---------------------- O Bairro ----------------------
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Na manhã seguinte, ainda não eram sete horas, quando a campainha soou
com insistência digna de um alarme. Maria despertou do sono e, ensonada,
encaminhou-se para a porta vestindo um sumptuoso roupão de cetim cor-de-rosa que
encontrara no cabide do quarto. À porta, hirto como um soldado, estava um rapaz que
não podia ter mais do que 16 anos, vestido com um uniforme bege e uma boina preta.
O rapaz perguntou a Maria se necessitava de acompanhamento. “Se preciso de
companhia?”, indagou Maria. O rapaz avaliou o rosto de Maria. Manteve-se
expectante e não demonstrou sinais de compreender a correcção. Era pequeno, mas
robusto, com as formas um tanto exageradas. Cozida sobre a camisa, ao peito,
ostentava o que Maria reconheceu ser a insígnia identificadora do Bairro.
“É bonita”, disse Maria. “Encantadora!” E, com um gesto subtil da cabeça,
apontou com o olhar para o peito do rapaz. Atabalhoado, o rapaz baixou o queixo e
inspeccionou o peito, como se não soubesse bem o que procurar. Maria titubeou.
Percebera que com a sua observação de mera cordialidade, inadvertidamente,
embaraçara o rapaz. Quis libertá-lo o mais depressa possível da teia com que se
debatia, e, sem saber o que mais dizer, apressou-se a agradecer a gentileza do Bairro
ao enviar-lhe companhia. Frisou que estava muito bem impressionada com a atenção.
Mas recusou. “Penso que não terei dificuldade em dar com o local; sabe,
deram-me um mapa”. O rapaz ouviu-a mudo e quedo, o corpo e o olhar inabaláveis,
mais expectantes do que indagadores. “É um jovem encantador, mas um pouco lento”,
pensou Maria. Decidiu sorrir para aliviar o embaraço que também ela agora a sentia.
Pediu ao rapaz que aguardasse à porta um instante e encaminhou-se para a sala de
estar.
Voltou com o mapa do Bairro, desdobrado de forma a exibir a sua residência e
o local de funcionamento que lhe haviam destinado, ambos assinalados com anéis
encarnados. Mostrou o mapa ao rapaz; este pegou no documento cartográfico e
estudou-o atentamente. Continuou firme. Finalmente, disse: “Ainda assim, se precisar
de acompanhamento, eu aguardo que se arranje”. “Não é tão longe que deva
preocupar-me”, disse Maria, sacudida por uma gargalhada. Para sua surpresa, em
resposta, o rapaz rasgou um sorriso exagerado nos lábios e mostrou os dentes pela
primeira vez. Eram alvos, com aspecto saudável, perfeitamente alinhados. Depois
dobrou de novo o mapa do Bairro num pequeno rectângulo e despediu-se. “Foi muito
amável da sua parte”, disse Maria enquanto o rapaz se afastava da casa. “Disponha
sempre”, devolveu-lhe o rapaz. Maria notou-lhe laivos de grosseria na voz, mas não
soube o que fazer com essa impressão.