Plano de leituras |6ºano
Texto poético
Seleção de poemas retirados da obra PRIMEIRO LIVRO DE POESIA, Seleção de Sophia de Mello Breyner Andresen,
Lisboa, Editorial Caminho, Agosto de 1991.
Poemas de autores portugueses
Luís de Camões | AO DESCONCERTO DO MUNDO
Os bons vi sempre passar no mundo graves tormentos; e, para mais m´espantar, os maus vi sempre nadar em mar de
contentamentos. Cuidando alcançar assim o bem tão mal ordenado, fui mau, mas fui castigado: Assi que, só para mim
anda o mundo concertado.
Bocage | AVARENTO DAS DÚZIAS Levando um velho avarento uma pedrada num olho, pôs-se-lhe no mesmo instante
tamanho como um repolho. Certo doutor, não das dúzias, mas sim médico perfeito, dez moedas lhe pedia para o livrar do
defeito. «Dez moedas! (diz o avaro) Meu sangue não desperdiço: Dez moedas por um olho! O outro dou eu por isso.»
Miguel Torga | PORTUGAL
Era uma vez, lá na Judeia, um rei. Feio bicho, de resto: Uma cara de burro sem cabresto E duas grandes tranças. A gente
olhava, reparava, e via Que naquela figura não havia Olhos de quem gosta de crianças.
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E, na verdade, assim acontecia. Porque um dia, O malvado, Só por ter o poder de quem é rei Por não ter coração, Sem
mais nem menos, Mandou matar quantos eram pequenos Nas cidades e aldeias da Nação.
Mas, Por acaso ou milagre, aconteceu Que, num burrinho pela areia fora, Fugiu Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou; E bastou Esse palmo de sonho Para encher este mundo de alegria; Para crescer, ser
Deus; E meter no inferno o tal das tranças, Só porque ele não gostava de crianças.
Alexandre O’Neill | CÃO
Cão passageiro, cão estrito,
cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado,
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré-fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...
Sai depressa, ó cão, deste poema!
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Poemas de autores lusófonos
Moçambique
Mutimati |O BURRO
Vejam o burro, Camaradas Esta zebra pequena vestida de lama bonita fofa Tem quatro pernas de andar aos saltinhos
Duas orelhas ouvidouras de ouvir tudo bem Dois olhos espertos cheios até às lágrimas de paciência O nariz do focinho