Para que se perceba em toda a sua extensão a crueldade, mas também o fanatismo, a cegueira
da perseguição movida em Portugal contra os judeus sefarditas, ainda falta dizer que a comunidade de
judeus de origem portuguesa teve ainda a força de existir ou o poder para agir, como diria Espinosa,
para construir a imponente Sinagoga Portuguesa
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de Amsterdão (denominada Esnoga), em pleno
centro da cidade histórica, mesmo em frente ao atual Museu da História Judaica de Amsterdão. Foi a
Sinagoga desta Congregação Portuguesa Judaica de Amsterdão que expulsou o jovem Espinosa do
seu convívio.
Portugal perdeu, não só uma quantidade substancial do seu capital financeiro, mas também um
importantíssimo capital intelectual. Espinosa é só um exemplo dessa perda de capital intelectual. Por
exemplo, um dos fundadores da escola clássica de economia inglesa, David Ricardo, era um judeu
sefardita de origem portuguesa (todos os eram, de acordo com o que preferiam dizer de si mesmos)
da comunidade de Amsterdão.
Mas a maior injustiça que recaiu sobre Espinosa, para além do roubo do seu corpo após a sua
morte, terá sido o pouco relevo que, durante séculos, foi dado à sua obra filosófica. Descartes, 32
anos mais velho do que ele, também teve de ter muito cuidado com o que escrevia, mas em muitas
coisas, e no cuidado também, era bem diferente de Espinosa. O seu cuidado levava-o a enrolar a
conversa, a fazer vénias, a fazer todo o tipo de concessões, em nome da salvação mais da pele do que
da alma. Pelo contrário, o cuidado de Espinosa traduziu-se numa escrita rigorosa, sem desvios nem
explicações desnecessárias. Descartes, na peugada de Galileu, preferiu ver o mundo a reger-se por leis
matemáticas (geométricas) atribuídas pelo Criador; Espinosa não só partilhava deste pensamento
novo na época, como ainda decidiu falar desse mundo como se estivesse a fazer demonstrações
geométricas, depurando a sua conversa da redundância e das proposições não demonstráveis. Não foi
um espírito tão analítico como o de Descartes, porque as suas demonstrações não eram
empobrecidas pelo formalismo, mas foi mais rigoroso. Há, pelo menos, duas formas de ver esse
espírito analítico: como o edifício que sustenta tudo o resto, ou como o andaime que sustenta o
edifício e que tem de ser retirado para não estragar o que foi construído. Espinosa está mais próximo
desta última forma de ver as coisas da análise. Por isso, as suas análises não são sem conteúdo e sem
progresso, sem edifício, para usar a metáfora agora, que mais tarde não fará falta.
Façamos então alguma justiça a Espinosa. Se Descartes foi mais útil para a construção da ciência e
da filosofia modernas, a verdade é que Espinosa propôs um salto de vários séculos no tempo e é,
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Esta designação não significava que a comunidade sefardita de Amsterdão fosse exclusivamente constituída por
portugueses. Com efeito, sob o reinado dos “Reis Católicos” , cerca de 130 000 judeus espanhóis refugiaram-se em
Portugal, após terem sido expulsos pelo Decreto de Alhambra em 1492. No reinado de D. Manuel I de Portugal, quatro
anos depois, todos os judeus, portugueses e espanhóis, foram obrigados a converter-se ao catolicismo. Esta obrigação legal
foi tanto usada para perseguições seletivas, quanto para “fazer de conta” ou, como se diz agora, “para inglês (neste caso,
espanhol) ver”. Em todo o caso, as perseguições seletivas eram também sentidas pelos judeus como opressoras e
humilhantes. A ocupação da Portugal, em 1580, pelos Filipes, instalou em Portugal uma perseguição sistemática de todos
os judeus. É nesta altura que se dá a grande fuga de judeus da Península Ibérica para a Holanda. Mas, como a Espanha
estava, por essa altura, em guerra com a Holanda, os judeus peninsulares preferiram, por motivos compreensíveis, adotar
oficialmente a origem portuguesa. Mesmo os que tinham origem em Espanha, assumiram, uma vez instalados em
Amsterdão, ter sido sempre portugueses. Esta comunidade sefardita, francamente minoritária face às comunidades que, do
centro e do oriente da Europa, rumavam para a Holanda, era muito mais rica do que qualquer outra sua congénere, e
desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento e enriquecimento dos Países Baixos.