força vital e a palavra formam um elemento
primordial imprescindível para a composi-
ção das relações individuais e grupais. Os
legados de inúmeras civilizações africanas
estão presentes no jeito de ser e de viver
brasileiro, por meio da história das popula-
ções africanas escravizadas, que, como
sábias guardiãs, mantiveram a tradição oral
e recriaram novas rotas e alternativas de
vida após a colonização. Mulheres, heroínas
de ontem e de hoje, reinventam a memória
dos fatos e feitos dos antepassados.
Faltam ainda, em nossa literatura, his-
tórias que enfatizem a força motriz de
resistência e re-existência da cosmovisão
afro-brasileira que estão, por exemplo,
com as nossas sábias yalorixás, guardiãs
da memória e do axé afro-brasileiro. As
histórias estão voando por aí, de porta em
porta, de chão em chão, de esquina em
esquina, de multidão em multidão, de
periferia em periferia. Repletas de magia,
cheias de encantos, trancadas nos fios de
contas, nas tramas e nas malhas do cotidiano.
É hora de abrir as cabaças da existência,
deixar as palavras negrejadas virarem
verbo e atitude, incrustando em nossa
memória, contando velhas, novas e outras
experiências Afro-Diaspóricas.
Notas:
1
Termo utilizado quando um grupo, povo ou
nação vê e interage com o outro, o diferente (o negro,
indígena ou o não-branco), a partir do ponto de vista
próprio. Isto é, levando em consideração somente os
modelos e explicações que vêm das idéias formuladas,
criadas e veiculadas por esse mesmo grupo. No caso
deste texto, refiro-me ao branco europeu.
2
A título de informação, no Dicionário Mulheres do
Brasil, de 1500 até a atualidade. Schuma Schumaher e
Érico Vital Brazil. Rio de J
aneiro: Zahar Editora, 2000,
raras mulheres negras foram incorporadas na obra. O
que isso quiz dizer? Na história brasileira e na da diás-
pora africana não existiram figuras negras para serem
lembradas, louvadas e exemplos de história de luta?
Somente em 2007, o silêncio foi quebrado e os mes-
mos autores publicaram a obra: Mulheres Negras do
Brasil foi lançado pela Redeh - Rede de Desenvolvi-
mento Humano e Senac Editoras
. A obra apresenta
uma retrospectiva sobre mulheres negras na sociedade
brasileira desde o período colonial até a atualidade.
No entanto, com a obra é notório ver a ausência da
mulher negra na esfera de política, nos espaços de
decisão de poder, fruto da herança patriarcal e sexista
(entenda-se branca) da sociedade brasileira.
AAnnddrrééiiaa LLiissbbooaa ddee SSoouussaaé doutoranda em
Educação na Universidade do T
exas/Austin/USA.
Mestre em Educação pela Faculdade de Edu-
cação da USP (FEUSP). Integra a Associação
Brasileira dos Pesquisadores Negros - ABPN.
Fellow do Fundo Riochi Sasakaua/USP. Ex-
Sub-Coordenadora de Políticas Educacionais
da CGDIE/SECAD/MEC. Fellow do Pro-
grama Internacional de Bolsa da Fundação
Ford. Atualmente, realiza pesquisa sobre
diáspora africana em materiais didático-
pedagógicos. (
[email protected]).
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Outra figura que merece destaque é a
escritora negra Maria Firmina dos Reis
, que
escreveu a obra Úrsula(1859), num momen-
to em que nem escritoras brancas tinham
espaço para isso. A obra é considerada o
primeiro romance de autoria feminina no
Brasil. Quantos cursos de Letras analisam
obras como essa ou como as de Carolina
Maria de J
esus? Quantas Carolinas das fave-
las atuais têm sua voz e experiência periféri-
ca transformadas em verso, filme ou livro?
Mais ainda: quantas negras das favelas
podem ser lidas em 14 idiomas em mais de
40 países, como foi o caso de Carolina de
Jesus? Por que os contos sem fada, sem
madrinha, sem varinha, mas com luta,
resistência, ginga e sabedoria das mulheres
negras da periferia não têm voz nem vez?
Por que são tão raras as exceções, como as
que começam a ter vez em vozes como as de
Conceição Evaristo e Esmeralda Ribeiro?
Considerando a produção de livros
infantis e juvenis propriamente dita: quais
imagens negras a literatura infanto-juvenil
tem valorizado? Podemos afirmar que
houve um crescimento de obras narrando
fatos e feitos da tradição oral africana. Da
mesma forma, a cultura e a mitologia afro-
brasileira demarcam uma nova fase, ainda
em consolidação. Sem dúvida, mais narra-
tivas orais e mitológicas, sejam africanas
ou afro-brasileiras, disparam nas pratelei-
ras das editoras, desde meados de 1990.
São narrativas de orixás femininas, tais
como Iansã, Oxum, Iemanjá, Nanã e Obá.
No entanto, cabe ressaltar que as nossas
heroínas da atualidade ainda não têm
espaço nas tramas das histórias infantis e
juvenis. Quando teremos obras para o
público juvenil narrando a vida de heroí-
nas atuais, como as intelectuais Lélia de
Almeida Gonzalez, Maria Beatriz Nascimen-
to e, mais recentemente, Neusa Santos
Souza?
Lélia foi antropóloga, militante negra e
feminista do Nzinga Coletivo de Mulheres
Negras (RJ) e do Movimento Negro Unifica-
do (MNU), dentre outras instituições. Voz
dissonante no branco segmento acadêmico
brasileiro, tornou-se referência dentro e
fora do país. Beatriz, outra pensadora da
diáspora africana, historiadora, poeta e pes-
quisadora, contribuiu para a dinâmica dos
estudos negros. Neusa Santos Souza, com a
obra Tornar-se Negro, corajosamente reali-
zou pesquisa psicanalítica, na década de
1980, desvendando a comple
xidade do
racismo à brasileira e sua dinâmica interna
e externa na vida dos negros. Esses são
exemplos de heroínas que ficam inscritas
na memória, no corpo e na história. Essas
heroínas foram as griottes, cujo ofício foi o
de guardar e ensinar a memória cultural
da/na comunidade. V
ivenciar e enfrentar as
adversidades de um cotidiano de discrimi-
nações, preconceitos, sexismos e desigual-
dades já é um ato heróico em si mesmo.
Inúmeras mulheres negras sejam em ONG’s
de mulheres negras, nos movimentos de
saúde, moradia, educação dentre outros são
as guerreiras e feministas negras que for-
jam, quando sobrevivem ao cotidiano vio-
lento e genocida em que vivemos, novas
práticas e formas de saberes na Diáspora
Africana no Brasil.
Vale salientar que, na cultura tradicional
africana, a palavra tem o poder de garantir
e preservar ensinamentos da tradição afro,
fazendo circular energia vital, uma v
ez que
é transmissora de força mística transforma-
dora do mundo, revelando uma dimensão
criadora e ancestral. As conjunções entre a
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