Página 5 3 ª E D I Ç Ã O, D E Z E M B R O DE 2012
Entrevista de: Ana Brinca e
Joana Fernandes.
(Entrevista completa em
http://biblieixo.blogspot.pt/)
P.: Sabemos que é médica. Como surgiu a paixão
pelos livros e pela escrita?
G. G.—Sabem, como médica, eu fui confrontada
com algumas situações complicadas. Tive doentes
toxicodependentes, com anorexia, com sida... Nos
meus livros, encontram a presença de temas como
a gravidez, o nascimento, a sida, a alimentação.
Tentei encontrar uma forma de ajudar a evitar
situações como a gravidez na adolescência, a toxi-
codependência. No Lugar dos Afetos, fazem-se
diariamente trabalhos na área da prevenção. Isto
passa muito por vários jogos de afetos, mas sobre-
tudo pelo Gostarzinho, que aborda temas como a
resolução de conflitos, escolhas, decisões.
P.: Conte-nos um pouco do seu percurso até ao
nascimento do Lugar dos Afetos.
G. G.— Eu fui trabalhadora-estudante, comecei a
trabalhar muito cedo... Nasci em Lisboa e, quando
os meus pais se separaram, eu vim para casa dos
meus avós. Em Lisboa, comecei com aulas de balé,
quase a tempo inteiro, no Teatro D. Maria II, e,
depois, noutras vertentes da dança. Comecei a
trabalhar aos catorze anos, e realizei vários traba-
lhos. Fui professora durante quase cinco anos.
Nessa altura, criei um grupo de teatro. Estamos a
falar de uma pessoa que gosta muito de dança,
gosta muito de música, que tem um grupo de tea-
tro e tem paixão absoluta pelo teatro, e que mais
tarde, já médica, esteve muito doente. Foi uma
doença muito grave, deixou muitas sequelas. Aí
comecei o meu primeiro livro, só nesta altura, pois
dantes não tinha tempo, não tinha qualquer possi-
bilidade de escrever. Comecei a escrever, não
quando gostaria de ter começado, mas quando me
foi possível começar a escrever, pois tinha, dadas
as circunstâncias, algum tempo... Gosto muito de
ser médica, mas também gosto muito de ser pro-
fessora. Se tivesse de escolher entre uma e outra,
não sei...acho que não escolhia. Ainda agora, quan-
do os alunos me dizem “Ó professora,...”, eles
enchem o meu coração! O Lugar dos Afetos, eu
não consigo vê-lo sem música, dança, teatro. Não
consigo oferecê-las todos os dias, mas luto seria-
mente para haver aqui uma forma de contar as
histórias, que fazem prevenção e trabalham tam-
bém a área da medicina, com dança, música, tea-
tro, ou seja, o encontro das áreas performativas.
P.: Como surgiu a ideia da arquitetura das casi-
nhas e a sua ligação aos sentimentos?
G. G.—Desenhei a obra durante sete anos, todos os
dias, todas aquelas telhas me passaram pelas
mãos. Quando parti para a construção do Lugar
dos Afetos, eu respeitei nessa construção aquilo
que tinha feito a nível literário. Há uma coerência
bastante grande entre a obra escrita, a edificada e
uma nova que está a surgir...que é um trabalho
muito recente, a nível da multimédia, na constru-
ção de um Lugar dos Afetos on-line.
De aparência frágil, Graça Gonçalves é, no entanto, uma figura de força e de coragem. Com uma infân-
cia difícil, já na juventude o maior desejo era transformar o desafeto em afeto, o desamor em amor.
Sabia que um sonho a esperava, o de “semear os sorrisos nas crianças”. Cumpriu-se o sonho. O seu
lema de vida é transformar as mágoas em gestos de amor, dedicando a sua vida aos outros., tentando
tornar este mundo um pouco melhor.
P.: Como foi concebido este projeto? Que investi-
mento pessoal foi necessário?
G. G.—O investimento pessoal é uma vida inteira.
É não ter férias, não ter pessoalmente nada. Ter
dado tudo o que tinha e o que não tinha. Contraí
empréstimos muito sérios e tenho que os pagar,
no meu nome...
P.: Diga-nos como resultou o processo de erguer
um sonho e como ultrapassou as dificuldades.
G. G.—O Lugar dos Afetos está vivo! A nível esta-
tal , esta fundação tem uma característica que
talvez devesse ser motivo de orgulho aqui para
Eixo. Apoio que teve esta fundação? Zero euros!
Como se faz isto? Eu não sei outra forma, é
trabalhando. Eu não sabia que fazia móveis,
têxteis, louça...eu nunca tive uns brincos, nunca,
e desenhei já centenas de peças de joalharia.
Eu não sei outro processo, é trabalhar muito, é a
única forma e de manter isto vivo...e trabalho
muito mais do que como médica, não tenho
dúvida nenhuma! Não tem comparação!
P.: Que projetos se desenvolvem neste espaço?
Quem cá vem, o que pode esperar?
G. G.—Vocês procuram obras por temas, por
exemplo, querem vir cá trabalhar ou ter um
encontro sobre sexualidade ou alimentação, os
temas que quiserem… E, se na vossa idade se
sentem aqui muito bem, também se sentem
bem aqui os seniores, que não querem voltar
para casa...É bonito estar aqui a escola de Eixo,
porque nós só temos cinco por cento de visitan-
tes de Aveiro. Noventa e cinco por cento são
visitas de longe, de Albufeira, de Faro, de Bra-
gança, de Pampilhosa da Serra, que vai na déci-
ma sétima visita, de Fátima...já compram farinha
aqui ao Zé Moleiro e fazem o pãozinho em for-
mato de coração, que eu acho uma doçura! Já
vêm do do estrangeiro, e quem vem sabe ao que
vem! Tem vindo muita gente de Angola, e que-
rem respostas, por exemplo, relacionadas com o
jogo Flor da Idade.
O mais importante é que pense um bocadinho
sobre os sentimentos e emoções e que encontre
um caminho para o coração de si próprio e para
o coração dos outros. Muito mais importante é
que não se esqueça de transformar as mágoas,
os sofrimentos em gestos de amor, o que não é
nada fácil...
P.: Sente-se reconhecida pelo seu trabalho?
G. G.— Tenho este corpo e qualquer dia o des-
pirei, deixo de estar cá, mas o que interessa é
o que eu deixei semeado. Vou contar o que
aconteceu, há poucos dias, no Lugar dos Afe-
tos. Eu cheguei por volta das seis e meia da
tarde e, à partida, já não estaria ninguém. E
encontrei 150 coisinhas pequenininhas, de
cinco aninhos, finalistas. Finalistas? Do Jardim
-escola! Perguntei de onde eram. De Portimão!
A que horas chegariam a casa? Quando
alguém com cinco anos me diz “Nós andamos
há anos a juntar dinheiro para vir ter com a
Graça Gracinha! Vamos todos dormir a um
hotel!”, é uma delícia! Isto também acontece
com muitos idosos! Aquele Esposende solidá-
rio tantas vezes que vem! O colégio Nossa
Senhora do Rosário, semana sim, semana
sim, está cá.
P.: Pode partilhar os projetos que tem para o
futuro?
G. G.—No imediato, é de facto o lugar dos Afe-
tos on-line e o Lugar dos Afetos Itinerante, que
é quando não podem fazer aqui a visita. Os
responsáveis do Ministério de Educação de
Moçambique vão cá estar amanhã e coloca-
ram a hipótese de haver lá réplicas do Lugar
dos Afetos, ou parte deste Lugar, por exemplo,
redes de jardins do Gostarzinho. Tenho ainda
o projeto para ser apresentado nos Estados
Unidos no dia três de dezembro.
P.: Qual é a casinha que mais prefere?
G. G.—Aqui estão cinco deditos e, ainda que
um seja mais tortinho e outro mais direitinho,
são os meus cinco dedos...e não me pergun-
tes qual é o livro que eu gosto mais! Eu gosto
deles com igual carinho! Aquela casinha com a
qual mais me identifico, porque a minha alma
vive completamente nessa área, é a casa
Romance.
P.: Se pudesse escolher um afeto, qual seria o
preferido?
G.G.—O Amor! O Amor, oh! O Amor! Sem olhar
para trás, e toda a construção dele.
P.: Conte-nos um episódio que a tenha marca-
do nesta aventura dos afetos.
G. G.—Há tantos! Posso contar a história de
uma pessoa autista… Eu passei naquele cami-
nho que vai para o Gostarzinho e ele caiu. Não
se magoou nada, mas olhou muito para mim,
quando me aproximei. Quando subiu, sem
uma única palavra, tirou um pin que tinha do
Noddy, deu-me um beijinho e ofereceu-mo.
Tenho-o na minha secretária. E hei de ter sem-
pre! Ele deu-me aquilo de que mais gostava!
Temos também aqui histórias muito lindas de
namoro. Não nos veem, não nos ouvem, estão
no Recanto dos Namorados, e é uma delícia!
Às vezes, avisam ao que vêm, tal como pedir
namoro, pedir em casamento...Então, eu faço
os bolinhos chamados Mimos de Ternura e
escrevo no chocolate: – Queres casar comigo?
P.: Quando não está a trabalhar, o que gosta
mais de fazer?
G. G.— Só trabalho. Gostava de descansar,
mas não me permito fazer isso, pelo menos
nesta fase. Se eu tivesse esse tempo, gostava
de ler, ler..adoro ler! Gosto de ler, de sentir a
terra, o silêncio, sou uma pessoa do silêncio.