2. " As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as
caudas, mugindo no
meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e
baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza,
saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão..." (...) Boi bem bravo, bate
baixo, bota baba, boi berrando...Dansa dôido, dá de duro, dá de dentro, dá direito... Vai,
vem, volta, vem na vara, vai não volta, vai varando..."
3."Mas a enchente ainda despejava e engrossava, golfando com intermitências, se
retorcendo em pororoca, querendo amassar cama certa para poder correr. Cada copa de
árvore, emergente ou afundada, cada grota submersa ou elevação de terreno, tudo servia
para mudar a toada das águas soltas. E, no bramido daquele mar, os muitos sons se
dissociavam - grugrulejos de remoinhos, sussurros de remansos, chapões de panelas,
chapes de encontros de ondas, marulhar de raseiras, o tremendo assobio dos vórtices de
caldeirões, circulares, e o choro apressado dos rabos-de-corredeiras, borborinhantes.
Água que ia e vinha, estirando botes, latejando, com contra-correntes, balouço de vagas,
estemeções e retrações."
13
Nos trechos 1 e 2, há a descrição da boiada que, reunida na fazenda, será levada para a
cidade, e embarcada no trem. Os boiadeiros estão atarefados, tentando manter a calma dos
animais, que podem estourar por qualquer coisa, e estouro de boiada é coisa séria! Os bois
estão inquietos, irritados pela falta de espaço. O trecho 3 descreve a corredeira das águas
numa enchente. O rio da Fome transbordou, levando tudo de roldão, incluindo os
boiadeiros que conduziram o gado para a cidade. Notem que para a informação basta
pouco, e a função da linguagem, nestes trechos, não está centrada nesta intenção - a de
comunicar uma situação - embora, em segundo plano, tal ocorra. A linguagem se volta
para sua própria realidade, para sua auto-construção. Verifiquem como no trecho 1,
visualmente predomina o fonema que se grafa /C/, um semicírculo, e /O/ uma
circunferência completa, que é a forma assumida pelos giros dos cavaleiros e está na
palavra picadeiro. O aspecto visual contamina o cão ( Sua-Cara ) e o cenário em que se
move. Predominam os fonemas oclusivos /C=K/ surdos, e as fricativas, opondo-se surdas /
F/ e /S/ e sonoras /V/, com o ruído rascante. O movimento é mostrado concretamente, quer
pelo apelo visual, quer pelo apelo à percepção auditiva.
O que se vê no trecho 1, fica ainda mais claro no trecho 2. De início, vemos o / C/ cuja
forma reproduz a meia-lua dos chifres ( curiosamente o nome começa com C. Serão tão
arbitrários os nomes?). Depois vêm a sonoridade de /aTRItos/, /esTRAlos/, / esTROndos/,
/TRIsteza/, composta com sons surdos, reproduzindo o ruído do gado, dos chifres se
entrechocando. A construção ondula, como a massa composta pelos animais. E, para
finalizar, vêm a seqüência das oclusivas sonoras em /b/, numa oposição a /d/ e a seqüência
das fricativas sonoras em /v/. Representam sonora e visualmente a dança do boi irritado,
que contamina a palavra dança, grafada /dansa/, cujo /s/ possui aparência sinuosa, própria
do movimento do boi. Encadeiam-se as orações coordenadas, curtas, separadas por vírgula,
sem conectivos, que pintam, como num quadro, os passos curtos do boi encurralado no
meio da boiada, escavando, bufando.
No trecho 3, além do artesanato fonético, que reproduz o ruído da água, vale salientar
o uso, no campo morfológico, dos tempos verbais. Predominam as formas no pretérito
imperfeito do indicativo - despejava, engrossava, servia etc. - numa combinação com o
gerúndio - formas terminadas em -ndo - ambas de aspecto inconcluso e portadoras de idéia
13
Sagarana, p. 65.