EXEMPLAR MAIS PERFEITO DA
PROSA POÉTICA NA FICÇÃO
ROMÂNTICA
A literatura nacional, que outra coisa é senão a alma da
pátria, que transmigrou para este solo virgem uma raça
ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta
terra que lhe serviu de regaço; e cada dia se enriquece ao
contacto e ao influxo da civilização?
(José de Alencar, Sonhos d’Ouro)
NAS TRILHAS DO TEXTO
O romance indianista Iracema: lenda do Ceará,
de José de Alencar, conta a história de amor entre
a indígena Iracema e o português Martin Soares
Moreno. Para se casar com o guerreiro branco,
por quem se apaixona, Iracema acaba traindo e
abandonando seu povo, os tabajaras. Da união dos
dois nasce um menino, Moacir, que simboliza a
união entre o branco e o indígena, cujo nome
significa “vindo da dor”. O romance é também
uma história de fundação do mestiço povo
brasileiro.
NARRADOR:
Escrita em terceira pessoa, apresenta um narrador
observador
O sentimento que ele (Martin) pôs nos olhos e no rosto
não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a
uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa
que lhe causara. (cap. II)
Nota: no trecho acima, Martin (o guerreiro branco)
defronta-se em plena floresta com Iracema, a virgem
dos lábios de mel, que acabara de flechá-lo. O
narrador, contando o fato, assume a primeira pessoa
ao colocar em dúvida o sentimento de Martin diante
do ocorrido. Conserva-se porém na terceira pessoa ao
referir-se a Iracema.
NARRADOR:
O narrador conta a história do encontro entre o
índio e o branco – tema do livro – do ponto de
vista de Iracema, privilegiando os sentimentos
dela e não os de Martin, que representa o
colonizador portugês;
O título, o início (cap. II) e o final do enredo (cap.
XXXIII) centralizam-se em Iracema, protagonista
do romance;
A história não é contada exclusivamente do ponto
de vista do indígena.
NARRADOR:
Proximidade entre os sentimentos e comportamentos de
Iracema das heroínas românticas do romantismo europeu:
Exemplo 1: De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a
cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro
aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo
de ternura e amor. Sofreu mais d’alma que da ferida. (cap.
II).
Exemplo 2: A mão que rápida ferira, estancou mais rápida
e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema
quebrou a flecha homicida; deu a haste ao desconhecido,
guardando consigo a ponta farpada. (cap. II)
Nota: observamos em 1 a reação de Martin perante a
agressão de Iracema não como atitude de defesa, mas de
mágoa perante o ocorrido; em 2 Iracema comporta-se como
indígena e como mulher (símbolo de ternura e amor).
NARRADOR:
A caracterização de Iracema se adequa aos
elementos do romantismo europeu sobre a
mulher: mulher-anjo, virgem, delicada, bela, que
se sacrifica por quem se apaixona;
Ainda que privilegie os sentimentos e
comportamentos de Iracema, o ponto de vista do
narrador recai sobre Martin.
O NARRADOR E A “COR LOCAL”:
Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da
carnaúba;
Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do Sol nascente,
perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros.
(...)
Onde vai a afouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco
terral a grande vela?
(...)
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora;
Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e
um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos ambos
da mesma terra selvagem.
A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o marulho
das vagas:
— Iracema!...
O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos presos na sombra fugitiva
da terra; a espaços o olhar empanado por tênue lágrima cai sobre o jirau, onde
folgam as duas inocentes criaturas, companheiras de seu infortúnio.
Nesse momento o lábio arranca d’alma um agro sorriso.
Que deixara ele na terra do exílio?
Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à calada da noite,
quando a Lua passeava no céu argenteando os campos, e a brisa rugitava nos
palmares. (Cap. I)
A CARACTERIZAÇÃO FÍSICA DE IRACEMA
COM A NATUREZA
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da
graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como
seu hálito perfumado.
Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu,
onde campeava sua guerreira tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal
roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a
sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre
esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros
ameigavam o canto.
Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja, como à doce mangaba que
corou em manhã de chuva.
Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com
o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.
Nota: linguagem solene (lendário), tempo remoto, equilíbrio entre o
homem e a natureza (o “bom selvagem”, Jean-Jacques Rosseau): repare como as
comparações entre a natureza e a heroína se fudem, numa redescoberta patriótica e
ufanista das “lindas várzeas” onde nasceu o romance.
ENREDO
Martin Soares Moreno, personagem histórico
(factual) pela colonização do Ceará, em 1603,
(ficcional) encontra-se com Iracema, filha do pajé
Araquém, da tribo dos Tabajaras, senhores da
montanha;
O visitante Martin encontra em Irapuã (Mel
Redondo), o chefe da tribo, um rival. Um duelo
entre ambos é interrompido pelo grito de guerra
dos Pitiguaras (os senhores do litoral), liderados
por Poti (Antônio Felipe Camarão, personagem
histórico real), amigo de Martin.
ENREDO
Nas entranhas da terra, magicamente abertas por
Araquem, Iracema esconde-se com e torna-se esposa
de Martin, traindo o compromisso de virgem vestal,
sacerdotisa da tribo e portadora do segredo da
Jurema, o segredo da fertilidade da tribo dos
Tabajaras;
Durante o sono da tribo, propiciado por Iracema que a
leva ao bosque da Jurema, onde os guerreiros podem
sonhar vitórias futuras, há o encontro entre Martin e
Poti, que fogem guiados por Iracema. Ela não revela
que houve entre ambos o himeneu (casamento),
enquanto o jovem inicia-se nos segredos da jurema, só
o fazendo após à fuga.
ENREDO
Irapuã encontra os fugitivos e trava-se um
combate entre os Tabajaras e os Pitiguaras,
conduzidos por Jacaúva, irmão de Poti.
Neste combate Iracema pede a Martin que não
mate Caubi (o Senhor dos Caminhos), seu irmão,
e por duas vezes salva a vida do estrangeiro;
Os Tabajaras debandam, deixando Iracema triste
e envergonhada.
ENREDO
Os três então chegam ao território Pitiguara, de
onde viajam para visitar Batuirité, avô de Poti, o
qual denomina Martin de Gavião Branco,
fazendo, antes de morrer, a profecia da
destruição de seu povo pelos brancos;
Iracema engravida, e acompanhada por Poti,
pinta o corpo de Martin, que passa a ser Cotiabo,
o guerreiro pintado, que às vezes tem momentos
de grande melancolia, com saudades da pátria.
ENREDO
Um mensageiro pitiguara leva a Poti um recado
de Jacaúva contando a aliança entre os franceses
e os Tabajaras, Poti e Martin partem para a
guerra;
Iracema fica no litoral, em companhia de uma
seta envolvida em um galho de Maracujá (a
lembrança). Triste, recebe a visita de Jandaia,
antiga companheira, e torna-se a mecejana (a
abandonada), como ela.
ENREDO
Martin e Poti voltam vitoriosos; Martin sente maiores
saudades da pátria; Iracema profetiza a própria
morte, que ocorrerá em seguida ao nascimento do
filho;
Novo combate, nasce Moacir, o filho do sofrimento de
Iracema, que recebe a visita de Caubi, quando o leite
já está secando e as forças acabando;
Mal chega Martin, Iracema morre, após entregar-lhe
o filho e pedir que fosse sepultada sob o coqueiro que o
esposo amava. Nesse lugar nasce o Ceará, colonizado
por Martin, que volta de Portugal, para onde levara o
filho, mas onde não conseguira permanecer, como
sugere o primeiro capítulo do livro.
ENREDO
Iracema tem um argumento histórico baseado na
colonização do Ceará;
Por um lado, há, por parte do escritor, a montagem de
um enredo que procura romantizar o processo de
colonização do Brasil, escamoteando a violência e a
dominação do colonizador sobre o índio por meio do
romance entre os protagonistas;
Por outro lado, ele inaugura o mito heroico da pátria,
de natureza indianista – uma mentirada gentil que
traduz a vontade profunda dos brasileiros de
perpetuar a convenção que dá a um país de mestiços o
álibi duma raça heroica, e a uma nação de história
curta, a profundidade do tempo lendário. (Antonio
Candido, Formação da literatura brasileira)
LINGUAGEM
Belas imagens visuais, sonoridade, ritmo e cadência
poética aliam-se ao levantamento de termos, costumes e
rituais indígenas;
Caráter épico (narrativa em forma de poema que conta
os feitos/façanhas de um herói de um povo; narrativa
oral-escrita de caráter mítico-histórico);
Caráter idealizador dos elementos da “cor local” que
aparecem por uma superposição de imagens e de
comparações originais, adequadas à sugestão do
nascimento de um novo mundo;
Desejo de criar uma nova língua.
Personagens Principais:
Iracema (“lábios de mel”) = mito fundador da nacionalidade; cor local; traços
psicológicos do romantismo europeu; virgem vestal; sentimento x oposições
sociais
Martin = (Martim Soares Moreno, personagem histórico e literário) =
representa o colonizador europeu; amizade a Poti e amor à Iracema =
conciliação entre o branco e o índio no processo de colonizador.
Moacir (“nascido no sofrimento”) = representa o primeiro brasileiro.
Personagens secundários:
Poti (“Antônio Felipe Camarão”, personagem histórico e literário) = aliança
entre pitiguaras e portugueses (amizade com Martim).
Caubi (“senhor dos caminhos”) = irmão de Iracema
Irapuã (“Mel redondo”) = chefe dos tabajaras, se opõe Martim, amor não
correspondido ou proteger a tribo da invasão branca
Baturité (“serra”) = avó de Poti, denomina Martim de Gavião Branco,
profetiza destruição de seu povo pelos brancos.
LINGUAGEM
Belas imagens visuais, sonoridade, ritmo e cadência
poética aliam-se ao levantamento de termos, costumes e
rituais indígenas;
Caráter épico (narrativa em forma de poema que conta
os feitos/façanhas de um herói de um povo; narrativa
oral-escrita de caráter mítico-histórico);
Caráter idealizador dos elementos da “cor local” que
aparecem por uma superposição de imagens e de
comparações originais, adequadas à sugestão do
nascimento de um novo mundo;
Desejo de criar uma nova língua.
[...]
Martim sorriu; e quebrando um ramo do maracujá, a
flor da lembrança, o entrelaçou na haste da seta, e partiu
enfim seguido por Poti.
Breve desapareceram os dois guerreiros entre as
árvores. O calor do sol já tinha secado seus passos na
beira do lago. Iracema inquieta veio pela várzea, seguindo
o rasto do esposo até o tabuleiro. As sombras doces
vestiam os campos quando ela chegou à beira do lago.
Seus olhos viram a seta do esposo fincada no chão, o
goiamum trespassado, o ramo partido, e encheram-se de
pranto.
— Ele manda que Iracema ande para trás, como o
goiamum, e guarde sua lembrança, como o maracujá
guarda sua flor todo o tempo até morrer.
[...]
Iracema, de José Maria de Medeiros, 1884. Óleo sobre tela, 167,5 cm x
250,2 cm. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro (RJ).
Iracema, de Antônio Parreiras, 1909. Óleo sobre tela, 61 cm x 92 cm.
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), São Paulo
(SP).
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu
Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa
da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no
bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do
Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e
nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as
primeiras águas.
Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o
corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da
acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na
folhagem os pássaros ameigavam o canto
Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água ainda a roreja, como à doce mangaba
que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará
as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho
próximo, o canto agreste
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela As vezes sobe aos
ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru te palha
matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá , as
agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que
o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.
Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e
não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam
o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos
ignotos cobrem-lhe o corpo.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu
Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido.
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada, mas logo sorriu.
O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher é símbolo de
ternura e amor. Sofreu mais d'alma que da ferida.
O sentimento que ele pos nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem
lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que
causara.
A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que
gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao
desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.
O guerreiro falou:
- Quebras comigo a flecha da paz?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCAR, José de. Iracema: lenda do Ceará.
Manaus: Valer: 2010 (Projeto Leitura Para a
Juventude).
AMARAL, E.; ANTÔNIO, S.; PATROCÍNIO, M. F.
Iracema. In: Português: redação, gramática,
literatura e interpretação de texto. São Paulo:
Nova Cultural, 1999, p. 369-372.
SETTE, Graça; TRAVALHA, Márcia; STARLING,
Rozário. Iracema. In: Português: linguagens em
conexão. São Paulo: Leya, 2013 (vol. 2), p. 61-63.