POSITIVISMO - ORLANDO ZANON para melçhorar a vida

PsiclogoPeter 0 views 29 slides Oct 07, 2025
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Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 213212 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
reduzida sindicabilidade das decisões jurisdicionais.
Mais recentemente, os trabalhos de Luigi Ferrajoli, Joseph Raz e
Scott Shapiro têm contribuído para manutenção do modelo juspositivista,
com alguns reparos críticos pontuais (correções ad hoc). No Brasil, Dimitri
Dimoulis escreveu obra especificamente defendendo a manutenção do Posi
-
tivismo Jurídico, num esforço de refutação das diversas vertentes adversárias,
mediante a construção de uma proposta de interpretação que denominou
pragmatismo político-jurídico
622
.
2.3. POSITIVISMO JURÍDICO
623
2.3.1. O ENFOQUE JUSPOSITIVISTA
O Positivismo Jurídico (ou Juspositivismo) é o modelo da ciência do
direito que vem regendo as pesquisas e profissões da comunidade jurídica
desde meados do século XIX
624
. Entre os seus aspectos mais marcantes,
cabe mencionar a separação entre direito e moral, a formação do orde
-
namento jurídico exclusivamente (ou, ao menos, prevalecentemente) por
regras positivadas, a construção de um sistema escalonado só pelo critério
de validade formal, a aplicação do direito posto mediante subsunção e a
discricionariedade judicial para resolução dos chamados casos difíceis (hard
cases)
625
. Tais peculiaridades foram cunhadas pelos cientistas do direito jus-
tamente para superar as deficiências do modelo anterior do Jusnaturalismo
e, assim, assegurar uma vinculação dedutiva (subsunção) da autoridade à
lei (direito posto), num esforço para afastar as incertezas e inseguranças
decorrentes do uso ilimitado de uma suposta razão superior, lastrada em
alegados valores morais absolutos e inquestionáveis, ficticiamente válidos
e eficazes em todo tempo e lugar
626
.
622. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatis-
mo jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p. 73: “Essa opção metodológica não objetiva esconder
nosso posicionamento pessoal que consiste em uma franca e plena adesão ao juspositivismo” .
623. Este capítulo foi construído com base em trechos extraídos de ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Teoria
Complexa do Direito. 2 ed. Curitiba: Prismas, 2015; e, de ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Jusposi-
tivistas & Pós-positivistas. Florianópolis: CEJUR, 2013.
624. MOREIRA, Eduardo Ribeiro. O momento do positivismo. In: DIMOULIS, Dimitri. DUARTE, Écio
Oto. Teoria do direito neoconstitucional: superação ou reconstrução do positivismo jurídico. São Pau-
lo: Método, 2008. p. 233-245. p. 233: “Não se pode esquecer que o positivismo jurídico teve no final
do século XIX a importante função de superar as incertezas causadas pela aplicação da teoria do direito
jusnaturalista” .
625. ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. A revolução na teoria do Direito. Âmbito Jurídico, Rio Grande, n.
103, 2012. Disponível em: www.ambito-juridico.com.br. Acesso em: 15.10.2012.
626. DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. 4 ed. São Paulo: RT, 2011. p. 90-98,
especialmente p. 98: “Finalmente, a referência ao direito natural, como conjunto de regras superiores e
estáveis no tempo e no espaço que exprime os valores da justiça, é uma constante da filosofia e da doutrina
Na primeira etapa deste movimento, chamada de Positivismo Jurídico
exegético ou legalista (ou ainda Paleopositivismo), acreditava-se que seria
possível construir um direito Positivo tão completo e perfeito que o juiz
poderia ser apenas a “boca da lei” (bouche de la Loi), aplicando a regra demo
-
craticamente posta pelo legislador sem interferências subjetivas e inseguras.
É a época do Código de Napoleão e da escola da exegese (école de l'exégèse).
Este modelo superou a ideia de que existira um direito natural extraído
da moral e, de tanta aversão que se tinha quanto à possibilidade de juízos
morais suplantarem a segurança possibilitada pela legislação positiva, foi pro
-
posto que simplesmente o direito não tinha qualquer relação com a moral. A
juridicidade seria um outro produto social diferente e externo à moralidade.
O Positivismo Exegético não vingou, pois restou verificado que o magis
-
trado é um agente político que ultrapassa o conceito de mero reprodutor da lei,
mormente considerando a incompletude do ordenamento jurídico (problema
referente às lacunas), a incompatibilidade entre alguns preceitos legais (difi
-
culdade decorrente das antinomias) e a ambiguidade dos textos normativos
(divergências interpretativas). Daí veio a segunda fase, inaugurada por Kelsen
e Hart e, depois, aprimorada por Bobbio, a qual pode ser chamada de Positi
-
vismo normativista. É lugar comum o entendimento de que “o positivismo
normativista foi provavelmente a concepção do direito mais divulgada entre os
teóricos europeus do direito do século XX. Caberia falar aqui de duas formas
básicas: uma, a mais radical, é representada pelo modelo kelseniano; e outra,
mais moderada e sofisticada, identifica-se com a obra de Hart”
627
.
Nesta nova etapa, foi reconhecido que era impossível existir um juiz
do tipo “boca da lei”, pois a regra positivada não era sempre clara (ambi
-
guidade) e, também, às vezes apresentava textos contraditórios (antinomia)
ou, mesmo, não oferecia suporte legal para resolução de um caso específico
(anomia ou lacuna), hipóteses nas quais o julgador precisaria criar a norma
jurídica como se legislador fosse. Também foi verificada uma proliferação de
inúmeros textos legais, inclusive por órgãos estatais diversos, sendo necessário
estabelecer uma hierarquia de regras jurídicas.
Antes de prosseguir, cabe referir que o conceito de Positivismo Jurídico
jurídica ocidental, mas revela-se também repleta de problemas. Não havendo acordo sobre o conteúdo do
direito natural, a posição dos jusnaturalistas de que o direito natural prevalece em caso de conflito com o
direito positivo, pelo menos quando esse último provoca extremas injustiças, revela-se como uma tentativa
ideológica para legitimar (ou deslegitimar) o direito vigente, segundo opiniões subjetivas” .
627. ATIENZA, Manuel. O direito como argumentação. Lisboa: Escolar, 2014. p. 36.

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 215214 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
Normativista aqui proposto foca o aspecto de criação de normas, na dinâmica
do ordenamento jurídico, nos moldes desenvolvidos pelos juspositivistas
clássicos, notadamente Hans Kelsen, Herbert L. A. Hart e Norberto Bobbio.
Outrossim, enquanto a fase exegética discorre sobre a possibilidade de o juiz
ser apenas aplicador de um direito previamente criado, o posterior momento
normativista ressalta a atividade do magistrado como criador da norma jurí
-
dica que resolve o caso concreto, de acordo com as regras jurídicas superiores
no escalonamento piramidal
628
. Logo, tal classificação é diferente daquele
que separa, de um lado, o Positivismo Jurídico Descritivo, caracterizado
por conferir à ciência jurídica uma função científica meramente descritiva
(daí passível de englobar as versões exegética e também normativista), do
Positivismo Jurídico Normativo, cuja peculiaridade é atribuir também uma
função prescritiva ao estudo do direito
629
.
As propostas que conformam o movimento do Neopositivismo, por
sua vez, podem ser visualizadas como uma terceira etapa desta corrente de
pensamento. O intuito dos neopositivistas é superar as críticas pós-positi
-
vistas com relação às características centrais do Positivismo Jurídico e, assim,
permitir a continuidade de tal modelo teórico e, principalmente, evitar
retrocessos ao já superado modelo do Jusnaturalismo. As discordâncias resi
-
dem, precipuamente, em evitar a assimilação dos princípios jurídicos como
mandamentos otimizáveis e flexíveis, passíveis de aplicação mediante balan
-
ceamento ou ponderação. Isto porque tal forma de inserção principiológica
pode implicar uma espécie de quebra das teses da separação entre morali
-
dade e juridicidade e das fontes sociais, até mesmo mediante um retorno
à aceitação do direito natural, causando maior discricionariedade judicial,
em detrimento do objetivo de majoração da segurança jurídica. Daí que as
propostas neopositivistas, em geral, visam repelir as teses pós-positivistas e,
assim, absorver os princípios jurídicos e outros padrões de julgamento no
ordenamento jurídico, mas sem aceitar sua flexibilidade e tampouco uma
teoria da argumentação jurídica que permita a ponderação.
Na sequência deste trabalho, serão detalhadas as características mais
628. SHAPIRO, Scott J. Was inclusive legal positivism founded on a mistake? Ratio Juris, Oxford, v. 22, n.
3, p. 326-338, 2009. p. 337: “They imagined [os adeptos do positivismo inclusivo] that if judges are fin-
ding the law, then they cannot be making it. In truth, however, judges are doing both. They are applying
the law by acting as morality requires them to do, and enforcing pre-existing rights by deciding for the
morally entitled party. Yet, they are also making new law and creating new rights by recognizing that
one of the two parties to the suit should win” .
629. BUSTAMANTE, Thomas. A breve história do positivismo descritivo. Que resta do positivismo jurídico
depois de H. L. A. Hart? Revista Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 20, n. 1, p. 307-327, 2015.
relevantes do Positivismo Jurídico, de modo a viabilizar a posterior análise
crítica de seus principais postulados, e, inclusive, verificar se há a necessidade
de adoção de uma nova base teórica.
2.3.2. A TEORIA PURA DE KELSEN
Hans Kelsen se dedicou ao desenvolvimento de uma teoria do direito
pura, ou seja, isenta de quaisquer interferências externas, fossem elas meta
-
físicas, ideológicas, políticas, morais ou mesmo decorrentes de outros ramos
do conhecimento, com vistas ao atingimento de objetividade e de exatidão
científicas
630
. Ou seja, seu princípio metodológico fundamental era expurgar
todos os elementos que considerava estranhos à ciência jurídica
631
, razão pela
qual sua construção será aqui identificada por “Positivismo Jurídico puro”.
Para o fundador do purismo jurídico, sequer a justiça poderia ser consi
-
derada como parâmetro de julgamento, ante o caráter relativista e subjetivista
dos juízos de justo e de injusto
632
. Não se olvida que os sistemas de valores não
são criações arbitrárias de indivíduos isolados, mas sim fenômenos construí
-
dos socialmente, ou seja, culturalmente produzidos de acordo com as relações
intersubjetivas dos grupos sociais
633
. Mesmo assim, não seria possível extrair
uma ideia universal de justiça, mas tão somente conhecer as concepções
de justeza para cada grupo social determinado, de acordo com os valores
temporariamente emergentes em seu interior. Por isto, os critérios de justiça
representam ideais variáveis e irracionais, inadequados à análise científica do
direito, justamente por serem inacessíveis à cognição humana
634
.
Logo, para alcançar maior grau de objetividade na ciência jurídica, o
autor restringiu o direito tão somente ao conjunto de normas que compõem
a ordem positiva estatal e, assim, construiu um Positivismo Jurídico purifi
-
cado
635
. Sem embargo, ele “restringe o objeto de estudo dessa disciplina ao
630. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. XI.
631. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 1.
632. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 54.
633. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 11.
634. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 19:
“Trata-se, na verdade, de uma paráfrase eufemística para o doloroso fato de que a justiça é um ideal
inacessível à cognição humana” .
635. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 5 e especialmente
118: “Neste sentido, a Teoria Pura do Direito tem uma pronunciada tendência antiideológica. Compro-
va-se esta sua tendência pelo fato de, na sua descrição do Direito positivo, manter este isento de qual-
quer confusão com um Direito ‘ideal’ ou ‘justo’. Que representar o Direito tal como ele é, e não como
ele dever ser; pergunta pelo Direito real e possível, não pelo direito ‘ideal’ e ‘justo’. Neste sentido é uma
teoria do Direito radicalmente realista, isto é, uma teoria do positivismo jurídico” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 217216 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
direito positivo com o intuito de afastar todos os elementos considerados
estranhos, buscando conhecer o direito que é, sem se importar com a questão
de saber como deve ser o direito. A seu ver esta era uma questão que permi
-
tiria aos juristas fazer ciência jurídica e não política do direito”
636
.
O núcleo do pensamento do autor sobre o tema pode ser extraído prin
-
cipalmente de três obras, consistentes em Teoria Pura do Direito
637
, onde pela
primeira vez consolidou a sua proposta juspositivista para o padrão jurídico
romano-germânico (civil law, statutory law ou code based legal system), em
Teoria Geral do Direito e do Estado
638
, em que o autor reformulou alguns
aspectos da sua proposição teórica, inclusive para fins de abranger também
o sistema de direito jurisprudencial (common law ou judge made law), e em
Teoria Geral das Normas
639
, que é um texto mais aprofundado e específico
sobre as regras jurídicas, publicado postumamente. A análise proposta se
resume às três obras antes referidas, que foram analisadas com vistas a ex
-
trair os principais aspectos da teoria do direito kelseniana relevantes para o
referente proposto, consoante abaixo alinhavado.
Primeiro, o autor esclareceu que a expressão norma, em sentido
amplo, significa algo que deve ser ou acontecer (Sollen), ou seja, designa
uma regra indicativa daquilo que precisa ocorrer, com especial foco no
estabelecimento de direcionamentos para conduta humana
640
. O aconte-
cer fático (inclusive o comportamento humano) que está de acordo com
a norma é qualificado como jurídico (lícito), porque foi como deveria ser,
enquanto aquilo que estiver em desarmonia com ela é considerado anti
-
jurídico (ilícito), pois não ocorreu como previsto. Outrossim, a norma
serve como “esquema de interpretação”, dado que é por ela que o jurista
científico conhece e descreve a realidade fática
641
.
Segundo, o pensador em exame tratou de estabelecer que a ciência
jurídica é regida pelo critério da imputação (dever ser), ao invés da causa
-
lidade (ser) típica dos demais ramos do conhecimento. De acordo com ele,
o sentido jurídico da faticidade não é decorrência do ser natural das coisas
(Sein), segundo o critério de causalidade, como ocorre nas ciências chamadas
636. LEITÃO, Macell Cunha. Ceticismo ao valor e valor do ceticismo na interpretação do direito. RECH-
TD, São Leopoldo, v. 8, n. 1, p. 74-84, 2016. p. 76.
637. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
638. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
639. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986.
640. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 5.
641. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 4.
naturais ou causais, mas sim resultado da análise da situação segundo as
normas estabelecidas
642
. Enquanto as ciências naturais são regidas pela lei da
causa e efeito, a ciência do direito tem como princípio ordenador a impu
-
tação
643
. Justamente nesta diferenciação entre as ciências causais (estudam o
ser) e jurídica (trata do dever ser) reside um aspecto central do pensamento
de Kelsen. Para ele, a ciência jurídica se dedica ao estudo exclusivo da norma,
ou seja, à análise do que deve ser, diferenciando-se das demais ciências consi
-
deradas naturais, a exemplo da física e da química, as quais têm como escopo
o conhecimento do ser, ou seja, do que efetivamente é
644
.
Antes de prosseguir, cabe o registro histórico de que a análise bifur
-
cada entre o “ser” e o “dever ser” remonta ao realismo político de Nicolau
Maquiavel, que tratou de efetuar uma leitura dos fatos como efetivamente
são, embora ditames morais apontassem que mereciam ser diferentes
645
. Pos-
teriormente, também o neocrítico (ou neokantista) Wilhelm Windelband
discorreu sobre a diferenciação entre os juízos de fato (Müsse) e valorativos
(Sollen)
646
. Porém, foi Kelsen quem tratou de desenvolver o aspecto com a
finalidade de justificar uma modalidade científica específica, voltada não
apenas à descrição do que é, mas, principalmente, ao estabelecimento do
que deve ser, nos termos antes expostos.
Terceiro, o pensador em questão adotou um critério de juridicidade
exclusivamente formal e hierarquicamente escalonado. Neste sentido,
642. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986. p. 33: “O dua-
lismo de causalidade e imputação serve de base ao dualismo de Ciência Natural Causal, como a Física,
Química, Biologia, Psicologia e as Ciências Sociais Normativas, como Ética e Ciência do Direito. É o
dualismo lógico-fundamental de ser e dever-ser que aqui se manifesta” .
643. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 86.
644. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 6-8 e, especialmente
p. 84: “ Determinando o Direito como norma (ou, mais exatamente, como um sistema de normas, como
uma ordem normativa) e limitando a ciência jurídica ao conhecimento e descrição de normas jurídicas e
às relações, por estas constituídas, entre fatos que as mesmas normas determinam, delimita-se o Direito
em face da natureza e a ciência jurídica, como ciência normativa, em face de todas as outras ciências
que visam o conhecimento, informado pela lei da causalidade, de processos reais” .
645. REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da filosofia: Do Humanismo a Descartes. V. 3. São
Paulo: Paulus, 2004. p. 93-94: “ Ela não apenas demonstrava a divisão entre ‘ser’ (as coisas como elas
efetivamente são) e ‘dever ser’ (as coisas como deveriam ser para se conformarem aos valores morais),
mas também elevava essa divisão a princípio e a colocava como base da nova visão dos fatos políticos.
[...] No que se refere ao realismo político, é básico o capítulo XV de O Príncipe (escrito em 1513, mas
publicado somente em 1531), cinco anos após a morte do autor), que discute o princípio de que é ne-
cessário se ater à ‘verdade efetiva das coisas’, sem se perder na busca de como as coisas ‘deveriam’ ser;
trata-se, em suma, da divisão entre ‘ser’ e ‘dever ser’” .
646. REALE, Giovanni. ANTISERI, Dario. História da filosofia: de Nietzsche à Escola de Frankfurt. V. 6.
São Paulo: Paulus, 2005. p. 24: “ Portanto, a filosofia não tem por objeto os juízos de fato, mas Beur-
teilungen, isto é, juízos valorativos do tipo ‘esta coisa é verdadeira’, ‘esta coisa é boa’, ‘esta coisa é
bela’. E é assim que os valores – que tem precisamente validade normativa – distinguem-se das leis
naturais: a validade das leis naturais é a validade do Müssen, a validade empírica de não poder ser de
outro modo; a validade das normas ou valores é a do Sollen, isto é, do dever ser” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 219218 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
nem todas as normas são um dever ser objetivamente válido e vinculante para
todos, pois somente ostentam tal característica aquelas que foram produzidas
por alguém com competência (ou poder) previamente estabelecida em uma
regra hierarquicamente superior
647
.
Para ilustrar tal aspecto de sua teoria, Kelsen explica que a ordem de um
ladrão para que lhe seja entregue uma certa quantia em dinheiro não consubs
-
tancia um dever ser objetivamente válido, porquanto nenhuma norma superior
lhe outorga tal poder, enquanto, de outro lado, o comando de um fiscal da
Fazenda Pública cobrando valores ao erário é vinculante, pois tal competência
lhe é franqueada pela legislação tributária, a qual, por sua vez, foi produzida
por parlamentares no exercício de prerrogativas previstas na constituição
648
.
As disposições constitucionais, em sequência ascendente, retiram sua validade
de uma regra superior fundante, cuja existência pode ser apenas pressuposta, a
qual Kelsen designou de norma fundamental (Grundnorm)
649
. Tal disposição
de validade última não é necessariamente, nem geralmente, a constituição vi
-
gente, mas sim uma norma primeira e suprema que inaugurou a ordem jurídica
de determinado estado e ainda lhe confere juridicidade
650
.
Daí conclui-se, a um, que a norma fundamental institui um ordena
-
mento jurídico unitário, pois, abaixo dela, apenas podem ter validade (ou
seja, existência) as disposições que com ela são compatíveis
651
, e, a dois, que
tal sistema é estruturado segundo uma ordem de normas escalonadas pelo
critério de validade formal, cuja hierarquia, em sequência sucessiva, com
-
preende a constituição, as emendas constitucionais, as leis complementares,
as leis ordinárias, os decretos governamentais, os atos normativos da admi
-
nistração pública e, finalmente, a norma de decisão (individual) dos agentes
647. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 9.
648. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 9.
649. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 9 e especialmente
217: “Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação de
causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pres-
supõe a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não
pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada.
A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento de sua validade já
não pode ser posto em questão. Uma tal norma pressuposta como a mais elevada, será aqui designada
como norma fundamental (Grundnorm) ”.
650. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 169:
“Todos esses atos pertencem a uma mesma ordem jurídica porque a origem de sua validade pode ser
remontada – direta ou indiretamente – à primeira constituição. Pressupõe-se que a primeira constituição
seja uma norma jurídica de caráter obrigatório, e a formulação da preposição é a norma fundamental
dessa ordem jurídica” .
651. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 33: “Uma ‘ordem’
é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento
de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é – como veremos – uma norma
fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem” .
públicos no exercício de suas funções
652
.
A referência ao parâmetro de validade apenas formal significa que
uma norma inferior não integra validamente o sistema por possuir conteú
-
do compatível com uma regra superior, mas tão somente porque foi criada
formalmente de acordo com ela, razão pela qual o direito positivo pode ter
qualquer conteúdo
653
.
A validade, então, decorre de uma sequência dinâmica de delegações
de competências da autoridade superior à inferior, para estabelecer normas
independentemente do seu conteúdo, salvo se, excepcionalmente, tais res
-
trições conteudísticas forem expressamente formalizadas no preceito de
maior hierarquia
654
.
Frente a tais considerações, pode-se delinear outro ponto de suma
relevância para a teoria do direito em exame, justamente a configuração do
ordenamento jurídico como uma pirâmide escalonada de normas segun
-
do critério de validade meramente formal, cujo ápice é a constituição do
estado. Não se pode olvidar que Kelsen não empregou o termo “pirâmide”
ao tratar da ordem escalonada de normas, contudo, tal figura geométrica
bem representa a visualização gráfica de sua teoria da ordem jurídica e,
justamente por isto, é amplamente empregada pela doutrina, de modo a
justificar sua adoção neste trabalho.
Quarto, para Teoria Pura do Direito, a aplicação jurídica é uma
operação subsuntiva estreitamente ligada com a formatação escalonada
do ordenamento jurídico, acima delineada, com considerável margem de
discricionariedade.
Com efeito, para a proposição teórica em foco, interpretação é a ope
-
ração mental que fixa o sentido das normas superiores para, de acordo com
elas, constituir a norma que vai fundamentar a decisão do órgão jurídico
652. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 247.
653. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 221: “Uma norma
jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser
deduzido pela vida de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é
criada por uma forma determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma norma funda-
mental pressuposta. […] Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito” .
654. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 165:
“A norma fundamental apenas estabelece certa autoridade, a qual, por sua vez, tende a conferir poder de
criar normas a outras autoridades. As normas de um sistema dinâmico têm de ser criadas através de atos
de vontade por indivíduos que foram autorizados a criar normas por alguma norma superior. Essa auto-
rização é uma delegação. O poder de criar normas é delegado de uma autoridade para outra autoridade;
a primeira é a autoridade superior, a segunda é a inferior” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 221220 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
(administrativo, legislativo ou judiciário)
655
.
Assim, a aplicação do direito é apenas uma nova escala (ou fase) da
dinâmica do ordenamento, pois compreende a apreciação do significado das
disposições mais altas na hierarquia para montagem de um novo degrau na
parte inferior da pirâmide.
Sob este prisma, uma decisão de um órgão com competência jurídica
(a exemplo da judicial) não tem caráter simplesmente declaratório, pois não
descobre um direito já pronto e acabado de antemão, mas sim constitutivo,
na medida em que cria uma norma inferior com efeitos sobre uma situação
específica (geralmente a resolução de uma questão individual)
656
. Por isto,
a criação e a aplicação do direito são exatamente a mesma coisa, porque
refletem a fixação de uma norma inferior de acordo com a superior
657
. So-
mente as hipóteses de mera aplicação de uma sanção ao caso concreto e de
criação da norma fundamental pressuposta não são atos simultaneamente
criadores e aplicadores da norma, pois consubstanciam hipóteses limítrofes
da teoria dinâmica sob foco
658
.
A interpretação, de acordo com tal dinâmica interna à ordem jurídica,
é conduzida por subsunção, ou seja, mediante a fixação de correspondência
lógica da norma inferior com a superior
659
. É preciso considerar, entretanto,
que as determinações decorrentes das normas superiores nunca são comple
-
tas, restando sempre uma margem, maior ou menor, para livre apreciação
do órgão aplicador. Por isto, as normas do escalão superior possuem o
caráter de um quadro, janela ou moldura (Rahmen) a ser preenchido pelo
órgão aplicador/criador do direito
660
. Ao completar tal espaço de conforma-
ção (a moldura), o intérprete exerce um ato de vontade que pode resultar
em mais de uma consequência adequada às normas superiores e, portanto,
655. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 387: A interpretação
é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir
de um escalão superior para um escalão inferior” .
656. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 261-262.
657. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 195:
“Que a criação de Direito seja, ao mesmo tempo, aplicação de Direito é uma consequência imediata do
fato de que todo ato criador de Direito deve ser determinado pela ordem jurídica” .
658. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 195.
659. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986. p. 339-340:
“Contanto que a relação de correspondência que existe entre duas normas seja uma relação de subsun-
ção, é uma relação lógica que existe entre o conceito mais geral (abstrato) e o menos geral (abstrato) ou
entre o conceito geral (abstrato) e uma representação concreta (conceito individual). […] Contanto que
tal subsunção seja um processo lógico de pensamento, que se realizada na fundamentação de validade
de uma norma pela validade de uma outra norma, a Lógica é aplicável na relação entre normas. Esta
relação não é nenhuma conclusão, e sim uma relação lógica” .
660. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 388.
admitida pelo direito
661
.
Logo, outra característica da proposta positivista de Kelsen consiste
na discricionariedade para criação/aplicação da norma, diante das possibi
-
lidades estabelecidas pelo ordenamento jurídico, que autorizam a existência
de mais de uma resposta correta (adequada ao ordenamento) para a reso
-
lução de cada caso
662
.
Quinto, o autor expõe ainda que, no seu entender, a ordem jurídica se
diferencia das demais ordens sociais, a exemplo da moral e da religião, em face
do caráter coativo de suas normas. Muito embora as demais ordens sobre
condutas humanas também possam estabelecer sanções para hipótese de des
-
cumprimento de suas normas, ainda que de cunho transcendental, somente o
direito estabelece reprimendas socialmente imanentes, que são executáveis in
-
dependentemente da vontade do infrator, através de estruturas organizadas
663
.
Sob esta ótica, as normas que não contém sanções diretamente, a
exemplo das permissivas ou de competência, são consideradas como não-
autônomas, haja vista que sua juridicidade decorre de estarem em ligação
essencial com outras que estatuem penas coercitivas
664
.
Portanto, como quinta característica da teoria jurídica em tela, pode-se
assinalar a coercitividade das normas jurídicas, mediante o uso socialmente
organizado da força
665
.
Sexto, além de estabelecer tal diferença entre juridicidade e moralidade,
como ordens sociais de características diversas, Kelsen propõe a separação
entre direito e moral, sob os argumentos de que, a um, a legitimação moral
das normas jurídicas é irrelevante à ciência jurídica, pois esta deve apenas
conhecer e descrever seu objeto, prescindindo da aprovação ou desaprovação
661. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 392-395.
662. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 396: “A interpreta-
ção jurídico-científica tem de evitar, com máximo cuidado, a ficção de que uma norma jurídica apenas
permite, sempre e em todos os casos, uma só interpretação: a interpretação ‘correta’. Isto é uma ficção
de que se serve a jurisprudência tradicional para consolidar o ideal da segurança jurídica. Em vista da
plurissignificação da maioria das normas jurídicas, este ideal somente é realizável aproximativamente” .
663. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 37.
664. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 57 e 61.
665. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 60: “É por isso, de
rejeitar uma definição do Direito que o não determine como ordem de coação, especialmente porque só
através da assunção do elemento coação no conceito de Direito este poder ser distintamente separado de
toda e qualquer ordem social, e porque, com elemento coação, se toma por critério um fator sumamente
significativo para o conhecimento das relações sociais e altamente característico das ordens sociais a
que chamamos ‘Direito’; e mais especialmente ainda porque só então será possível levar em conta a co-
nexão que existe – na hipótese mais representativa para o conhecimento do Direito, que é a do moderno
direito estadual – entre o Direito e o Estado, já que este é essencialmente uma ordem de coação e uma
ordem de coação centralizadora e limitada no seu domínio territorial de validade” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 223222 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
de seu conteúdo
666
, e, a dois, não é cientificamente comprovável a existência
de uma moral absoluta, válida em todos os tempos e em qualquer parte, ha
-
vendo apenas diversos padrões morais relativos e subjetivos, que variam para
cada sociedade e, desta forma, são imprestáveis para apreciação valorativa do
direito com efeitos gerais
667
.
Nessa trilha lógica, a norma jurídica poderia ser considerada moral
-
mente aceitável ou não de acordo com determinado sistema de moral relativa,
sem que daí se possa extrair uma avaliação racional pautada em um juízo
inequívoco e universalmente justificável. Sem embargo, uma norma poderia
ser classificada como moralmente legítima para uma ordem moral específica
e, simultaneamente, como insustentável para outra, de sorte a evidenciar ser
prescindível a avaliação da moralidade do direito para outra finalidade que
não a de “prestar politicamente bons serviços”
668
.
De tal argumentação, extrai-se a sexta característica da matriz teórica
positivista sob comento, consistente na absoluta ruptura entre o direito e a
moral, como ordens sociais distintas e independentes.
Sétimo, Kelsen também nega que os princípios tenham caráter jurídi
-
co, ainda que possam influenciar o legislador e o juiz no momento de criação
e aplicação da norma
669
. Para ele, os princípios são elementos estranhos ao
direito, porquanto decorrem de postulados extraídos da moral, da política
ou do costume, de modo que não podem ter o caráter de espécie normativa.
O purismo do direito pressupõe que apenas as regras positivamente
válidas integram o ordenamento jurídico, ainda que a sua criação tenha
recebido influxos de princípios morais ou de quaisquer outros tipos de
666. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 77: “A necessidade
de distinguir o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que, do ponto de vista do conhe-
cimento científico do Direito positivo, a legitimação deste por uma ordem moral é irrelevante, pois a ci-
ência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar seu objeto, mas apenas tem de o conhecer e descrever” .
667. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 78: “A tese, rejeitada
pela Teoria Pura do Direito mas muito espalhada na jurisprudência tradicional, de que o Direito, segun-
do a sua própria essência deve ser moral, de que uma ordem social imoral não é Direito, pressupõe,
porém, uma Moral absoluta, isto é, uma Moral válida em todos os tempos e em toda parte” .
668. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 78.
669. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1986. p. 145-156, em
especial p. 148: “Como princípios do ‘Direito’ podem-se indicar os princípios que interessam à Moral,
Política ou Costume, só enquanto eles influenciem a produção de normas jurídicas pelas competentes
autoridades do Direito. Mas eles conservam seu caráter como princípios da Moral, Política e Costume,
e precisam ser claramente distinguidos das normas jurídicas, cujo conteúdo a eles corresponde. Que eles
são qualificados como princípios de ‘Direito’, não significa – como a palavra parece dizer – que eles
são Direito, que têm o caráter jurídico. O fato de que eles influenciem a produção de normas jurídicas
não significa – como Esser aceita – que eles estejam ‘positivados’, i.e., sejam partes integrantes do
Direito positivo. […] A produção de normas jurídicas também é influenciada por fatores diferentes dos
princípios da Moral, da Política, do Costume, p.ex., por interesses de certos grupos de subordinados do
Direito, sem que se conceda a estes interesses caráter de ‘Direito’” .
influências, de valores ou de interesses.
Portanto, a sétima caraterística da teoria positivista em enfoque consiste
em negar juridicidade a qualquer padrão de julgamento diferente da regra
positiva, a exemplo de princípios ou políticas.
2.3.3. O CONCEITO DE DIREITO DE HART
Herbert Lionel Adolphus Hart propôs aprimoramentos ao paradig-
ma do Positivismo Jurídico, no sentido de aperfeiçoar o entendimento
do direito, da moral e da coerção como fenômenos sociais distintos, mas
relacionados entre si
670
.
Seus estudos tiveram o objetivo de superar as propostas lançadas por
Jeremy Bentham e John Austin, bem como, em parte, foram influenciados
pelas obras de Hans Kelsen. Após o refinamento das teses juspositivistas
de tais autores e das contribuições decorrentes dos debates promovidos em
face de Lon Luvois Fuller e, posteriormente, de Ronald Myles Dworkin, a
sua teoria assumiu o aspecto de um Positivismo Jurídico brando ou flexível
(soft legal positivism)
671
.
A compreensão de Hart sobre a teoria do direito pode ser extraída,
principalmente, do seu texto O Conceito de Direito (incluído o posfácio
acrescentado postumamente)
672
e do conjunto de dezessete artigos científicos
que escreveu sobre o tema, publicados organizadamente no livro Ensaios
sobre Teoria do Direito e Filosofia
673
. A análise em tela se limita ao referido
substrato, porquanto suficiente para formação de um quadro dos principais
elementos informadores do Positivismo Jurídico brando, de modo a atender
ao referente deste trabalho.
Não é ocioso assinalar, desde o início, que a abordagem de Hart é
voltada principalmente ao sistema consuetudinário inglês (common law ou
judge made law), motivo pelo qual atenta para outros aspectos daqueles mais
enfatizados por Kelsen.
Inaugurando a síntese analítica, ressalta-se a discordância de Hart
670. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. IX.
671. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 323: “Em primeiro lugar,
ignora minha aceitação explícita de que a norma de reconhecimento pode incorporar, como critérios de
validade jurídica, a obediência a princípios morais ou valores substantivos; assim, minha doutrina con-
siste no que se tem sido chamado de ‘positivismo brando’ (soft positivism), e não, como quer a versão
de Dworkin, num positivismo ‘dos simples fatos’” .
672. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
673. HART, H. L. A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 225224 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
quanto ao entendimento de que o sistema jurídico está fundamentado na
obediência habitual da maioria das pessoas, localizadas sobre um determina
-
do território, às ordens apoiadas por ameaças proferidas por um indivíduo
ou por um grupo de indivíduos soberanos, que, por sua vez, não obedecem
habitualmente a ninguém, como anteriormente havia proposto Austin
674
.
Após expor as falhas de tal doutrina, através de exemplos alinhavados em
longas páginas, o jurista inglês propôs que o conceito de direito está, em ver
-
dade, apoiado em duas diferenças estruturais básicas, consistentes, primeiro,
na inclusão de um aspecto interno (subjetivo) às normas, e, segundo, na
combinação entre duas modalidades distintas e interdependentes de regras
jurídicas. Além disto, complementarmente, Hart apresentou modificações
teóricas ao Positivismo Jurídico quando, em terceiro, admitiu que as normas
possuem uma zona de incerteza, de modo a inviabilizar a sua aplicação em
todos os casos por mera dedução lógica (subsunção), e, quarto, apontou
a existência de uma relação entre o direito e a moral, embora ainda como
ordens sociais distintas e separadas. Cada um destes aspectos será apresentado
pormenorizadamente na sequência.
Quanto ao primeiro ponto, Hart intuiu que as normas não poderiam
ser examinadas apenas pelo ponto de vista externo, como sendo o hábito
de obediência das pessoas às ordens de uma entidade soberana.
Não basta a habitualidade de comportamento para que se identifique a
existência de uma norma, pois a externalização de condutas, ainda que con
-
vergentes dentro de determinado grupo social, não implica a compreensão
de que tal forma de agir é geral e, tampouco, que merece ser conservada.
Notadamente, o aspecto externo deve ser consolidado ao âmbito sub
-
jetivo interno para consubstanciar uma norma, de modo que a sua existência
dependa de ser encarada como um padrão social geralmente aceito e re
-
comendável. Cabe destacar que o aspecto interno não trata de um mero
sentimento, mas sim da manifestação de juízos quanto à obediência das
regras de conduta. Esta atitude crítica e reflexiva (inclusive, autocrítica) re
-
força a exigência social de submissão à regra e assevera a reprimenda diante
de desvios comportamentais
675
.
674. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 23-102 e, especialmente,
p. 129: “ Segundo a teoria criticada no Capítulo IV, os fundamentos de um sistema jurídico consistem
numa situação em que a maioria dos integrantes de um grupo social obedece habitualmente às ordens,
apoiadas por ameaças, da pessoa ou pessoas soberanas, que, por sua vez, não obedecem a ninguém” .
675. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 75: Por outro lado, para
que exista uma norma social, é preciso que pelo menos algumas pessoas encarem o comportamento
Em segundo, Hart defendeu que o direito não é composto apenas
por regras de conduta proferidas por um ente soberano e reforçadas por
ameaças, pois a complexidade do direito demonstra a existência de uma se
-
gunda modalidade específica de norma, a qual não trata do estabelecimento
de deveres sob pena de sanção.
Com efeito, há um tipo de norma parasitário e secundário com relação
ao básico ou primário, cujo âmbito se restringe à introdução, exclusão ou
alteração de regras, bem como à outorga de poderes públicos ou privados para
produção de obrigações
676
. Esta outra espécie normativa versa exclusivamente
sobre a criação, extinção ou modificação do modelo básico de normas, de
modo a atuar em um nível diferente do sistema jurídico, na qualidade de
Metarregras (ou seja, como regras sobr e regras).
Segundo Hart, as referidas normas secundárias podem ainda ser classifi
-
cadas em, a um, normas de reconhecimento (rule of recognition), as quais são
a fonte de identidade, de autoridade e de validade das demais regras de uma
mesma ordem jurídica
677
; a dois, em normas de modificação, que estabelecem
os processos para alteração das normas primárias e fixam as competências
para celebração de negócios jurídicos
678
; e, a três, em normas de julgamento,
que dispõem sobre os processos judiciais, em todos os seus aspectos
679
.
em questão como um padrão geral a ser seguido pelo grupo como um todo. Uma norma social tem um
aspecto ‘interno’, além do aspecto externo que compartilha com um hábito social e que consiste no
comportamento costumeiro e uniforme que um observador poderia registrar” .
676. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.105: “[...] já vimos, no
Capítulo III, a necessidade de discriminar, se quisermos fazer justiça à complexidade de um sistema
jurídico, entre dois tipos diferente de normas, embora relacionados. As normas de um tipo, que pode
ser considerado o tipo básico ou primário, exigem que os seres humanos pratiquem ou se abstenham de
praticar certos atos, quer queiram, quer não. As normas do outro tipo são, num certo sentido, parasitárias
ou secundárias em relação às primeiras, pois estipulam que os seres humanos podem, ao fazer ou dizer
certas coisas, introduzir novas normas do tipo principal, extinguir ou modificar normas antigas ou de-
terminar de várias formas sua incidência, ou ainda controlar sua aplicação. As normas do primeiro tipo
impõem deveres; as do segundo tipo outorgam poderes, sejam públicos ou privados” .
677. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 122: “Essa norma especifica
as características que, se estiverem presentes numa determinada norma, serão consideradas como indi-
cação conclusiva de que se trata de uma norma do grupo, a ser apoiada pela pressão social que exercer” .
678. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 124-125: “A solução para o
caráter estático do regime de normas primárias consiste na introdução do que denominaremos ‘normas
de modificação’. A forma mais elementar de uma norma desse tipo é a que autoriza algum indivíduo ou
grupo de pessoas a introduzir novas normas primárias para orientar a vida do grupo, ou de uma classe
dentro dele, e a eliminar normas antigas. […] Pois essas normas possibilitam a elaboração de testamen-
tos, transferências de propriedade e muitas outras estruturas de direitos e deveres criados voluntaria-
mente que caracterizam a vida num regime de direito, embora, evidentemente, uma forma elementar
de norma que confere certo poder também esteja subentendida na instituição moral de promessa ou
compromisso” .
679. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.125: “A forma mínima
de julgamento consiste nessas determinações, de modo que denominaremos ‘normas de julgamento’
as normas secundárias que outorgam poderes de formulá-las. Além de identificar os indivíduos que
deverão julgar, essas normas também definem os procedimentos a serem seguidos. Como as outras
normas secundárias, estas se situam em nível diferente do das normas primárias: embora possam ser
reforçadas por normas adicionais que imponham aos juízes o dever de julgar, elas não impõem deveres,

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 227226 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
Prosseguindo na segunda característica (direito composto por normas
primárias e secundárias), Hart asseverou que as regras de reconhecimento são
o embrião da ideia de validade jurídica, haja vista representarem o elemento
de conexão do ordenamento jurídico, pois somente através delas se identifi
-
cam quais as normas integrantes de um mesmo sistema
680
.
As normas de reconhecimento, então, representam a referência última
de um sistema jurídico (ultimate rule), sendo que, dentre elas, uma é o pa
-
râmetro supremo de referência (supreme rule), na medida em que constitui
o elemento central de pertença e de validade de todas as demais regras inte
-
grantes de um mesmo sistema jurídico
681
.
Daí a semelhança com a proposição de Kelsen, acerca da fundamen
-
tação da ordem jurídica em uma norma pressuposta (hipotética), como
o ápice de um sistema jurídico escalonado segundo critérios de validade
formal
682
. Porém, a principal diferença entre a norma fundamental kelse-
niana e a norma de reconhecimento hartiniana reside no caráter empírico
da segunda, na medida em que não se trata de um preceito hipotético, mas
sim concretamente demonstrado, ante seu efetivo emprego na atividade de
identificação de outras normas do sistema, pelas pessoas sujeitas à sua in
-
cidência, principalmente nos cenários acadêmico e forense
683
. Outrossim,
enquanto Kelsen apenas pressupôs a existência de uma norma superior às
demais dentro de uma ordem jurídica, Hart, de outro lado, sustentou que a
existência desta regra última é aferível factualmente, razão pela qual optou
mas conferem poderes judiciais e um status especial às declarações judiciais sobre o não-cumprimento
de obrigações” .
680. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 123: “Pelo fato de apor às
outras normas o selo de autoridade, ela introduz, embora de modo embrionário, a ideia de um sistema
jurídico, pois as normas já não constituem um conjunto de elementos isolados e desconexos, mas se
acham unificadas de uma forma simples. Além disso, já temos, no mero ato de identificar certa como
como uma dentre uma série autorizada de normas, o embrião da ideia de validade jurídica” .
681. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 126: “A norma de reconhe-
cimento que estabelece os critérios para avaliar a validade de outras normas do sistema é, num sentido
importante, que procuraremos esclarecer, uma norma última (ultimate rule); e quando, como geralmente
ocorre, houver critérios hierarquizados por ordem de subordinação e primazia relativa, um deles será
considerado supremo ( supreme) ”.
682. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 9 e especialmente
217: “Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação de
causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pres-
supõe a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não
pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada.
A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento de sua validade já
não pode ser posto em questão. Uma tal norma pressuposta como a mais elevada, será aqui designada
como norma fundamental (Grundnorm) ”.
683. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 131: “Em geral, a norma
de reconhecimento não é explicitamente declarada, mas sua existência fica demonstrada pela forma
como se identificam normas específicas, seja pelos tribunais ou outras autoridades, seja por indivíduos
particulares ou seus advogados e assessores jurídicos” .
por adotar nomenclatura diversa daquela utilizada pelo jurista austríaco
684
.
Encerrando quanto à segunda característica, importa destacar a insistência
de Hart no sentido de que a união de normas primárias e secundárias repre
-
senta a chave para a compreensão do conceito de direito, porquanto se trata
da questão central de identificação e de conformação de um sistema jurídico.
Todavia, o autor advertiu que a ordem jurídica, na área periférica (ou
seja, afastada do núcleo composto por regras primárias e secundárias), é
também integrada por elementos de natureza diferente, os quais não foram
expressamente identificados em sua abordagem analítica
685
. Aliás, em pós-
escrito publicado postumamente, consta a retratação do jurista britânico
quanto à insuficiência de seu trabalho no concernente à discussão sobre os
princípios jurídicos
686
.
No tocante à terceira característica do Positivismo Jurídico flexível,
cabe anotar o desenvolvimento da ideia de que as normas apresentam uma
zona de incerteza, que inviabiliza a sua aplicação por mera dedução lógica
(subsunção) em determinadas situações, e, consequentemente, implica a
inafastabilidade do poder discricionário das autoridades (especialmente as
jurisdicionais) para criar a norma em casos duvidosos.
Sem embargo, as construções normativas, em razão de limitações lin
-
guísticas, não conseguem contemplar todas as hipóteses de aplicação futura,
de modo a resguardar um certo grau de amplitude de escolha à autoridade
encarregada da sua concretização
687
. Em outros casos, o próprio legislador
684. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 375-376: “A terminologia
de Kelsen, que classifica a norma fundamental como uma ‘hipótese jurídica’ (ibid. XV), ‘hipotética’
(ibid. 396), ‘uma norma última postulada’ (ibid. 113), uma ‘norma que existe na consciência jurídica’
(ibid. 116), ‘uma suposição’ (ibid. 396), obscurece ou mesmo destoa completamente do ponto de vista
enfatizado neste livro, qual seja, que o problema de determinar ‘quais são os critério de validade jurídica
em qualquer sistema jurídico’ é uma questão de fato” .
685. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 128: “[...] embora a com-
binação de normas primárias e secundárias mereça o lugar central que ora lhe é concedido, por explicar
muitos aspectos do direito, ela não pode, por si só, esclarecer todos os problemas. A junção das normas
primárias e secundárias se situa no centro de um sistema jurídico; mas não constitui o todo, e, à medida
que nos afastarmos do centro, teremos de conciliar, das formas descritas em capítulos posteriores, ele-
mentos de natureza diferente” (grifou-se).
686. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 339: “Muito se deve a
Dworkin por ter demonstrado e ilustrado a importância e a função dos princípios no pensamento jurídi-
co, e foi de fato um grave erro de minha parte não ter enfatizado sua força não-conclusiva. Mas, ao usar
a palavra ‘norma’, não pretendi absolutamente afirmar que os sistemas jurídicos incluem apenas normas
do tipo ‘tudo ou nada’ ou quase conclusivas” .
687. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 166-167: “Se o mundo no
qual vivemos tivesse apenas um número finito de características, e estas, juntamente com todas as for-
mas sob as quais podem se combinar, fossem conhecidas por nós, poderíamos então prever de antemão
todas as possibilidades. […] Poder-se ia tudo saber e, como tudo seria conhecido, algo poderia ser feito
em relação a todas as coisas e especificado antecipadamente por uma norma. Esse seria um mundo
adequado a uma jurisprudência ‘mecânica’” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 229228 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
pode optar por conferir maior margem de manobra ao órgão aplicador, para
que ele encontre a solução mais adequada dentre diversas opções enquadrá
-
veis nos limites normativos.
Seja qual for a técnica legiferante adotada, a verdade é que as regras
apresentam textura aberta (open texture), no sentido de que os padrões de
comportamento, ainda que sejam operacionalizados com certa tranquilidade
na grande maioria dos casos que se apresentem, acabarão por revelar um grau
de imprecisão em algum ponto.
Nesses chamados casos difíceis (hard cases), o órgão aplicador do direito
não encontrá uma resposta preestabelecida (uma norma elaborada a priori)
no ordenamento jurídico e, consequentemente, será forçado a uma escolha
discricionária (judicial discretion), entre diversas opções existentes nos limi
-
tes semânticos da norma, de modo a construir a solução mais adequada às
circunstâncias (uma norma lavrada a posteriori)
688
. Logo, especificamente no
caso da jurisdição, verifica-se que as aberturas da tecitura normativa ensejam
o exercício do poder legislativo intersticial (interstitial legislation) dos juízes,
como único meio disponível para resolução da contenda
689
.
Constatam-se aqui, novamente, estreitas semelhanças com a construção
positivista de Kelsen, no sentido de que há um espaço interpretativo (uma
moldura) para construção discricionária da norma de decisão em cada caso
concreto, mediante um processo constitutivo do direito
690
. Sem embargo,
Hart igualmente compreende que, em se tratando de casos difíceis (hard
cases), as normas não são elaboradas através de mero raciocínio lógico deduti
-
vo da hierarquia superior para inferior (subsunção), muito embora não tenha
desenvolvido mais amplamente o desenrolar de tal operação cognitiva
691
.
688. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 171: “Nesses casos, a au-
toridade encarregada de estabelecer as normas deve evidentemente exercer a sua discricionariedade, e
não há possibilidade de tratar a questão levantada pelos vários casos como se pudesse ser resolvida por
uma única solução correta a priori, e não por uma solução que represente um equilíbrio razoável entre
diversos interesses conflitantes” .
689. HART, H. L. A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 118.
690. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 388: “A norma do
escalão superior não pode vincular em todas as direções (sob todos os aspectos) o ato através do qual é
aplicada. Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que
a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou de execução que
se aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato” .
691. HART, H. L. A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 69-70:
“Se uma zona de penumbra de incerteza deve envolver todas as regras jurídicas, então sua aplicação a
casos específicos na área da zona de penumbra não pode ser uma questão de dedução lógica e, assim, o
raciocínio dedutivo, que tem sido festejado por gerações como a própria perfeição do raciocínio huma-
no, não pode servir de modelo para aquilo que os juízes ou, na verdade, qualquer pessoa, deveriam fazer
para acomodar casos específicos a normas gerais” .
Finalmente, o quarto ponto de destaque diz respeito ao abrandamento
da separação juspositivista entre o direito e a moral, no concernente à ad
-
missão de que as referidas ordens sociais, embora ainda distintas e separadas,
apresentam pontos de intercruzamento
692
.
Para Hart, as diretrizes jurídicas e morais se influenciam reflexivamente,
haja vista que a moralidade invade o direito nas convicções compartilhadas
pelos legisladores e juízes nas oportunidades de produção normativa
693
e,
também, as regras positivas conformam os padrões de conduta intersub
-
jetivamente compartilhados no cenário social, de modo a conferir novos
delineamentos à moral
694
. O referido influxo é intenso ao ponto de que a
própria eficácia das regras jurídicas é comprometida quando elas estão for
-
temente em desacordo com os postulados morais
695
.
Todavia, mesmo apesar de tais correlações, a moral não pode ser enca
-
rada como um critério corretivo do direito, como sugere a fórmula cunhada
por Gustav Radbruch
696
, haja vista que não tem condições de revogar as
regras postas pela autoridade estatal e tampouco de inserir novas normas
no sistema jurídico
697
.
Portanto, reside aqui a principal característica do Positivismo Jurídico
brando, justamente a aceitação de que os influxos morais são inerentes ao
692. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 221: “Existe, em todas as
comunidades, uma sobreposição parcial dos conteúdos das obrigações morais e jurídicas, embora as
exigências das normas jurídicas sejam mais específicas e cercadas de exceções mais minuciosas que as
de suas equivalentes morais” .
693. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 263: “O direito de todos os
Estados modernos mostra em inúmeros pontos a influência tanto da moral social aceita quanto de ideias
morais mais abrangentes. Essas influências ingressam no direito quer abrupta e explicitamente, através
da legislação, quer silenciosamente e pouco a pouco, através do processo judicial” .
694. HART, H. L. A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 59: “ Em
primeiro lugar, eles [Bentham e Austin] jamais negaram que, como fato histórico, o desenvolvimento
de sistemas jurídicos tivesse sido fortemente influenciado pela opinião moral e, inversamente, que os
padrões morais tivessem sido profundamente influenciados pelo Direito, de modo que o conteúdo de
muitas leis refletisse normas ou princípios morais” .
695. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 229: “[...] todavia, o direito
perde, muito frequentemente, essas batalhas contra a moral arraigada, e a norma moral continua em
pleno vigor ao lado das leis que proíbem o que a moral impõe” ; e, p. 264: “ Nenhum ‘positivista’ poderia
negar esses fatos ou recusar-se a admitir que a estabilidade dos sistemas jurídicos depende em parte
desses tipos de correspondência com a moral. Se é isso o que se postula como a ligação necessária entre
o direito e a moral, sua existência deve ser reconhecida” .
696. RADBRUCH, Gustav. Filosofia do direito. São Paulo: Martins fontes, 2004. p. 66: “Só a moral pode
fundamentar a força obrigatória do direito. […] Pode-se falar somente de normas jurídicas, de dever ser
jurídico, de validade jurídica e de deveres jurídicos quando o imperativo jurídico for abastecido pela
própria consciência com a força de obrigação moral” .
697. HART, H. L. A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. p. 59-60: “ O
que tanto Bentham como Austin estavam ansiosos em afirmar eram duas coisas bem simples: primeiro,
que na ausência de um preceito constitucional ou legal expresso, o mero fato de uma norma violar os
padrões da moral não implicava que ela deixasse de ser uma regra jurídica; e, inversamente, o mero fato
de uma norma ser moralmente desejável não poderia implicar que fosse uma regra jurídica” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 231230 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
direito, muito embora, a um, a moral seja entendida como uma ordem social
distinta e separada e, a dois, as regras jurídicas detenham uma primazia hie
-
rárquica sobre os ditames morais.
Da abordagem acima sintetizada, percebe-se que Hart aprofundou o
estudo do paradigma juspositivista no tocante à correlação entre direito e
moral e à teoria da norma jurídica. Todavia, ao contrário de Kelsen, não de
-
senvolveu uma abordagem focalizada das demais três plataformas da teoria
jurídica, consistentes nas teorias do ordenamento jurídico, das fontes e da
decisão jurisdicional, apenas tangenciando alguns aspectos de tais temas.
Daí que o chamado Positivismo Jurídico brando representa, a grosso modo,
apenas a modificação pontual da matriz disciplinar no atinente aos dois
pontos referidos, ao admitir o intercruzamento entre direito e moral e ao
desenvolver o conceito de regra jurídica.
2.3.4. O POSITIVISMO JURÍDICO DE BOBBIO
Norberto Bobbio organizou uma teoria do direito positivista com base
no legado teórico de Hans Kelsen
698
. Segundo o próprio cientista italiano,
seus estudos representam “ora um complemento, ora um desenvolvimento”
da obra kelseniana
699
, porém, sob o viés de um Positivismo Jurídico “crítico”,
pois pretensamente “não rígido nem ideologicamente conotado”
700
.
O pensamento de Bobbio sobre a teoria do direito pode ser extraído de
dois cursos que ministrou na Universidade de Turim (Università di Torino),
nos anos de 1957-58 e 1959-60, que resultaram em duas obras homônimas,
bem conhecidas da academia jurídica brasileira, intituladas Teoria da Norma
Jurídica
701
e Teoria do Ordenamento Jurídico
702
. Posteriormente, ambos os
textos foram ampliados e aglutinados em um único volume, chamado de
698. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 11: “Kelsen era
familiar entre os juristas e filósofos do direito da época. Fiz dele um dos meus autores e, no campo da
teoria do direito, o autor por excelência” .
699. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 187.
700. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 187: “Os temas
próprios do positivismo jurídico estão continuamente presentes em minhas aulas, tanto que a etiqueta
sob a qual eu mesmo rotulei a concepção do direito neles representada é a do positivismo, embora te-
oricamente não rígido nem ideologicamente conotado, que chamei de ‘crítico’” . Todavia, não se pode
desconsiderar BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. São Paulo: Unesp, 2016.
p. 176: “ Se pode valer para algo, dou como exemplo meu caso pessoal: diante do choque das ideologias,
não sendo possível nenhuma tergiversação, sou jusnaturalista; com respeito ao método, sou, com igual
convicção, juspositivista; no que se refere, enfim, à teoria do direito, não sou nem um, nem outro” .
701. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 4 ed. São Paulo: Edipro, 2008.
702. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10 ed. Brasília: UnB, 1999.
Teoria Geral do Direito
703
, que será empregado como referência primária
nesta parte do trabalho. Adicionalmente, a temática é abordada no livro Da
Estrutura à Função: Novos Estudos de Teoria do Direito
704
, composto por
dez artigos, nos quais o autor traça considerações acerca da importância dos
estudos tanto da função do sistema jurídico, outrora analisado apenas sob o
enfoque estrutural, quanto do seu aspecto promocional.
Antes de iniciar a exposição, lembra-se que o autor em tela, homem
de reconhecida formação cultural enciclopédica, seguia a tradição aca
-
dêmica de explicitar as principais vertentes teóricas existentes sobre os
temas e, somente depois de analisá-las criticamente, geralmente através
das técnicas de díades e tríades
705
, apresentava suas conclusões ou expunha
eventual filiação a alguma corrente. Logicamente que, por não se tratar de
um resumo das obras que ele escreveu sobre o assunto, serão abordados
apenas os pontos efetivamente relevantes ao referente proposto, partindo-se
diretamente para os resultados das análises, sem esmiuçar todas as eventuais
teorias que foram explicadas ou cotejadas.
Em primeiro, cabe referir que, para o autor, as normas jurídicas são
proposições prescritivas, ou seja, um conjunto de palavras cujo significado
visa influenciar o comportamento humano
706
. Percebe-se, então, que a norma
é analisada segundo critérios formais, ou seja, considerada de acordo com
sua estrutura, independentemente do seu conteúdo
707
. Importa destacar que
o autor difere proposição (palavras com significados) de enunciado (texto),
porquanto a forma gramatical e linguística pode variar sem implicar alteração
da significação respectiva
708
. Outrossim, a proposição normativa (significado)
pode resultar da interpretação de enunciados diversos (significantes).
703. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 09.
704. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole,
2007.
705. PASOLD, Cesar Luiz. Ensaio sobre a ética de Norberto Bobbio. Florianópolis: Conceito Editorial,
2008. p. 222-223.
706. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 64-66: “A tese
aqui sustentada é a de que as normas jurídicas pertencem à categoria geral das proposições prescritivas” .
[…] Quando afirmamos que uma norma jurídica é uma proposição, queremos dizer que ela é um con-
junto de palavras que possuem um significado” .
707. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 61: “O ponto de
vista a partir do qual nos propomos a estudar a norma jurídica neste curso pode ser denominado formal.
É formal no sentido de que consideraremos a norma jurídica independentemente do seu conteúdo, ou
seja, na sua estrutura” .
708. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 64-65: “Por
‘enunciado’ entendo a forma gramatical e linguística que um determinado significado é expresso, mo-
tivo pelo qual a mesma proposição pode ter enunciados diversos, e o mesmo enunciado pode exprimir
proposições diversas” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 233232 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
Contudo, a experiência normativa engloba uma ampla variedade de
proposições prescritivas, a exemplo dos preceitos religiosos, das obrigações
morais, das regras sociais, dos ditames dos costumes, das observações de boa
educação, da etiqueta (pequena ética), dentre outras
709
. Por isto, Bobbio se
dedicou a analisar outros caracteres, além da normatividade do compor
-
tamento, que fossem peculiares somente às normas jurídicas, de modo a
diferenciá-las das demais, chegando à conclusão de que o melhor critério
para tanto é o da resposta institucionalizada à violação.
Com efeito, a previsão da aplicação de sanções, de forma igual e por
instituições previamente organizadas, seria a característica mais marcante
das normas jurídicas, consubstanciando o parâmetro mais adequado para
diferenciação com relação às demais regras sociais, a exemplo daquelas de
cunho moral
710
. Não se pode olvidar, ainda, ser desnecessário que cada norma
individualizada apresente uma reprimenda específica, bastando que a hete
-
rotutela seja possível em razão da coercitividade do ordenamento jurídico
compreendido em seu todo, de modo que as consequências da conduta
estejam estabelecidas no sistema
711
. Portanto, no pensamento do jurista em
exame, as normas jurídicas são proposições prescritivas que pertencem a
um ordenamento cuja eficácia é reforçada pelo estabelecimento de respostas
institucionalizadas às violações (sanções aplicáveis em caso de ilícitos)
712
.
Complementando, o filósofo italiano entende que a norma jurídica
pode ser submetida a três valorações distintas, segundo os critérios de justiça,
conforme sua correspondência aos valores últimos que inspiram a ordem ju
-
rídica (âmbito deontológico)
713
; de validade, consoante sua existência fática
709. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 17: “As normas
jurídicas, as quais dedicaremos atenção de modo particular, são apenas uma parte da experiência norma-
tiva. Além das normas jurídicas, existem preceitos religiosos, regras morais, regras sociais, regras dos
costumes, regras daquela ética menor que é a etiqueta, regras da boa educação e assim por diante” .
710. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 152: Então,
com base nesse critério, chamaremos de ‘normas jurídicas’ aquelas cuja execução é garantida por uma
sanção externa e institucionalizada. Não pretendemos alçar este critério a critério exclusivo. Vamos nos
limitar a dizer que ele serve para circunscrever uma esfera de normas que em geral são chamadas de
jurídicas, talvez melhor do que qualquer outro critério” .
711. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 159: “Uma saída
seria negar às normas não sancionadas o caráter de norma jurídica. Mas é uma solução radical desneces-
sária. A dificuldade pode ser resolvida de outro modo, ou seja, observando que, quando falamos de uma
sanção organizada como elemento constitutivo do direito, referimo-nos não às normas singulares, mas
ao ordenamento normativo considerado em seu todo, razão pela qual dizer que a sanção organizada dis-
tingue o ordenamento jurídico de qualquer outro tipo de ordenamento não implica que todas as normas
desse sistema sejam sancionadas, mas apenas que a maior parte o seja” .
712. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 192-193: “Na-
quela ocasião determinamos a norma jurídica por meio da sanção, e a sanção por meio das caracterís-
ticas da exterioridade e da institucionalização, daí a definição de norma jurídica como aquela norma
‘cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada’” .
713. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 37-38: “O
perante o sistema (ontológico)
714
; e, de eficácia, mediante a apreciação dos
efeitos produzidos no cenário social, ainda que por força do emprego de
meios coercitivos (fenomenológico)
715
. No curso em que trata do ordena-
mento jurídico, todavia, o conceito de validade é aperfeiçoado, para significar
a pertinência de uma norma a um determinado sistema
716
.
Ademais, reproduz a orientação de Hart, no sentido de que além das
normas de conduta, que visam regular o comportamento humano, há aque
-
las de estrutura, as quais tratam das condições e dos procedimentos para a
produção normativa
717
.
Segundo, Bobbio desenvolve o Positivismo Jurídico crítico sob a
ótica do ordenamento (nomodinâmica), ao invés de focar a normas in
-
dividualmente consideradas (nomoestática)
718
. Tal mudança de perspectiva
representa um avanço às propostas kelseniana (sistema jurídico dinâmico) e
hartiniana (conjunto de regras primárias e secundárias), na medida em que,
mediante compreensão das partes pelo todo e vice-versa, coloca em evidência
os principais problemas do direito.
Notadamente, os primeiros expoentes do Positivismo Jurídico, Jeremy
Bentham e John Austin, não responderam a vários questionamentos posterio
-
res justamente porque focaram seus estudos nas normas isoladamente. Muito
embora os autores nomeados tenham apresentado conteúdo teórico muito
problema da justiça é o problema da correspondência ou não da norma aos valores últimos ou finais
que inspiram determinado ordenamento jurídico. […] Colocar-se o problema da justiça ou não de uma
norma equivale a se colocar o problema da correspondência entre o que é real e o que é ideal. Por isso
costuma-se chamar o problema da justiça de problema deontológico do direito” .
714. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 38-39: “O
problema da validade é o problema da existência da regra enquanto tal, independentemente do juízo de
valor sobre o fato de ela ser justa ou não. Enquanto o problema da justiça é resolvido com um juízo de
valor, o problema da validade é resolvido com um juízo de fato. […] Trata-se, caso se queira adotar uma
terminologia familiar entre os filósofos do direito, do problema ontológico do direito” .
715. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 39-40: “O pro-
blema da eficácia de uma norma é o problema de saber se essa norma é ou não seguida pelas pessoas a
quem se destina (os chamados destinatários da norma jurídica) e, caso seja violada, seja feita valer com
meios coercitivos pela autoridade que a estabeleceu. [...]Também aqui, para usar a terminologia cientí-
fica, embora em sentido diferente do costumeiro, pode-se dizer que o problema da eficácia das regras
jurídicas é o problema fenomenológico do direito” .
716. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 221: “A perti-
nência de uma norma a um ordenamento é o que se chama de validade” .
717. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 198: “Em todo
ordenamento, ao lado das normas de conduta, existe um outro tipo de normas, que se costuma chamar de
normas de estrutura ou de competência. São aquelas normas que não prescrevem a conduta que se deve
ter ou não mas prescrevem as condições e os procedimentos por meio dos quais são emanadas normas
de conduta válidas” .
718. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 186-187: “En-
quanto existem muitos estudos particulares sobre a natureza da norma jurídica, não existe, até hoje, a
menos que estejamos enganados, sequer um estudo completo e orgânico sobre todos os problemas que
a existência de um ordenamento jurídico suscita. […] Nomoestática e Nomodinâmica: a primeira con-
sidera os problemas relativos à norma jurídica; a segunda, aqueles relativos ao ordenamento jurídico” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 235234 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
importante para a evolução da ciência jurídica (a exemplo do tema referente
à imperatividade das normas), não puderam desenvolver satisfatoriamente as
questões relacionadas com os critérios de pertinência das regras ao sistema, as
antinomias entre preceitos legais e as lacunas, pois tais problemas merecem
uma análise sistemática, que ultrapassa a consideração das normas separada
-
mente
719
. Bobbio, por sua vez, aprofundou os referidos assuntos de forma
mais adequada e completa, porquanto partiu da nomodinâmica de Kelsen e
da tipologia normativa de Hart para tratar dos questionamentos relacionados
com a unidade, a coerência e a completude do ordenamento jurídico.
Sob o prisma de análise do autor em comento, a definição de direito
não é um problema da teoria da norma jurídica, mas sim da teoria do orde
-
namento jurídico
720
. Sem embargo, o conceito de direito se confunde com o
de ordenamento jurídico, pois ambos são o conjunto sistemático de normas
jurídicas
721
. Ademais, são as características de assimilação, de coercibilidade
e de eficácia do ordenamento que condicionam as normas, não o contrário,
de modo a revelar que é através do estudo da integralidade do sistema que se
compreende as suas partes
722
. Outrossim, nesta trilha lógica, as problemáticas
centrais da teoria do direito (unidade, coerência e completude) serão focadas
sob o viés da ordem jurídica, considerada como um conjunto concatenado
de normas inter-relacionadas.
Terceiro, quanto ao problema da unidade do ordenamento jurídico,
verifica-se que a dificuldade reside em estabelecer critérios para se determinar
a pertença das normas ao sistema.
Nesse particular, Bobbio emprega as mesmas respostas já oferecidas por
Kelsen e Hart, porém, apresenta algumas diferenças com relação aos temas
da qualidade da norma fundamental e da complexidade das fontes jurídicas,
719. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 186: “Repe-
tindo, a norma jurídica era a única perspectiva por meio da qual o direito era estudado: o ordenamento
jurídico era, quando muito, um conjunto de muitas normas, mas não o objeto autônomo de estudo, com
os seus problemas particulares e diversos” .
720. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 193-194: “Se,
como parece, só se consegue dar uma resposta sensata para essa pergunta, isso significa que o problema
da definição do direito encontra o seu âmbito apropriado na teoria do ordenamento, e não na teoria da
norma” .
721. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 15 e 185.
722. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 195-196: “Essa
inversão pode ser expressa sinteticamente da seguinte forma: enquanto para a teoria tradicional um
ordenamento jurídico se compõe de normas jurídicas, para a nova perspectiva normas jurídicas são
aquelas que passam a integrar um ordenamento jurídico. Em outros termos: não existem ordenamentos
jurídicos porque existem normas jurídicas distintas de normas não jurídicas; mas existem normas jurídi-
cas porque existem ordenamentos jurídicos distintos de ordenamentos não jurídicos. O termo ‘direito’,
na acepção mais comum de direito objetivo, indica um tipo de sistema normativo, não um tipo de nor-
ma”.
ou seja, das origens das normas
723
.
Com efeito, o autor reproduz a teoria kelseniana da construção pro
-
gressiva do direito, de acordo com os degraus de uma pirâmide de normas
escalonada pelo critério formal (de autoridade), em cujo ápice se encontra a
norma fundamental
724
. Segundo tal estrutura hierárquica, a atividade jurí-
gena é simultaneamente execução e produção, pois a decisão da autoridade
implica a execução do preceito superior para criação do inferior, na dinâmica
gradual do ordenamento jurídico
725
. Outrossim, a pertença de uma norma
ao sistema é aferível mediante sua referência, através das etapas da pirâmide
jurídica, até a norma máxima pressuposta, que confere validade e unidade
a todo o sistema
726
. Tal assunto já foi devidamente explicado e ilustrado
anteriormente, de modo que importa, nesta quadra do trabalho, tratar de
duas peculiaridades da doutrina bobbiana, atinentes à qualificação da norma
máxima e à classificação das fontes jurídicas.
Acerca da norma fundamental, Bobbio repete Kelsen, no sentido de
que se trata do fundamento abstrato e pressuposto da ordem jurídica. Ou
seja, não adota a posterior modificação de Hart, no sentido de justificar
empiricamente a existência de uma norma de reconhecimento. Todavia, o
pensador de Turim apresenta uma leve alteração no conceito operacional
kelseniano, para definir a norma máxima como aquela pressuposta que con
-
fere ao poder constituinte a competência para produzir a constituição e,
assim, fundar o ordenamento jurídico
727
. Ou seja, o preceito fundamental
723. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 201: “A dificul-
dade de identificar todas as normas que constituem um ordenamento jurídico resulta do fato de que ge-
ralmente essas normas não derivam de uma única fonte. Podemos distinguir os ordenamentos jurídicos
em simples e complexos, conforme as normas que os compõem sejam derivadas de uma única fonte ou
de várias fontes” .
724. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 211: “Adotamos
aqui a teoria da construção gradual do ordenamento jurídico, elaborada por Kelsen. Essa teoria serve
para dar uma explicação da unidade de um ordenamento jurídico complexo. O núcleo dessa teoria é que
as normas de um ordenamento não estão todas no mesmo plano. Existem normas superiores e normas
inferiores” .
725. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 213: “Em uma
estrutura hierárquica, como aquela do ordenamento jurídico, os termos ‘execução’ e ‘produção’ são
relativos, pois a mesma norma pode ser considerada, ao mesmo tempo, executiva e produtiva: executiva
em relação à norma superior; produtiva em relação à norma inferior” .
726. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 222: “Desse
modo podemos responder que é possível estabelecer a pertinência de uma norma a um ordenamento:
remontando de grau em grau, de poder em poder, até a norma fundamental. […] Então diremos que a
norma fundamental é o critério supremo que permite estabelecer a pertinência de uma norma jurídica a
um ordenamento; em outras palavras, é o fundamento de validade de todas as normas do sistema” .
727. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 220: “Dado o
poder constituinte como poder último, devemos pressupor então uma norma que atribua ao poder cons-
tituinte a faculdade de produzir normas jurídicas: essa norma é a norma fundamental. […] Note bem: a
norma fundamental não é expressa. Mas nós a pressupomos para fundar o sistema normativo” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 237236 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
pressuposto, para o jusfilósofo em comento, corresponde à autorização de
competência ao legislador constituinte primário, para inaugurar um novo
sistema de direito.
Acerca das fontes jurídicas, de outro lado, o professor italiano as con
-
ceitua como todos os fatos e atos que alimentam a atividade jurígena
728
. O
conceito operacional é dado no plural porque não existem concretamente
ordens jurídicas simples, isto é, em que há apenas uma única origem do
direito, como naqueles exemplos meramente didáticos, em que aparecem
somente os personagens do legislador, que estabelece as regras, e do súdito,
que as recebe para cumprimento
729
.
Logo, o referido autor admite a complexidade do ordenamento jurí
-
dico, sob o argumento de que sua composição recebe influxos normativos
de diversos canais
730
, por dois motivos fundamentais, consistentes em, a
um, limite externo, que é a recepção pelo estado de normas preexistentes na
sociedade, ainda que de conotação moral, religiosa, costumeira etc
731
; e, a
dois, limite interno, o qual se refere à necessidade do poder soberano delegar
competência legiferante a órgãos e pessoas, com vistas a viabilizar atualização
normativa, a exemplo da criação de agências reguladoras, dos poderes nego
-
ciais conferidos aos particulares etc
732
.
Tais limitações, embora conformem fronteiras ao sistema jurídico, não
afastam a sua qualidade unitária, pois mesmo as regras delegadas reportam,
728. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 208: “Podemos
aqui aceitar uma definição que se tornou comum: ‘fontes do direito” são aqueles fatos e aqueles atos de
que o ordenamento jurídico depende para produção de normas jurídicas” .
729. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 201: “Podemos
distinguir os ordenamentos jurídicos em simples e complexos, conforme as normas que os compõem sejam
derivadas de uma única fonte ou de várias fontes. Os ordenamentos jurídicos que constituem a nossa ex-
periência de historiadores e de juristas são complexos. A imagem de um ordenamento composto de apenas
dois personagens, o legislador, que põe as normas, e os súditos, que as recebem, é puramente didática” .
730. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 202: “A com-
plexidade de um ordenamento jurídico deriva do fato de que a necessidade de regras de conduta em
qualquer sociedade é tão grande que não existe poder (ou órgão) capaz de satisfazê-la sozinho” .
731. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 205: “1. ne-
nhum ordenamento nasce num deserto; metáforas à parte, a sociedade civil em que se vai formando um
ordenamento jurídico, como o do Estado, não é uma sociedade natural, absolutamente desprovida de
leis, mas uma sociedade em que vigem normas de vários tipos, morais, sociais, religiosas, comporta-
mentais, costumeiras, convencionais e assim por diante. O novo ordenamento que surge nunca elimina
completamente as estratificações normativas que o precederam: parte daquelas regras passa a integrar,
através de uma recepção expressa ou tácita, o novo ordenamento, que, desse modo, surge limitado pelos
ordenamentos anteriores. […] Podemos falar nesse caso de um limite externo do poder soberano” .
732. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 205-206: “Nes-
se caso, a multiplicação das fontes não deriva, como nos casos considerados sub 1, de uma limitação
proveniente do exterior, ou seja, do choque com uma realidade normativa pré-constituída, com que
também o poder soberano se deve deparar, mas de uma autolimitação do poder soberano, que subtrai a
si mesmo uma parte do poder normativo para atribuí-lo a outros órgãos ou organismos, de algum modo
dependentes dele. Pode-se falar nesse caso de limite interno do poder normativo originário” .
em última instância, à norma fundamental única
733
.
Quarto, no concernente à coerência do ordenamento jurídico, a di
-
ficuldade ocorre principalmente quando duas ou mais normas manifestam
incompatibilidade entre si e, por isto, não podem coexistir harmonicamente
dentro do mesmo sistema normativo, sob pena de acarretarem incertezas, por
dificultarem a previsibilidade das consequências de determinadas condutas
734
.
Notadamente, a ordem jurídica constitui um sistema justamente
porque as normas que a compõem são coerentes umas com as outras, for
-
mando um todo íntegro
735
. Destarte, o direito deve conter mecanismos que
permitam a resolução de eventuais inconsistências, mediante exclusão dos
preceitos conflitantes, para fins de viabilizar a segurança jurídica
736
.
O fenômeno da incompatibilidade entre duas ou mais normas do mesmo
ordenamento jurídico, com relação a pelo menos dois de seus âmbitos de va
-
lidade (temporal, espacial, pessoal e/ou material), é tecnicamente chamado de
antinomia
737
. As antinomias que podem ser suprimidas mediante o emprego
de critérios fornecidos pelo sistema são chamadas de meramente aparentes, en
-
quanto aquelas que não comportam solução dentro do sistema são designadas
de reais
738
. Cabe, então, apresentar a versão bobbiana de como se deve portar
o Jurista positivista quando diante de cada uma dessas hipóteses.
As antinomias aparentes, como a própria nomenclatura indica, podem
ser resolvidas mediante a aplicação de três critérios clássicos da doutrina jus
-
positivista, consistentes na prevalência hierárquica da regra superior sobre a
733. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 207: “Quando
falamos de uma complexidade do ordenamento jurídico, decorrente da presença de fontes reconhecidas
e de fontes delegadas, acolhemos e reunimos numa teoria unitária do ordenamento jurídico tanto a
hipótese dos limites externos quanto a dos limites internos” .
734. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 269: “Quando
existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e, portanto, ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico
não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com
exatidão as consequências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como igual tratamento
das pessoas que pertencem à mesma categoria” .
735. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 231: “Entende-
mos por ‘sistema’ uma totalidade ordenada, ou seja, um conjunto de organismos, entre os quais existe
uma certa ordem. […] Pois bem, quando nos perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um
sistema, perguntamo-nos se as normas que o compõem estão em relação de compatibilidade entre si e
em que condições é possível essa relação” .
736. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 239: “[...] diz-se
que um ordenamento jurídico constitui um sistema porque nele não podem coexistir normas incompatí-
veis. Nesse caso, ‘sistema’ equivale a validade do princípio que exclui a incompatibilidade das normas. Se
num ordenamento passam a existir norma incompatíveis, uma das duas ou ambas devem ser eliminadas” .
737. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 246: “Após
esses esclarecimentos, podemos redefinir antinomia jurídica como aquela situação que se verifica entre
duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e com o mesmo âmbito de validade” .
738. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 250.

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 239238 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
inferior (lex superior derogat legi inferiori)
739
, na revogação cronológica da regra
anterior pela posterior (lex posterior derogat legi priori)
740
e na preferência es-
pecial da regra específica sobre a genérica (lex specialis derogat legi generali)
741
.
Cabe acrescentar, ainda, que as Metarregras da hierarquia e da especia
-
lidade são consideradas fortes e, portanto, ambas prevalecem perante a da
cronologia, em caso de eventual conflito. Assim, uma lei posterior e inferior
cede perante a anterior e superior, enquanto, da mesma forma, uma norma
mais recente e geral não sobrepõe a antiga especial
742
.
Todavia, há duas situações hipotéticas em que a incidência de tais pa
-
râmetros não consegue, por si só, afastar a incongruência e, portanto, se está
diante de uma antinomia real para o paradigma do Positivismo Jurídico. O
primeiro caso ocorre quando os dois parâmetros fortes (hierarquia e espe
-
cialidade) são passíveis de aplicação e, então, concorrem entre si, sem uma
forma segura para escolha daquele que deve prevalecer; e, o segundo, é o
da insuficiência dos critérios, ou seja, quando se estiver diante de normas
incompatíveis de mesma hierarquia, contemporâneas e gerais, de modo que
nenhuma das Metarregras serve para dirimir a antinomia. Em ambos os
cenários, o intérprete não encontrará respostas dentro da matriz disciplinar
e, portanto, terá que se socorrer do poder discricionário, da mesma forma
como já referiram Kelsen e Hart
743
.
Quinto, no tocante à completude do ordenamento jurídico, Bobbio
discorreu sobre a visão juspositivista clássica, segundo a qual existe uma
norma para regular cada caso concreto, de sorte que a ordem jurídica não
apresente lacunas
744
. Muito embora o chamado dogma da completude seja
739. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 251: “O critério
hierárquico, também chamado de lex superior, é aquela com base no qual, de duas normas incompatí-
veis, prevalece aquela hierarquicamente superior: lex superior derogat inferiori” .
740. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 250: “O critério
cronológico, também chamado de lex posterior, é aquele com base no qual, de duas normas incompatí-
veis, prevalece aquela sucessiva: lex posterior derogat priori” .
741. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 253: “O terceiro
critério, chamado precisamente de lex specialis, é aquele com base em que, de duas normas incompatí-
veis, uma geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a segunda: lex specialis derogat generali” .
742. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 263-264.
743. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 257: “Isso
significa, em outras palavras, que no caso de um conflito em que não se possa aplicar nenhum dos três
critérios, a solução é confiada à liberdade do intérprete: poderemos quase falar de um verdadeiro poder
discricionário do intérprete, ao qual é confiada a resolução do conflito segundo a oportunidade, valendo-
-se de todas as técnicas hermenêuticas que são usadas há tempos e consolidadas tradicionalmente pelos
juristas, e não se limitando a aplicar uma regra única” .
744. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 271: “Por
‘completude’ entende-se a propriedade pela qual um ordenamento jurídico tem uma norma para regular
cada caso. Tendo em vista que a ausência de uma norma costuma ser chamada de ‘lacuna’ (em um dos
sentidos do termo ‘lacuna’), ‘completude’ significa ‘ausência de lacunas’. Em outras palavras, um or-
considerado uma das pedras angulares do Positivismo Jurídico
745
, o autor
em questão admite ser inviável a construção de um complexo normativo
que forneça soluções padronizadas para todos os conflitos futuros e, muito
menos, promova a renovação de regras em velocidade suficiente para acom
-
panhar os momentos de rápidas transformações da sociedade
746
. Então, em
substituição à confiança na onisciência do legislador, encarou a questão da
completude sob o prisma de que a ordem jurídica realmente é incompleta e,
bem por isto, depende do estabelecimento de critérios para complementá-la
quando, aparentemente, não fornece norma para equacionar o conflito, de
maneira a evitar o juízo de non liquet (ou juízo de não é claro, o qual afastaria
a responsabilidade de decidir diante da ausência de previsão abstrata clara).
Com efeito, considerando a indiscutível falta de preceitos legais para
regência de todos os casos conflituosos emergentes em sociedade, a comple
-
tude do ordenamento jurídico somente pode se sustentar na aplicação de
uma de duas normas implícitas, consistentes em, a primeira, na norma geral
permissiva (ou espaço jurídico vazio), no sentido de que há liberdade para
agir de qualquer modo quando ausente limitação normativa
747
, conforme in-
clusive já havia sugerido Kelsen
748
; ou, a segunda, na norma geral exclusiva,
a qual estabelece a proibição ou vedação de tudo aquilo não expressamente
autorizado pelo plexo jurídico
749
.
Nessa linha de raciocínio, a lacuna jurídica seria caracterizada pela au
-
sência de uma previsão normativa expressa que, então, enseja a contradição
entre duas normas supletivas antagônicas, uma delas pela permissão e a outra
pela proibição (norma geral permissiva ou exclusiva)
750
.
Porém, não foram construídos critérios seguros e satisfatórios para se
optar por uma das duas situações (permissão ou proibição geral), de modo a
denamento é completo quando o juiz pode encontrar nele uma norma para regular cada caso que se lhe
apresente, ou melhor, não há caso que não possa ser regulado com uma norma extraída do sistema” .
745. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 275: “O dogma
da completude, ou seja, o princípio de que o ordenamento jurídico seja completo para fornecer ao juiz
uma solução para cada caso, sem recorrer à equidade, foi dominante, e em parte o é até hoje, na teoria
jurídica continental de origem romanística. É considerado por alguns como um dos aspectos salientes
do positivismo jurídico” .
746. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 275-282.
747. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 282-286.
748. KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 212-
215.
749. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 286-291.
750. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 291: “[...] a
lacuna se verifica não pela ausência de uma norma expressa para a regulamentação de um determinado
caso, mas pela ausência de um critério para escolha de qual das duas regras gerais, aquela exclusiva e
aquela inclusiva, deva ser aplicada” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 241240 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
revelar que efetivamente existe um buraco na tecitura normativa, não preen-
chível por uma permissão total ou uma vedação ampla. Outrossim, Bobbio
forçosamente reconheceu a existência de vácuos no ordenamento jurídico,
ou seja, a sua incompletude
751
.
Ante tal constatação, importa estabelecer quais os critérios pelos
quais pode ser complementado, evitando que conflitos sejam deixados
sem solução
752
.
A doutrina em questão sustenta que o ordenamento jurídico pode ser
complementado por duas fórmulas distintas, consistentes, a primeira, na he
-
terointegração, quando se socorre de elementos externos, como a aplicação
de normas do direito natural, do costume ou de outros complexos normati
-
vos, bem como na hipótese de franquear a criatividade do juiz, para decidir
com equidade
753
; ou, a segunda, na autointegração, acaso estabeleça formas
de integração relacionadas exclusivamente com a fonte dominante (a lei po
-
sitiva, no caso), mediante o emprego da analogia (analogia legis ou ubi eadem
ratio, ibi eadem iuris dispositio), da interpretação analógica (analogia iuris
ou interpretação extensiva) ou dos chamados princípios gerais do direito
754
.
No ponto, importa assinalar uma diferença marcante com relação à
obra de Kelsen, consistente na relativação da orientação juspositivista de
que o ordenamento jurídico seria composto apenas por regras devidamente
promulgadas ou outorgadas pelo estado. Notadamente, Bobbio afirmou que
os princípios gerais do direito, extraídos implicitamente da integridade do
sistema, são considerados normas, ao lado das regras positivas. Todavia, não
se pode olvidar que o professor italiano lhes confere apenas a função supletiva
(autointegração), ou seja, de elementos internos ao sistema que auxiliam a
tarefa interpretativa de supressão de lacunas
755
.
E, sexto, é pertinente acentuar duas outras diferenças entre as versões
positivistas de Kelsen e Bobbio, consistentes nos avanços dos estudos da
751. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 293: “O fato de
a solução não ser mais óbvia, isto é, de não se poder extrair do sistema nem uma solução nem a solução
oposta, revela que o ordenamento é, no final das contas, incompleto” .
752. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 299: “Se um
ordenamento jurídico, estaticamente considerado, não é completo, a não ser por meio da norma geral
exclusiva, todavia, dinamicamente considerado, pode ser completado” .
753. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 301-302.
754. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 299.
755. BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 308-311,
especialmente p. 309: “Os princípios gerais, a meu ver, são apenas normas fundamentais ou normas
generalíssimas do sistema. […] Para mim não resta dúvida: os princípios gerais são normas como
todas as outras”.
função do sistema jurídico e do aspecto promocional do direito.
O escritor italiano, em exames esparsos, posteriores àqueles que ori
-
ginaram seu curso de teoria do direito, resolveu aprofundar a análise das
funções da ordem jurídica, antes estudada com enfoque apenas na sua es
-
trutura
756
. Notadamente, para ele, importava discutir não apenas a forma e
o conteúdo do direito, mas também, adicionalmente, qual a sua serventia
dentro do sistema social considerado em seu todo
757
. Assim, destacou a im-
portância do ordenamento jurídico não apenas como forma de controle de
condutas desviantes, mas também de direcionamento social
758
.
Ademais, entre as funções do direito, o autor destacou a importância da
promoção de condutas socialmente favoráveis, além da mera repressão de des
-
vios de comportamento
759
. Para ele, a relevância da função promocional do
direito reflete na gradual mudança da conformação do estado, representada
pela passagem do modelo meramente protecionista para o programático
760
.
Assim, ao contrário de Kelsen, que atribuiu importância secundária aos pre
-
ceitos normativos incentivadores
761
, Bobbio conferiu-lhes relevância similar
às sanções legais, de modo a justificar a gradual expansão de sua inserção nos
ordenamentos contemporâneos
762
. No ponto, cabe mencionar o argumento
756. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole,
2007. p. XII: “O predomínio da teoria pura do direito no campo dos estudos jurídicos teve por efeito que
os estudos de teoria geral do direito foram orientados, por um longo período, mais em direção à análise
da estrutura dos ordenamentos jurídico do que à análise de sua função” .
757. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole,
2007. p. XIII: “Em relação ao sistema social considerado em seu todo, em todas as articulações e in-
ter-relações, o direito é um subsistema que se posiciona ao lado dos outros subsistemas, tais como o
econômico, o cultural e o político, e em parte se sobrepõe e contrapõe a eles. Ora, aquilo que o distingue
dos outros subsistemas, junto aos quais constitui o sistema social em seu todo, é a função” .
758. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole,
2007. p. 79: “ Creio, portanto, que hoje seja mais correto definir o direito, do ponto de vista funcional,
como forma de controle e de direção social” .
759. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole,
2007. p. 7: “ Na literatura filosófica e sociológica, o termo ‘sanção’ é empregado em sentido amplo, para
que nele caibam não apenas as consequências desagradáveis da inobservância das normas, mas também
as consequências agradáveis da observância, distinguindo-se no genus sanção, duas species: as sanções
positivas e as sanções negativas” .
760. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole,
2007. p. 71: “O fenômeno do direito promocional revela a passagem do Estado que, quando intervém
na esfera econômica, limita-se a proteger esta ou aquela atividade produtiva para si, ao Estado que se
propõe também a dirigir a atividade econômica de um país em seu todo, em direção a este ou aquele
objetivo – a passagem do Estado apenas protecionista para o Estado programático” .
761. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 37: “As modernas
ordens jurídicas também contêm, por vezes, normas através das quais são previstas recompensas para
determinados serviços, como títulos e condecorações. Estas, porém, não constituem característica co-
mum a todas as ordens sociais a que chamamos Direito nem nota distintiva da função essencial destas
ordens sociais. Desempenham apenas um papel inteiramente subalterno dentro destes sistemas que fun-
cionam como ordens de coação” .
762. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: Novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole,
2007. p. XII: “Essa função não é nova. Mas é nova a extensão que ela teve e continua a ter no Estado
contemporâneo: uma extensão em contínua ampliação, a ponto de fazer parecer completamente inade-

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 243242 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
no sentido de que o acréscimo deste aspecto funcionalista, somado às críticas
a alguns postulados juspositivistas, tendem a aproximar o autor em tela do
movimento pós-positivista
763
.
2.3.5. O GARANTISMO JURÍDICO DE FERRAJOLI
Luigi Ferrajoli, professor da Università degli Studi Roma Tre, desen -
volveu uma reconstrução da teoria do Positivismo Jurídico (neopositivista),
com base nos postulados clássicos de Kelsen, Hart e Bobbio, a qual pode ser
chamada de Teoria Axiomática do direito
764
, ou então, alternativamente, de
Garantismo Jurídico, em atenção ao aspecto mais amplamente divulgado de
seu pensamento nos cenários acadêmico e forense brasileiros.
O objetivo científico de Ferrajoli consiste em um esforço para propor
novas articulações ao modelo de pensamento juspositivista, de modo a re
-
parar as suas principais deficiências e, então, superar a crise paradigmática
dentro da mesma matriz de pensamento, sem a necessidade de se efetuar o
salto paradigmático. Outrossim, trata-se de uma proposição teórica que pode
ser enquadrada naquilo que Kuhn chama de emendas ad hoc, que visam des
-
viar de anomalias teóricas e, assim, permitir a continuidade do paradigma.
No concernente à opção pelo método axiomático, caracterizado pelo
emprego de fórmulas lógicas com pretensão de precisão matemática, cabe
assinalar que a intenção declarada do autor era produzir conceitos operacio
-
nais unívocos e maximizar a coerência entre os postulados e as definições ao
longo do discurso, de modo a ampliar a clareza de suas proposições
765
.
As teses de Luigi Ferrajoli sobre as plataformas das fontes, da norma,
do ordenamento e da decisão podem ser extraídas, principalmente, dos livros
Principia Iuris (notadamente o volume 1)
766
, Democracya y Garantismo
767
, Di-
quada, e, de qualquer modo, lacunosa, uma teoria do direito que continue a considerar o ordenamento
jurídico do ponto de vista de sua função tradicional puramente protetora (dos interesses considerados
essenciais por aqueles que fazem as leis) e repressiva (das ações que a eles se opõem)” .
763. DAL RI, Luciene. Entre Positivismo e Pós-positivismo: flexibilição de elementos nos escritos de Nor-
berto Bobbio. Quaestio Iuris, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 24-43, 2017, p. 41: “ Bobbio pode então
ser entendido como pós-positivista, a partir da flexibilização de elementos do juspositivismo e consi-
derando o mais recente movimento como uma dinâmica de desenvolvimento que amplia os critérios de
aplicação do direito, abarcando uma concepção funcional e permeável dos ideais de liberdade e justiça” .
764. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. VII: “Este libro contiene una teoría del derecho construída con el método axiomático” .
765. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 51-64.
766. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1 e 2. Madrid: Trotta,
2011.
767. FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. 2 ed. Madri: Trotta, 2010.
reito e Razão: Teoria do Garantismo Penal
768
e Garantismo: Uma Discussão
sobre Direito e Democracia
769
, onde estão expostos os elementos nucleares
sobre o tema. Adicionalmente, importa acrescentar o teor do diálogo trava
-
do entre o jurista italiano e outros pensadores sobre o assunto, reproduzido
no conjunto de artigos consolidados no livro Garantismo, Hermenêutica e
(Neo)constitucionalismo
770
, de modo a conhecer as principais críticas que
tece em face das correntes pós-positivistas.
Primeiro, cabe anotar o entendimento de Ferrajoli no sentido de que
a ciência jurídica foi historicamente regida por dois paradigmas, con
-
sistentes nos modelos do Jusnaturalismo e do Positivismo Jurídico Legal ou
meramente Formal.
O primeiro (Jusnaturalismo) foi caracterizado pelo pressuposto me
-
tafísico de que existiriam normas naturais para reger a conduta humana,
fundamentadas em valores universais e atemporais, razão pela qual apresenta
uma estrutura nomoestática, ou seja, em que todas as normas jurídicas inte
-
grariam um ordenamento em razão de sua compatibilidade com um mesmo
conjunto de princípios morais
771
.
Posteriormente, tal construção teórica foi superada pelo segundo
padrão teórico mencionado (Juspositivismo Legal ou simplesmente Formal),
construído pelos autores clássicos (Kelsen, Hart e Bobbio, notadamente), que
estabelecia uma Ordem Jurídica nomodinâmica, ou seja, de normas jurídicas
artificialmente construídas pela autoridade competente e devidamente or
-
ganizadas em graus hierárquicos, de acordo com critérios de legalidade fraca
ou meramente formal
772
.
768. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014.
769. FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma discussão sobre direito e democracia. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2012.
770. STRECK, Lenio Luiz. FERRAJOLI, Luigi. TRINDADE, André Karam (org.). Garantismo, Herme-
nêutica e (Neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Do Advogado, 2012.
771. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 110: “ [...] universos nomoestáticos, esto es, a sistemas deónticos en los que una norma existe y es
válida si es deducible de otras normas del mismo sistema. El sistema nomoestático por antonomasia es
evidentemente la moral: por muy diferentes que sean los principios adoptados por los distintos sistemas
morales, cada uno de ellos exige la coherencia interna y la coherencia con los mismos de las opciones
morales llevadas a cabo en cada ocasión” .
772. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 111: “ Completamente distinto es el caso de los universos nomodinâmicos, es decir, de todos los
sistemas de tipo positivo o artificial en los que la existencia de una modalidad normativa, esto es, de
una norma, depende–[...]–del hecho de que haya sido puesta por una auctoritas” . Também ver p. 414. E
ainda FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In STRE-
CK, Lenio Luiz. FERRAJOLI, Luigi. TRINDADE, André Karam (org.). Garantismo, Hermenêutica
e (Neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Do Advogado, 2012. p. 13-14: “ Entende-se, sumariamente,
por ‘positivismo jurídico’ uma concepção e/ou um modelo de direito que reconhece como ‘direito’
qualquer conjunto de normas postas ou produzidas por quem está autorizado a produzi-las, independen-
temente dos seus conteúdos e, portanto, de sua eventual injustiça” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 245244 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
Porém, atualmente, estaria sendo construído um terceiro modelo
paradigmático para a ciência do direito, chamado de neopositivismo
ou jusconstitucionalismo, que estabelece a existência de um ordenamento
jurídico estruturado não apenas formalmente, mas também materialmente,
de acordo com o conteúdo axiológico expresso na constituição, exposto
através de princípios e de direitos fundamentais, segundo um parâmetro
de legalidade forte ou substancial
773
. A proposta teórica desenvolvida pelo
autor estaria em consonância com tal novo modelo paradigmático, que
reflete uma reconstrução da matriz disciplinar juspositivista, sem olvidar
da manutenção de suas teses básicas.
Segundo Ferrajoli, a sua proposição teórica é “um reforço do positivis
-
mo jurídico, por ele alargado em razão de suas próprias escolhas – os direitos
fundamentais estipulados em normas constitucionais – que devem orientar
a produção do direito positivo”, tratando-se assim do “resultado de uma
mudança de paradigma do velho positivismo, que se deu com a submissão
da própria produção normativa a normas não apenas formais, mas também
substanciais, de direito positivo”
774
.
O retratado autor sustenta que a primeira e mais elementar caracterís
-
tica do Positivismo Jurídico, a ser preservada em sua proposta neopositivista,
é a da separação entre direito e moral, ou seja, de que a juridicidade é um
produto artificial cuja origem (fonte) é social (social fact thesis, social sources
of the law ou auctoritas, non veritas facit legem)
775
.
O postulado da separação entre juridicidade e moralidade, segundo ele,
“é uma tese metacientífica sobre a recíproca autonomia do ‘ponto de vista
interno’ (ou jurídico) do ‘ponto de vista externo’ (ético-político, ou, ainda,
sociológico) no estudo do direito”
776
. No seu entendimento, o Garantismo
“pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade
e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração
773. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 414-415 e, também, p. 469: “Bajo este aspecto el constitucionalismo es un perfeccionamiento del
positivismo jurídico y el estado constitucional de derecho una prolongación del estado legislativo de
derecho” .
774. FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In STRECK,
Lenio Luiz. FERRAJOLI, Luigi. TRINDADE, André Karam (org.). Garantismo, Hermenêutica e
(Neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Do Advogado, 2012. p. 22.
775. FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma discussão sobre direito e democracia. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2012. p. 3: “ A primeira distinção é aquela entre o ‘dever ser externo’, ou ético-político (ou do di-
reito), e o ‘ser’ dos sistemas jurídicos no seu conjunto, que nada mais é senão a clássica separação entre
direito e moral, ou mesmo entre justiça e validade, ou entre legitimação externa e legitimação interna” .
776. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 206.
do ordenamento, ou mesmo entre ‘ser’ e o ‘dever ser’ do direito”
777
.
Tal distinção de pontos de vista é uma derivação do postulado filosó
-
fico de David Hume, segundo o qual da observação empírica e científica da
natureza (o que é) não se pode extrair leis axiológicas ou morais universais
(o que deve ser), outrossim, “trata-se de uma tese metalógica – precisamente
uma aplicação da denominada Lei de Hume – que preclui como ‘falácia
naturalista’ a derivação de um direito válido ou ‘como é’ do direito justo
ou ‘como deve ser’ e vice versa”
778
. Nesta linha de raciocínio, confundir o
ponto de vista interno com o externo implica, como consequência, misturar
indevidamente os critérios para aferição da validade (interno à juridicidade)
com aqueles para discussão da justiça (externo ao direito e relativo à morali
-
dade)
779
. Desta confusão pode resultar “o objetivismo ético, que sempre está
na base da conexão entre direito e moral”
780
.
Na sua ótica, o modelo jusnaturalista e as proposições neoconstitucio
-
nalistas incorrem em equívoco ao confundirem os pontos de vista interno
(científico ou empírico–o que é o direito – critério de validade) e externo
(axiológico ou sociológico – o que deve ser o direito – parâmetro de justi
-
ça)
781
. Porém, o autor faz concessões às correntes pós-positivistas principais,
no sentido de admitir que seria um “absurdo” afirmar que o direito não
incorpore princípios e valores morais ou, ainda, que não tenha alguma “re
-
lação conceitual necessária” com a moral, haja vista que expressa ao menos as
opções axiológicas dos legisladores e dos julgadores. Com efeito, a separação
entre moralidade e juridicidade “não quer dizer, de maneira nenhuma, que
as normas jurídicas não tenham um conteúdo moral ou alguma ‘pretensão
777. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 787.
778. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 205.
779. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 199:
“Por legitimação externa ou justificação refiro-me à legitimação do direito penal por meio de princípios
normativos externos ao direito positivo, ou seja, critérios de avaliação moral, políticos ou utilitários
de tipo extra ou metajurídico. Por legitimação interna ou legitimação em sentido estrito refiro-me à
legitimação do direito penal por via de princípios normativos internos ao próprio ordenamento jurídico,
vale dizer, a critérios de avaliação jurídicos, ou, mais especificamente, intrajurídicos. O primeiro tipo
de legitimação diz respeito às razões externas, isto é, àquelas do direito penal; o segundo, por sua vez,
concerne às suas razões internas, ou de direito penal. Substancialmente, a distinção coincide com aquela
tradicional entre justiça e validade” .
780. FERRAJOLI, Luigi. O constitucionalismo garantista e o estado de direito. In STRECK, Lenio Luiz.
FERRAJOLI, Luigi. TRINDADE, André Karam (org.). Garantismo, Hermenêutica e (Neo)constitu-
cionalismo. Porto Alegre: Do Advogado, 2012. p. 250.
781. FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma discussão sobre direito e democracia. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2012. p. 48. Ainda FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São
Paulo: RT, 2014. p. 834: “ ‘Ponto de vista externo’ ou ‘de baixo’ quer dizer, sobretudo, ponto de vista das
pessoas. O seu primado axiológico, consequentemente, equivale ao primado da pessoa como valor, ou
seja, do valo das pessoas, e portanto, de todas as suas específicas e diversas identidades, assim como da
variedade e pluralidade dos pontos de vista externos por ela expressos” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 247246 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
de justiça’. Esta seria uma tese sem sentido, assim como não haveria senti-
do negar que, no exercício da discricionariedade interpretativa gerada pela
indeterminação da linguagem legal, o intérprete é, frequentemente, orien
-
tado por escolhas de caráter moral”
782
. Porém, mesmo assim ele insiste ser
“insustentável a derivação – a partir da óbvia circunstância de que as leis e
as constituições incorporam ‘valores’ – da tese de uma ‘conexão conceitual’
entre direito e moral”
783
.
Portanto, para o autor, a distinção entre os dois sistemas de conduta
significa tão somente que, primeiro, os preceitos morais não possuem juri
-
dicidade, ou seja, não integram o ordenamento jurídico, por melhores que
sejam, e, segundo, os dispositivos jurídicos não são necessariamente morais
784
.
Sobre o tema, importa destacar o posicionamento do autor no sen
-
tido de que o neopositivismo (ou jusconstitucionalismo) pressupõe um
“estado constitucional de direito”, regido por um princípio de legalidade
não apenas fraco e formal, mas sim forte e substancial, no sentido de
que as normas jurídicas respeitem tanto os critérios de validade formal
como também axiológicos, em atenção ao conteúdo material plasmado nas
modernas constituições rígidas
785
. Notadamente, uma das mais notáveis
782. FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In STRECK,
Lenio Luiz. FERRAJOLI, Luigi. TRINDADE, André Karam (org.). Garantismo, Hermenêutica e
(Neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Do Advogado, 2012. p. 27. Ver também FERRAJOLI, Luigi.
Garantismo: uma discussão sobre direito e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 14:
“Com ‘separação entre direito e moral’ deve-se entender, a meu juízo, não a negação de qualquer cone-
xão entre direito e moral, claramente insustentável uma vez que qualquer sistema jurídico exprime ao
menos a moral dos seus legisladores, mas sim a tese já recordada segundo a qual juridicidade de uma
norma não deriva da sua justiça e a sua justiça não deriva da sua juridicidade” (grifou-se).
783. FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In STRECK,
Lenio Luiz. FERRAJOLI, Luigi. TRINDADE, André Karam (org.). Garantismo, Hermenêutica e
(Neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Do Advogado, 2012. p. 28.
784. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 15-16: “En este sentido la separación entre derecho y moral, entre punto de vista jurídico u punto de
vista axiológico, entre deber ser externo y ser interno del derecho, nos es sino un corolario o, mejor aún,
el significado mismo de ‘positivismo jurídico’. Lo que no quiere decir, obviamente, que el derecho no
incorpore valores o principios morales y no tenga en este sentido, según una fórmula a mi mode de ver
equívoca pero que desde hace algún tiempo se ha hecho habitual, alguna ‘relación conceptual necesaria’
con la moral: lo cual sería absurdo, dado que todo sistema jurídico expresa al menos la moral (o las
morales), cual(es)quiera que sea(n), de sus legisladores, o si se prefiere, como dice Robert Alexy, su
‘pretención de corrección’. Significa simplesmente: a) que la moralidad (o la justicia) predicable de
una norma no implica su juridicidad (ou su validez, o, en términos aún más genéricos, su pertenencia a
un sistema jurídico); b) que la juridicidad (o validez, o pertenencia a un sistema jurídico) de una norma
no implica su moralidad (o justicia)” . Também FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma discussão sobre
direito e democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. p. 4.
785. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 461-462: “ El estado de derecho em sentido estricto o fuerte se há afirmado em cambio como ‘estado
constitucional de direito’ gracias a la que podemos considerar la segunda revolución jurídica moder-
na: la sujeición de toda la producción del derecho a principios normativos, como los derechos funda-
mentalesy el resto de principios axiológicos sancionados por constituciones rígidas, y la consiguiente
legitimación sustancial de la eficacia de todos los actos de poder, incluidos los legislativos, em función
(también) de los contenidos o significados que expresan” . FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria
do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 326-329.
marcas do constitucionalismo contemporâneo, para o jurista em tela, reside
na positivação dos valores morais socialmente compartilhados através de
princípios, consubstanciados como normas jurídicas que revelam a dimen
-
são nomoestática material do sistema (ao lado da dimensão nomodinâmica
formal)
786
. Nesta linha de raciocínio, de acordo com a proposição teórica
sub examen, estaria superada a velha dicotomia entre legitimidade formal
e material (auctoritas/veritas) que diferenciava o Jusnaturalismo do Juspo
-
sitivismo, haja vista que os valores morais, antes supostamente extraídos
da natureza, agora se encontram positivados
787
.
Nesse particular, Ferrajoli argumenta que, “desaparecendo, com as
constituições rígidas, o caráter unidimensional do direito positivo e o ca
-
ráter unicamente formal da validade jurídica, a velha tese da proibição ao
jurista de formulação de juízos críticos a respeito da validade e da invali
-
dade das leis se converte no seu oposto: é o próprio positivismo jurídico
que impõe aos juristas e aos juízes, com o reconhecimento dos princípios
estipulados nas constituições como normas de direito positivo de grau
superior às leis, a formulação de juízos jurídicos relativos à validade subs
-
tancial das leis (com os inevitáveis e sempre subjetivos juízos de valor
àqueles conexos) e, desta maneira, a crítica do direito tido como inválido
porque em contraste com as normas constitucionais”
788
.
Adicionalmente, o autor elenca outras quatro características que enten
-
de como elementares à base disciplinar do Positivismo Jurídico, ao lado da
separação entre direito e moral. Entretanto, estas quatro premissas teóricas
não são expressamente assimiladas e adotadas pelos demais integrantes desta
corrente de pensamento, a exemplo de Kelsen, Hart e Bobbio, de modo a
786. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 801-804. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014.
p. 328: “ O resultado deste processo de positivação do direito natural tem sido uma aproximação entre a
legitimação interna ou dever ser jurídica e a legitimação externa ou dever ser extrajurídico, quer dizer, a
sua juridificação por meio da interiorização no direito positivo de muitos dos velhos critérios e valores
substanciais de legitimação externa que foram expressados pelas doutrinas iluministas do direito natural” .
787. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 463: “Y lleva a cabo por consiguiente, a través de los vínculos de forma y de contenido impustos a su
producción, la superación de la vieja dicotomía expresada por los pares auctoritas/veritas y ‘racionali-
dad formal’/’racionalidad sustancial’ com la que normalmente se formula la oposición entre paradigma
iuspositivista y paradigma iusnaturalista” . FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo
penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 330-331: “ Chamarei de ‘vigência’ a validade apenas formal das nor-
mas tal qual resulta da regularidade do ato normativo; e limitarei o uso da palavra ‘validade’ à validade
também material das normas produzidas, quer dizer, dos seus significados ou conteúdos normativos” .
Ver ainda FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma discussão sobre direito e democracia. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2012. p. 42.
788. FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma discussão sobre direito e democracia. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2012. p. 15-16.

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 249248 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
representar, mais precisamente, os pressupostos teóricos básicos para sua
proposta de reconstrução da teoria juspositivista, cuja menção específica é
desnecessária para o referente de pesquisa proposto
789
.
Terceiro, o pensador italiano sustenta que o direito não é regido
apenas por princípios jurídicos internos a ele (principia iuris et in iuri),
mas também por postulados que lhe são externos, mas inerentes a todos os
sistemas de lógica deôntica (principia iuris tantum)
790
.
Com efeito, consoante seu entendimento, o direito consubstancia um
subsistema da deôntica e, portanto, fundamentos desta são aplicáveis àquele,
ainda que não expressamente recepcionados em seu interior
791
.
Esta construção teórica é necessária para tentar resolver dois proble
-
mas para a teoria juspositivista do ordenamento jurídico, consistentes nos
defeitos de incoerência (antinomias) e de incompletude (lacunas), presentes
na sua estrutura nomodinâmica. Com efeito, de acordo com tal modifi
-
cação ad hoc na matriz disciplinar do Positivismo Jurídico, a contradição
(antinomia) e a ausência de normas jurídicas (anomia), quando reais (e
não meramente aparentes), embora insolúveis pelo ponto de vista interno
ao direito, poderiam ser resolvidas pela perspectiva externa, mediante a
observância de postulados lógicos que representam a condição de existência
de qualquer sistema deôntico
792
.
789. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 88-98. Para o autor, os postulados juspositivistas são os expressos nas fórmulas de fl. 90 e, depois,
explicitados na p. 96, cabendo transcrevê-los: “P10 [Primeiro postulado juspositivista] Toda causa es un
comportamiento que, si nos es constituyente, está previsto por una regla que a su vez tiene una causa
y que dispone o predispone su modalidad y aquello que lo que es causa” ; P11 [Segundo postulado jus-
positivista] Las modalidades y expectativas de una causa, cuando no sean constituyentes, suponen a su
vez una causa y, cuando no sean ellas mismas reglas, están previstas por reglas que suponen a su vez
una causa” ; P12 [Terceiro postulado juspositivista] Si alguien está en condiciones de ser sujeto de un
comportamiento consistente en una causa, entonces no es a su vez producto de una causa y está dotado
de un estatus a su vez regulado por una causa” ; e, P13 [Quarto postulado juspositivista] Aquello de lo
que algo es causa, o regla, o bien modalidad o expectativa no constituyente, no es nunca constituyente” .
790. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 24-30 e 34. E, principalmente, p. 815.
791. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 105: “ Eso significa que el ‘derecho’ puede ser concebido como un subuniverso del universo del dis-
curso de la ‘deóntica’ y la teoría deóntica, a su vez, como una primeira parte de la teoría del derecho,
dedicada a identificar los conceptos y las tesis elementales comunes a todos los discursos sobre los
fenómenos deónticos y por tanto también a los relativos a los fenómenos jurídicos” . Também p. 247.
Em sentido contrário, cabe referir ATIENZA, Manuel. O direito como argumentação. Lisboa: Escolar,
2014. p. 141: “Se a concepção – ou a análise – formal dos argumentos é importante para a prática jurídi-
ca, não é porque o Direito seja uma parcela da lógica – que não é -, mas porque os argumentos jurídicos
apresentam uma dimensão formal e a análise lógica resulta, por consequência, de interesse” .
792. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 26: “ Dicho de otro modo, al no estar expressados por normas jurídicas no constituyen principios
internos al derecho positivo, es decir, lo que en el parágrafo precedente he llamado de principia iuris et
in iuri. Son, por el contrario, principia iuris tantum, que imponem al derecho positivo, como principios
externos al mismo, la lógica que éste de hecho no tiene pero que, de derecho, debería tener” .
Tais preceitos seriam, primeiro, o postulado da plenitude (ou completu-
de), expresso pelo quadrado lógico das expectativas deônticas, que determina
a complementação de lacunas e, consequentemente, a previsão normativa
das chamadas garantias primárias e secundárias de direitos; e, segundo, o
preceito da coerência (ou não contradição), o qual comanda a supressão das
antinomias
793
. Outrossim, de acordo com o autor em tela, a incidência dos
principia iuris tantum da plenitude e da coerência representaria não apenas
a superação dos problemas do Positivismo Jurídico, mas também permitiria
a resolução das violações de direitos subjetivos no plano concreto, mediante
a resolução das antinomias e lacunas.
Tal construção teórica representa uma das características centrais da
versão juspositivista de Ferrajoli e, por isto, confere nome à sua principal
obra (opus magnus), intitulada justamente de Principia Iuris
794
.
Quarto, importa referir que a teoria neopositivista de Ferrajoli é ge
-
ralmente intitulada de Garantismo Jurídico, precisamente em razão da
importância que atribui às garantias jurídicas, como elementos para supera
-
ção das promessas não cumpridas pelo sistema jurídico. A expressão refere,
em sentido amplo, o conjunto de limites e vínculos impostos a todos, nos
âmbitos público e privado, mediante a sujeição à legislação positiva e especi
-
ficamente aos direitos fundamentais
795
. Para o autor, o traço característico do
direito, entre os demais sistemas deônticos, consiste justamente na previsão
de garantias que viabilizem a remoção, a reparação e a prevenção da inefe
-
tividade de prerrogativas jurídicas
796
. Daí que, segundo ele, a existência de
793. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 27: “ Estos principia iuris tantum, como se verá en el ª 2.7, non son en última instancia sino los prin-
cipios de la deóntica expresados por los cuadrados de oposiciones lógicas que serán presentados en los
capítulos I y II. [...] Aplicados a las normas, son esencialmente dos: el principio de no contradicción, ex-
presado por el cuadrado de las modalidades deónticas cuya violación genera antinomias; y el principio
de plenitud, expresado por el cuadrado de las expectativas deónticas cuya violación genera lacunas. [...]
El primer cuadrado se basan las que en su momento llamaré ‘garantías secundarias’ o de justiciabilidad
de las violaciones de los derechos constitucionalmente establecidos; en el segundo, las que llamaré suas
‘garantías primarias’, esto es, las prohibiciones de lesión y las obligaciones de prestación correspon-
dientes a aquéllos” .
794. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 31.
795. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 188. Ainda FERRAJOLI, Luigi. Democracia y garantismo. 2 ed. Madri: Trotta, 2010. p. 60: “‘Ga-
rantía’ es una expresión del léxico jurídico con la que se designa cualquier técnica normativa de tutela
de un derecho subjetivo” .
796. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 159: “La especificidad del derecho respecto a los demás sistemas deónticos reside en hecho de que,
como veremos más adelante, él dispone de un conjunto de ‘garantías’ jurídicas–como la previsión de
obligaciones o prohibiciones, que llamaré de ‘garantias primárias’ en el § 10.6, y la sancionabilidade u
la anulabilidad de sus desobediencias como actos ilícitos o inválidos, que llamaré ‘garantias secundá-
rias’–dirigidas a asegurar la efectividad de las modalidades y espectativas jurídicas mediante técnicas
adecuadas para remover, reparar o previnir su inefectividad” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 251250 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
garantias em face de contradições e de ausência de normas consubstancia a
outra cara do constitucionalismo
797
.
Em sentido técnico, o jurista italiano entende que garantias são as
obrigações decorrentes das expectativas positivas, ou seja, estabelecidas no or
-
denamento jurídico
798
. Elas são classificadas como primárias (de primeiro grau
ou substanciais), as quais dizem respeito à previsão positiva de consequências
jurídicas para a hipótese de descumprimento, como a anulabilidade dos atos, a
sanção penal, a perda de eficácia etc; ou, ainda, como secundárias (de segundo
grau, instrumentais, processuais ou jurisdicionais), as quais dizem respeito aos
institutos de cunho processual que visam conferir eficácia e judiciabilidade
no caso de descumprimento das garantias primárias, a exemplo dos diversos
preceitos que estabelecem a existência da jurisdição e do processo
799
.
Outrossim, a expressão juiz garantista não designa nada mais do que
aquele magistrado juspositivista que observa rigorosamente, em sua atividade
interpretativa e aplicativa, a incidência das garantias primárias (consequências
jurídicas materiais) e secundárias (ditames processuais aplicáveis) na sua ati
-
vidade jurisdicional. Ou seja, trata-se apenas de uma designação para o óbvio
esquecido por algumas propostas neoconstitucionalistas que, ao apregoarem um
retorno metafísico ao já superado paradigma jusnaturalista, acabam acarretan
-
do algum grau de desrespeito ou inobservância aos preceitos positivos, com
justificativas de perfil axiológico, de modo a acarretar uma quebra na segurança
jurídica, em detrimento da previsibilidade e do nível de certeza do direito.
Na esfera criminal, o modelo garantista implica a supressão da aná
-
lise moral dos atos criminosos e a incidência de consequências penais em
estrita observância das garantias expressamente previstas na legislação, de
modo a fomentar o atingimento de segurança jurídica
800
. Adicionalmente,
797. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 33: “ Justamente porque refleja la estructura del estado constitucional do derecho y el diseño teórico
que está tras ella, las relaciones lógicas entre los conceptos formulados por la teoría sirven, por una
parte, para fundamentar la crítica de las antinomias y delas lacunas y, por otra, para exigir su superación
mediante la reparación de las violaciones de las garantías existentes o la introducción de garantías au-
sentes. El garantismo es, en este aspecto, la otra cara del constitucionalismo” .
798. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 188: “ ‘Garantía’ es la obligación correspondiente a la expectativa positiva de su mismo tema” .
799. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 631-633: “ LLamaré ‘garantías primarias’, de ‘primer grado’ o ‘ sustanciales’ a las garantías del
primer tipo, dirigidas precisamente a realizar una efectivad de los derechos garantizados que es también
primaria, sustancial o de primer grado; y ‘garantías secundarias’, de ‘segundo grado’, ‘instrumentales’,
‘procesales’ o ‘ jurisdiccionales’ a las garantías del segundo tipo, orientadas a asegurar al menos una
efectividad secundária, jurisdiccional por los actos cometidos en violación de las primeras” .
800. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 41-42:
“Somente por convenção jurídica, e não por imoralidade intrínseca ou por anormalidade, é que um de-
terminado comportamento constitui delito; e a condenação de quem se tenha comprovado responsável
o autor expressamente declara que a pena não deve ter qualquer função
ética, pedagógica ou mesmo de ressocialização (poena medicinalis)
801
, ser-
vindo apenas para a prevenção geral negativa dos delitos e o desestímulo à
vingança privada
802
, ou seja, seu posicionamento aparentemente contraria
a posição teórica prevalecente no cenário jurídico brasileiro sobre o tema,
quanto à importância da recuperação do detento.
Quinto, assevera-se que Ferrajoli entende que normas jurídicas são
as regras deônticas produzidas por um ato jurídico, ou seja, incorporadas
no ordenamento jurídico. Com efeito, no seu entendimento, o direito é um
subsistema da deôntica, daí que a norma jurídica não passa de uma regra
deôntica incorporada na ordem positiva. Outrossim, segundo os conceitos
operacionais produzidos de acordo com o método axiomático, regras (em
geral) são modalidades, estados (status) ou expectativas positivas ou negativas
(ou ainda predisposições destas)
803
, enquanto normas (ou regras jurídicas)
são simplesmente as regras causadas por um ato jurídico
804
.
No ponto, cabe acrescentar que o autor faz inúmeras referências a
princípios jurídicos ao longo de sua tese, porém não se preocupou em
apresentar o respectivo conceito operacional de forma expressa. Tal vácuo
se justificar pelo fato de ele não distinguir modalidades distintas de normas,
entendo-as todas como regras jurídicas aplicáveis por subsunção, ainda que
chame algumas de princípios em determinadas circunstâncias, para ressaltar
seu aspecto material
805
. Ou seja, para o autor, os princípios se diferenciam
não é um juízo moral nem um diagnóstico sobre a natureza anormal ou patológica do réu” .
801. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 42:
“Disso resulta excluída, ademais, toda função ética ou pedagógica da pena, concebida como aflição
taxativa e abstratamente preestabelecida pela lei, que não pode ser alterada com tratamentos diferencia-
dos do tipo terapêutico ou correcional” . E p. 208-209: “ O Estado, além de não ter o direito de obrigar os
cidadãos a não serem ruins, podendo somente impedir que se destruam entre si, não possui, igualmente,
o direito de alterar – reeducar, remidir, recuperar, ressocializar etc.–a personalidade dos réus. O cidadão
tem o dever de não cometer fatos delituosos e o direito de ser internamente ruim e de permanecer aqui-
lo que é. As penas, consequentemente, não devem perseguir finalidades pedagógicas ou correcionais,
devendo consistir em sanções taxativamente preestabelecidas, não agraváveis por meios de tratamento
diferenciados e personalizados do tipo ético ou terapêutico” . Ainda p. 251-254.
802. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 308-311.
803. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 212: “ Las reglas o bien son ellas mismas modalidades, o expectativas positivas, o expectativas ne-
gativas o estatus, o bien predisponen modalidades, o expectativas positivas, o expectativas negativas o
estatus” [...] Las modalidades, las expectativas, y los estatuso que son el tema de una clase de sujetos o
tienen como tema una clase de comportamientos son reglas” .
804. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011. p.
395: “’Norma jurídica’ o simplesmente ‘norma’, diremos, es toda regla producida por un acto jurídico” .
805. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 532-533: “ Por otro lado, se clarifica de este modo el bien limitado alcance de la distinción entre ‘prin-
cípios’ y ‘regras’ porpuesta por Ronald Dworkin y expresada en la tesis de que los principios se respetan
mientra que las reglas, sean formales o sustantivas, se aplican. [...] Y los principios, por exemplo los
constitucionales, cuando por el contrario son violados, se manifiestan como reglas, aplicables judi-

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 253252 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
das regras apenas porque comportam uma carga substancial e, assim, inte-
gram a dimensão nomoestática do direito
806
. Entretanto, ambos (regras e
princípios) são normas jurídicas aplicáveis por subsunção
807
e servem para
limitar a amplitude decisória do julgador
808
. Sem embargo, “não existe uma
diferença real de estatuto entre a maior parte dos princípios e as regras: a
violação de um princípio sempre faz deste uma regra que enuncia as proi
-
bições ou as obrigações correspondentes”
809
.
Continuando na análise, cabe anotar que as normas (regras jurídicas ou
princípios) são previsões abstratas e universais, tratando-se de soluções pree
-
xistentes ao problema fático que foram estabelecidas para reger e resolver
810
.
Ou seja, se tratam de significados que integram o ordenamento jurídico,
aguardando serem invocados para solucionar os casos sobre os quais dispõem,
como razões para agir ou se comportar de determinada maneira
811
.
Importa ressaltar que, muito embora o autor trate do tema referente à
norma jurídica em abstrato, não olvida da distinção entre significantes (texto
normativo) e significado (norma jurídica). Sem embargo, assimilando as
lições de seu professor Norberto Bobbio, o autor não desconhece a diferen
-
ciação entre, primeiro, texto normativo (enunciado ou preceito), que seria o
significante, e, segundo, norma (proposição ou prescrição), consubstanciada
cialmente, como normas sustantivas que prefiguran ‘supuestos de hecho prohibidos’, a las decisiones
inválidas que constituyen su violación” .
806. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 538: “ Si es verdad que las normas son sino los significados asociados por el intérprete a actos lingüís-
ticos normativos, también los principios, los aquí llamados principia iuris et in iuri por venir formulados
directamente en el derecho, son a su vez significados normativos o normas: en concreto, son normas
sustantivas pertenecientes a la dimensión nomoestática del derecho” (grifou-se).
807. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 538: “ [...] principios se manifiestan como reglas en las que sob subsumibles los actos inválidos que
constituyen su violación” (grifou-se).
808. FERRAJOLI, Luigi. Garantismo: uma discussão sobre direito e democracia. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2012. p. 45-46: “ Mas vale também para a jurisdição ordinária, em relação à qual a incorporação
limitativa de princípios ou valores na Constituição conduz à redução da discricionariedade na inter-
pretação das leis, por aquela limitada e vinculada à coerência com as normas constitucionais. E este
é um fato comumente ignorado. Ainda que vagos e formulados em termos valorativos, os princípios
constitucionais servem de qualquer modo para aumentar a certeza do direito, pois limitam a gama de
possíveis opções interpretativas, obrigando os juízes a associar às leis os únicos significados com ele
compatíveis” .
809. FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In STRECK,
Lenio Luiz. FERRAJOLI, Luigi. TRINDADE, André Karam (org.). Garantismo, Hermenêutica e
(Neo)constitucionalismo. Porto Alegre: Do Advogado, 2012. p. 41.
810. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 213.
811. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 228-229: “Las reglas, como se há dicho (T4.40), son ‘significados’. […] podemos identificar el papel
de las reglas como razones para la acción que se analisará mejor em los §§ 5.7, 8.9 y 10.22: una regla
deóntica – ya sea una norma jurídica, la regla de un juego o una regla de etiqueta – es una razón de
la acción si vale para orientar los comportamientos y acaso para generar modelos de comportamiento
socialmente compartidos” .
no significado resultante da interpretação do primeiro
812
. Adicionalmente,
admite que um mesmo dispositivo legal pode ensejar mais de uma regra, a
depender das especificidades da interpretação, que nada mais é, para ele, do
que a constatação de um significado
813
. Outrossim, o jurista italiano reco-
nhece a natureza linguística dos sistemas deônticos, a exemplo do direito
814
.
Também não se pode olvidar que, de acordo com o conceito operacio
-
nal fornecido pelo pensador em tela, fontes jurídicas são simplesmente os
atos jurídicos que são a causa de uma norma (regra jurídica ou princípio),
tratando-se de categorias coextensivas
815
.
Sexto, Ferrajoli conceitua ordenamento jurídico como o conjunto
de fontes e de regras jurídicas instituídas por uma mesma norma de re
-
conhecimento e escalonadas em níveis verticais
816
. Todavia, não endossa
simplesmente o modelo desenvolvido pelos juspositivistas que o antecede
-
ram, haja vista que, a um, estabelece um conceito operacional distinto para
norma de reconhecimento, como resultado de uma situação empírica su
-
praordenada e anterior à ordem positiva (inegavelmente um desenvolvimento
da proposta de Hart); a dois, incorpora o movimento horizontal de sucessões
de negócios jurídicos regidos pelo mesmo nível de regras jurídicas (e não
apenas a dinâmica normativa vertical proposta por Kelsen); a três, estabelece
que o sistema tem a estrutura de uma rede de significantes e de significados,
regida pelos princípios externos (principia iuris tantum) da unidade, coe
-
rência e completude (aperfeiçoando a proposta de Bobbio neste particular);
a quatro, argumenta que o escalonamento do sistema na linha vertical não
responde apenas a uma lógica formal, mas também substancial, implicando
a compatibilidade material dos postulados inferiores com o conteúdo dos
812. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 208.
813. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 319: “ Dado un significado, llamo ‘interpratation’ a sua constatación” . Ver também p. 506: “[...] todo
acto o texto normativo admite varias interpretaciones y por conseguiente varios significados, algunos de
los cuales pueden ser coherentes y otros incoherentes con las normas sustantivas sobre su producción” .
814. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 209 e 422-426.
815. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 397-398: “ ’Fuente’ es todo acto que sea causa de una norma. [...] De ello se sigue una relación biuní-
voca entre fuentes y normas: si las primeras son las causas de las segundas (D8.2), las segundas son los
efectos de las primeras (T8.19); de manera que fuentes y normas son términos coextensivos (T8.20)” .
816. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 432: “ ’Ordinamiento’ es, o bien el conjunto de las normas instituidas por una misma norma institutiva,
o bien el conjunto de las normas de grado subordinado a una misma norma deôntica. [...] ‘Norma de
reconocimiento’ es, o bien la norma institutiva del conjunto de las normas que forman un ordenamiento,
o bien la norma deóntica de grado supraordenado a ellas” . E, na p. 852: “ El ordenamiento constitucional
consiste, como todos los ordenamientos (d8.12), en un conjunto complejo de fuentes y de normas dis-
puestas en orden jierárquico” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 255254 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
superiores; e, a cinco, estabelece que abaixo de uma mesma norma de reco-
nhecimento podem ser instituídos diversos subordenamentos.
Quanto ao primeiro aspecto destacado, cabe registrar o posicionamento
do autor no sentido de que a origem de determinado ordenamento jurídico
não remonta a um postulado hipotético (Kelsen)
817
ou empírico (Hart)
818
,
mas sim reside em uma situação fática constituinte, externa à ordem jurídica
e que lhe dá origem
819
. Tal situação concreta veicula o exercício do poder
constituinte ao contexto histórico
820
e, assim, resulta na norma de reco-
nhecimento (constituição), a qual, por sua vez, é a primeira e mais elevada
proposição de determinada ordem jurídica
821
.
A situação constituinte confere unidade ao sistema, haja vista que,
partindo de qualquer ponto do seu interior, é possível ascender em linha reta
vertical até uma mesma situação originária, a qual é constituinte, precisamen
-
te no sentido de que não é positiva, pois se encontra subtraída à incidência
do princípio da legalidade e funda todo o ordenamento
822
.
No concernente ao segundo ponto, cabe registrar o argumento do
817. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 9 e especialmente
217: “Mas a indagação do fundamento de validade de uma norma não pode, tal como a investigação de
causa de um determinado efeito, perder-se no interminável. Tem de terminar numa norma que se pres-
supõe a última e a mais elevada. Como norma mais elevada, ela tem de ser pressuposta, visto que não
pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada.
A sua validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento de sua validade já
não pode ser posto em questão. Uma tal norma pressuposta como a mais elevada, será aqui designada
como norma fundamental (Grundnorm)” .
818. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 126: “A norma de reconhe-
cimento que estabelece os critérios para avaliar a validade de outras normas do sistema é, num sentido
importante, que procuraremos esclarecer, uma norma última (ultimate rule); e quando, como geralmente
ocorre, houver critérios hierarquizados por ordem de subordinação e primazia relativa, um deles será
considerado supremo (supreme) ”.
819. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 277: “ El derecho positivo es un fenómeno artificial, cuyo fundamento empírico reside en hechos
empíricos de tipo extra- o prejurídico, es decir, externos al derecho mismo” . E também p. 311 e 804-809.
820. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta,
2011. p. 805: “ [...] el poder constituyente no es más que la hasta aquí llamada ‘situación constituyente’
(T12.1)” .
821. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 841-846: “’Constituición’ es el estatuto de una institución política consistente en un conjunto de
normas sobre la producción dotadas de algun grado de efectividad, cuyo acto institutivo es el acto cons-
tituyente y que, en democracia, tiene: a) como normas de reconocimiento de la esfera pública la división
de los poderes, la representatividad política de las funciones de gobierno a través del ejercicio de los
derechos políticos y la separación de estas últimas con respeto a las funciones de garantía, b) como nor-
mas de reconocimiento de la esfera privada la producción por obra del ejercicio de los derechos civiles
de las situaciones disponibles a ella pertenecientes y c) como razón social la garantia de los derechos de
liberdad y de los derechos sociales estipulados como vitales por sus normas sustantivas” .
822. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 419: “ Bajo amos aspectos la unidade del ordenamiento es reconocible por el hecho de que, sea cual
el acto, la situación o la norma tomados como referencia se insertan en una red de actos, de situaciones
y de normas que tienem en común el acto y la situación constituyente. Ante cualquier acto o situación,
normativa o no, con que nos encontremos, siempre podemos, recorriendo la red, constatar su pertenen-
cia (o su no pertenencia) al ordenamiento ascendiendo a la situación o al acto de los que el primero es
actuación y la segunda es efecto” .
escritor em análise no sentido de que a dinâmica do ordenamento jurídico
não ocorre apenas na linha vertical, representando a produção normativa de
cima para baixo, como proposto por Kelsen, haja vista que entende existir
também uma sucessão de atos jurídicos na linha horizontal, ou seja, no
mesmo nível, referente à sequência de transações na seara mercantil
823
. Daí
que a produção jurígena ainda ocorre em linhas retas, voltadas a uma única
direção, contudo, pode fluir tanto na vertical como também na horizontal.
Retroceder no mesmo nível (horizontal) permite aferir as origens de
determinados negócios jurídicos, enquanto voltar pelos degraus escalonados
(vertical) franqueia identificar as fontes jurídicas, até a norma de reconheci
-
mento (constituição) e, se for o caso, chegando mesmo à situação constituinte
originária, externa ao sistema e não positiva (poder constituinte). De acordo
com a construção teórica em tela, a chave para a compreensão da nomodi
-
nâmica é a relação de causalidade, que representa a ligação entre cada degrau
na linha vertical e cada sucessão na sequência horizontal
824
.
Sobre a terceira particularidade da proposição em tela, cabe anotar seu
entendimento de que o ordenamento jurídico possui a estrutura de uma
rede de significados e também de significantes
825
, a qual é regida não apenas
por princípios que lhe são internos (principia iuris et in iure), mas também
por postulados externos, inerentes a todas as ordens deônticas (principia
iuris tantum), notadamente os que estabelecem a unidade, a coerência e a
plenitude do sistema
826
.
823. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 301-302 e 305.
824. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 100: “ Su término clave es ‘causa’, asumido como el concepto fundamental del positivismo jurídico.
Permite en efecto, gracias a los cuatro principios del positivismo jurídico expresados por los postulados
P10-P13 y relativos respectivamente a los actos, las situaciones, las personas y las normas, configurar
la totalidad del sistema deóntico en el que consiste el derecho como ‘producido’ o ‘causado’ por com-
portamientos calificables como actos, en virtud de modalidades y/o expectativas deónticas calificables
como situaciones, que pueden adscribirse a sujetos calificables como personas, sobre la base de reglas
calificables como normas” .
825. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011. p.
303: “Ahora, sin embargo, con los dos pares de secuencias recién demonstradas, podemos configurar ya
dos imágenes del derecho positivio: de un lado, como uma red de actos que actúan situaciones y de sitau-
ciones producidas por actos, así como actos productores de efectos y efectos consistentes en situaciones;
de otro, como un universo lingüístico de signos y de significados conectados entre sí por la calificación o
inteligibilidad delos primeiros a partir de los segundos y por la ulterior producción o expressión de los se-
gundos por parte de los primeros” . E p. 433: “ Por otra parte, puesto que las normas son significados (T8.5),
un ordenamiento, al consistir en nun conjunto de normas (D8.12), no es más que un mundo de significados
(T8.99). Si además se consideran sus fuentes, o sea, los actos por los que las normas son expresadas y
producidas, un ordenamiento se configura asimismo como un mundo de signos (T8.100)” .
826. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 421: “ De acuerdo con este análisis se comprende cómo unidade, coherencia y plenitud no son carac-
terísticas sino requisitos de los sistemas jurídicos. [...] Más exactamente, unidade, plenitud y coherencia
no son más que los principia iuris tantum, iuris pero non in iure, externos y no internos al derecho que,
como se ha visto desde la Introducción, se identifican con la artificial reason, o sea, con la razón jurídica

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 257256 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
Outrossim, o sistema jurídico não teria a forma de uma pirâmide, mas
sim de uma rede escalonada de textos normativos e de suas interpretações,
segundo a lógica da causalidade. Ao consultar tal entrelaçamento normati
-
vo, o intérprete e aplicador teria acesso às respostas para os problemas sobre
que precisa decidir, as quais estariam previamente construídas e colocadas
à sua disposição.
Atinente ao quarto ponto, o jurista em exame sustenta que a compati
-
bilidade vertical entre as regras jurídicas não diz respeito apenas a uma lógica
meramente formal, mas também material ou conteudística. Com efeito,
conforme já registrado acima, o autor argumenta que o neopositivismo (ou
jusconstitucionalismo) apresenta um avanço com relação ao modelo anterior
precisamente no ponto em que rejeita um princípio de legalidade estrita,
fraca ou meramente formal em favor de uma versão forte e material de tal
postulado, no sentido de estabelecer a vinculação substancial entre os diversos
graus escalonados de normas jurídicas
827
.
Outrossim, aqui opera-se uma outra correção ad hoc ao modelo pira
-
midal desenvolvido pelos juspositivistas clássicos (Kelsen, Hart e Bobbio),
no sentido de admitir que o sistema não é regido apenas por uma lógica
nomodinâmica (escalonamento formal), mas também simultaneamente por
uma relação nomoestática (compatibilidade material com um conjunto de
princípios)
828
. Assim, uma norma é vigente quando produzida em conformi-
dade com alguma das formas autorizadas pelo sistema, contudo, somente será
válida quando em conformidade com todos os ditames formais e também
coerente com algum dos conteúdos materiais supraordenados
829
.
Por fim, quanto ao quinto ponto, cabe referir o entendimento do
normativa en relación con el derecho mismo” .
827. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 461-463 e, também, p. 490: “El principio de mera legalidad (o de legalidad formal) es aquel en virtud
del cual todo acto formal, consista o no en decisiones, supone una norma formal que determina sus
formas (T9.92). El principio de estricta legalidad (o de legalidad sustancial) es aquel en virtud del cual
toda decisión supone una norma sustantiva que limita o vincula sus significados (T9.93)” .
828. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 497 e também 492: “Luego será posible mostrar, en el § 9.17, que estos dos elementos corresponden
a las dos dimensiones de la fenomenologia jurídica–la nomodinâmica regida por las normas formales
y la nomostática regida por las normas sustantivas–que se corresponden a su vez, como mostraré en el
capítulo XII y en la cuarta parte, con las dos dimensiones, formal e sustancial, de la democracia constitu-
cional” . Também p. 536-537: “En suma, el paradigma de la estructura gradual del ordenamiento debe ser
ampliado a la dimensión sustancial o nomoestática del derecho positivo” . Ainda FERRAJOLI, Luigi.
Democracia y garantismo. 2 ed. Madri: Trotta, 2010. p. 73.
829. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 499: “Llamaré ‘vigencia’ a la existencia de los actos formales producida por la conformidad de al
menos alguna de sus formas con alguna de las normas formales; y ‘validez’ a la regularidad de esos
mismos actos producida por la conformidad de todas sus formas con las normas formales y de al menos
uno de sus significados con todas las normas sustantivas sobre su producción” .
autor de que podem ser instituídos diversos subordenamentos dentro de
um mesmo ordenamento jurídico
830
. Assim, em um sistema jurídico esta-
tal podem coexistir diversos subsistemas normativos, mediante a instituição
de normas de reconhecimento inferiores àquela fundante (constituição), a
exemplo dos subordenamentos municipais fundados em Leis Orgânicas. E,
da mesma forma, uma mesma ordem normativa estatal pode ser integrada
em um sistema mais amplo, como ocorre com o sistema jurídico italiano em
respeito à ordem supranacional europeia.
Daí que, para o autor em discussão, não há sentido na distinção
cunhada pela doutrina de direito Internacional entre monismo e pluralismo
jurídicos como modelos opostos, haja vista que a definição de ordenamento
jurídico como um conjunto de normas submetidas a uma mesma regra de
reconhecimento não impede a existência de sistemas mais amplos (que en
-
globam a estrutura normativa estatal, a exemplo da União Europeia) ou mais
restritos (como os subsistemas municipais, integrantes da República Italiana),
sem prejuízo para a manutenção da respectiva unidade
831
.
E, sétimo, o autor entende que a decisão jurídica é um ato habilitado a
produzir os efeitos previstos em todas as normas jurídicas que lhe são supraor
-
denadas, mediante a manifestação da vontade quanto ao conteúdo e significado
delas
832
. Mais precisamente, o autor segue a linha juspositivista clássica, ao
estabelecer que a aplicação jurídica é o ato de subsunção da decisão aos dispo
-
sitivos legais supraordenados, embora estabeleça que não é regida apenas pelas
formas superiores, mas também pelo conteúdo material
833
.
830. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011. p. 435:
“De ello resulta una red de normas que, cuando entre las de grado subordinado incluya también normas sobre
la producción de otros ordenamientos, es también una red de ordenamientos o de subordenamientos” .
831. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 435-436.
832. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 2. Madrid: Trotta, 2011. p.
482: “‘Decisión’ es todo acto preceptivo habilitado a produzir como efectos las situaciones o las normas
prescritas por él como significados, a condición de que se observem todas las normas deónticas de grado
supraordenado a éstas. […] En otras palabras, las decisiones son siempre manifestaciones de voluntad en
lo relativo no sólo al an sinto también al quid del acto, es decir, a su contenido y significado” .
833. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011.
p. 526: “ ’Aplicación’ es el acto formal o la decisión obligatoriamente vinculados, el primero en cuanto a
las formas y la segunda también en cuanto a los significados, por las normas, respectivamente formales
y sustantivas, sobre su producción” . Também p. 530: “Y llamaré más específicamente ‘subsunción’, o
mejor, ‘subsumido’, al significado de una decisión obligatoriamente vinculado a la observância de la
norma sustantiva sobre su producción. [...] ‘Subsunción’ es la observancia obligatoria, en relación con
el significado de una decisión, de la norma sustantiva sobre su producción” . E ainda p. 532: “ El uso de
‘aplicación’ en sentido sustancial resulta en efecto pertinente siempre que la observancia de una norma
sustantiva se manifesta en ese específico tipo de ‘coherencia’ que es la ‘subsunción’, o ‘corresponden-
cia’ de un determinado supuesto de hecho con la norma que lo prevé” . FERRAJOLI, Luigi. Direito e
razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 122: “ A subsunção judicial pode muito
bem exibir a forma dedutiva” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 259258 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
Segundo o autor, a semântica da linguagem normativa apresenta inevi-
táveis margens de ambiguidade e de imprecisão, de modo que a interpretação
e aplicação das regras jurídicas não têm natureza meramente cognoscitiva,
mas também constitutiva, ou seja, produtora de significados
834
. Tal vagueza
resulta em graus variáveis de discricionariedade judicial, a qual difere das
margens de decisão política justamente em razão de sua vinculação às fontes
e normas do ordenamento jurídico
835
. Ou seja, neste particular, o autor nada
apresenta de alternativo com relação às proposições clássicas de Kelsen (mol
-
dura)
836
ou de Hart (zona de textura cinzenta)
837
.
A par da discricionariedade, o jurista em tela também destaca ser in
-
viável afastar plenamente a subjetividade decisória, pois o magistrado, “por
mais que se esforce para ser objetivo, está sempre condicionado pelas circuns
-
tâncias ambientais nas quais atua, pelos seus sentimentos, suas inclinações,
seus valores ético-políticos”
838
.
2.3.6. SÍNTESE DAS TESES CENTRAIS DO JUSPOSITIVIS -
MO
839
É viável a montagem de um quadro das principais características do
paradigma do Positivismo Jurídico, mediante uma estruturação dos detalhes
que, em geral, são compartilhados ou não expressamente rejeitados pelos seus
834. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 2. Madrid: Trotta, 2011.
p. 487: “ Y puesto que la semántica del lenguaje normativo presenta inevitables márgenes de ambigüe-
dad y de imprecisión, también la interpretación operativa tiene naturaleza no sólo cogniscitiva sino
constitutiva–o, si se prefiere, re-cognoscitiva y re-constitutiva–de los significados formulados en él” .
Ver também p. 511.
835. FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y de la democracia. V 2. Madrid: Trotta, 2011.
p. 31-32: “ Como he mencionado al final del § 9.8, podemos distinguir dos tipos de discrecionalidade:
la discrecionalidade política, que es propia de las funciones funciones de gobierno y de las funciones
legislativas, y la discrecionalidade judicial, ligada en cambio a la actividad interpretativa y probatoria
exigida por la aplicación de las normas de ley al objeto del juicio. Se trata de dos tipos de discrecionalidade
profundamente distintos, que remiten a las fuentes de legitimación a su vez distintas y diferenciadas en los
§§ 12.7 y 13.5: la representación política para la legis-lación y la sujeción a la ley para la juris-dicción” . E,
especialmente, p. 75: “[La discrecionalidade judicial] Su espacio está circunscrito por la sujeción a la ley
y se limita por ello a la interpretación de las normas aplicadas: las constitucionales, por los jueces consti-
tucionales (acompañada por la interpretación de la ley ordinaria a la que afecta su juicio); las legislativas,
por los jueces ordinarios (acompañada por la interpretación de la ley constitucional para valorar los perfiles
de invalidez de la ley aplicable). A diferencia de la discrecionalidade política, que se manifesta en las de-
cisiones legislativas y administrativas que producen nuevo derecho si bien en el respecto a la constitución,
la discrecionalida de la jurisdición y de las demás funciones de garantía se manifiesta únicamente en las
decisiones interpretativas, es decir, relativas al ‘significado’ de las normas aplicables, comenzando por
el de los derechos constitucionalmente establecidos” . Ver também FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão:
teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 42.
836. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 388 e 392-395.
837. HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 166-167 e 171.
838. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 4 ed. São Paulo: RT, 2014. p. 58.
Ainda p. 161-163.
839. Este capítulo é uma síntese da análise mais ampla constante em ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Teo-
ria Complexa do Direito. 2 ed. Curitiba: Prismas, 2015.
principais expoentes, antes indicados (Kelsen, Hart, Bobbio e Ferrajoli), con-
sistentes, primeiro, na separação entre direito e moral; segundo, na formação
do ordenamento jurídico exclusivamente (ou preponderantemente) por regras
positivadas; terceiro, na construção de um sistema jurídico escalonado só pelo
critério de validade formal; quarto, na aplicação do direito posto mediante
subsunção; e, quinto, na discricionariedade judicial (judicial discretion ou in
-
terstitial legislation) para resolução dos chamados casos difíceis (hard cases).
Quanto ao primeiro ponto (separação entre direito e moral), os
juspositivistas, em geral, defendem a tese de que as questões morais são au
-
tônomas e independentes das jurídicas. Isto porque o direito compreende a
apreciação de fatos sociais devidamente especificados (social fact thesis, social
sources of the law ou auctoritas, non veritas facit legem), produzidos segundo
parâmetros formais previamente estabelecidos, sobre os quais podem ser for
-
mulados julgamentos de válido e inválido, enquanto a moral, de outro lado,
resolve-se em torno apreciações materiais e valorativas (axiológicas), atinentes
a juízos de bem ou mal, certo ou errado e justo ou injusto
840
.
No seu entender, o direito é composto exclusivamente (ou prevale
-
centemente) por normas efetivamente postas ou admitidas pela autoridade
competente (como, por exemplo, a legislação ou os precedentes reiterados
pela jurisdição), cujo descumprimento implica uma consequência institu
-
cionalizada, expressamente prevista. Como a produção jurídica é efetuada
mediante observância de critérios meramente formais, o direito pode ter
qualquer conteúdo, a depender dos valores e interesses que guiaram a von
-
tade do órgão estatal que o elaborou. Assim, por se tratar de um fenômeno
fático (e não axiológico), o direito pode ser objeto da ciência jurídica, na
medida em que um jurista pode estudá-lo de maneira similar àquela que
um físico ou químico observa a natureza e, consequentemente, formular
enunciados teóricos sobre o objeto de sua análise
841
.
A moral, de outro lado, pode até influenciar a vontade da autori
-
dade pública (legislador, juiz ou qualquer outro agente público), porém,
840. STRECK, Lenio Luiz. Lições de crítica hermenêutica do direito. Porto Alegre: Do Advogado, 2014.
p. 75: “ É impossível negar que o direito do modelo liberal-individualista (formal-burguês) estava assen-
tado no modelo de regras. Moral, valores, política tudo fora retirado do direito” .
841. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006.
p. 136: “ O positivismo jurídico representa, portanto, o estudo do direito como fato, não como valor:
na definição do direito deve ser excluída toda qualificação que seja fundada num juízo de valor e que
comporte distinção do próprio direito em bom ou mau, justo e injusto. O direito, objeto da ciência ju-
rídica, é aquele que efetivamente se manifesta na realidade histórico-social; o juspositivismo estuda tal
direito real sem se perguntar se além deste existe também um direito ideal (como aquele natural), sem
examinar se o primeiro corresponde ou não ao segundo e, sobretudo, sem fazer depender a validade do
direito real da sua correspondência com o direito ideal; [...]” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 261260 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
consubstancia uma ordem de conduta separada e com características dis-
tintas, sem força suficiente para suplantar uma norma jurídica. Difere do
direito por não dispor sobre qual a conduta efetivamente fixada, mas apenas
atribuir um caráter de bem ou mal (justo ou injusto) às ações humanas. As
sanções morais, diferentemente das jurídicas, refletem-se apenas na própria
consciência ou, quando externadas, não possuem um caráter instituciona
-
lizado, ainda que possam se mostrar eficazes em determinadas situações.
Ademais, o conteúdo da moral é amplamente variável e de difícil aferição,
ainda que dentro do território de um mesmo estado, haja vista que reflete
os parâmetros altamente subjetivos fluídos nos diversos grupos sociais. Em
decorrência de tais características, os juspositivistas entendem que a moral
deve ser ignorada pelos Juristas
842
, pois não contempla um juízo seguro do
que efetivamente é a orientação correta para o comportamento humano e,
assim, sua incorporação acarretaria severa insegurança jurídica
843
.
Embora central ao paradigma do Positivismo Jurídico, a tese da
separação entre direito e moral admite gradações, cabendo destacar duas mo
-
dalidades comumente mencionadas pela literatura especializada, consistentes
em, de um lado, o Juspositivismo exclusivo (exclusive legal positivism, hard
positivism ou nonincorporationism), que advoga a tese da exclusão absoluta
das questões morais do objeto da ciência jurídica
844
, e, de outro, a versão in-
clusiva (inclusive legal positivism, soft positivism ou incorporationism), lastrada
na chamada tese da indiferença, segundo a qual a moralidade não está neces
-
sariamente afastada ou inserida no âmbito do direito, consubstanciando uma
questão meramente contingente, a depender do que o texto legal expressa
845
.
842. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p. 169: “Mas mesmo os juspositivistas que não negam a
existência objetiva da moral dominante (e, mais raramente, da moral crítica) consideram que seu estudo
carece de interesse no âmbito da teoria do direito” .
843. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. V 1. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003. p. 250: “ O positivismo jurídico pretende, ao contrário, fazer jus à função da estabi-
lização de expectativas, sem ser obrigado a apoiar a legitimidade da decisão jurídica na autoridade
impugnável de tradições éticas” .
844. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p. 276: “Positivismo jurídico exclusivo (PJE). Abordagem
no âmbito do positivismo jurídico stricto senso, afirmando que a moral não pode ser utilizada em nenhu-
ma hipótese como critério de identificação do direito positivo (reconhecimento de sua validade e reali-
zação da sua interpretação). Algo é juridicamente válido quando (e porque) corresponde a fatos sociais
que podem lhe conceder essa validade, nunca adquirindo os mandamentos morais relevância jurídica” .
E, DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 266: “A primeira delas
é o positivismo ‘exclusivo’, que insiste na tradicional tese positivista de que aquilo que o direito exige
ou proíbe não pode jamais depender de qualquer critério moral” .
845. ALEXY, Robert. On the concept and the nature of law. Ratio Juris, Oxford, v. 21, n. 3, p. 281-299, 2008.
p. 285-286: “ Within positivism, the distinction between exclusive and inclusive positivism is the most
important division where the relation between law and morality is concerned. Exclusive positivism, as ad-
vocated most prominently by Joseph Raz, maintains that morality is necessarily excluded from the concept
No concernente ao segundo aspecto (direito formado exclusiva-
mente ou prevalecentemente por regras jurídicas), o Positivismo Jurídico
pressupõe que o direito é formado exclusivamente (ou ao menos prepon
-
derantemente) por regras jurídicas, como sinônimo de normas jurídicas
positivadas, devidamente fixadas pelos parlamentares (no sistema codificado)
ou estabelecidas em precedentes judiciais anteriores (no modelo judiciário
ou consuetudinário)
846
. No primeiro cenário (civil law, statutory law ou code
based legal system), a regra jurídica é o resultado da interpretação de um texto
elaborado pelo legislador, no sentido de reconstruir sua intenção ao prolatar
o dispositivo normativo, como se fosse um procedimento de adivinhação de
qual teria sido a solução dada pelo órgão legiferante, acaso diante do caso
concreto. E, no segundo (common law ou judge made law), a regra jurídica
pode ser extraída não só da legislação, mas também do texto de um prece
-
dente anterior, num esforço de verificar qual seria a solução que teria sido
dada pelo Poder Legislativo para reger o novo caso, nos pontos relevantes em
que é precisamente similar ao julgamento anterior. Em ambas hipóteses, a
interpretação e a aplicação do direito são consideradas, pela generalidade dos
juspositivistas (com a notável ressalva de Kelsen), como meramente reprodu
-
toras de sentidos já previamente fixados por regras jurídicas anteriores, que já
guardam a resposta para solução do novo problema emergido no tecido social.
Os demais padrões de conduta que podem eventualmente influenciar
a formação de uma decisão jurídica, a exemplo dos princípios, das políticas
e dos costumes, dentre outros, somente são aceitos de acordo com a força e
a abrangência que a legislação ou o precedente lhes atribui expressamente.
E, neste particular, a ordem positivada geralmente lhes confere um caráter
of law (Raz 1979, 47). Exclusive positivism stands in a relation of contrariety to non-positivism, which
claims that morality is necessarily included in the concept of law, that is to say, necessarily not excluded
there-from. Inclusive positivism, as defended, for instance, by Jules Coleman, counts as the rejection of
both exclusive positivism and nonpositivism. It says that morality is neither necessarily excluded nor
necessarily included. The inclusion is declared to be a contingent or conventional matter (Coleman 1996,
316) turning on what the positive law in fact says” (grifou-se). E, DWORKIN, Ronald. A justiça de toga.
São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 266: “A segunda modalidade de positivismo é o positivismo ‘inclusi-
vo’, que permite a introdução de critérios morais no texto para identificar o direito válido, mas somente se
a comunidade jurídica tiver adotado uma convenção que assim o determine” .
846. DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: Introdução a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo
jurídico-político. São Paulo: Método, 2006. p. 68: “Isso indica que ser positivista no âmbito jurídico
significa escolher como exclusivo objeto de estudo o direito que é posto por uma autoridade e, em
virtude disso, possui validade (direito positivo)” ; e, p. 131: “Partindo dessa delimitação negativa, o
PJ stricto sensu afirma a absoluta identidade entre o conceito de direito e o direito efetivamente posto
pelas autoridades competentes, isto é, pelas autoridades que, em razão de uma constelação de poder,
possuem a capacidade de impor o direito” . E FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del derecho y
de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011. p. 395-457. Especialmente, p. 396: “Las normas son reglas
que pertenecen al derecho positivo em cuanto son efectos jurídicos puestos o causados por actos (T8.11,
T8.12). Obviamente, em tanto que reglas, las normas son significados de preceptos (T8.13), a los que
vienen asociadas em cada caso mediante interpretación jurídica” .

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 263262 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
meramente supletivo ou integrativo
847
.
Nessa linha de raciocínio, o estado é o único produtor do direito efe
-
tivamente válido, haja vista que os preceitos normativos que estabelece são
preponderantes perante quaisquer outros, porquanto detentor do monopólio
das atividades legiferante e judiciária. As demais disposições normativas ou
decisões emanadas de outros entes, ainda que aceitas socialmente, são consi
-
deradas externas ao direito e, portanto, passíveis de serem ignoradas e, acaso
necessário, dominadas pelo poder público soberano
848
.
No atinente à terceira característica (ordenamento jurídico es
-
calonado pelo critério de validade formal), destaca-se que a doutrina
juspositivista concebe a ordem jurídica como um complexo sistemático de
regras jurídicas, devidamente escalonado em degraus hierárquicos, de acordo
com parâmetros formais de legitimidade para produção do direito, que pode
ser visualizado como uma pirâmide
849
.
Como características, o sistema jurídico juspositivista é considerado
unitário, porque consubstancia um corpo único de disposições prevalecentes
sobre todos os demais eventualmente existentes em um mesmo território ou
com força sobre determinado grupo social; completo, porquanto apresenta
critérios para resolução de todos eventuais casos futuros (inexistência de
lacunas), e coerente, pois devidamente articulado para evitar contradições
(ausência de antinomias)
850
.
847. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4 ed. São
Paulo: Saraiva, 2011. p. 303-304: “ É impossível negar que o direito do modelo liberal-individualista
(formal-burguês) estava assentado no modelo de regras. Moral, política, tudo fora expungido. E, para
tanto, as regras tinham determinada função. Os princípios – que eram os ‘gerais do direito’ – tinham a
função positivista de ‘fechar’ o sistema, que explicitavam mais fortemente a prerrogativa de os juízes
agirem de forma discricionária” .
848. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 164: “A
doutrina juspositivista das fontes assume os movimentos da situação acima descrita, isto é, da existência de
ordenamentos jurídicos complexos e hierarquizados, e sustenta que a fonte predominante, quer dizer, a fonte
que se encontra no plano hierárquico mais alto, é a lei, visto que ela é a manifestação direta do poder soberano
do Estado e que os outros fatos ou atos produtores de normas são apenas fontes subordinadas” .
849. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p.
197-198: “Consideramos particularmente importante a teoria do ordenamento jurídico para efeito da
caracterização do positivismo jurídico, porque através dela chega-se ao coração desta corrente jurídica.
[…] a teoria do ordenamento foi ‘inventada’, isto é, introduzida ex novo pelo próprio positivismo. […]
A teoria do ordenamento jurídico encontra a sua mais coerente expressão no pensamento de Kelsen. Por
isso podemos considerar este autor como o clímax do movimento juspositivista, depois do que começa
sua decadência, isto é (sem metáfora), sua crise” . E FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoría del de-
recho y de la democracia. V 1. Madrid: Trotta, 2011. p. 430-436. Especialmente p. 432: “‘Ordinamiento’
es, o bien el conjunto de las normas instituidas por una misma norma institutiva, o bien el conjunto
de las normas de grado subordinado a una mista norma deóntica. […] ‘Norma de reconocimiento’ es,
o bien la norma institutiva del conjunto de las normas que forman un ordenamiento, o bien la norma
deóntica de grado supraordenado a ellas” .
850. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006. p. 198:
“A teoria do ordenamento jurídico se baseia em três caracteres fundamentais a ela atribuídos: a unidade,
a coerência, a completude; são estas três características que fazem com que o direito no seu conjunto seja
Padrões de julgamento distintos das regras jurídicas positivadas (como
princípios jurídicos, moral, políticas etc) não integram o ordenamento ju
-
rídico e, assim, somente são admitidos quando há uma disposição legal
expressamente admitindo sua incidência, a exemplo dos preceitos que ad
-
mitem a integração de lacunas mediante o emprego dos chamados princípios
gerais do direito
851
.
Ao aplicador, bastaria se socorrer deste manancial de respostas pré-fixadas
pelo órgão produtor do direito para descobrir a solução dos casos concretos,
consoante métodos interpretativos elaborados pelos Juristas. E, em caso de
ambiguidades, lacunas ou antinomias, seria necessário se socorrer de critérios
devidamente preestabelecidos, de modo a reservar a incidência de padrões de
julgamento externos somente em casos especificamente autorizados.
Abaixo, encontra-se colacionada uma representação gráfica do ordena
-
mento jurídico dinâmico, sob a ótica kelseniana
852
:
um ordenamento e, portanto, uma entidade nova, distinta das normas singulares que o constituem” .
851. ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 11-12: “Quem
identifica o direito com a lei escrita, ou seja, quem defende a tese do positivismo legal deve afirmar que,
nos casos duvidosos, a decisão é determinada por fatores extrajurídicos. Totalmente diversa é a compre-
ensão do não positivista. Como não identifica o direito com a lei, para ele, a decisão também pode ser
determinada pelo direito, se a lei não a estipular de modo coercitivo” .
852. Gráfico composto pelo autor deste trabalho, com base em KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 265264 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
Acerca da quarta peculiaridade (aplicação por subsunção), os juspo -
sitivistas sustentam que as normas jurídicas são direcionadas ao juiz, a quem
cabe aplicá-las através de um procedimento lógico dedutivo, chamado de
subsunção dos fatos aos textos normativos, com vistas a descobrir a resposta
latente preestabelecida pelo legislador ou em precedente judicial anterior, que
servirá como solução para o novo caso que se apresenta perante a jurisdição.
A subsunção juspositivista pode ser representada consoante o seguinte
esquema gráfico, em que os limites normativos funcionam como premissas
maiores, dentro das quais o intérprete exerce sua discricionariedade, para fins
de encaixe dos fatos como premissas menores:
E, sobre o quinto atributo (discricionariedade judicial), o Juspositi
-
vismo admite que o juiz deverá empregar discricionariedade na interpretação
e na aplicação do direito (judicial discretion), no sentido de produzir a regra
jurídica que reputar mais adequada para a resolução do caso concreto sub
-
metido à jurisdição (interstitial legislation), em se tratando dos chamados
casos difíceis (hard cases), nos quais a ambiguidade dos textos normativos
(legislação e precedentes), as lacunas ou as antinomias permitem a adoção
de soluções diversas para uma mesma hipótese concreta, de modo a ensejar
insegurança (imprevisibilidade) quanto à solução correta a ser oferecida pela
jurisdição, apesar da existência de um extenso leque de preceitos legais pre
-
viamente fixados pela autoridade competente.
De acordo com tal conceito operacional, as quatro plataformas cen
-
trais da teoria do direito positivista são caracterizadas da seguinte forma: a)
as fontes jurídicas são exclusivamente os textos normativos elaborados pela
autoridade competente (legislação e precedentes, conforme a vinculação ao
civil law ou ao common law), salvo autorização normativa expressa para o
acesso a outros elementos, visando a heterointegração; b) as normas são
exclusivamente (ou, ao menos, preponderantemente) as regras jurídicas de
-
vidamente positivadas, as quais são passíveis de aplicação isolada, mormente
nos casos considerados fáceis; c) o ordenamento jurídico corresponde a uma
pirâmide de imperativos legais, escalonados hierarquicamente de acordo com
critérios formais de validade, cujo ápice é a norma fundamental pressuposta;
e, d) a decisão jurídica é tomada através do procedimento lógico dedutivo de
subsunção, mediante o qual o juiz enquadra os fatos que lhe são apresenta
-
dos dentro dos moldes de uma disposição normativa, socorrendo-se da sua
própria discricionariedade em casos difíceis.
2.3.7. SÍNTESE DAS CRÍTICAS AO JUSPOSITIVISMO
853
O modelo juspositivista está sendo alvo de severas críticas, que visam
demonstrar a incorreção dos seus principais postulados teóricos, com
vistas a ensejar a revolução científica que, gradualmente, implicará a sua
superação paradigmática por uma outra teoria do direito, nos moldes expli
-
citados por Kuhn.
Quanto à separação entre direito e moral, as críticas refletem a
necessidade de se admitir que as ponderações éticas inevitavelmente in
-
fluenciam a construção da norma, tanto quando o legislador fixa o texto
legal, como quando o órgão aplicador decide o caso concreto. Assim, o
ingresso da carga axiológica na ordem jurídica implica a necessidade dos
Juristas se dedicarem à análise da relação de complementariedade entre
juridicidade e moralidade, mormente para fins de se discutir a legitimidade
do direito. Com efeito, a exclusão da questão moral do âmbito da ciência
jurídica é uma mera ficção, ou seja, a fuga de um problema complexo e
nuclear do sistema jurídico. O direito é um resultado cultural (produzido
pela sociedade) e, como tal, recebe influências dos padrões morais compar
-
tilhados por aqueles que participaram da produção normativa.
De outro lado, nessa quadra da história, em que se tem em perspectiva
um estado constitucional democrático, não se pode admitir a existência de
853. Este capítulo é uma síntese da análise mais ampla constante em ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Teo-
ria Complexa do Direito. 2 ed. Curitiba: Prismas, 2015.

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 267266 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
um ordenamento jurídico com qualquer conteúdo, porquanto as leis fun-
damentais, por via de regra, contemplam parâmetros de perfil axiológico. É
preciso reconhecer que as normas têm um fundo moral, ainda que tal aprecia
-
ção seja axiológica e, portanto, passível de relatividade. Por outro lado, para
otimizar os subjetivismos, delega-se a formação do consenso (ou maioria)
sobre quais os padrões valorativos que devem prevalecer para o âmbito dos
processos comunicativos, de cunho democrático.
No concernente à formação do sistema jurídico exclusivamente (ou
prevalecentemente) por regras positivadas, os críticos têm afirmado que se
trata de uma redução artificial da realidade, porquanto a atividade jurígena
recebe influxos de diversos outros padrões de julgamento, a exemplo dos prin
-
cípios jurídicos, das políticas públicas e da própria moral. Maiores digressões
são dispensáveis, diante das evidências constatadas nas realidades acadêmica
e forense, mormente no cenário brasileiro, onde bem se verifica a reiterada
admissão dos princípios como lídimos conformadores da decisão jurisdicional.
No tocante à construção de um sistema escalonado só por crité
-
rios formais, a crítica especializada tem reiteradamente demonstrado que
a ordem jurídica não é sustentada apenas por pilastras de validade formal,
segundo uma pirâmide escalonada, cujo ápice é a norma fundamental e a
base é composta pela norma individual do caso concreto. Com efeito, tanto
o reconhecimento da relação de complementariedade entre direito e moral,
como também a inserção de princípios no sistema, têm revelado que a ordem
normativa se encontra igualmente sustentada por pilares conteudísticos, sem
os quais não é capaz de viger ou ser eficaz. Um reflexo disto é a elevada im
-
portância conferida ao controle de constitucionalidade material, em sede
concentrada ou difusa, mormente quando o juiz renega a aplicação de uma
regra formalmente válida com lastro no conteúdo extraído de um princípio
constitucional, cuja materialidade lhe é sobreposta.
Sobre a aplicação por subsunção, a proposição juspositivista merece
ser superada, para melhor representar a realidade (aspecto descritivo da
ciência jurídica), haja vista que as normas jurídicas faticamente não corres
-
pondem a soluções oferecidas de antemão pelo órgão legiferante (premissas
maiores), antes de surgidos os casos concretos (premissas menores), de modo
a inviabilizar um raciocínio meramente lógico dedutivo. Ademais, como
decorrência da afirmação anterior, o fenômeno da subsunção não efetiva
-
mente demonstra a atividade interpretativa e aplicativa da jurisdição, a qual
é complexa e se desenvolve diferentemente do mero encaixe dos fatos em
preceitos legais, através de um procedimento silogístico
854
.
Importa ter em mente que as normas jurídicas não podem ser con
-
ceituadas corretamente como esquemas de interpretação, sob a forma de
molduras (ou janelas), dentro das quais há um conjunto de soluções válidas,
encontráveis mediante o procedimento lógico dedutivo de subsunção. A
construção de um novo paradigma da ciência jurídica deve ter em perspectiva
que, primeiro, antes da existência efetiva do caso (concreto ou imaginado), há
apenas um conjunto de textos legais, os quais somente vão influir na constru
-
ção de uma norma jurídica (resposta) após inaugurado o processo cognitivo,
através do impulso inaugural (start) representado pela questão quanto à solu
-
ção correta de um problema específico, concreto ou imaginado (pergunta).
E, segundo, que a produção normativa não ocorre por subsunção linear, do
ápice (norma fundamental) até a base (norma de decisão) do sistema jurídico,
ou seja, mediante o estabelecimento da norma inferior por mera dedução da
superior. Ou seja, uma proposta de superação, de viés pós-positivista, deve
considerar que a hermenêutica jurídica envolve, mais acertadamente, uma
convergência de diversos padrões de julgamento, que dimanam de diver
-
sos ângulos de forma reciprocamente irradiante, para conformação de uma
norma (resposta) que resolverá o caso concreto (pergunta)
855
.
E, no atinente à discricionariedade judicial, verifica-se forte crítica
quanto à amplitude de decidibilidade do magistrado, haja vista que o Posi
-
tivismo Jurídico lhe confere um extenso quadro de opções para concretizar
o direito, todas elas plenamente aceitáveis pela ordem jurídica. Notadamen
-
te, embora a atividade jurisdicional esteja adstrita aos limites dos preceitos
positivados, ainda assim resta uma margem, maior ou menor, para livre e
discricionária escolha do juiz, que Kelsen tratou como uma moldura e Hart
854. MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. 2 ed.
rev. atual. ampl. São Paulo: RT, 2009. p. 20. E POSNER, Richard Allen. Problemas de filosofia do di-
reito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 341: “Com base apenas no que afirmei até agora, já deve estar
claro que a concepção tradicional que associa o raciocínio do common law à indução e a interpretação
das leis à dedução é enganosa. Interpretação não é dedução, ainda que quando um conceito é extraído de
uma lei por meio de interpretação o juiz possa proceder dedutivamente (por exemplo, a lei de monopólio
e concorrência desleal [Sherman Act] – por interpretação – proíbe a formação de quartéis, X é um cartel,
portanto X é proibido)” .
855. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4 ed. São
Paulo: Saraiva, 2011. p. 549-550: “ Desde já – embora essa discussão já esteja esclarecida no decorrer
da obra –, é necessário (re)lembrar que, para os efeitos aqui pretendidos, a palavra ‘norma’ representa
o produto da interpretação de um texto, isto é, o produto da interpretação da regra jurídica realizada a
partir da materialidade principiológica. Se sempre há um princípio atrás de uma regra, a norma será o
produto dessa interpretação, que se dá na applicatio. […] Desse modo, não pode haver um conceito de
norma que seja prévio e anterior ao caso a ser decidido. Portanto, a norma e, máxime, a normatividade
do direito emerge da conflituosidade própria do caso” (grifou-se).

Capítulo 2 – FILOSOFIA JURÍDICA 269268 CURSO DE FILOSOFIA JURÍDICA – 2ª EDIÇÃO
designou de zona de textura aberta. As críticas são no sentido de que, para
ampliar a previsibilidade quanto à conduta correta e, consequentemente,
promover a segurança jurídica, é necessário reduzir ainda mais esta área cin
-
zenta e duvidosa.
A ideia é no sentido de que o Juspositivismo representou um avanço
perante o paradigma jusnaturalista neste ponto, porquanto estabeleceu certos
limites à atividade decisória. Mas, a existência das chamadas cláusulas abertas
recomenda um importantíssimo passo adiante, no sentido de restringir ainda
mais as zonas duvidosas e, consequentemente, majorar o grau de confiabili
-
dade no órgão de aplicação do direito.
Assim, diante da imputação de defeitos insuperáveis aos principais as
-
pectos da matriz juspositivista, visíveis nos cenários acadêmico e forense,
instalou-se a crise paradigmática, a qual reclama a construção de um novo
modelo, que possa satisfatoriamente reger a ciência do direito por um rele
-
vante espaço de tempo, ao menos até eventual nova ruptura científica.
2.4. PÓS-POSITIVISMO
856
2.4.1. AS CORRENTES PÓS-POSITIVISTAS
Os defeitos do paradigma do Positivismo Jurídico minam suas bases de
sustentação de modo insuperável, de modo que uma abordagem meramente
reparadora (ad hoc) não é suficiente para sua manutenção. Notadamente, o
modelo está eivado de falhas graves na descrição da realidade e, também, na
prescrição de soluções práticas, as quais recomendam a construção de uma pro
-
posta alternativa, para fins de permitir o desenvolvimento do sistema jurídico.
Na opinião dos pós-positivistas, “o positivismo esgotou seu ciclo histórico,
como anteriormente tinha acontecido com a teoria do direito natural”
857
.
No seu tempo, Norberto Bobbio já havia apontado uma série de crí
-
ticas levantadas em face do modelo juspositivista, cabendo enumerar: “1)
uma crítica do positivismo jurídico, em defesa do direito natural (‘Volta
ao direito natural’); 2) uma crítica do estatalismo, em favor de uma reto
-
mada e de um alargamento da teoria institucional do direito (‘Pluralismo
jurídico’); 3) uma crítica do legalismo, que deveria ter aberto o caminho
856. Este capítulo foi construído com base em trechos extraídos de ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Teoria
Complexa do Direito. 2 ed. Curitiba: Prismas, 2015; e, de ZANON JUNIOR, Orlando Luiz. Jusposi-
tivistas & Pós-positivistas. Florianópolis: CEJUR, 2013.
857. ATIENZA, Manuel. O direito como argumentação. Lisboa: Escolar, 2014. p. 58.
para uma revisão do problema das fontes do direito (‘Crítica das fontes’); 4)
uma crítica do conceptualismo jurídico, em nome de formas menos rígidas
de interpretação e de uma jurisprudência mais aberta ao estudo empírico
do direito (‘A disputa sobre os métodos’)”
858
.
Mais recentemente, a guia mestra consiste em substituir o modelo
juspositivista, evitando o retorno ao modelo já superado do Jusnaturalis
-
mo, mediante um salto paradigmático para um degrau superior da ciência
jurídica, que parta das conquistas já alcançadas em direção a um modelo
mais avançado, com maior potencial descritivo e prescritivo (mais do que
juspositivista e não menos)
859
.
Com tal desiderato, um grupo de pensadores vem propondo novos
modelos teóricos para a ciência jurídica, coletivamente classificados como
integrantes da chamada corrente do Pós-positivismo, muito embora o
único elo evidente de ligação entre eles seja a intenção de superação para
-
digmática. Este grupo pode ser separado em três grandes correntes, quais
sejam, a substancialista, a pragmatista e a procedimentalista. A primeira
delas enfoca a eficácia dos princípios éticos (motivos axiológicos da deci
-
são), a segunda ressalta a importância da flexibilidade para atingimento
de finalidades razoáveis (as consequências da decisão) e, por fim, a tercei
-
ra confere maior destaque ao procedimento de construção argumentativa
(caminho decisório), consoante adiante assinalado.
A corrente Substancialista tem como característica central o enfoque
na interpretação efetuada no momento de construção da norma jurídica que
visa resolver um caso concreto, sob a perspectiva de um agente (observador
interno) que deve procurar articular sua atividade mental segundo as bases
axiológicas caras à comunidade respectiva, notadamente os princípios jurídi
-
cos inseridos na constituição. Outrossim, os pensadores desta corrente estão
fortemente enfocados no conteúdo valorativo empregado como critério de
decisão, razão pela qual são chamados de substancialistas.
Dentre as linhas que influenciam marcadamente esta corrente de pen
-
samento, cabe mencionar, primeiro, os estudos de moralidade política, haja
vista o inegável interesse destes pensadores em refletir acerca das opções
858. BOBBIO, Norberto. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. São Paulo: Unesp, 2016. p. 37.
859. ATIENZA, Manuel. O direito como argumentação. Lisboa: Escolar, 2014. p. 31: “O modelo do po-
sitivismo jurídico, à Kelsen, suscita uma rejeição bastante generalizada, em particular entre os juízes:
em parte porque não se vê como modelo de juiz da teoria pura possa reflectir a realidade da aplicação
prática do Direito, e em parte também, quiçá, porque pressupõe uma imagem pouco clara da função
judicial” .
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