Ésabidoqueascriançassãoenviadasàsca-
sasdasamasemalgumaaldeiavizinha,demodoqueemcasados
professorescasadossevêemtãopoucosberçosecueiroscomono
cartóriododitoDuBoulay”.
Essestextosparecemindicarqueocostumedeenviarascrianças
paraascasasdasamas“numaaldeiavizinha”eracomumnosmeios
14H,Ferté,LesGradesuniversitairesdansíancienneJacuíiêdesarts
v1868,
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 237
sociaisurbanoscomoosdosmestres,masquenãoeraantigo,jáque
umdosquerefantespodiafingirignorá-lo.Essecostumeter-se-iade-
senvolvidoduranteoséculoXVII,enquantoeradenunciadopelos
educadoresmoralistasque,muitoantesdeRousseau,recomenda-
vamqueasmãesnutrissemelasmesmassuascrianças.Massuaopi-
nião,tantasvezeseficaz,apoiava-seapenasemtradiçõesconvencio-
naisqueremontavam aQuintilíano.Elanãoconseguiuprevalecer
sobreumcostumequecertamenteseapoiavanaexperiênciaecorres-
pondiaaomelhortratamentodaépoca.Defato,podemosimaginar
asdificuldadesprovocadaspelaalimentaçãoeacriaçãodosbebêsno
casodeamãenãoterleite.Recorreraoleitedevaca?Estaeraasina
dospobres.OhumanistaThomasPlatter,paradescrevertodaami-
sériadesuainfâncianoiníciodoséculoXVI,nãoencontranada
maisexpressivodoqueconfessarqueforacriadocomleitedevaca.
Ascondiçõesdehigienedacoletadoleitepermitemcompreender
essarepugnância.Alémdisso,nãoerafáciladministrá-lo àscrianças-
osrecipientesestranhosqueestãoexpostosnasvitrinasdomuseuda
FaculdadedeFarmáciadeParis,equeserviamdemamadeiras,de-
viamexigirmuitahabilidadeepaciência.Pode-secompreendermui-
tobemorecursoàsamas-de-leite.Masqueamas-de-leite?Podemos
suporquenoinícioelasgeralmentefossemcriadasrecrutadasnavi-
zinhança,equeacriançaamamentadapermaneciaemcasa,ondeera
criadajuntocomasoutrascrianças.Tudoíndicaquenasfamíliasri-
casdoséculoXVIedoiníciodoséculoXVIIoslactenteseramman-
tidosemcasa.Porqueentão,sobretudonasfamíliasdapequenabur-
guesia,comoasdosmestres,dosoficiaismodestos,secriouohábito
deenviarosbebêsparaocampo?Nãodevemosinterpretaressecos-
tumerelatívamenterecentecomoumamedidadeproteção,euousa-
riamesmodizerdehigiene,quedeveriasercomparadacomosoutros
fenômenosemquereconhecemosumaatençãoparticularcomrela-
çãoàcriança?
Defato,apesardapropagandadosfilósofos,osmeiosricos,
nobreseburgueses,continuaramaentregarsuascriançasaamas-de-
leiteatéofimdoséculoXIX,ouseja,atéomomentoemqueospro-
gressosdahigieneedaassepsiapermitiramutilizarsemriscosoleite
animal.Contudo,umamudançasignificativaocorreunessemeio
tempo:aamapassouasedeslocar,emlugardacriança,epassoua
morarnacasadafamília,eafamíliapassouaserecusaraseparar-se
dosbebês.Essefenômenoécomparávelaodasubstituiçãodointer-
natopeloexternato,estudadonumcapítuloanterior.
Ahistóriaaquiesboçada,sobumcertopontodevista,surge
comoahistóriadaemersãodafamíliamodernaacimadeoutrasfor-

238 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
masderelaçõeshumanasqueprejudicavam seudesenvolvimento.
Quantomaisohomemvivenaruaounomeiodecomunidadesde
trabalho,defestas,deorações,maisessascomunidadesmonopoli-
zamnãoapenasseutempo,mastambémseuespírito,emenoréolu-
gardafamíliaemsuasensibilidade.Aocontrário,seasrelaçõesde
trabalho,devizinhança,deparentescopesammenosemsuacons-
ciência,seelasdeixamdealiená-lo,osentimentofamiliarsubstituios
outrossentimentosdefidelidade,deserviço,etorna-sepreponderan-
teou,àsvezes,exclusivo.Osprogressosdosentimentodafamíliase-
guemosprogressosdavidaprivada,daintimidadedoméstica.Osen-
timentodafamílianãosedesenvolvequandoacasaestámuitoaber-
taparaoexterior:eleexigeummínimodesegredo.Pormuitotempo,
ascondiçõesdavidaquotidiananãopermitiramesseentrincheira-
mentonecessáriodafamília,longedomundoexterior.Umdosobs-
táculosessenciaisfoisemdúvidaoafastamentodascrianças,envia-
dasparaoutrascasascomoaprendizes,esuasubstituiçãoemsua
própriacasaporcriançasestranhas.Masavoltadascrianças,graças
àescola,easconsequênciassentimentaisdessefechamentodafamí-
lianãobastaram:estava-seaímuitolongeaindadafamíliamoderna
edesuafortevidainterior;aantigasociabilidade,incompatívelcom
essetipodefamília,subsistiaquasequeintegralmente,Noséculo
XVII,constituíu-seumequilíbrioentreasforçascentrifugas-ouso-
ciais-ecentrípetas-oufamiliares-quenãosobreviveriaaospro-
gressosdaintimidade,consequência talvezdosprogressostécnicos.
Vimosnaspáginasanterioresodespertardessasforçascentrípetas.
Observemosagoraaresistênciadasforçascentrífugas,asobrevivên-
ciadeumasociabilidadecompacta.
Oshistoriadoresjáinsistiramnamanutençãoatémuitotardeno
séculoXVIIderelaçõesdedependênciaqueanteshaviamsidonegli-
genciadas.ÂcentralizaçãomonárquicadeRichelieuedeLuísXIV
foimaispolíticadoquesocial.Seelaconseguiureduzirospoderes
políticosrivaisdacoroa,deixouintactasasinfluênciassociais.Aso-
ciedadedoséculoXVIInaFrançaeraumasociedadedeclientelas
hierarquizadas,emqueospequenos,os“particuliers" seuniamaos
maiores

.Aformaçãodessesgruposimplicavatodaumaredede
contatosquotidianos, sensoriais.
Paranós,issosetraduznumaquantidadeinimagináveldevisi-
tas,conversas,encontrosetrocas.Oêxitomaterial,asconvençõesso-
15A.Adam,HisíotredeiaiitératurefrançatseauXVll*siècie.A. I(1948),1J(195!),
R.Moiisnier,“Soulèvements populairesavantlaFronde
5
",Rev,Hist.mod,etcont.
1958,pp.81-113.
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 239
ciaiseosdivertimentossemprecoletivosnãosedistinguiamcomo
hojeematividadesseparadas,assimcomonãoexistiaseparaçãoen-
treavidaprofissional,avidaprivadaeavidamundanaousocial.O
essencialeramanterasrelaçõessociaiscomoconjuntodogrupo
ondesehavianascido,eelevaraprópriaposiçãoatravésdeumuso
hábildessaredederelações.Terêxitonavidanãosignificavafazer
fortunaouobterumasituação-ouaomenosissoerasecundário;
significavaantesdetudoobterumaposiçãomaishonrosanumaso-
ciedadeemquetodososmembrosseviam,seouviameseencontra-
vamquasetodososdias.QuandootradutorfrancêsdeLaurensGra-
cian
ifl
(1645)propõequeofuturo“Herói”escolhaum“emprego
plausível”,elenãoquerdizercomissooquehojechamaríamosde
umaboasituação,esimumemprego“queseexecuteàsvistasde
todoomundoeparaasatisfaçãodetodos,semprecomapreocupa-
çãodareputação”.Aartedefazersucessoeraaartedeseragradá-
vel,“amável"emsociedade.AssimaconcebianoséculoXVIocor-
tesãodeBalthazarCastiglione
n
:“Essaénaminhaopiniãoamanei-
radecortejarmaisconvenienteaofidalgoquevivenacortedos
príncipes,atravésdaqualelepodeservirperfeitamenteemtodasas
questõesrazoáveis,afimdeobterofavordaqueleseoelogiodosou-
tros”.Ofuturodeumhomemdependiaunicamentedasua“reputa-
ção”.“Parece-mequeháoutracoisaquedáetiraareputação,éa
eleiçãodosamigoscomosquaissedeveterumarelaçãoíntima.”Em
todaaliteraturadoséculoXVII,umlugarimportanteerareservado
àamizade,àamizadequeeraumarelaçãosocialmaisintensaqueas
outras.Daíaimportânciadaconversação,aindasegundooLeCour-
tisan:“Gostariaaindadeouvirfalarparticularmentesobreamanei-
radevivereconvivercomoshomenseasmulheres:coisaquemepa-
recedegrandeimportância,vistoque,nascortes,amaiorpartedo
tempoégastanisso"-enãoapenasnascortes.Todaaliteraturadita
de“civilidade”doséculoXVIIinsistirianaimportânciadaconversa-
ção,nanecessidadedeconheceraartedaconversação,naconduta
duranteaconversaçãoetc.Osconselhosdessesmanuaisdescemade-
talhesincríveis
IB
.“Peca-setambémaofalardemuitasediferentes
maneiras, e,sobretudo,noassuntodequesetrata.”Aconversação
deverespeitaraconveniência.Osassuntosdomésticos,familiaresou
muitopessoaisdevemserevitados:“Erramtambémaquelesque
nuncatêmnadanapontadalínguaalémdesuamulher,seusfiíhi-
ióL*Héros,deLaurensGrancien,fidalgoaragonês,Í645.
17BallhazarCastiglione,LeCourtisan,trad.francesadeG.Chappuys, 1585.
ISG.DeliaCasa,Galaiêe
,traduçãofrancesadeHamel,1666.

240 HISTÓRIASOCIALDACRIANCAEDAFAMlLIA
nhosesuaama;-Meufilhmhoontemmefezrirtanto.Jamaisvistes
umacriançamaisengraçadinhadooqueomeumenino.Minhamu-
lhertemistoeaquilo*./'Deve-seevitaramentiraauto-elogiosa (era
aépocadoMenteurdeCorneille),Ouainda,segundoaCivilitêNou
-
vellede1671 “Observareiscomoprimeiroensinamentojamaisdis-
cutiroufalarsobrecoisasfrívolasentrepessoasimportantesedou-
tas,nemsobrequestãoouassuntomuitodifícilentrepessoasquenão
possamentendê-los,..Nãofaleisaovossogruposobrecoisasmelan-
cólicascomoferidas,enfermidades,prisões,processos,guerraemor-
te”(oqueéquesobrava?),“Nãoconteisvossossonhos.”“Nãodigais
vossaopiniãoanãoserquevo-lapeçam,mesmoquesejaisomaisra-
zoável,”“Nãovosintrometaisemcorrigirasimperfeiçõesdosou-
tros,tantomaisqueissocabeaospais,mãesesenhores.”“Nãofaleis
antesdeterpensadonoquequereisdizer.”
Éprecisolembrarqueessaartedaconversaçãonãoeraumaarte
menorcomoadançaouocanto,OGalatée,esselivrodecabeceira
doséculoXVII,sobreoqualSorel
20
diziaque“emalgumasnações,
quandosevêumhomemcometeralgumaincivilidade,diz-sequeele
nãoleuoGalatée deixabemclaroqueaconversaçãoéumavirtu-
de:“Começareiporaquiloquejulgonecessárioaprenderparaque
umapessoasejaconsideradabemeducadaeagradavelmentefmaao
conversarcomasoutras,algoquenoentantoéumavirtude,oumui-
toseaproximadavirtude”*OGalatéeeralidonoscolégiosjesuítas.
EmPort-Royal,maistarde,Nicoleseexprimiríadamesmaformaem
seutratadoDelacivilitêchrétienne
22
:“Sendoportantooamordos
homenstãonecessárioparanosmanter,somosnaturalmentelevados
aprocurá-loeobtê-lo”*“Nósamamosoufingimosamarosoutrosa
fimdechamarsuaatenção.Esteêofundamentodacivilidadehuma-
na,queéapenasumaespéciedecomérciodoamor-próprio,noqual
tentamosatrairoamordosoutrosdemonstrando-lhes afeição*”As
boasmaneirassãoparaacaridadeoqueosgestosdevotossãoparaa
devoção.“Asolidezdesuaunião(dasgentesdebem)nãodepende
apenasdesseslaçosespirituais,mastambémdessasoutrascoisashu-
manasqueospreservam”-asboasmaneiraseaartedeviveremso-
ciedade.Seumapessoaviveemsociedade,eladeve“forjarasopor-
tunidades”e“fazer-seamarpeloshomens”*
Esseestadodeespiritonãoeranovo;remontavaaumaconcep-
çãomuitoantigadasociedade,naqualascomunicaçõeseramasse-
19LaCivilitênouvelle
,
1671.
20CitadoporM.Magendie,LaPoiiiessemondaineauXV!
í
e
siêcle,1925.
21Cf.nota18,destecapitulo*
22Nicole,
l4
Delacivilitêchrétienne”, inEssaisdemoral
e
t1773, t.II,p,116,
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 241
guradasmenospelaescoladoquepelaprática,pelaaprendizagem,
naqualaescritaaindanãoocupavaumlugarmuitoimportantena
vidaquotidiana*Énotávelqueesseestadodeespíritotenhasubsisti-
donumasociedadeemqueodesenvolvimentodaescolaindicavaos
progressosdeumamentalidademuitodiferente.Essaambigüidade
entreasociabilidadetradicionaleaescolarizaçãomodernafoimuito
bemsentidapeloscontemporâneos, esobretudopeloseducadores
moralistas,muitosdosquaissesituavamnasvizinhançasdePort-
Royal.Quasetodosessesmoralistassecolocaramoproblemadesa-
berseaeducaçãoparticularemcasavaliamaisdoqueaeducação
públicanaescola.Naverdade,oproblemaeramenosatualdoque
parece,poisjáhaviasidodiscutidoporQuintiliano,oquelheconfe-
riaanobrezadeumprecedente*Masoseducadoresmoralistasdiscu-
tiramoproblemaemfunçãodesuascircunstâncias edesuaépoca.
EmLHonnesteGarçon
,M.deGrenaille
24
expõeaquestãodase-
guintemaneira;“Quantoamim,nãodesejoemabsolutoofenderia
antigüidadecomopiniõesmodernas,nemdesaprovaraorganização
dosColégios,quetantossábiosaprovaram*Ousodizer,aindaassim,
queosColégiossãomaisAcademiasvantajosasparaopúblicodo
queinstituiçõesnecessáriasaosparticuliers
T
(osnobresparticuliers,
ouseja,apequenanobrezaporoposiçãoaosgrandessenhores).Eles
sãoum“meiotantoparaospobrescomoparaosricosdeadquirir
essestesourosdoespíritoqueoutrorasópodiaalcançarquempos-
suíssemuitosbens.Háváriascriançasque,nãopodendomanter
mestresemcasa,seconsiderammuitoafortunadasporseverem
mantidasàcustadopúblico,eporreceberemgratuitamenteaciência
queoutroratinhadesercomprada.Masparaaquelesaquemafor-
tunaeanaturezaconcederamtodososfavores,consideroqueainsti-
tuiçãoparticularémaisvantajosadoqueapublica.Essaopiniãonão
éabsolutamentenova,emborapareçaousada”.Aeducaçãopública
eradesprezadaporqueseacreditavaqueasescolasestavamnasmãos
dospedantes;essaopiniãoeradifundidanaliteratura,aomenosa
partirdeMontaigne, ecertamentetambémnaopiniãopública*A
grandeevoluçãodaescolanãodiminuiuodesprezopelomestre.
Haviaoutrasrazõesparaessaaversãoàescola:adisciplinaesco-
larerademasiadosevera.OquediriaM*deGrenailledoscolégios
religiososedosliceusdoséculoXIX!“Assimcomoemcasanãose
dáumaliberdadeexcessivaàscrianças(porqueelasnuncaabando-
namacompanhiadosadultos),nãoéprecisotolhê-lasapontode
lhesprejudicaraautoconfiança.”EM.deGrenailleacrescentaeste
23DeGenaílle,LHonnesteGarçon,1642.

242 HISTORIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
comentário,quedeixaentreveranostalgiadeumtempoemqueas
criançasnãoeramseparadasdosadultos:'‘Elasnãosãotratadasda
mesmamaneiraqueasoutras
11
,Aescolaoubemcorriaoriscode
corromperacriançaatravésdasmáscompanhias,oubemretardava
suamaturidadeafastando-adosadultos,eM.deGrenailleconside-
ravaesseprolongamento dainfânciacomoummal:“Mesmoque
umacriançanãofosseescandalizadaporseuscompanheirosdeesco-
la,eiasempreaprenderianaescolamilpuerilidadesqueseriadifícil
desaprender,enãoseriamenosdifícilpurificá-ladassujeirasdocolé-
giodoquepreservá-ladeseusvícios”.Enfim,oprincipaldefeitodo
colégioeraoisolamentodascrianças,queasseparavadeseumeio
socialnatural,“Elaprecisaaprendercedocomosedeveagirtanto
emsociedadecomonoestudo,eissoelanãopodeaprendernumlu-
garemqueaspessoaspensammaisemvivercomosmortosdoque
comosvivos,ouseja,maiscomoslivrosdoquecomoshomens."
Esteeraoverdadeiromotivodetodaessacrítica:arepugnânciaque
sentiampelaescolaaquelesquepermaneciammaisoumenosfiéisà
antigaeducaçãopelaaprendizagem,umtipodeeducaçãoquemer-
gulhavaimediatamenteacriançanasociedadeeencarregavaasocie-
dadedetreiná-laadesempenharseupapel,sempassarpelaetapain-
termediáriadainiciaçãodassociedadesformadasporclassesdeida-
des,oudaescola,nassociedadestécnicasmodernas.
Essaseriaainda,cercade20anosmaistarde,aopiniãodoMa-
rechaldeCaiilièreemLaFortunedesgensdequalitéetdesgen~
tiíshommesparticuliers(1661)
2i
:“Nãobastaconheceraciênciaensi-
nadanocolégio;háoutraciênciaquenosensinacomodevemosnos
servirdaquela.,.,umaciênciaquenãofalanemgregonemlatim,mas
quenosmostracomoutilizaressaslínguas.Encontramo-lanospalá-
cios...entreospríncipeseosgrandessenhores.Elaesconde-setam-
bémnasruelasdemulheres,deleita-seentreasgentesdaguerra,e
nãodesprezaoscomerciantes,oslavradoresouosartesões.Elatem
porguiaaprudência e,comodoutrinas,asconversaçõeseaexpe-
riênciadascoisas".Asconversaçõeseohábitodasociedade“muitas
vezesjáformarampessoasbemeducadassemorecursoàsLetras,O
mundoéumgrandelivroqueestásemprenosinstruindo,eascon-
versaçõessãoestudosvivosquenadadevemaosdoslivros...Acon-
vivênciahabitualdedoisoutrêsespíritosinteligentespodenosser
maisútildoquetodosospedantesdasuniversidadesjuntos...Eles
24MarechaldeCaiilière,LaFortunedesgensdequalité....166L
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 243
produzemmaismatériaemumahoradoquepoderíamos lernuma
bibliotecaemtrêsdias.Aaçãoeaexpressãodafacetêmalgodeen-
cantadorqueimprimeintensamenteaquiloqueodiscursopretende
infundir".
NofimdoséculoXVII,oabadeBordelon”(1692)aindaerada
mesmaopinião:"Instruíascriançasmaisparaomundodoquepela
escola".OfrutodeumaBelaEducação-assimsechamavaoseuli-
vro-nãodeverianuncaparecercomestepedante:
Cethomnteestunoriginal
Etsadoctrineestsansseconde;
ItadeFerseetJuvenal
DeCatulleetdeMarital
Uneintelligenceprofonde.
llentendtouthormitemonde.
*
Vemos,portanto,queaolongodetodooséculoXVIIexistiu
umacorrentedeopiniãohostilàescola.Poderemoscompreendê-la
melhorsenoslembrarmosoquantoaescolaeraumfenômenorecen-
te.Essesmoralistas,quehaviamcompreendido aimportânciada
educação,durantetantotempoignoradaeaindamalpercebidapor
seuscontemporâneos,nãoperceberambemopapelqueaescolapo-
diadesempenharejáhaviadesempenhadonotreinamentodascrian-
ças.
Alguns,especialmenteosqueeramligadosaPort-Royal,tenta-
ramconciliarosbenefíciosdaescola,quereconheciam,comosda
educaçãodoméstica.EmsuasRèglesde1'éducaüondesenfants
26
de
1687,Coustelanalisaoproblemamaisdeperto,epesaospróseos
contras.Seascriançassãocriadasemcasa,ospaisvelammelhorpor
suasaúde(estatambéméumapreocupaçãonova),e“elasaprendem
maisfacilmenteacivilidade”atravésdoconvíviosocial.“Insensivel-
mente,ascriançasseformamnosdeveresdavidacivilenamaneira
deagirdaspessoasbemeducadas".Masháinconvenientes:"Édifícil
determinarahoradosestudos,poisahoradasrefeições,daqualde-
pendemosestudos,nãopodeserfixadaporcausadosnegóciosedas
visitasqueaparecemequemuitasvezesnãosepodemprevernem
evitar".Éimportantenotarafreqüênciadessasvisitas,aomesmo
25Bordelon,LaBelteÉducatioa, 1694.
,

*
“Estehomeméumoriginal,/Esuadoutrinarcàotemigual;
/
DePérsioeJuvena
,/
CatuloeMarcial,/Elepossuiumconhecimentoprofundo./Eleentendedetudo,/me-
nosdomundo/*
26C.Coustel,Règlesdefêducaiümdesenfants.1687.

244 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
tempocordiaiseprofissionais.Ascriançascorremtambémoriscode
serdemasiadomimadaspelospais.Enfim,elasficamexpostasàs
“complacências ebajulaçõesdoscriados,aosdiscursoslicenciosose
àstolicesdoslacaiosestranhos,quenemsemprepodemserafastados
delas
7
\Ah!atemívelpromiscuidadedoscriados-mesmoospiores
adversáriosdaescolareconheciamqueesteeraumargumentopode-
rosoemseufavor.Assim,DeGrenailleadmitequeospais“sãoobri-
gadosaenviarseusfilhosaoscolégios,preferindoqueelesfiquem
numaclasseapermaneceremnumacozinha
27'\
Coustelreconhece, aliás,queadiscuSsâoédecaráterteórico,
pois,emsuaépoca,todososmeninoseramenviadosaocolégio,“O
costumemaisgeralmenteaceitonaeducaçãodascriançasécolocá-
lasemcolégios.’
7
Essasinstituiçõestêmsuasvantagens:ascrianças
“fazemaíconhecimentos eamizadesvantajosas,quemuitasvezes
duramatéofimdavida”.Elasaproveitamtambémosbenefíciosda
emulação:“Ascriançasadquiremafacoragemlouváveldefalarem
públicosemempalideceràvistadoshomens,oqueéabsolutamente
necessárioàquelesquedevemassumircargosimportantes”.“Aedu-
caçãoparticular"acentuaatimidez.Observaremosqueasvantagens*
reconhecidasdoscolégiosquasenãosereferiamaoníveldeinstru-
ção;elaspermaneciam sociais,“civis”,comosedirianaépoca,
Masoscolégiostambémtinhaminconvenientes.Sabemosque
asclasseserammuitonumerosas,muitasvezescontendomaisde100
alunos.ParaCoustel,“aenormemultidãodealunosnãoéumobstá-
culomenorparaseuavançonosestudosdoqueparaosbonscostu-
mes”.Oquejásabemossobreasclassessuperpovoadas esobreatur-
bulênciadosalunosnospermitecompreendermelhorasinquietações
deCoustel.“Assimquepõemospésnessetipodelugar,ascrianci-
nhasnãotardamaperderainocência,asimplicidadeeamodéstia
queastornavamtãoamáveisaDeuscomoaoshomens,”
Haviaumasolução,quejáforaentrevistaporErasmo:“Colo-
carcincoouseiscriançascomumoudoishomensdebemnumacasa
particular”.Observamosqueessafórmula foiadotadaemPort-
Royalnascélebres“pequenasescolas”,célebresaindaqueefêmeras.
Encontramo-latambémnasnumerosaspensõesparticularesquese-
riamcriadasnofimdoséculoXVIIeaolongodoséculoXVIII,
Comrarasexceções,oseducadoresmoralistassãoumtantoreti-
centescomrelaçãoaocolégio.Umhistoriadorquesecontentasse
comseutestemunhopoderiadeduzirlegitimamentequeaopinião
públicaerahostilàsformasescolaresdeeducação,quandonareali-
27DeGrenaille,op.cil.
DAFAMÍLIAMEDIEVALÃFAMÍLIAMODERNA 245
dade,comovimos,haviaumaimensaprocuradecolégios,todossu-
perpovoados.Osteóricosnemsemprefornecemomelhorreflexode
suaépoca.
Contudo,essaoposiçãonãoeraaberrante:e!apodeserexplica-
dapelaimportânciaqueaaprendizagem eoconvíviosocialainda
conservavam,apesardosprogressosdaescolarização.Navidadeto-
dososdias,aspessoassouberammelhordoquenosescritosdosedu-
cadoresmoralistasconciliaraescolaeacivilidade.Aprimeiranão
baniuasegunda.Aoladodaeducaçãoatravésdaescola,subsistiu
umaeducaçãoatravésdomundo,quetambémseaperfeiçoouduran-
teoséculoXVI1.Nósnosdeteremosnestepontoporummomento.
Apalavra"civil"eraquasesinônimodenosso“social”moder-
no:umsercivileraumsersocial.Apalavra“civilidade"correspon-
deriaaproximadamenteaoquehojeentederíamospor“conhecimen-
todasociedade”,masacorrespondência jáémenosperfeita.Defa-
to,nosséculosXVIeXVII,acivilidadeeraasomadosconhecimen-
tospráticosnecessáriosparaseviveremsociedade,equenãose
aprendianaescola.Sobonomemaisantigodecourtoisie,acivilida-
dejáexistianumaépocaemqueaescolaridadeerareservadaunica-
menteaosclérigos.
Asorigensdaliteraturasobreacivilidade, talcomoexistiudo
séculoXVIaoXVIIsemgrandesmudanças,sãobastantecomplexas.
Elasseligamatrêsgênerosmuitoantigos.Primeiro,aostratadosde
cortesiapropriamente dita.Muitosdessestratadosforamredigidos
nosséculosXIVeXVemfrancês,inglês,italianoemesmoemlatim.
Dirigiam-se atodos,aclérigoscomoaleigos,aosqueliamlatim
comoaosquesófalavamaslínguasvulgares.EmZinquantaCortesie
daTavola
.podemosler:“Laprimaèquesta:leBenedicite.Lacorte-
siasecunda:deveslavarasmãos.Laterziacortesia:esperaparate
sentaresatéqueteconvidem.Adécimaterceira:aquelequeserveà
mesadeveestarlimpoenãodeveescarrarnemfazeroutrasujeira
diantedosconvivas."
Emfrancês,haviaolivroCommentseteniràtable;emlatim,
Stanspueradmensam.Esseslivrosdirigiam-seàscriançaseaosjo-
vens.Eminglês,essestratadoseramdesignadossobonomedeBa-
beesBooks:
:i
ensinavamafalarcorretamente, acumprimentar, a
dobrarojoelhodiantedosenhor,anãosesentarsemtersidoconvi-
dado,aresponderàsperguntas.“Cortaasunhascomfrequênciae
lavaasmãosantesdojantar.Quandotiraresumaporçãodecomida
2Ê.FraBonveniscoRipa,ZinquantaCortesiedaTavota,eirca1922.
29,BabeesBooks,op,dt.

246 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
daboca,nãoarecoloquesmaisnoprato...Nãolimpesosdentescom
apontadafaca...Nãococesasmãosnemosbraços...Nãoescarres
quandoestiveresàmesa...Nãoenrolesatoalha...Mantémdiantede
titeupratolimpo.Nãocochilesàmesa...Prestaatençãoparanãoar-
rotares..."Essesconselhospráticosemgeraleramritmadosemver-
sosdemáqualidade.NaIdadeMédia,elessedirigiamtambémàs
mulheres.ORomandelaRoseéemparteumtratadodecortesia:re-
comendaàsmulheresousodeumaespéciedecorpete(sembarbata-
nasdeossooumetal),dá-lhesconselhossobreatoalete,oscuidados
íntimosealimpezada"casadeVénus”,quedeviasermantidaraspa-
da.Maistarde,ostratadosdecivilidadenãomencionariammaisas
mulheres,comoseseupapelsetivesseenfraquecidonofinaldaIdade
Médiaeiníciodostemposmodernos.
Asegundafontedostratadosdecivilidadeforamasregrasde
moralcomumcontidasnumacoletâneadeadágioslatinosatribuída
naIdadeMédiaaCatãooAntigo,osdísticosdeCatão.ORomande
laRosecita-oscomoumareferência:"Estaétambémaopiniãode
Catão,setelembrasdeseulivro”.OsdísticosdeCatãoforamJídos
duranteváriosséculos,eaindaeramreeditadosnoséculoXVIII
30
.
Elesensinavamoleitoraconterapróprialíngua,adesconfiardas
mulheres(inclusiveaprópria),anãocontarcomheranças,anãote-
meramorte,anãosepreocuparsealguémdogrupofalasseemvoz
baixa(e,nessecaso,nãoimaginarqueseestavafalandodaprópria
pessoa),adarumofícioaosfilhos,amoderaracóleracontraosser-
vidores,aesconderospróprioserros(poisadissimulaçãovaliamais
doqueamáreputação),anãopraticaraadvinhaçâoeafeitiçaria,
nãofalardosprópriossonhosnemsepreocuparcomeles,escolher
bemsuamulher,evitaragula(sobretudoquandoestaacompanhava
o"vergonhosodesejodeamor”),nãozombardosvelhos,evitarser
ummaridocomplacente etc.Essesconselhosseligavamaoquehoje
consideraríamosumamoraldeextremabanalidade,umconformis-
mosocialouumbomsensogrosseiro:oquesedeveeoquenãose
devefazeremtodasasáreas-nasrelaçõesdeumhomemcomsua
mulher,seuscriados,seusamigos,bemcomonaconversaçãoouna
condutaàmesa-tudomisturadoenomesmonível.Nadadissopa-
recemuitoimportante,segundonossaópticamoderna.Masnesses
conselhos,emquevemosapressãodeconvençõessociaistriviais,
nossosancestraisreconheciamosmandamentosdavidaemcomum,
guardiãesdosverdadeirosvalores.
Aterceirafontedostratadosdecivilidadeforamasartesde
agradarouasartesdeamar-aArsamatoriadeOvídio,oDeAmore
deAndréleChapeiain,osDoeumenti
d
J
amoredeFranciscodeBarbe-
30.Pscudo-Catao,Distiritademoribus.
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 247
rini,eosmanuaisdeamordoséculoXVLORomandelaRoseêum
modelodogênero.Eleensinaquesedeveevitarociúme,queomari-
donãoésenhordesuamulher(issomudariamaistarde),queo
amantedeveínstruir-senasciênciasenasartesdeagradaràsuaami-
ga,quenãodeverepreênde-la,procuralersuascartasousurpreen-
derseussegredos.Demaneirageral,ensinaquetambémsedevefu-
giràvilania,quenãosedevemaldizer,quesedevefazersaudaçõese
responderaelas,nãodizergrosseiras,evitaroorgulho,serbemapes-
soadoeelegante,alegreecontente,generoso,equesedevecolocaro
coraçãonumúnicolugar...Saoreceitasparaganharasimpatiadas
mulheresedetodososcompanheirosdeumavidaemquenuncase
estavasozinho,massemprenomeiodeumasociedadenumerosae
exigente.
Ostratadosdecortesia,asregrasdemoraleasartesdeamar
concorriamparaummesmoresultado:iniciarorapaz(eàsvezesa
dama)navidaemsociedade,aúnicaconvenienteforadosclaustros,
umavidaemquetudo-tantoascoisassériascomoosjogos-sepas-
savaatravésdoscontatoshumanosedasconversações.
NoséculoXVI,essaliteraturamedievalcomplexaefartairia
transformar-se esimplíficar-se.Delaseoriginariam doisgêneros,
próximosnofundo,masdiferentesnaforma:as"civilidades” eos
"cortesãos”,outratadossobreaartedefazersucessonavida.
OprimeiromanualdecivilidadefoiodeErasmo,quefundouo
gênero.Todososmanuaisposteriores,ehouvemuitos,neleseinspi-
raramouoimitaramservilmente.Osnomesmaisnotáveistalvezse-
jamosdeCordier,AntoinedeCourtín,e,Finalmente,Jean-Baptiste
deLaSalte,cujasRèglesdelabiensêanceetdelacmliíéchrêtiennese-
riamreeditadasumnúmeroinfinitodevezesnoséculoXVIIIeaté
mesmonoiníciodoséculoXIX.
Otratadodecivilidadenâoeraumlivroescolar,massatisfazia
umanecessidadedeeducaçãomaisrigorosadoqueamixórdiados
antigoslivrosdecortesiaoudosensinamentosdopseudo-Catão,As
circunstâncias-osprogressosdaescolarização-fizeramcomque,
emboraestranhoàescola,etransmitindoregrasdecondutanãoes-
colaresemalescolarizáveis,omanualdecivilidadefosseassociado
aoensinodascriançaspequenas,asuasprimeirasliçõesdeleiturae
escrita.Aprendia-sealereaescrevernessesmanuaisdecivilidade.
Porissomesmo,eleseramimpressosemvárioscaracteres,todosos
caracteresconhecidosdeumatécnicatipográficabastantecomplica-
da:haviacaracteresromanos,itálicosegóticos,mashaviatambém
caracteresmanuscritos,queeramimpressosapenasnessetipodeli-
vro,eporissoeramchamadosde"caracteresdecivilidade”.Essa
destinaçâopedagógicadavaaosmanuaisdecivilidadeumaapresen-
taçãotipográficapitoresca.Algumasvezes,também,otextoeraim-

248 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
pressoemváriaslínguas,emcolunasverticais,cadaumanumtipo
diferente:francêselatim,mastambémitaliano,espanholealemão
(jamaisoinglês,línguadepequenaaudiênciaepoucovalorcultural
naépoca).Osmanuaisensinavamaslínguasvivasquenãoeramle-
cionadasno.colégio.
Noentanto,esseslivrosnãosedestinavamapenasàscrianças,O
manualdeAntoinedeCourtin,dirigia-se“naoapenasàspessoasque
têmfilhos,mastambémàquelasque,emboradeidadeavançada,não
foramcontudoinstruídasnapolidezenadecênciaosuficientepara
poderobservá-lasemsociedade
51
**,AleitoradoquadrodeGrímoux
domuseudosAugustinsdeTolousejáéumamocinha:podemosdis-
tinguirmuitobemos"caracteresdecivilidade”dolivroqueelasegu-
ra.Osassuntostratadosnemsemprepertenciamàliteraturainfantil;
muitasvezeseramassuntosadultos,conselhossobrecomotratara
mulhereoscriados,ousobrecomoenvelhecersabiamente.Encon-
tramosaíaomesmotempoelementosdecondutainfantileconselhos
morais,quehojejulgaríamosinacessíveisàscrianças.Issoseexplica
pelasorigensdosmanuaisdecivilidade,queeram,emsuma,regis-
trosdoscostumesdaaprendizagem,aindamuitoinfluenciadospelos
hábitosdeumaépocaemquenãosedosavaamatériatransmitidaàs
crianças,eemqueestaseramlogocompletamentemergulhadasna
sociedade:tudolheseradadodesdeoinício.Ascriançasmistura-
vam-seimediatamente aosadultos.
Jánosreferimosmuitasvezesaessesmanuaisdecivilidade.Um
deles,oGalatée,teveumpúblicoextraordinárioduranteaprimeira
metadedoséculoXVII.Osjesuítasohaviamadotado:umaedição
de1617foiespecialmentededicadaaosinternosdaCompanhiade
JesusemLaFlèciie,eaosinternosdocolégiodamesmaCompanhia
emPont-à-Mousson
n
.Aosinternos:comonãoeraumlivroescolar,
oGalatéenãosedirigiaaosalunosexternos:LeGalatée
,“original-
mentecompostoemitalianoporJ.deLaCase,etraduzidoparao
francês,olatim,oalemãoeoespanhol”,édescritocomoum“trata-
domuitonecessárioparabemtreinarajuventudeemtodasasmanei-
rasemodosdeagirlouváveis,bemrecebidoseaprovadosporpes-
soasdeboaeducaçãoegrandevirtude,eprópriosparaaquelesque
gostamnãoapenasdalíngualatina,mastambémdaslínguasvulgares,
que,hoje,sãoasmaisapreciadas”.Assimcomoosoutrosmanuais,o
Galatéeensinaasboasmaneiras,ecomoaspessoassedevemcom-
portaremsociedade.Comodissemos,éummanualdeconversação.
31A.deCourtin,NvuveauTraitédeiacivilitiquisepratiqueenFrance,167L
32.Bienséancedetaconversationentreleshommes,Penit-à-Moussoiu 1617.
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 249
Eleensinaque“pôrpublicamenteamãoemalgumapartedocorpo
nâoélouvável”,damesmaformacomoospuerstansadmensamdo
séculoXVcondenavamohábitodesecoçaremsociedade.Umapes-
soanãodevesevestiroudespirempúblicoparafazersuasnecessi-
dadesnaturais,nemselavarostensivamentelogodepois,nemmos-
trarasporcariasdocaminho,nemmandarosoutroscheirarem“coi-
sasfedorentas”.Deveevitarofenderossentidosdosoutros,“ranger
osdentes,assobiar,soluçar,ouesfregarpedrasoupedaçosdeferro
umnooutro”(umoutromanualrecomendanãoestalarosossose
nãofazermuitobarulhoaotossirouespirrar).Deve-seevitarboce-
jar,ficardebocaaberta,ouficarolhandoparaolenço.Reencontra-
mosaquiosantigospreceitosdacondutaàmesa,queconservaram
todaasuaimportânciaatéofimdoséculoXVIII;arefeiçãoconti-
nuavaaserumritosocial-oquepraticamentedeixoudeserhoje-
emqueopapeldecadapessoaeraminuciosamente definidoeno
qualeraprecisoprestarumaatençãoespecialàprópriaconduta:não
comermuitodepressa,nâopôroscotovelossobreamesa,nãopali-
tarosdentes,não“cuspir”,tantoquantopossível,e,sefosseabsolu-
tamentenecessário,fazê-lodealgumaformadiscreta.
OGalatéeensinatambémcomosevestir:“Umhomemdeve
aproximar-seomaispossíveldamaneiradevestirdosoutroscida-
dãosedeixar-seguiarpelocostume”.Qualquersingularidade,nesse
campocomoemqualqueroutro,éumpecadodelesa-sociedade.
Deve-sesemprecederaodesejodogrupo,semjamaisimporoseu
próprio:nãopedirpapelparaescreveroureclamarourinolquando
ascarnesestiveremprontasparaservireasmãoslavadas,Nâose
devesernemtimido,nemfamiliar,nemmelancólico.Deve-sesempre
manteradignidadecomoscriados(alguns“soberbos**“estãosem-
prerepreendendoseuscriadosemantendotodaafamíliaemperpé-
tuorebuliço”),enarua,ondeopassonãodevesernemprecipitado
nemmuitolento,eondenuncasedeveolharfixamenteparaospas-
santes.
DoséculoXVIaoXVIII,asediçõesdostratadosdecivilidade,
bastantesemelhantes,sesucederam,OdeJ.-BdeLaSalle,chamado
Règlesdelabienséanceetdetacivilitéckrêtienne,obtevetantosuces-
sonoséculoXVIIIcomoosdeErasmoedeCordierouoGalatéenos
séculosXVIeXVII.Ofatodeumeducadordevoto,fundadordeum
institutoeducacional,cheioderesponsabilidades epreocupações, ter
tidootrabalhoderedigirummanualquetrata,comoosmanuaisan-
teriores,dasboasmaneiras,dotraje,dopenteado,dacondutaà
mesaetc.,éumaprovadaimportânciaqueseatribuíaaassuntasque
hojesetornaramtriviais.Semdúvida,esseslivrosdestinavam-sea
umapopulaçãorústicaebrutal,eadisciplinadasboasmaneirasera

250 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
entãomaisnecessáriadoqueemnossassociedadesatuais,emqueas
pessoasestãomaissubmetidasatodosostiposdeautoridadespúbli-
casecontrolespoliciais;oEstadotomouolugardasboasmaneiras
notreinamentodoindivíduo,desdeaescolaatéotráfegodasruaseo
serviçomilitar,Outrora,aspessoastinhamtambémosentimentode
quenãoexistiamcoisassemimportâncianavidaemsociedade,detal
formaoprópriofatodacomunicaçãosocialeraessencialemsi.Por
essarazão,nadahaviadesurpreendentenofatodeJ.-ELdeLaSalle,
ocônegodeReims,redigircuidadosamenteosconselhostradicionais
dostratadosdecivilidade:"Aspessoasdevemsobretudocuidarpara
quenãohajapiolhos,pulgaseoutraspragas,nemmaucheiro;essa
precauçãoeessecuidadosaomuitoimportantescomrelaçãoàs
crianças”.Háumlongodiscursosobreamaneiradeescarrar,"Éver-
gonhosoparecerterasmãospretasesujas:issosóétolerávelno
casodetrabalhadoresoucamponeses”."Quandoalguémsenteneces-
sidadedeurinar,devesempreseretirarparaumlugarbemafastado,
eaconveniênciamanda(atémôsmoàscrianças)quetodasasoutras
necessidadesnaturaisquesepossatersejamfeitasapenasemlugares
ondenãosepossaservisto.'”"Nâoédecentedesferirgolpescomas
mãosaobrincarcomalguém/’Nãosedeve"sacudirospés,nemme-
xê-losporbrincadeira(nemmesmoascrianças),nemcruzarum
sobreooutro”.Qleitorétambémaconselhadosobreamaneiradese
vestir:"Nãoédecorosoqueummeninosejavestidocomoumho-
mem,nemqueotrajedeumrapazsejamaisenfeitadodoqueode
umvelho”,E,êclaro,háumlongocapítulosobre“amaneiradecor-
tareservirascarnes”,deprepararamesa,deserviretiraramesa,
funçãoespecialmentereservadaàscriançaseaosjovens.
Ograndenúmerodemanuaisdecivilidade,suasreediçõese
adaptações,deErasmoaJ.-B.deLaSalleeoutros,provam-nosque
aescolaaindanãotinhamonopolizadotodasasfunçõesdetransmis-
sãodoconhecimento.Aspessoasaindaseimportavammuitocom
essasboasmaneiras,quealgunsséculosanteshaviamconstituídoo
essencialdaaprendizagem.”Acondutadoceaharmoniosadas
crianças,escreveriaumpedagogodoséculoXVII
33
,dámaiscréditoa
umaescoladoqueumainstruçãosólida,porqueelamostraatodos
queacriançafoiinstruída,emboratalveztenhaaprendidopouca
coisa,jáqueasboasmaneirassãoaparteprincipaldaeducação.”
AindanoiníciodoséculoXVII,usava-seaexpressão"sabero
Courtisan*damesmaformacomosediziaapropósitodeumhomem
V
33.F.Watson,TheEngUshGrammarSckooisto1606
.
1907.
DAFAMlLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 251
queelehavialidooGalatée
J4
.OCourtisandeBalthazardeCastiglio-
necriouumgênero,assimcomoErasmofixouomodelotípicodos
tratadosdecivilidade:ogênerodasartesdeagradaretersucessona
vida.Essegênerodistinguia-sedodacivilidadeporquenãoparava
nosprimeiroselementosdasboasmaneiras:"Osbonspedagogosen-
sinamnãoapenasasletrasàscriancinhas,mastambémosbonscos-
tumeseasmaneirasdecentes,ensinam-nasacomer,abeber,afalare
acaminharcomcertosgestosconvenientes”.Havia,contudo,uma
partecomumàs“civilidades”eaos"cortesãos”,ouseja,àliteratura
quedelesseoriginou:ambososgênerostraduziamumaformade
agradaràsociedade,deserbemsucedidoedeprogredirgraçasàuti-
lizaçãooportundadascortesedasociedademundana.Masestese
tornouotemaessencialdoCourtisanoudelivroscomoLeHêros,do
espanholLaurensGracien,traduzidoparaofrançês,deVHonnête
HommedeFaret,edetodaumaliteraturaquefoiestudadaporD.
Mornet
Podemosreduziressetemaaduasnoçõesessenciais:aambição
eareputação.Àambiçãoeraconsideradacomoumvalor.Ninguém
deviacontentar-secomsuacondição, e,aocontrário,devia-sesem-
prepensaremelevá-la.Essapreocupaçãocomaascensãonãoera
vistacomoumafomedeprazerebem-estar,mascomoumidealque
exigiadisciplinaseveraevontadeinquebrantável,umidealheróico
noqualreconhecemosoespíritodoRenascimento.Esseidealpersis-
tiríaatémeadosdoséculoXVILEleseexprimeingenuamentenum
trechodeL'HonnesteGarçon Seuautor,M.deGrenaille,conhecia
aimportânciadanobreza:"Euprefeririaqueohonnestegarçon
,o
meninobemeducado,nascessenumacasanobre...Nãoèverdade
queosfidalgospossuemnaturalmentenãoseiqueardemajestade
quefazcomquesejamrespeitados,mesmoemsua*ruína?Ascrianças
danobrezaparecemcomandaratémesmonasujeição,enquantoos
plebeusqueàsvezescomandamparecemreceberordensaodá-las”
E,noentanto,essaconcepçãodeumaordemorigináriadonascimen-
toéacompanhadadeumaoutraconcepçãosocial,igualmenteim-
portantenopensamentodoautor,segundoaqualanobrezaéuma
“qualidadedivinaquealimentaacoragemeavirtude,enãouma
honravã”-eessaqualidadeéadquiridaatravésdavirtudeoudore-
nome,eaumentagraçasauma“ambiçãogenerosa”.Omeninobem
educadoelevaráostítulosdesuacasa:"Setivernascidoumsimples
fidalgo,desejaráserBarão;seforMarquês,tentaráserConde.En-
34,CharlesSorel.
35D,Mornet,Hisioiredetalinératttreclassique.1940,eM.Magendíe,op.cu,
36DeGrenaiíle,op,cit.

252 HISTÓRIASOCIALDACRIANCAEDAFAMÍLIA
fim,farácomqueosdireitosqueanaturezalhedeuavancemtanto
quantoaFortunaopermitir".“Aquelesque,oriundosdeumafamí-
liahonorável, seviremdonosdeumafortunamuitopequenaou
medíocre,deverãoesforçar-separaseelevarcomarteeparaconquis-
taranaturezacomengenho".“Vemosmaispessoasdeextraçãobai-
xatornarem-segrandesdoquegrandessemanteremnomesmoesta-
do.Équeosúltimosalgumasvezesnegligenciamtudo,enquantoos
primeirosnãonegligenciamnada".EGrenailleadmiraessasascen-
çõescorajosas:omeninobemeducadodeverá“saberquesuanobre-
zaserámaishonrosaseforadquiridapormérito,doquesetiversido
obtidaporherança".Textocurioso,significativodovalormoralatri-
buídoàambição.
Comorealizaressa“elevação?"Haviaapenasummeio:oreno-
me,areputação.Acompetênciaintelectualetécnicaeovalormoral
nãoeramconsiderados,nãoporquefossemdesprezados,masporque
estavamincluídosnaaprovaçãoqueconsagravaumhomemcomo
“célebre"e“amável".Essaaprovação,porém,deviasersempreali-
mentadapornovosfeitosenovashabilidades:“Renovaragrandeza,
fazerrenascerareputaçãoeressuscitaroaplauso Osucessosó
podiaserobtidograçasaofavordosgrandeseàamizadedospares.
Paraobtê-los,umhomemdeveriaousarlançarmãomesmoderique-
zasiníquas,enãodeviahesitaremdissimulardefeitosesimularqua-
lidades.Adissimulaçãoerapermitida:"Ohomemcujapaixãotraba-
lhaapenasemproldorenome,tuqueaspirasàgrandeza,deixatodos
oshomensteconhecerem,masquenenhumtecompreenda.Graçasa
essaarte,omedíocreparecerágrande,ograndeinfinito,eoinfinito
maiorainda".
Avirtude
J
\escreveFaretemL'HonnêteHomme
,étãoessen-
cialmenteoobjetivodetodosaquelesquedesejamobterconsidera-
çãonacorte,que,emboraaísedisfarcemesedegradem,todosten-
tamdaraimpressãodequeapossuememtodaasuapureza".Isso
eraexplicável:“Umhomemquesófalecomocortesãoumavezna
vida,partirásatisfeitocomesteediráaseurespeitocoisasquejamais
diriasehouvessevistoofundodesuaalma
59."
Para“obteroamordaspessoas”eraprecisoter“tato",“aalma
detodaqualidadebela,avidadetodaperfeição",Voltamosaquià
civilidade,àsboasmaneiras,àartedeviveremsociedade:“Semele,
amelhorexecuçãomorre,eamaiorperfeiçãotorna-serepugnan-
te

37.LaurensGracien,op.cit.
38.N.Farei,LHonnêteHomme,
39.Bardin,LeLycêe,1632-1634,2vols.
40.LaurensGracíen,op.cit.
DAFAMÍLIAMEDIEVALÁFAMÍLIAMODERNA 253
NasegundametadedoséculoXVII,osgênerosorigináriosda
“civilidade"deErasmoedo“cortesão"deCastiglionesofreriam al-
gumasmodificações significativas.
Oidealrenascentistadeambiçãoedeelevaçãodesaparece,ao
mesmotempoemqueocortesãoésubstituídopelohonnêtehomme,e
acorte,pelasociedade,Nãoeramaisdebom-tomaspirarmuito
ubertamente àfortunaeaoprestígio.Haviasurgidoumnovoideal,
quefoicultivadopeloChevalierMéréemtodaasuaobra:abuscada
médiamedida,damediocridade ilustre.Essaconcepçãonãodimi-
nuíaopesodasinfluênciassociais,mastambémnãolhesconferia
maisomesmovalormoral.Asboasmaneirascontinuaramasertão
necessáriascomoantes,maspoucoapoucoseesvaziaramdeseu
conteúdomoraledeixaramdeserumavirtude.Issoeraapenasoiní-
cioaindamalperceptíveldeumaevoluçãoqueseprecipitarianossé-
culosXVIIIeXIX:asociabilidadecoerentedoAncienRegimesere-
duziriaaumamundanidademaisfrágilemenosrica.Contudo,du-
ranteasegundametadedoséculoXVII,essaevoluçãomalcomeçava
asersugerida,easociabilidade,emborasetornassemenosheróicae
menosexemplar,permaneciabastantedensaeforte.
Ostratadosdecivilidade,comodissemos,durantemuitotempo
foramdescriçõesdeboasmaneirasquesedirigiamtantoàscrianças
comoaosadultos,namedidaemqueambososgruposnãoashou-
vessemaindaaprendido.AssimcomoseusmodelosantigosdaIdade
Média,elesexplicavamcomoumhomembemeducadosedeviacon-
duzir,elembravamoscostumesestabelecidos,queoutroranãoeram
redigidosmasnemporissoerammenosrespeitadosousinceros.Na
segundametadedoséculoXVII,ascivilidadesmantinhamseuas-
pectotradicional,masreservavamumlugarcadavezmaioraoscon-
selhoseducativoseàsrecomendações dirigidasapenasàscrianças,
excluindoosadultos,como,porexemplo,recomendações relativas
aocomportamento dosescolares.Nummanual“puerilehonesto
paraainstruçãodascrianças"de1761
,
41
haviaumcapítulointeiro
sobrea“maneirapelaqualacriançasedevecomportarnaescola"
Essemanualinspirava-senodeCordier,queeramestre-escola, eem
seusdiálogosescolares,Eleensinavaqueacriançadeviatirarocha-
péuaoentrarnaescola,tantoporreverênciaaomestrecomopara
saudaroscompanheiros.Acriançanãodeveriamudardelugar,e
simpermanecernaqueleindicadopelomestre.“Nãoincomodeisvos-
soscompanheiros,empurrandoumebatendoemoutro."“Nãose-
jaistãodescortêsepoucoprestativoapontoderecusaravossos
41.LaCiviÜtépuêrileethonnestepourl*instructiondesenfattts,1761.

254 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
companheirosemcasodenecessidadetinta,penas,ouqualquerou-
tracoisaqueelespossamter-seesquecidodetrazer.”“Nãoconverseis
naescola.”“Éumaprovadeespíritomaldosodemonstrar alegria
quandoalguémérepreendidooucastigado/
1
Nãosetratavaapenas
deiniciaracriançanoshábitosdosadultos,queoutroraelasapren-
diamunicamenteatravésdaexperiênciadaaprendizagem;otratado
decivilidadeagoraprestavamaisatençãoàvidaescolar,adaptava-se
aelaeaprolongava. Issoeraumaconseqiiênciadodesenvolvimento
daescolaedaparticularização dainfância,queadquiriuumaimpor-
tânciacadavezmaiornosmanuaisdecivilidade,emdetrimentodos*
adultos,
ACiviliténouvelíede1671
41
jáeraalgocomoumtratadodeedu-
caçãoparaospais,oquenãoaconteciacomosmanuaisdecivilidade
tradicionais,concebidoscomosimplesregistrosdecostumesestabe-
lecidos.Elaaconselhavacomofazerparacorrigirascrianças,emque
idadesedeviacomeçaraensinar-lhesasletras,eassimpordiante.
“Acriançadeverárepetiremcasaoquetiveraprendidonaescolaou
nocolégio,ouentãodeveráaprenderemcasaoquetiverderecitar
diretamentediantedomestre/
1
Ãnoite,ospaisdeveriamprocedera
umexamedeconsciência:“Seacriançasetiverportadocomoum
i
homem",serálavadaeacariciada,Setivercometidoalgumasfaltas
leves,osadultosacorrigirão,“ralhando,caçoandodelaouinfligin-
do-lhealgumapenaleveefácildesuportar”.“Setiverpraticadoal-
gumaaçãodotipodasqueseaproximamdocrime,comoablasfê-
mia,orouboouamentira,outiverproferidoalguminsultoouinjú-
riagrosseiracontraumacriadaoucriado,outiversidodesobediente,
demonstrando teimosiaearrogância,serásurradacomumavara”.
“Aseguir,acriançadiráboa-noiteaseuspaisemestres,eiráfazer
suasnecessidades”.“Finalmente,depoisdesedespir,deitar-se-ána
camaparadormir,semsedistraircomconversasesemcontarhistó-
riasoubobagens(ninguémdormiasozinho),Eladeverádeitar-sede
formaaficarbemedecentementeacomodada,etodacoberta;não
dormiránemdebruçosnemdecostas,masdelado(conselhodehi-
gienemedieval);nãodormirásemcamisa,tantoporrazõesdedecoro
comoparapoderencontrarfacilmentesuasroupasemtodasascir-
cunstânciasquepossamocorrer/
1
Masmesmooquadroampliadodostratadosdecivilidadetradi-
cionaispareceudemasiadoestreitoparaatenderàsnovaspreocupa-
çõeseducativas.Surgiramentão,especialmentenocírculoligadoa
Port-Royal,verdadeirostratadospráticosdeeducação,apresentados
42.Cf.nota19,destecapítulo.
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 255
sobaformadeconselhosaospais:oDeíêducationchrétiennedesen~
famdeVarei
41
em1666,easRègíesde1'êducaüondesenfansde
Coustel
44
em1687.Emboraessasobrascontivessemcapítulossobre
asboasmaneiras(naconversaçãoouàmesa),quepareciamextraí-
dosdostratadosdecivilidadetradicionais,elasforamescritascom
umespíritodiferentedeaconselhamentodospais.Tratavamtambém
daescolhadooficio,edosproblemasdelicadosdaescolhadaescola;
tratavamdosmestres,dasleituras(proscreviamosromances,esses
venenosdaalma),dosjogosedosmétodospedagógicos:“Adaptai-
vossempretantoquantopuderdesàsuafraquezaeàsuapequenez, fa-
landotatibitatecomelasparaajudá-lasaaprendersuaspequenas li-
ções”,Aolado,portanto,dosconselhosaospais,haviatambémcon-
selhosaosmestres.Essesconselhosincitavamospaisaseportarbem
diantedascrianças,alhesdarbomexemplo,avigiarsuasamizadese
a“lhesdaralgumempregoconformeaseusplanoscomrelaçãoa
elas,afimdenãoasdeixarviververgonhosamente àtoa”,evitando
assim“aborrecimentos relativosaoestabelecimentodosFilhos.
Estamoslonge,comovemos,dosmanuaisdecivilidadetradicio-
nais,poisnãosetratamaisderegistraroshábitosdosadultosparaas
criançasououtrosadultosignorantes,esímdeinstruiraprópria
famíliasobreseusdeveresesuasresponsabilidades, edeaconselhá-la
emsuacondutacomrelaçãoàscrianças.Adiferençaentrea“civili-
dade
11
deErasmoeostratadosdeeducaçãodeCousteledeVaretdá
amedidadadistânciaentreafamíliadofimdoséculoXV,aindali-
gadaaoshábitosmedievaisdeaprendizagememcasasestranhas,ea
famíliadasegundametadedoséculoXVII,jáorganizadaemtorno
dascrianças.
Contudo,essestraçosquasemodernosdaeducaçãofamiliarnão
diminuíramosucessodostratadosdecivilidadetradicionais,poisa
concentraçãodafamíliaemtornodascriançasaindanãoseopunha
aosantigoshábitosdesociabilidade: ospróprioseducadoresreco-
nheciamqueo“comérciodomundo”continuavaaseressencial.
Jáquetudodependiadasrelaçõessociais,podemosnospergun-
tarondeaspessoasseencontravam.Muitostraçosantigossemanti-
nham:freqüentemenie elasaindaseencontravam fora,narua.Não
apenasaoacaso-poisascidadeserampequenasepoucoespalhadas
~mastambémporquealgumasruasoupraçaserampasseiosonde
43.Varet,Deiêducationchrétiennedesenfans,1666.
44.Coustel,op.cil.
45.tbid.

256 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
emcertashorasumapessoapodiaencontrarosamigos,comoacon-
tecehojenascidadesmediterrânicas.OburburinhodoCorsoouda
PiazzaMajoragitavapraçashojedesertasouatravessadasportran-
seuntesquesedesconhecem,mesmoquandopasseiam.Paraoturista
dehojeédifícilreconhecerapraçaBellecour,emLyon,nestadescri-
çãofornecidaporumviajanteitalianoem1664,oabadeLocatelli:
46
“Homensemulherespasseavamdebraçosdados,segurando-seuns
aosoutros,comoseseguraumacriança,..Umamulherdeuobraçoa
doishomens,umhomemdeuobraçoaduasmulheres.Poucoacos-
tumadoaessasmaneiras(oabadevinhadeBolonha,ondeaspessoas
deviamsermaisreservadasdoqueemLyon),pensemosquehavía-
mosentradonumbordel.,Observeicomotodosestavamalegres,e,
naentradadopasseio,vi-osdarem-seosbraços,quemantinham
dobradoscomoaalçadeumacesta,eassimelespasseavam/'Àsur-
presadessebolonhêsdoséculoXVIIdiantedessapopulaçãorisonha,
debraçosdados,éamesmaquesentimoshojequandonosmistura-
mosàsmultidõesitalianas.
Àspessoasencontravam-se narua,masondesereuniam?Na
FrançadoséculoXIX,eaindahoje,oshomens,aomenos,reúnem-
senoscafés.Acivilizaçãofrancesacontemporânea torna-seininte-
ligívelsenãoreconhecemos aimportânciadocafé:eleéoúnicopon-
todeencontroacessívelaqualquermomento,regularcomoumhábi-
to.Oequivalenteinglêséapublichouse,opub.Asociedadedossécu-
losXVIeXVIIeraumasociedadesemcafésoupubs
:
atabernaera
umlugardemáfama,reservadoaosjovensarruaceiros,àsprostitu-
tas,aossoldados,aosescolareserrantes,aosmendigoseaosaventu-
reirosdetodasorte:aspessoasdebemnãoafreqüentavam,qualquer
quefossesuacondição,Nãohaviaoutroslugarespúblicosalémdas
casasparticulares,ou,aomenos,algumasdelas,asgrandescasas,ru-
raisouurbanas
JT
.
Oqueentendemosnósporgrandescasas?Defato,algomuito
diferentedosentidoquehojedaríamosàmesmaexpressão:seusigni-
ficadoeraexatamenteocontrário.Hoje,diz-sequeumacasaégran-
decomrelaçãoaoseupovoamento.Umacasagrandeésempreuma
casapoucohabitada.Assimqueadensidadeaumenta,aspessoasco-
meçamasentir-seapertadaseacasanãoémaistãograndecomoan-
tes.NoséculoXVII,etambémnosséculosXVeXVI,umacasa
4hLocaLelÜ,Reiationdevoyageeni664,org.porW.Blunt,TheAdventuresofanfta-
iianPriest*Londres,1956.
47,Noentanto,LagnieíemseusProverbesrepresentaumatabernaemqueapresença
deumacriançanãoparecedeslocada.
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 257
grandeerasempremuitopovoada,muitomaisdoqueascasaspe-
quenas,Essaobservaçãoextremamenteimportantedecorredetodos
ostrabalhossobreadensidadepopulacionalrealizadospeloshisto-
riadoresdemográficos.
ExisteumestudosobreapopulaçãodeAix-en-Provencenoílm
doséculoXVII
48
,realizadocombasenoregistrodecapitaçãode
1695.Sobaluzdessaanálise,percebe-seumcontrastebastantenítido
entreosbairrospobresedensoseosbairrosricosemenospovoados:
osprimeirospossuíamcasaspequenasepoucohabitadas,eossegun-
dos,casasgrandescheiasdegente.Algumascasasabrigavam3ou
menosde3habitantes,enquantooutrascontinham3
!
pessoas(2pa-
trões,6criançase17empregados)ou17pessoas(2patrões,8crian-
ças,7empregados).
EssaoposiçãonãoéespecíficadoséculoXVIIoudaProvença,
UmartigorecentesobreCarpentrasemmeadosdoséculoXVpro-
duzamesmaimpressão Vinteetrêsfamíliasdehomensricoseim-
portantesreuniam177pessoas,ouseja,7,7pessoasporcasa;17,4%
dapopulaçãoviviamemcasasqueabrigavammaisde8pessoas.Um
nobremantinha25pessoasemsuacasa.Oarquitetodacatedralvivia
entre14comensais.Édelicadotirarconclusõesdessesdadosarespei-
todoíndicedenatalidade.Poroutrolado,elesrevelamcombastante
clarezaqueascasasdosricosabrigavam,alémdafamíliapropria-
mentedita,todaumamultidãodecriados,empregados,clérigos,cai-
xeiros,aprendizes, auxiliares, etc.IssoaconteceudoséculoXVao
XVIIemquasetodaaEuropaocidentalEssascasaseramgrandes
casas,mesmoquandonãotinhamonomedehotel
tepossuíamvários
aposentosporandareváriasjanelasdandoparaarua,opátioouo
jardim.Sozinhas,elasformavamumverdadeirogruposocialÀo
ladodessasgrandescasas,muitopovoadas,haviacasasminúsculas
queabrigavamapenasumcasal,e,semdúvida,algumasdesuas
crianças,asmaisnovas.Nacidade,essascasaseramcomoasque
existemaindahojenosbairrosantigos,comumaouduasjanelaspor
andar.SegundoPaulMassou
in
,parecequeacasadeduasjanelas
surgiuemMarselha,comoumaperfeiçoamentodacasadeumasó
janela:“Osapartamentosemcadaandarsãoformadospordoiscô-
modos,umdandoparaaruaeooutrodandoparaumespaçoestrei-
48i.Carrière,
à
'LaPopulationtPAix-Provence àIafinduXVIFsiècle
1
',
Annates
debFacultedesLetiresd’ALx-en*Provence,1958.
49R.H.Bautier,"Feux.Population etstrueturesocialeaumilieuduXV
e
siècle”
AnnatesE.S.
.1959,pp.255-268.
50PaulMasson,citadoporJ.Carrière,op.cit.

258 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
toqueseparaofundodacasadascasasdaruavizinha”.Muitasve-
zes,aliás,asduasjanelasiluminavamapenasumcômodo.Portanto,
essashabitaçõesurbanaspossuíamapenasumaouduaspeças.No
campo,ascasaspequenasnaoerammaiores,e,quandohaviadois
cômodos,umerareservadoaosanimais.Evidentemente, tratava-se
deabrigosparaorepousoeàsvezes(nemsempre)paraarefeição,
Essascasaspequenasepobresnãopreenéhiamnenhumafunçãoso-
cial.Elasnãopodiamnemmesmoservirdelarparaafamília.Agra-
vidadedacrisehabitacionaldosanos50denossoséculoforneceu-
nosalgumasinformaçõessobreoefeitodahabitaçãosobreafamília.
Semdúvida,aspessoaserammenossensíveisàpromiscuidade du-
ranteoAncienRégime .Maséprecisohaverumespaçomínimo,sem
oqualavidafamiliarsetornaimpossíveleosentimentodafamília,
descritoaolongodesteestudo,nãopodenemseformarnemsede-
senvolver.Vemo-nosnodireitodeconcluirqueessaspessoaspobres
emalalojadassentiamumamorbanalporsuascriancinhas-essa
formaelementardosentimentodainfância-masignoravamasfor-
masmaiscomplicadasemaismodernasdosentimentodafamília.
Eramsempre,comonaIdadeMédia,famílias“silenciosas”,silencio-
sasporqueelementares,Êcertoqueosjovensdeviamdeixarmuito
cedoessescômodosúnicosquehojechamaríamosdecortiços,quer
paraemigrarparaoutroscortiços-doisirmãosjuntosoumaridoe
mulher-querparavivernacasagrandedosricoscomoaprendizes,
criadosouempregados.
Nessascasasgrandes,nempalácios,nemsempreHotels*ouman-
sões,casasruraisoucasasurbanasocupandoapenasumandarde
umimóvel,encontramosomeioculturaldosentimentodainfânciae
dafamília,Foinelasquerecolhemostodasasobservaçõesquecons-
tituemamatériadestelivro,Aprimeirafamíliamodernafoiafamília
desseshomensricoseimportantes.Èelaquevemosrepresentadana
ricaiconografiafamiliardemeadosdoséculoXVII,nasgravurasde
AbrahamBosse,nosretratosdePhilippedeChampaigne,enascenas
dospintoresholandeses.Foiparaelaqueosmoralistaseducadores
escreveramseustratadosequeoscolégiossemultiplicaram.Para
essafamília,ouseja,paratodoogrupoqueeiaformava,equecom-
preendia,alémdafamíliaconjugal,naooutrosparentes(poisesse
tipodefamíliapatriarcaldeviasermuitoraro)-nomáximo,talvez,
umirmãosolteiro-masumaclienteladeservidores,amigoseprote-
gidos.
Acasagrandedesempenhavaumafunçãopública.Nessasocie-
dadesemcafés,sempublichouses,elaeraoúnicolugarondeosami-
gos,clientes,parenteseprotegidossepodiamencontrareconversar.
Aosservidores,clérigoseempregadosqueaíresidiampermanente-
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 259
mente,éprecisoacrescentaravagaincessantedevisitantes.Estesúl-
timosnãodeviampreocupar-secomahoraenuncaeramdespacha-
dos,poisoseducadoresdoséculoXVIIachavamqueafreqüênciaea
horadasvisitasimpediaumhorárioregular,especialmenteparaas
refeições,econsideravamessairregularidade»bastante funestaparaa
formaçãodascriançasparalegitimarohábitodeenviá-lasaocolégio
adespeitodosinconvenientesmoraisedapromiscuidade escolar.As
idasevindasconstantesdosvisitantesdistraíamascriançasdeseu
trabalho.Emsuma,asvisitasdavamaimpressãodeserumaverda-
deiraocupação,quecomandavaavidadacasaeditavaatémesmoas
horasdasrefeições.
Essasvisitasnãoeramapenas.deamizadeoumundanas,eram
tambémprofissionais.Maselaserammuitomaldistinguidasumas
dasoutras.Osclientesdocartóriodurantemuitotempotambémfo-
ramosamigosdonotário,etambémseusdevedores.Nãohavialo-
caisprofissionais,nemparaojuiz,nemparaocomerciante,nem
paraobanqueiro,nemparaonegociante.Tudosepassavanosmes-
moscômodosemqueelesviviamcomsuafamília.
Essescômodos,porém,nãoerammaisespecializadosdoponto
devistadomésticodoqueprofissional.Elessecomunicavamentresi,
eascasasmaisricaseramformadasnoandarnobredegaleriasesa-
lasenfileiradas.Nosoutrosandares,oscômodoserammenores,mas
igualmentedependentesunsdosoutros.Nenhumdelestinhauma
destinaçãoprecisa,comexceçãodacozinha,e,aindaassim,muitas
vezessecozinhavanalareiradamaiorsala.Asinstalaçõesdacozi-
nhanacidadeenascasasmédiasnãopermitiammuitosrefinamen-
tos,e,quandohaviaconvidados,compravam-sepratosfeitosnoven-
dedordeassadosdasredondezas.QuandoHortensius,o“preceptor”
deFrancion,quisreceberumgrupodeamigos,disseaseucriado,seu
homemdeconfiança:“Vaidizerameucompadredonodataberna
quememandedoseumelhorvinhomoscateleumassado.Ora,ele
assimofezporquesendojábastantetarde,evendoqueosúltimosa
chegarhaviamtrazidoumtocadordeviola,imaginouqueseriapre-
cisodardecomeratodasaspessoasquehaviaemseuquarto”.Fran-
cionsaiucomocriado.Emcasadodonodataberna“nãoencontra-
mosnadaquenosagradasse,epegamosapenasovinho.Decidimos
iratéovendedordeassadosdoPetitPont.Ocriadocomprouumca-
pão,ecomoquisesseaindaumlombodeboi,foiprocuraremtodos
osvendedoresdeassadosparaverseencontravaumbom”.
Vivia-seemsalasondesefaziadetudo.Nelassecomia,por
exemplo,masnãoemmesasespeciais:afamosa“mesadejantar”
nãoexistia.Nahoradasrefeições,armavam-semesassobrecavaletes
dobráveis,queeramcobertascomumatoalhacomosepodevernas
gravurasdeAbrahamBosse.EmmeadosdoséculoXV,oarquiteto

260 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇABDAFAMÍLIA
humanistaAlberti
41
,muitoíaudatortemporisacíi
'recordavaoshábi-
tosdesuajuventude:“Quanaoéramosjovens,.,amulhermandava
paraomaridoumpequenocantildevinhoealgumacoisadecomer
juntocomopão;dajantavaemcasa,eoshomensnoateliê”.Nâo
devemosentendê-loaopédaletra,poisessehábitoaindaerafre-
qüenteemváriascasasdeartesãosecamponesesnaépocaemqueele
escreviaessaslinhas.Maseleopunhaessecostumesimplesaocostu-
meurbanodesuaépoca:“Amesapostaduasvezespordiacomo
paraumbanquetesolene”.Narealidade,tratava-sedeumamesa
desmontável,comooeragrandepartedomobiliárionoiníciodosé-
culoXVII
Nessasmesmassalasondesecomia,tambémsedormia,sedan-
çava,setrabalhavaeserecebiamvisitas.Asgravurasmostram-nosa
camaaoladodeumaparadorequipadocomumabaixelademetal
trabalhadoounocantodasalaondeaspessoasestãocomendo.Um
quadrodeP.Coddede1636
55
representaumbaile;nofundodasala
ondedançamosmascaradosvê-seumacamacomascortinasfecha-
das.Durantemuitotempoascamastambémforamdesmontáveis.
Cabiaaospajensouaosaprendizesarmá-lasquandonecessário.O
autordoChasteldejoyeusedestinêefelicitaosjovens“habituadosà
modadaFrança
S4”:
Cejfgensfrançaissermienttoutprompiemem
Eidreçaiemíitztantbienpropremeni
Quecemêtaitgraníesbaissemertt
*
AindanoiníciodoséculoXVII,Héroard
53
anotavaemseudiá-
rioem12demarçode1606:“Jávestido,ele(ofuturoLuísXIII)aju-
douadesmontarsuacama”.Ou,em14demarçode1606:“Levado
aosaposentosdaRainha,foicolocadonoquartodoRei(ausente,
emcampanha)eajudouatrazeraarmaçãodesuacamasobasvistas
daRainha;M
me
deMontglatmandoucolocaraítambémsuacama
paraneladormir”.Em8desetembrode1608*poucoantesdaparti-
daparaSaint-Germain, “elesedistraiudesmontandopessoalmente
suacama,impacienteparapartir”,Noentanto,nessaépocaascamas
51P.H,Míchel,LaPensêedeL,B.Alberti.1930.
52P.duCdombier,StyleHenriIVetLouisXllh194]
,p.49.
53P.Codde,reproduzidoemBerrcdt,187.
54JardindePlaisance,ed.DrozePiaget,p>93.
*
Essesjovensfrancesesserviamprontamente
/
Earmavamascamastãobem
/Que
mecausavamgrandeespanto."(N.doT.)
55Heroard,JournaldeíenfancedeLouisXllLop.ci%
t
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA
261
jásehaviamtornadomenosmóveis.Alberti,emsuaslamenta-
çõessobreos'bonsevelhostempos,jáobservava:“Lembro-me.,,de
tervistonossoscidadãosmaisnotáveis,quandoiamparaocampo,
mandaremlevarsuascamaseutensíliosdecozinha,quetraziamde
voltaemseuregresso.Hoje,amobíliadeumúnicoquartoémaiore
maiscaradoqueantígamenieoeraadetodaacasanodiadenúp-
cias
Sft
”.Semdúvida,essatransformaçãodacamadesmontávelnum
móvelpermanentemarcouumprogressodeintimidade.Logoase-
guir,acamaornamentada eenvoltaemcortinasfoiutilizadapelos
artistasparailustrarostemasdavidaprivada:oquartoondesereú-
nemosrecém-casados,ondeamãedáàluz,ondemorremosvelhos,
ctambémondemeditamossolitários.Contudo,ocômodoondefica-
vaacamanemporissoeraumquartodedormir.Continuavaaser
umlugarpúblico.Consequentemente, eraprecisocolocarcortinas
emtornodacama,cortinasqueseabriamoufechavamàvontade,
paradefenderaintimidadedeseusocupantes.Poisraramenteaspes-
soasdormiamsozinhas:dormia-secomaprópriamulher,éclaro,
mastambémcomoutraspessoasdomesmosexo.
Comoacamaeraindependentedoquartoemqueficavaecons-
tituíaporsísóumpequenoreduto,podiahavermuitascamasnum
mesmocômodo,emgeralnosseusquatrocantos.Bussy-Rabutin
conta
37
queumdia,duranteumacampanha,umamoçaaterrorizada
pelossoldadospediu-lheproteçãoehospitalidade:“Finalmenteeu
disseàminhagentequelhesdesseumadasquatrocamasquehavia
emmeuquarto”.
Êfácilimaginarapromiscuidadeemqueaspessoasviviamnes-
sassalasondeeraimpossívelseisolar,queeraprecisoatravessar
parachegaraosoutroscômodos,ondedormiamvárioscasaisouvá-
riosgruposdemeninosoumeninas(semcontarosservidores,que,
aomenosalguns,deviamdormirpertodospatrõesearmarascamas
aindadesmontáveisdentrodoquarto,ouatrásdaporta),ondetodos
sereuniamparafazerasrefeições,receberosamigosouclientes,e,às
vezes,distribuiresmolasaosmendigos.Compreendemos entãopor
quenoscensos,oshôtels,ascasasabastadas,eramsempremaispo-
voadasdoqueospequenosapartamentosdeumoudoiscômodos
dospobres.Devemosconsideraressasfamílias,nasquais,entretan-
to,jásurgiaosentimentomodernodafamília,nâocomorefúgios
contraainvasãodomundo,mascomoosnúcleosdeumasociedade,
56P,H.Michel,op.cit.
57Bussy-rabutín,Mimoires,1704,3vol.

262 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
oscentrosdeumavidasocialmuitodensa.Emtornodelasestabele-
ciam-secírculosconcêntricosderelações,progressivamente mais
frouxosemdireçãoàperiferia:círculosdeparentes,deamigos,de
clientes,deprotegidos,dedevedores, etc.
Nocentrodessaredecomplexafiguravaogruporesidentedas
criançasedosservidores.Osprogressosdosentimentodainfância
atravésdosséculosXVIeXVII,eadesconfiançadosmoralistascom
relaçãoaoscriadosaindanâohaviamconseguidodissociá-lo.Eleera
comoqueaalmavivaebarulhentadacasagrande.Numerosasgra-
vurasmostram-nosascriançasmisturadascomoscriados,elestam-
bémquasesempremuitojovens.Há,porexemplo,umailustraçãode
Lagnietdeumlivrodeprovérbios,emqueumpequenocriadobrinca
comumacriançadacasaquemalcomeçaaandar
S8
.Essamesmafa-
miliaridadedeveterexistidonascasasdosartesãosedoslavadrores,
comseusaprendizesoujovenscriados.Nãohaviaumagrandedife-
rençadeidadeentreascriançasdacasaeoscriados,queeramadmi-
tidosmuitojovens,ealgunsdosquaiseramirmãosdeleitedos
membrosdafamília.OBookofCommonPrayerde1549afirmava
queeraobrigaçãodoschefesdefamíliacuidardainstruçãoreligiosa
detodasascriançasdacasa,ouseja,detodasaschildren,servants
andpreníices.Osservidores eosaprendizeseramassimilados às
criançasdafamília.Elesbrincavamjuntosdebrincadeirasdecrian-
ça.“Aindahápouco,olacaiodoabade,brincandodecachorrinho
comaamávelJacqueline,adeixoucairnochão,quebrandoseubra-
çoedeslocandoseupulso.Osgritosqueeladeuforamhorríveis”,diz
M
me
deSévigné,quepareceachartudoissobastantedivertido
AindanoséculoXVII,osfilhosdefamíliacontinuavamade-
sempenharfunçõesdomésticasqueosaproximavamdomundodos
servidores:eramespecialmenteencarregadosdoserviçodamesa.
Cortavamascarnes,traziamosinúmerospratosdoserviçoàfrance-
sa,hojedesaparecido,equeconsistiaemapresentarváriospratosao
mesmotempo,comonumbufê,eserviamabebida,levandoouen-
chendooscopos.AtéofimdoséculoXVIII,osmanuaisdecivilida-
deconsagravamumcapítuloimportanteàmaneiradeserviràmesa,
enquantoascenasdegênerofrequentementemostravamcriançasde-
sempenhandoessafunção
6tJ
.Anoçãodeserviçoaindanâosehavia
degradado.Ofatodeestar“nadependência”deoutremaindanãoti-
nhaassumidoocaráterhumilhantequeadquiriudepois.Quasesem-
preumapessoa“pertencia” aalguém.Asartesdeagradardossécu-
58LagnietemPreverbes.
59MmedeSévigné
,
Leítres
,
19deagostode1671.
60Hdmoni(L623-1-679)“Criançaservindoâmesa” ittBernrdt,n*365.
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 263
losXVIeXVII,dotipodoCourtisan,aconselhavamo“fidalgoparti-
culier”,ouseja,subalterno,aescolherbemseusenhoreaconseguir
obterseufavor.Asociedadeaindaseapresentavacomoumaredede
“dependências”. Daí,umacertadificuldadeemsepararosserviços
honrososdosserviçosmercenários,reservadosàbaixacriadagem:
essadificuldadeaindapersistianoséculoXVII,emboraapartirde
entãoosservidoresfossemassimiladosàscamadasdesprezíveisdos
trabalhadoresmanuais.Restavaaindaentreossenhoreseosservido-
resalgumacoisaquenãosereduzianemàobservaçãodeumcontra-
tonemàexploraçãodeumpatrão:umlaçoexistencial,quenãoex-
cluíaabrutalidadedeunseaastúciadeoutros,masqueresultavade
umacomunidadedevidaquaseintegral.Observemosostermosem-
pregadospelosmoralistasparadesignarosdeveresdopaidefamília:
"Qsdeveresdeumbompaidefamíliareduzem-seatrêspontosprin-
cipais:oprimeiroconsisteemaprenderacontrolarsuamulher.Ose-
gundo,emhemeducarseusfilhos
,eoterceiro,embemgovernarseus
criados
6V
\“Salomãodá-nosaesserespeitoumconselhomuitojudi-
cioso,queencerratodososdeveresdeumsenhorparacomseusser-
vidores.Hátrêscoisas,dizele,quenãolhesdevemfaltar.Sãoelas:
pão,trabalhoereprimendas.Pão...porqueédeseudireito,trabalho,
porqueesteéseuquinhão,reprimendasecastigosporqueesteênos-
sointeresse.”“Setodososservidoresfossemhonestamentealimenta-
dosepagoscomexatidão,encontrar-se-iammuitopoucosdecondu-
tairregular.”Masnãosepagavaaoscriadosumsalário,comohoje.
VejamosoquedizCoustel
61
:ospaispródigos“colocam-senaim-
possibilidadederecompensarseuscriados,desatisfazerseuscredores
oudeajudarospobres,comoéseudever”.QuaindaBordelon
“Entreoscriadoseossenhoreshádeveresrecíprocos.Porseusservi-
çoseporsuasubmissão,dai-lhescompaixãoerecompensas
”.Nâose
pagavaaoservidor,dava-se-lheumarecompensa: asrelaçõeseram
menosdejustiçadoquedeproteçãoepiedade,omesmosentimento
quesetinhapelascrianças.NinguémoexprimiumelhordoqueDom
Quixole,quando,aodespertar,consideraSancho,aindaadormeci-
do;“Dormes,nãotenspreocupações.Ocuidadodetuapessoa,sub-
meteste-oaosmeusombros;éumfardoqueanaturezaeocostume
impuseramàquelesquetêmcriados.Ocriadodormeenquantoose-
nhorvela,pensandoemcomoalimentã-lo
rmelhorá-loefazer-lhe
bem.Omedo(deumacolheitaruimetc.)...nuncaafligeocriado,e
simosenhor,que,duranteaesterilidadeeafome,devesustentar
óJDeGéFard,Entretiens, I,p.153.
62Coustel,op.rit.
63Bordelon,üp.cit.

264 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLIA
aquelequeoserviuduranteafertilidadeeaabundância Afami-
liaridadequeessarelaçãopessoaldedependênciaacarretavaaparece
aindanascomédiasdeMolière,nalinguagemdascriadasecriados,
quandoestesfalamcomseussenhores.Nessassalassemdestinação
especialondesecomia,dormiaerecebia,oscriadosnuncasesepara-
vamdeseussenhores:emLesCaqueisde1'accouchée,acriadasemis-
turavanaconversacomnaturalidade, Issoacontecianascasasbur-
guesas,mastambémnaaltanobreza.“ComoaPrincesadeCondé”,
contaM
me
deSévigné",“setivesseafeiçoadoháalgumtempoaum
deseuslacaioschamadoDuval,estefoiloucoobastanteparade-
monstrarimpaciênciadiantedaboavontadequeelamanifestava
tambémparacomojovemRabutin,quehaviasidoseupajem.”Eles
tiveramumabriganafrentedaprincesa.“Rabutinempunhouaes-
padaparacastigá-lo,Duvaltiroutambémasua,eaPrincesa,pondo-
seentreosdoisparasepará-los, foilevementeferidanacolo."
Essafamiliaridade, écerto,começavaadesaparecerentreos
adultos,eosmoralistasmaispreocupadoscomosbonstratosdos
servidoresaconselhavamtambémamaiorreservapossíveldiantede-
les:“Falaipoucocomvossoscriados

”.Masaantigafamiliaridade
subsistiaentreoscriadoseascriançasouosjovens.Desdeseuspri-
meirosanos,ascriançashaviambrincadocomospequenoslacaios,
algunsdosquaislheserammaispessoalmenteligados,e,algumasve-
zes,osserviamnoscolégios;umaverdadeiracamaradagempodia
formar-seentreeles.ConhecemososcriadosdeMolière,eocriado
doMenteurdeCorneille.Masumcriadodecomédiaesquecido,ode
LesEeoiiersdeLarivey,exprimeosentimentoquetinhaporseuse-
nhorcomumaemoçãomaisverdadeira:“Fuicriadocomeleeamo-o
maisdoquequalqueroutrovivente”.
HámuitotempojásabemospeloshistoriadoresqueoReinunca
ficavasozinho,Masdefato,atéofimdoséculoXVII,ninguémfica-
vasozinho.Adensidadesocialproibiaoisolamentoeaquelesquese
conseguiamfecharnumquartoporalgumtempoeramvistoscomo
figurasexcepcionais: relaçõesentrepares,relaçõesentrepessoasda
mesmacondição,masdependentesumasdasoutras,relaçõesentre
senhoresecriados-estasrelaçõesdetodasashorasedetodosos
diasjamaisdeixavamumhomemsozinho.Essasociabilidadeduran-
temuitotemposehaviaopostoàformaçãodosentimentofamiliar,
poisnãohaviaintimidade.Odesenvolvimento, nosséculosXVIe
64Cervantes,DomQuixote.parteII,cap.20.
65M
n,c
deSévigné,Letlres,23dejaneirode1671.
66Bordelon,op.dt.
DAFAMlLIAMEDIEVALAFAMÍLIAMODERNA 265
XVII,deumarelaçãoafetivanova,ouaomenosconsciente,entreos
paiseosfilhosnãoadestruiu.Essaconsciênciadainfânciaedafamí-
lia-nosentidoemquefalamosdeconsciênciadeclasse-postulava
zonasdeintimidadefísicaemoralquenãoexistiamantes.Contudo,
nessaépoca,elasecombinoucomumapromiscuidadepermanente.
Aconjunçãodeumasociabilidadetradicionaledeumaconsciência
novadafamíliaseriaencontradaapenasemalgumasfamílias,famí-
liasabastadasruraisouurbanas,nobresouplebéias,camponesasou
artesãs.Ascasasdesseshomensabastadostornaram-secentrosde
vidasocial,emtornodasquaisgravitavatodournpequenomundo
complexoenumeroso,Esseequilíbrioentreafamíliaeasociedade
nãoiriaresistiràevoluçãodoscostumes,eaosnovosprogressosda
intimidade.
NoséculoXVIII,afamíliacomeçouamanterasociedadeàdis-
tância,aconfiná-laaumespaçolimitado,aquémdeumazonacada
vezmaisextensadevidaparticular.Aorganizaçãodacasapassoua
corresponder aessanovapreocupaçãodedefesacontraomundo.
Erajáacasamoderna,queasseguravaaindependênciadoscômodos
fazendo-osabrirparaumcorredordeacesso.Mesmoquandooscô-
modossecomunicavam,nãoseeramaisforçadoaatravessá-lospara
passardeumaooutro.Jásedissequeoconfortodatadessaépoca:
elenasceuaomesmotempoqueaintimidade,adiscrição,eoisola-
mento,efoiumadasmanifestações dessesfenômenos.Nãohavia
maiscamasportodaaparte.Ascamaseramreservadasaoquartode
dormir,mobiliadodecadaladodaalcovacomarmáriosenichos
ondeseexpunhaumnovoequipamentodetoaleteedehigiene.Na
FrançaenaItália,apalavrachambretendeuaseoporàpalavrasalte
-antes,eramquasesinônimas;achambredesignavaocômodoonde
sedormia,easalte,ocômodoondeserecebiaousecomia:osalone
asalteàmanger,acaméraeasaladapranza.NaInglaterra,apalavra
roomcontinuouaserutilizadaemtodososcasos,maisfoiespecifica-
daatravésdeumprefixo:dining-room,bedroometc.
Essaespecializaçãodoscômodosdahabitação,surgidainicial-
menteentreaburguesiaeanobreza,foicertamenteumadasmaiores
mudançasdavidaquotidiana.Correspondeu aumanecessidade
novadeisolamento.Nessesinterioresmaisfechados,oscriadosnão
saiammaisdasáreasseparadasquelheseramdeterminadas-anão
sernascasasdospríncipesdesangue,ondepersistiamosantigoshá-
bitos.SébastienMercierregistroucomoumainovaçãorecenteohá-
bitodeasdamaschamaremascriadascomcampainhas.Ascampai-
nhaseramentãomontadasdeformaaquesepudesseacioná-lask
distância-antes,elasmaleramcapazesdechamaraatençãonopró-

266 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLlA
priocômodoondesoavam.Nadapoderiasermaiscaracterísticodes-
sanovanecessidadedemanteroscriadosàdistânciaetambémdese
defendercontraosintrusos-NofimdoséculoXVII1,nãoseusava
maisiràcasadeumamigoousócioaqualquerhora,semprevenir.
Aspessoasousevisitavamnosdiasderecepção,ou'"enviavam-sere-
ciprocamentecartõesatravésdoscriados”."Ocorreiotambémseen-
carregadasvisitas “Acaixadecorrespondência” entregaoscar-
tõese“nadaémaisfácil,ninguémévisível,todostêmadecênciade
fecharsuaporta.”Asnovasmaneiraspropunhamabandonaraquilo
queanteseraaocupaçãomaisnatural,omeiodefazeravançaros
negóciosedeconservaraposiçãoeosamigos*Outrora,vivia-seem
públicoeemrepresentação, etudoerafeitooralmente,atravésda
conversação*Agora,separava-semelhoravidamundana,avidapro-
fissionaleavidaprivada:acadaumaeradeterminadoumlocal
apropriadocomooquarto,ogabineteouosalão*
Ousodocartãoedodiamarcadonãoeraumfenômenoisola-
do*Etepertenciaatodoumcódigonovodemaneiras,quesubstituiu
aantigabiensêance,aantigaetiqueta.Estarecebeuonomemoder-
nodepolidezeorientou-senomesmosentidodeproteçãodaliberda-
deedaintimidadeindividualoufamiliar,contraapressãosocial.As
antigasboasmaneiraseramumaartedeviverempúblicoeemrepre-
sentação.Anovapolidezobrigavaàdiscriçãoeaorespeitopelainti-
midadeallheia.Aênfasemoraldeslocara-se,SébastienMercierno-
toumuitobemessamudança:“Otomdoséculoabrevioumuitoas
cerimônias, e,hoje,praticamentesóosprovincianossãohomensce-
rimoniosos”.Asrefeiçõestambémforamencurtadas:“Arefeiçãoé
maiscurta,enãoéàmesaquesepodediscutiremliberdadeoucon-
tarhistóriasengraçadas”,énasala,ondeaspessoasserecolhem,no
drawing-room.“Nãosetemmaispressaembeber,nãoseatormenta
maisosconvivasparalhesprovarquesesabereceberosamigos.Não
sepedemaisaosconvidadosquecantem(osconcertosemvoltada
mesaaindacobertadefrutasdoséculoXVIeXVII).”“Hojesere-
nunciouaesseshábitostoloseridículostãofamiliaresanossosan-
cestrais,infelizesprosélitosdeumatradiçãoembaraçosaeaborreci-
daaqueeleschamavamcorreta
/'
“Nemumminutodedescanso;dis-
cutia-secerimoniosamente antesedurantearefeição,comumatei-
mosiapedante,eosentendidosemcerimôniaaplaudiamessescom-
batespueris,”“Detodososcostumesantigosetriviais,odesaudar
quandoalguémespirraéoúnicoqueaindasubsisteemnossosdias.”
"Deixemosqueosapateiroeoalfaiatesedêemoabraçocerimonio-
67SébastianMercier,LesTahíeauxdeParts
,ed.Desnoiteres. p,194.
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMlLIAMODERNA 267
so,verdadeirooufalso,queaindaeracomumentreaboasociedade
háquarentaanos”.“Hojeéapenasnacasadopequeno-burguês (éen-
graçadooempregodaexpressão)queseusamcerimôniasfastidiosas
emaneirasimiteiseeternas,queeleaindaconsideramarcasdecivili-
dade,equefatigamsobremaneiraaspessoashabituadasàboasocie-
dade.”
Areorganizaçãodacasaeareformadoscostumesdeixaramum
espaçomaiorparaaintimidade,quefoipreenchidaporumafamília
reduzidaaospaiseàscrianças,daqualseexcluíamoscriados,os
clienteseosamigos.AscartasdoGeneraldeMartange,escritasà
suamulherentre1760e1780,permitem-nosavaliarosprogressosde
umsentimentodafamíliaquesehaviadespojadodetodoarcaísmoe
tomadoidênticoaodoséculoXIXeiníciodoséculoXX.Afamília
deixaradesersilenciosa:tornara-setagarelaeinvadiraacorrespon-
dênciadaspessoas,bemcomo,semdúvida,suasconversasepreocu-
pações
AsantigasformasdetratamentocomoMadamedesapareceram.
Martangetratavasuamulherpor“minhaqueridamamãe”,ou“mi-
nhaqueridaamiga”,“minhaqueridacriança”,“minhaqueridame-
nina”.Omaridodavaàmulheromesmonomepeloqualachama-
vamascrianças:mamãe.Suascartasestãocheiasdedetalhessobre
ascrianças,suasaúdeesuaconduta.Ascriançassãodesignadaspor
diminutivosfamiliares:MinetteeCoco.Ousomaisdifundidododi-
minutivoedoapelidocorrespondiaaumafamiliaridademaior,e,
sobretudo,aumanecessidadedeaspessoassechamaremdeumafor-
madiferentedosestranhos,desublinharporumaespéciedelingua-
geminiciáticaasolidariedadedospaisedosfilhos,eadistânciaque
osseparavadetodososdemais.
Enquantoestavaafastado,opaisemantinhaapardospeque-
nosdetalhesdavidaquotidiana,queeralevadamuitoasério*Elees-
peravaascartasdecasacomimpaciência:“Peço-te,minhaboameni-
na,quemeescrevasatodahoraduaspalavrasapenas”*“Ralhaum
pouco,peço-te,comM
ile
Minettepelapoucaatençãoqueelateveaté
agorademeescrever.”Elefalavadaalegriadeseuencontropróximo
comafamília:“Anseiopormeencontrarcontigoemnossopobre
lar,egostariadenãoternenhumaoutrapreocupaçãoalémdearru-
marteuquartoetornarnossaestadacômodaeagradável*”Vemos
aquijáogostomodernopelaintimidade,queopõeacasa»objetode
fervorosamanutenção,aomundoexterior.
Nessacorrespondência, asquestõesdesaúdeedehigieneocu-
pamumlugarimportante.Atéentão,aspessoaspreocupavam-se
65CorrespondatuemeditedugênêraldeMartange .1576-1782,ed.Breard,1898.

268 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
comasdoençasgraves,masnãodemonstravam essasolicitudecons-
tante,nãoseinquietavamcomumresfriadoouumapequenaafecção
passageira.Avidafísicanãotinhatantaimportância:“Ficariaextre-
mamenteinfelizsenãotivessenotíciasdetuasaúdeedademinhasfi-
lhínhas”,
(...)“Emboraoquemedizessobreapoucasaúdedequetu
eminhaspobresfilhasgozamnãosejatãoconsoladorcomoodeseja-
riaocoraçãodeumpai...”“Nãoestoumuitotranqüilocomoque
meinformassobreafaltadeapetiteeasdoresdenossomenino,Gos-
tariadeterecomendar,minhafilhaquerida,quetivessesàmão,tanto
paraelecomoparaXavière,umpoucodemeldeNarbonne,eque
nãodeixesdeesfregá-loemsuasgengivasquandoelessentiremdo-
res.”Eramasemoçõesdospaisnomomentodosprimeirosdentes:
elaspoderiamterinteressadoalgumasmulheresdotempodeM
mc
de
Sévigné,masnãoteriamrecebidoahonradeumlugarnacorrespon-
dênciadeumoficialGeneral.“Oresfriadodeminhasduasfilhasme
preocupa.,,Masparece-mequeenfimotempomelhorouestama-
nhã.”Díscutia-sesobreavacinaantivariólicacomohojesediscute
sobreoB.C.G.“Deixo-teinteiramenteresponsávelpelainoculação
deXavière,equantomaiscedomelhorJáquetodoomundoestása-
tisfeitocomainoculação,”Eleaconselhaamulherabeber“águade
Sedlitz"e“ossaisdomesmonome”,limonada,eaindaamisturarna
águaumpoucodevinagreouaguardenteparaprevenirocontágio
dasepidemias.
Umadesuasfilhascasou-senaAlemanha.Numacartaàsua
“queridaetemamamãe”,de14dejaneirode1781,amoçaexplica
seulongosilêncio:“Primeiro,osdoismenorespassaramdoismeses
comcoqueluche,atalpontoviolenta,quesemprequetossiamfica-
vamroxoseosanguesaíadesuasnarinasaosborbotões.Depoisdes-
sadoença,apequena(acaçula)eXavièretiveramasfebresmaisfor-
tespossíveis”.OsmédicoshaviamcondenadoXavière:“Estapobre
criançasofreutudooqueépossívelsofrer”.Noentanto,consegui-
ramsalvá-la:“GraçasaoSerSupremo,todostrêsmeforamdevolvi-
dos”.Ninguémousariaentãoconsolar-sedaperdadeumacriança
comaesperançadeterumaoutra,comoaindaseconfessavaumsé-
culoantes.Essepequenosererainsubstituível, esuaperdairrepará-
vel.Eamãeencontravasuaalegrianomeiodeseusfilhos,quenão
maispertenciamaummeiointermediárioentreonãosereoser:“A
companhiademeusfilhoséminhaúnicadelícia”.Observamosaqui
aovivoarelaçãoentreosprogressosdosentimentodainfânciaeos
progressosdahigiene,entreapreocupaçãocomacriançaeapreocu-
paçãocomasaúde,outraformadoslaçosqueuniamasatitudes
diantedavidaàsatitudesdiantedamorte.
Cuidava-semuitotambémdaeducaçãodascrianças,ereconhe-
cia-sesuaimportância:“Acimadetudo,recomendo-tenãoperder
DAFAMÍLIAMEDIEVALÀFAMÍLIAMODERNA 269
umminutonaeducaçãodascrianças;dobraoutriplicaasliçõesdiá-
rias,sobretudoparaensiná-lasaterboapostura,aandareacomer”
(persistênciadaantigacivilidade).Astrêscriançastinhamumpre-
ceptor:“Queastrêscriançasfaçambomproveitoequeasduasme-
ninas,sobretudo,aprendamamanterboaposturaeaandar.SeM.
H.souberfazercomquesejamgraciosas,poderásegabardeserum
mestrehábil”.
Martangetinhaproblemasdedinheiro,etemiasuasconsequên-
cias:“Adordenãopoderdar-lhesaeducaçãoquedesejofez-mepas-
sarpormomentoscruéisdereflexão”.Quaisquerquefossemacir-
cunstâncias,eraprecisonãoeconomizara“pagadosmestres”.Esta-
moslongeaquidaslamentaçõesdosmoralistasdosanos1660,quese
queixavamdeaspessoasnãopagaremaosmestrespornãosedarem
contadaimportânciadesuamissão.“Senãotivessemaisnada,ven-
deriaminhaúltimacamisaparavermeusfilhosnomesmonívelque
asoutrascriançasdesuaidadeedesuacondição.Elesnãodevemvir
aomundoparanoshumilharcomsuaignorânciaouseucomporta-
mento.Nãopensoemmaisnada,minhaqueridaamiga,alémdere-
fazerminhafortunaparaassegurarafelicidadedeles.Masseeles
quiseremfazeraminha,terãodeseaplicareaproveitarotempo.”
Martangepreocupava-senaépocaemqueseusfilhosforamvacina-
dos,pois“otempogastonainoculaçãoseriaperdidoparaosmes-
tres’".“Aproveitaaestadanacidadeparadar-lhesumpoucodaedu-
caçãoquemeusdissabores(defortuna)atéhojenosimpediramde
lhesoferecer.”
Asaúdeeaeducação:apartirdessaépoca,seriamessasasduas
principaispreocupaçõesdospais.Nãopodemosdeixardenossur-
preendercomotomextremamentemodernodessacorrespondência,
Apesardosdoisséculosquenosseparamdela,etaestámaispróxima
denósdoquedeM
me
deSévigné,queviveraapenasumséculoantes.
EmM
me
deSévigné,aoladodasolicitudenaturaldeumaboaavó,o
queapareceacimadetudo,emtodososmomentosdesuavida,é
umacuriosidadedivertidapelasfantasiasdainfância,aquiloaque
chameiacimaprimeirosentimentodainfância,a“paparicaçao”.
Essesentimentoestáquaseinteiramente aoisenteemMartange.Ele
levatudomuitoasério.ÉjáagravidadedoséculoXIX,aplicada
tantoàspequenascoisascomoàsgrandes,agravidadevitoriana.No
séculoXVII,quandonâoeraobjetodedistração,acriançaeraoins-
trumentodeumaespeculaçãomatrimonialeprofissional,destinada
apromoverumavançodafamílianasociedade.EmMartange,essa
preocupaçãopassaparaosegundoplano:suapreocupaçãocoma
educaçãoparecemuitomaisdesinteressada.Ascriançastalcomosão
eafamíliatalcomoé,comsuasdoresealegriasquotidianas,emergi-
ramdeumarotinaelementarparaatingiraszonasmaisluminosasda

270 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
consciência.Essegrupodepaísefilhos,felizescomsuasolidão,es-
tranhosaorestodasociedade,nãoémaisafamíliadoséculoXVII,
abertaparaomundoinvasordosamigos,clienteseservidores:éa
famíliamoderna.
Umadasmarcasmaiscaracterísticasdessafamíliaéapreocupa-
çãodeigualdadeentreosfilhos.Vimosqueosmoralistasdoséculo
XVIIdefendiammuitotimidamenteessaigualdade,sobretudopor-
queofavorecimentodosprivilegiadosfaziacomqueosmaismoços
corressemoriscodefalsasvocaçõesreligiosas,mastambémporque
elesestavamadiantadosparasuaépocaepressentiamascondições
futurasdavidafamiliar.Aolê-los,vimoscomoelestinhamacons-
ciênciadeestarcontrariando aopiniãocomum.Masdeagoraem
diante,apartirdofimdoséculoXVIII,adesigualdadeentreosfilhos
deumamesmafamíliaseriaconsideradaumainjustiçaintolerável.
Foramoscostumes-enâoocódigocivilouaRevolução-quesu-
primiramodireitodeprimogemtura.Asfamíliasfrancesasorecusa-
ramquandoosultrasdaRevoluçãoorestauraram,inspiradosnuma
novaconcepçãodafamília,queeleserroneamenteatribulamaoAn-
cienRegime:“Em20famíliasabastadas,escreveuVillèleaPolignac
em31deoutubrode1824 malhaveráumaondeseponhaemprá-
ticaafaculdadedebeneficiarofilhomaisvelhoouqualqueroutro.
Oslaçosdasubordinaçãoestãodetalformafrouxosemtodaaparte,
que,dentrodafamília,opaisecrêobrigadoaagradaraosfilhos,™
EntreofimdaIdadeMédiaeosséculosXVIeXVII,acriança
haviaconquistadoumlugarjuntodeseuspais,lugaresteaquenão
poderiateraspiradonotempoemqueocostumemandavaquefosse
confiadaaestranhos.Essavoltadascriançasaolarfoiumgrande
acontecimento: eladeuàfamíliadoséculoXVIIsuaprincipalcarac-
terística,queadistinguiudasfamíliasmedievais.Acriançatornou-se
umelementoindispensáveldavidaquotidiana, eosadultospassa-
ramasepreocuparcomsuaeducação,carreiraefuturo.Elanãoera
aindaopivôdetodoosistema,mastornara-seumapersonagem
muitomaisconsistente.EssafamíliadoséculoXVII,entretanto,não
eraafamíliamoderna:distinguia-sedestapelaenormemassadeso-
ciabilidadequeconservava.Ondeelaexistia,ouseja,nasgrandesca-
sas,elaeraumcentroderelaçõessociais,acapitaldeumapequena
sociedadecomplexaehierarquizada,comandadapelochefedefamí-
lia.
69Fourcassié, Villèle,1954.
DAFAMÍLIAMEDIEVALAFAMÍLIAMODERNA 271
Afamíliamoderna,aocontrário,separa-sedomundoeopõeà
sociedadeogruposolitáriodospaisefilhos.Todaaenergiadogrupo
éconsumidanapromoçãodascrianças,cadaumaemparticular,e
semnenhumaambiçãocoletiva:ascrianças,maisdoqueafamília.
EssaevoluçãodafamíliamedievalparaafamíliadoséculoXVII
eparaafamíliamodernadurantemuitotemposelimitouaosnobres,
aosburgueses,aosartesãoseaoslavradoresricos.Aindanoiníciodo
séculoXIX,umagrandepartedapopulação,amaispobreemaisnu-
merosa,viviacomoasfamíliasmedievais,comascriançasafastadas
dacasadospais.Osentimentodacasa,dochezsoi
,dohome
,nãoexis-
tiaparaeles.Osentimentodacasaéumaoutrafacedosentimento
dafamília.ApartirdoséculoXVIII,eatéjiossosdias,osentimento
dafamíliamodificou-semuitopouco.Elepermaneceuomesmoque
observamosnasburguesiasruraisouurbanasdoséculoXVIILPor
outrolado,elescestendeucadavezmaisaoutrascamadassociais.
NaInglaterradofimdoséculoXVIII,Ashtonconstatouosprogres-
sosdavidafamiliar:“Ostrabalhadoresagrícolastenderamaseinsta-
larnumacasaprópria,emlugardemorarnacasadeseusemprega-
dores,eodeclíniodaaprendizagemnaindústriatêxtilpermitiucasa-
mentosmaisprecocesefamíliasmaisnumerosas
70,
\Ocasamento
tardio,aprecocidadedotrabalho,osproblemashabitacionais, amo-
bilidadedoestágiodoauxiliarjuntoaomestre,apersistênciadastra-
diçõesdeaprendizagem-todosessesfatoresconstituíramobstáculos
aomodoidealdevidafamiliarburguesa,obstáculosqueaevolução
doscostumespoucoapoucoremoveria,Avidafamiliarestendeu-se
aquasetodaasociedade,atalpontoqueaspessoasseesqueceramde
suaorigemaristrocráücaeburguesa
n
.
70J.Ashton,LaRêvolutionindustrielle, p.173,
71H.Bergues,Ph.Ariès,E.Hélin,L.Henry,M.Riquet,A,Sauvy,J,Sutter,LaPrè-
veníiondesnaissancesdmslafamilte,sesoriginesdanslestempsmoderns.InstituiNu-
UonalcFEtudesDémographiques, Cahiern
v
35,1%0,Cf,tambémR.PrigcnLRenou*
veaudesidêessuriafamiile ,I.N.E.D., tV>18,1954.

CONCLUSÃO
FamíliaeSociabilidade
Ohistoriadorqueexaminaosdocumentosiconográficoscoma
preocupaçãodenelesencontraressefrêmitodevidaqueelepróprio
experimentaemsuaprópriaexistênciaficaespantadocomararida-
de*aomenosatéoséculoXVI,dascenasdeinterioredefamília.
Temdedescobri-lascomoauxíliodeumalupa,einterpretá-lascom
oreforçodehipóteses.Poroutrolado,eledeparaimediatamente
comaprincipalpersonagemdetodasessasimagens,umapersona-
gemtãoessencialquantoucoronoteatroantigo:amultidão-nãoa
multidãomaciçaeanônimadenossascidadessuperpovoadas,masa
assembléia,naruaounoslugarespúblicos(comoasigrejas),devizi-
nhos,matronasecrianças,numerosos,masnaoestranhosunsaos
outros-umamiscelâneabastanteparecidacomaquehojeanimaos
soitk.sdascidadesárabesouascoursdascidadesmediterranicasna
horadopasseionoturno.Ècomosetodostivessemsaídodecasa,em
vezdeficardentrodela:hácenasderuasedemercados,dejogosede
ofícios,dearmasoudeaulas,deigrejasoudesuplícios.Narua,nos
campos,noexterior,empúblico,nomeiodeumacoletividadenume-
FAMÍLIAESOCIABILIDADE 273
rosa-eraaíquesetendiaasituarnaturalmenteosacontecimentos
ouaspessoasquesedesejavaretratar.
Gradualmente, surgiríaaidéiadeisolarosretratosindividuais
oufamiliares.Masaimportânciaqueatribuímos nestaspági-
nasaessastentativasnãonosdeveenganarsobreoquantoelasfo-
ramrarasetímidasnoprincípio.Pormuitotempo,atéoséculo
XVII,épocaemqueaiconografiadafamíliasetornouextremamente
rica,oessencialcontinuariaaserarepresentaçãodavidaexteriore
pública.Essaimpressãogeral,quesurpreendeohistoriadornomo-
mentodeseucontatocomosdocumentosiconográficos,correspon-
deaumaprofundarealidade.Ávidanopassado,atéoséculoXVII,
eravividaempúblico:apresentamosváriosexemplosdessedomínio
dasociedade.Ascerimôniastradicionaisqueacompanahavam oca-
samento,equeeramconsideradasmaisimportantesdoqueasceri-
môniasreligiosas,comoabênçãodoleitonupcial,avisitadosconvi-
dadosaosrecém-casadosjádeitados,asbrincadeirasduranteanoite
denúpciasetc.,sâomaisumaprovadodireitodasociedadesobrea
intimidadedocasal.Porquehaveriaalgumaobjeção,senarealidade
nãoexistiaquasenenhumaintimidade,seaspessoasviviammistura-
dasumascomasoutras,senhoresecriados,criançaseadultos,em
casaspermanentemente abertasàsindiscriçõesdosvisitantes?Aden-
sidadesocialnãodeixavalugarparaafamília.Nao"queafamílianão
existissecomorealidadevivida:seriaparadoxalcontestá-la.Masela
nãoexistiacomosentimentooucomovalor.
Assistimosaonascimentoeaodesenvolvimento dessesentimen-
todafamíliadesdeoséculoXVatéoséculoXVIII.Vimoscomo,até
oséculoXVIII,elenãohaviadestruídoaantigasociabilidade;èver-
dadequeeleselimitavaàsclassesabastadas,adoshomensricose
importantesdocampooudacidade,daaristocraciaoudaburguesia,
artesãooucomerciantes.ApartirdoséculoXVIII,eleestendeu-sea
todasascamadaseimpôs-setiranicamente àsconsciências.Muitas
vezesapresentou-seaevoluçãodosúltimosséculoscomootriunfo
doindividualismosobreasobrigaçõessociais,entreasquaisfigura-
vaafamília.Masondeestáoindividualismodasvidasmodernas,em
quetodaaenergiadocasaléorientadaparaserviraosinteressesde
umaposteridadedeliberadamente reduzida?Nãohaveriamaisindi-
vidualismonaalegreindiferençadosprolíficospaisdefamíliadoAn-
cienRêgimelÉclaroqueafamíliamodernanãopossuimaisames-
marealidadematerialdaépocadoAncienRêgime
,quandoelase
confundiacomumpatrimônioeumareputação.Excetoemcasos
cujaimportânciavemdiminuindo,oproblemadatransmissãodari-
quezavemdepoisdoproblemadobemdosfilhos,eessebemnãoé
maisnecessariamente consideradocomofidelidadeaumatradição
profissional.Afamíliatornou-seumasociedadefechadaondeseus

274 HISTÓRIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMlLlA
membrosgostamdepermanecer,equeéevocadacomprazer,comu
ofaziaoGeneraldeMartangeemsuascartasnofinaldoséculo
XVIII.Todaaevoluçãodenossoscostumescontemporâneos torna-
seincompreensível sedesprezamosesseprodigiosocrescimentodo
sentimentodafamília,Nãofoioindividualismoquetriunfou,foia
família,
Masessafamíliaestendeu-seàmedidaqueasociabilidade sere-
traiu.Écomoseafamíliamodernativessesubstituídoasantigasre-
laçõessociaisdesaparecidasparapermitiraohomemescaparauma
insustentávelsolidãomorai.ApartirdoséculoXVIII,aspessoasco-
meçaramasedefendercontraumasociedadecujoconvívioconstante
atéentãohaviasidoafontedaeducação,dareputaçãoedafortuna.
Daíemdiante,ummovimentovisceraldestruiriaasantigasrelações
entresenhoresecriados,grandesepequenos,amigosouclientes.
Essemovimentofoiretardadoemcertoscasospelasinérciasdoisola-
mentogeográficoousocial.EleseriamaisrápidoemParisdoqueem
outrascidades,maisrápidoentreasburguesiasdoquenasclasses
populares.Emtodaaparteelereforçariaaintimidadedavidapriva-
daemdetrimentodasrelaçõesdevizinhança,deamizadesoudetra-
dições.Ahistóriadenossoscostumesreduz-seemparteaesselon-
goesforçodohomemparaseseparardosoutros,paraseafastarde
umasociedadecujapressãonãopôdemaissersuportada.Acasaper-
deuocaráterdelugarpúblicoquepossuíaemcertoscasosnoséculo
XVII,erafavordoclubeedocafé,que,porsuavez,setornaramme-
nosfrequentados.Avidaprofissionaleavidafamiliarabafaramessa
outraatividade,queoutrorainvadiatodaavida:aatividadedasrela-
çõessociais.
Somostentadosacrerqueosentimentodafamíliaeasociabili-
dadenãoeramcompatíveis, esósepodiamdesenvolveràcustaum
dooutro.
Conclusão
Eleestavalivre,inflniiamcnte, apontodenãomaissesentirpesar
sobreaterra.Faliava-lheessepesodasrelaçõeshumanasqueentravao
passo,essaslágrimas,essesadeuses,essasqueixas,essasalegrias,tudoo
queumhomemacariciaoudilaceratodavezqueesboçaumgesto,esses
millaçosqueoligamaosoutroseotornampesado.
Saint-Exupéry
NaIdadeMédia,noiníciodostemposmodernos,epormuito
tempoaindanasclassespopulares,ascriançasmisturavam-secomos
adultosassimqueeramconsideradascapazesdedispensaraajuda
dasmãesoudasamas,poucosanosdepoisdeumdesmametardio-
ouseja,aproximadamente, aosseteanosdeidade.Apartirdessemo-
mento,ingressavamimedíãtamentenagrandecomunidadedosho-
mens,participandocomseusamigosjovensouvelhosdostrabalhos
edosjogosdetodososdiasrpmovimentodavidacoletivaarrastava
numamesmatorrenteasidadeseascondiçõessociais,semdeixara
ninguémotempodasolidãoedaintimidade.Nessasexistênciasden-
sasecoletivas,nãohavialugarparaumsetorprivado.Afamília
cumpriaumafunção-asseguravaatransmissãodavida,dosbense
dosnomes™masnãopenetravamuitolongenasensibilidade.Os
mitos,comoodoamorcortês(ouprecioso),desprezavamocasa-
mento,enquantoasrealidadescomoaaprendizagem dascrianças

276 HISTÓRIASOCIALDACRIANCAEDAFAMÍLIA
afrouxavamolaçoafetivoentrepaisefilhos,Podemosimaginara
famíliamodernasemamor,masapreocupaçãocomacriançaeane-
cessidadedesuapresençaestãoenraizadasnela.Acivilizaçãomedie-
valhaviaesquecidoapaideiadosantigos,eaindaignoravaaeduca-
çãodosmodernos.Esteéofatoessencial:elanãotinhaidéiadaedu-
cação.Hoje,nossasociedadedependeesabequedependedosucesso
deseusistemaeducacionalElapossuiumsistemadeeducação,uma
consciênciadesuaimportância.Novasciências,comoaPsicanálise,
aPediatria,aPsicologia,consagraram-seaosproblemasdainfância,
esuasdescobertassãotransmitidasaospaisatravésdeumavastali-
teraturadevulgarização,Nossomundoéobcecadopelosproblemas
físicos,moraisesexuaisdainfância.
Essapreocupaçãonãoeraconhecidadacivilizaçãomedieval,
poisparaessasociedadenãohaviaproblemas:assimqueeradesma-
mada,oupoucodepois,acriançatornava-seacompanheiranatural
doadulto.Asclassesdeidadedoneolítico,apaideiahelenístíca,
pressupunhamumadiferençaeumapassagementreomundodat
criançaseodosadultos,umapassagemqueerarealizadapormeio
dainiciaçãooudeumaeducação.Acivilizaçãomedievalnãoperce-
beuessadiferença,e,portanto,nãopossuiuessanoçãodepassagem,
Ograndeacontecimento foiportantooreaparecimentonoiní-
ciodostemposmodernosdapreocupaçãocomaeducação.Esseinte-
resseanimouumcertonúmerodeeclesiásticosejuristasaindararos
noséculoXV,mascadavezmaisnumerososeinfluentesnosséculos
XVIeXVII,quandoseconfundiramcomospartidáriosdareforma
religiosa,Poiseleseramantesdetudomoralistas,maisdoquehuma-
nistas:oshumanistascontinuavamligadosaumaculturadohomem,
espalhadaportodaavida,epoucosepreocupavamcomumaforma-
çãoreservadaàscrianças.Essesreformadores, essesmoralistascuja
influênciasobreavidadaescolaedafamíliaobservamosnesteestu-
do,lutaramcomdeterminaçãocontraaanarquia(ouoquelhespa-
reciaentãoseraanarquia)dasociedademedieval,enquantoaIgreja,
apesardesuarepugnância,hámuitosehaviaresignadoaela,einci-
tavaosfiéisaprocurarsuasalvaçãolongedestemundopagão,nore-
tirodosclaustros*Iniciou-seentãoumaverdadeiramoralizaçãoda
sociedade:oaspectomoraldareligiãopoucoapoucocomeçouapre
valecernapráticasobreoaspectosacroouescatológico.Foiassim
queessescampeõesdeumaordemmoralforamlevadosareconhecer
aimportânciadaeducação.Constatamossuainfluênciasobreahis-
tóriadaescola,atransformaçãodaescolalivreemcolégiovigiado*
SeusescritossesucederamdeGersonaPort-Royal,tornando-se
cadavezmaisfreqüentesnosséculosXVIeXVII,Asordensreligio-
sasfundadasentão,comoosjesuítasouosoratorianos,tornaram-se
ordensdedicadasaoensino,eseuensinonãosedirigiamaisaos
CONCLUSÃO 277
adultos,comoodospregadoresoudosmendicantesdaIdadeMé-
dia:eraessencialmentereservadoàscriançaseaosjovens*Essalite-
ratura,essapropaganda,ensinaramaospaisqueeleseramguardiães
espirituais,queeramresponsáveisperanteDeuspelaalma,eaté
mesmo,nofinal,pelocorpodeseusfilhos.
Passou-seaadmitirqueacriançanãoestavamaduraparaavi-
da,equeeraprecisosubmetê-laaumregimeespecial,aumaespécie
dequarentenaantesdedeixá-launir-seaosadultos.
Essanovapreocupaçãocomaeducaçãopoucoapoucoiriains-
talar-senoseiodasociedade,etransformá-ladefioapavio.Afamí-
liadeixoudeserapenasumainstituiçãododireitoprivadoparaa
transmissãodosbensedonome,eassumiuumafunçãomoraleespi-
ritual,passandoaformaroscorposeasalmas.Entreageraçãofísica
eainstituiçãojurídicaexistiaumhiato,queaeducaçãoiriapreen-
cher.Ocuidadodispensadoàscriançaspassouainspirarsentimen-
tosnovos,umaafetividadenovaqueaiconografiadoséculoXVII
exprimiucominsistênciaegosto:osentimentomodernodafamília*
Ospaisnãosecontentavammaisempôrfilhosnomundo,emesta-
belecerapenasalgunsdeles,desinteressando-se dosoutros.Amoral
daépocalhesimpunhaproporcionar atodososfilhos,enãoapenas
aomaisvelho-e,nofimdoséculoXVII,atémesmoàsmeninas
-
umapreparaçãoparaavida.Ficouconvencionadoqueessaprepara-
çãofosseasseguaradapelaescola.Aaprendizagem tradicional foi
substituídapelaescola,umaescolatransformada, instrumentode
disciplinasevera,protegidapelajustiçaepelapolítica.Oextraordiná-
riodesenvolvimento daescolanoséculoXVIIfoiumaeonseqüência
dessapreocupaçãonovadospaiscomaeducaçãodascrianças.Asli-
çõesdosmoralistaslhesensinavamqueeraseudeverenviarascrian-
çasbemcedoàescola:“Ospaís,dizumtextode1602,quesepreocu-
pamcomaeducaçãodesuascrianças(liberaserudiendos
}
merecem
maisrespeitodoqueaquelesquesecontentamempô-lasnomundo.
Eleslhesdãonãoapenasavida,masumavidaboaesanta.Poresse
motivo,essespaistêmrazãoemenviarseusfilhos,desdeamaistenra
idade,aomercadodaverdadeirasabedoria",ouseja,aocolégio,
“ondeelessetornarãoosartificiesdesuaprópriafortuna,osorna-
mentosdapátria,dafamíliaedosamigos
Afamíliaeaesdolaretiraramjuntasacriançadasociedadedos
adultos.Aescolaconfinouumainfânciaoutroralivrenumregime
disciplinarcadavezmaisrigoroso,quenosséculosXVIIIeXIXre-
sultounoenclausuramento totaldointernato]Asolicitudedafamí-
IAcademiasiveVitascholüstiça ,Arnheim,1602.

278 HISTORIASOCIALDACRIANÇAEDAFAMÍLIA
lia,daigreja,dosmoralistasedosadministradoresprivouacriança
daliberdadedequeelagozavaentreosadultos.Infiingiu-íheochico-
te,aprisão,emsuma,ascorreçõesreservadasaoscondenadosdas
condiçõesmaisbaixas,Masesserigortraduziaumsentimentomuito
diferentedaantigaindiferença:umamorobsessivoquedeveriado-
minarasociedadeapartirdoséculoXVIII.Éfácilcompreenderque
essainvasãodassensibilidades pelainfânciatenharesultadonosfe-
nômenoshojemelhorconhecidosdomalthusianismooudocontro-
ledanatalidade.EsteúltimosurgiunoséculoXVIII,nomomento
emqueafamíliaacabavadesereorganizaremtornodacriançaeer-
guiaentreeíamesmaeasociedadeomurodavidaprivada.
Afamíliamodernaretiroudavidacomumnâoapenasascrian-
ças,masumagrandepartedotempoedapreocupaçãodosadultos.
Elacorrespondeu aumanecessidadedeintimidade, etambémde
identidade:osmembrosdafamíliaseunempelosentimento,ocostu-
meeogênerodevida.Aspromiscuidadesimpostaspelaantigasocia-
bilidadelhesrepugnam.Compreende-sequeessaascendênciamoral
dafamíliatenhasidoorigínariamenteumfenômeno burguês:aalta
nobrezaeopovo,situadosnasduasextremidadesdaescalasocial,
conservarampormaistempoasboasmaneirastradicionais,eperma-
neceramindiferentesàpressãoexterior.Asclassespopularesmanti-
veramatéquasenossosdiasessegostopelamultidão.Existeportan-
toumarelaçãoentreosentimentodafamíliaeosentimentodeclas-
se.Emváriasocasiões,aolongodesteestudo,vimosqueelessecru-
zavam.Duranteséculos,osmesmosjogosforamcomunsàsdiferen-
tescondiçõessociais;apartirdoiníciodostemposmodernos,porém,
operou-seumaseleçãoentreeles:algunsforamreservadosaosbem
nascidos,enquantooutrosforamabandonadosaomesmotempoàs
criançaseaopovo.ÀsescolasdecaridadedoséculoXVII,fundadas
paraospobres,atraíamtambémascriançasricas.Masapartirdosé-
culoXVIII,asfamíliasburguesasnãoaceitarammaisessamistura,e
retiraramsuascriançasdaquiloquesetornariaumsistemadeensino
primáriopopular,paracolocá-lasnaspensõesounasclasseselemen-
taresdoscolégios,cujomonopólioconquistaram.Osjogoseasesco-
las,inicialmentecomunsaoconjuntodasociedade,ingressaramen-
tãonumsistemadeclasses.Foicomoseumcorposocialpolimorfoe
rígidosedesfizesseefossesubstituídoporumainfinidadedepeque-
nassociedades-asfamílias,eporalgunsgruposmaciços-asclasses.
Asfamíliaseasclassesreuniamindivíduosqueseaproximavampor
suasemelhançamoralepelaidentidadedeseugênerodevida.Oan-
tigocorposocialúnico,aocontrário,englobavaamaiorvariedade
possíveldeidadesecondições.Poisaíascondiçõeseramtantomais
CONCLUSÃO 279
claramentedistinguidasehierarquizadasquantomaisseaproxima-
vamnoespaço.Àsdistânciasmoraissupriamasdistânciasfísicas.O
rigordossinaisexterioresderespeitoedasdiferençasdevestuário
corrigiaafamiliaridadedavidacomum.Ocriadonuncadeixavaseu
senhor,dequemsetornavaamigoecúmplicepassadasascamarada-
gensdaadolescência;aalturadosenhorcorrespondiaàinsolênciado
servidor,erestabelecia,paraobemouparaomal,umahierarquia
queumaexcessivaeconstantefamiliaridadeestavasemprecolocan-
doemquestão.
Aspessoasviviamnumestadodecontraste;onascimentonobre
ouafortunaandavamladoaladocomamiséria,ovíciocomavirtu-
de,oescândalocomadevoção.
Apesardeseuscontrastesestridentes,essamiscelâneanãosur-
preendianinguém:elapertenciaàdiversidadedomundo,quedevia
seraceitacomoumdadonatural.Umhomemouumamulherbem
nascidosnãoviamnenhumproblemaemvisitarvestidoscomseus
trajessuntuosososmiseráveisdasprisões,doshospitaisoudasruas,
quasenusdebaixodeseusfarrapos.Àjustaposiçãodessesextremos,
assimcomonãotolhiaosricos,nãohumilhavaospobres.Hojeainda
restaalgumacoisadesseclimamoralnaItáliameridional.Masche-
gouummomentoemqueaburguesianãosuportoumaisapressão
damultidão,nemocontatocomopovo.Elacindiu:retirou-seda
vastasociedadepolimorfaparaseorganizaràparte,nummeioho-
mogêneo,entresuasfamíliasfechadas,emhabitaçõesprevistaspara
aintimidade,embairrosnovos,protegidoscontratodacontamina-
çãopopular.Ajustaposiçãodasdesigualdades,ootroranatural,tor-
nou-se-lheintolerável: arepugnânciadoricoprecedeuavergonhado
pobre.Áprocuradaintimidadeeasnovasnecessidadesdeconforto
queelasuscitava(poisexisteumarelaçãoestreitaentreoconfortoea
intimidade)acentuavamaindamaisocontrasteentreostiposdevida
materialdopovoedaburguesia.Àantigasociedadeconcentravaum
númeromáximodegênerosdevidanummínimodeespaço,eaceita-
va-quandonãoprocurava-aaproximaçãobarrocadascondições
sociaismaisdistantes.Anovasociedade,aocontrário,asseguravaa
cadagênerodevidaumespaçoreservado,cujascaracterísticasdomi-
nantesdeviamserrespeitadas:cadapessoadeviaparecercomum
modeloconvencional,comumtipoideal,nuncaseafastandodele,
sobpenadeexcomunhão.
Osentimentodafamília,osentimentodeclasseetalvez,emou-
traárea,osentimentoderaçasurgemportantocomoasmanifesta-
çõesdamesmaintolerânciadiantedadiversidade,deumamesma
preocupaçãodeuniformidade.
\