Sétimo Livro - Capítulo 14
Corporalmente, Saulo ficou prostrado, cego
de tal modo alquebrado que, se o poder
divino não o sustentasse, teria morrido
logo. Interiormente, porém, mudou-se em
outro homem, mais radicalmente do que
quando passou do nada para a existência.
Ficou mais longe de suas primeiras dispo
sições, do que a luz das trevas, e do que o
supremo céu ao ínfimo da terra, porque
passou da imagem e semelhança de um
demônio, a de um supremo e abrasado
serafim.
Foi desígnio da sabedoria e oni
potência divina, com esta milagrosa con
versão, triunfar de Lúcifer e seus demôni
os. Foi divina vontade que, em virtude da
Paixão e Morte de Cristo, o dragão, com sua
malícia, ficasse vencido por meio da natu
reza humana, contrapondo, num homem,
os efeitos da graça e Redenção, aos do
pecado de Lúcifer e seus efeitos.
Assim como em poucos momen
tos, por sua soberba, Lúcifer passou de
anjo a demônio, também a virtude de Cris
to, pela graça, fez Saulo passar de demônio
a anjo. Em a natureza angélica desceu à
suma fealdade; em a natureza humana, a
maior fealdade subiu à perfeita beleza. Das
suprema alturas do céu, Lúcifer desceu ao
profundo da terra, inimigo de Deus; um
nomem subiu da terra ao supremo céu,
amigo de Deus.
Onde abundou o pecado, superabundou a
graça
262. Esta vitória não seria tão
magnífica, se o Vencedor não desse ao
homem, mais de quanto Lúcifer perdera.
por isto, quis o Onipotente acrescentar
esta grandeza ao triunfo que, em Saulo,
obtinha sobre o demônio.
Lúcifer, ainda que caiu de uma
Braça muito superior, não perdeu a visão
beatífíca pois nunca a tivera, porque não
mereceu nem se dispôs a merecê-la, pelo
contrário, a desmereceu. Paulo, entretan
to, no momento que se dispôs para ser
justificado e recebeu a graça, foi-lhe
comunicada também a glória, e viu clara
mente a Divindade, ainda que de passa
gem.
Oh! insuperável virtude do poder
divino! Oh! eficácia infinita dos méritos da
vida e morte de Cristo! Justo e razoável era,
certamente, que se a malícia do pecado,
num instante mudou o anjo em demônio,
fosse mais forte a graça de nosso Reden
tor. Esta superabundou ao pecado (Rm 5,
20), levantando dele um homem e colocan
do-o não só em tanta graça, mas ainda em
tanta glória.
Este prodígio foi maior do que ter
criado os céus e a terra, com todas suas
criaturas; maior que dar vista a cegos,
saúde a enfermos e ressuscitar mortos.
Nós pecadores, felicitemo-nos pela espe
rança que esta maravilhosa justificação
nos desperta, pois temos por redentor, pai
e irmão o mesmo Senhor que justificou
Paulo. E não é menos santo, nem menos
poderoso para nós, do que foi para ele.
Revelações recebidas por Paulo
263. Durante o tempo que Paulo
esteve caído no solo, contrito de seus
pecados, todo renovado com a graça
justificante e outros dons infusos, foi ilu
minado e preparado em suas potências
interiores como convinha. Assim prepara
do, foi elevado ao céu empíreo, que ele
denominou terceiro céu, confessando tam
bém não saber, se este rapto foi no corpo
ou só em espírito (2 Cor 12, 2). Ali viu,
intuitiva e claramente a Divindade, com
extraordinária visão, ainda que de passa
gem.
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