Crônicas (1369-1373)
Froissart (c. 1337-1410)
Trad. e notas: Ricardo da COSTA
413.
Muito pouco tempo depois da liberação do rei de Navarra, sucedeu uma terrível e grande tribulação em muitas partes do reino
da França, em Beauvaisis, em Brie, junto ao rio Marne, em Laon, Valois, a terra de Coucy e os arredores de Soissons. Algumas
gentes das vilas camponesas se reuniram sem chefe em Beauvaisis. A princípio não eram nem cem homens e disseram que todos
os nobres do reino da França, cavaleiros e escudeiros traíram o reino, e que seria um grande bem destruir a todos. Cada um
deles dizia: “É verdade! É verdade! Maldito seja quem por ele não sejam destruídos todos os gentis-homens”.
Então, sem outro conselho e sem outra armadura além de bastões com pontas de ferro e facas, foram à casa de um cavaleiro que
estava próxima dali. Destruíram a casa, mataram o cavaleiro, a dama e os filhos, grandes e pequenos, e incendiaram tudo. Logo
foram a um castelo e ali ainda fizeram pior, pois prenderam o cavaleiro e o ataram a uma estaca muito fortemente e muitos
violaram a mulher e a filha diante do cavaleiro. Depois mataram a mulher, que estava grávida, a sua filha e todos os filhos, e o
marido, depois de torturá-lo, o queimaram e destruíram o castelo.
Assim fizeram em muitos castelos e boas casas, e foram crescendo tanto que chegaram a seis mil. Aumentavam porque todos os
de sua condição lhes seguiam por todos os lados por onde passavam, de tal modo que cavaleiros, damas, escudeiros, suas
mulheres e seus filhos fugiam deles. Damas e donzelas levavam seus filhos dez ou vinte léguas distantes, ali onde pudessem se
proteger, abandonando suas casas com todos os seus bens. E todos estes criminosos reunidos, sem chefe e sem armaduras,
saqueavam e incendiavam tudo, matando todos os gentis-homens que encontravam, forçando as damas e donzelas sem piedade
e sem mercê como cachorros violentos.
Certamente jamais houve entre cristãos e sarracenos os crimes que cometiam estes miseráveis, pois quem cometia maiores atos
vis, atos que nenhuma criatura humana deveria jamais nem imaginar, esse era o mais estimado e valorado entre eles. Não me
atrevo a escrever nem contar os horríveis e inconvenientes atos que realizavam com as damas. Pois, entre outras vilanias,
mataram um cavaleiro e o cravaram em um assador para assá-lo no fogo diante de sua dama e de seus filhos. Depois que dez ou
doze forçaram e violaram a dama, quiseram fazê-la comer à força e logo a fizeram morrer de má morte. Tinha um rei entre eles
que chamavam Jacques Bonhomme, que era, como então se dizia, de Clermont em Beauvaisis, e o elegeram o pior dos piores.
Notas
1.
Base da tradução: JEAN FROISSART. Crónicas (Edición a cargo de Victoria Cirlot y J. E. Ruiz Domenec). Madrid: Ediciones Siruela,
1988.
2.
Ver COSTA, Ricardo da. "Revoltas camponesas na Idade Média. 1358: a violência da Jacquerie na visão de Jean Froissart". In:
CHEVITARESE, André (org.). O campesinato na História. Rio de Janeiro: Relume Dumará / FAPERJ, 2002, p. 97-115.
3.
Na ocasião o rei de Navarra era Carlos II, o Mau (1349-1387).
4.
Hospital – Na Idade Média, um hospital era uma espécie de hospedaria dedicada a receber pobres, doentes e, sobretudo,
peregrinos e viajantes – especialmente os que iam para a Terra Santa. Por exemplo, a Ordem do Hospital de São João de
Jerusalém, criada em 1048 e transformada em uma ordem monástico-militar em 1120, tinha exatamente essa atividade: o
obsequium pauperum, o serviço dos pobres e a atividade hospitalar (além da tuitio fidei, a proteção da fé ou dos fiéis e de seus
territórios). COSTA, Ricardo da. A Guerra na Idade Média. Um estudo da mentalidade de cruzada na Península Ibérica. Rio de
Janeiro: Edições Paratodos, 1998, p. 123 e SAUNIER, Annie. “A vida quotidiana nos hospitais da Idade Média”. In: LE GOFF,
Jacques (apres.). As doenças têm história. Lisboa: Terramar, 1985, p. 205-220. No entanto, a palavra hospital também designava
simplesmente a residência de alguém.
5.
O conde de Foix era Gaston III Phoebus (1331-1391).
6.
O nome do captal de Buch (Senhor de Buch, uma vila) era Jean III de Grailly, um modelo de cavaleiro em sua época, confidente
do príncipe negro, Eduardo, príncipe de Gales. Captal era um título feudal da Gasconha. A designação captal (capital, captau, ou
capitau) foi aplicada aos nobres mais ilustres da Aquitânia (condes, viscondes, etc.) provavelmente como senhores capitais,
senhores principais. Como título real, a palavra foi usada somente pelos senhores de Trene, de Puychagut, de Epernon e de
Buch.
7.