História do Rio Grande do Norte 83
essa peculiaridade geopolítica. Para ele, o ciclo do gado foi responsável pela “ligação geográfica
dos movimentos de expansão partidos da Bahia e de São Vicente, de Pernambuco e do Maranhão.
Unidos, no Norte de Minas, no primeiro caso, no interior do Piauí ou do Ceará, no segundo, por
intermédio dos passadores de gado processou-se a verdadeira união terrestre do Sul, Centro, Leste
e Nordeste” (1967, v. 1, p. 230).
A atividade pecuária também contribuiu para a formação de uma sociedade mais livre, pois
criado de forma extensiva, o gado facilitou o predomínio do trabalhador livre, principalmente de
indígenas ou mestiços de branco com índio. A pecuária, além de formar uma sociedade mais livre,
com hábitos mais duros, viris, rudes. “La ganadería hace al habitante del campo, nativo o colono,
fuerte, osado ágil y púbil [que] hay que domar caballos cerrilles, hay que perseguir y voltear a bolas
e a lazo, hay que adiestrar-se en el manejo del cuchilo, hay que aguzar los sentidos y hacerse
vaqueano” (apud MEDEIROS, 1980, p. 22).
Na literatura colonial não há registro das vaquejadas como as conhecemos no Nordeste
brasileiro. Viajantes, mercadores, naturalistas, aventureiros, traficantes de escravos, todos os que
deixaram alguma impressão sobre o Brasil durante o período colonial, assistiram festas inumeráveis
mas nenhuma parecia às nossas “apartações” e derrubadas de gado. As touradas que dominaram
Portugal, vieram para o Brasil, praticadas em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande
do Sul e Bahia. Em todos o cantos da imensa colônia “corria-se” o touro, com farpas e aguilhão.
A “cavalhada” paulista e mineira limitava-se apenas à “corrida de argolinha”, como em Portugal.
Depois seguiam-se provas de destreza, apanhar objetos no solo na disparada da galopada, etc.
Quando o touro surgia era para ser “picado” à castelhana. Mas nenhuma delas parecia-se com as
“apartações” feitas no Nordeste, onde o gado era criado em campos indivisos e, em junho, sendo o
inverno cedo, era levado para grandes currais. Naquele período, dezenas de vaqueiros passavam
semanas reunindo a gadaria esparsa pelas serras e tabuleiros, com episódios empolgantes de
correrias vertiginosas. Era também a hora do comércio, dos acertos, dos negócios. Comprava-se,
vendia-se, trocava-se. Guardadas as reses, separava-se o gado para a vaquejada. Puxar gado,
correr ao boi, eram sinônimos. A “apartação” consistia na identificação do gado de cada patrão dos
vaqueiros presentes. Marcados pelo “ferro” na anca, o “sinal” recortado na orelha, a “letra” da ribeira,
o animal era reconhecido e entregue ao vaqueiro. A reunião de tantos homens, sem divertimentos,
isolados, concorria para aproveitar-se o momento. Era um jantar sem fim, farto, com muita bebida.
Antes, pela manhã e mais habitualmente à tarde, corria-se o gado. Ao pôr-do-sol, acabava-se. O
jantar mantinha-os reunidos, narrando façanhas e derrotas. Indispensavelmente havia um ou dois
cantadores para “divertir”. Cantava-se o desafio até de madrugada. Pela manhã, ao lento passo da
boiada, os vaqueiros se dispersavam, aboiando (CASCUDO, 1984, p. 328).
A pecuária desenvolveu-se no Brasil paralelamente à empresa açucareira. Enquanto a
atividade canavieira ocupava as “áreas dos vales fluviais – as várzeas”, a pecuária utilizava os
interflúvios (LOPES, 2003, p. 128). O gado era criado próximo aos engenhos, mas com a valorização
do açúcar, os senhores de engenho resolveram transferi-lo para o interior. Assim, a pecuária
desbravou o sertão nordestino, iniciando o povoamento dessa área.
A história territorial do Rio Grande do Norte, que pode ser seguida e acompanhada,
em grande parte, no exame das datas de terra e sesmarias concedidas aos
que vieram povoar o seu solo, e nele se fixaram, revela, em cada uma dessas
concessões, ou melhor em sua quase totalidade, um pensamento único: a
obtenção de terras para acomodar os gados, onde situar os gados, onde crear
os gados.
Na zona do Seridó certo e seguro é afirmar-se que todo o movimento povoador
decorreu da necessidade econômica de encontrar lugar adequado à localização
de fazendas de criação de gados (MEDEIROS, 2002, p. 13).