Platão - Protágoras (trechos iniciais)

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About This Presentation

Parte inicial do Diálogo de Platão


Slide Content

1º seminário: Protágoras, Platão
tradução (do grego) e notas
*
de Ana da Piedade Elias Pinheiro
Lisboa: Relógio D´Água Editores, 1999



















                                                
 
*
 As notas da tradutora foram reduzidas em número e t amanho. Nas datas
referidas em nota é omitida a referência a.C..  

 
 
2
Companheiro
Sócrates

(309) Comp. – De onde vens tu, Sócrates? [...] Da caça ao jovem
Alcibíades
1
? [...] Quando o vi, de manhã, pareceu-me já um bel o
homem [...], um homem feito, até com a barba a desp ontar.
Sóc. – [...] Não és tu admirador de Homero, que diz que a idade
mais grata é a da primeira barba [...]?
Comp. – É verdade. E o que há de novo? Vens de junto dele , não?
Que tal te tratou o nosso jovem?
Sóc. – Bem – pelo menos, pareceu-me – [...] pôs-se ao me u lado e
fez várias intervenções em meu favor. Sim, venho ag ora mesmo de
junto dele. [...] [Mas] apesar de ele estar present e, não lhe
prestei grande atenção e, muitas vezes, até me esqu eci dele.
Comp. – [...] Que coisa extraordinária vos terá acontecid o[...]?
Não me diga que encontraste alguém mais belo [...]?
Sóc. – E muito mais!
Comp. – O que dizes? Aqui da cidade ou estrangeiro?
Sóc. – Estrangeiro.
Comp. – De onde?
Sóc. – De Abdera.
Comp. – E pareceu-te ser assim tão belo esse estrangeiro a ponto
de o achares mais belo que o filho de Clínias?
Sóc. – Como é que quem é mais sábio, meu caro, não há de p arecer
o mais belo?
Comp. – Então, vens de te encontrares com um sábio, Sócra tes?
Sóc. – E, certamente, o mais sábio de todos quantos por aí há,
se concordares que Protágoras
2
é o mais sábio de todos.
                                                
 
1
Uma das acusações do processo que, em 399, conduzi ria Sócrates à morte fora
a de corromper a juventude, atribuindo-lhe parte da responsabilidade nas
opções políticas daqueles que, quando jovens, com e le se relacionaram,
nomeadamente Alcibíades. General e político atenien se (c.450-440), Alcibíades
assumiu, em 420, a chefia da ala extremista dos dem ocratas e a sua ânsia de
imperialismo trouxe a Atenas conseqüências desastro sas, entre as quais as
decorrentes da expedição fracassada à Sicília, em 4 15. Neste mesmo ano,
acusado de atos sacrílegos, fugiu para Esparta, ond e terá auxiliado campanhas
inimigas. Regressado a Atenas em 407, rapidamente a traiu, de novo, as
suspeitas populares, razão que o levou a afastar-se mais uma vez da cidade.
Morreu (assassinado, segundo a tradição), na Ásia e em circunstâncias pouco
claras.  
2
Natural de Abdera, na costa do Nordeste grego, era , segundo Platão, o mais
velho da primeira geração de sofistas. Nascera poss ivelmente por volta de 490
e terá morrido com cerca de 70 anos. Visitou Atenas várias vezes, tendo,
segundo a tradição, se relacionado com Péricles. Fi cou conhecido, sobretudo,
pela famosa máxima “o homem é a medida de todas as coisas”, base das
doutrinas antropocêntricas de todas as épocas.  

 
 
3
Comp. – O que dizes? Protágoras está na cidade?
Sóc. – Está, e há três dias.
Comp. – E vens agora mesmo de conversar com ele?
(310) Sóc. – Precisamente, venho de dizer e ouvir muita coisa.
Comp. – E [...] não vai nos descrever esse encontro? [...]
Sóc. – Pois, muito bem. E vou ficar grato, se me escutar em.
Comp. – E nós a ti, se contares.
Sóc. – [...] Será assim um agradecimento mútuo. Escutem, então:
Esta noite passada, ainda antes do amanhecer, Hipó crates,
o filho de Apolodoro e irmão de Fáson, bateu na min ha porta, com
toda a força, e, quando lha abriram, precipitou-se imediatamente
para o interior, a gritar, com voz forte:
– Sócrates, já acordaste ou ainda dormes?
E eu, reconhecendo-lhe a voz, exclamei:
– Este é o Hipócrates! Não me vens trazer nenhuma m á notícia,
não?
– Não – respondeu ele. – Nada, senão boas notícias.
– Diz lá, então – repliquei eu. – O que há? A que v ens a esta
hora?
– Chegou Protágoras! – respondeu ele, de pé junto d e mim.
– Antes de ontem. Só agora é que soubeste?
– Sim, pelos deuses, só à noitinha. – E, ao mesmo t empo,
tateando o leito, sentou-se aos meus pés e disse: – À noitinha e
bastante tarde, quando voltei de Énoe; [...] vê lá que meu
escravo, o Sátiro, fugira, e eu estava para te avis ar que ia
procurá-lo, mas esqueci-me, por causa de qualquer o utra coisa.
Quando voltei, tínhamos acabado de jantar e estávam os para nos
deitar quando meu irmão disse que Protágoras tinha chegado.
Estive para vir logo ter contigo, mas depois me par eceu que já
era [...] tarde. Mas, assim que o sono em que caíra [...] me
deixou, me levantei e corri para cá, sem demora.
Eu, que lhe conheço a energia e a paixão, perguntei :
– O que tens tu com isso? Por acaso ofendeu-te, Pro tágoras?
– Sim, pelos deuses – respondeu ele com um sorriso – porque só
ele é sábio e não me faz sê-lo [...].
– Mas, por Zeus – disse-lhe eu –, se lhe deres dinh eiro e o
persuadires, ele há de te fazer sábio [...] também.
– Ó Zeus e deuses, se fosse assim! Não pouparia nem o que é meu
nem o dos meus amigos. Mas, é mesmo por essa razão que venho ter
contigo, para lhe falares de mim; porque eu não só sou muito
novo como ainda nunca vi nem ouvi Protágoras, pois da última vez

 
 
4
que ele aqui esteve eu ainda era uma criança. Mas t odos o
aplaudem, Sócrates, e dizem que é no falar o mais h ábil dos
homens. Porque não vamos já para lá, para o apanhar mos em casa?
(311) Pelo que ouvi dizer, está [...] na casa de Cálias
3
[...].
Vamos lá!
– Não vamos ainda, meu amigo, que é muito cedo; vam os antes para
o pátio e façamos hora [...] enquanto não nasce o d ia [...] E
mais, Protágoras passa a maior parte do tempo em ca sa, de modo
que não te preocupes; [...] lá o encontraremos.
Levantamo-nos, então, e fomos dar uma volta pelo pá tio, e
eu resolvi experimentar Hipócrates e pô-lo à prova, fazendo-lhe
algumas perguntas:
— Diz-me uma coisa, Hipócrates, estás disposto agor a a procurar
Protágoras e a oferecer-lhe o teu dinheiro como sal ário por ele
se ocupar de ti. Mas porque é que o procuras? E par a te tornares
o quê? Se, por hipótese, tivesses intenção de procu rar o teu
homônimo, Hipócrates de Cós, o dos Asclepíades
4
, para lhe
ofereceres o teu dinheiro [...], se alguém te pergu ntasse “Diz-
me, Hipócrates, estás disposto a pagar um salário a Hipócrates
por ele ser o quê?”, o que responderias?
— Responderia que por ele ser médico.
— E para te tornares o quê?
— Para me tornar médico.
— E se tencionasses procurar Policleto, de Argos, e Fídias, de
Atenas
5
,[...] se alguem te perguntasse “Pagas esse dinheir o a
Policleto e a Fídias porque achas que eles são o qu ê?”, o que
responderias?
— Responderia que porque são escultores.
— E para te tornares o quê?
— E óbvio que um escultor!
                                                
 
3
Cálias era filho de Hiponico, general ateniense, e neto de outro Cálias,
notável em Atenas na segunda metade do século V por sua grande fortuna e
pelas funções diplomáticas que exercera. Sua mãe fo i mulher de Péricles, de
quem teve os dois filhos referidos no texto, e sua irmã casou com Alcibíades.
Platão apresenta-o como entusiasta dos sofistas, a quem abria as portas da
sua casa e por cujo ensino pagava somas astronômica s. A comédia retratou-o
como exemplo do esbanjador que, em pouco tempo, dis sipa o patrimônio herdado. 
4
Não se sabe se o termo designava aqueles que se di ziam descendentes de
Asclépio ou, apenas, aqueles que se julgavam inspir ados por ele. A
importância da referência decorre da sua associação com o famoso médico de
Cós, uma vez que prevalece a dúvida (por falta de p rovas arqueológicas) de
qual seria a relação dessa escola médica (de que, n ão tendo sido o fundador,
era o mais famoso representante) com o santuário do deus da saúde naquela
ilha. 
5
Dois dos mais célebres escultores e arquitetos gre gos do século V. 

 
 
5
— Muito bem! — disse-lhe eu. — Agora vamos, tu e eu , procurar
Protágoras, dispostos a pagar-lhe [...] por se ocup ar de ti...
Se os nossos bens forem suficientes para o persuadi rmos, mas, se
não, [dispostos] a gastarmos até os dos nossos amig os. Se, por
acaso, por estarmos assim tão empenhados neste prop ósito, alguém
perguntasse: “Digam lá, Sócrates e Hipócrates, você s têm
intenção de oferecer os vossos bens a Protágoras po r ele ser o
quê?”, o que lhe responderíamos? Que outro nome ouv imos já
referir a propósito de Protágoras? Tal como de Fídi as que é
escultor e de Homero que é poeta, que designação ou vimos dar a
Protágoras?
— Bom, costumam dizer do nosso homem que é sofista.
— De modo que vamos entregar os nossos bens a um so fista?
— Precisamente!
(312) — Então, e se alguém te fizesse mais esta pergunt a: “E
procuras Protágoras para te tornares o quê?”
Ele corou — de modo visível porque começava a ficar claro
— e disse:
— Se o caso é semelhante aos anteriores, é evidente que para me
tornar um sofista.
— Mas, pelos deuses! — exclamei eu. — E tu não terá s vergonha de
te apresentares aos Helenos na qualidade de sofista ?
— Claro, Sócrates, por Zeus; isto se for mesmo prec iso que o
diga [...]
— Ora bem, Hipócrates, talvez não te pareça semelha nte o ensino
que vais encontrar junto a Protágoras e aquele que recebeste
junto aos professores das primeiras letras, de cíta ra e de
ginástica?
6
Com efeito, estudaste cada uma dessas disciplinas
não como uma técnica (para te tornares um profissio nal), mas
para teres cultura, como convém ao leigo e ao homem livre.
— Parece-me, precisamente, que o ensino de Protágor as é
semelhante a esse.
— Sabes, então, o que estás a ponto de fazer ou des conhece-lo?
— Que queres dizer?
— Que estás a ponto de confiar a tua alma aos cuida dos de um
homem que é, como dizes, um sofista. Contudo me adm iraria muito
                                                
 
6
Até o aparecimento dos sofistas, a educação atenie nse era apenas elementar
e desenvolvia-se em três níveis: o treino físico, o ensino da música e,
depois, a aprendizagem da escrita e da leitura. Com esses mestres aprendera a
geração que, na batalha de Maratona, trouxera a gló ria a Atenas. Essa
educação era ainda de caráter aristocrático: destin ava-se sobretudo àqueles

 
 
6
se soubesses o que é um sofista. E, se o ignoras, n ão sabes nem
a quem entregas a tua alma, nem se é uma coisa boa ou má.
— Mas, eu acho que sei — respondeu ele.
— Diz-me, então, o que pensas que é um sofista?
— Bem, penso que, como o próprio nome indica
7
, é aquele que
possui uma sabedoria.
— Ora bem — repliquei eu —, essa é também a definiç ão que se dá
a propósito dos pintores e dos arquitetos, que são aqueles que
possuem uma sabedoria, mas se alguém nos perguntass e: “Que
sabedoria possuem os pintores?”, dir-lhe-ía-mos que a da
reprodução das imagens e o mesmo dos outros. Mas, s e alguém nos
perguntar: “Em que é que o sofista é sábio?”, o que lhe
responderemos? É mestre em que ofício?
— O que diremos, Sócrates, se não que é mestre em h abilitar os
outros a falar?
— Talvez disséssemos a verdade, mas, claro que não é suficiente,
porque nossa resposta levantaria outra pergunta, so bre o assunto
em que o sofista habilita os outros a falar. Do mes mo modo como
o citarista, eu presumo, habilita a que se fale sob re a matéria
de que sabe, sobre a arte de tocar cítara, não é ve rdade?
— É.
— Pois bem, e o sofista habilita os outros a falar sobre o quê?
— É óbvio que também sobre a arte que conhece.
— É bem provável! E que matéria é essa em que ele, sofista, é
sabedor e torna sabedor o seu discípulo?
— Por Zeus — respondeu ele — já não sei mais o que posso te
dizer.
(313) Em seguida, continuei eu:
— E agora? Vês o tipo de risco a que vais expor a t ua alma? Se
te fosse preciso confiar o corpo a algo que implica sse riscos,
quer fosse bom, quer fosse mau, ponderarias durante muito tempo
se o confiavas ou não e chamarias os teus amigos e familiares
para te aconselhares, refletindo durante dias a fio . Tratando-
se, contudo, de algo muito mais importante que o co rpo, a tua
alma, na qual se sediam todas as tuas ações, boas o u más,
consoante ela for boa ou má, a este propósito, não consultas nem
                                                                                                                                            
 
que possuíam mais recursos e visava, essencialmente um ideal de perfeição,
atingida pelo equilíbrio entre a formação física e a formação moral. 
7
À letra, aquele que é sábio em coisas sábias. Sophistês deriva do verbo
sophizesthai, “ser sábio”. É precisamente essa relação com o verb o que
assinala o aspecto da transmissão do saber de que o s sofistas fizeram
profissão e que o termo sophos (embora tenha sido seu sinônimo) não possuía.  

 
 
7
o teu pai, nem o teu irmão, nem nenhum de nós que s omos teus
companheiros, para saberes se hás-de confiar ou não a tua alma a
este estrangeiro recém-chegado. Antes, pelo que diz es, ouviste à
noitinha que ele tinha chegado e vens, mal o dia am anhece, sem
ouvires uma palavra ou um conselho sobre essa quest ão — se deves
ou não confiar-te a ele —, disposto a gastar os teu s bens e os
dos teus amigos, já que decidiste, custe o que cust ar,
freqüentar a companhia de Protágoras, que não conhe ces — pelo
que dizes — e com quem nunca falaste. Chamas-lhe so fista, mesmo
parecendo não saberes o que é esse sofista, a quem estás
disposto a confiar-te.
E ele, depois de me ouvir, assentiu:
— Pelo que tu dizes, é o que parece.
— Pois é, Hipócrates, não achas que o sofista é uma espécie de
comerciante ou varejista de produtos, com os quais a alma se
alimenta? Pois a mim é o que me parece.
— E a alma alimenta-se de que, Sócrates?
— De ciência, creio eu — respondi-lhe. — E não é bo m, meu amigo,
que o sofista, elogiando os artigos que vende, nos seduza como o
fazem o comerciante e o varejista com os alimentos para o corpo.
Porque esses não sabem se os produtos que trazem sã o bons ou
maus para o corpo (antes, elogiam tudo o que vendem ) e nem o
sabem também os clientes, a menos que se trate, por acaso, de um
professor de ginástica ou de um médico. Do mesmo mo do, também
aqueles que levam a ciência de cidade em cidade, ve ndendo-a a
retalho, elogiam sempre ao interessado tudo quanto vendem, mas
talvez alguns deles, meu caro, desconheçam o que é que, desses
artigos que vendem, é bom ou mau para a alma. E o m esmo se passa
também com os seus clientes, a não ser que, por aca so, algum
seja médico da alma. Se, pelo menos, fizeres uma id éia do que é
bom ou do que é mau, então não te fará mal comprar a ciência de
Protágoras ou de qualquer outro. Mas, se não, vê be m, meu amigo,
não jogues os dados à sorte, nem (314) corras riscos em matérias
tão delicadas. Porque o perigo é muito maior na com pra da
ciência do que na compra dos alimentos. Com efeito, ao comprares
alimentos ou bebidas ao retalhista ou ao comerciant e, podes
transportá-los noutros recipientes, e, antes de beb eres ou
comeres, podes levá-los para te aconselhares, infor mando-te
junto de quem souber, sobre se o deves comer e bebe r, ou não, e
quando e em que quantidade. Assim, o perigo na comp ra não é
grande. Pelo contrário, a ciência não se pode meter noutro

 
 
8
recipiente; é preciso pagá-la e metê-la na alma, e, uma vez
assimilada, ir para casa, ou para sofrer dissabores ou para
usufruir vantagens. Examinemos, então, todas estas questões
junto com outros mais velhos que nos, porque somos ainda muito
novos para estarmos a discutir assuntos desta natur eza. E agora,
tal como planejamos, vamos lá ouvir nosso homem. Ou vi-lo e
conversar com outros, porque Protágoras não está lá sozinho,
está lá também Hípias de Élide
8
e julgo mesmo que Pródico de
Ceos
9
, e, ainda, muitos outros sábios.
Assim nos pareceu e pusemo-nos a caminho. Quando ch egamos
junto à entrada, paramos para discutir sobre um ass unto que
tinha surgido durante o caminho. Então para que [.. .] só
entrássemos depois dele estar concluído, ficamos à entrada
discutindo até estarmos de acordo.
Pareceu-me que o porteiro [...] nos tinha ouvido e devia
estar irritado com a multidão de sofistas que iam e vinham da
casa. De modo que, quando batemos à porta, ele entr eabriu-a e,
vendo-nos, exclamou:
— Ah! Mais sofistas! O patrão não tem tempo para vo cês!
E, ao mesmo tempo, fechou a porta com as duas mãos, com
toda a força. Nós tornamos a bater e ele, por trás da porta,
respondeu:
— Não ouviram que o patrão não tem tempo para vocês ?
— Mas, meu caro — respondi eu —, nem procuramos Cál ias nem somos
sofistas. Viemos para ver Protágoras. Anuncia-nos l á!
Então, a muito custo, o homem nos abriu a porta.
Quando entramos, surpreendemos Protágoras a passear pelo
átrio, e, passeando em volta dele, de um lado, Cáli as, filho de
(315) Hiponico, e o irmão materno, Páralo, filho de Pér icles, e
Cármides, filho de Gláucon, e, do outro lado, o out ro filho de
Péricles, Xantipo; Filipides, filho de Filomelo, e Antimero de
                                                
 
8
Oriundo de Hélide, no Noroeste do Peloponeso. A da ta do seu nascimento é
incerta, embora se diga que era mais novo que Protá goras. Da obra de Platão
se infere que seria um intelectual cotado não só em Atenas, mas também no
resto da Grécia. Deste mesmo testemunho resulta tam bém a imagem de um homem
dotado de uma notável versatilidade, o que o tornav a extremamente vaidoso:
possuía uma prodigiosa memória; dedicava-se às ciên cias matemáticas
(aritmética, astronomia e geometria), mas também ao s estudos literários.  
9
Nascido em Ceos, a sua cronologia é incerta. Deve ter sido bastante
conhecido em Atenas, uma vez que Aristófanes o util izou como ironia em duas
peças. O conteúdo de uma de seus discursos aparece reproduzido em Xenofonte e
é referido por Platão no Banquete.  

 
 
9
Mende
10
, que é tido pelo melhor dos discípulos de Protágor as
[...] E, atrás destes, aqueles que o seguiam, ouvin do o seu
discurso. A maioria pareceu-me ser de estrangeiros — que
Protágoras traz consigo de cada uma das cidades por onde passa,
encantando-os, qual Orfeu
11
, com a sua voz, e que o seguem
seduzidos [...], mas no grupo estavam também alguns dos nossos
concidadãos.
No que me diz respeito, fiquei completamente delici ado ao
ver este grupo, pois tinham o cuidado admirável de nunca se
colocarem na frente de Protágoras; antes, a cada ve z que ele e
os que o rodeavam se voltavam, os outros — era uma coisa
formidável! — abriam alas para um lado e para outro e,
caminhando em círculo, ficavam sempre por trás dele . Uma
maravilha!
Depois reconheci ainda [...] Hípias de Élide, insta lado
num cadeirão, no lado oposto do átrio; à sua volta, sentavam-se
em banquetas Erixímaco, filho de Acúmeno, Fedro de Mirrinonte e
Ândron, filho de Andrócion, e alguns dos estrangeir os,
conterrâneos de Hípias e outros
12
. Pareciam interrogar Hípias
sobre assuntos como a natureza e os fenômenos celes tes. E ele,
do alto do seu cadeirão, dava sentenças e examinava as questões.
E avistei também [...] Pródico de Ceos. — Ocupava u m quarto que
Hiponico usava como despensa e que Cálias agora, po r causa do
grande número de visitantes, desocupara e transform ara num
quarto de hóspedes. Pelo que percebi, Pródico estav a ainda
                                                
 
10
Xantipo e Páralo eram meio-irmãos de Cálias. Segun do Plutarco, o famoso
estadista ateniense casara com uma senhora que ante s fora mulher de Hiponico.
Cármides era sobrinho de Crítias e tio de Platão; p ertencia a uma nobre
família ateniense (aparentada talvez com Sólon) e f reqüentou o círculo de
Sócrates. Participou, com Crítias, da oligarquia do s Trinta Tiranos, tendo
morrido em combate depois da queda do regime. De Fi lipedes sabe-se que
pertencia a uma distinta família ateniense, de Anti mero não há referências
fora o fato de Mende ser uma cidade adstrita ao imp ério ateniense. Os nomes
gregos, como se vê, eram constituídos por um primei ro nome (que nos
primogênitos era geralmente o do avô), acompanhado de um genitivo
patronímico. Em Atenas, depois das reformas de Clís tenes, este genitivo foi
substituído pelo nome do distrito (demo) em que o c idadão estava inscrito.
Contudo, no século IV o uso do demótico não tinha a inda suplantado o
patronímico e é freqüente a utilização de um ou de outro, de modo mais ou
menos indiferenciado.  
11
Poeta lendário de origem trácia. Uma longa tradiçã o literária imortalizou a
história de como a sua voz enfeitiçara monstros, de uses e supliciados
infernais no momento em que ele descera ao Hades, p ara tentar recuperar da
morte a sua mulher, Eurídice. 
12
Erixímaco era médico, assim como o pai Ecúmeno, am igo de Sócrates e de
Fedro, o último natural de Mirrinonte (demo de Aten as) – ambos participam da
discussão sobre o amor relatada no Banquete.  

 
 
10
deitado, embrulhado em peles de carneiro e cobertor es. Numa das
camas, ao seu lado, sentava-se Pausânias de Ceramic o e junto
dele um rapazinho ainda novo que me deu idéia de mu itíssimo bem-
educado e afeiçoado. Julgo ter ouvido que o seu nom e era Ágaton
e não me espantaria se fosse o favorito de Pausânia s. Estava o
tal rapazinho, os dois Adimantos — o filho de Cépid o e o de
Leucolófido — e pareceu-me que mais alguns
13
. De fora, não
consegui perceber de que falavam, embora estivesse cheio de
(316) vontade de ouvir Pródico, [...] o tom rouco da su a voz
produzia no aposento um murmúrio que tornava indist intas as
palavras que proferia.
Mal tínhamos entrado, chegaram logo atrás de nós o belo
Alcibíades — como tu dizes — e Crítias, filho de Ca lescro
14
.
Depois de entrarmos, perdemos ainda um tempinho nes ta
apreciação e, depois de observarmos tudo, aproximam o-nos de
Protágoras. Disse-lhe eu, então:
— Protágoras, Hipócrates e eu viemos para falar con tigo.
— Antes de mais — respondeu ele —, querem falar-me a sós ou aqui
na frente dos outros?
— Para nós, é indiferente. Tu próprio decidirás, de pois de teres
ouvido a razão da nossa visita.
— E qual é, então, a razão da vossa visita?
— [...] Hipócrates é um dos nossos conterrâneos, fi lho de
Apolodoro, de uma grande e próspera família [...] A cho que quer
tornar-se conceituado aqui na cidade e pensa que a melhor forma
de conseguir seria freqüentar a tua companhia. Pond era agora o
assunto, se achas conveniente falar conosco em part icular ou na
frente dos outros.
— É muito correto da tua parte que te preocupes com igo,
Sócrates. Realmente, é preciso que um estrangeiro q ue vai às
grandes cidades e nelas persuade os melhores dos se us jovens a
abandonarem outras companhias [...] e se associarem a ele para
assim se tornarem melhores, tome precauções nas açõ es que
                                                
 
13
De Pausânias de Cerâmico (demo de Atenas cujo nome derivava da sua produção
de olaria) não se sabe mais que sua relação com Ága ton, o quarto dos famosos
grandes trágicos do século V. Sua primeira vitória, cuja celebração serve de
pretexto ao Banquete de Platão, foi conseguida em 416, altura em que ter ia 30
anos. Dos dois Adimantos conhece-se apenas o filho de Leucolófido, que tomou
parte nas últimas campanhas da Guerra do Peloponeso , sendo acusado de traição
após a derroca final de Atenas em 404.  
14
Aristocrata conservador, talvez primo da mãe de Pl atão. Preso em 415 e
exilado pelos democratas, voltou a Atenas em 404 pa ra encabeçar o governo dos
Trinta Tiranos e morreu em combate, provavelmente c om Cármides.  

 
 
11
pratica. Com efeito, não são pequenas as invejas, o utras
hostilidades [...] e processos de impiedade que daí advém. Eu
digo que a sofística é uma arte antiga, mas que aqu eles que
dentre os nossos antepassados a praticaram temiam-n a, porque
ofensiva, e disfarçavam-na e dissimulavam-na, uns s ob a forma de
poesia, como Homero, Hesíodo e Simônides, e outros sob a forma
de ritos iniciatórios e profecias, como os seguidor es de Orfeu e
Museu
15
. E ouvi dizer que outros ainda lhe chamam ginástic a [...]
ou tomam por máscara a música [...] Estes, como dig o, com receio
[...] serviram-se destas artes como disfarce. Mas, neste ponto,
(317) estou em desacordo com todos eles, porque me pare ce que
não conseguiram o objetivo que pretendiam, uma vez que estas
tentativas não passaram despercebidas aos governant es das
cidades, e são eles a razão dessas máscaras. Porque as massas
[...] não entendem nada; limitam-se a repetir em co ro aquilo que
lhes disseram. Se quem pretende fugir, não consegue fazê-lo e,
antes, dá mais nas vistas, então, é uma grande louc ura tentá-lo,
pois necessariamente vai atrair grande numero de in imigos [...].
Ora, eu escolhi um caminho totalmente oposto a este : admito que
sou um sofista e que educo homens e parece-me que e ssa é a
melhor das soluções, admitir em vez de negar. E, pa ra além
desta, tenho tomado outras precauções, embora [...] nunca tenha
sofrido nenhum mal por admitir que sou um sofista. E, contudo,
já levo anos e anos nesta profissão, pois, feitas a s contas, já
são muitos os anos que tenho — pela idade, nada me impediria de
ser pai de qualquer um de vocês. De modo que, se o quiserem,
tenho muito gosto em expor os meus argumentos diant e de todos os
que aqui estão.
                                                
 
15
Sophistês começou por ser sinônimo de sophos e designava aquele que possuía
uma habilidade (sophia) qualquer, inicialmente de caráter manual. Com a
evolução que se deu no pensamento grego, de Homero aos autores da época
arcaica, esta habilidade passou a ser entendida em termos intelectuais, a
sabedoria. Assim, no século V, e ainda sem qualquer conotaçã o negativa, o
termo foi utilizado para referir um vasto leque de sábios, entre os quais
aqueles mencionados por Protágoras: os primeiros po etas, reais ou lendários;
músicos, ginastas e médicos; ou figuras com proprie dades mânticas, como é o
caso de Museu. Com Protágoras partilham todos uma c aracterística que a
própria etimologia da palavra sophistês lhe conferia: o da possibilidade de
transmitir a outros essa habilidade, particularment e significativa nos
poetas, entendidos desde o início da cultura grega como os mestres por
excelência. Da consciência dessa etimologia resulta também a distinção entre
sophistês e sophos e que é também a diferença que Protágoras reclama para si
face a seus antecessores: o profissionalismo que, p or oposição àqueles, o
sofista assume sem reservas.  

 
 
12
E eu, desconfiado de que ele quisesse exibir-se dia nte de
Pródico e de Hípias e gabar-se pelo fato de termos vindo
procurá-lo, perguntei:
— Porque não chamamos Pródico e Hípias e os que est ão com eles,
para nos ouvirem?
— Boa idéia — respondeu Protágoras. [...] Deliciado s todos
nós por irmos ouvir homens tão conhecedores, sentam o-nos,
acomodando-nos nos bancos e leitos [...] Nesta altu ra, chegaram
Cálias e Alcibíades trazendo Pródico, que tinham fe ito levantar
da cama, e aqueles que estavam com ele.
Assim que nos sentamos todos, Protágoras tomou a pa lavra:
— Sócrates, agora que já estamos reunidos, repete o que
começaste a dizer a propósito deste jovem.
Eu respondi-lhe o seguinte:
(318) — Vou começar, Protágoras, pela primeira coisa qu e ainda
há pouco te disse — a razão da nossa visita: aqui o Hipócrates
deseja freqüentar tua companhia e gostaria que lhe dissesses que
benefício obterá se assim o fizer. A nossa conversa resumiu-se a
esta apresentação.
Retomando a palavra, Protágoras respondeu:
— Meu jovem, eis o que acontecerá se conviveres com igo: no mesmo
dia em que o começares a fazer, ao regressar a casa , estarás
melhor, e o mesmo no dia seguinte; em cada dia prog redirás
sempre para melhor.
E eu, depois de o ouvir, repliquei:
— Ó Protágoras, não dizes nada de extraordinário; a ntes, é
lógico que, até tu, tendo a idade que tens e sendo sábio como
és, se alguém te ensinasse algo que, porventura, nã o
conhecesses, te tornarias melhor. Não vejamos as co isas desse
modo mas, antes, assim: se, de um momento para o ou tro, o nosso
Hipócrates mudasse de intenções e quisesse freqüent ar a
companhia desse rapaz recém-chegado, Zeuxipo de Her acleia
16
, e
fosse procurá-lo do mesmo modo que agora procura a ti, e o
ouvisse dizer as mesmas coisas que ouviu de ti, que cada dia que
passasse junto dele se aperfeiçoaria e se tornaria melhor, se
lhe perguntasse: “E dizes que serei melhor e me ape rfeiçoarei no
quê?”, Zeuxipo lhe responderia que na pintura. E se procurasse
Ontágoras de Tebas
17
e, depois de lhe ouvir o mesmo que a ti, lhe
                                                
 
16
O mais célebre dos pintores da época.  
17
Famoso tocador de aulos, o mais nobre dos instrumentos de sopro da música
grega, na seqüência traduzido como “flauta” . 

 
 
13
perguntasse em que se tornaria melhor [...], ele lh e diria que
na arte da flauta. Responde-nos tu da mesma maneira , a mim e a
este jovem [...]: freqüentando nosso Hipócrates a c ompanhia de
Protágoras, por cada dia passado junto dele, em que é que se
tornará melhor e em que é que se aperfeiçoará, Prot ágoras, e
como?
E Protágoras, depois de ouvir estas palavras, respo ndeu:
— Perguntas muito bem, Sócrates, e a mim satisfaz-m e responder
àqueles que sabem interrogar. Na verdade, ao procur ar-me,
Hipócrates não experimentará os problemas que o per turbariam
freqüentando a companhia de outro sofista. Com efei to, os outros
assoberbam os jovens. Quando os vêem fugir às espec ializações,
empurram-nos novamente para elas [...] e ensinam-lh es cálculo,
astronomia, geometria e música — e ao mesmo tempo, lançou um
olhar a Hípias. — Ao contrário, quem vem ter comigo não aprende
senão as matérias que pretender. O meu ensino desti na-se à boa
gestão dos assuntos particulares — de modo a admini strar com
(319) competência a própria casa — e dos assuntos da ci dade — de
modo a fazê-lo o melhor possível quer por ações que r por
palavras.
— Será que entendi bem as tuas palavras? Parece-me que falas da
arte de gerir a cidade e prometes transformar homen s em bons
cidadãos?
— É esse precisamente o objetivo que me proponho cu mprir,
Sócrates.
— Possuis, então, um belo ofício... se o possuíres realmente.
Bom, não vou dizer-te senão o que penso. Na verdade Protágoras,
eu não considerava que essa arte pudesse ser ensina da, mas não
vejo de que modo duvidar das tuas afirmações. Contu do, é justo
que explique porque é que não creio que essa arte p ossa ser
ensinada, nem transmitida aos homens por outros hom ens. Com
efeito, eu (tal como os outros Helenos) tenho os At enienses na
conta de sábios. Ora, bem vejo que, quando nos reun imos na
Assembléia, sempre que é preciso que a cidade reali ze algo na
área da construção civil são convocados os arquitet os para se
pronunciarem sobre o assunto. E, quando é na área d a construção
naval, os armadores, e assim com todas as matérias que se crêem
suscetíveis de serem ensinadas e aprendidas. Mais, se alguma
outra pessoa, que eles não consideram como sendo es pecialista,
pretender pronunciar-se nestas matérias, por mais b elo, rico ou
nobre que seja, não lhe aceitam qualquer opinião e ainda fazem

 
 
14
troça e barulho, até que aquele que tencionava fala r tome a
iniciativa de se calar, face ao barulho, ou até que os archeiros
o arrastem e o prendam, por ordem dos prítanes. É a ssim que eles
procedem, tratando-se de matérias que consideram té cnicas. Pelo
contrário, sempre que é preciso resolver algo na ár ea da
administração da cidade, sobre essa matéria levanta -se e dá a
sua opinião, indiferentemente, carpinteiro, ferreir o ou
curtidor, mercador ou marinheiro, rico ou pobre, no bre ou
plebeu, e ninguém lhes põe as objeções dos casos an teriores: que
nunca aprendeu ou nunca ninguém lhe ensinou nada so bre a matéria
em que tenciona dar opinião. É óbvio que não crêem que essa arte
possa ser ensinada. Bem, e não é assim apenas com o s interesses
públicos da cidade; também na vida particular, os m ais sábios e
mais nobres dos nossos cidadãos não têm possibilida des de
transmitir a outros essa virtude que possuem. Até P éricles, o
pai destes dois jovens aqui presentes, os educou pe rfeitamente
nas matérias que dizem respeito aos professores, ma s naquelas em
(320) que ele próprio é sábio, nem os ensinou, nem os c onfiou a
outro. De modo que andam eles por aí, vagando à réd ea solta, a
espera de, por obra do acaso, encontrarem sozinhos a virtude. E,
se quiseres mais, esse mesmo Péricles, que era tuto r de Clínias,
o irmão mais novo aqui do nosso Alcibíades, com rec eio de que
aquele fosse corrompido pelo irmão, afastou-o dele e enviou-o
para ser educado junto de Árifron, que, antes que s e tivessem
completado seis meses, lho devolveu sem saber o que fazer com
ele. E posso, ainda, referir-te muitos outros que, sendo bons,
não conseguiram tornar ninguém melhor, nem dos seus , nem dos dos
outros. Assim eu, Protágoras, ao observar estes exe mplos, não
creio que a virtude possa ser ensinada. Contudo, de pois de te
ouvir dizer que pode, rendo-me a considerar que alg o há no que
dizes, porque creio que és conhecedor de muitos ass untos, muitos
que aprendeste e outros que tu próprio descobriste. Portanto, se
achares possível, demonstra-nos de que modo se ensi na a virtude.
Não nos recuses essa demonstração.
— Claro que não recusarei, Sócrates. Mas, em primei ro lugar,
querem que o faça contando-vos uma história, como m ais velho que
fala aos mais novos, ou que o demonstre com argumen tos
18
?
                                                
 
18
Da mesma raiz de legein (inicialmente “colher”, “reunir”, “contar”) , logos
designa o resultado da ação expressa pelo verbo. A partir desse significado,
dá-se na palavra uma bifurcação semântica da qual r esultará, por um lado,
“enumerar” e “narrar” e, por outro, “calcular”, “re fletir”, “discutir” e
“argumentar”. Com Parmênides irá designar aquela qu e é “a mais brilhante de

 
 
15

Muitos dos que estavam sentados à sua volta deram-l he, então, a
escolher demonstrá-lo como quisesse.
— Pois bem — respondeu ele — parece-me que será mai s agradável
contar-vos uma história:
Era uma vez... existiam somente os deuses e não hav ia ainda as
raças mortais. Quando chegou, então, o momento dest inado ao seu
nascimento, os deuses modelaram-nas, no interior da terra,
misturando terra e fogo e os elementos que com este s se
combinam. Quando estavam prontas para ser conduzidas para a luz
do dia, os deuses encarregaram Prometeu e Epimeteu de as
organizar e de atribuir a cada uma capacidades que as
distinguissem. Epimeteu pediu a Prometeu que o deix asse fazer
essa distribuição. “Depois de eu a ter feito”, diss e, “tu
passas-lhes uma revista”. E assim, depois de tê-lo convencido,
começou: atribuiu força aos que não tornara rápidos e dotou com
rapidez os mais fracos; armou uns e para aqueles a quem dera uma
natureza sem armas inventou qualquer outro meio que assegurasse
a sua sobrevivência; aqueles que contemplou com a p equenez, deu-
lhes a possibilidade de fugirem voando ou uma habit ação
subterrânea, e aos que fez grandes em tamanho salvo u-os com essa
(321) mesma atribuição. De modo igualmente equilibrado,
distribuiu também as restantes qualidades. E fez tu do com
cautela, para que nenhuma espécie se extinguisse. D epois de lhes
dar os meios necessários para que não se destruísse m uns aos
outros, arranjou maneira de os proteger contra as e stações
enviadas por Zeus, cobrindo-os com pêlos abundantes e carapaças
grossas, suficientes para se defenderem do inverno e eficazes
para o fazerem do sol escaldante, e que constituem, para cada
                                                                                                                                             
todas as conquistas gregas – a descoberta da razão” , sentido com o qual
aparecerá depois também em Platão. Aliada à razão e à capacidade de pensar
está também a possibilidade de o homem exprimir, pe la linguagem, o seu
pensamento. Desse modo, logos tomou também o sentido de “palavra”, aparecendo
em Anaxágoras no lugar que, na dicotomia “palavra/a ção” pertencia, em Homero,
a epos e a mythos. Com esse mesmo propósito a utilizará Platão. A esse
significado se associa também o de “discurso” com q ue aparece em Górgias e
Tucídides. Os dois campos em que a palavra se viu i ntegrada possibilitaram
também que se constituísse como elemento de duas op osições: como “narrativa”e
“discurso” caracterizou a prosa por oposição à poes ia; como “argumento” opôs-
se a mythos – oposição que Platão testemunha nesse ponto do Protágoras (bem
como em 324 e em 328) e em outras obras como o Górgias e o Timeu. Dependendo
do contexto, traduz-se, então, logos por “argumento” (e mythos por
“história”) – refletindo essa dicotomia – ou por “d iscurso” (quando o termo
aparece em circunstâncias isoladas, englobando os d ois modos de expressão ou

 
 
16
um, o seu aconchego natural, quando decidem deitar- se. Calçou
uns com cascos e outros com couro grosso e sem sang ue. Em
seguida, providenciou diferentes alimentos para as diferentes
espécies: para uns, os pastos da terra; para outros , o fruto das
árvores; para os restantes, raízes. A alguns destin ou que fossem
alimento de outras espécies; a estas últimas deu pe quenas
ninhadas, enquanto que as que lhe servem de aliment o deu a
fecundidade, providenciando assim a salvação da sua espécie.
Deste modo, Epimeteu — que não era lá muito esperto — esqueceu-
se que gastara todas as qualidades com os animais i rracionais;
fora desta organização, restava-lhe ainda a raça do s homens e
sentia-se embaraçado quanto ao que fazer. Estava el e nesta
aflição, chega Prometeu para inspecionar a distribu ição e vê
que, enquanto as outras espécies estão convenientem ente providas
de tudo quanto necessitam, o homem está nu, descalç o, sem abrigo
e sem defesa. E já estava próximo o dia marcado, em que era
preciso que também o homem saísse do interior da te rra para a
luz do dia. Sem encontrar qualquer outra solução pa ra assegurar
a sobrevivência do homem, Prometeu, roubou a sabedo ria artística
de Hefesto e Atena, juntamente com o fogo — porque sem o fogo
era-lhe impossível possuí-la ou torná-la útil — e, assim,
ofereceu-a ao homem. Com ela, este tomou posse da a rte da vida,
mas não da arte de gerir a cidade, pois esta estava junto do
próprio Zeus. Já não fora possível a Prometeu entra r na morada
de Zeus, na acrópole — para mais que os guardas de Zeus eram
terríveis —, mas entrara, sem ser visto, na sala pa rtilhada por
Hefesto e Atena, na qual ambos se dedicavam às suas artes, e
roubara a arte do fogo a Hefesto e as outras artes a Atena, para
as dar ao homem, que delas retirou os meios necessá rios à vida.
(322) Mas, no fim, por culpa de Epimeteu — é o que dize m —, a
justiça perseguiu Prometeu por causa deste roubo. D este modo, o
homem participava da herança
19
divina e, devido ao parentesco com
os deuses, foi o único dos animais a acreditar nele s. Assim,
começou a construir altares e imagens suas. Depois, rapidamente
dominou a arte dos sons e das palavras e descobriu casas,
vestuário, calçado, abrigos e os alimentos vindos d a terra.
                                                                                                                                            
 
referindo apenas o resultado da arte de falar em qu e os sofistas eram
mestres). 
19
No original moira. O primeiro significado do termo é “parte” ou “lot e”; por
evolução semântica passou a designar o destino, a “parte” que a cada homem
coubera em sorte no nascimento. A tradução “herança ” prende-se assim a esse

 
 
17
Assim providos, inicialmente, os homens viviam disp ersos e não
havia cidades. Mas viam-se destruídos pelos animais selvagens,
pois eram mais fracos que eles em todos os sentidos . A arte que
dominavam era-lhes suficiente na procura dos alimen tos, mas
ineficaz na luta com as feras — com efeito, faltava -lhes a arte
de gerir a cidade, da qual faz parte a arte da guer ra.
Procuraram, então, associar-se e proteger-se, funda ndo cidades.
Só que, ao associar-se, tratavam-se injustamente un s aos outros,
já que não possuíam a arte de gerir a cidade. De mo do que,
novamente dispersos, se iam destruindo... Zeus, ent ão, inquieto,
não fosse a nossa espécie desaparecer de todo, orde nou a Hermes
que levasse aos homens respeito e justiça, para que houvesse na
cidade ordem e laços que suscitassem a amizade. Her mes perguntou
a Zeus de que modo haveria de dar aos homens justiç a e respeito:
“Distribuo-os do mesmo modo que, no início, foram d istribuídas
as outras capacidades? As outras ficaram assim repa rtidas: um
médico é suficiente para muitos leigos e o mesmo ac ontece com os
outros especialistas. Atribuo, também, justiça e re speito aos
homens deste modo, ou distribuo-os por todos?” “Por todos —
respondeu Zeus — e que todos partilhem desses predi cados porque
não haverá cidades, se somente uns poucos partilhar em deles,
como o fazem dos outros. Estabelece, pois, em meu n ome, uma lei
que extermine, como se se tratasse de uma peste par a a cidade,
todo aquele que não for capaz de partilhar de respe ito e de
justiça.”
Deste modo e por este motivo, Sócrates, quer os out ros
povos quer os Atenienses, quando o discurso é na ár ea da arte da
carpintaria ou de outra especialidade qualquer, con sideram que
só a alguns compete uma opinião. E se alguém, fora desses
poucos, se pronuncia, não aceitam, tal como tu dize s — e com
(323) muita razão, repito eu —; porém, quando procuram uma
opinião a propósito da arte de gerir a cidade, em q ue é preciso
proceder com toda a justiça e sensatez, com razão a aceitam de
qualquer homem, pois a qualquer um pertence partilh ar
efetivamente desta arte ou não haverá cidades. Nest e fato
reside, Sócrates, a razão do que perguntas. Mas, pa ra que não
consideres que te estás a iludir, pensando que por ser assim que
todas as pessoas crêem que qualquer homem partilha quer da
justiça quer das restantes qualidades políticas, re para em mais
                                                                                                                                             
sentido primeiro: o lote de bens divinos de que a H umanidade compartilhou
pelas dádivas de Prometeu.  

 
 
18
uma prova: com efeito, no que diz respeito às outra s qualidades,
como tu dizes, se alguém diz ser um bom tocador de flauta ou ter
dotes em qualquer outra arte, sem os ter, ou se rie m dele ou se
enfurecem e os familiares vêm e dão-no como louco. Mas tratando-
se da justiça ou das restantes qualidades políticas , se sabem de
alguém que é injusto e se esse mesmo alguém confess ar a verdade
a seu respeito diante de todos, essa atitude (confe ssar a
verdade) que, noutra ocasião, pareceria inteligênci a, neste
caso, parece loucura. E afirmam que é preciso que t olos digam
que são justos, quer sejam quer não, e que aquele q ue não
aparenta sê-lo enlouqueceu. Pois pretendem que é fo rçoso que
qualquer um partilhe desta qualidade, de uma maneir a ou de
outra, ou não poderá viver entre os homens. O que d igo, pois, é
que é com razão que aceitam de qualquer homem uma o pinião sobre
esta virtude, pelo fato de acreditarem que todos pa rtilham dela.
Em seguida, pretendo demonstrar-te que não acredita m que seja
obra da natureza ou algo inato mas, antes, ensinada e que aquele
que o desenvolver o conseguirá graças ao treino. Co m efeito, na
medida em que os homens crêem que os defeitos que o s outros
possuem são obra da natureza ou do acaso, ninguém s e irrita, nem
repreende, nem ensina, nem castiga aqueles que têm esses
defeitos, para que não sejam como são; antes, os la mentam. É
possível que haja alguém tão louco que tencione faz er uma coisa
dessas com os feios, os baixos ou os fracos? Com ef eito,
considero que sabem que é por obra da natureza ou d o acaso que
os homens desenvolvem essas características, as boa s e as más.
Mas, na medida em que consideram que os homens dese nvolvem boas
qualidades pelo treino, pela pratica e pela aprendi zagem, se
alguém não as possuir e, pelo contrário, possuir os defeitos
correspondentes, sobre esses recaem, então, as irri tações, os
castigos e as repreensões. Um desses defeitos é a i njustiça, a
(324) impiedade e, em suma, tudo o que é contrário às q ualidades
políticas. Como, neste caso, qualquer um se irrita e repreende
qualquer um, é óbvio que têm essa virtude por adqui rida graças
ao treino e à aprendizagem. Com efeito, Sócrates, s e quiseres
ponderar que punir é uma medida eficaz em relação àqueles que
praticam injustiças, esse fato te provará que os ho mens
acreditam, realmente, que a virtude pode ser adquir ida. Porque
ninguém castiga, por praticar injustiças, aqueles q ue as
praticam sem noção do que fazem, a menos que se cas tigue
irracionalmente, como qualquer animal selvagem. Mas , aquele que

 
 
19
tenciona punir racionalmente não castiga por causa das ações
passadas — porque não vale a pena chorar pelo leite derramado,
mas, como salvaguarda do que poderá acontecer, para que nem esse
mesmo, nem outro que tenha presenciado a punição, p ratique novas
injustiças. Ora, com semelhante modo de pensar, pre ssupõem,
então, que a virtude pode ser ensinada — se se ente nder que,
quando se pune, é com vista à correção. Todos aquel es que
aplicam castigos, quer na vida privada, quer na vid a
comunitária, têm essa mesma opinião. Todos os homen s — e os
Atenienses, teus concidadãos, não menos que os outr os — castigam
e punem aqueles que consideram que praticaram ações injustas.
Deste argumento se depreende, então, que os Atenien ses estão
entre aqueles que acreditam que a virtude pode ser adquirida e
ensinada.
Pela minha parte, Sócrates, parece-me que foi sufic ientemente
demonstrado que é, pois, com razão que os teus conc idadãos
aceitam que ferreiro e curtidor dêem a sua opinião sobre os
assuntos da cidade e que acreditam que a virtude po de ser
ensinada e adquirida. Resta, contudo, ainda, uma qu estão: aquela
que levantas a propósito dos homens bons. Qual é, p ois, a razão
pela qual os homens bons ensinam aos filhos essas o utras
matérias que competem aos professores, fazendo-os s ábios, mas
quanto à virtude, em que eles próprios são bons, nã o os tornam
melhores que qualquer outro? Mas, a esta questão, S ócrates, vou
responder-te não com outra história mas através de argumentos.