Eis seno quando, num zurro
Se ouve a risada do burro:
— Foi sim que eu estava li!
Eo papagaio que é gira
Pôs-se a falar: — É mentira!
Os bichos de pena, em bando.
Reclamaram protestando.
O pombal todo arrulhava:
— Cruz credo! Cruz credo!
Brava
A arara a gritar comesa:
— Mentira? Arara. Ora essa!
Cristo nasceu! — canta o galo.
- Aonde? — pergunta o boi
Num estäbulo! — o cavalo
Contente rincha onde foi.
Bale o cordeiro também:
Em Belém! Mé! Em Belém!
Eos bichos todos
O papagaio caturr
E de raiva Ihe aplicaram
Uma grandissima surra
O filo que eu quero ter
É comum a gente sonhar, eu sei
¡Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer
Vejo um bergo e nele eu me debrugar
Com o pranto a me correr
E assim chorando acalentar
O filho que eu quero ter
Dorme, meu pequenininho
Dorme, que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem,
De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim.
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar là de onde eu vim
Um menino sempre a me perguntar
Um porqué que no tem fi
Um filho a quem só queira bem
Ea quem só diga que sim.
Dorme, menino levado
Dorme, que a vida jä vem
Ter pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem.
Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me de
Sentirthe a barba me rogar
No derradeiro beijo se
¡bém sua
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-he a voz a me embalar
Num acalanto de adeus
Dorme, meu pai sem cuidado
Dorme, que ao entardecer
eu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter.
Menininha
Menininha do meu coraçäo
Eu só quero voce
A très palmos do chiio
Menininha ndo cresga mais no
ique pequenininha na minha cançäo
Senhorinha levada
Batendo palminha
Fingindo assustada
Do bicho-papäo.
Menininha, que graga é vocé
‘Uma coisinha assim
Comegando a viver
Fique assim, meu amor
Sem erescer
Porque o mundo é ruim, & ruim e vocé
Vai softer de repente
Uma desilusdo
Porque a vida é somente
‘Teu bicho-papdo.
Fique assim, fique assim
Sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
Também nio se esquega de mim
Quando voce souber enfim
De tudo o que eu amei.
» SA
— SY
Sempre que o sol
Pinta de anil
Todo o céu
O girassol
Fica um gentil
Carrossel
O girassol & o carrossel das abelhas,
Pretas e vermelhas
Ali ficam elas
Brincando, fedelhas
Nas pétalas amarelas.
Vamos brincar de carros
pessoal?”
“Roda, roda, carrossel
Roda, roda, rodador
Vai rodando, dando mel
Vai rodando, dando flor.”
— Marimbondo náo pode ir que é bicho mau!
— Besouro é muito pesado!
Borboleta tem que fingir de borboleta na entrada!
Dona Cigarra fica tocando seu realejo!
“Roda, roda, carrossel
Gira, gira, girassol
Redondinho como o céu
Marelinho como o sol.”
Eo girassol vai girando dia afora.
girassol & 0 carrossel das abelhas,
zen
O relögio
Passa, tempo, ic-tac
Tic-tae, passa, hora
‘Chega logo, tictac
Tic-tac, e vai-te embora
Passa, tempo
Bem depressa
Nao atrasa
Nao demora
Que já estou
Muito cansado
Hi perdi
‘Toda a alegria
De fazer
Meu tie-tac
Dia e noite
Noite e dia
Tie-tae
Tie-tac
Ti
34
A porta
Eu sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Mas niio há coisa no mundo
Mais viva do que uma porta
Eu abro devagarinho
Pra passar o menininho
Eu abro bem com cuidado
Pra passar o namorado
Eu abro bem prazenteira
Pra passar a cozinheira
Eu abro de supetäo
Pra passar o capitdo,
Só niio abro pra essa gente
Que diz (a mim bem me importa...)
Que se uma pessoa é burra.
É burra como uma porta.
Eu sou muito inteligente!
Eu fecho a frente da casa
Fecho a frente do quartel
Fecho tudo nesse mundo
Só vivo aberta no eéu!
Acasa
Era uma casa
Muito engragada
No tna teto
Näo tna nada
Ninguém podía
Entrar nela no
Porque na casa
Nao tinha cho
Ninguém podia
Dormir na rede
Porque na casa
‘Nao tinha parede
Ninguém podia
Fazer pipi
Porque penico
No tina alí
Mas era feita
‘Com muito esmero
Na rua dos Bobos
Nümero zero.
O ar (0 vento)
Estou vivo mas nao tenho corpo
Por isso é que eu nño tenho forma
Peso eu também náo tenho
‘io tenho cor.
Quando sou fraco
Me chamo brisa
E se assobio
Isso 6 comum.
Quando sou forte
Me chamo vento
‘Quando sou cheiro
Me chamo pumt
Os bichinhos e o homem
Nossa irmä, a mosca
É fein e tosca
Enquanto que o mosquito.
É mais bonito
É mais bonito.
Nosso irmáo, besouro
Que é feito de couro
Mal sabe voar
Mal sabe voar.
Nossa irmä, a barata
Bichinha mais chata
É prima da borboleta
Que é uma careta
Que é uma careta.
Nosso irmáo, o grilo
Que vive dando estrilo
Só pra chatear
Só pra chat
Eo bicho-do-pé
Que gostoso que ele é
Quando dá coceira
Coga que náo é brincadeira.
E o nosso irmáo carrapato,
Que é um outro bicho chato.
É primo-irmáo do bacilo
Que € irmáo tranquilo
Que é irmáo tranquilo.
E o homem que pensa tudo saber
No sabe o jantar que os bichinhos vio ter
Quando o seu dia chegar
Quando o seu dia chegar.
= Te À
O pinguim
Bom dia, pinguim
‘Onde vai assim
Com ar apressado?
Eu näo sou malvado
No fique assustado
Com medo de mim,
Eu só gostaria
De dar um tapinha
No seu chapéu-jaca
Ou bem de levinho
Puxar o rabinho
Da sua casaca.
i a ES
i os
"ik Ma ds
¿MEA Be
45
O elefantinho
‘Onde vais, elefantinho
Correndo pelo caminho
lado?
Andas perdido, bichinho
‚petaste o pé no espinho
Que
Assim to desconsol
ntes, pobre coitado?
ou com um medo danado.
Encontrei um passarinho!
O leño
inspira em William Blake)
Leño! Ledo! Leño!
Rugindo como 0 troväo
Deu um pulo, e era uma vez
Um cabritinho montés.
Leño! Leño! Leño!
És o rei da criagio!
Tun goela é uma fornalha
Teu salto, uma labareda
Tua garra, uma navalha
Cortando a presa na queda.
Leño longe, leño perto
Nas areias do deserto,
Leño alto, sobranceiro
Junto do despenhadeiro,
Leño na caga diurna
Saindo a correr da furna,
Leño! Ledo! Ledo!
Foi Deus que te fez ou ni
O salto do tigre € rápido
‘Como o raio; mas náo hä
Tigre no mundo que escape
Do salto que 0 leño dá.
Nao conheço quem defronte
O feroz rinoceronte,
Pois bem, se ele vé o leño
Foge como um furacdo,
Leño se esgueirando, à espera
Da passagem de outra fea,
‘Vem o tigre; como um dardo.
Cai-the em cima o leopardo
E enquanto brigam, tranquilo
O leño fica olhando aquio.
Quando
Mata um com cada mio.
Leño! Ledo! L
És o rei da cria
O pato
La vem o pato
Pata aquí, pata acolá
Lá vem 0 pato
Para ver o que & que há.
O pato pateta
Pintou o caneco
Surrou a galinha
Bateu no marreco
Pulou do poleiro
No pé do cavalo,
Levou um coice
Criou um galo.
Comeu um pedago
De jenipapo
Ficou engasgado
{Com dor no papo
Caiu no pogo
Quebrou a tigela
“Tantas fez o mogo
Que foi pra panela.
A cachorrinha
Mas que amor de cachorrinha!
Mas que amor de
horrinha!
Pode haver coisa no mundo
Mais branca, mais bonitinha
Do que a tua barriguinha
Crivada de
Pode
Mais travessa, mais tontinha
mamiquinha?
wer coisa no mundo
Que esse amor de cachorrinha
Quando vem fazer festinha
endo a traseirinha?
O bico de päo, o Corcovado
O gril
Uns gräos de sal derramados,
Ovelhinhas pelo monte.
um rinoceronte.
Y
O peixe-espada
Quando um peixe-espada
VE outro peixe-espada
Pensam que eles brigam?
Qual bi
m qual nada!
Poderio no máximo
Brincar de duelo
Mas brigar só brigam
Como peixe-martelo
Ou com o tubario.
A morte de meu carneirinho
Nao teve flores
Nao teve velas
Nao teve missa
Caixdo também...
Foi enterrado
Junto à maré
Por operários
Mesmos do trem.
A Mor de orvalho
Pendeu da nuvem
E pelo chao
Despetatou...
O céu ergueu
A hóstia do sol
E o mar em ondas
Se ajoelhou...
Cortejo lindo
Maior näo houve
Do que o da morte
Desse amiguinho:
lam vestidas
Com a là das nuvens
Todas as almas
Dos carneirinhos!
Os gaturamos
Trinaram hinos
No altar espléndido
Da madrugada;
Eo vento brando
Desfeito em rimas
Foi badalando
Pelas estradas!
A morte do pintainho
Quem matou o pintainho
Eu, disse o pato
Com meu pé chato
Eu matei o pintainho,
Quem viu ele morto?
Eu, disse o mocho
Com meu olho torto
Eu vi ele morto,
‘Quem chupou seu sangue?
Eu, disse o moree
Que nâo sou eg
Eu chupei seu sangue.
‘Quem Ihe deu mortalha?
Eu, disse a aranha
Com teia e artimanha
Eu Ihe dei mortalha
Qu
Eu, o louva-a-deus
n vai ser 0 padre?
Em nome de Deus
Eu serei o padre.
Quem será o sacrista?
Eu, disse o fran
Com a minha crista
Quem leva o caixdo?
Eu, disse o gavido
Sei bem por que náo
Eu levo o caixio,
ree o EE E
Quem será o coveiro?
Eu, a toupeira
Quem fara o túmulo?
Eu, o joño-de-barro
Pois que tenho barro.
Eu farei o túmulo,
Quem leva a vela
Eu, o vaga-lume
Eu acendo o lume
E eu levo a vela.
Quem vai cantar?
Eu, o pardal
La-la-i-la
Quem leva as coroas?
Já que näo dou rima
Eu levo as coroas,
Quem toca o sino?
Disse o suino:
Eu mais 6 boi
Nós tocamos o sino,
Quem vai na frente?
Eu, 0 periquito
Porque sou bonito
Eu vou na frente
Todo o pássaro do ar
Foi chorar lá no seu ninho
Ao ouvir tocar o sino
Pelo pobre pintainho,
3
Sobre o autor
Vinicius de Moraes nasceu em 1913, no Rio de Janeiro. Seus amigos cos-
n chamá-lo carinhosamente de “poetinha”. Era extremamente cul-
10 € está entre os melhores e mais populares poetas brasileiros. Formado
em direito, durante muito tempo morou em Los Angeles, Pa
i, Londres e
outras cidades no exterior, como diplomata.
Mas trabalhar com gravata n
cando o mundo erudito pelo popular: ajudou a A
sou a fazer samba com a
Garota de Ipanema e Chega de saudade, as cançôes mais conhecidas da
o era para ele. Aos poucos, Vinicius foi tro-
¡dar a bossa nova e pas-
mesma perfeigäo com que eserevia Sonetos
bossa nova, sio parcerias de Vinicius com Tom Jobim.
4 arca de Noé & 0 único livro infantil de Vinicius de Moraes. Em 1980,
ele comegou a trabalhar com o compositor Toquinho na versio musical
dos poemas. Foi o último projeto do poeta: no dia 9 de julho, depois de
uma reunido com o parceiro, Vinicius morreu em casa. O disco 4 arca de
Noé saiu em 1980 € teve um segundo volume em 1981, reunindo artistas
‘como Elis Regina, Ney Matogrosso, Chico Buarque e Moraes Moreira.
Palavra do ilustrador
Que eu nasei em Belo Horizonte muita gente ja sabe. O ano näo vou dizer,
embora muita gente também já saiba. Mesmo sem me conhecer, voce
pode adivinhar que pelas minhas mäos passou um exemplar do livro ou
do disco A arca de Noé, e que eu li, reli e cantei seus poemas alegrando
ncontros com sobrinhos e tantas outras crianças.
Tamanha é a grandeza e simplicidade de Vinicius que criar as ilustragdes
para os poemas de A arca de Noé — já tio repletos de imagens — foi dos
ores desafios, Confesso que, como leitor, eriei minhas próprias
imagens para esses poemas ¢ intimamente venho conv
ido feliz com el
Passado o susto do convite, aos poucos fui me recompondo € me cons-
cientizando da felicidade e da honra que é ilustrar essa obra. A partir dai,
procurei elaborar ilustragóes que ndo tivessem a intengáo de, vamos dizer,
“capturar” os poemas, e sim de dar outras dimensdes ao tema de cada um
deles, Considerei-os passagens para criar ilustragdes que registrassem meu
‘sentimento como leitor e ilustrador do poeta. Assim conduzi a criagäo das
imagens desta ediçäo; na verdade, Icitor e ilustrador vieram se misturando
até o final do livro no feliz es
ontro que foi ilustrar esses poemas,
Nelson Cru
A area desconjuntada
Parece que vai ruir
os pulos da bicharada
Toda querendo sair
Vai! Nao vai! Quem vai pri
As aves, por mais espertas
Saem voando ligeiro
Pelas janelas abertas.
Enquanto, em grande atropelo.
Junto a porta de saida